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17/09/2020 Folha de S.

Paulo - O século de Hobsbawm - 22/6/1997

São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997

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O século de Hobsbawm
JORGE HALPERÍN
DO "CLARÍN"

Eric Hobsbawm completa 80 anos de idade e continua se lembrando


daquela tarde quente do verão de 1933, quando voltava da escola em
Berlim com sua irmã, no dia em que Adolph Hitler assumia o poder.
Está convencido de que aquela sociedade convulsionada tinha
consciência de viver um momento catastrófico. Paradoxalmente,
acredita que este final de século é muito mais violento do que aquela
época em que era um jovem comunista de 16 anos na Alemanha do
nazismo.
Não é difícil relacionar Hobsbawm, talvez o mais importante entre os
historiadores vivos, com os grandes acontecimentos do século. Não
tanto porque tenha tido grande intervenção nos episódios que
conformam sua história do século 20, mas porque sempre entendeu
que o compromisso ideológico -no seu caso, com o marxismo- não
lhe impedia de reconstituir o passado a partir de rigorosa perspectiva
histórica.
Este homem, a quem boa parte da vida acadêmica de todo o mundo -
também, naturalmente, dos claustros argentinos- reconhece como
referência iniludível para conhecer a história do mundo nos últimos
dois séculos, é, aos 80 anos, um aposentado da Universidade de
Londres, mas um ativo docente da New School of Social Research,
uma universidade independente de Nova York especializada em
ciências sociais. Também um permanente produtor de livros que
expõem a problemática do século que termina, fazendo-o com uma
clareza invejada pela maioria de seus colegas.
"Clarín" o entrevistou em sua casa de Hamstead, um tradicional
bairro londrino habitado por uma burguesia judia e por intelectuais de
sucesso. Hamstead é o bairro onde viveu Freud e onde residem
estrelas do rock, como Sting, e figuras do mundo cultural, e tem a
atriz Glenda Jackson como uma espécie de vereadora.
A casa que Hobsbawm divide com Marlene, sua segunda mulher -
uma docente que transita pelos 50 anos-, é, como o resto, de estilo
tradicional e tem uma arrumação sóbria, como tudo o que caracteriza
este personagem alto e magro, que fala com a serenidade de um velho
professor, move seus longos braços como um pássaro e não deixa de
se surpreender com o fato de que em países como o Brasil tenha mais
leitores do que em sua própria pátria.
Hobsbawm acaba de lançar na Inglaterra "On History" (Weidenfield
& Nicolson, 305 págs., 20 libras), uma coletânea de seus artigos na
imprensa e em publicações especializadas.
*
Pergunta - O senhor declarou que a geração atual está perdendo
contato com o passado. Isto é um fenômeno novo?
Hobsbawm - Quis dizer que o modo de ser atual, a forma como
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funciona nossa economia e nossa cultura, é de um "presentismo"


constante. Ao mesmo tempo, mudaram as formas tradicionais por
meio das quais se vinculavam as gerações, entre as experiências dos
pais, dos avós e dos mais jovens. Há menor continuidade da
experiência. Ninguém consegue compreender a forma em que vive ou
viveu o outro, nem os pais nem os filhos. Paradoxalmente, nos
últimos anos se nota na Europa e na América do Norte uma sede
manifesta pelo passado.
Pergunta - Como nos mitos construídos em torno dos anos 60...
Hobsbawm - Acredito que é mais do que uma moda e que não se dá
somente em torno dos anos 60. É uma avidez por recuperar o passado.
Desta forma, surgem espécies de museus vivos em antigos centros
industriais que já não existem e onde as pessoas acorrem para ver
como era uma fábrica do começo do século ou uma mina há 50 anos,
porque já não existem mais. Na minha juventude, havia no Reino
Unido 1 milhão de mineiros. Hoje, há mais professores universitários
que mineiros.
Pergunta - O senhor fala de uma sede do passado. No entanto, temas
como o Holocausto parecem ignorados por muitos jovens.
Hobsbawm - Bem, o que acontece é que um fenômeno como o
Holocausto é incrível, inconcebível, até mesmo para a minha geração,
que é a que o viveu. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas estão
conscientes deste divórcio do passado. É que o passado é uma
dimensão de cada vida humana, de cada vida social. Sem passado,
sem memória, não se pode viver. Daí vem, também, a moda de
reconstruí-lo.
Pergunta - O senhor teve dúvidas quando se propôs a abarcar em um
livro todo o século 20?
Hobsbawm - Sim, certamente. Ao começar este projeto -este livro é o
último de uma série que iniciei há 30 anos-, não percebi a dimensão
do que estava fazendo. Comecei escrevendo um livro sobre a época
da Revolução Francesa e, depois, diante da boa receptividade que ele
teve, os editores me pediram que escrevesse um novo tomo. Nesse
momento, percebi que estava fazendo uma história de todo o século
19. Então, ao terminar essa série, nos anos 80, tinha chegado a
abarcar até 1914. Muita gente me dizia que não era lógico terminar
ali, que era necessário escrever algo sobre o que aconteceu depois. O
problema de escrever a história do século 20 não é tanto a dificuldade
de se resumir os acontecimentos de um século breve, há muita gente
que o faz. O desafio está em outra parte: em repensar, em reinterpretar
minha experiência pessoal, sobretudo pela idade que tenho e por ter
vivido uma grande parte deste século.
Pergunta - Ou seja, o problema de fazer uma história na qual o senhor
está incluído?
Hobsbawm - Claro, eu não sou um observador externo; sou, de certo
modo, um participante. Como confrontar a experiência vivida, as
minhas opiniões e o que, como historiador profissional, descobri por
intermédio de minhas pesquisas e leituras? Além disso, há um outro
problema mais dramático para alguém como eu, que esteve muito
comprometido com o movimento de esquerda, com a causa da
Revolução Russa.
Pergunta - Então, em que medida é autobiográfica sua história do
século 20?
Hobsbawm - Não é autobiográfica. No entanto, há no livro um
elemento autobiográfico e talvez seja mais fácil compreender a
realidade dessa história por meio de minha experiência. Por exemplo,
no livro cito um episódio que nunca poderei esquecer: essa tarde do
verão de 1933, quando vivíamos em Berlim, e voltei da escola com
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minha irmãzinha. Era o dia em que Hitler assumia o poder na


Alemanha. Quando escrevi no livro "em tal dia de 1933, Hitler
assumiu...", esta frase está carregada de uma dimensão pessoal. Claro
que o problema não é tanto a autobiografia, porque há enormes
porções da história do século nas quais uma pessoa não teve nenhuma
participação direta. No entanto, integram o ambiente no qual
vivíamos todos.
Pergunta - Em 1933 o senhor era um jovem comunista?
Hobsbawm - Participava de uma associação comunista de estudantes
secundaristas, mas não era organicamente um comunista.
Pergunta - Mas tinha idéias muito precisas sobre Hitler?
Hobsbawm - Todo mundo na Alemanha estava consciente do
fenômeno Hitler. Ao viver nesse ambiente sumamente politizado, era
quase impossível que alguém com uma certa inteligência não
estivesse consciente de estar assistindo a um momento
importantíssimo. Imagine, no ano de 1932 havia pelo menos três
grandes eleições -uma presidencial e duas parlamentares-, de modo
que ninguém podia fugir da realidade. Eram tempos de uma grande
crise, e o sentimento de se viver um momento catastrófico era muito
generalizado, não somente para alguns jovens intelectuais.
Pergunta - Havia choques com grupos de direita ou do governo? O
clima nas ruas era de verdadeira agitação?
Hobsbawm - Nas ruas, sim. Mas muito menos do que atualmente.
Hoje vivemos uma época muito mais violenta do que aquela. No
entanto, todos estávamos plenamente conscientes.
Pergunta - Por que razão sua família se estabeleceu na Alemanha?
Hobsbawm - A explicação é complexa e simples ao mesmo tempo.
Vivemos na Alemanha por coincidência. Meus avós, que eram
provenientes da Rússia e da Polônia, já haviam vivido na Inglaterra
até 1870. Portanto, meu pai era cidadão inglês. Em outro livro, "A Era
do Império", expliquei como minha mãe, que tinha nascido em Viena,
e meu pai, inglês, estavam no Egito, onde se conheceram antes de
1914.
Quando estourou a Primeira Guerra, era impossível voltar para a
Inglaterra ou para a Áustria, de modo que passaram todo o tempo do
conflito no Egito, onde nasci. Depois, minha mãe, que era muito
nostálgica, insistiu em voltar para Viena. No final dos anos 20, o
irmão de meu pai, que era casado com a irmã de minha mãe, se
encarregou do destino de minha irmã e do meu. Nesse momento, meu
tio trabalhava em um estúdio cinematográfico norte-americano
instalado em Berlim. Em 1932, durante uma grande crise, se
sancionou uma lei que obrigava as empresas de cinema a cobrir 75%
dos postos de trabalho com alemães. Então, meu tio, como a maioria
dos estrangeiros, ficou sem trabalho e, em 33, voltamos para a
Inglaterra.
Pergunta - Quando o senhor tomou consciência dos mecanismos mais
perversos do regime nazista?
Hobsbawm - Desde o princípio. Para os intelectuais, ficou muito claro
desde o começo, sobretudo com a queima de livros. Sabia-se que era
um regime antiintelectual e anticultural. Ao mesmo tempo, os campos
de concentração já existiam desde o começo. Claro que naquela época
não estavam tão dirigidos contra os judeus, mas sim contra os
opositores, os comunistas, os socialistas e outros. Obviamente, ainda
não eram campos de extermínio, mas todos conheciam pessoas que
tinham passado um tempo neles.
Pergunta - No entrelaçamento que descrevemos entre sua vida e a
história do século, o senhor não sente que sofreu várias derrotas:
como judeu, como marxista e como homem inspirado no Iluminismo?
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Hobsbawm - Bem, é clara a derrota do projeto de realizar o


socialismo à maneira soviética. Mas era já perceptível há 40 anos. Já
então, como um jovem intelectual, me parecia evidente que não havia
nenhum comunista na União Soviética. Havia, sim, gente que
trabalhava, vivia e amava sob um regime comunista, o que é
diferente.
Pergunta - Digamos que não se assemelhava à sua utopia...
Hobsbawm - Isto era claro, mas também começava a se perceber que
algo não funcionava. Depois, começou-se a se tomar consciência das
dimensões, não somente do terror, mas do custo humano imposto à
União Soviética pela revolução, pela guerra civil, pela guerra. Já se
dizia, naquela época, que o custo era muito alto. Mas, quanto é o
muito? Há limites. Por exemplo, sem o assassinato de milhões de
russos em mãos dos alemães, teria sido possível ganhar a Segunda
Guerra? Não se pode responder à pergunta, mas não há dúvidas de
que em outros países socialistas, com exceção da China, os sacrifícios
foram menores.
Pergunta - O senhor já era um professor de história quando se
confrontou com semelhantes balanços?
Hobsbawm - Sim. Nesse momento existia a necessidade de se fazer
uma distinção entre o grande ideal comunista, a função dos
comunistas nos países capitalistas, e o que se chamou de socialismo
real. Quanto ao marxismo, creio que como forma de interpretar o
mundo ele continua enormemente vigente. Marx dizia que "é
necessário transformar o mundo". Mas, hoje, sabemos que
transformar o mundo é algo muito mais complexo do que o que ele
imaginava. Quanto aos judeus, eu nunca tive uma grande consciência
de ser judeu. Desde menino, mamãe me dizia: "Nós não temos
nenhuma religião, estamos emancipados. Mas nunca faça algo que dê
a impressão de que você não quer ser judeu".
Pergunta - O que parece evidente é que, para um homem do
Iluminismo, o Holocausto foi uma derrota.
Hobsbawm - Parece-me que a derrota do Iluminismo é algo muito
mais recente. Porque, ainda que seja correto que o nazismo e o
fascismo eram contra as idéias do Iluminismo, eles foram derrotados.
De certa forma, eu acredito que todo o século 20 é um retorno à
aceitação universal de todos os valores do Iluminismo. É um século
de uma rápida barbarização, mas me parece que, até o momento, o
Iluminismo não foi derrotado. Por exemplo, nos últimos 30 anos
houve uma forte resistência ao avanço da tortura. No Ocidente, a
tortura chegou a seu ponto máximo entre os anos 60 e 70 -não
somente na Argentina, Brasil e Chile. No entanto, desde então, desde
a presidência de Jimmy Carter até agora, as pessoas estão muito mais
conscientes da gravidade do tema. Digamos, de uma forma geral, que,
ainda que o mundo continue sendo bárbaro, é muito menos bárbaro
do que era, por exemplo, em 1975. Nesse sentido, de uma maneira
modesta, não sou tão pessimista.
Pergunta - No entanto, há um conjunto de valores em crise e a própria
decomposição do socialismo deixou um campo aberto à corrupção e
ao crime organizado.
Hobsbawm - O que sobrevive do socialismo real são precisamente os
valores do Iluminismo, da emancipação geral. E me parece que esses
valores foram a base de todo o progresso humano: um exemplo disso
é a propagação da democracia, ou seja, da idéia de que todos os seres
humanos devem ser tratados da mesma maneira, de que há valores e
critérios aplicáveis a todos. É certo que há ainda ataques a valores do
Iluminismo em países como a Índia, onde as viúvas, depois da morte
de seus maridos, são queimadas.
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Os valores do Iluminismo nos fazem ver isto como algo


absolutamente bárbaro, mas há estudiosos que dizem que é necessário
compreendê-lo no contexto dessa cultura. No entanto, ainda que
compreenda esses argumentos, creio que, sem a aplicação de certos
valores absolutos que dizem "é necessário tratar as mulheres como os
homens e os negros como os brancos", não há possibilidade de
progresso.
Pergunta - Neste século, tivemos um terror de Estado com um
aparelho político capaz de produzir genocídios e operações terríveis
sobre a sociedade. E, agora, temos um Estado que parece se tornar
quase ausente em uma série de áreas sociais que eram de sua
competência. O que significa esse dramático pêndulo?
Hobsbawm - O que aconteceu é que, nos últimos dois séculos, houve
uma tendência ao aumento dos poderes, das funções e das ambições
do Estado, incremento que não tem nada a ver com a ideologia. Essa
tendência chegou a seu ponto culminante nas duas décadas que se
sucederam à Segunda Guerra, e era igual nos Estados Unidos, na
Europa Ocidental e na Rússia comunista, ainda que variasse de
acordo com a ideologia de cada governo. Mas, nos últimos 20 anos,
se produziu a tendência contrária. É um fenômeno que ainda não pode
ser compreendido muito bem. Por exemplo, o Estado perdeu certo
controle sobre seu território. Em todo o século 19, com muito poucas
exceções, havia uma enorme tendência a concentrar o controle das
armas nas entidade públicas. Atualmente, há minorias que têm a
possibilidade de operar com armas de grande porte. É impossível
estabelecer a paz territorial que quase todos os países acreditavam ter
assegurado há 50 anos. O Estado também está perdendo o controle
sobre a economia.
Pergunta - O senhor não vê, por trás do fenômeno, o crescimento da
sociedade civil?
Hobsbawm - Creio que há muita retórica vazia sobre a sociedade
civil. Ela existe em relação a um Estado que funcione bem. Sem isso,
a sociedade civil não existe. É a desordem. Pode-se falar de sociedade
civil na Rússia pós-comunista, onde não há Estado, onde não há uma
verdadeira ordem pública?

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