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Melhor a traição do que

a fidelidade mentirosa

Certa vez o maguid de Koznitz procurou um homem que havia se imposto inúmeras mortificações como forma de devoção, entre elas vestir roupas
grosseiras de juta e jejuar de sábado à noite até sexta à noite (de shabat a shabat). O maguid o advertiu: “Você pensa que está mantendo os maus pensamentos
afastados de você, não é? Na verdade, eles estão pregando uma peça em você! Aquele que finge jejuar de sábado a sábado, mas que furtivamente come uma coisa
ou outra a cada dia, é espiritualmente superior a você. Isto porque ele está apenas enganando os outros enquanto você engana a si mesmo!” (Buber, Early
Masters, 291)

O MAGUID ESTÁ INTERESSADO EM desvendar os véus da hipocrisia. Aquele que engana a si mesmo é mais
perverso do que o que engana os outros. Isso porque aquele que engana os outros está muito mais próximo de cair em si
do que aquele que engana a si mesmo.
Há traições pela fidelidade muito mais violentas do que as traições pela transgressão. Não se trata de uma receita
genérica, mas uma possibilidade que deve estar sempre presente nas interações com a vida. No matrimônio, por exemplo,
área em que as questões de fidelidade tendem a ter sua “saúde” medida pela prática ou não do adultério, podemos
constatar isso. Quantos casamentos são uma traição profunda à promessa de busca de uma vida de enriquecimento afetivo
mútuo? Viver esse tipo de casamento, decerto após se terem esgotado todas as medidas possíveis para curar a relação, é
uma forma de traição à alma bem mais séria do que um possível adultério representa, traição ao corpo. Por corpo
entenda-se o passado e o compromisso do passado. A fidelidade hipócrita é um compromisso com o passado que obstrui
o presente e o futuro. Pode ser uma opção, mas é idólatra.
Não se pretende defender o adultério como solução, assim como o maguid não recomenda que uma pessoa deva
fazer jejuns e comer furtivamente. Mas é mais perniciosa a hipocrisia que se dissimula como conduta exemplar, gerando
consequências de várias ordens tão ou mais nocivas, do que o adultério. Muitas doenças emocionais, perversões e
violências dentro da família são resultados do ato de enganar a si mesmo.
É interessante notar que, para a psicologia evolucionista, a moralidade da monogamia, ou de outros comportamentos
da área da sexualidade, foi desenvolvida para dar maiores garantias de reprodução a um determinado grupo. A moderna
civilização ocidental percebeu no modelo familiar vigente a melhor forma de garantir paz social, ao produzir o que
acredita ser a melhor forma de reduzir as tensões da competição pela reprodução. O corpo moral, responsável por esse
status quo, deve ter sua atuação constantemente monitorada pela alma para assegurar-se de que este não está,
inadvertidamente, agindo contra os próprios interesses. Para a alma, a tensão por transgredir a própria cultura propõe
novas possibilidades e alternativas que se alicerçam muito mais nas traições reais do que nas hipocrisias.
A alma imoral está em constante processo de sabotagem à ordem estabelecida. Sua função, que pode levar a grandes
riscos, é parte do ato de “devoção” à vida. Em se tratando de situações de realidade e não idealizadas, o transgressor é
mais bem-vindo do que o hipócrita. O transgressor faz mais bem ao próprio corpo do que o hipócrita. Mas o corpo não
aceita isso. Sua função é vestir e não desnudar. Seu desejo é procriar e não trair.
O animal moral mascara suas intenções para garantir o que acredita ser a melhor maneira de se preservar. É difícil
defender a alma imoral perante a sociedade. Esta é a razão de tantas tradições religiosas inverterem a proposta bíblica e
assumirem o que tem sido seu verdadeiro papel: guardiãs do animal moral.
A proposta espiritual, no entanto, é clara: melhor o traidor do que o hipócrita.

É MAIS FÁCIL RESGATAR O PASSIONAL DO QUE O ACOMODADO

Quando jovem, o rabi Moshe foi um grande inimigo dos ensinamentos chassídicos. Certa vez, quando se hospedava com
o rabi Asher (também oponente desses ensinamentos), apresentaram-lhes um livro de orações chassídico. Ao ver o livro,
o rabi Moshe o tomou violentamente e o jogou ao chão. O rabi Asher recolheu o livro e disse: ‘‘Afinal de contas, é um
livro de orações, e não devemos tratá-lo de forma desrespeitosa!”
Quando o rabino de Lublin (simpático ao movimento chassídico) soube do incidente, comentou: “O rabi Moshe
ainda poderá tornar-se um membro do chassidismo (o que realmente aconteceu); o rabi Asher permanecerá para sempre
um inimigo. Isto porque aquele que queima de ódio passional pode um dia arder de amor passional. Mas aquele que é
friamente hostil terá sempre bloqueado o caminho de um possível encontro!”
O rabino de Lublin sabe claramente apontar a realidade mais interna. Mesmo que externamente a atitude do rabi
Moshe demonstre maior intolerância, sua disponibilidade em trair passionalmente o que “afinal de contas é um livro de
orações” revela a possibilidade de encontrar um novo corpo moral, uma nova maneira de ser para si mesmo, o que não
ocorre com o rabi Asher. O último está acomodado em sua compreensão de mundo e, mesmo que aparentemente obedeça

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