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A dor, essa desconhecida

Desde épocas mais primitivas, o homem tem tentado entender o fenômeno dor. No
entanto, ao invés de encontrar uma descrição comum, única e universal, acabou por
descobrir que a dor é muito mais do que um fenômeno fisiológico e neurológico.
Conceitualmente, o fenômeno doloroso percorre caminhos bem diversos na história e na
cultura da humanidade.
A Sanofi-Aventis, ao considerar que o entendimento da dor passa também pela
abordagem dos traços culturais e antropológicos, oferece aos médicos brasileiros a obra “A
História da Dor”, apresentada em fascículos de fácil leitura e ricamente ilustrados. Na
seqüência, serão analisados os seguintes temas:

Fascículo 1: A dor — uma experiência na história.


Fascículo 2: Gregos e Romanos — visão diante da dor.
Fascículo 3: A dor na Idade Média.
Fascículo 4: Do Renascimento ao século XVIII.
Fascículo 5: O século XIX — os anos do progresso.
Fascículo 6: A dor no século XX.

Fácil perceber que a dor, apesar de holística, ganha dimensões, conotações e


representações diferentes. Essa variabilidade conceitual está diretamente relacionada à
cultura, à religião e ao ciclo evolutivo de cada povo, de cada nação.
Acreditamos que a melhor compreensão deste fenômeno, visto por ângulos diferentes,
proporcionará aos médicos brasileiros a oportunidade de poder melhor avaliar e tratar a
síndrome dolorosa relatada por cada um de seus pacientes.
Cordiais saudações
Dr. Coriolano R. Miranda
Gerente Médico
Dr. Jaderson S. Lima
Diretor Médico

A HISTÓRIA DA DOR

Fascículo 1
A DOR, UMA EXPERIÊNCIA NA HISTÓRIA

A dor: uma experiência cultural

Ao longo de toda a História, o homem procurou explicar as causas da dor. Alguns


sustentam que é somente um mecanismo de alerta do organismo; outros dizem que esta
explicação é simples demais para um fenômeno tão complexo. A sensação de dor é

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influenciada por muitos fatores além dos puramente fisiológicos e neurológicos. Sem dúvida,
o entendimento do papel que a dor ocupa na História da humanidade passa pela abordagem
dos traços culturais e antropológicos abrangidos por esta sensação. Desde as épocas mais
primitivas o homem tem tentado entendê-la e encontrou explicações muito diferentes.
Hoje, quando tantos esforços e recursos são empregados na luta contra a dor, não
levamos em conta que em outros tempos e culturas possam ter havido, e ainda existem,
atitudes tão opostas às do homem moderno.
Por exemplo, durante toda a Idade Média e até o século XVIII, os europeus usaram a dor
como instrumento de justiça: condenados eram submetidos a sessões de torturas públicas. O
espetáculo atraía toda a cidade. Pais acompanhados de seus filhos, mulheres com seus
maridos e vagabundos acompanhados apenas por sua curiosidade reuniam-se em volta da
praça maior, para presenciar o cruel espetáculo. O condenado era arrastado por um carro
através das ruas da cidade. Flagelado e sangrando, mal conseguia ficar em pé. Muitas vezes
caía no chão e era arrastado por ruas de terra e pedras ou por vias de paralelepípedos
escaldantes por causa do sol do meio-dia. Quando chegava à praça, a tortura continuava em
meio aos gritos da multidão aglomerada. Os carrascos usavam cordas, fogo ou ferros
incandescentes para infligir a maior dor possível, para que a multidão, como que assistindo a
uma cerimônia de educação cívica, visse o que acontecia a quem violava as leis. Depois,
quando já estava inconsciente ou fraco demais para gritar ou defender-se, o condenado era
finalmente crucificado, queimado, enforcado.
Segundo alguns historiadores, o caráter educativo assumido pela dor durante a Idade
Média tem sua origem na cultura judaico-cristã. As pestes medievais eram vistas como um
verdadeiro castigo divino, ou decapitado, de acordo com a prática local. Em alguns casos, o
cadáver ficava exposto até apodrecer.
Depois do flagelo, os corpos sem vida dos condenados ficavam expostos ao escárnio
público. Isso é o que mostra este detalhe de um afresco de Pisanello que se encontra na
Igreja de Santa Anastácia, em Verona.
A cena parece ter sido tirada de um livro de terror ou das lendas tenebrosas que podem
ser encontradas em quase todos os povos europeus. Não obstante, não se trata de uma
fantasia histórica ou de uma invenção mórbida. Os registros de época e os relatos de
testemunhas posteriormente difundidos são provas contundentes de que se tratava de
práticas habituais na época, para demonstrar o triunfo inevitável da “justiça”.
Durante séculos, tanto no Ocidente quanto em outros lugares do mundo, a dor foi
considerada como um meio de ensino da cidadania. As execuções dos condenados pela
justiça eram verdadeiros espetáculos públicos, que reuniam a cidade em torno da agonia
humana, com um atrativo do qual era difícil desligar-se. E a lógica por trás do espetáculo era
simples: a dor tem um poder educativo inquestionável.

Visão de Pureza

Muito antes da expansão da cultura cristã, os sábios da Antigüidade tentaram encontrar


uma saída para um padecimento que na sua opinião deveria ser evitado. Entre os pensadores
gregos, a escola epicúrea propunha uma filosofia de vida voltada para a limitação e o
controle da dor mediante uma existência simples, sem ambições e com uma resistência
mínima ao destino. Ao contrário do estereótipo clássico do epicurismo sibarita, sua
concepção de uma vida feliz era menos a busca do prazer e mais a fuga do sofrimento. Na
mesma linha, os estóicos ensinavam a seus discípulos como elevar-se sobre suas paixões e

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apetites sensuais, que produziam nada além de tristeza. Platônicos e neoplatônicos, no
entanto, viam a dor como uma privação de um bem.
O judaísmo, por sua vez, entendeu a dor como um castigo divino para a desobediência,
uma constante lembrança da torpeza humana. A forma correta de enfrentá-la era aceitá-la.
Isto nos é ensinado pela história bíblica de Jó e seus sofrimentos. Mais tarde, o cristianismo
viu a dor como um tipo de mortificação expiatória, um passo chave para a santidade. O
homem santo era capaz de reprimir os desejos carnais e liberar o espírito da prisão de seu
corpo. São Sebastião e Joana D’Arc são verdadeiros símbolos desta visão purificadora do
sofrimento. Mas os cristãos tiveram o cuidado de não transformar a dor em um fetiche e
fazer do homo dolorosus um culto vaidoso. Em lugar disto, o dever da caridade prescrevia o
alívio da dor. Afinal, São Lucas havia sido médico, e os principais milagres de Jesus
procuravam aliviar a dor. No final das contas, o céu prometia felicidade, e não sofrimento; o
inferno era o lugar para a dor eterna.
Antes de serem executados os condenados eram submetidos a verdadeiras sessões de
tortura pública. A ilustração mostra o martírio de Santa Apolônia.
Enquanto os moralistas religiosos insistiam na aceitação do sofrimento como um dom da
Providência e até mesmo uma bênção, alguns pensadores criticavam as ambigüidades da
doutrina cristã. As guerras justas são santas, mas os cristãos, por sua vez, aprendem a dar a
outra face. A ortodoxia cristã sobre a dor, juntamente com a criação, ensina que os seres
vivos, grandes e pequenos, são criaturas de Deus, mas somente os homens têm alma imortal.
Assim se legitima, de certa forma, o sofrimento infligido a animais para atender a
necessidades humanas superiores. O mesmo acontece com relação aos heréticos e aos
criminosos: é justificável torturar e executar os apóstatas em nome da fé e da maior glória de
Deus.

Mal menor

Na época medieval, os homens da Igreja e os governantes professavam uma grande


insensibilidade diante da dor física. Os pecadores deviam enfrentar o castigo temporal e
eterno de um Deus encolerizado; não se podia mais contar com o chicote e as prisões para
preservar a hierarquia social. Mas foi a idade do Racionalismo que incentivou os filósofos a
conceber argumentos mais refinados. De acordo com o poeta e filósofo inglês Alexander
Pope (1688-1744), deve-se ver a dor como um mal parcial a serviço de um bem universal. De
acordo com a Teologia Natural do Arquidiácono Paley (1802), a qual durante muitos anos
serviu como manual para os estudantes de Cambridge, a dor é um mal menor destinado a
proteger a humanidade de um mal muito maior. Uma doença nos dedos dos pés era,
segundo ele, uma advertência providencial para reduzir o consumo de álcool, que
posteriormente poderia provocar uma crise de gota.
Na Grécia clássica privilegiavam-se os prazeres da vida em detrimento das atitudes que
produzem dor física. Pela primeira vez assumiu-se o alívio da dor como um objetivo
primordial entre os homens.
No século das Luzes rechaçava-se a resignação do cristianismo tradicional diante da dor
inevitável.
Segundo o pensador Soame Jenyms os cegos, os surdos e os mudos seriam fruto de um
excesso de fecundidade criadora.
Desde o século XVIII, pensamentos cada vez mais seculares deram prioridade à idéia de
evitar ou eliminar a dor. Ao contrário do que acontecia na Idade Média, que considerava as

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enfermidades e o mal-estar como endêmicos neste vale de lágrimas, os governos agora
consideravam que era seu dever trabalhar pela eliminação da pobreza, das enfermidades e
dos lamentos. Enquanto que os cristãos da Idade Média se concentravam em uma boa
morte, os modernos aspiravam à prolongação de uma vida sem dor.
No século XIX, a onipresença da dor torna-se um item de discussão entre crentes e
agnósticos. Refletindo sobre o sofrimento na luta pela sobrevivência, Charles Darwin (1809-
1882) negava-se a admitir que o sábio, de acordo com as recomendações de Alexander Pope,
“devia ir da Natureza ao seu Criador”. Os evolucionistas cristãos tinham um argumento
central: a dor era essencial para o progresso.
Aos olhos de Darwin, os dogmas do cristianismo ortodoxo não pareciam menos severos do
que as leis da natureza. Não conseguia concordar com a doutrina cristã de que os crentes
não seriam condenados ao fogo eterno. Sua contemporânea e amiga, Harriet Martineau
(1802-1876), economista e novelista, condenava implacavelmente a moral dos princípios
cristãos sobre as doenças. A insistência na beleza do sofrimento, sustentava ela em uma de
suas obras, motivava uma atração mórbida para esta sensação, eliminava a vontade de curar
e transformava a dor em fetiche. A história de Jó ensina que a atitude correta diante da dor é
aceitá-la. Assim, os acessos de dor infligidos por Satanás a Jó são aceitos por este com
resignação.
Frente ao enigma da dor, a profissão médica encontrava-se diante de um dilema. Médicos
como os quacres John Coakley Lettsom (1774-1815) e Thomas Hodgkin (1796-1866)
participaram de campanhas contra a tortura legal, o militarismo, a escravidão, o imperialismo
e outros abusos cruéis. Por outro lado, graças à fisiologia experimental, a Medicina parecia
progredir, ainda que na época vitoriana os investigadores eram atacados por militantes da
antivivissecção por martirizarem bichos.
Hoje assumiu-se definitivamente que o homem pode e deve ser aliviado da dor. As
experiências culturais, filosóficas e religiosas já não são suficientes, e muitas vezes são até
mesmo ingênuas. A ciência médica aprofundou seus estudos sobre a dor partindo do
pressuposto de que muitas dores não têm nenhuma utilidade e que os seres humanos
merecem ser aliviados do sofrimento.

A dor pré-histórica

Para muitas culturas, a dor é mais do que uma simples sensação incômoda e
desagradável. Sua existência ajuda a compreender o mundo e a maneira de enfrentá-lo. Dos
babilônios aos cristãos medievais, a dor esteve presente como um fator central da cultura.

Ossos humanos exumados de amigos cemitérios revelaram pequenas perfurações no


crânio. Estes orifícios são resultado de uma trepanação pré-histórica, cirurgia que ainda é
praticada em regiões primitivas. A trepanação implica na remoção de uma parte do crânio
(chamada de calvária) sem danificar as membranas e os tecidos localizados por baixo dela.
Crânios encontrados no Peru mostram que os incas usavam a trepanação como um
tratamento habitual para ferimentos na cabeça causados nos campos de batalha. A julgar
pela evidência dos ossos, a maioria dos pacientes sobrevivia à operação.
Para os incas as pessoas que sofriam ferimentos de guerra ou eram afetados por doenças
dolorosas eram simplesmente vítimas de espíritos malignos. Homens e mulheres
entregavam-se de boa vontade nas mãos dos médicos-sacerdotes. A trepanação do crânio
lhes provocava uma dor no mínimo equivalente à que já sentiam, mas os ajudava a se

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livrarem do motivo fundamental de seus temores: os espíritos malignos. A dor da trepanação
era, portanto, quase insignificante quando comparada à magnitude do temor aos maus
espíritos.
Os shamanes ou sacerdotes eram encarregados de realizar a trepanação. A operação era
encarada com esperança pelos afetados. (Gravura de uma faca de ouro tradicionalmente
usada para realizar a trepanação na cultura Chimú).
O objetivo da trepanação era aliviar a dor causada pelos demônios. Praticamente qualquer
aflição, da dor de cabeça à loucura, era atribuída à sua influência, que podia ser enviada por
inimigos, por meio da magia negra, ou chegar para castigar a violação de algum tabu da tribo.
Nessas culturas, as pessoas entendiam sua dor como algo sobrenatural e desejavam que os
médicos fizessem um furo em sua cabeça para que os maus espíritos fossem embora.
O peso da dor era agravado pelo fato de que estavam sendo atacados por poderes
demoníacos. Essas crenças não se restringiram somente aos tempos pré-históricos. A
trepanação ainda é praticada na África, e até mesmo alguns hospitais nos Estados Unidos,
como o Jackson Memorial de Miami, dispõem de vários médicos vudu para tratar os
pacientes haitianos que acreditam ter sido enfeitiçados.
Não obstante, os demônios eram às vezes simplesmente uma causa indireta desta dor
pré-histórica. A verdadeira fonte dos problemas podia ser encontrada na falta de espíritos
protetores. No segundo milênio antes de Cristo, desenvolveu-se nas culturas mesopotâmicas
a crença de que um deus pessoal — um tipo de anjo da guarda — podia oferecer proteção
contra os demônios. Um antigo escrito cuneiforme da Babilônia diz: “Aquele que não tem
deus, ainda que caminhe pela rua sentirá uma dor de cabeça que o envolverá como um
manto.” Neste caso, a dor passava a ser um sinal de que a pessoa precisava de deus. Uma
enxaqueca muito diferente da que os executivos de Wall Street enfrentam hoje, ainda que
seja possível encontrar algumas semelhanças.
No mundo antigo, a dor assemelhava-se a uma transação de dinheiro como as que se
realizam na Bolsa de Valores. Nesse sentido, parecia um intercâmbio monetário entre os
deuses e os homens. Nos sangrentos rituais da civilização maia, no sul do México e na
América Central, faziam-se sacrifícios humanos nos quais os sacerdotes retiravam o coração
de uma pessoa viva para aplacar a ira dos deuses.
Esses atos, brutais para nós, tinham um sentido muito claro dentro da cultura maia.
Imagine viver em um mundo onde a violência imprevisível dos deuses podia aniquilar um
povo a qualquer momento, destruindo as colheitas ou favorecendo os inimigos. A dor
ritualizada dos sacrifícios humanos servia para comprar a paz. Oferecia-se aos deuses uma
quantidade mensurável e simbólica de dor para limitar o sofrimento realmente imensurável
que a raiva dos deuses produzia.
Nas culturas mesopotâmicas, a dor era vista como falta de espíritos protetores.
Hoje, o objetivo é apagar a dor. No passado, as pessoas não somente a enfrentavam com
curiosidade, mas também a reafirmavam. Para os cristãos medievais, a dor servia de sinal e
significado do contato divino. Se negassem a dor, negariam seu valor espiritual. A dor gratuita
seria a ameaça de fazer parte de um mundo sem significado. Eles tinham boas razões para
transformar a dor de sensação particular em espetáculo público, para flagelar-se nas ruas
durante as épocas de pestes, como forma de expiar culpas e pedir misericórdia, um
espetáculo que tinha sua origem na dor humana da crucificação de Cristo.

Antropologia da dor

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A influência cultural na maneira de enfrentar a dor é vista com maior clareza nas culturas
aborígenes. Suas capacidades aparentemente superiores para suportar sofrimento físico criou
uma espécie de aura mágica à sua volta.

Em pé diante das pedras incandescentes, aquecidas a fogo durante horas, o homem se


prepara para cumprir o ritual. É época de colheita e, como todos os anos, é preciso agradecer
aos deuses pelos frutos da terra. A tribo observa, formando um círculo em redor das pedras
ardentes, um caminho sobre brasas. As calosidades nos pés são uma defesa fundamental
contra a dor.
As crianças da primeira fila nem se surpreendem mais com um ato que vêem desde que
eram bebês.
Ao ritmo da música tribal, com o peito nu, vestido com nada além que uma saia na cintura
e um colar no pescoço, o homem começa a caminhar sobre as pedras com os pés descalços.
Seu rosto não mostra dor: pelo contrário, revela até certa tranqüilidade. No meio do caminho
ele se detém, abaixa-se, recolhe com um chifre uma fruta que está sobre as pedras e segue
avançando até terminar o percurso sobre o tapete ardente estendido sobre a terra.
O homem é um membro na tribo Marinag, um grupo de aborígenes que vive nas
montanhas da Papua Nova Guiné. O ritual das pedras incandescentes é parte de sua cultura
há tantos anos que nem os mais velhos sabem com certeza quando começou. Para eles,
caminhar sobre este tapete ardente não é um suplício. Em uma sociedade que jamais usou
sapatos, os pés estão cobertos por uma grossa camada de calosidades que os protegem,
tornando-os praticamente insensíveis a qualquer dor. Um missionário europeu que fizesse o
mesmo, terminaria em um hospital, com severas queimaduras nos pés.
A tradição dos Marinag é um claro exemplo das diferenças culturais associadas com a dor.
Neste caso, o sofrimento é diminuído por fatores físicos associados com os costumes do povo
aborígene. Mas, independentemente disso, em sua cultura a dor é vista como uma forma de
agradecimento à terra.

Cama de pregos

Os hábitos, tradições e a maneira de ver o mundo têm um papel importante no valor que
o homem dá à dor. Diversos estudos antropológicos e clínicos permitiram concluir que
neurologicamente quase não há diferenças entre raças, sexo e idade quando se trata de
enfrentar a dor. A sensação de dor é essencialmente a mesma em todos os seres humanos.
As diferenças, no entanto, parecem estar principalmente nos níveis cultural e moral.
Recentemente, realizou-se nos Estados Unidos uma experiência com 40 mil pessoas, para
medir a tolerância individual à dor causada pela pressão no tendão de Aquiles. O trabalho foi
feito com grupos de pessoas de diferentes raças e origens culturais. Os resultados permitiram
aprofundar os conhecimentos sobre a antropologia da dor. Os brancos mostraram maior
nível de tolerância à pressão, seguidas pelos negros e, em último lugar, pelos orientais.
Dentro dos grupos raciais, os homens, por sua vez, mostraram tolerância maior do que as
mulheres. Os especialistas concluíram que as diferenças eram claramente marcadas por
fatores culturais.
Muitas vezes nos surpreendemos com a resistência que alguns indivíduos têm à dor. A
explicação, porém, é muito mais simples do que parece. O fato de que os homens sejam
neurologicamente iguais diante da dor, aprofundou o trabalho antropológico sobre o tema,

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levando a conclusões que permitem eliminar a aura mágica que rodeia muitos rituais. Por
exemplo, em uma cerimônia de uma aldeia macedônica, os adeptos caminham com os pés
descalços sobre brasas, com aparente indiferença. Mas as aparências enganam. Na verdade,
eles sentem o calor das brasas, ainda que não haja dor. Não correm risco de sofrer
queimaduras ao realizar o ritual. A situação seria diferente se pisassem as brasas com muita
pressa, antes que os pedaços de carvão incandescentes tenham se transformado em cinzas.
O mesmo acontece com os faquires, que costumam deitar-se sobre uma cama de pregos.
“Apesar de não ser um colchão de plumas, também não é um instrumento de suplício”,
garantem os antropólogos Robert e Scott T. Anderson. “O peso do corpo está dividido
igualmente sobre todos os cravos. Se o peso não for apoiado demais sobre uma ponta, a
experiência pode ser absolutamente indolor.”
Cerimônia dos alfinetes, antiga tradição de certas culturas. (Foto mostra um homem com
as costas cravejadas de alfinetes). Para os Tamouis da ilha Maurício, a dor é veículo de
purificação.
A dança do sol era usual entre os índios do noroeste do Canadá. Os eleitos prendiam
cordas diretamente à pele e passavam horas suportando o calor e a dor.

Ópio sagrado

Existem diversos fatores que explicam a capacidade de resistência à dor dos diferentes
grupos humanos. Um dos mais difundidos é que a dor tem poder redentor ou de certa
superação sagrada. No Ocidente, o exemplo mais claro é o do cristianismo. Por causa da
imagem do Cristo crucificado que limpa os pecados da humanidade, a tradição cristã deu à
dor um sentido sagrado. O sofrimento dos mártires chega a ser sublimado por uma igreja que
postula que a abnegação suprema consiste em buscar a dor para oferecê-la a Deus.
Joana D’Arc morreu queimada pelo fogo, mas alguns cronistas dizem que seu rosto
emanava uma profunda paz e ela parecia estar em êxtase. A explicação pode ser encontrada
justamente na sua profunda fé cristã. De acordo com alguns especialistas, elementos
biológicos também influenciam o fenômeno. O espírito de adoração e sacrifício do mártir
pode liberar uma grande quantidade de substâncias endógenas similares ao ópio, que
permitem que a pessoa alcance um estado de euforia. Os mártires, como São Sebastião, são
um símbolo da sublimação da dor que é convertida em um tipo de êxtase.
A idéia da redenção pela dor, todavia, está fortemente arraigada no Ocidente. No século
XIX, os românticos exageravam a noção de dor para que o homem superasse seus próprios
limites. Autores clássicos como Dostoievski evocam, em sua literatura, a idéia da “purificação
pelo sofrimento”. Por trás da noção cristã encontra-se uma característica presente em quase
todas as culturas: o papel desempenhado pela dor na adaptação do homem a seu meio
ambiente. Uma dor intensa, física ou emocional, pode produzir uma mudança no homem,
uma forma diferente de ver o mundo. Pela mesma razão, em muitas culturas a dor tem papel
de iniciação. Alguns rituais marcam a passagem simbólica de uma fase da vida para outra. Os
afetados sentem a dor perfeitamente, mas demonstram ser capazes de suportá-la ou até
sublimá-la. Este traço cultural influencia sua resistência em provas extremamente duras.
Os arandas, por exemplo, uma tribo aborígene da Austrália, submetem seus jovens a
provas destinadas a endurecê-los e subir na hierarquia tribal. O couro cabeludo é cortado
pelos anciãos, que mordem as feridas até que o sangue jorre abundantemente. Rituais
semelhantes são realizados também na África. Entre os nuer, crianças com mais de 10 anos

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são submetidas a provas dolorosas. Fazem, nessas crianças, três incisões profundas na testa,
cujas cicatrizes serão o símbolo de que a criança entrou na idade adulta e está em condições
de casar e ter filhos. Em outra região da África, os hausa submetem seus jovens membros a
uma prova de resistência durante a circuncisão. O adolescente senta-se, nu, com as pernas
afastadas, com o pênis sobre um recipiente que serve para recolher o sangue. Seus braços
são presos por um assistente e o sacerdote inicia a circuncisão. Durante o processo, o
menino contorce-se de dor e grita “Wayyo Allah, wayyo Allah”, que significa “Deus meu, que
dor! Deus moeu, que dor!”

Uma mulher completa

Rituais semelhantes repetem-se em quase todas as culturas aborígenes, e não estão


limitados somente aos homens. As jovens nuer da África são tão estóicas quanto seus
companheiros homens. Suportam tranqüilamente que cortem pedaços de pele nas costas
para formar figuras geométricas que demonstram que já são mulheres.
A forma de enfrentar a dor na guerra é outra amostra da influência de uma série de
fatores alheios aos meramente físicos. Para muitos soldados, uma ferida pode ser uma
bênção, pois podem deixar o campo de batalha. A dor, portanto, é bem vinda.
Diversos estudos mostraram claramente a importância do fator cultural no momento de
enfrentar a dor. Os diferentes elementos culturais que dão forma ao próprio mundo também
determinam a forma com que as pessoas enfrentam a dor. Um dos trabalhos mais claros
realizados neste sentido foi feito pelo antropólogo Mark Zborowski, entre os anos de 1951 e
1954, em um hospital de veteranos de guerra de Nova Yorque. Seu objetivo era determinar
as diferentes formas de enfrentar a dor entre os velhos norte-americanos de origem
irlandesa e aqueles que eram nativos do continente há várias gerações.
Zborowski pôde confirmar que os últimos tendem a isolar-se frente aos grandes
sofrimentos, porque suas tradições não lhes permitem chorar em público. Mas diante de
médicos e enfermeiras eles podem admitir sua dor e transformar o sofrimento em diálogo
útil. Suas concepções mecânicas do corpo e de suas funções lhes dão grande confiança na
medicina e o tema é encarado com otimismo.
O norte-americano de origem irlandesa também não se queixa em público, mas não tem o
otimismo do outro grupo. Sente-se impotente e culpado por estar doente e muito pessimista
diante do futuro.
Os trabalhos de Zborowski e os numerosos estudos antropológicos sobre o tema revelam
que a experiência da dor não pode ser desligada dos fatores culturais, familiares e morais. A
sensação de dor é essencialmente a mesma em termos biológicos e a capacidade para
resistir-lhe encontra-se fundamentalmente no plano cultural. Esta diversidade de concepções
sobre a dor pode ser apreciada com mais clareza nas diferentes visões filosóficas existentes
sobre a dor. Estas concepções também foram passadas para a arte, cujo interesse frente à
dor manifestou-se durante séculos. Nos próximos capítulos abordaremos estes temas mais
detalhadamente, além de aprofundar outros assuntos, como a cultura cristã-ocidental diante
da dor.

© EUROPA PRESS
Jornalista responsável Pedro S. Erramouspe
São Paulo

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Fascículo 2
GREGOS E ROMANOS. VISÃO DIANTE DA DOR.

Introdução

A HISTÓRIA DA DOR, Uma Experiência Antropológica na História, é uma publicação que lhe
propõe uma caminhada pela história da humanidade do ponto de vista de uma sensação que
tem ocupado um lugar claramente protagonista ao longo dos séculos: A dor.
Sua apreciação não foi a mesma ao longo do tempo. Convém por isso nos remontarmos à
Antigüidade clássica. Grécia e Roma desempenham um papel fundamental nos progressos
experimentados em seguida pela cultura. A dor não é alheia a isso. As concepções básicas
desta sensação se encontram na medicina e filosofia greco-romanas.
Hipócrates e mais tarde Celso, Areteo e Galeno viram a dor principalmente como um
instrumento de diagnóstico. Suas definições, que hoje podem parecer absurdas, foram a base
das investigações posteriores sobre o tema.
No campo da filosofia, no entanto, a dor não recebeu maior atenção. Somente os
epicúrios e os estóicos recorreram a ela como o centro de suas concepções do mundo. Para
uns, isto deveria ser evitado. Os outros, em compensação, a consideraram como o caminho
em direção à liberdade interior. E entre estes, o imperador Marco Aurélio ocupou um papel
protagonista.
A arte foi outro campo da cultura que recorreu à dor como meio de expressão. Para os
gregos, arte e dor estão estreitamente ligadas. Muitos recorreram a ela como caminho para
alcançar a beleza.
A dor encontra na filosofia, medicina e arte greco-romanas um espaço de expressão e
provoca questões, inquietudes que estão na base da posterior concepção ocidental da dor.

A Filosofia da dor

Para a filosofia da Antigüidade clássica, a dor não ocupava um papel relevante. Era
definida simplesmente como oposição ao prazer e nem sequer motivou a reflexão dos
pensadores. No entanto, a atitude de um dos imperadores mais contraditórios da história de
Roma mudou a situação.
No ano 161 depois de Cristo, Marco Aurélio assumiu como novo imperador romano. O
Império havia alcançado seu apogeu. Roma era uma cidade cosmopolita, onde floresciam as
artes e as ciências. Seus habitantes levavam uma vida agitada, intensa, e sua necessidade de
um espaço espiritual favorecia a proliferação de filosofias e religiões. Nas esquinas, nas
praças, à saída do Coliseu ou teatro, os fiéis das diversas crenças tentavam atrair adeptos. Os
cultos eram variados.
Haviam ressuscitado deuses egípcios, como Osíris, e apareceram divindades até então
desconhecidas. E também, uma pequena seita assegurava que o filho de deus havia vivido na
Palestina, há pouco mais de cem anos. No meio desse ambiente, o novo imperador também
encontrou seu espaço. Marco Aurélio é uma das figuras mais contraditórias da história de
Roma. Recebeu o Império numa época de apogeu militar, econômico e cultural. Com suas
legiões conseguiu expandir ainda mais as fronteiras do seu território em direção ao norte,

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derrotando por diversas vezes os bárbaros. Dispunha de todos os privilégios e de todos os
luxos que pode ter o homem mais poderoso do “mundo conhecido”. Seu poder ultrapassava
todos os limites imagináveis e podia fazer e desfazer a seu gosto. Mas também possuía uma
profunda inquietude intelectual.
Lia intensamente e queria estar informado das novas propostas de sábios e pensadores.
Seu interesse o levou finalmente a se identificar com uma filosofia quase desconhecida até
então: o estoicismo. Seu inspirador, um ex-escravo grego chamado Epicteto, vivia em uma
casa mobiliada somente com um colchão de junco.
Marco Aurélio viu nas explanações de Epícteto o caminho para seguir na vida. Abandonou
seus luxos, pediu para eliminar de seus palácios todas as comodidades e, sem nada mais que
um colchão e seus livros, o imperador começou a governar Roma. Pouco a pouco foi
abandonando também suas responsabilidades do poder e lhes dava cada vez menos
importância. A nível político, sua atitude causou preocupação. Culturalmente, no entanto, foi
muito importante para que a dor começasse a ser considerada com seriedade no
pensamento filosófico. Até então, essa sensação havia sido estudada somente
superficialmente pelos pensadores gregos e romanos. Não era nada mais que uma oposição
ao prazer e devia ser eliminada para alcançar o bem maior. Sócrates a identificava por
oposição, descrevendo-a como a ausência do prazer. O mesmo fizeram Platão e Aristóteles.
Os sábios e pensadores da Antigüidade faziam parte dos grupos nobres e aristocráticos.
Para eles, o mais comum era buscar o prazer. A dor somente podia estar ligada com os
pobres e marginalizados. Era uma sociedade onde a sensação da dor estava restringida a
outros grupos. Os escravos, os gladiadores ou os delinqüentes podiam experimentá-la; os
aristocratas, não. A dor era equivalente ao mal, eles procuravam o bem. Por essa razão,
filosofia estóica assumida por Marco Aurélio revolucionou as concepções sobre o tema,
embora muitos consideraram simplesmente que o imperador havia perdido o juízo.
Garantir que o homem devia afastar-se dos prazeres cotidianos e, portanto, enfrentar a
dor para alcançar uma verdadeira liberdade, podia ser compreensível no caso de um escravo,
mas acabava sendo inconcebível para um imperador.
Em sua busca de uma visão de mundo que o ajudasse a compreender sua própria vida,
Marco Aurélio começou a observar a realidade de seu ambiente. A dor estava presente em
praticamente todos os âmbitos: o circo, a guerra e a violência das ruas, algo habitual na
Roma dessa época. Da mesma forma que Epicteto, o imperador observou uma estreita
relação entre a mente e a dor, até o ponto de que o homem podia controlá-la pela força de
sua vontade. O domínio da dor, das paixões, do temor e dos desejos permitiria ao homem
alcançar uma liberdade absoluta no mundo e encontrar sua verdade profunda. Mas a dor não
era controlada com apoio externo, mas sim somente com a força de vontade do sábio
estóico. Sentir dor era equivalente a perder a graça e a liberdade. O estoicismo conduzia à
liberdade das necessidades do corpo que escravizavam o homem. A mente tinha que
controlar o corpo e não vice-versa.
O estoicismo de Marco Aurélio se opunha, e conseguiu ser imposto a outro grupo de
pensadores que também tinham a dor no centro de suas concepções: os epicúrios.
De acordo com eles, o homem deveria evitar a dor com todos os seus meios Era absurdo
tentar controlá-la; a dor simplesmente destruía a natureza e somente o prazer permitia
conservá-la. A doutrina epicurista estava longe de ser a simples busca desenfreada dos
prazeres carnais e sensoriais, uma caricatura que foi se produzindo depois, ao longo dos
séculos. Sua concepção, em compensação, consistia em uma sábia aritmética dos prazeres.
Os prazeres buscados não devem ser seguidos por dores mais intensas; portanto, deve-se

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medir cuidadosamente cada um dos atos que são realizados. A finalidade dos epicúrios era
“repudiar alguns prazeres para atender a outros maiores e suportar com paciência algumas
dores para descansar de outras mais intensas”. Sua filosofia obrigava a levar uma vida
austera. Eram homens precavidos que, mais que buscar prazeres, na prática tentavam
somente evitar as dores. A liberdade de sábio estava em viver sem problemas.
“O maior bem é viver no prazer e não há maior mal que viver na dor”, asseguravam.
Porém sua doutrina não se arraigou entre as pessoas, especialmente pelas implicâncias
políticas de sua filosofia: o sábio ficava fora dos assuntos da cidade. O epicúrio era um
homem que não se arriscava, algo mal visto na Antigüidade clássica. Era mais considerado um
homem que conseguia controlar a dor do que o que não a evitava, uma visão estreitamente
ligada com a valentia.
Depois de Marco Aurélio, a dor começou a adquirir uma importância do que a que havia
carecido até então. As concepções estóicas se assemelhavam muito às do cristianismo, uma
nova religião que foi adquirindo cada vez mais importância e na qual a dor ocupava um papel
fundamental pelo sofrimento de Cristo. O papel protagonista da dor alcançaria sua máxima
expressão na Idade Média.

A Dor e Arte

A arte e a dor estavam estreitamente ligadas na cultura grega e sua representação fez
surgir algumas das maiores obras do helenismo.

Para explicar o nascimento da arte, os gregos recorriam ao mito. Niobé, a rainha de Tebas,
parecia estar chorando. A causa de sua tristeza eram seus filhos, mortos pela ira dos deuses.
Uma ira causada pela soberba de Niobé que, ao conceber sete filhos e sete filhas, desafiou o
poder criador dos deuses e pronunciou palavras que foram consideradas como injúrias.
Sentiu-se tão poderosa como os pais do Olimpo, mas a vingança dos deuses foi terrível. Apolo
matou seus filhos e Artemisa suas filhas. Durante nove dias e nove noites, Niobé chorou
sobre suas tumbas. Depois fugiu ao monte gelado de Sífile. Ali, Zeus consumou sem piedade
sua vingança, transformando Niobé numa estátua de pedra. A partir desse dia, as águas do
céu fluem pelo seu rosto como um pranto inconsolável de dor.
Arte e dor caminham estreitamente unidas na cultura grega. A explicação para alguns está
em que a arte é o espaço em que se unem o divino com o humano. Por um lado, o poder
criador, relacionado com os deuses; por outro, a debilidade humana, cujo símbolo mais claro
é o enfrentamento diante da dor.
Portanto, uma das primeiras estátuas e uma das primeiras efígies humanas na cultura
ocidental corresponde a uma obra que conjuga a tristeza humana com o poder criador de um
deus. Mas muito além da lenda do nascimento da arte, as criações artísticas na cultura greco-
romana começaram a representar a dor como algo que enobrece e ao mesmo tempo destrói.
Um dos casos mais representativos desta relação é a última escultura grega conhecida, o
Laocoonte.
Criada por três escultores gregos na Ilha de Rodes, no século primeiro antes de Cristo, se
encontra atualmente no Museu do Vaticano. A obra reproduz uma cena descrita de maneira
ampla por Virgílio na Eneida, até o ponto de que a lenda acaba ficando inseparável da
escultura e contorna sua forma visual.

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Virgilio relata, quase na mesma época que a estátua, a dramática cena em que Laocoonte,
um sacerdote e servo de Apolo dá aos troianos o único conselho sábio que receberam
durante o debate de aceitar ou não, dentro das muralhas de Tróia, o prodigioso cavalo de
madeira deixado pelos gregos, depois de sua aparente retirada. “Temo os presentes dos
gregos”, advertiu Laocoonte, mas ninguém o escutou. Aborrecido, atirou com violência uma
lança em direção ao cavalo de madeira e sem dúvida teria descoberto os soldados gregos
escondidos em seu interior, se a repentina entrada de um prisioneiro grego não tivesse
distraído os troianos. Com ingenuidade, aceitaram a mentira do prisioneiro, que assegurava
que o cavalo de madeira era uma oferenda deixada pelos gregos para aplacar a ira dos
deuses.
Entretanto, Laocoonte viajou até a costa para preparar um sacrifício a Netuno, quando
duas serpentes com forma de dragão envolveram seu corpo. Sua expressão de dor e terror
impressionou os troianos, ao ver a serpente agitando-se ao redor de Laocoonte. As fontes
diferem quanto ao castigo sofrido por Laocoonte ao romper um voto de castidade ou, como
sugere Virgílio, por sua desconhecida oposição ao desígnio de Zeus (ao advertir os troianos
que repudiaram o cavalo). Interpretando o destino de Laocoonte como um castigo por seus
maus conselhos e seu sacrilégio, os troianos quase que imediatamente levaram o cavalo para
o interior das muralhas de Tróia. Á noite, os soldados gregos saíram e o banho de sangue
começou.
Os escultores de Rodes representaram a destruição de Laocoonte não somente como um
simples espasmo de terror ou dor, mas também como uma ocasião de heróico sofrimento.
Sua força hercúlea e sua estatura se traduzem nas proporções colossais, em contraste com
seus dois pequenos filhos. Seus rostos calmos também oferecem um intenso contraste com o
de Laocoonte, cujas características agônicas tornam inconfundível seu conhecimento da dor.
Um dos filhos, com seus olhos fechados pela morte, já passou por esse conhecimento; o
outro ainda não se iniciou nele completamente. Virgílio descreve a cabeça e o pescoço das
duas serpentes elevadas sobre Laocoonte, mas os escultores, em compensação, dão ao
protagonista uma posição visivelmente superior e heróica. Sua morte é dolorosa, mas
também, como nas tragédias gregas, é uma dor que mostra o homem elevado e não
esmagado pela derrota.
Plínio, o Velho, descreveu Laocoonte como o maior de todos os trabalhos esculturais e
pictóricos. Porém, pode uma cena tão terrível ser exemplo de beleza? A pergunta revela os
efeitos da maciça mudança cultural que nos separa dos antigos gregos. A beleza na arte
grega é um assunto de proporções, simplicidade e formas ideais. Mais importante, a beleza
alcança seu poder atraindo não somente os sentidos, mas também o espírito e a alma. “Os
homens procuram estar perto da beleza”, destacava o estudioso clássico Paul Friedländer, ao
descrever a visão de Sócrates, “porque as asas da alma crescem diante da visão da beleza”.
Johann Winckelmann, que desenterrou os vestígios de Tróia, entendeu esse poder na estátua
de Laocoonte. “A dor do corpo e a grandeza da alma”, escreveu, estão distribuídas e
balanceadas através de toda a figura com igual força. Laocoonte sofre, sua miséria toca
nossas almas, mas desejaríamos ser capazes de suportar a dor como esse grande homem”.
Essa visão heróica e sublime da dor é muito diferente à que existia anteriormente. Nas
tragédias do teatro grego, por exemplo, a dor aparece como um castigo e um caminho para
obter o perdão dos deuses, uma idéia não tão distante da que o cristianismo assumiria
séculos mais tarde. Édipo castiga a si mesmo arrancando os próprios olhos. Embora talvez a
obra mais clássica relativa à dor é o Filóctenes, uma peça pouco conhecida de Sófocles, onde
a dor é enfrentada em toda a dimensão humana e cotidiana. Filóctenes chega a ser

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inseparável de sua dor. Vida e dor acabam sendo uma só coisa. A obra de Sófocles é estranha
e nunca atraiu muito a atenção de atores e diretores; no entanto, revela uma concepção da
dor pouco destacada na Grécia clássica: a dor inseparável da vida.

A Dor na Medicina Greco-romana

A única preocupação real diante da dor, na Antigüidade clássica, proveio da medicina.


Hipócrates, Celso, Areteo e Galeno tentaram explicar a dor sob o ponto de vista médico e
ajudaram a aliviá-la.
Na Grécia clássica foram dados os primeiros passos para encontrar uma explicação
racional à sensação de dor. Deixando de lado as idéias sobre espíritos malignos ou castigo
dos deuses, os estudiosos que começaram a se preocupar com o tema encontraram algumas
explicações para uma sensação estreitamente ligada com o conceito do mal.
No século V antes de Cristo, um discípulo de Pitágoras chamado Alcmaeón defendeu que
o centro de todas as sensações se encontrava no cérebro. Apesar de sua surpreendente
descoberta em uma época em que o conhecimento do cérebro era quase nulo, não foi dada
a importância que merecia o seu achado. Alguns anos depois, outro sábio grego tentou
explicar a dor utilizando suas teorias físicas e atômicas: a invasão de partículas atômicas em
agitação que alteravam os átomos da alma, gerava o sofrimento.
Porém somente com Hipócrates as teorias sobre a dor puderam ser organizadas e
conseguiu-se um acordo sobre as causas do problema, sua importância e as formas de aliviá--
lo. A dor era causada claramente por um desequilíbrio do corpo, uma alteração causada
pelos humores do organismo. Sua importância era a chave para entender a enfermidade que
afetava a vítima do sofrimento. Para Hipócrates, diagnóstico e dor estavam estreitamente
ligados e assim deixa estabelecido em seu Corpus Hipocraticus. Expressando sua sensação de
dor, o paciente ajudava o médico a determinar a enfermidade.
Para aliviar a dor, recomendava uma série de medicamentos naturais, como o ópio, a
mandrágora e a cicuta, além de técnicas de resfriamento e fisioterapia. Na cirurgia
conseguia-se evitar a dor com o primitivo sistema de anestesia, que consistia em comprimir
as carótidas.
Os primeiros médicos gregos, herdeiros do conhecimento hipocrático, começaram a viajar
para Roma até fins do século III antes de Cristo. Muitos foram atraídos à capital do Império
por um espírito de aventura e de riqueza, já que nessa época a arte da cura era bem
remunerada em Roma. No entanto, a escassa preparação destes primeiros médicos
hipocráticos fez com que logo começassem a ser deixados de lado. Os romanos continuaram
privilegiando as tradições misteriosas e as superstições, que viam como o único caminho
efetivo para curar as enfermidades e aliviar a dor. Foi Asclepíades de Prusa, conhecedor da
retórica, da filosofia e da medicina gregas, quem conseguiu implantar em Roma a verdadeira
medicina hipocrática, o que finalmente promoveria o trabalho de importantes figuras da
medicina romana.

Cornélio Celso, uma visão renovada.

Durante o governo do imperador Tibério, em Roma, no século 1 depois de Cristo, surgiu


uma nova visão da medicina e da dor. Seu autor foi Cornélio Celso, o primeiro dos grandes
médicos romanos. Celso atualizou a visão hipocrática, considerando a dor como um
elemento chave no prognóstico e diagnóstico das enfermidades Não é garantido que Celso

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tenha sido médico. Seus oito livros sobre medicina podem ter feito parte de um conjunto
mais vasto, uma espécie de enciclopédia que tratava também de agricultura, arte militar e
retórica. O conjunto De re medicina, um dos documentos mais preciosos sobre a ciência
médica, não propõe uma explicação da dor. O primeiro livro é bastante geral e evoca o
nascimento da medicina, suas divisões e as seitas médicas que disputavam como
protagonizar; o segundo é uma exposição das patologias e da terapêutica geral; o terceiro e o
quarto estão consagrados às diferentes espécies de enfermidades e de tratamentos; o
quinto, aos medicamentos; o sexto, às enfermidades próprias de cada parte do corpo; e os
dois últimos, à cirurgia e às enfermidades chamadas cirúrgicas, como fraturas, luxações, etc.
Celso adota uma posição neutra e eclética, que se reflete também em suas proposições
sobre a dor, com relação às três seitas médicas predominantes nessa época, a dos
dogmáticos, dos empiristas e dos metodistas. A medicina racional, defendida pelos
dogmáticos, quer conhecer “as causas ocultas relacionadas com as enfermidades, além das
causas aparentes, as ações naturais e, por último, a composição dos órgãos internos”. Um
programa ambicioso de uma medicina que quer ir até os princípios do funcionamento
biológico e que afirma que não há tratamentos possíveis sem o conhecimento das causas da
enfermidade.
Os empiristas consideram que é melhor renunciar ao conhecimento das causas ocultas e
limitar-se à experiência, enquanto que os metodistas se baseiam na identificação do que é
comum a várias enfermidades e sobre as indicações de tratamentos que os fenômenos
mostram. Celso foi muito crítico diante do enfoque dos metodistas, que não conheciam as
singularidades das enfermidades e os tratamentos que lhes convinham. Na medicina de
Celso, como geralmente em toda a medicina antiga, a dor não tem outro significado senão o
de anunciar uma ou outra enfermidade e somente necessita que se tomem as medidas para
aliviá-la. As dores têm suas “cores” como as estações, e correspondem também às idades da
vida, ao temperamento, ao sexo. O inverno, por exemplo, provoca dores de cabeça, tosse,
incômodos à garganta e todas as enfermidades das vísceras, mas as estações mais temidas
são o verão e o outono. A dor constante, com ou sem inflamação, é um sinal incômodo, tanto
como a desaparição brusca é um sinal favorável. Mas a dor não somente está encarregada de
anunciar a evolução geral da enfermidade: indica, mais precisamente, suas etapas ulteriores.
Cada dor, seguindo seu lugar e o momento em que intervém, pode ser imediatamente
decifrada, segundo as regras de uma semiologia que continua sendo claramente hipocrática.
Como no Corpus hipocraticus, o prognóstico participa do diagnóstico e o andamento da
enfermidade permite conhecê-la e identificá-la.
Apesar das aparências, não poderíamos falar aqui da dor como um sinal de alarme ou
sentinela. A dor não é vista como um estado que anuncia uma condição futura: ela mesma já
é “uma doença”. Precisa de qualquer valor positivo, numa concepção de saúde que exclui
absolutamente o mal-estar: o sofrimento é claramente antagônico. Plínio e Dioscórides, por
sua parte, elaboraram um inventário minucioso de todos os medicamentos, dentro dos três
ramos, animal, vegetal e mineral, suscetíveis de aliviar a dor e cada uma de suas
manifestações. As posturas de Celso predominaram em Roma por vários séculos e somente
durante o segundo século depois de Cristo começou a ser apreciada uma mudança nessa
visão.

Areteo de Capadócia, olhar clínico.

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O caráter enciclopédico que possui o De re medicina de Celso tem sua equivalência na
enciclopédica obra de Areteo de Capadócia, um estudioso que viveu provavelmente durante
o século II depois de Cristo. Sob a forma em que chegou até nossos dias, seu Tratado dos
sintomas, das causas e da cura das enfermidades agudas e crônicas poderia ser um manual
destinado ao ensino. Está dividido em duas seções: causas e sintomas de um lado;
tratamento do outro; e em cada grupo, a distinção entre enfermidade aguda e enfermidade
crônica. O essencial está na definição da enfermidade a partir de seu sintoma e de sua
história, com uma precisão inigualável. Mas o rigor da descrição clínica não exclui a busca das
causas. Areteo não explica a dor por uma causa humoral, mas sim por um processo de
desequilíbrio interno inerente aos sólidos. Além de suas qualidades clínicas - que causaram a
admiração dos anatomistas do século XIX -, Areteo teve também o mérito de propor uma
explicação flexível de dor e enfermidade.
Apesar de seus extraordinários avanços, é muito pouco o que se sabe de Areteo. Não
existe nenhuma referência sua em Galeno, que supostamente recopilou todos os
conhecimentos médicos da Antigüidade, e sua figura é muito pouco conhecida. Nada se sabe
de sua educação, embora se acredite que estudou na Alexandria e passou um período
importante de sua vida em Egito. Supostamente nativo da Capadócia, no Oriente Médio,
viajou a Roma, conforme pôde ser demonstrado, durante o século segundo. Herdeiro da
tradição Pneumática põe ênfase no pneuma ou espírito, considerado a fonte da vida. De
acordo com ele, as enfermidades e as dores como sintomas destas enfermidades são devidos
a mudanças no pneuma.
Areteo acreditava que o corpo era feito de humores, espírito e elementos sólidos, e a
saúde e a vida dependiam da adequada interrelação entre esses elementos. Sua visão da dor
estava estreitamente ligada a estes constituintes, embora deixasse aberta a porta a outras
possibilidades.

Galeno, soma de Conhecimentos.

Nos anos do reinado de Marco Aurélio houve outra figura notável que está relacionada
com o tema da dor: Galeno. Nascido em Pérgamo viveu no século segundo de nossa era e
chegou a ser o principal médico da era romana. Foi nomeado médico oficial do imperador;
teve uma estreita relação com as concepções estóicas de Marco Aurélio e aprofundou seus
estudos sobre a dor. Em Galeno se juntam tendências que em outras partes estavam
separadas ou em conflito: a aliança entre a medicina e a filosofia, a anatomia e a fisiologia, a
paixão pela lógica e pelo debate, e uma prática médica muito diversificada. Pela coerência de
seu sistema, a força de seu espírito e seus êxitos profissionais tanto em sua cidade natal de
Pérgamo como em Roma, onde permaneceu grande parte de sua vida, ocupa um lugar muito
particular na medicina antiga. Sua obra colossal, em torno de quinhentos títulos publicados,
dos quais ficam pouco mais de cem, foi comentada e traduzida durante vários séculos e
representa a soma médica da Antigüidade: uma obra de referência conservada através do
tempo.
Galeno deu um lugar importante à dor, não somente como sintoma, como também pela
análise que fez do mecanismo da sensação e da percepção. De Eristrato retomou a distinção
entre nervos motores e sensitivos, mas apoiada na consistência dos nervos, duros e macios:
“Cada um dos sentidos requer um nervo macio”, escreve, “porque o sentido deve ser
disposto e afetado de uma certa maneira pelo objeto exterior, para que a sensação tenha
lugar. E o macio é mais propício a sofrer uma impressão e o duro a atuar. E por isto que os

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nervos macios são necessários para os sentidos e os nervos duros para todas as outras
áreas”.
Vários capítulos de sua obra Dos lugares afetados estão dedicados ao valor do diagnóstico
da dor. Junto aos outros sintomas, a dor indica o órgão ou a zona do órgão doente. Cada
parte tem uma função que lhe é própria e a lesão desta função constitui o sintoma próprio
do órgão; mais que uma enfermidade precisa, indica um órgão bem definido. Galeno
introduz a classificação das diferentes formas de dor, que continuam sendo utilizadas
praticamente até nossos dias: pulsante, gravitante, tensionante e palpitante.
Como muitas vezes em sua obra, o enunciado de suas definições toma a forma de uma
discussão fechada com um de seus adversários, Arquígeno, que também havia escrito um
tratado sobre os “lugares afetados” e queria fazer da dor o sintoma próprio da afecção dos
nervos. Para Galeno, a sensação de adormecimento não constitui um espaço particular da
dor, porque é possível encontrá-la em qualquer parte do corpo e também, em certa medida,
o adormecimento se opõe à dor. Seu comentário sobre o aforismo de Hipócrates, de que
“um adormecimento moderado destrói a dor”, sugere claramente seu interesse pela prática
de um estado de insensibilidade à dor, produzido pelo frio do ar ou pela aplicação local de
medicamentos refrescantes. Faz uma representação da saúde e da enfermidade através de
um sistema de qualidades quentes e frias, úmidas e secas, correspondentes a cada um dos
quatro humores, mencionando o ópio entre as “substâncias frias”.
Qual é, então, a sensação de dor que pertence propriamente aos nervos?... Para Galeno é
a tensão. Representa os nervos como as cordas de uma harpa, que se rompem quando estão
muito tensas, uma sensação que vai desde o ponto de origem até a extremidade dos nervos.
Na medicina herdada de Galeno, a dor pulsante se transforma na marca própria de todas
as afecções inflamatórias. A dor gravitante é a que está acompanhada de uma sensação de
peso, que pode se sentir em órgãos como os rins, o fígado e os pulmões. O exame rigoroso
das diferentes formas de dor está na convicção de que existe uma relação entre cada uma
delas e cada parte afetada, de acordo com sua natureza própria. Corretamente analisado, o
sintoma permite detectar a realidade da enfermidade.
Várias razões explicam o êxito desta classificação. Em primeiro lugar; se apóia numa sólida
base lógica: as categorias aristotélicas. Além disso, pretende chegar por seus meios ao
conhecimento da enfermidade, dando ao médico uma certeza e uma racionalidade em seu
conhecimento. Por último, levando em conta as condições para a aquisição do saber na
Antigüidade e até fins do século XVIII, isto é, até o desenvolvimento da anatomia clínica, não
havia muitos outros meios de diagnóstico tão efetivos e práticos como o desenvolvido por
Galeno. Por outro lado, o conhecimento preciso, minucioso e descritivo do significado das
diferentes formas de dor foi finalmente relegado a um lugar secundário. As explanações de
Galeno tiveram validade perto de 1.500 anos e foram importantes durante toda a Idade
Média. Nesse período, a medicina galênica e as concepções cristãs da dor tiveram um papel
fundamental. Nos próximos capítulos serão analisados estes pontos e a importância que a
sublimação da dor adquire em figuras quase legendárias, como Joana d’Arc.

FASCÍCULO 3
A DOR NA IDADE MÉDIA

Introdução

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A HISTÓRIA DA DOR, Uma Experiência Antropológica na História, é uma publicação que lhe
propõe uma caminhada pela história da humanidade do ponto de vista de uma sensação que
tem ocupado um lugar claramente protagonista ao longo dos séculos: A dor.
A Idade Média será o contexto dentro do qual será abordado o tema nos próximos
capítulos. Época violenta, em que predominaram valores masculinos como a agressividade
ou a virilidade, seus habitantes enfrentaram a dor numa primeira etapa guiados pela visão
greco-romana, para depois sofrer uma marcada influência do cristianismo. A moral cristã
considerava o sofrimento como uma prova, um castigo divino e um mecanismo de redenção.
Os homens enfrentavam a dor como se fosse um instrumento de Deus para lembrar sua
presença. Mas a dor não era igual para todos. Mulheres, crianças e servos eram o destino
original da dor. Guiados pelos ensinamentos do Gênesis, os homens pensavam que Deus
havia estabelecido assim ao condenar Eva a parir com dor e a Adão a ganhar o pão com o
suor de seu rosto. Os homens nobres, em compensação, não trabalhavam e não estavam
expostos a esse mandato de Deus.
No campo da medicina, as explanações de Galeno dirigiram todos os trabalhos médicos da
Idade Média. Os conhecimentos reunidos pelo sábio romano foram a base dos trabalhos dos
médicos medievais. Exceto o aporte da medicina árabe, com Avicena, foram anos em que
não se realizaram muitos progressos no campo da saúde e no combate à dor. As ervas se
transformaram no instrumento principal e foi possível apreciar um importante progresso na
farmacopéia.
O protagonista da Idade Média foi sem dúvida o cristianismo. Sua visão de mundo e sua
concepção da vida guiaram os homens medievais e marcaram a forma em que enfrentaram a
dor. Fenômenos como a lepra ou a peste são exemplos claros desta cosmovisão medieval. A
dor como castigo divino e como instrumento para demonstrar a inferioridade do homem
frente à divindade impregnou a sociedade medieval.

A Dor na Idade Média


O conceito da dor na Idade Média esteve marcado por dois fatores essenciais: a
exacerbação da virilidade e a influência do cristianismo. Dois elementos que motivaram um
verdadeiro menosprezo da dor física.

Nos mais de mil anos transcorridos, entre a queda do Império Romano do Ocidente (330)
e a conquista turca de Constantinopla (1453), o mundo ocidental se afundou em um
obscurantismo que levou os historiadores a batizar o período simplesmente como Idade
Média, a etapa que transcorre entre a Antigüidade clássica e o Renascimento. Mas ao longo
desse milênio, a cultura não foi homogênea. A visão do mundo evoluiu e o cristianismo foi
adquirindo cada vez mais importância. Desde o domínio germânico da Europa pelos visigodos
e ostrogodos até a queda do Sacro Império Romano Germânico, os homens viveram em um
mundo cheio de contradições, onde a dor nunca lhes foi alheia.
Vista no começo como uma sensação exclusiva das classes inferiores, sua concepção foi
evoluindo lentamente, à medida que o cristianismo se consolidava no Ocidente. A herança da
Antigüidade clássica se manteve nos primeiros anos da Idade Média. Os homens guerreiros e
nobres não podiam sentir dor. Era um sentimento que os rebaixava e degradava, ao mesmo
nível das classes operárias.
Praticamente, não existem textos que aprofundam essa estranha concepção classista da
dor. Isto se deve em parte à pouca importância que era dada a essa sensação. Sem dúvida,

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esses homens, nas intensas lutas entre eles e contra os árabes, devem ter experimentado a
dor. Impossível pensar que foram seres superiores, capazes de eliminar toda sensação de
sofrimento. Porém não se torna um absurdo supor que, pelo fator cultural que influi na
sensação, sua atitude ética diante da dor fosse tão poderosa que conseguiram sobrepor-se às
profundas feridas que sofriam quando lutavam. Muitos desses cavaleiros medievais do final
do primeiro milênio morriam por infecções; outros sofriam amputação de seus membros e
um terceiro grupo deixava de existir no campo de batalha ocultando suas expressões de dor
em meio a gritos guturais de guerra.
A herança estóica de Marco Aurélio, unida ao cristianismo, também teve um papel
importante. O mistério que encerrava a dor lentamente começou a ser enfrentado. No
começo foi considerada somente como uma derivação do castigo divino do Paraíso. Quando
Adão e Eva são expulsos, Deus castiga a mulher a dar à luz com dor e ao homem a ganhar o
pão com o suor de seu rosto. Os cavaleiros medievais associavam estreitamente o castigo
bíblico com a mulher e o trabalho. Somente as mulheres e os servos ou camponeses podiam
sofrer dor. Os homens nobres, em compensação, não necessitavam ganhar o pão com o suor
de seu rosto, estavam fora do castigo divino e, portanto, não eram condenados a sofrer. Dor
e trabalho são dois conceitos estreitamente relacionados, cultural e materialmente, na
mentalidade da época.
Embora sofresse dor, como todo ser humano, um verdadeiro cavaleiro não podia
expressar isto. Existem poucos registros sobre a forma com a qual procuravam controlar a
dor, um sinal da pouca importância que lhe davam entre suas preocupações normais.

O Poder de Deus

Pouco a pouco, a dor foi adquirindo outras características. Sem possibilidades de escapar
do seu domínio e sob a influência do cristianismo, começaram a considerá-la um castigo
divino ou uma prova. A rápida penetração da ética cristã mostrou como Jó enfrentou a dor
para ser provado e o benefício que o patriarca obteve das provas. A dor ajudava não somente
a expiar os pecados, como também a crescer como pessoa. Por sua vez, Santo Agostinho
destacava que “ninguém sofre inutilmente” e toda dor tem um sentido para alcançar a vida
eterna. Através dos afrescos e mosaicos das igrejas, os cristãos foram difundindo sua visão de
mundo. A figura de Jesus crucificado desempenhou um papel muito importante. Emular a
ação de Cristo ajudava a limpar os pecados. Nos monastérios se difundiu a prática da
flagelação, um costume que duraria por séculos. A dor era oferecida a Deus, quase como
uma forma de retribuição pela dor padecida por seu Filho na cruz. O exemplo de figuras
como São Pedro e, em especial, São Sebastião, despertou admiração por sua heróica e
sofrida morte.
Cristianismo e cavalaria conduziram a concepção medieval da dor. Os valores masculinos
de virilidade e heroísmo foram exaltados.
Homens fortes, incapazes de serem submetidos pela dor: essa é a figura ideal que domina
na primeira metade da Idade Média. Depois, a idéia muda. Fica mais importante a visão de
dor como castigo divino, uma maneira de pensar que reforça ainda mais a idéia de que não
se deve expressar o sofrimento. Uma pessoa dolorida é uma pessoa castigada por Deus. Por
último, a dor é vista como um mecanismo de autocastigo e redenção, que busca obter o
perdão divino. Aí está a raiz das ordens flagelantes e de todas as torturas nascidas nos
monastérios e autoinfligidas pelos monges quando se sentiam pecadores.

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A visão sectária da dor influiu profundamente na cultura medieval. Os historiadores
lembram que durante grande parte da Idade Média, somente as mulheres, as crianças, os
servos e os camponeses podiam ser castigados com penas físicas que lhes produzissem dor.
Os nobres e cavaleiros, em compensação, eram condenados a castigos monetários. A ética
feudal impedia degradar “gratuitamente” um cavaleiro. Como não era digno deles que
experimentassem a dor, não havia razão para ser aplicada. Existia uma melhor — alternativa
de castigo: tirar-lhes parte de seu dinheiro.
Dor e castigo, enfermidade e pecado, estavam estreitamente ligados na Idade Média. A
lepra, um mal associado com a condenação divina, é um caso típico. Mais que um doente, o
leproso era considerado um pecador, castigado pela ira de Deus. Sua cura dependia somente
da misericórdia divina, e somente a fé podia purificá-lo.
A violência caracterizava uma sociedade na qual predominavam os valores masculinos, a
virilidade e também a agressividade. O resultado produziu claras expressões de dor, como as
torturas para aplicar justiça ou as violentas competições da cavalaria. Mas o exemplo mais
claro da dor na Idade Média, visto como castigo e redenção, é apreciado no caso da peste.
Essa enfermidade atacou a Europa no século VII, para depois desaparecer e regressar no ano
1348. A sociedade medieval não teve dúvidas de que a praga era um castigo divino. Zangado
com os homens, Deus enviou à Terra uma enfermidade sem cura e que provocava a morte
fulminante dos seres humanos, em poucas horas, no meio de espasmos de dor.
A violência da grande Peste - que atacou as principais cidades medievais como Paris, Milão
ou Rama - motivou o surgimento de terríveis expressões de dor redentora. Guiados pelo
exemplo dos santos mártires, em especial São Sebastião, os cristãos medievais se infligiam
com dor para liberar-se do castigo divino. Os movimentos de flagelantes se tornaram comuns
na Itália, na segunda metade do século XIII. A influência da espiritualidade franciscana
motivou muitos fiéis da cidade de Perugia (próxima a Assis) a compartilharem do sofrimento
de Cristo. Muitas outras regiões da Itália seguiram seu exemplo e rapidamente começaram a
aparecer comunidades de caráter penitencial, que percorriam as ruas de suas cidades
flagelando-se uns aos outros. No meio das estreitas ruelas das cidades medievais, os
flagelantes, com as costas descobertas e muitas vezes mascarados, se golpeavam com
chicotes até que a pele se tingia de sangue. Os gritos de dor se escondiam por trás das
expressões de fé e orações de perdão.
A peste de 1348 deu a este tipo de penitência uma amplitude surpreendente. No começo,
limitados às ordens monásticas, rapidamente leigos de países tão distantes como Hungria,
Áustria ou França começaram a flagelar-se. Em toda a Europa do Norte a situação foi similar.
No entanto, muitas procissões terminavam em desordem, quando os penitentes, levados
pelo fanatismo, agrediam os judeus do lugar, os quais eram considerados responsáveis pela
morte de Cristo.
Em outubro de 1349, o Papa Clemente VI condenou os flagelantes e ordenou aos fiéis que
não realizassem esse tipo de manifestações em público (embora pudessem fazê-las de modo
privado). As normas papais, no entanto, não foram plenamente efetivas. Muitos fiéis,
ignorantes da recomendação, continuaram executando ritos similares. Alguns se flagelavam,
outros percorriam os caminhos da Europa carregando uma cruz, até terminar arrastando-se
pelas poeirentas veredas medievais. A violência do autocastigo chegou a extremos
assombrosos, enquanto que os penitentes ocultavam sua dor por trás de canções de oração.
A Idade Média foi uma época violenta, onde a indiferença diante do sofrimento estava,
paradoxalmente, ligada com a abundância de dor que imperou nesses anos. A violência
chegou a ser instrumento de ordem social. Cavaleiros feudais e os homens da Igreja

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utilizaram a dor como mecanismo de subjugação. O cristianismo se consolidou na Europa e
os nobres assentaram as bases de uma soberania que se estenderia por séculos. A violência e
a dor estavam presentes em todos os âmbitos da sociedade medieval. A dureza das práticas
médicas chegava a extremos assombrosos, como o mostrado na amputação de uma perna de
Johann Wechtlin.

Galenismo na Idade Média

Durante 1.500 anos, o galenismo tornou-se a visão básica da medicina que predominou no
Ocidente. Os médicos da Idade Média viram a dor sob o ponto de vista do conhecimento
galênico, entregando contribuições especialmente no campo da farmacopéia.
A medicina medieval se desenvolveu no meio de uma sociedade marcada pelo fanatismo
religioso e pela ignorância. A violência das batalhas e das enfermidades e infecções que
atacaram a Europa foram o cenário onde os médicos medievais tiveram que executar seu
trabalho. Muitos eram vistos como magos e alquimistas que percorriam os bosques em busca
de plantas que ajudassem a curar seus doentes e preparando estranhas poções, que não
eram nada mais que primitivos medicamentos extraídos da natureza. Porém, muito além das
características que podem ser associadas aos médicos medievais, a grande maioria eram
homens da ciência, preocupados com a saúde e também com diminuir a dor. Em geral,
muitos não escapavam da cosmovisão da época e davam como certo que algumas
enfermidades eram incuráveis e exclusivas do poder divino, embora sempre tivessem
presente o anseio de controlar o sofrimento.
O conhecimento básico que guiou os médicos medievais foi o legado de Galeno e, através
dele, os achados de Hipócrates. O sábio romano foi considerado, também em vida, um
mestre do pensamento médico e filosófico. Os médicos medievais estavam diante de uma
obra tão extensa e diversa, que acabava sendo indispensável sintetizá-la.
O problema estava em que a concepção médica de Galeno estabelecia uma reação entre
todas as partes da medicina, o que dificultava a extração de fragmentos para utilizá-los
posteriormente. Estas características próprias de sua abra conduziram a uma prática que
pode parecer contraditória. Não era possível abordar um ponto qualquer da medicina sem
buscar o que Galeno havia dito sabre outros temas. Por essa razão, o gosto tardio da
Antigüidade pelas vastas compilações e pelas enciclopédias, se estendeu à Idade Média e
apareceram numerosas obras que abundavam em citações e comentários. As concepções
modernas da ciência têm uma visão falsa do valor da imitação ou do uso do que outros
tinham escrito sabre o mesmo tema. Copiar o que escreveu Galena não era, para um letrado
da Idade Média, abandonar todo tipo de ponto de vista pessoal. É um fato que diversos
aspectos da obra de Galeno foram abandonados. Deixaram de praticar dissecações e
lentamente os conhecimentos galênicos de anatomia começaram a ficar perdidos, até o
ponto de se produzir entre os especialistas da época uma verdadeira ignorância sobre o
tema. Mais grave ainda é a fato de que, através de Galeno, muitos médicos tinham acesso a
Hipócrates.
Embora na Idade Média predominasse o legado médico de Galeno, foi apresentado como
uma doutrina deformada e, ao mesmo tempo, sobrecarregada em relação com a obra
original do médico romano. Os pontos básicos e constantes no galenismo são os quatro
elementos (ar, água, fogo e terra), os quatro humores (sangue, bílis, bílis negra e fleuma) e o
conhecimento dos temperamentos. As funções do corpo humano se dividem em vitais,
naturais e animais; a prevenção, a cura e também as causas das enfermidades baseiam-se no

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estudo profundo de “seis coisas não naturais”. O quadro humoral da patologia galênica
explica perfeitamente a dor pelas mudanças de qualidade nos humores, ou também pela
“solução de continuidade”, quer dizer, pelas rupturas das divisões.
A influência de Galeno é constatada por dois grandes médicos medievais, Guy de Chauliac,
que em sua Grande Chirurgie, publicada em 1363, define a dor sob a influência de Galeno e
de outra das personalidades que regeram a atividade médica na Idade Média, Avicena. Em
seu livro, De Chauliac destaca que “dor, segundo Avicena, é um sentimento de coisas
contrárias. E supondo que as coisas contrárias geram dor ao produzir mudanças que podem
ser rompidas ou cortadas, ou estendidas, ou corroídas, coma afirma Galeno, é possível
concluir que a dor está composta de qualidades contrárias, por si mesma, e de soluções de
continuidade por acidente”.
Os princípios do tratamento consistiam em lutar contra a mal recorrendo ao seu contrário.
Por exemplo, umidade com secura, calor com frio, etc. Assim surgiu o emprego de remédios
“anódinos” ou “contrários à natureza”, como a raiz de mandrágora, a erva amora e a
dormideira, que podiam ser administradas em supositórios e em colírios, e às quais eram
agregadas açafrão, mirra e castóreo. Guy de Chauliac dá mais importância às “evacuações”,
incluindo o sangramento, e às “alterações”. Para favorecer as evacuações, recomenda os
medicamentos que fazem supurar o mal. Da mesma forma usava toda uma gama de óleos e
gorduras, misturados com miolo de pão branco e ovo, que servia de emplastro e ajudava a
difundir um pouco de calor desde a zona afetada. Guy de Chauliac menciona também outro
meio de diminuir a dor: “tirar a sensação de dor da parte afetada através de uma atadura”.
O panorama teórico da medicina medieval é galênico, mas as fontes estão mais
diversificadas no que se refere a medicamentos. A conservação da Matéria Medicae de
Dioscórides e o livro Dos medicamentos de Galeno, junto com a existência de numerosas
listas de herbolarios e de antídotos muitas vezes parciais, embora completados pela
produção local, explicam essa situação. Na farmacopéia da Idade Média contra a dor ou
contra a enfermidade, um grande número de remédios populares teve sua importância. Ao
mesmo tempo não havia muita discriminação entre as virtudes reais das plantas e as
maneiras de prepará-las ou administrá-las. Esse processo incentivava as crenças em práticas
mágicas, uma atitude estimulada pelo gosto que o cristianismo sentia pelos milagres.

Medicina no Oriente

O galenismo não somente serviu de modelo no Ocidente: filósofos e médicos árabes


contribuíram para salvar sua obra e para propagá-la, especialmente graças a traduções que
foram feitas sob a influência de califas iluminados como Al Ma’mun. Uma grande parte das
traduções médicas do grego para o árabe foram feitas por Hunain lbn lshaq, um cristão do
século IX, em Bagdá. Os sábios árabes do século X tinham acesso ao essencial do saber
helênico e foi então que começou o período das grandes enciclopédias árabes, de Rhazes e
Avicena (980-1037).
Mais filósofo que médico, ao contrário de Rhazes, Avicena reuniu em seu Canon a soma
do conhecimento médico de seu tempo, em forma rigorosamente organizada, dando um
espaço importante às inovações, em especial aos diagnósticos diferenciais. O Poema da
Medicina constitui um anexo do Canon, especialmente destinado aos estudantes. A dor como
sintoma permitia o diagnóstico das enfermidades e ocupa um lugar menos importante que as
urinas ou as evacuações; porém, a dor anuncia as crises. Por exemplo, intensas pontadas na
lateral do corpo anunciam uma crise, do mesmo modo que as moléstias de todas as

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articulações. Outras dores anunciam o fim da crise, como as do estômago sem dor de cabeça.
A dor desempenha um papel importante no prognóstico das enfermidades, além de indicar o
lugar afetado. No Poema é feita uma referência aos medicamentos calmantes que implicam
duas classes contraditórias de remédios: os que adormecem como o ópio, e outros que
atuam em um sentido completamente diferente. “Os medicamentos que suprimem a dor
esquentam e drenam para o exterior, cortam e atuam como emolientes”, escreve o sábio
árabe.
Sem a possibilidade de uma confrontação exata de todas as fontes disponíveis, a
originalidade da medicina árabe continua sendo difícil de avaliar. Mas é indubitável que, por
seu avanço na farmacopéia e pela influência grega, seu ingresso na Europa foi um elemento
decisivo no despertar da medicina ocidental.

O Exemplo dos Mártires

A visão da dor durante a Idade Média foi influenciada pela imagem dos mártires do
cristianismo. A dor era entregue a Deus, não se manifestava de forma natural e servia como
caminho de elevação espiritual.

Uma das figuras chaves do cristianismo durante a Idade Média foi São Sebastião. Seu
exemplo de martírio sob o poder romano influiu profundamente entre os fiéis medievais, em
especial os menos instruídos, que viam com admiração a figura ideal do santo crivado pelas
flechas romanas. A idéia de que a dor era um caminho de expiação e retribuição do
sofrimento de Cristo na cruz encontrou em São Sebastião seu símbolo mais evidente.
O santo mártir viveu durante o século III, numa época em que a perseguição dos cristãos
se havia convertido numa espécie de passatempo nacional em Roma. A lenda conta que
viajou para Roma de sua Galia natal e se uniu ao exército romano, sob o comando do
imperador Carino. Para o reinado de Diocleciano havia alcançado a patente de capitão.
Embora Diocleciano fosse um grande reformador administrativo, não viu nada que precisasse
ser reformado na prática da perseguição dos cristãos.
Quando descobriram que Sebastião passava o tempo reconfortando os prisioneiros
cristãos e convertendo os saldados romanos ao cristianismo, Diocleciano ordenou que lhe
disparassem flechas até matá-lo. Como relata a chamada Lenda Dourada que aparece na
enciclopédia medieval da história da vida dos santos, um grupo de arqueiros disparou sobre
o ex-capitão até cobri-lo de flechas.
Porém, a história de São Sebastião não termina com seu corpo cheio de flechas. Os
acontecimentos descritos na Lenda Dourada incluem a milagrosa recuperação do santo,
graças a uma viúva cristã que o curou até devolver-lhe a saúde. Uma vez recuperado,
apresentou-se diante do surpreendido Diocleciano. Ao sentir-se ludibriado, o imperador
ordenou novamente sua morte.
Em sua segunda execução, Sebastião é ferido até morrer e seu corpo lançado a uma vala.
Mas também neste caso seu corpo consegue uma espécie de prolongação da vida, quando
outra mulher piedosa o descobre e, instruída por São Sebastião em sonhos, enterra seus
restos perto das catacumbas. Foi assim que um importante culto popular se desenvolveu em
volta de seu túmulo no século quarto. Em um de seus primeiros atos, o Papa Dámaso
construiu uma basílica sobre seu túmulo no ano 367 e as relíquias de Sebastião continuaram
atraindo numerosos peregrinos ao longo de toda a Idade Média. Seu martírio se converteu
em um tema recorrente entre os pintores e hoje é passível encontrar sua imagem em quase

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todo grande Museu de arte que se visite: seminu, com as mãos amarradas às castas e suas
pernas e seu dorso cobertos de flechas.
Muito além da lenda, as descrições físicas de São Sebastião diferiam notadamente nos
anos posteriores à sua morte. Alguns artistas o descreviam como um velho soldado de barba,
outros como um homem jovem e bem-apessoado. Afinal, esta provável visão mítica e mais
distante da verdade foi a que se impôs e a figura ideal de São Sebastião começou a ser
difundida pela Europa, unida à rápida expansão que o cristianismo alcançou.
O martírio do santo foi um verdadeiro exemplo de fé que os primeiros cristãos utilizaram
como instrumento de evangelização entre os novos fiéis. O caso de São Sebastião serve de
exemplo também para avaliar as diferenças que existiam entre a concepção da dor romana e
a medieval. Diocleciano ordenou que “fuzilassem” Sebastião com flechas, como caminho
mais rápido para eliminá-lo. Seu desejo era simplesmente matá-lo. Diferente é o caso, na
Idade Média, quando a dor adquire uma característica educativa e os condenados são
torturados para que se arrependam e demonstrem, antes de morrer, que o estado normal
das coisas é o estado correto. As execuções e torturas públicas serviam como meio de
educação e também de manutenção da ordem estabelecida. Dentro desta característica é
possível incluir o caso de Girolamo Savonarola.
Educado por seu pai e avô nos conhecimento, médicos e filosóficos, Savonarola decidiu
ingressar para a ordem dominicana. A partir desse momento começou sua pregação em
Florença, que finalmente o conduziria à morte.
Seu desejo era recuperar os valores originais do cristianismo. Buscava livrar a sociedade da
frivolidade e superficialidade reinantes. Mas ao se enfrentar com o papado, cuja decadência
havia alcançado níveis altíssimos, Savanarola é excomungado e posteriormente preso. Morre
finalmente no dia 23 de maio de 1498, queimada numa fogueira.
Savonarola se adiantou no seu tempo e encontrou a morte. Seu discurso finalmente não
alterou o status quo, mas muito depois vieram outros que não puderam ser controlados
como Savonarola. Lutero e Calvino, herdeiros do espírito reformador do dominicano
florentino, não tiveram sua mesma sorte.
Em seu caso, a dor foi um instrumento de ensinamento para o povo. Savonarola morreu
enquanto lhe exigiam que reconhecesse seus erros. O dominicano não renegou suas
concepções e morreu carbonizado pelas chamas. A população “aprendeu” assim o destino
que lhes esperava para aqueles se desviavam do curso estabelecido.
Um terceiro mártir da época medieval permite entender a idéia de sublimação que muitos
cristãos da época davam à dor. O exemplo de Joana d’Arc esclarece como a dor oferecida a
Deus acabava sendo um prazer e não uma condenação. Os registros falam de que a donzela
de Orleans morreu portando uma expressão de placidez e exaltação. Hoje, a medicina pôde
explicar esse fenômeno através da química cerebral, mas na época de Joana d’Arc, sua visão
plácida diante da morte era vista simplesmente como um caso claro de escolha divina.
Protegida por Deus, Joana parecia não sentir a dor, e sua fé era vista como um mecanismo de
proteção contra os sofrimentos do corpo. Aquele que crê e tem fé em Deus pode superar o
sofrimento e entrar alegremente no reino dos céus.
Como São Sebastião serviu para educar os fiéis na idéia de que um cristão deve estar
disposto a tudo por seu Deus, Joana d’Arc passou a se transformar no símbolo de uma dor
anulada pela fé e pela misericórdia divina.
Muitas outras concepções da dor existiram no mundo na época da Idade Média, mas
nenhuma alcançou uma importância tão grande como a cristã. O estoicismo de Marco
Aurélio e o cristianismo posterior se uniram nesse período para dar à dor um valor mínimo.

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O homem podia superar o sofrimento, em um começo para alcançar a liberdade interior e
depois para alcançar a Deus. Existiam elementos superiores que faziam da dor um pequeno
detalhe em um mundo cuja existência não tinha sentido sem a fé na verdadeira vida, muito
além da morte.
Nos anos posteriores, com o florescimento das artes e o surgimento de uma sociedade
mais centrada no homem que nas forças divinas, a visão da dor mudou. Nos capítulos
seguintes analisaremos esses fenômenos e a importância que os filósofos clássicos dariam à
dor na sua tentativa de compreender o mundo.

FASCÍCULO 4
DOR: DO RENASCIMENTO AO SÉCULO XVIII

INTRODUÇÃO

A dor, considerada como um castigo divino ou um meio de superação durante a Idade


Média inicia-se um processo de mudança no Renascimento, em especial entre os
encarregados de aliviá-la, no qual tem um papel importante o processo de Reforma
encabeçado por Lutero e Calvino. Sua visão de Deus e do homem faz com que, para os
protestantes, o corpo deixe de ser nu meio de sacrifício para o Todo Poderoso. Embora essa
mudança não influa na Igreja Católica, onde se mantém a concepção clássica, penetra na
sociedade. Os médicos começam a se preocupar com a dor, e nos séculos XVI a XVIII
recorrerão cada vez mais a substâncias que ajudem a acalmá-la. O ópio exerce neste período
um papel muito importante.
Estas mudanças na visão da dor não são rápidas, se estendem ao longo de três séculos,
desde o Renascimento ao Iluminismo. Filósofos como Descarte e médicos como Ambroise
Paré e Paracelso foram fundamentais neste processo que culmina com a separação entre
ciência e a religião, durante o século XVIII. Os cientistas, apesar de suas crenças religiosas,
consideram a dor excessiva como algo inútil que deve ser aliviado.
Um fato curioso desses anos é a intensa polêmica impulsionada por Descartes sobre a dor
animal. A discussão sobre se os animais sentem ou não sofrimento se estendeu por todo o
século XVII e se transformou numa espécie de prólogo do que seria a Teoria da Evolução de
Darwin e a visão de um Homem Animal no século XIX.

Dor: do Renascimento à Modernidade.

Com o Renascimento, as concepções do mundo começam uma lenta, porém progressiva


mudança. Atrás fica a dominação quase exclusiva da cosmovisão cristã e o homem vai
adquirindo cada vez maior autonomia dos postulados religiosos.
É a época das grandes explorações. Espanhóis e portugueses se dividem no mundo através
do Tratado de Tordesilhas e percorrem os mares buscando vias de comércio mais rápidas.
Cristóvão Colombo descobre a América e Vasco da Gama circunavega a África para chegar à
Índia. Na Europa, a Itália é o centro do florescimento cultural e artístico. Leonardo, Miguel
Ângelo e Rafael encabeçam uma longa lista de mestres que dominam a atividade plástica na

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Europa. São construídas monumentais obras de arquitetura e criadas algumas das maiores
peças de arte do Ocidente. Mas no meio da ebulição renascentista, o homem continua sendo
vítima da dor, sob o olhar onipresente de Deus. Embora a sociedade deixa de girar em torno
do divino e se volta mais antropocentrista, a Igreja ainda exerce um papel importante entre
os homens. Conquistadores e evangelizadores avançam juntos por terras americanas e o
problema religioso torna-se o centro de alguns dos enfrentamentos mais violentos entre os
homens, lembrados pela história. A separação da Igreja Católica, encabeçada por Lutero e
Calvino, provoca o nascimento de um importante movimento protestante que começa a
adquirir cada vez mais relevância na Europa.
A Reforma introduz significativas mudanças culturais. Os homens começam a pensar
menos nos males do mundo em termos coletivos ou como castigo pelo pecado original para
desviar o olhar e a atenção para a experiência individual. A dor e a enfermidade são
assumidas por alguns como fenômenos estritamente humanos, dando passagem para os
primeiros sinais de modernidade que permitirão intensificar os trabalhos científicos sobre o
tema.
A mudança fundamental vinculada com a dor é notada na relação do homem com seu
corpo. Ao estabelecer um vínculo direto com Deus na intimidade dos corações, o
protestantismo torna inútil o corpo como meio de sacrifício ou meditação dirigida a Deus. Os
seguidores de Lutero liberam o corpo das mãos da Igreja. A relação do homem com Deus é
agora mais direta e íntima.
Porém, uma situação muito diferente é vivida dentro da Igreja Católica. Nos gestos de
oração propostos por Inácio de Loyola, corpo e alma estão a serviço de Deus, sem restrições.
A dor pelo pecado é uma primeira etapa, necessária na via de penitência; e esta, por sua vez,
deve tornar sensível a dor do pecado. Inácio de Loyola estabelece rigorosos preceitos sobre a
alimentação, o sono e o corpo. “Consiste em fazer com que sofra uma dor sensível, aplicando
cilícios, cordas e correntes de ferro sobre a carne, seguindo algumas normas de disciplina e
praticando outros tipos de mortificações. O que parece mais conveniente e menos perigoso
neste ponto é que a dor seja sensível somente na carne e que não penetre até os ossos,
fazendo com que a penitência cause dor e algumas enfermidades. Mesmo assim, parece mais
adequado o uso de disciplina com pequenas cordas que causam dor exterior, evitando que
interiormente possa ser causada uma enfermidade notável”. Obviamente, este tratamento
está elaborado para ajudar aqueles que querem entrar no caminho da espiritualidade, mas é
profundamente revelador da relação com o corpo. “Deve-se obrigar a sensualidade a
obedecer à razão”. Também é uma maneira de demonstrar que o pecado pode ser vencido.
Dentro do cristianismo da época, a relação com a dor, espiritualizada e sublimada, dá as
costas à espontaneidade vital e natural.
Entre os católicos, mal-estar e dor continuam sendo interpretados como sinais da ira de
Deus. Ambroise Paré, um dos principais médicos renascentistas, destaca também que o
melhor antídoto contra o sofrimento é “A conversão e a modificação das nossas vidas”. Mas
o mesmo Paré aponta que se a enfermidade é enviada por Deus, “paralelamente nos são
dados meios e recursos para usá-los para sua glória, buscando remédios para nossos males,
inclusive nas criaturas às quais lhes deu certas propriedades e virtudes para aliviar a pobres
enfermos... senão, seríamos uns ingratos que desperdiçaríamos seus benefícios”.
O problema da dor tem envolvimentos teológicos evidentes: é associada com o significado
do mal no mundo. Enquanto a idéia de Deus, que é um ser que nos remete à bondade e ao
poder absolutos, existe uma crucial pergunta: Deus pode querer o sofrimento de suas
criaturas?

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Religião e medicina

As mudanças na visão da dor iniciadas no Renascimento são aprofundadas no século XVII.


A Igreja Católica reforça a idéia de dor como caminho de superação. Os médicos, no entanto,
assumem sem duvidar sua opção definitiva diante da dor. Quaisquer que sejam as convicções
religiosas de uns e outros, a dor suscita somente uma reação compartilhada por médicos e
pacientes: a busca do alívio. Esta é a missão da medicina e deve aliviar também o que não
pode curar. Por natureza, o doente exige um alívio. Esta atitude não significa que as
concepções religiosas nas quais a sociedade da época estava imersa e que modelavam a
educação e regulamentavam os principais atos da vida cotidiana, estivessem ausentes da
maneira de pensar dos médicos e dos pacientes.
Porém, tudo acontecia como se estivesse bem estabelecida uma separação de papéis
entre o médico e o sacerdote. No entanto, havia um ponto onde o critério médico se
aproximava estreitamente dos mandamentos da Igreja: no momento do parto, a vida da
criança é a sistematicamente privilegiada acima da vida da mãe. A religião tentava dar um
sentido ao sofrimento. Suas palavras e cerimônias serviam para acompanhar e organizar a
enfermidade e a morte. Para a maioria da população, o enfrentamento à dor era a única
alternativa, não uma escolha. As pessoas que viviam no campo simplesmente não dispunham
de médicos, e as que viviam nas cidades não estavam em condições de pagar seus serviços.
Nessas circunstâncias, os ofícios religiosos serviam pelo menos para amenizar a carência de
cuidados médicos contra a dor.
Tampouco a hora de enfrentar a dor era igual para homens e mulheres. Tradicionalmente,
a mulher era considerada, por natureza, mais sensível, impressionável e fraca que o homem,
com um menor limite de tolerância à dor. Por isso, não era necessário preocupar-se tanto
com seus prantos e seus gritos. Por outro lado, pelo mesmo fato de ser mais sensível, era
considerada mais flexível e adaptável à dor. Por estar mais acostumada a sofrer, embora
somente fosse pelo parto, era certamente mais resistente.
Se fosse admitido que a finalidade do homem na terra é servir a Deus, como pensava a
Igreja Católica, então a santidade tem mais valor por si mesma que qualquer outro bem
terrestre, e a enfermidade e a dor podem ser consideradas como benefícios. Esse é o
argumento central de Pascal em sua famosa Prece: “Se eu tive o coração cheio da afeição do
mundo enquanto houve algum vigor, anulem este vigor e tornem-me incapaz de aproveitar o
mundo, seja por debilidade do corpo, seja por zelo da caridade, para somente me completar
com o Senhor”. A prece se assemelha à quinta-essência da doutrina cristã em relação à dor e
à enfermidade: aprendizagem do desprendimento do mundo através do sofrimento e dos
males físicos. A dor é vista como sinal da Providência, como castigo, e também como um
meio para aproximar-se de Deus.
O francês René Descartes, outro dos principais filósofos do século XVII, também se refere
à dor. Em sua obra “Princípios da Filosofia”, escrita em 1644, ele aprofunda sua idéia da
sensação e especialmente da dor, que considera o melhor meio para conhecer a união entre
a alma e o corpo. Analisa o problema da dor dos membros “fantasmas” a partir do caso de
uma menina que havia sofrido a amputação da mão e do antebraço.
Descartes retoma a explicação de Ambroise Paré: a sensação experimentada na
extremidade inexistente é uma prova de que “a dor da mão não é sentida pela alma a partir
da mão, mas sim desde o cérebro”. Depois, procura dar uma explicação racional à
persistência de uma agitação dos nervos, que provocava sensações semelhantes às que

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haviam ocorrido se a mão tivesse estado ainda em seu lugar. Descartes chega a considerar
que a dor do membro amputado não é imaginária, mas sim real; e conclui assim que a dor é
uma percepção da alma. Pela experiência da dor confirma-se a existência do corpo ao qual
está unida, da mesma forma que a existência do corpo exterior.

Fim do domínio religioso

O século XVIII terminou definitivamente com o domínio religioso da dor. A percepção


muda principalmente pela laicização da sociedade e a separação entre a ciência e a
metafísica. O espírito racionalista invade todo o pensamento da época e a medicina não fica
alheia ao processo. Os elementos religiosos são deixados de lado, inclusive entre os cientistas
mais devotos. O pensamento científico domina o estudo do corpo humano e da natureza que
nos rodeia. A dor começa a ser associada com as propriedades das fibras vivas do organismo.
A observação anatômica e as experiências com animais são intensificadas. Por trás deste
processo existe uma filosofia que o sustenta. Os pensadores, em especial Locke, dão uma
importância chave à experiência. De acordo com eles, nada é inato; o homem conhece o
mundo através dos sentidos. E nesta experiência, a dor tem um papel fundamental.
Retomando as concepções hipocráticas de dor como sintoma, os médicos da época lhe
dão uma classificação quase que de sexto sentido. É vista como um chamado do corpo para
que se preocupem com o organismo; algo funciona mal e deve ser corrigido. Numa época
onde a maioria das pessoas não recorria a um especialista a menos que a dor não lhes
permitisse trabalhar, os médicos propunham a importância de “escutar” as dores.
Embora se mantenham as classificações da dor propostas pelos clássicos, as escolas
médicas da época não vêem da mesma maneira. Mecanicistas, vitalistas e animistas abordam
o tema sob perspectivas completamente diferentes. Os primeiros, que dominaram o saber
médico de praticamente todo o século, concebem o corpo como uma máquina e a dor
somente como um sinal de que alguma parte da estrutura corporal começou a falhar e
necessita ser reparada. Os vitalistas, que começam a ter um papel mais importante até fins
do século, recorrem ao conceito de “sensibilidade” para analisar o tema, vinculando a dor
tanto a elementos fisiológicos como psicológicos. Por último, os animistas aceitam em parte
as idéias mecanicistas, mas atribuindo-lhes uma característica mais psicológica e emocional,
como sinal de um conflito interior.
Nessa época surgiram também as armas de fogo, o que incorporou uma nova dor à
cultura ocidental, a da ferida de bala.

Medicina, a Liberação de Galeno

Entre o Renascimento e fins do século XVIII, a medicina vive uma revolução que deixa para
trás a visão clássica de Galeno, para entrar em cheio na era do progresso científico.
Os médicos e cirurgiões do Renascimento se deparam com um conjunto de experiências
novas que modificam as patologias. Graças à descoberta do Novo Mundo, o enriquecimento
da farmacopéia e a redescoberta de numerosos textos da Antigüidade, os especialistas
dispuseram de meios terapêuticos bastante diversificados. As redescobertas que foram feitas
progressivamente no final da Idade Média permitiram, por exemplo, ter acesso aos livros
cirúrgicos de Hipócrates e deram um impulso considerável aos estudos médicos. A Itália, em
especial as universidades de Pádua e Bolonha, foi o centro destes achados.

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Durante o Renascimento, o mundo árabe deixou de ser o único acesso a alguns textos
científicos que havia ajudado a guardar. Com um espírito crítico em relação à tradição, foram
confrontados os ensinamentos de Galeno com as observações anatômicas. Pouco a pouco, o
respeito diante da autoridade cedeu, dando passagem às exigências do “ver para crer”, e
reiniciaram-se as dissecações de cadáveres. “A Fabricação do Corpo Humano de Andreas
Vesalius”, publicado em latim em 1543, constitui um ponto importante de um processo
iniciado anteriormente. O termo “fabricação” não somente se refere à estrutura do corpo
humano, mas também ao resultado final de uma elaboração providencial, e sugere que uma
análise peça por peça da máquina humana é a melhor maneira de saber mais sobre o corpo.
Técnicas cirúrgicas e conhecimentos anatômicos devem ser unidos para fazer com que o
corpo revele os segredos de sua organização.
Esta revalorização da cirurgia tem um exemplo claro na obra de Ambroise Paré, que
transgride a habitual separação entre os domínios da cirurgia e da medicina, o que lhe trouxe
certas dificuldades com a Faculdade de Medicina de Paris. Em algumas edições de sua obra,
se viu obrigado a suprimir partes cirúrgicas, como os tumores e algumas menções relativas à
dor nas febres, por exemplo, que no princípio não tinha o direito a tratar. Seu nono livro
sobre cirurgia, dedicado aos “cálculos” (litiasis renal), é bastante revelador quanto à forma
com que um cirurgião renascentista podia abordar o problema da dor, dissociando a
enfermidade da operação. “Conheceremos a pedra na bexiga por estes sintomas: o paciente
sentirá uma sensação de peso no períneo, com uma dor que se estenderá até a extremidade
da uretra, tão intensa que a tirará e a esfregará constantemente. Esvaziará a bexiga cada vez
com mais freqüência apesar da dor que sente ao urinar que algumas vezes o obrigará a fazê-
lo muito lentamente”. No caso específico das operações, explica que devem ser amarrados
os tornozelos e as pernas, passando a faixa através do pescoço, além de prender-lhe as mãos
contra os joelhos e sustentando-o fortemente por quatro homens para garantir sua
imobilidade. A consciência da dor infligida não está ausente, mas se encontra dissociada do
ato cirúrgico. Paré reitera várias vezes em seus textos que “A primeira intenção de um
cirurgião deve ser acalmar a dor”. Sob o ponto de vista médico, a relação íntima entre a dor e
a inflamação prevê riscos de fluxos de humores de uma parte para outra, com perigo de
febre e gangrena. Paré expressa também seu desejo de ter uma colaboração por parte do
paciente, uma espécie de decisão em aceitar o ato cirúrgico. Esta colaboração é considerada
indispensável para obter a cura, dentro de um pensamento médico de que o estado anímico
tem uma profunda influência no desenvolvimento dos problemas de saúde.
A terapêutica da época contra a dor se baseava em opor à enfermidade seu contrário.
Assim é explicada a abundância de remédios destinados a esfriar tanto quanto a acalmar. O
uso dos “anódinos” (etimologicamente, medicamentos destinados a suprimir a dor) responde
a essa lógica de curar cada enfermidade com seu contrário. Entre os anódinos, alguns se
caracterizam por seu “resfriamento”, que impede os “espíritos animais”, responsáveis pela
dor, de atender até a parte dolorida; e, em conseqüência, tiram-lhe sua sensibilidade. Trata-
se dos “entorpecentes” ou “narcóticos”, muitas vezes aplicados de forma tópica. Entre
muitos outros exemplos, pode-se citar uma mistura de cicuta, mandrágora e ópio. Com esta
mesma lógica de insensibilizar a parte afetada, através da interrupção da circulação,
prevalece o uso de ataduras antes da amputação, em substituição ao antigo óleo fervente e a
cauterização.
Esta técnica nova, que substitui as esponjas soníferas que caíram em desuso na Idade
Média, é um dos poucos métodos disponíveis. A descoberta do éter não revelou
imediatamente a compreensão do seu poder anestésico. Em sua obra “De artificiosis

28
extractionibus Liber”, publicada depois de sua morte, Valério Cordus explica minuciosamente
a maneira de preparar e destilar o éter, ao qual denomina “óleo de vitríolo”, diferenciando-o
entre “áspero” e “suave”.
Na obra “Os Paradoxos de Paracelso”, outra figura importante da medicina renascentista,
encontra-se também uma referência a este vitríolo suave, embora seja difícil saber se é o
mesmo. Paracelso insiste em sua estabilidade, diferente de outras preparações extraídas do
vitríolo. No que concerne a este ácido sulfúrico, deve-se destacar que, de todas as coisas
extraídas de vitríolo, a mais importante é a sua estabilidade. Além disso, possui tal suavidade
que também pode ser ingerido pelos frangos, que ficarão dormindo durante um tempo e se
despertarão um pouco mais tarde sem ter causado nenhum dano. Sobre este ácido sulfúrico
não se deve fazer nenhum julgamento, exceto nas enfermidades que são tratadas pelos
anódinos; acalma toda a dor, controla todas as febres e previne as complicações em todas as
enfermidades”. É provável que as críticas posteriores sobre Paracelso em relação a suas
práticas de alquimia contribuíram para esquecer este comentário e a desacreditar suas
tentativas.
No começo do século XVIII, é substituído pelo ópio. Recorrer ao ópio em caso de dor
tornou-se algo natural e não houve discussões sobre a conveniência ou não de usá-lo, como
no século anterior.
Ainda permanecem na memória alguns casos criminais, como os “adormecedores do
meio-dia”, que induziam à letargia com ópio os viajantes que se hospedavam em pousadas
campestres francesas, para roubar-lhes seus bens, somados a casos de envenenamentos e
suicídios. Porém, esses maus antecedentes não eram impedimento para usá-lo. Os médicos o
defendiam e asseguravam que não era mais arriscado que qualquer outro medicamento.
O verdadeiro debate sobre o ópio apenas se referia a quais eram suas autênticas
qualidades. Os especialistas ainda não tinham certeza se era sedativo, calmante ou
estimulante. Na ausência de uma análise de seus princípios ativos, algo que não seria feito
até o século seguinte, a polêmica estava iniciada.
Antes de chegar à análise concreta dos medicamentos que utilizariam, os médicos se
perguntavam que indicações deviam seguir: era melhor usar um medicamento análogo ao
mal ou devia-se tratar a enfermidade com seu contrário? O tratamento dependia da resposta
a esta pergunta chave. Por exemplo, à dor “cálida” da inflamação teria que atuar em
oposição com a qualidade “fria” dos narcóticos. Ao abscesso que fazia sofrer, teria que
responder com a incisão do abscesso, uma dor infligida pelos cirurgiões, mas que, ao mesmo
tempo, seria a condição da melhora. O mesmo se apresentava no caso de uma amputação
por gangrena ou de um quisto. O tema da utilidade da dor não pode ser entendido fora deste
princípio que imperava na época.
No arsenal de remédios contra a dor se encontram vários produtos destinados a provocar
a dor para curar, como as fricções, a flagelação e a urticação. Todas as terapêuticas de
estimulação criam uma grande proximidade com a dor e dão à experiência uma ambivalência
que desapareceu da sociedade ocidental contemporânea. Para compreender os
comportamentos e os testemunhos dessa época, deve-se aceitar como um fato cultural — e
sustentado pelo discurso científico — a coexistência de atitudes que não eram consideradas
contraditórias. Por uma parte, a queixa pela dor aplicada a todo ser humano, que busca
naturalmente se aliviar. Esta atitude legítima daquele que sofre também é comparada pela
medicina. A dor do enfermo tem algo de intolerável e de inaceitável diante dos olhos da
ciência e da razão, enquanto que, por outra parte, a medicina se vê obrigada a aplicar a dor
para curar. Este paradoxo, exacerbado pelas idéias médicas do século XVIII sobre a

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necessidade de excitar a sensibilidade e despertar a energia vital, estava no âmago de todo o
exercício da medicina.

Avanços decisivos

No século XVII, apoiados sobre os avanços anatômicos conquistados no Renascimento, são


produzidas duas descobertas decisivas para o desenvolvimento da medicina e,
conseqüentemente, para a compreensão da dor. A primeira foi a descoberta do sistema
circulatório, por William Harvey. Com seu livro “Exercitatio anatómica de motu cordis et
sanguinis in anima”, publicado em 1628, Harvey dá um passo fundamental na história da
medicina. Seu achado permite liberar-se quase que definitivamente da herança galênica e
leva os médicos a compreender que suas observações e deduções podem ter mais certeza
que as de seus antepassados da Antigüidade clássica. Porém, o avanço mais significativo
associado com a dor é obra de Thomas Willis, com seus estudos sobre a anatomia do
cérebro. Seu “Cerebri Anatome”, publicado em 1664, é considerado “a ata de fundação da
anatomia do sistema nervoso central e do sistema neurovegetativo”. A precisão das
descrições anatômicas, por exemplo, sua classificação dos nervos cranianos ou o cuidado
com o qual distingue as diferentes partes do cérebro, está acompanhada sempre de um
interesse por seu uso e suas funções. Os trabalhos anatômicos de Willis, baseados na
dissecação de diversos animais, permitem estabelecer comparações com a anatomia humana
e se apóiam também em observações de casos patológicos. Tradicionalmente, eram
designadas as funções intelectuais aos “espíritos animais” que se encontravam no líquido
espinhal. Estes eram muito similares ao pneuma galênico. Descartes os havia descrito como
uma espécie de chama muito sutil que permitia compreender os movimentos. Para ele, é a
substância interior dos nervos. No entanto, Willis elaborou um sistema mais complexo, onde
a localização e a especialização das funções predominavam, de acordo com as diferentes
regiões do cérebro e do cerebelo. “No que concerne à função ou ao uso do cerebelo, nada
havia sido dito de convincente pelos antigos, nem em relação à sua formação nem à sua
estrutura”.
Alguns afirmavam que era outro cérebro e que tinha as mesmas funções que este. Outros
situavam a memória naquele lugar. Para Willis, o cerebelo é a fonte dos espíritos animais da
alma sensitiva, e deve ser cuidadosamente distinguido do cérebro: “A função do cerebelo
parece ser a de entregar espíritos animais a certos nervos, através dos quais consegue as
ações involuntárias, que são feitas de uma maneira constante, sem que sejamos conscientes
ou apesar disso tudo”. Willis multiplica as expressões para evocar os atos involuntários que
ocorrem sem que nós prestemos atenção e sem que os apreciemos, e é justamente no tema
do estudo do movimento reflexivo onde se explica o problema da dor. Como uma
advertência ao organismo que está em perigo, a dor produz, como uma resposta automática,
um movimento destinado a preservar o corpo da agressão. Em momentos normais, quando a
região do cérebro está tranqüila, os espíritos animais “transitam” em um fluxo contínuo,
regular, e se distribuem em direção a todos os órgãos. “Os espíritos animais são luz à espera
de ser fogo”, destaca Willis. “Seu transporte é da ordem do acendimento e seus efeitos da
ordem da deflagração; nesta fisiologia, os nervos não são mais cordas ou canalizações, mas
sim mechas”. Quando é infligida a dor ao corpo, estas mechas se acendem.
A partir do Renascimento acontece uma revalorização da cirurgia e dos estudos
anatômicos, que se intensificam nos séculos seguintes.

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O problema Animal

Os animais são capazes de sentir dor? Esta pergunta, que aparentemente tem uma
resposta evidente foi, no entanto, objeto de um extenso debate que durou todo o século XVII.
Hoje pode resultar um absurdo questionar-se a realidade da dor animal. No entanto, no
século XVII, René Descartes explanou o tema e produziu um intenso debate, cujas
repercussões se estenderam muito além de sua época. O filósofo francês discorreu o tema
sob a perspectiva de suas análises sobre os movimentos involuntários e seus estudos sobre
os reflexos. Por exemplo, quando um amigo avança sobre nós com as mãos levantadas como
se fosse nos bater, fechamos involuntariamente os olhos, e tratamos de nos proteger,
embora saibamos que não tem a intenção de nos machucar. Este exemplo dado por
Descartes em seu “Tratado das Paixões da alma” o leva à consideração mais geral de “uma
classe de movimentos produzidos pelos objetos dos sentidos e pelo espírito, sem ajuda da
alma”.
“Todos os movimentos que fazemos sem que nossa vontade contribua para isso (como
sucede em geral quando respiramos, caminhamos, comemos, etc.) dependem somente da
conformação de nossos membros e o curso que os espíritos, excitados pelo calor do corpo,
continuam naturalmente no cérebro, nos nervos e nos músculos, da mesma forma que o
movimento de um relógio é produzido somente pela força de sua mola e pelo papel de suas
agulhas”. A diferença entre movimentos voluntários e involuntários não é algo novo; a
novidade está na interpretação da dor animal como uma série de movimentos instintivos e
reflexivos; embora ofereçam todos os sinais exteriores do que o homem designa como dor,
não são mais que uma ilusão dos sentidos. A tese cartesiana do animal-máquina, enunciada
primeiramente na V parte do “Discurso do Método” poderia ser resumida em seu estilo de
filosofar: o animal não sofre porque não pensa que sofre.
Para compreender o que parece um desafio ao sentido comum, deve-se encontrar a
origem do debate. Esquematicamente, a dor do animal é enfrentada como na afirmação de
Santo Agostinho de que “ninguém sofre inutilmente”. Se a teologia cristã afirma que todo
sofrimento tem um sentido na perspectiva da vida eterna, cabe perguntar por que Deus
permitiu que os animais inocentes sofressem, sendo que não se poderia atribuir a eles uma
alma que pensa nem, portanto, um livre arbítrio. Assim, acaba sendo impossível interpreta,
esse sofrimento como uma sanção ou prova. Ante o dilema apresentado, a teologia cristã
buscou a resposta na idéia da alma dos animais como uma substância incorporal e mortal.
Mas Descartes respondeu assinalando que corre o risco de introduzir somente uma diferença
de grau entre a alma do homem e a dos animais; não seria necessário então ver por que
outorgar ao primeiro uma imortalidade que seria negada ao segundo. Acrescentando a isto
que “A diferença não muda a natureza das coisas” escreve, “embora não fazem os animais
tão racionais como os homens, terão pelo menos a ocasião de acreditar que há neles
espíritos de espécies similares”. Por outra parte, se os animais fazem operações análogas às
nossas e são capazes de manifestar dor e alegria, embora são construídos como autômatos,
não se vê uma razão por que haveria de dotar o homem de uma alma espiritual e racional. E
também, até o pensamento por si mesmo poderia ser concebido como uma atividade
mecânica.
Na analogia do homem com o animal, a dor que os animais eram suscetíveis de sofrer os
elevava ao nível dos seres humanos, ou rebaixava os seres humanos ao nível dos animais. Em
ambos os casos, o homem perdia seu lugar na natureza, no centro e na culminação da
criação.

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O debate se desenvolveu simultaneamente no terreno teológico e metafísico, mas
também teve conseqüências práticas na legitimação das experiências com animais, em
especial a vivissecção. Suas repercussões chegarão até o século XIX, quando os estudos
darwinianos colocam o homem e o animal no mesmo nível, revolucionando completamente
as concepções médicas, religiosas e metafísicas. Este e outros temas serão abordados em
breve, junto com a importância que os anestésicos alcançarão para combater a dor.

FASCÍCULO 5
O século XIX. Os anos do progresso.

Introdução

A dor. Nos próximos capítulos serão abordados os progressos alcançados na luta contra
esta sensação durante o século XIX. Foi um período de descobertas e avanços fundamentais
no campo científico e tecnológico, e a dor ocupou um lugar importante. Nasceram os
anestésicos e a visão do homem frente a este problema foi mudando. A forte influência da
Igreja Católica diminuiu radicalmente do ponto de vista científico, imposta desde o
Iluminismo, e a medicina deixou de vê-la como um problema inevitável, desenvolvendo
diferentes métodos para aliviá-la, em especial durante a cirurgia. Foi aperfeiçoado o uso de
gases, como o éter e o óxido nitroso, a morfina foi isolada e a anestesia raquidiana foi
descoberta.
Os homens deixaram de estar desprotegidos diante desta sensação e iniciou-se um
processo que ainda continua, caracterizado por um desejo de evitar a dor ao máximo.
Porém, o século XIX foi também um período de descobertas relacionadas com o
organismo humano. O avanço na compressão do sistema nervoso e das enfermidades
associadas a ele, permitiu esclarecer muitos dos mistérios que envolviam a dor. Ao mesmo
tempo, os trabalhos de Darwin e sua Teoria da Evolução mudariam radicalmente a maneira
que o homem tinha de se olhar, uma mudança cujas conseqüências ainda são apreciadas.
Nas páginas seguintes serão abordados todos estes temas, tentando mostrar as mudanças
culturais que as numerosas descobertas realizadas durante o século XIX produziram no ser
humano.

A Luta contra a Dor

Deitado sobre uma maca, no interior de uma barraca de campanha, um soldado dá gritos
de dor, enquanto o médico, com seu avental branco manchado pelo sangue dos feridos,
prepara-se para amputar sua perna destroçada por um tiro de canhão inimigo.
Esta cena foi recorrente durante o século XIX. Desde as campanhas napoleônicas até a
Guerra da Criméia, desde as lutas da independência até a Guerra do Chaco, os médicos
tiveram que enfrentar o desafio de cortar os membros responsáveis pela dor dos feridos.
Uma operação delicada que, no entanto, era realizada com grande perícia pelos médicos de
guerra.
A amputação não era uma operação nova, vinha sendo realizada desde a Antigüidade. A
diferença radicava-se em que, no princípio do século XIX, a visão dos médicos havia mudado
diante da dor de seus pacientes. Essa sensação, menosprezada no passado pelos

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especialistas ou considerada inevitável para alcançar uma melhora do paciente, passou a ser
um tema importante da discussão medica. Ficou no passado a idéia hipocrática de que uma
dor podia ser controlada por uma dor mais intensa ou que o choque causado pela amputação
desencadeava mudanças no paciente favoráveis para a sua melhora. O sofrimento que era
observado no campo de batalha exigia uma rápida solução e as vítimas tinham direito de
sentir menos dor. Pelos outros motivos, não se via que essa sensação produzisse algum
benefício para o corpo.
Uma das figuras decisivas foi o barão Larry, médico de campo e primeiro cirurgião da
Guarda Imperial napoleônica. Durante seu trabalho nas campanhas do exército francês,
conseguiu uma grande perícia para realizar amputações, mas também teve que enfrentar
algumas vezes a experiência da dor dos soldados. Larry sabia que quanto menos se movesse
o ferido, mais possibilidades havia de salvá-lo. Não vacilou em operar às vezes sobre fardos
de palha, sob o sol intenso do meio-dia, ou no meio da neve, junto ao tênue calor de um
pequeno braseiro. Também compreendia a importância de atuar o mais cedo possível, dando
sempre prioridade aos feridos mais graves, sem se importar com sua patente.
Sua experiência mais intensa foi durante a campanha napoleônica na Rússia, em especial
durante a retirada. “Nunca uma jornada havia sido tão difícil para mim”, escreveu. “Nunca
minha alma havia sido golpeada tão fortemente. Para mim era impossível controlar as
lágrimas nos mesmos momentos em que tratava de dar apoio aos meus feridos. Tive que
lamentar a morte de alguns desses infortunados, cujas lesões necessitavam da amputação,
porque as terríveis condições em que nos encontrávamos, o frio excessivo e a falta de um
lugar coberto me haviam impedido de realizar algumas operações muito difíceis e perigosas
por si mesmas”.
De suas experiências como cirurgião de guerra e das lembranças da gangrena e do
congelamento que os soldados sofreram durante a retirada da Rússia, Larry tirou algumas
conclusões. Talvez a idéia mais importante foi a de que os médicos deviam tentar poupar
seus pacientes de sofrer dor, da melhor maneira possível. Por isso foi um dos primeiros a
apoiar as tentativas iniciais de utilizar anestésicos, em 1828.

Anestesia tardia

Um dos maiores enigmas médico-históricos desta primeira metade do século XIX é


justamente o tema dos anestésicos. Os historiadores ainda não sabem por quê, embora os
médicos consideravam que a dor excessiva era inútil e devia ser eliminada, não
desenvolveram antes alguma forma de calmante para ser usado durante as operações, mais
ainda considerando que tinham todos os elementos para fazê-lo ao alcance das mãos.
Uma das explicações poderia ser encontrada nas palavras de um importante médico
francês da época, o professor Velpeau: “Evitar a dor por meios artificiais é uma ilusão”. Para
ele e para muitos outros médicos, a dor estava estreitamente relacionada com a cirurgia e
não podia ser eliminada. Paciente e médico deveriam saber disto para poder realizar com
honestidade a intervenção cirúrgica. Dentro desse ambiente, aplicava-se, até a primeira
metade do século XIX, um sistema de cura trazido do Oriente e conhecido como moxa. O
método consistia em aplicar cones ou pequenos bastões de material vegetal sobre a zona
dolorida e deixá-los queimar até a formação de uma pequena chaga. Os médicos os
aplicavam várias vezes, de maneira repetida, para obter resultados. Era o procedimento
curativo mais doloroso que existiu e também foi conhecido como o “terror dos enfermos”.

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Dessa mesma época, datam os estudos sobre os gases para fins terapêuticos. Na
Inglaterra foram realizadas diversas investigações sobre a respiração, destinadas a provar os
efeitos de alguns gases sobre o organismo animal e humano. Um dos estabelecimentos
pioneiros na aplicação da química na medicina foi o Instituto de Medicina Pneumática de
Thomas Beddoes, em Bristol. Ali, o químico inglês Humphry Davy começou a estudar se a
inalação de algum gás ajudava um doente a recuperar mais rápido as suas forças. Embora
não se procurasse propriamente um gás que eliminasse a dor, cada descoberta trazia novas
surpresas.
Davy estudou especialmente os efeitos do óxido nitroso sobre os seres humanos e as
conseqüências de sua inalação. Como era habitual nessa época, o cientista realizou as
experiências em si mesmo. Depois das primeiras provas, assinalou que não podia descrever
com palavras a sensação que o gás produzia, mas a relacionava com um obscuro estado de
prazer. Pouco a pouco, foi aumentando o tempo de inalação até chegar a um máximo de 5
minutos, quando sua mão já não podia sustentar o inalador.
As conseqüências resultavam em uma experiência alucinante, com ataques de riso que
duravam entre cinco e seis minutos. “As emoções sublimes ligadas a idéias particulares” que
o gás produzia, conforme suas próprias palavras, levaram Davy a inalá-lo numerosas vezes,
simplesmente por prazer, um equivalente às drogas atuais.
A experiência lhe permitiu descobrir depois suas qualidades calmantes. “Tive uma
excelente ocasião para ver a ação do gás sobre a dor”, escreveu. “Depois de extrair o dente
conhecido como dente do siso, tive uma grande inflamação na gengiva, acompanhada de
uma intensa dor, que me impedia qualquer possibilidade de repouso e de ação. No dia em
que a inflamação foi mais intensa, inspirei três grandes doses de oxido nitroso. A dor sempre
diminuía depois de cada inspiração e a sensação de mal-estar se fundia depois com uma
sensação de prazer”. Diante de sua descoberta, um dos obstáculos para usá-la durante as
operações pode ter sido que o gás era considerado uma variação do ópio. Quer dizer, servia
para acalmar a dor depois da operação, e não durante. Nenhum especialista antes de Davy
havia considerado a idéia de aplicar um sistema calmante durante uma intervenção cirúrgica.
Para os médicos, a dor estava estreitamente ligada à cirurgia e não havia forma de eliminá-la.
Na primeira vez que Davy sugeriu a idéia de que o gás podia ser utilizado para as cirurgias,
advertiu que não era conveniente usá-lo nas intervenções onde eram produzidas grandes
efusões de sangue. Pensava-se que o gás, ao inibir os movimentos voluntários e relaxar os
músculos, surtia conseqüências sobre as vias sanguíneas e impedia a coagulação. Estudos
posteriores se encarregaram de mostrar a inexatidão desta apreciação.
As descrições feitas por Davy determinaram como seriam os posteriores trabalhos com
substâncias anestésicas. Muitos os criticaram sugerindo possibilidades de envenenamento e
de asfixia. Até o final do século XIX, alguns médicos tiveram que defender a idéia de que a
anestesia não produzia asfixia e realizar diversos estudos para descartar completamente o
medo de envenenamento.
Porém, antes que fosse aceito o uso do óxido nitroso como meio para anestesiar os
pacientes durante intervenções cirúrgicas, foi mais utilizado como meio de entretenimento.
Davy começou a convidar amigos para que desfrutassem de seus efeitos e ficou conhecido
como “gás hilariante” nas festas que se popularizaram em ambos os lados do Atlântico.
Pouco depois apareceram também as “festas do éter”, um gás que produzia um efeito similar
ao do óxido nitroso.
Em 1824, depois das sugestões de Davy, um médico de uma pequena cidade inglesa,
Henry Hickman, publicou os resultados das experiências que havia realizado anestesiando a

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animais com anidrido carbônico e óxido nitroso e sugeriu que poderiam ser aplicados em
caso de cirurgia. A opinião unânime foi de repúdio. Considerado um louco, Hickman morreu
aos vinte e nove anos.
Crawford Long, o médico rural de Thomas Jefferson deu um novo passo, enquanto
participava de uma das famosas “festas do éter” e gozava dos “doces beijos” das convidadas
femininas. Long se deu conta de que, quando suas alegres amigas caiam no chão, não
sentiam nenhuma dor.
Começou a investigar este efeito para comprovar se podia ser usado na medicina e em
1842 aplicou o éter com êxito em um menino chamado James Venable, antes de eliminar
alguns quistos no seu pescoço. Todavia, estranhamente, Long não publicou sua descoberta,
só o fez sete anos mais tarde.
Enquanto isso, um dentista norte-americano chamado Horace Wells se interessou nas
demonstrações que eram realizadas nos circos utilizando óxido nitroso. Wells queria saber se
o gás seria efetivo na extração de um dente sem dor, e decidiu provar em si mesmo. O
resultado foi um sucesso completo e quando recobrou a consciência exclamou: “Entramos
numa nova era na extração de dentes!”.
Entusiasmado com seu êxito, Wells começou a realizar demonstrações em público até que
o método falhou durante uma prova no Hospital Geral de Massachusetts, porque não haviam
fornecido gás suficiente ao paciente. Vítima das gozações dos assistentes, Wells abandonou a
odontologia e terminou vendendo clorofórmio. Seus dias se acabaram tragicamente:
suicidou-se na prisão de Nova York, onde havia chegado por jogar ácido sulfúrico em duas
prostitutas.
A difusão do uso de gás como anestésico finalmente foi realizada por William Thomas
Morton, um antigo sócio de Wells. Morton decidiu experimentar o éter em seu cachorro,
nele mesmo e em um paciente.
Diante dos bons resultados, em outubro de 1846, trabalhando junto ao cirurgião John
Collins Warren, anestesiou um jovem com éter do qual seria extraído um tumor. Morton
morreu muito cedo, aos quarenta e oito anos, vítima de um infarto pelo choque sofrido ao
saber que os méritos pelo uso do anestésico em cirurgia, foram atribuídos a tal Charles
Jackson e não a ele. Embora efetivamente Jackson tenha participado da descoberta, não foi o
autor da idéia.

Anestesia local

O primeiro problema diante dos novos avanços foi o perigo que podia causar a anestesia
geral. Como, além disso, muitas vezes não era necessária uma inconsciência generalizada,
começou-se a buscar uma substância que anestesiasse somente uma zona parcial do corpo.
A primeira aproximação se conseguiu através das folhas de coca, usadas na América do Sul
durante séculos, tanto para fins medicinais como por simples prazer. Seu componente
químico, a cocaína, conseguiu ser isolada em 1859, e nos vinte e cinco anos seguintes foi
usada como tratamento para os dependentes da morfina. Em 1883, Sigmund Freud, nessa
época um jovem médico vienense, estava procurando uma maneira de ganhar dinheiro
suficiente para se casar e decidiu investigar se existia algum uso medicinal especial que
pudesse ser dado à cocaína. Depois de uma série de experiências consigo mesmo,
recomendou-a como droga para toda uma variedade de doenças, embora na prática não
tivesse muito êxito.

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Em uma ocasião, Freud comentou com seu amigo, o oftalmologista Karl Koller, o efeito de
adormecimento da língua produzido pela cocaína. Koller, que estava buscando
desesperadamente algo que mantivesse o olho imóvel enquanto operava, decidiu
experimentar a cocaína e obteve excelentes resultados.
O efeito do adormecimento de amplas áreas do corpo, produzido pela cocaína injetada,
foi descoberto por William Halsted, pai da cirurgia norte-americana. Em 1883, os médicos
descobriram também que, no canal da medula espinhal, agulhas podiam ser inseridas para
extrair líquido. Dois investigadores alemães, August Bier e August Hilderbrant, decidiram
experimentar se podiam adormecer a parte inferior do corpo injetando cocaína, e provaram
neles mesmos. Ao injetar cocaína na medula, Bier conseguiu adormecer completamente a
perna de Hilderbrant. Para comprová-lo, apertou a pele com o fórceps e também apagou um
cigarro sobre ela. Havia nascido a anestesia raquidiana.

Dor e Enfermidades no Século XIX.

Junto com o desenvolvimento de métodos para controlar a dor, os médicos do século XIX
estudaram os diferentes tipos de dores. As fontes mais importantes destes trabalhos foram as
feridas de guerra.

O século XIX foi um período de descobertas em praticamente todas as áreas do saber


humano. Na medicina, os trabalhos sobre a dor e os sistemas nervosos do organismo deram
passos importantes em direção à compreensão do funcionamento do organismo humano.
Paralelamente, também foi importante o estudo dos sintomas que permitiam diferenciar
as enfermidades e diagnosticar suas causas. É um tema estreitamente ligado à dor,
considerando que quase não existe enfermidade que não a produza. Ao analisar os diferentes
tipos de dores, foram distinguidos dois grupos. Por um lado, patologias muito bem descritas
e cujas marcas podiam ser rastreadas até a Antigüidade, como a gota, as cólicas renais e as
dores lancinantes causadas por feridas de guerra. Por outro, uma série de enfermidades cuja
individualização apareceu durante o século XIX, graças aos novos métodos de estudo e à
discussão sobre o sistema nervoso. Não se tratava de doenças novas no sentido literal, mas
sim do reagrupamento de certa sintomatologia dentro de um tipo determinado de
problemas. Por exemplo, a nevralgia, a síndrome de Brown-Séquard, a esclerose em placas,
etc.
A aparição do termo nevralgia é relativamente nova. O fato aconteceu em 1802 com a
publicação do quadro sintomático da nevralgia, criado pelo francês François Chaussier.
Alguns trabalhos anteriores haviam descrito sintomas similares, mas muitas vezes dentro de
temas que não tinham nenhuma relação, como problemas na uretra. Depois, o médico norte-
americano Silas Weir Mitchell aprofundou mais o tema.
A guerra de Secessão nos Estados Unidos provocou um número considerável de feridas de
origem traumática, que derivaram tanto na amputação como numa neurite devido à
presença de uma bala ou à destruição parcial dos nervos. Nos dois casos, como nas
conseqüências de fraturas, luxações e compressões diversas dos nervos, os soldados
continuaram sofrendo de dores terríveis durante meses, e às vezes, anos. As mais
características eram as nevralgias, as alucinações dolorosas dos membros amputados e as
causalgias, isto é, a impressão de uma dor queimante, intolerável. Todos os cirurgiões que

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estiveram presentes durante a guerra conheceram sobre estas dores que se tornavam
crônicas, na maioria das vezes inexplicáveis e que precisavam de uma cura médica.
Na época em que Weir Mitchell começou a reunir suas observações no hospital de
Filadélfia, aonde no final chegavam todas as enfermidades nervosas, não se dispunha ainda
de observações sobre o tema em grande escala. Tampouco se sabia distinguir claramente
entre as seqüelas psicológicas dos traumatismos de guerra e a existência de uma dor
persistente, muito real, que durava um longo tempo depois da “cura” e que tentava-se
interpretar como um transtorno psicológico; quer dizer, uma dor imaginária, mais que uma
dor real. O trabalho de Weir Mitchell, pelo número e qualidade de suas observações,
representa um clássico. E foi justamente a partir de suas observações, depois dos
tratamentos com morfina para controlar a dor, que foi explanado pela primeira vez o
problema da dependência da morfina. Para se ter uma idéia da importância do seu uso nos
Estados Unidos, o próprio Mitchell indica a cifra de 40 mil doses de narcóticos distribuídos
em um ano em seu hospital e acrescenta que um enfermo recebia até 500. “Este modo de
tratamento com narcóticos está atualmente em uso de forma efetiva”, escreve. “Em nossos
serviços no hospital militar para as enfermidades nervosas, duas ou três vezes por dia, os
cirurgiões residentes passam pelas salas com as injeções. encontram diante deles angústia e
dor, e deixam com sua passagem bem-estar e alguns sorrisos. Houve momentos em que cada
assistente administrava entre 60 e 80 injeções hipodérmicas dia e noite”. Não havia nenhuma
restrição ao uso da morfina. Era administrada diretamente por um cirurgião e não por um
subalterno, e Mitchell constata que é superior em eficácia a todos os outros meios
disponíveis. Portanto, somente depois de 1870 o tema da limitação dos medicamentos
derivados do ópio foi uma preocupação do corpo médico, que até então não havia tomado
consciência do problema.
Uma das afecções dolorosas mais bem analisadas por Mitchell é a causalgia, cuja
etimologia evoca, inclusive, a sensação de queimadura. Os afetados são sensíveis ao menor
agente exterior, como uma corrente de ar ou as vibrações ao caminhar, e devem tomar todo
tipo de precauções para evitá-lo, como envolver com bandagens o membro doente ou metê-
lo na água. Esta dor é uma verdadeira tortura que compromete a saúde e o equilíbrio
psíquico do enfermo.
O problema da causalgia fez renascer o antigo debate sobre a causa da dor e provocou
uma série de observações a respeito de que as causas fossem múltiplas: transtornos da
circulação devido à ação dos nervos vasomotores pertencentes ao sistema simpático;
transtornos de nutrição; ação reflexa proveniente da medula que provocava dores subjetivas,
porém reais, longe da lesão primitiva; propagação da dor de um nervo ao nervo vizinho.., em
suma, um círculo infernal em que os diferentes fatores se acumulavam e se reforçavam
mutuamente. Weir Mitchell, muito crítico ao olhar para um sentido específico da dor, tinha
plena consciência sobre a complexidade do fenômeno. O médico norte-americano sugeriu
uma visão global, que buscava atacar a dor como um todo, e não como uma lesão particular
somente numa parte do corpo.

Dor proibida

Muito além destes avanços médico-científicos, que ajudaram a mudar a concepção social
que se tinha da dor, está claro que a luta efetiva do ser humano contra este problema
iniciou-se tarde. A anestesia foi descoberta em meados do século XIX, e especialidades como

37
a psiquiatria demoraram vários anos para prestar atenção à dor. Nunca foi um tema central
das investigações de Freud, por exemplo.
Diante deste fato, é possível sugerir várias explicações. A dor culpabiliza porque concentra
a atenção na realidade física e carnal. As fortes tradições culturais, especialmente dos anglo-
saxões, fizeram do corpo algo impuro e degradante, inferior ao espírito e à alma.
Definitivamente, um tema tabu.
Levar em conta exageradamente os desejos e necessidades do corpo era sinal de
debilidade e lascívia. Os interesses humanos deviam situar-se um pouco mais alto. Na época
vitoriana, por exemplo, tinham que suportar o sofrimento levantando-se, um excelente
conselho prático em um tempo em que havia escassos recursos farmacêuticos eficazes para
aliviar a dor.
O mesmo processo de desvalorização das sensações se revela na maneira com que a
sociedade ocidental classificou os diferentes tipos de dor.
Tradicionalmente eram consideradas como reais somente as dores associadas com causas
físicas identificáveis.
“A dor real, sobretudo se é forte, indica uma enfermidade orgânica mais que uma
funcional”, afirmava o grande médico norteamericano Walter Álvares.
“Em compensação, sensações como a queimação, a coceira, a martelação, o inchaço ou as
dores crônicas constituem sérias indicações de neurose”.
Tudo revela uma ambigüidade profunda na sociedade ocidental em relação à dor. A
expressão excessivamente eloqüente de uma dor dá a impressão de ser somente uma
atuação. Mostra-se mais simpatia àqueles que sofrem em silêncio. Na cultura ocidental está
permitido ter uma razão pela qual lamentar-se, mas não se lamentar. Os médicos vitorianos,
também consideravam perigoso que o enfermo fizesse uma descrição muito detalhada de
sua dor. Ao enfrentar doentes obcecados por suas moléstias, os médicos sugeriam alguma
distração para ajudar a esquecer seu estado e deixar de falar da dor. Também se nota uma
forte influência da cultura dos anglo-saxões. Um verdadeiro inglês, atormentado pela dor,
inclusive quando tem um “pé na cova”, deve dizer sempre frases tranqüilizadoras como “Não
é tão forte” ou “trata-se somente de uma pequena moléstia”.
Todos estes comentários subliminares relativos à hipocondria estão relacionados também
com a distinção entre dor verdadeira e neurótica, termo que adquiriu cada vez mais
relevância no século XIX. Uma série de problemas foram designados como psicossomáticos,
nos quais o enfermo, embora sentisse as mesmas dores que nas enfermidades orgânicas, não
mostrava sinais destas.
Herdada em parte pela cultura cristã que valorizava a resistência contra a dor e também
da imagem cômica do “Doente Imaginário”, que se estendeu durante o século XVIII, a
concepção hipocondríaca da dor ainda se mantém presente em muitas culturas.
Os anestésicos para as mulheres, especialmente no parto, desencadearam um intenso
debate no qual também foi criticado seu uso por ir contra as palavras de Deus a Eva: “Parirás
com dor”

Religião e Dor

Junto aos avanços científicos do século XIX produziu-se um processo de laicização da


sociedade, que foi acompanhado de uma mudança na visão da dor. Lentamente o sofrimento
foi se desprendendo de suas explicações religiosas.

38
Ao explanar em sua Teoria da Evolução das Espécies que os homens haviam chegado ao
seu estado atual depois de um longo processo de desenvolvimento e que não havia maior
diferença entre a evolução animal e a humana, Darwin iniciou uma revolução cultural de
dimensões inesperadas. A Igreja demorou a aceitar as explanações do naturalista britânico,
mas foi incapaz de impedir que fossem produzidas mudanças na maneira de olhar o mundo.
Os homens foram assumindo lentamente sua condição, um processo cujas conseqüências
ainda não terminaram. A ecologia e o relativismo cultural de nossos dias podem ser
analisados perfeitamente deste ponto de vista. A mudança também aconteceu no âmbito da
dor. Alguns explicavam que essa sensação era uma peça importante para a evolução da
espécie. Mas em geral os homens começaram a tirar a aura metafísica da dor e foi
identificado o processo iniciado no começo do século XX com os médicos de guerra.
Simplesmente, a dor devia ser combatida e os anestésicos eram as armas fundamentais para
conseguir isso.
Diante deste tema, os teólogos cristãos mergulharam em um intenso debate sobre o
papel da anestesia dentro de sua concepção da dor. O ponto mais discutido foi o da gravidez
e do nascimento. Por um lado, estava a sentença bíblica que dizia: “Darás à luz com dor”. A
anestesia parecia estar em oposição a essas palavras divinas, e por outro, ainda não estava
claro se a anestesia era ou não inofensiva e os médicos tinham medo de que, ao aplicá-la, a
vida do bebê seria posta em perigo. No livro Médico Cristão ou Medicina e Religião era
estabelecido que a primeira responsabilidade do médico era não prejudicar o paciente e a
segunda, aliviá-lo da dor.
Em alguns lugares, como na Inglaterra, a discussão centrou-se principalmente no tema
bíblico sobre o parto com dor, embora sem impedir que no campo científico fossem
desenvolvidos métodos para se evitar ao máximo a dor para a mulher. Em outros lugares, o
tema esteve centrado no caráter inofensivo da anestesia.
O controle religioso dos hospitais foi motivo de uma intensa polêmica durante o século
XIX, especialmente na França.
Junto com o debate teológico, outra discussão se estendeu na sociedade do século XIX: o
tema da laicização dos hosp4ais. Eram anos em que a maioria dos países ocidentais vivia a
separação entre o Estado e a Igreja. Muitos intelectuais reclamavam contra as pressões nos
hospitais por motivos religiosos. Em sua opinião, unia-se o cuidado aos enfermos com um
proselitismo religioso, injusto para aqueles que não professavam a fé cristã. Estas críticas se
apoiavam em fatos concretos, como o do Hospital da Assistência Pública de Paris, onde na
ficha médica do paciente, colocada na beira de sua cama, colocava-se, além da temperatura
e do diagnóstico do paciente, sua disposição diante da religião.
As Irmãs de Caridade foram o principal apoio dos feridos até o aparecimento das
enfermeiras.
Os principais hospitais públicos do Ocidente, nessa época, eram controlados por religiosas.
Por essa razão, o processo destinado a liberar os enfermos da obrigada presença religiosa foi
tão intenso. Nesse ambiente, a dor adquiria outras conotações que muitos queriam erradicar
definitivamente da medicina. Embora aceitassem que os que quisessem podiam se refugiar
na religião para superar a dor, pretendiam também que não houvesse discriminação para os
que tinham uma postura diferente perante a religião.
Todos os progressos científicos, médicos, sociais e políticos do século XIX foram decisivos
para que este processo se aprofundasse, dando passagem definitivamente para uma
medicina livrepensadora, onde a dor se analisaria somente a partir da perspectiva científica.

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Isto já aconteceu na atualidade, embora seria ingênuo afirmar que durante o século XX a
dor estivesse alheia a cargas culturais. Pelo contrário, atualmente as visões da dor
diversificaram-se e, no meio de nossa sociedade asséptica e indolor, é possível descobrir
novas chaves para esclarecer os mistérios que rodeiam essa sensação. Temas que, sem
dúvida, analisaremos mais adiante.

FASCÍCULO 6
A dor no século XX

INTRODUÇÃO

Com esta entrega, chegamos ao fim desta caminhada, embora a difícil relação entre
homem e dor, provavelmente, continuará por muitas décadas e séculos, apesar de que os
últimos 100 anos têm sido protagonistas de grandes avanços médico-científicos, que
ajudaram o homem a controlar em parte muitas de suas dores. Estes progressos, junto com
as investigações por entender os segredos que escondem a sensação da dor, têm criado uma
sociedade cada vez mais asséptica e indolor. Não há dúvida de que a resistência cultural do
homem atual frente à dor é muito menor que a que existia no passado. Quais serão as
conseqüências deste fenômeno? Ainda teremos que ver. Por enquanto, basta conhecer a
realidade de nossa sociedade diante de um tema tão especial como a dor.
A sociedade contemporânea, pela importância da qual desfrutam os meios de
comunicação, está enfrentando um mundo cada vez mais insensível à dor do outro. O
bombardeio constante, através do cinema ou da televisão, de imagens sobre dores humanas
vem aumentando a resistência dos homens para enfrentar, ao menos visualmente, essas
experiências. Hoje, as imagens reais que são vistas através dos noticiários estão
contaminadas pela idéia de fantasia que circunda as experiências audiovisuais. A dor do
outro, vista através da televisão, parece distante e irreal.
Estes temas, somados ao papel que a dor tem desempenhado ao longo da história da arte,
permitirão observar esta sensação de outra perspectiva, não somente como um fenômeno
físico, mas também e principalmente como um fenômeno social.
Novas Perspectivas da dor
O século XX foi protagonista de uma mudança radical na antiga concepção da dor. De um
fenômeno sobrenatural, passamos para uma visão puramente científica, mas sem deixar de
lado a importância de fatores ambientais e psicológicos.
O século XX começou influenciado pelas teorias psicanalistas e darwinistas. Sob esta
perspectiva foram analisados muitos dos grandes problemas do homem, incluindo a dor. Os
trabalhos no campo das sensações e do sistema nervoso, assim como a discussão sobre as
dores psicológicas e emocionais, foram o centro dos debates médicos nos primeiros anos do
século, mas sem deixar de lado as investigações sobre métodos para controlar a dor,
aperfeiçoando os já desenvolvidos no século anterior.
Estes estavam estreitamente relacionidos com os trabalhos no campo do sistema nervoso,
que haviam sido iniciados com Descartes em 1640, ao estabelecer o conceito de via dolorosa:
uma linha direta entre a pele e o cérebro, que se comparava com a forma de fazer soar os
sinos de uma igreja: “Ao puxar um extremo da corda, simultaneamente consegue-se fazer
soar um sino no outro extremo da mesma”. Entre 1894 e 1895, o físico alemão Max von Frey
deu um grande impulso com uma série de experiências sobre o tema. Primeiro selecionou os
pontos corporais mais sensíveis ao frio e ao calor. Depois, colocando uma agulha sobre uma
borracha e ajustando a pressão para poder ir espetando, elaborou um mapa corporal no qual
marcou os pontos de dor. Mais tarde repetiu este mesmo exercício, porém empregando
pedaços de madeira àqueles que havia colado, pelos do rabo de um cavalo, com uns cinco
centímetros de comprimento, para traçar um mapa semelhante, que refletisse os pontos de

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contato. Finalmente, ajustou todos os resultados e obteve quatro estruturas cutâneas
especializadas, às quais denominou “receptores”.
Depois, quando outros investigadores localizaram os nervos que conectam os receptores
com o cérebro, ficou estabelecida a “teoria da especificidade”: Uma sensação específica,
recolhida por um receptor específico, com destino a uma parte específica do cérebro. Os
cirurgiões empregavam esta teoria como base para realizar suas intervenções e eliminar
dores crônicas, cortando os nervos transmissores dos próprios impulsos dolorosos.
No entanto, este tipo de operações não teve muito êxito. O paciente continuava sentindo
dor, só que já não era capaz de localizá-la em nenhum ponto concreto. Inclusive alguns
chegaram ao extremo do suicídio. Para resolver o problema, os cientistas examinaram a
estrutura da pele, mas sem poder encontrar alguma correlação entre a presença dos pontos
temporais e os receptores de Von Frey. Ninguém foi capaz de relacionar uma fibra nervosa
específica com uma sensação específica.
Os Feridos de guerra
Rapidamente foi possível comprovar que a magnitude da sensação da dor depende de
uma série de fatores. Por exemplo, às vezes, as pessoas que possuem uma extremidade
amputada sofrem de dor em seu membro fantasma, que obviamente carece de receptores
nervosos da dor. Mesmo assim, soldados gravemente feridos costumam não sofrer dores
demasiado fortes, apesar de suas graves feridas. Assim foi possível confirmar-se que existem
dois fatores determinantes para a percepção da dor: o estado psicológico e o sistema
nervoso central.
Durante a batalha de Anzio, em 1944, o tenente coronel do exército norte-americano
Henrich Beecher, assombrou-se ao encontrar muitos soldados gravemente feridos que
pareciam não estar sofrendo dor e inclusive ajudavam os assistentes mais lerdos para que
lhes aplicassem as injeções. Quando Beecher publicou seu relatório sobre a observação de
duzentos e quinze soldados, ele mesmo considerou os resultados absolutamente
desconcertantes: 32,1% diziam não sentir nenhum tipo de dor; 26,5% sentiam somente
dores leves; 18,6%, dores moderadas; e 23,7%, dores fortes. Em contrapartida, os civis
feridos em acidentes experimentavam uma dor muito maior.
Beecher chegou à conclusão de que a diferença estava na distinta valorização da ferida
para ambos os tipos de sujeitos. Para o soldado, significava o término de uma grande fadiga e
da ameaça de morte, enquanto que para o civil representava o começo de um período
incerto. Beecher considerou também importantes os antecedentes: os soldados, como um
atleta antes de uma competição, se encontravam em um estado psicologicamente
estimulado por um alto nível de adrenalina e prontos para a batalha pela sobrevivência. Para
os civis, em compensação, a ferida significava uma brusca queda em direção ao desastre.
Em 1950, Beecher e outros investigadoms de Boston fizeram outra descoberta curiosa
quando se administrava um placebo nos pacientes com fortes dores, 35% afirmavam ter
experimentado uma notável melhora. O estudo sobre a dor que os soldados feridos
experimentavam colocou em evidência a grande importância de poder medir sua magnitude,
apesar de ser uma experiencia tão subjetiva, e foram desenvolvidos vários métodos para
fazer esta tentativa.
Os investigadores norte-americanos Janes Hardy e Harold Woolf construíram um aparelho
o qual chamaram de termômetro da dor ou “dolorímetro”, desenhado para graduar o início
da sensação da dor (o primeiro momento de sua percepção) e sua tolerância (até que ponto
suportar). Averiguaram que as queimaduras abrasivas da pele e as dores de dentes eram as
menos fortes, enquanto que algumas dores de parto, a eliminação dos cálculos renais e a
pressão de um cigarro aceso sobre a pele eram percebidos mais intensamente.
Melzack e Tolgerson, da Universidade McGill, criaram o questionário McGill-Melzack sobre
a dor, que incluia um grupo de vinte expressões diferentes para descrever a sensação da dor
e o efeito que exerce sobre o paciente. Por exemplo, no primeiro grupo, podia-se escolher
entre: “Flutuante, tremulante, pulsante, palpitante, vibrante e latente. O resultado deste
questionário foi publcado em 1981: as dores de parto acabaram sendo as mais fortes.
O reumatologista britânico Edward Huskisson desenvolveu um método mais simples para
a medição da dor. Sua escala Visual Análoga consistia numa linha vertical, cujo extremo
inferior indicava “sem dor” e o superior, “a máxima dor imaginável”. Os próprios pacientes

41
marcavam o nível de sua própria sensação dolorosa e os resultados destas auto-avaliações
indicaram uma boa informação sobre o desenvolvimento da dor e de seu tratamento.
Até a metade da década dos anos 60, os cientistas que investigavam a dor se dividiam em
dois grandes grupos: os que defendiam a teoria da especificidade e os que acreditavam que
os receptores sensoriais emitiam sinais que eram transmitidos diretamente ao cérebro, para
determinar quais deviam ser mensagens para estabelecer alguma dor e quais não deviam.
Durante a década dos anos 50, o psicofisiologista canadense Ronald Mekzack e o neuro-
anatomista britânico Patrick Wall, ambos do Instituto Tecnológico de Massachussetts,
iniciaram um estudo sobre dois aspectos físicos e psicológicos da dor. O resultado foi a
publicação, em 1965, da teoria da barreira.
Na percepção da dor existem dois tipos de fibras nervosas e uma parte da medula
espinhal que estão intimamente envolvidas, embora o mecanismo exato ainda não foi
totalmente compreendido. Parece que, quando a pele é lesionada, as finas fibras C somente
comunicam os sinais à medula espinhal para que esta as transmita ao cérebro, enquanto que
as fibras mais grossas A-beta podem comunicar estes sinais com maior rapidez e, além disso,
são capazes de bloquear alguns sinais dolorosos transmitidos por fibras C, na própria medula
espinhal. Melzack e Wall denominaram este bloqueio de “barreira”.
Até as crianças pequenas sabem que quando se massageia a zona onde acabam de
lesionar, a dor se dissipa. A explicação científica é que as fibras A-beta são ativadas e a
transmissão de pelo menos alguns dos impulsos dolorosos fica bloqueada. Mas não é tudo: a
sensação de dor pode ser aumentada ou inibida por causa das mensagens cerebrais.
Muitos dos produtos farmacêuticos que geralmente são empregados, desde a simples
aspirina até os anestésicos, foram sendo descobertos desde o final do século XIX. A
explicação sobre a transmissão da dor, também esclareceu como se podia obter um alívio da
dor com métodos menos ortodoxos. O fato de se eliminar parcial ou totalmente o bloqueio
na medula espinhal poderá ser precisamente a forma que a acupuntura emprega para aliviar
a dor. Estimulando a zona relacionada com a parte lesionada, a transmissão dos impulsos
dolorosos é bloqueada.
O mesmo acontece com o estímulo nervoso elétrico transcutâneo, onde uma suave
corrente elétrica, conectada entre dois eletrodos, atravessa a pele. Este sistema foi inventado
pelos cientistas para simular artificialmente o alívio que ocorre ao massagear a zona
golpeada, reduzindo a dor até em 10%. Aplicar este bloqueio, por via cerebral, é a solução
teórica de métodos como a hipnose, a meditação, e outras técnicas relacionadas com a
distração e o assessoramento.
Com o passar do tempo, os investigadores foram se dando conta de que é imprescindível
diferenciar entre os tratamentos destinados às dores agudas e às crônicas. Embora a aguda é
mais intensa, muitas vezes a dor crônica é a culpada dos estados de ansiedade, depressão e
desesperação e conseqüentemente, de sentir uma maior dor.
Em 1946, o anestesista John Bonica fundou em Seattle, Washington, a primeira clínica
dedicada aos tratamentos contra a dor, incorporando vários especialistas.
Atualmente, existem numerosas clínicas deste tipo em todo o mundo, onde é aplicado
todo tipo de terapias medicinais, são exercitadas técnicas de relaxamento, são
experimentados novos regimes alimentícios, oferecidos treinamentos em atividades artísticas
e participa-se de reuniões de assessoria. Embora a redução efetiva da dor nos pacientes
consegue-se em um nível mínimo, o autocontrole que exercem sobre suas próprias vidas, os
capacita para enfrentar as suas dores com maior totalidade e integridade.
Porém, além destes trabalhos científicos, a concepção da dor foi experimentando
mudanças importantes ao longo dos últimos cem anos. A popularização dos anestésicos
produziu uma demanda cada vez maior para aliviar todo tipo de dores. Mas, ao mesmo
tempo, o ambiente de proteção contra a dor que os progressos médicos trouxeram, criou
mulheres e homens cada vez mais sensíveis a qualquer sofrimento físico ou psicolóqko. Como
diriam muitos darwinistas, o ser humano se tornou uma espécie cada vez mais fraca, ao viver
em um mundo asséptico e protegido e numa sociedade que tenta evitar todo tipo de dores.
Hoje é considerado um dever evitar o maior sofrimento possivel aos pacientes, de qualquer
maneira.
A única mudança significativa nas últimas décadas é o valor cada vez maior que foi dado à
mente como centro de controle das dores. Sob a influência da medicina oriental, terapias
como a digitopuntura, a acupuntura, a ioga e a meditação estão alcançando cada vez mais

42
reconhecimento em centros de saúde tradicionais.
Outro fato próprio da época que tem influído para mudar a valorização da dor e do
sofrimento humano é o predomínio das imagens. As pessoas comuns são bombardeadas
cada dia por imagens de fatos e experiências dolorosas. Quase sem dar-se conta, vão se
tornando indiferentes e a dor se torna um aspecto alheio e distante, sem criar um
compromisso com o sofrimento dos outros. O século XX foi uma época especialmente
violenta, marcada pelo holocausto judeu, as violentas ditaduras latino-americanas, duas
guerras mundiais e inúmeros conflitos regionais. Por outro lado, foram fabricadas armas de
destruição cada vez mais poderosas. A tudo isso se soma o desenvolvimento dos meios de
comunicação, que aproximaram cada vez mais os extremos do mundo e difundiram imagens
de violência que reforçam a tendência em experimentar certa indiferença diante da dor do
outro.

Mente e Corpo Diante da Dor


Recolhendo trabalhos realizados durante os séculos anteriores, a época atual tem visto um
desenvolvimento cada vez maior da concepções corpo-mente para enfrentar a dor.
Desde muito tempo foi constatado que as emoções violentas têm uma forte influência no
plano físico: modificação do ritmo cardíaco e da circulação, palidez, sensação de frio intenso,
suor e, às vezes, síncopes. Estes sintomas se desencadeiam de maneira automática e
geralmente é difícil de controla-los pela vontade. Também se tornaram um tema literário e
pictórico, além de médico, relacionados com o temor e a paixão amorosa.
Até antes do último terço do século XIX, não havia explicações para este fenômeno.
Basicamente eram sugeridas certas mudanças nos movimentos dos fluidos e nas vias
sanguíneas. O vago conceito de “secreções internas” era um preâmbulo teórico indispensável
para todo estudo experimental sobre as modificações introduzidas no corpo pelo estado
emocional, incluindo principalmente a dor.
Justo no limite entre a fisiologia experimental e a endocrinologia nascente situa-se a obra
de Walter B. Cannon, Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Rage, publicada em 1915.
Descrito como um estudo “sobre as mudanças corporais na dor, na fome, no sofrimento e na
cólera”, havia sido precedido por observações sobre os problemas digestivos que estas
emoções provocavam. Em 1911, em Os Fatores Mecânicos da Digestão, Cannon mostrava
que a cólera ou a dor interrompia a secreção dos sucos gástricos e dificultava os processos
digestivos, enquanto que a alegria ou a satisfação os favorecia. Os trabalhos de Cannon
revalorizaram as célebres experiências de Pavlov sobre os reflexos condicionados e
colocaram em evidência a similaridade de comportamento entre o homem e os animais. O
projeto de Cannon visava examinar as modificações internas que apareciam
simultaneamente e interrogar sobre sua utilidade. Tudo em um contexto que se aproximava
mais ainda da teoria darwiniana e da psicologia evolucionista, com um interesse
compartilhado por fisiologistas e psicólogos. Uma série de investigações no laboratório de
fisiologia de Harvard elucidaram muito mais sobre as mudanças físicas em relação à dor, à
fome e às emoções mais importantes.
O trabalho de Cannon significou uma mudança no status da dor desde uma simples
sensação até uma sensação acompanhada de emoção. Mas também adverte que a dor não
conduz simplesmente a um conjunto de reações para emitir secreções e provocar outros
comportamentos reflexivos. “Sem dúvida estas reações, ligadas à atividade do sistema
simpático, acompanham a dor”, destaca. “Porém, a dor não é somente este conjunto de
reações emocionais”. Cannon se opunha também a outra tradição, representada nos Estados
Unidos por W. James, que, em um artigo de 1884, identificou a emoção com sua expressão
corporal.
Ao ser colocada em evidência a importâicia das emoções na dor, as investigações se
enveredaram por um caminho novo, acentuando a complexidade dos acontecimentos que
entram em jogo na dor. Cannon foi o primeiro em esclarecer o fato de que a dor e as outras
emoções fortes estavam acompanhadas de um aumento da secreção de adrenalina, sob o
comando do sistem nervoso simpático.
Fora do terreno puramente médico, estas abordagens foram consideradas pela nova
disciplina da psicologia para estabelecer a relação entre dor e emoção, em um e em outro

43
sentido. O corpo não gerava somente reações emocionais de defesa contra a dor, também
podia acontecer que o cérebro por si só, através de reações emocionais, gerasse sensações
de dor.
O papel da mente na saúde corporal tem especial importância nas enfermidades
chamadas psicógenas: o cérebro humano é capaz de produzir dor embora não danifique os
tecidos do organismo. Em geral, a medicina tem tido problemas para tratar estas
enfermidades e prefere negá-las. Normalmente, os pacientes resistem em aceitar que são os
únicos responsáveis de sua própria dor.
Embora o conceito de dor psicogênica implique que não existe uma causa orgânica
identificável, costuma-se expressar como “uma elaboração” de uma dor efetiva por um dano
orgânico. Pode ser uma ferida que já foi curada, mas cuja dor não quer desaparecer. Já no
século XVII, Descartes, um dos primeiros a fazer uma descrição dos “membros fantasmas”,
havia assinalado que a dor não se localizava no corpo, mas sim na mente.
A idéia de uma estreita associação entre mente e corpo com respeito à dor continuou
sendo desenvolvida ao longo do século até chegar à situação atual, onde as terapias, corpo-
mente alcançaram um importante papel em países como os Estados Unidos ou a Inglaterra.

Arte e Dor
Desde a Grécia clássica, arte e dor estiveram estreitamente relacionadas. Mas a partir da
influência do movimento romântico do século XIX, a idéia artística sobre a dor tem mudado
radicalmente.
A dor é um dos temas mais recorrentes na história da arte. Como um meio de expressão
de beleza, vai desde Laooconte clássico - um de seus pontos mais altos - até o moderno
cinema de Quentin Tarantino. Dor e criação artística têm estado sempre unidas; no entanto,
cada obra é individual e cada uma das visões que seja apresentada é própria, de acordo com
o artista e sua época.
Na Idade Média, a dor estava única e exclusivamente guiada pela concepção cristã. As
representações de cenas dolorosas não expressavam propriamente sofrimento. Quase todas
as figuras que são vítimas de castigo, desde Cristo a São Sebastião, expressam mais paz e fé
que sofrimento. O exemplo mais claro desta concepção religiosa da dor que predominou
nesta época é a Flagelação, uma obra pintada pelo artista italiano Piero Della Francesca no
final da Idade Média.
O artista situa a dor em um rico campo de significados psicológicos e sociais. Em primeiro
lugar, os historiadores da arte se admiram do excelente manejo dos espaços arquitectônicos
que Della Francesca conseguiu. Mas ainda mais importante é a perfeita divisão da obra em
dois espaços de tempo muito distintos. Na metade direita aprecia-se um trio de figuras de
pé, que claramente são personagens do período Quattrocento italiano. À esquerda, outro
grupo de figuras rodeia Jesus, enquanto é flagelado. Pode-se ver Poncio Pilatos e a uma
misteriosa figura de turbante que o observa.
Toda a obra está cheia de mistérios, mas a historiadora norte-americana Marilyn Aronberg
Lavin parece ter encontrado uma chave para entendê-la. Aronberg identificou no grupo da
direita os retratos de duas importantes personalidades da época: Ludovico Gonzaga, um
nobre florentino, e Ottaviano Ubaldini Della Carta, um famoso astrólogo. Ambos haviam
perdido recentemente um filho e a figura jovem que se encontra entre ambos representaria
um filho idealizado, que é, em definitivo, o elemento que os une. Essa perda é também o que
ajuda a entender o significado profundo do quadro. Seu tema é a dor antiga e moderna,
visível e invisível. A presença da dor une essas duas cenas aparentemente tão distintas, no
tempo e no espaço.
No entanto, existe algo muito peculiar sobre essa cena: a ausência quase absoluta da
emoção. Os rostos parecem passivos e inexpressivos. Para entendê-la, temos que considerar
a situação paralela: a flagelação. Jesus aceita a dor que os soldados lhe infligem com uma
calma que se transforma em um modelo para os pais.
Assim, Piero DelIa Francesca tenta expressar uma visão cristã da dor. Ludovico e Ottaviano
aceitam a dolorosa perda de seu filho, imitando a lição dada por Cristo durante a Paixão.
Depois da Idade Média, o Romantismo europeu dá à dor sua própria e original expressão.
Amor, beleza, dor e sofrimento se unem numa só coisa e num só veículo de expressão. Com

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As Penas do jovem Werther começa esta corrente literária e artística, que unirá conceitos
que até então pareciam ser tão distantes.
A obra de Goethe se transformou no pimeiro grande best-seller da história e através de
toda a Europa surgiu uma verdadeira fascinação pelo herói da novela. Começaram a aparecer
imagens, jóias, porcelanas e diversos objetos com a figura ou o nome de Werther.
Esse fenômeno não somente gerou grandes ganâncias para aqueles que o promoveram,
mas também desencadeou uma mudança cultural importante no mundo ocidental. Werther
é nada menos que um Homem Novo. Sua melancolia está muito longe de assemelhar-se ao
sofrimento pintado por Brueguel ou Durero nos séculos XVI e XVII. O sofrimento do
protagonista da novela de Goethe não está em problemas físicos, como o desequilíbrio dos
humores, mas sim em seu desejo do absoluto. A dor de Werther não é corporal, e sim
espiritual. A influência romântica é, talvez, uma das causas pelas quais as dores psicológicas
foram adquirindo cada vez mais importância durante o século XIX.
Dor e crueldade
A arte dessa época também viu aparecer outro tipo de expressão de dor, uma espécie de
sofrimento que escandalizou uma sociedade ainda fortemente dominada por uma rígida
moral cristã. Muitos sentiram que as criações do Marquês de Sade, onde a dor era associada
com o prazer sexual, era um atentado contra os mais profundos valores humanos. Sua obra
pode ser vista também como uma perversão da temática romântica, ao associar melancolia
com dor e amor com o simples prazer sexual. Mas a crueldade tão exaltada por Sade
colocava-se em franca oposição com uma sociedade que colocava a crueldade por sobre os
ultrajes morais, sociaís e políticos. Apesar de tudo, a visão de Sade demonstrou ser muito
mais profética que qualquer outra criação do século XIX. A violência que impregna suas obras
poderia perfeitamente ser extraída hoje da crônica policial dos jornais: mutilações, violações
e crimes passionais são uma realidade cotidiana. No cinema ficou consolidado como um
gênero muito popular, que faz das perversões e crueldades uma fonte principal de
inspiração, com um público incondicional que desfruta de tais cenas.
O século XX, por último, parece ser um resumo de todas as diferentes concepções da dor
que existiram ao longo dos anos. Os artistas e criadores encontraram nessa sensação a fonte
de inspiração ou o tema central de muita de suas obras. Desde a Guernica de Picasso, aos
rostos sofredores de Guayasamín, passando pela violência de Francis Bacon, a dor tem
estado mais presente que nunca na pintura dos últimos cem anos. Guernica se transformou
no símbolo moderno da dor do homem ante o absurdo da violência humana, enquanto que
Francis Bacon procurou expressar através do suas pinturas a estranha dualidade que se
produz nos seres humanos entre amor e ódio, prazer e dor, beleza e feiúra, grandeza e
pequenez.
A temática mais recorrente de Bacon é a do homem gritando, e sua representação da dor
está unida a uma meditação sobre o poder e a impotência humana. O homem que grita foi
inspirado no retrato do papa Inocêncio X que Velázquez pintou em 1650, em Roma. Ao se
referir ao pintor espanhol, Bacon destaca: “Parece passear pela borda do precipício; abre-se
completamente às coisas maiores e mais profundas que um homem pode sentir”. Estas
coisas profundas, abismos ou precipícios, têm como símbolo em suas próprias imagens, uma
grande boca aberta e negra. Mas, sobretudo, seguindo Velázquez neste aspecto, Francis
Bacon procura gravar na mesma pintura as marcas da violência e da dor.
Na figura de Inocêncio X pintada por Velázquez, as pregas da vestimenta vermelha
formam um espaço tão solene como o de um templo ou de um palácio, e a cadeira do
pontífice mostra a mesma solenidade de poder que marcam os traços de seu rosto. Mas daí
por diante, o rosto do Papa, na pintura de Bacon é um salpicado de traços brancos, como que
de repente, o visível se diluísse. Essa é a chave da obra: nós, os homens, somos movidos por
uma força que ao mesmo tempo nos levanta e nos destrói. O enigma da condição humana,
como sugere a arte, é esta dualidade que o artista enfrenta ao abordar os contrários em
conjunto. A seus olhos, vida e morte são inseparáveis; a dor do homem é o reverso do que
ele é glorificado; também amor e ódio são a cara e o cunho de uma mesma moeda.
Diante do que se entende como a “realidade” dos seres e as coisas, Bacon realiza uma
experiência difícil e estranha: nega que seja de amor e ódio. Nega também que seja
inquietante e que engendre o temor. Fala, em compensação, em termos de vertigem e

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abismo.
O pintor encontra assim, na arte, a possibilidade de manter seus medos à distância. Pelo
menos se esforça: “Vocês poderiam dizer que um grito é uma imagem de horror. Com efeito,
quis pintar o grilo mais que o horror. Amo as sombras e as cores que vêm da boca e espero
que seja capaz de pintar a boca como Monet pintou um pôr do sol”.
Junto a Bacon, um dos mais interessantes exemplos desta união entre arte e dor no século
XX pode ser apreciado na obra da pintora norte-americana George O’Keefte, especialmente
sua tela Desenho No. 9. “É o desenho de uma dor de cabeça”, escreve sobre essa obra. “Era
uma dor de cabeça muito forte, numa época em que estava muito ocupada pintando todas
as noites, sentada no chão em frente à porta do armário. Bom, tenho esta dor de cabeça, por
que não fazer algo com ela? e aqui está”. Em seu caso, como no de muitos outros pintores
deste século, a dor se transforma numa fonte de arte, e através da arte pode também se
transformar em beleza, da mesma forma que Laooconte dos tempos antigos.
Além da pintura e da literatura, talvez o meio de expressão artística que mais tem
representado a dor moderna é precisamente a arte do século XX, a sétima arte. O cinema foi
fonte de todas as emoções, sentimentos e paixões humanas, sem excluir a dor. Alguns o
responsabilizam também como o principal culpado, junto à televisão, pela indiferença que
muitas pessoas sentem hoje diante do sofrimento alheio. Porém, além da discussão moral,
através do cinema os seres humanos enfrentaram como nunca a dor humana em todas suas
formas, desde a de um ferido em plena guerra até a de uma mãe que chora a perda de seu
filho. O cinema e a TV contribuíram para que os homens conheçam, ao vivo e diretamente, as
distintas expressões de dor. Embora os efeitos reais deste processo poderão ser medidos
somente a longo prazo, já se pode apreciar o sentimento de imanência com relação à dor
que existe na atualidade, através de filmes como “Tempos Violentos” e outras obras de
Quentin Tarantino, onde a violência e a dor dos demais passa a ser algo marginal, irrelevante,
uma dor superficial e somente aparente, como se a realidade não fosse mais que outro filme
de Hollywood.

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