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45º Encontro Anual da ANPOCS

GT 23 – Mercados ilícitos e dinâmicas criminais

“Foi criado por eles, de tanto sofrer”: o Povo de Israel e a fé cristã no sistema
prisional do Rio de Janeiro

Jaider dos Santos Costa


(PPGJS/UFF)
2

“Foi criado por eles, de tanto sofrer”: o Povo de Israel e a fé cristã no sistema
prisional do Rio de Janeiro

Jaider dos Santos Costa1

RESUMO: Este paper tem como objetivo apresentar as representações de alguns ex-detentos
acerca sobre o conjunto de regras, moralidades e rituais que a organização designada como Povo
de Israel (ou “Rael”) praticam em um presídio da região metropolitana do Rio de Janeiro. O “Rael”,
ainda pouco estudado na literatura sobre sistemas prisionais, é uma organização criada por detentos
do “seguro” e não são aceitos pelas outras facções por conta do delito cometido e/ou por terem, de
algum modo, traído sua facção de origem. Assim, o presente trabalho tentará pensar a relação entre
a moralidade religiosa e as formas de organização do Povo de Israel refletindo sobre sua fundação,
a origem de seu nome, bem como seu Estatuto e suas práticas de administração de conflitos,
circulação de dinheiro e suas redes de trocas.

Palavras-Chave: Sistema Prisional. Povo de Israel. Moralidade Religiosa.

INTRODUÇÃO

O presente paper busca apresentar representações acerca da organização designada


Povo de Israel (“Rael”), colhidos a partir de conversas e entrevistas com ex detentos que
estiveram reclusos em dois presídios da região metropolitana do Rio de Janeiro, já em
situação de liberdade, sendo algumas realizadas durante a pandemia do novo coronavírus 2,
portanto, efetuadas de forma remota, através do aplicativo de interação social WhatsApp.
As representações até o momento vêm indicando que o “Rael” é uma organização
criada por detentos que não são aceitos pelas outras facções por conta do delito cometido
(estelionato, estupro, dentre outros) e/ou por terem, de algum modo, traído sua facção de
origem, isto é, aqueles presos conhecidos por não “ter proceder”3 (MARQUES, 2009).
Assim, estes presos são encaminhados para o “seguro” – ala, galeria ou presídio tidos como

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança da Universidade Federal Fluminense
(PPGJS/UFF). Tutor Presencial do curso Tecnólogo em Segurança Pública e Social da Universidade Federal
Fluminense (UFF/CECIERJ/CEDERJ).
2
As entrevistas, via WhatsApp, foram realizadas entre os meses de maio e julho de 2020. E alguns
novos contatos vem sendo realizados atualmente, visando estabelecer novas interlocuções.
3
Segundo Adalto Marques (2009), dentre outras características, dizer que determinado preso “tem proceder”
significaria dizer que tal preso segue as normas de conduta do Primeiro Comando da Capital. Assim, venho
compreendendo que os presos não aceitos e levados para o “seguro”, seriam aqueles que não “tem o
proceder” de alguma facção criminosa.
3

neutros pela gestão prisional, para os quais são encaminhados os presos que não se
identificam (não foram aceitos ou traíram) com as facções já existentes no sistema prisional
do Rio de Janeiro, tais como: Comando Vermelho, Terceiro Comando, Amigos dos
Amigos e Milícia.
Pois bem, preciso esclarecer que sou advogado e alguns clientes se tornaram meus
interlocutores nesta pesquisa e/ou me auxiliaram me apresentando novos interlocutores.
Assim, após uma audiência de custódia4 ocorrida no ano de 2018, um cliente que
aqui chamo de Antônio, passou a relatar que, depois de passar pela triagem, os presos que
não se autodenominavam integrantes de nenhuma facção criminosa eram levados para uma
galeria/ala neutra – conhecida como “seguro” – da referida cadeia. Ala para a qual o
próprio Antônio, que siado preso em flagrante acusado de ter praticado violência doméstica
contra sua esposa, foi levado.
No entanto, ao chegar no “seguro”, Antônio se deparou com uma organização,
designada Povo de Israel (que, até o momento, eu nunca tinha ouvido falar) e passou a
relatar algumas de suas experiências. Antônio contou que, como foi preso em flagrante em
casa, se encontrava descalço e sem camisa, vestindo apenas uma bermuda e, ao chegar no
“seguro” ganhou uma camisa e um chinelo dos presos que já estavam ali.
Antônio passou a ter contato com o Povo de Israel que, segundo ele, contava com
um Estatuto – um texto normativo, dividido em cláusulas, que disciplina as práticas do
Povo de Israel – que era lido aos presos recém chegados, além de ouvir ao longo do dia
diversos gritos e cantos que não soube precisar o teor, lembrando-se apenas de ouvir
frequentemente gritarem: “Rael! Rael! Rael!”. Como este havia permanecido preso por
menos de dois dias em uma Central de Custódia do Estado do Rio de Janeiro, não possuía,
de fato, muitas informações, mas era o suficiente para me despertar curiosidade em buscar
informações a respeito da organização em questão.
A partir dos relatos de Antônio me interessei por conhecer tal organização e passei
a pesquisar sobre a mesma. Porém, encontrei pouquíssima produção acadêmica a respeito
desta.
Passei então a buscar relatos de outros clientes, todavia, muitos não queriam falar.
Até que, em fevereiro de 2019, o irmão de um amigo meu foi preso em flagrante, acusado

4
Audiência prevista nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, se tratando da apresentação do preso
em flagrante em juízo para que seja avaliada a legalidade e a necessidade da manutenção de sua prisão,
podendo ser concedido ao detento o direito de responder aos termos do processo em liberdade ou não.
4

de tráfico de drogas, também tendo sido solto na audiência de custódia, permanecendo no


“seguro”, a exemplo de Antônio. Após a soltura dele, o chamei para conversar e perguntei
se tinha algo para me contar sobre o Povo de Israel, se tinha ouvido ou presenciado algo.
Contudo, por ter ficado apenas um dia na mencionada Central de Custódia do Estado do
Rio de Janeiro, não sabia me informar muita coisa, apesar de ter ouvido o estatuto.
Dias após essa conversa, Gustavo entrou em contato comigo informando que tinha
um colega de trabalho, o João, que havia ficado preso por cerca de uma semana na Central
de Custódia do Estado do Rio de Janeiro e cerca de quarenta e quatro dias em um presídio
na região metropolitana do Rio de Janeiro, que, segundo Gustavo, “sabia tudo do Povo de
Israel”. Marcamos um dia, Gustavo levou João até meu escritório e o apresentou a mim.
No dia 05/06/2019, conheci João. Após uma conversa/entrevista com este, que me
rendeu um material em áudio com cerca de quarenta e cinco minutos, passei a conhecer
alguns “termos nativos”, algumas cláusulas do estatuto e parte da estrutura do Povo de
Israel. As quais discorrerei melhor a diante.
A partir dessas informações, prossegui com as pesquisas, nesse caminho conheci
também Soneca, que ficou preso em outro presídio da região metropolitana do Rio de
Janeiro, este que era um novo cliente e me forneceu boas informações sobre o Povo de
Israel.
Já no mês de março de 2020, ingressei no mestrado no mesmo momento em que
foram propagadas as medidas de isolamento/distanciamento social impostas pela pandemia
do novo coronavírus, em março de 2020, o que me impossibilitou de visitar os presídios
estudados. Dessa forma, passei a intensificar as entrevistas com ex detentos, já em situação
de liberdade, via WhatsApp.
Desde então, minha investigação perpassa o surgimento, as formas de organização,
as práticas de administração de conflitos, as relações de trocas e circulação de bens, favores
e dinheiro, dentre outras características do Povo de Israel, enfrentando todos os desafios
de se realizar pesquisa empírica durante a pandemia, estando impedido de ingressar no
ambiente prisional. E, desde meu ingresso no mestrado passei a ter contato com mais um
interlocutor, o Jorge, que permaneceu preso no mesmo presídio que Gustavo.
Já durante o mestrado, recentemente, sobretudo, após a qualificação do meu projeto
de pesquisa em maio de 2021, passei a pensar a respeito da dimensão religiosa que,
aparentemente, permeia as relações entre os detentos do Povo de Israel, desde suas
5

hipóteses de fundação, passando pelas cláusulas do estatuto e pelas práticas de organização


e vivência entre tais detentos.
Dessa forma, pretendo apresentar de maneira ainda preliminar as representações
dos interlocutores, refletindo acerca das práticas e rituais simbólicos do Povo de Israel
pautados na religiosidade, buscando relaciona-los à produção bibliográfica existente.

METODOLOGIA

No que diz respeito à metodologia, pretendia trazer como proposta que a pesquisa
seguisse as características do trabalho de campo etnográfico de Da Matta (1978), pois,
apesar de ter tido um contato inicial com o campo alguns anos atrás ainda sem buscar um
referencial metodológico, hoje busco seguir as etapas do trabalho etnográfico como
apresentado pelo autor. Ou seja, passando pela fase “teórico-intelectual” em que busco
trabalhos que abordem a temática que pretendo estudar, seguindo pela fase “prática”, em
que há a preparação para a estadia no campo (principalmente, identificando os melhores
dias e horários para conversar com os interlocutores), por fim, chegando a fase “pessoal
ou existencial”, quando finalmente estabeleço a interlocução com aqueles que estiveram
detidos em presídios em que o “Rael” tem representação. Neste momento, passo a buscar
compreender toda a subjetividade em torno dos relatos dos meus interlocutores.
No entanto, em virtude da pandemia do novo coronavírus, me vi impossibilitado
de realizar a pesquisa sob o aspecto metodológico mais tradicional, apresentado por Da
Matta (1978), visto que não foi possível minha entrada nos presídios estudados, como já
mencionado. Dessa maneira, me vi obrigado a intensificar as conversas com interlocutores
já em condição de liberdade, conforme narrado a seguir.
A presente pesquisa conta, até o momento, com a participação de ex detentos,
medida por entrevistas e conversas informais realizadas em meu escritório de advocacia,
com estes em condição de liberdade, sendo algumas realizadas através de plataformas on-
line, o que se demonstra plenamente possível “ante a continuidade de princípios
metodológicos entre os tipos de etnografia que podemos aplicar à internet”
(CAMPANELLA, 2015, p. 170), mesmo que não propriamente estudando o ambiente
virtual em si, mas se valendo dele para alcançar meus interlocutores.
6

Assim, alguns dos dados vem sendo colhidos seguindo a metodologia empírica,
com produção de “etnografia on e off-line”, com o intuito de demonstrar que “estar off-
line não significa automaticamente que se está fazendo uma etnografia, nem estar on-line
significa que não se está fazendo uma etnografia” (MILLER & SLATER, 2004, p. 63),
sobretudo, enquanto se vivencia uma pandemia de alcance mundial, que impossibilita o
acesso físico ao meu campo de pesquisa, o sistema prisional.
Neste mote, com a necessidade de me adaptar ao cenário atual, sem deixar de dar
continuidade a pesquisa, encontrei nas conversas via WhatsApp5 uma importante
ferramenta de pesquisa. Ademais, “seu método é algo que você aprende, não algo que já
começa com você (...) exatamente o mesmo se aplica on-line” (MILLER, 2020, p. 4).
Destaco essa necessidade de adaptação pelo fato de que, como dito, fui aprovado
no processo seletivo para ingresso no Mestrado em Justiça e Segurança do PPGJS/UFF no
fim do mês de fevereiro de 2020, com projeção das aulas se iniciarem no mês de março do
mesmo ano. No entanto, no mesmo mês de março as medidas de distanciamento foram
efetivamente implantadas no país, razão pela qual, além de passar a cursar o mestrado de
maneira remota, me vi impedido de acessar fisicamente os presídios estudados, como dito.
Assim, os contatos (ainda iniciais) que vinha mantendo, visando o ingresso na unidade
prisional, precisaram ser suspensos e passei a buscar novos métodos para realização da
minha pesquisa, voltando para as conversas com os interlocutores em situação de
liberdade, fazendo uso, dessa vez, da tecnologia para estabelecer interlocução.
Outro ponto importante a ser abordado se trata de minha inserção no campo e como
“eu não tinha [tenho] o controle sobre a minha identidade” (KANT DE LIMA, 2004, p.
74), haja vista que essa identidade, muitas vezes, eram ditadas pelos próprios
interlocutores. Isto é, por ser advogado acabo por ter mais acesso aos interlocutores que,
em sua maioria, são meus clientes. No entanto, muitos destes não conseguem me enxergar
como um pesquisador (e sim como seu advogado) quando estamos conversando sobre o
meu objeto de pesquisa. Dessa forma, deixam de me fornecer informações tão claras, talvez
por algum tipo de receio, eis que tenho contato direto com suas famílias também. Porém,
estes mesmos clientes passam a me apresentar amigos que estiveram em presídios em que
existe representação do Povo de Israel, que acabam por me passar mais informações.

5
Aplicativo de interação social, que permite conversas por mensagens digitadas e áudios, além do envio de
fotos e vídeos.
7

Com o exemplo acima, pretendo ilustrar que a identidade de advogado (na relação
com meus clientes) me auxilia no acesso mais rápido e facilitado aos dados de pesquisa,
mas algumas vezes não me permite avançar na coleta dos dados. Enquanto a identidade de
pesquisador (na relação com os amigos dos meus clientes) me possibilita conquistar a
confiança de outros interlocutores, que possivelmente nem conheceria, e assim, alcançar
mais dados de pesquisa.
Além disso, as identidades de advogado e pesquisador em formação me auxiliam
quando os colegas de profissão passam a me colocar em contato com seus próprios clientes,
para que estes possam “me contar suas histórias”6 com o Povo de Israel, me permitindo
nova ampliação da pesquisa, com pessoas que igualmente, talvez, não tivesse a
oportunidade de conhecer.
Não posso deixar de frisar ainda que essa alternância de identidades durante a
pesquisa, me impõe também a necessidade de observar as éticas de pesquisa, sem ferir a
ética da advocacia, e vice-versa.
O professor Luis Roberto Cardoso de Oliveira apresenta que
os problemas ético-morais do antropólogo podem ser particularmente
dramáticos em dois momentos: a) quando da negociação da identidade do
pesquisador no campo, o que pode ser bastante complicado; e b) no momento
da divulgação dos resultados da pesquisa, quando o antropólogo não pode se
abster da responsabilidade sobre o conteúdo do material publicado, assim como
sobre as implicações previsíveis de sua divulgação. (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2004, p. 35 e 36)

Dessa forma, além de perceber aqui novamente a questão da negociação da minha


identidade junto aos interlocutores (como já abordado), me obrigo a refletir a respeito da
responsabilidade no momento de exposição dos dados de pesquisa, principalmente, ao
estudar uma organização dentro do sistema prisional, em que recebo relatos dos
interlocutores a respeito de usos de celulares nos presídios e sobre as “humilhações” e
agressões sofridas por estes, praticadas pelos agentes do Estado, por exemplo.

POVO DE ISRAEL: MITO DE ORIGEM, FORMAS DE ORGANIZAÇÃO


E PRÁTICAS

6
Expressão que ouço de muitos colegas. O que me faz pensar que os próprios colegas advogados tem
dificuldade de compreender minha pesquisa, sobretudo, do aspecto metodológico.
8

Serrano (2010, p. 4-5) relata que a origem da organização e sua nomenclatura


remonta de 03 (três) hipóteses: A primeira, seria um episódio em que seu fundador, durante
uma rebelião, teria arremessado uma bíblia para cima e, quando esta caiu, se encontrava
aberta no Livro do Êxodo, em uma passagem bíblica que tratava da peregrinação do Povo
de Israel em busca da terra prometida. A segunda, se pautando no relato de um dos
interlocutores de Serrano, no sentido de que no PVI “todos eram sofridos” e resolveram
batizar a organização com tal nome, em alusão também bíblica ao “povo sofrido” de Israel.
E a terceira, fundada no fato de que os integrantes do PVI, ao deixarem de fazer parte das
facções existentes, ficariam limitados ao “espaço intramuros”, pois “o PVI não existe lá
fora”, ou seja, estaria exilados, assim como os israelitas da história bíblica estiveram
exilados no Egito.
João me narrou ter ouvido dos presos mais antigos que o
Povo de Israel, foi criado por estupradores, por pessoas que fizeram crimes que
em facção não é bem aceito. Tipo, estelionatário, os caras que gosta de se
aproveitar das outras pessoas. Então, foi criado por eles, de tanto sofrer. Por isso
que aí eles conseguiram fazer isso [se organizar e criar o “Rael”], para
“sobreviver”.
(...)
Em toda facção quem vai pra seguro é vacilão, é estuprador, ou fez alguma coisa
que não admite em nenhuma facção. Tanto é que quando você sai do presídio,
você sai de camisa branca. Aí tem umas barracas lá fora que chamam você, e
fala: “– Ó, não sai com essa roupa não, porque senão você pode ser morto aí! Os
cara mata você!”. Que é perto do Fuzo7, que é Comando, onde que eu tava. Aí
eles vão e cede uma camisa pra você, às vezes, uma bermuda. Pra você não sair
ali na cara de que saiu do presídio.

Dessa forma, pude compreender que o Povo de Israel é um grupo que se organizou
no sistema prisional do Estado do Rio de Janeiro. E em sua composição conta com os
detentos que não se identificam com as conhecidas facções8, que as traíram de alguma
forma e/ou cometeram os delitos que não são aceitos nas referidas facções (estupro,
estelionato, dentre outros) e, por tais razões, optam por pedir o chamado seguro.
Karina Biondi define o “seguro” como sendo o “espaço destinado a presos cujas
vidas sofrem ameaça se permanecerem no convívio com os outros”, ou, ainda, seria o
“local reservado aos presos que não conseguem sustentar seu proceder” (BIONDI, 2010,
p. 43 e 96).

7
Nome da localidade omitida, visando não identificar a unidade prisional estudada.
8
Aqui me refiro às facções criminosas já conhecidas no Estado do Rio de Janeiro, tais como: Comando
Vermelho, Terceiro Comando, Amigos dos Amigos, Milícia etc.
9

Assim, para o presídio em que estavam meus interlocutores, são encaminhados os


presos que se encontram no seguro, isto é, aqueles presos que não seguem as normas de
conduta de outras organizações, que são conhecidos por serem “vacilões”, por não terem
proceder, categoria que Karina Biondi explica da seguinte forma:
Proceder é o nome de uma relação travada por prisioneiros entre si, com
funcionários e visitantes, e que dispõe sobre o comportamento esperado em cada
situação de suas vidas, desde a alimentação até o jogo de futebol, passando
também pelos cuidados com sua higiene. (...) A disputa em torno de quem tem
proceder e de quem não tem pode ser travada em diversas instâncias da vida (na
prisão ou nas pistas) dessas pessoas (...) (BIONDI, 2010, p. 95-96)

Portanto, o ter proceder perpassa pela conduta do indivíduo na prisão ou em


condição de liberdade. Aquele que não tem proceder é considerado “vacilão” – aquele que
desrespeita as regras de convivência das facções, segundo se percebe com o relato de João.
Em outras palavras, a partir do conjunto de regras e moralidades que ditam as relações das
facções conhecidas, aquele que vai para o seguro se trata de quem se desvia da conduta
esperada por estas organizações.
Segundo Howard Becker, “o desvio não é uma qualidade simples, presente em
alguns tipos de comportamentos e ausente em outros. É antes um processo que envolve
reações de outras pessoas ao comportamento” (BECKER, 2008, p. 26).
Dito isto, e a partir dos dados colhidos por Serrano (2010) e os relatos de João sobre
suas representações, pude perceber que o Povo de Israel, ao se fundar no seguro, buscou
unir aqueles que eram considerados desviantes pelas facções existentes no sistema
prisional fluminense, como forma de não mais sofrer com as “reações de outras pessoas
aos seus comportamentos”.
Becker ainda afirma que “infratores devem ser descobertos, identificados, presos
e condenados (ou notados como ‘diferentes’ e estigmatizados por sua não-conformidade,
como no caso de grupos desviantes” (BECKER, 2008, p. 167).
Partindo desta premissa, passo a pensar que a alocação de um preso no seguro passa
também pela sua identificação e estigmatização como alguém que não se encontra em
desconformidade com as regras de convivência existentes em outros ambientes prisionais.
Ainda refletindo a respeito da narrativa de João, me parece que o “Rael”, que tem
origem no sistema prisional, aparenta apresentar práticas que visam a defesa dos interesses
dos detentos. Diante da precariedade do sistema prisional, esse movimento de organização
dos detentos não se trata de uma novidade, eis que conforme aborda Dias (2013), uma série
de eventos culminaram na perda de controle dos presídios por parte do governo de São
10

Paulo, por exemplo. Ainda de acordo com Dias, os detentos se viam submetidos à uma
série de arbítrios, tendo em vista a ausência de implementação de regulamentos como
normas de conduta. Com isso, no contexto em questão o PCC9 surge como maneira de
reivindicar e lutar contra os referidos arbítrios e ainda buscando construir normas de
condutas, se fazendo um movimento importante para a gestão da dinâmica prisional
(DIAS, 2013).
João também esclareceu que, segundo o que lhe foi relatado pelos “amigos de
Rael”, a partir da necessidade de se organizar e estabelecer regras de convivência10, o Povo
de Israel criou seu Estatuto – texto normativo, dividido em cláusulas, que disciplina as
práticas do Povo de Israel. Estatuto este que ele contou ter cerca de trinta e duas cláusulas,
das quais somente conseguiu recordar de algumas, tais como: “Não cobiçar a etapa do
amigo” – não cobiçar aquilo que o amigo possui, seja a “comarca” (beliche), seja a comida,
seja a função que ocupa etc. –; “Não ser Alan Delon” – não cobiçar a namorada,
companheira e/ou esposa do amigo –; “Não fazer dívida sem estar calçado” – não
contrair/assumir dívidas se não possuir recursos financeiros para pagá-las –; “Não
desmerecer o crime do amigo” – não fazer mau juízo do crime do amigo –; “Não levantar
defunto do amigo” – não relembrar algum erro do amigo que já foi resolvido –; “Respeitar
o luto” – é proibido gritar, xingar, se masturbar e jogar apostando (por exemplo), quando
se instala o luto na cadeia, que pode ser quando há o falecimento de algum detento e/ou de
algum familiar ou amigo próximo de algum detento; “No Rael nada se acha e nada se
perde” – noção de que não se pode haver furtos entre os amigos do Povo de Israel – e;
“Não caguetar” – não delatar o amigo.

A “SOLUÇÃO” E AS DIFERENTES REPRESENTAÇÕES DE DOIS EX-


DETENTOS SOBRE A VIOLÊNCIA

Os detentos do Povo de Israel buscam resolver seus litígios através da prática da


“solução”, conforme relata João:

9
Primeiro Comando da Capital, grupo que surgiu dentro do sistema prisional paulista sob a justificativa de
defesa dos direitos dos detentos.
10
João relata que ouvia dos presos mais antigos que o Estatuto foi criado para organizar a convivência dos
detentos.
11

Se eu arrumar um problema com alguém, me senti ofendido ou lesado com


alguma coisa, eu vou peço minha “solução”. Aí a cela circula, todo mundo que
tá fazendo alguma coisa, para, e fica prestando atenção naquele desenrolado ali.
Então, dali vai sair um certo e um errado. Saiu o errado, o “Comissão”11 fala: -
Pode pegar! Aí só quem pega é o “Ligação”12 ou o “Visão”13 e, às vezes, são
eles todos. Aí eles pega porrada. O preso tem que ficar com a mão para atrás. E
ele pega soco no peito, soco nas costas. Se tiver problema de coração, eles só
batem só nas costas ou então em partes que... às vezes, dependendo da gravidade
da situação, a pessoa fica até toda quebrada. E, a mesma pessoa que te cobra, é
a mesma que vai te dar um remédio depois. Porque, depois que você é cobrado,
é posto uma pedra em cima daquilo que você fez. Já pagou, já zerou. Ninguém
da cela minha pode tocar naquele negócio lá. Porque é até um negócio do
estatuto: “Não posso levantar defunto do amigo, nem desmerecer o crime”.

Dessa forma, durante a interlocução com João, pude perceber que a “solução” se
assemelha aos debates do PCC apresentados por Biondi (2010) e aos desenrolos ou
desenrolados apresentados por Grillo (2013) no contexto carioca, tendo em vista que
podem ser representados como “procedimentos orais por meio dos quais os conflitos se
deflagram e buscam uma solução – que pode ser violenta” (GRILLO, 2013, p. 104).
Assim, a “solução” terá o objetivo de identificar quem é o certo e quem é o errado
naquele desenrolado. E, aquele que for considerado errado pode ser submetido a um
castigo físico, pois “para se traçar uma trajetória de sucesso no Crime, adquirindo
consideração e reconhecimento entre os demais criminosos, é preciso agir sempre pelo
certo” (GRILLO, 2013, p. 133-134).
Nesta esteira, Biondi (2009) ao descrever o episódio em que os irmãos14 sugeriram
que o preso denominado Sérgio poderia ser coisa15, por ter passado por cadeia de
oposição16, demonstrou que um irmão que já o conhecia conseguiu apaziguar o caso e os
demais irmãos “’colocaram uma pedra em cima do bagulho’ (que quer dizer que a
situação é encerrada, mas não esquecida, ou, em outros termos, ‘passa batida, mas não
despercebida’)” (BIONDI, 2009, p. 98).
Essa dimensão de se “colocar uma pedra” sobre o assunto, aparece também no
relato de João, diferindo um pouco da descrição de Biondi (2009), pois, no caso descrito

11
“Comissão” = preso ocupante de uma função responsável por toda uma galeria e/ou ala do presídio.
12
“Ligação” = preso ocupante de uma função responsável pela comunicação entre as celas de uma mesma
galeria, ficando na porta da cela para fazer a “ligação” entre as celas, e podendo ficar soltos a maior parte do
dia. Na divisão interna do Povo de Israel se encontra abaixo dos “Monitores” – responsáveis por monitorar
os passos dos “Ligações”.
13
“Visão” = preso ocupante de uma função responsável por uma cela (cada cela conta com, pelo menos, um
“Visão”).
14
Forma como são chamados os integrantes PCC que já passaram pelo batismo – espécie de ritual de
iniciação no Comando.
15
Forma como são chamados os rivais do PCC.
16
Cadeia de facção rival.
12

pela autora, a situação foi apaziguada antes de se esticar o chiclete – em resumo, o que,
segundo a autora, significaria levar o debate até as últimas consequências –, já na narrativa
de João, a pedra seria colocada após a cobrança gerada pela “solução”, sendo proibido pelo
Estatuto “levantar o defunto do amigo”.
Os relatos de João trazem representações que também podem ser utilizados como
comparação ao chamado “tribunal do crime” – julgamento ocorrido entre os membros do
PCC. Nesta linha, Gabriel Feltran (2010) descreve um episódio em que o “tribunal”
deliberou por punir apenas um dos envolvidos em um assassinato (o indivíduo que
efetivamente o cometeu), contrariando a vontade do irmão da vítima, que desejava que
todos os três envolvidos fossem punidos. E, ao analisar o referido acontecimento, Feltran
indica que:
(...) para além de deliberar apenas pela morte de uma pessoa, o “tribunal”
também fez questão de encerrar a contenda por ali – o “xeque-mate” não permite
continuidade à vendeta. Quem julgou e implementou a sentença foi a autoridade
legítima da “lei” (do crime) – e, caso alguém decida desobedecê-la, será
“cobrado radicalmente” (FELTRAN, 2010: 70).

Dessa maneira, passei a perceber certa semelhança entre o “xeque-mate” do PCC e


o mandamento do estatuto do Povo de Israel de “não levantar defunto do amigo”, tendo
em vista que, nos dois casos, o fato que gerou o conflito solucionado, não deveria mais ser
retomado, sob pena de punição àquele que o mencionar novamente.
Dito isto, não posso deixar de considerar que, segundo Misse (2016), a violência
não deve ser vista como um conceito fechado, mas sim como uma categoria tanto de defesa
como de ação, portanto, ainda em disputa e com caráter performático, portanto, “na
interação, a violência não está no indivíduo, mas na ruptura de uma expectativa comum
aos participantes da interação” (MISSE, 2016, p. 53).
A partir destas rupturas de expectativas comuns aos detentos do Povo de Israel, no
presídio estudado, não é incomum perceber nos relatos de João que estes davam a “última
forma” – último aviso, último pedido para que cesse a ofensa, antes de ser pedida a
“solução” – e, verbalizavam aos amigos sua insatisfação com o ocorrido ao alertar: “Vou
pedir a solução!”
João ainda traz uma característica importante da “solução”, a partir de sua
percepção, ao dizer que “a mesma pessoa que te cobra é a que vai te dar remédio”, ou seja,
o mesmo “amigo” que tem a incumbência de lhe aplicar a pena, é também responsável por
cuidar das lesões e ferimentos eventualmente gerados.
13

Diferentemente de João, outro interlocutor, o Jorge, descreve a “solução” da


seguinte maneira:
Solução é um negócio brabão, para a cadeia toda, chama todo mundo: “Atenção!
Tá geral na grade!”
Passa a visão que fulano está devendo a outro irmão há mais de duas semanas.
O irmão está certo ou tá errado? Pô, imagina a galeria com duzentas pessoas
falando seu nome, falando que você tá errado: “– ERRADO!”. Se você estiver
certo, vão falar: “– CERTO!”.
Nossa! Eles tiram, eles chamam o guarda, né. O guarda tira o cara do coletivo,
tira o cara da cela, aí ali fora, ali fora o pau canta. O pau canta! Quando não é
dez minutos apanhando. Isso quando não abre todas as celas, dependendo do
delito, eles mandam abrir todas as celas e mandam fazer corredor polonês, tá.
Mas isso eu não cheguei a presenciar não.
Eu vi um espancamento brutal de um cara que estava torturando um cara do
artigo de estupro, essas coisas. Lá você não pode falar essa palavra né. Eles te
orientam a falar “os amigo do artigo”. Aí ele estava usando essa palavra com o
cara, chamando o cara de estuprador e tudo mais. Nossa, o cara botou 10 blusas
de frio, não adiantou, eles bateram com cabo de vassoura. Três cabos de
vassoura assim juntado, amarrado. Bateram legal hein, foi papo de meia hora
batendo. Todo mundo batendo, é o coletivo todo. Então, mais ou menos assim
que funciona.

A diferença entre os relatos de João e Jorge acerca da “solução”, em que para o


primeiro se trata de uma compreensão da violência que encontra certa aceitação e
legitimação nas regras de convivência estabelecidas pelo Estatuto, enquanto para o
segundo se trata de algo “brabão”, que não encontra aceitação. Além disso, para João seria
algo justo e moderado, com o errado apanhando por ter merecido e tendo seus ferimentos
cuidados por aqueles poucos legítimos a lhe agredir, já para Jorge, seria algo menos
ordenado e que todos bateriam, se tratando de um “espancamento brutal”.
Essa dicotomia reforça o “fato da violência ser um fenômeno empírico antes do
que um conceito teórico”, reafirmando a importância de “que o fenômeno da violência
seja construído como objeto sociológico, de modo que a utilização dele, no interior do
discurso científico adquira força explicativa e sentido” (PORTO, 2010, p. 17).

O ESTATUTO E OS RITUAIS DO POVO DE ISRAEL E A FÉ CRISTÃ EM


PERSPECTIVA COMPARADA

Ao compreender o Estatuto do Povo de Israel, identifico certa semelhança com


mandamentos da fé cristã, logo, passo a tentar identificar se há uma relação moral entre
algumas de suas cláusulas e a moralidade presente na dita fé cristã.
14

O Povo de Israel através das cláusulas de seu Estatuto, de seus rituais simbólicos e
de suas hipóteses de fundação, me permitem refletir acerca da moralidade em torno da fé
cristã, que podem ou não exercer influência nas relações da referida organização.
A cláusula estatutária de “não levantar defunto do amigo” aparenta guardar relação
com a moralidade cristã católica apostólica romana em seu sacramento da confissão ou
penitência, eis que neste há uma absolvição dos pecados daqueles que os confessam, não
mais importando tal tema, desde que determinada conduta não se repita. E, ao se confessar,
não é incomum que o sacerdote lhe aplique determinada penitência.
Ademais, algumas noções do estatuto do Povo de Israel me parecem guardar
relações com os mandamentos da lei de Deus, tais como:
 “No Rael nada se acha e nada se perde” – noção de que não se pode haver
furtos entre os amigos do Povo de Israel –, que aparentemente se assemelha ao 7º
mandamento da lei de Deus na doutrina cristã, “não furtarás”;
 “Não ser Alan Delon” – não cobiçar a namorada, companheira e/ou esposa
do amigo –, que aparenta se relacionar com o 9º mandamento da mesma lei, “não cobiçarás
a mulher do próximo”;
 “Não cobiçar a etapa do amigo” – não cobiçar aquilo que o amigo possui,
seja a “comarca” (beliche), seja a comida, seja a função que ocupa etc. –, que parece
guardar relação com o 10º mandamento, “não cobiçarás as coisas alheias”.
Nesta linha, seguindo pelo Estatuto do Povo de Israel, me deparei com a seguinte
cláusula: “Respeitar o luto”, a qual pude conhecer a partir dos relatos de João:
Quando morre o parente de alguém e você fala, os “Comissão” grita: “Atenção,
Povo de Israel!”. Eles gritam alto para todo mundo ouvir né. Aí falam: “Povo de
Israel, viemos comunicar o triste falecimento de nosso amigo irmão (aí fala o
nome do irmão e a cela que ele é)!”. Aí fala: “Que Deus o tenha!”. Aí a cadeia
toda responde: “Em um bom lugar!”. Aí dá até um estrondo assim, porque todo
mundo fala junto. Aí, fez isso, tá no luto. A cadeia tá de luto. Que aí não pode
gritar lá para o outro lado, tem que falar baixo ou então passar uma escrita. O
luto dura até as seis horas do outro dia. Que aí no luto não pode jogar valendo,
não pode jogar apostando, entendeu? Não pode fazer nada apostando. (...)
Quando a cadeia estava de luto não podia se masturbar. E não podia xingar
palavrão.

Essa dimensão de respeito ao luto, se demonstra como uma dimensão moral de


respeito ao sofrimento e à morte, que também pode guardar relações com o conjunto de
moralidades que pautam a fé cristã.
Ademais, ao identificar a cláusula que determina: “Não desmerecer o crime do
amigo”, a relacionei com a passagem bíblica constante no evangelho de Mateus, capítulo
15

7, versículo 1, em que Jesus em conversa com seus discípulos adverte: “Não julguem, e
vocês não serão julgados” (BÍBLIA, 2008, p. 1246). E, no Povo de Israel, se você
desmerece o crime do amigo e descumpre o estatuto, pode ser levado a julgamento através
da “solução”.
Não posso deixar de citar a narrativa de João a respeito do breve ritual ao qual os
presos do Povo de Israel se submetem ao conseguir a liberdade:
Quando o cara era solto, eles dava um tapa na cabeça ou nas costa do cara. Que
era pra ele nunca mais voltar naquela rua escura, que eles falam. Aí quando era
de noite, depois do brado, eles gritavam o nome da pessoa: “Fulano pediu. E
Deus abençoou! Ô Lili, me chama que eu vou!” Toda vez, quando sai um preso,
eles gritavam isso, de noite, quando o cara não tá lá mais. Aí eles lembram do
cara e fala isso.

O ritual acima me faz pensar sobre toda a dimensão simbólica desse simples ritual,
o qual se demonstra como uma maneira de valorizar a liberdade alcançada ao sair da prisão,
a exemplo do que a narrativa bíblica apresenta acerca dos israelitas exilados no Egito e
toda a sua peregrinação pelo deserto até alcançar a chamada terra prometida, que fora
resumida por Manu Marcus Hubner da seguinte forma:
O período de jornadas dos israelitas pelo deserto, saindo da escravidão do Egito
e alcançando a Terra Prometida, é a narrativa da quebra das correntes, da vitória
dos escravos sobre os escravizadores, da busca da liberdade e da
autodeterminação de um povo, enfim, uma narrativa épica e simbólica que
representa a esperança. (HUBNER, 2013, p. 285)

Por fim, cito a fala de João sobre outra previsão do estatuto, que se remete quase a
uma ideia de conversão, em que a vida antiga fica para atrás, somente importando a vida
nova que será vivida junto aos amigos do Povo de Israel, veja:
Tá no estatuto também que tudo que você fez na rua, quando você entra dentro
do Povo de Israel é zerado. Vai contar aquilo que você vai fazer lá dentro, a
pessoa que você vai ser. Ouvir mais e falar menos, prestar atenção.

Silva, Costa e, Pardo (2021), ao citarem Manuela Cunha (2018) e Erving Goffman
(1974) explicam que
Manuela Cunha (2018) em seu trabalho discute sobre novas perspectivas
observando os diálogos que se estabelecem entre a prisão e o bairro, uma janela
para entender certas regularidades e características em comum dos bairros de
onde as reclusas provêm. Com a observação de formas simultâneas das
experiências prisionais do dentro para fora foi possível entender a constituição
mútua desses domínios. Esta análise questiona os olhares já clássicos que
recaem sobre o universo prisional como instituição total, inspirados em Goffman
(1974) e sua visão própria de uma década atrás. O autor havia considerado que
os limites materiais destes estabelecimentos pareciam delimitar
inequivocamente um mundo de relações sociais temporariamente autônomo
cortado do exterior.
16

Desta forma Manuela Cunha (2018) mostra que a pessoa presa não é totalmente
extirpada de seu universo social, pois partes deste acabam sendo deslocados para
a prisão e encontrando-se com outros universos.

No mesmo sentido, Dias e Salla (2019), citando Adorno & Dias (2017) e Godoi
(2017) esclarecem que
Da mesma forma que as prisões apresentam diferenças entre si, é igualmente
fundamental atentar para as mudanças ocorridas nas prisões como forma de
compreender os desafios que elas colocam não apenas para o poder público,
como também para as análises no campo da própria teoria social. As muitas
formas de transação das práticas prisionais com a sociedade abrangente, a
porosidade de seus muros, revelando a circulação de ideias, linguagens,
comportamentos e práticas em geral, entre o dentro e o fora, redefinem aquelas
análises clássicas (Adorno & Dias, 2017; Godoi, 2017).

Não é demais lembrar que os presos carregam consigo até o ambiente prisional suas
formas de pensar, agir, socializar, suas identidades sociais, raciais, religiosas, étnicas etc.,
além de, ante a porosidade das unidades prisionais, estão em constante contato com o
mundo externo, seja através de suas visitas ou através do uso de aparelhos celulares. Fatos
que fazem com suas práticas e rituais demonstrem a relação de troca constante entre o
“dentro” e o “fora” da prisão.
Vital da Cunha (2015) durante sua pesquisa apontou a proximidade dos traficantes
da favela estudada, com as redes evangélicas ali existentes, por vezes, em busca de
proteção, pois, vários destes eram oriundos de famílias evangélicas, além de relatar a
“oração do traficante”, realizada diariamente às cinco e meia da manhã, pelos “radinhos”,
momento que a autora caracteriza como uma “comunicação com o alto e com o baixo”,
visto que havia uma comunicação com o divino e também com as pessoas, lhes passando
as orientações de conduta, como matar menos, por exemplo. O que, a meu ver, pode se
assemelhar ao que acontece quando se realiza “o brado do Povo de Israel” e a oração do
Pai Nosso, como relata João:
O brado é todo dia, às seis horas da tarde, que é o brado do Povo de Israel. No
brado todo mundo tem que tá de camisa branca e em pé, perto da grade, todo
mundo. Os “Ligações” passam olhando em cada cela pra ver se o cara tá. Aí ele
grita: – Atenção, Povo de Israel, seis horas! Postar geral, de camisa, na grade!
Aí todo mundo, depois que ele fala isso, responde: – Na grade! São três vezes.
Aí tem a oração, que é o Pai Nosso né, Pai Nosso que estás no céu que ele vai
falando, aí tem umas palavras que ele fala. Aí, inclusive, ele fala: – Ô lili! Aí
todo mundo: – Me chama que eu vou! Isso aí é certo, todo dia, todo mundo tem
que falar isso. Todo dia às seis horas.

Nesta esteira, a pesquisa que vem sendo realizada me leva a confirmar a


necessidade de se pensar os presídios como instituições muito mais complexas do que
anteriormente apresentado por Goffman (1974), haja vista o fato de que os detentos não
17

ficam apartados do munido externo, pois, suas relações, além de não se limitarem ao
espaço intramuros (ainda que o “Rael”, aparentemente, não possua domínio territorial fora
da prisão), reproduzem moralidades e rituais simbólicos semelhantes àquelas ocorridas nos
espaços extramuros.
Dessa forma, os rituais do Povo de Israel nos presídios estudados se demonstram
arraigados por um conjunto de moralidades que aparentemente podem se assemelhar à
moralidade que fundamenta a fé cristã.
No entanto, ao mesmo tempo que as práticas e rituais do Povo de Israel aparenta
refletir uma moralidade religiosa, sobretudo, no que tange à fé cristã, João em sua narrativa
fez questão de deixar claro que dentro do “Rael” todos são respeitados, mas que há uma
ala específica para aqueles que ele denomina como “travestis”17 e outra ala específica para
os “crentes”18.
Dias (2008, p. 92), citando Brandão, demonstra que o “ser crente” exige
“a sujeição do sujeito à identidade da crença, a aceitação de uma subcultura
criada para negar a cultura em sua dimensão mais ampla, associada ao ‘ser
católico’. Por isso, algumas frases são muito comumente proferidas, tais como
‘o crente não se mistura’ ou ‘a vida do crente é a igreja’”.

Com essa citação passo a considerar qual seria o motivo de tal isolamento dos
“crentes” num ambiente prisional que, aparentemente, reproduz lógicas, moralidades e
rituais inerentes à fé cristã. O que ainda se trata, no momento, de uma consideração ainda
sem uma resposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, ainda em andamento, é fruto de uma pesquisa que, como dito,
procura seguir a metodologia empírica, com todos os desafios impostos pela pandemia do
novo coronavírus, primando pelos relatos de interlocutores que vivenciaram as práticas do
Povo de Israel em um presídio do Rio de Janeiro.
Portanto, procurei apresentar as hipóteses de surgimento do Povo de Israel, a partir
dos relatos de João, confrontando-os com a literatura existente, além de apontar como as

17
Segundo João, são denominados como “travestis” aqueles presos que se casam dentro do presídio.
18
Que seriam os presos que professam as religiões protestantes, sem contudo, saber precisar quais seriam as
denominações.
18

práticas, regras e moralidades aparentam guardar relação com o conjunto de moralidades


que pautam a fé cristã.
Logo, se demonstrou ainda mais evidente para mim que a prisão não pode mais ser
compreendida como um “mundo paralelo” ou “apartado” da sociedade como um todo,
como muitos autores entendiam, mas sim deve ser encarada como uma instituição porosa,
que reflete o “extramuros”.
Ademais, esta pesquisa me levou a considerar que o “Rael” apresenta inúmeras
características que ainda precisam ser exploradas, no meu caso, a partir das representações
que os interlocutores já em liberdade têm do que vivenciaram ou ouviram outros detentos
contar no período em que se encontraram reclusos. Não podendo deixar de mencionar
também que esta dimensão da moral religiosa das práticas dos detentos do Povo de Israel
se trata de um tema que voltei a atenção da pesquisa apenas nos últimos meses, portanto,
se tratando de estudos de caráter ainda preliminar.
Desta feita, não posso negar que ainda há um extenso caminho a ser percorrido
durante a pesquisa, em especial, no que diz respeito à análise das influências (ou não) que
a fé cristã e o seu conjunto de moralidades exercem sobre as relações entre os detentos do
Povo de Israel.

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