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Desengajamento Moral: Por que Bons

Soldados Cometem Más Ações?


Christopher M. Barnes, Ph.D., e
Keith Leavitt, Ph.D.

Não há nenhum preceito moral que não tenha O desengajamento moral envolve evitar a
algo de inconveniente. aplicação de um marco ético em determinada
——Denis Diderot situação pela utilização de quatro técnicas

C
de racionalização distintas. Ao remover os
OM BASE NA intuição, nas experiências padrões de comportamento ético aos quais
vividas e nas reações a elas e ao contato geralmente se atêm, os militares se permitem
com padrões adotados por outros, as praticar atos antiéticos e desumanos que, em
pessoas desenvolvem um conjunto de princípios outras circunstâncias, descreveriam como
que aplicam às próprias ações. Para os soldados, imperdoáveis. Como funciona esse processo?
o Exército desempenha um papel importante E, de modo mais prático, como podemos
no desenvolvimento desses padrões. Líderes, reconhecê-lo e corrigi-lo em soldados sob nosso
instrutores e educadores ajudam a incutir valores comando e em nós mesmos?
institucionais nos soldados. Mais ainda, o Como observado por Bandura e seus colegas,
Exército lhes fornece códigos explícitos, como a em 1996, os marcos éticos podem ser ignorados
Convenção de Genebra, a Lei da Guerra Terrestre quando:
(Manual de Campanha 27-10 [FM 27-10]) e o ●●buscamos reinterpretar nossa conduta;
Credo do Soldado dos EUA. ●●ofuscamos a responsabilidade pessoal;
Por meio dessas e de outras fontes, alheias ●●deturpamos ou desconsideramos as
ao Exército, a maioria dos soldados desenvolve consequências danosas de nossas próprias
um rigoroso código de ética, que eles usam para ações; e
orientar e guiar seu comportamento. Os valores ●●vilipendiamos as vítimas de maus-tratos ao
pessoais fornecem uma poderosa função de culpá-las e desmerecê-las1.
autorregulação. O cumprimento desse código Utilizamos pesquisas atuais para descrever
nos proporciona um sentido de satisfação e esse processo, analisamos um exemplo recente
de autoestima, e a violação de nossos padrões e sensacionalista (tanto quanto controverso)
faz com que nos sintamos culpados. Mesmo e apresentamos sugestões de como evitar o
em situações em que fazer a coisa errada traz desengajamento moral.
benefícios e fazer a coisa certa acarreta perigo,
muitos militares empregam seu enquadramento Como funciona o
moral e optam por comportamentos éticos. Desengajamento Moral?
Contudo, mesmo indivíduos possuidores de O desengajamento moral ocorre por meio
elevados padrões morais podem, eventualmente, de diferentes processos psicológicos de
se desviar de seus marcos éticos. reestruturação da situação.

Christopher M. Barnes é professor adjunto de Keith Leavitt é professor adjunto no Centro de Excelência
Desenvolvimento de Caráter e Pesquisa no Centro de do Exército para Ética Militar Profissional. Possui o
Excelência do Exército para Ética Militar Profissional, na título de Doutorado em Comportamento Organizacional
Academia Militar dos EUA em West Point. Possui o título (Gerenciamento) pela Foster School of Business na
de Doutorado em Comportamento Organizacional pela University of Washington, títulos de Mestrado em
Michigan State University. Ele também serviu quatro anos Gerenciamento e Psicologia Social, e é membro de pesquisa
como oficial da ativa da Força Aérea dos EUA como cientista do Project Implicit.
comportamental no Laboratório de Pesquisa da USAF.

36 Novembro-Dezembro 2010  MILITARY REVIEW


DESENGAJAMENTO MORAL

Foto cortesia de Scott Andrew Ewing

Soldados norte-americanos revistam uma casa iraquiana em Tal Afar, 21 Set 06.

Reinterpretando a conduta por meio com a Estrela de Bronze por ações meritórias
da reavaliação. Um caminho que leva ao anteriores, West conseguiu violar padrões éticos
desengajamento moral é a distorção da situação. que em outras circunstâncias valorizaria (como
Em vez de se concentrarem no quão antiético é seu as Convenções de Genebra). Engajou-se de tal
comportamento, os soldados reinterpretam-no forma em seu desvio moral que, até a publicação
como sendo conveniente para que se atinja um deste artigo, continuava a defender o seu ato
objetivo ético superior. O ex-Tenente-Coronel com determinação, embora tenha claramente
Allen West foi afastado do serviço ativo violado códigos de conduta éticos explícitos e
após envolver-se em um escândalo em que, não haja evidência alguma de que suas ações
supostamente, violou os códigos de conduta tenham contribuído para proteger a vida de seus
éticos, ao descarregar sua arma perto da cabeça comandados.
de um detido iraquiano. West havia recebido Reinterpretando a conduta com o emprego
informações de que alguém, na área, planejava de eufemismos. Certas palavras — como
tirar sua vida e acreditava que o detido tinha tortura e execução — são bandeiras vermelhas
informações relevantes. Em vez de pensar em que nos lembram automaticamente do uso de
como o ato de disparar sua arma prejudicaria marcos e padrões éticos. Há outras palavras,
a reputação das Forças Armadas dos EUA, em no entanto, que talvez não tenham o mesmo
uma situação em que a cooperação era essencial, efeito, ainda que tenham o mesmo significado.
West se ateve à idéia de que, com a obtenção Alguns comportamentos violam claramente
de informações, ajudaria a evitar um atentado as regras de engajamento, mas certos oficiais
contra a sua vida. West raciocinou que um ataque podem aplicar eufemismos a eles e chamá-los
contra ele poderia pôr em risco a vida daqueles de “técnicas avançadas de interrogatório” ou
que estavam à sua volta e, dessa forma, obter de “neutralização de ameaças”. A maioria das
informações do detido também era uma maneira pessoas se refere a um indivíduo capturado como
de proteger seus homens. Mesmo sendo um um prisioneiro, mas outros, com frequência,
oficial do Exército, respeitado e condecorado usam a palavra “detento”. Soldados podem

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evitar o processamento ético que, em outras isso é dividindo uma tarefa antiética em etapas que
circunstâncias, ocorreria, ao se valerem de sejam relativamente inofensivas, designando cada
eufemismos. uma delas a pessoas diferentes. Um bom exemplo
é o pelotão de fuzilamento. Muitos se sentem mal
por terem de executar alguém (mesmo quando a
…certos oficiais podem aplicar execução é amparada por lei). Portanto, ter um
grupo de pessoas disparando simultaneamente
eufemismos a eles e chamá- dispersará a responsabilidade. Nenhum dos
atiradores conhece a letalidade de seu próprio
los de “técnicas avançadas disparo (ou se sua arma continha munição real)
de interrogatório” ou de e, portanto, ninguém no pelotão de fuzilamento
acreditará ser o responsável por aquela morte.
“neutralização de ameaças”. Distorção. Desconsiderar ou distorcer as
consequências de uma ação podem resultar em
desengajamento moral. As pessoas se lembram
Reinterpretando a conduta por meio dos benefícios de suas ações, mas frequentemente
de comparação vantajosa. Muitas vezes se esquecem dos resultados danosos. Elas
determinamos o nível moral de um comportamento encontram meios de evitar tomar conhecimento
comparando-o a outro. Soldados fazem do mal causado por seus atos. E podem até tentar
comparações vantajosas ao confrontar seu desacreditar qualquer fonte de informações que
comportamento com outros, ainda piores. Quanto sugira que suas ações são (ou podem ser) danosas.
pior o comportamento de comparação, menos Ao não reconhecerem os resultados negativos
danoso o comportamento em questão parece de uma ação, elas evitam o processo normal de
ser. No programa de televisão The Sopranos, o autoavaliação ética.
protagonista Tony Soprano alegou que suas ações Depreciação. Como um soldado vê as vítimas
como líder do crime organizado não eram “tão de suas ações é parte importante no processo de
más quanto [as] dos estupradores e assassinos em desengajamento moral. A desumanização envolve
série”. Soldados podem fazer o mesmo. Alguns desconsiderar quaisquer qualidades humanas
consideram insignificante quaisquer danos em um indivíduo ou em um grupo de pessoas,
infligidos por soldados norte-americanos aos tratando-os como objetos. As considerações éticas
iraquianos, quando comparados aos prolongados passam a ser irrelevantes quando o alvo potencial
ataques químicos de Saddam Hussein contra os de suas ações deixa de ser humano, tornando-se
curdos. um simples objeto. Culpar o indivíduo que sofre
Esquivando-se pela transferência de as ações é um processo semelhante. Culpando-o,
responsabilidade. Quando um soldado acredita os soldados se colocam na condição de vítimas,
que outros determinam suas ações, ele passa a compelidos àquele comportamento por suas
sentir-se menos responsável pelas consequências provocações. As pessoas que administravam a
éticas. A defesa usada em Nuremberg constitui prisão de Abu Ghraib, na época dos abusos contra
um exemplo particularmente famoso disso. prisioneiros, talvez acreditassem que todos eram
Quando processados por crimes de guerra, muitos terroristas, que tinham feito coisas horríveis e que
ex-soldados nazistas alegaram que “apenas mereciam retaliação pelos guardas.
seguiram ordens”. Às vezes, soldados podem
considerar ser muito difícil lidar com pressões O que Acontece Quando
sociais e de comando e passar a acreditar que não as Pessoas se Desengajam
são responsáveis pelos resultados. Moralmente?
Esquivando-se pela difusão da O desengajamento moral é um processo que
responsabilidade. A difusão de responsabilidade pode ocorrer praticamente com qualquer um e
é um fenômeno semelhante. Se várias pessoas que tem consequências importantes. Em estudos
compartilham a responsabilidade de um ato, com alunos de escolas primárias e secundárias,
ninguém se sentirá responsável. Um modo de fazer levados a efeito por Albert Bandura e alguns de

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DESENGAJAMENTO MORAL

seus colegas, foi constatado que o desengajamento anteriores, quando certas normas de procedimentos
moral levou a mentiras, a atos de agressão verbal levaram à libertação de prisioneiros perigosos, os
e física, roubos, “cola”, depredação material, sargentos e outros nove soldados de sua unidade
menos ajuda mútua e menor sentimento de levaram os detentos a um local isolado, ao lado
culpa. Em outra pesquisa, com estudantes de um canal, dispararam contra a nuca dos quatro
universitários, o desengajamento moral levou a e descartaram os corpos no canal, determinando
práticas desonestas em negociações2. Em dois que seus subordinados jurassem guardar segredo.
estudos que examinaram adultos, os desengajados Gravações do depoimento dos três sargentos
moralmente tendiam a buscar penas mais severas fornecem pistas quanto aos processos de
para criminosos e tinham menos reações negativas desengajamento moral que permitiram que
às reportagens de soldados norte-americanos aqueles militares executassem, sumariamente,
batendo em prisioneiros iraquianos3. quatro prisioneiros que estavam sob sua custódia.
Uma declaração do Sargento Michael Leahy
Desengajamento Moral no Canal mostra o uso de uma tática de difusão: “Tipo,
Em março de 2007, três sargentos da Companhia ergui meu braço à direita, e disparei de novo.
Alpha, do 1o Batalhão do 18o Regimento de Estou quase certo de que não atingi ninguém, mas
Infantaria, capturaram quatro iraquianos, após não posso afirmar porque não tenho certeza. Eu
um tiroteio, e descobriram um pequeno caché de nem estava olhando quando disparei a segunda
armas. Lembrando de experiências frustrantes vez. Meu braço direito simplesmente se ergueu.”
Embora, mais tarde, Leahy
tenha admitido ter disparado
contra o homem, ele foi
cauteloso ao declarar que seu
disparo talvez não tivesse sido
o fatal. Em uma carta escrita
na prisão, seu cúmplice, o
Sargento John Hatley (que
estava no comando, naquele
dia) defendeu as ações
por meio da transferência
de responsabilidade,
culpando os encarregados
pelo estabelecimento dos
requisitos necessários para
deter prisioneiros: “As normas
de procedimento estabelecidas
para deter e processar o
inimigo têm [sic] diversas
falhas. Além disso, o inimigo
está bem ciente dessas falhas e
as explora constantentemente
para facilitar sua libertação.”
Departamento de Defesa dos EUA

Claro, indivíduos que estão


em julgamento, ou na prisão,
são motivados a reestruturar
as normas de procedimento
em seu próprio benefício, mas
o que foi mais notável (e uma
Steven D. Green, disparando em uma fechadura de uma casa abandonada em Dez prática mais perigosa) foi o
2005. aparente desejo do público em

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●●Transferência de responsabilidade (i.e.
“podem agradecer a Bush por isso”)4 .
O contraste gritante no modo pelo qual
aplicamos nossos padrões morais a outros, quando
em comparação com nós mesmos, é óbvio. Em
outras palavras, nós (como nação) muitas vezes
nos desengajamos moralmente, na tentativa de
justificar o comportamento daqueles que atuam
em nosso nome.

Departamento de Defesa dos EUA


Estratégias para nos Mantermos
Moralmente Íntegros
Existem formas para que possamos monitorar
os tipos de autoengano envolvidos no processo
de desengajamento moral.
Monitorando o desdém. Um antecedente
Corpos não identificados perto de uma casa incendiada, My
de desengajamento moral é bem evidente nos
Lai, no Vietnã, 16 Mar 68. assassinatos ocorridos no canal — o menosprezo.
Os pesquisadores Detert, Trevino e Sweitzer
geral de se libertar de seus próprios padrões, em descobriram que os indivíduos que exibem um
prol daqueles que estavam atuando como seus elevado grau de desdém em sua personalidade
agentes. (i.e., baixa consideração pela natureza humana,
A mídia nos forneceu, recentemente, um com essa condição permanecendo estável
incidente análogo na forma de um videoteipe através do tempo) têm maior probabilidade
de soldados cingaleses capturando e executando de se desengajarem moralmente. Indivíduos
integrantes dos Tigres do Tamil. Embora o com essa tendência, consequentemente, são
Governo do Sri Lanka negue a autenticidade do mais propensos a tomar decisões antiéticas. No
videoteipe e a veracidade das alegações, pode-se entanto, o menosprezo também pode aumentar
imaginar que as justificativas individuais dos ao longo do tempo. Líderes, especialmente os
soldados sejam bem parecidas com aquelas que se encontram no teatro de operações, devem
dos sargentos no canal. Mais significativa, monitorar o moral de seus soldados (o moral
porém, é a diferença entre a reação dos públicos é um indicador para a inclinação a desvios
norte-americano e cingalês acerca dos dois de conduta). Embora as frustrações, a fadiga
incidentes. Uma busca na internet, sobre as e a exaustão emocional sejam consequências
reações ao incidente no Sri Lanka, mostra o uso de desdobramentos longos e repetitivos, uma
de expressões como “atrocidades”, “crimes de contínua e crescente atitude de desdém é um
guerra” e “assassinato”. Mas os comentários sobre sinal de alerta, indicando que um soldado talvez
os assassinatos no canal, perpetrados por soldados necessite de maior orientação ou supervisão em
norte-americanos, produzem exemplos de: situações eticamente desafiadoras.
●●Depreciação das vítimas (i.e. “são, todos, Aumentando a responsabilidade. Outra forma
integrantes da base da escala evolutiva”; “vocês de reduzir o desengajamento moral é aumentar
todos estão sentindo pena das mesmas criaturas a consciência sobre as responsabilidades,
incivilizadas que seriam capazes de matá-los em seja formalmente (dentro dos sistemas) seja
um piscar de olhos”). informalmente (por meio de alertas transmitidos
●●Distorção, ao ignorar o dano causado (i.e. pelos líderes e outros integrantes da unidade). Da
“fizeram o trabalho para o qual foram enviados. mesma forma que a dispersão de responsabilidades
Um pouco tarde… mas antes tarde do que nunca”). pode levar ao desengajamento moral,
●●Reinterpretação da conduta por meio de responsabilizar indivíduos diretamente por suas
comparação vantajosa (i.e. “É a guerra… Eles ações, reduz a probabilidade de comportamento
decepam nossas cabeças e nos arrastam pelas ruas”). antiético. Essa é a razão pela qual comerciantes

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DESENGAJAMENTO MORAL

varejistas instalam espelhos perto de itens caros: a difícil desengajar-se moralmente. Da mesma forma,
maioria das pessoas é incapaz de roubar enquanto deve-se evitar o uso de linguagem que desumanize
literalmente olha a si próprio nos olhos. pessoas do outro lado do conflito. Ao aceitar que as
Criando um centro de controle interno. populações envolvidas em nossos conflitos atuais
Detert, Trevino e Sweitzer descobriram que são pessoas com motivações complexas (e não
um centro de controle externo (uma crença simplesmente monstros terríveis, que mereçem
dominante de que os eventos da vida de uma retaliação), ficaremos menos propensos a nos
pessoa são o resultado de processos aleatórios, e desengajarmos moralmente.
não de suas próprias ações) pode prever o aumento
de desvios de conduta. Em outras palavras, Conclusão
indivíduos que não acreditam que controlam É claro que haverá ocasiões em que nossos
resultados significativos para os demais estão soldados terão de engajar-se em comportamentos
menos sujeitos a manter seu comportamento em destinados a causar danos ao inimigo. Essa é a
conformidade com seus próprios padrões morais. natureza da guerra. No entanto, as tropas não
Paradoxalmente, muitas das características de devem ater-se indiscriminadamente a tais práticas.
nossas operações no Iraque e no Afeganistão, Antes, elas devem comparar o comportamento
incluindo longos períodos de silêncio seguidos por contemplado em marcos morais, na esperança de
ataques-surpresa, objetivos em constante mutação evitar mais incidentes como os assassinatos no
e desdobramentos repetitivos, podem levar os canal, em Bagdá. De fato, uma parte importante
soldados a adotarem um centro de controle menos da instrução do Exército busca estabelecer marcos
interno – e mais baseado no acaso. morais para esse mesmo fim.
Concentrar-se nos benefícios e nos prejuízos Essa recente pesquisa, resumida acima,
das ações presentes. Como mencionado, uma evidencia quando nossos soldados terão mais
forma de se desengajar moralmente é reavaliar propensão de se desviar moralmente e causar
a ação como estando a serviço de um princípio incidentes que sejam prejudiciais, não apenas
mais elevado — como quando West redefiniu às vítimas, mas também às próprias missões em
os maus-tratos dos detentos de forma ostensiva que nossos soldados trabalham arduamente. As
para proteger suas tropas. Em discussões e estratégias que recomendamos são:
processos decisórios, combatentes costumam ●●monitorar o desdém;
se manter moralmente íntegros quando têm a ●●aumentar a responsabilidade;
visão global das decisões que estão tomando. Ao ●●aumentar o locus de controle interno;
serem compelidos a ver os danos causados por ●●concentrar-se tanto nos danos quanto nos
suas ações, por mais repulsivos e dolorosos que benefícios de uma dada linha de ação;
sejam, serão menos propensos a desengajar-se ●●evitar desumanizar os nossos oponentes no
moralmente. Não devemos comparar os danos de conflito; e
nossa linha de ação a danos prototípicos extremos, ●●usar uma linguagem transparente e não
como os de campos de concentração nazistas, por eufemística.MR
exemplo. Devemos avaliar os danos de nossa ação
em comparação aos seus benefícios e aos danos e
benefícios de linhas de ação alternativas. Isso não REFERÊNCIAS
significa que soldados nunca devam fazer coisas 1. BANDURA, A.; BARBARANELLI, C.; CAPRARA, G.V.; PASTORELLI,
que causem danos, mas que devem avaliar tais C. “Mechanisms of moral disengagement in the exercise of moral agency”,
Journal of Personality and Social Psychology, 71 (1996): p. 364-74.
comportamentos por meio de seus marcos morais, 2. DETERT, J.R., TREVINO, L.K.; SWEITZER, V.L. “Moral disengagement
ao invés de se desengajarem moralmente. in ethical decision making: A study of antecedents and outcomes”, Journal of
Applied Psychology 93 (2008): (2), p. 374-91.
O poder da linguagem. A linguagem que os 3. AQUINO, K.; REED, A. II.; THAU, S.; FREEMAN, D. “A grotesque and
combatentes usam pode influenciar suas ações. dark beauty: How the self-importance of moral identity and the mechanisms of
moral disengagement influence cognitive and emotional reactions to war”, Journal
Talvez seja melhor que líderes do Exército usem of Experimental Social Psychology 43 (2007): p. 385-92.
4. Todas as citações são de “25 most liked comments” (25 comentários mais
uma linguagem menos eufemística. Ao evitar o uso preferidos) até 26 de janeiro de 1010, com respeito à reportagem “killings on
dessa linguagem, que poderia ofuscar a natureza de the canal” (assassinos no canal) no CNN.com. Muitos dos citados alegam ser
do componente ativo do Exército dos EUA ou veteranos de conflitos recentes,
certas ações, os militares descobrirão que fica mais embora o anonimato torne a verificação impossível.

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Controlar a Fera Interior: A Chave do Sucesso
nos Campos de Batalha do Século XXI
Major Douglas A. Pryer, Exército dos EUA

1º Colocado no Concurso de Artigos DePuy duas Divisões de fuzileiros motorizadas, do


seu 1º Exército de Armas Combinadas. Caso a
Sempre que um exército estiver envolvido em brigada sobrevivesse a esse ataque, enfrentaria,
uma guerra, a fera que há em cada combatente em seguida, uma Divisão de carros de combate
tentará se soltar de suas amarras e o bom oficial inimiga.
deve aprender, desde cedo, como mantê-la sob Nesse dia — que era o último dia do exercício
controle, tanto nos seus subordinados quanto —, o imponente e atlético comandante da Brigada
em si próprio. de Ferro, deu um espetáculo. Se ali estivesse
——General George C. Marshall Jr.1 o “Old Blood and Guts” (“Velho Sangue e
Coragem”), como era conhecido o General
George Patton, ficaria impressionado.
Uma Revolução em Assuntos Conforme o comandante gritava suas ordens,
Militares? os oficiais de estado-maior entravam em ação
“O que eu quero que vocês façam?!”, bradou, imediatamente, direcionando helicópteros Apache
com sua voz áspera, o comandante da brigada. do Exército e aeronaves de ataque ao solo da Força
“Eu quero que vocês os matem!” Aérea para as áreas de engajamento predefinidas.
No dia 14 Nov 97, a 3ª Brigada da 4ª Divisão Esses ataques em profundidade desgastaram
de Infantaria (a “Brigada de Ferro”) participava consideravelmente o primeiro escalão do inimigo.
de uma “Avaliação de Combate Avançada”, no Apesar disso, ele continuou a avançar, entrando no
Forte Hood, no Estado do Texas2. A finalidade alcance da artilharia amiga, onde veículos aéreos
desse exercício era validar o conceito “Força não tripulados as localizaram, permitindo que
XXI” do Exército. Por meio da simulação o grupo de artilharia da brigada desencadeasse
computacional, a Divisão testava a eficácia barragens rolantes sobre seu dispositivo. Isso
dos mais novos equipamentos digitais de ultrapassou definitivamente o que as Divisões
comunicações, aeronaves de reconhecimento e avançadas do inimigo podiam suportar, e
sistemas de combate contra uma Força blindada elas acabaram interrompendo o avanço, para
do tipo soviético. assumirem uma posição defensiva improvisada.
Imagens luminosas na gigantesca tela plana A batalha não havia terminado, porém. A
do posto de comando da brigada haviam acabado 24ª Divisão de Carros de Combate do inimigo,
de indicar que enormes Unidades do inimigo (os que ainda estava intacta, passou pelas divisões
terríveis “krasnovianos”) estavam a caminho. do primeiro escalão do inimigo e continuou a
O “2º Grupo de Exército krasnoviano” estava avançar. A partir desse ponto, o combate passou
atacando a Divisão. Dentro do setor da brigada, a ser cerrado, pertencendo mais aos estados-
o E/2 havia previsto, corretamente, que o maiores dos batalhões subordinados do que ao
primeiro escalão do ataque do inimigo incluiria estado-maior da brigada. O estado-maior da

O Major Douglas A. Pryer é o oficial de Inteligência do 14º dos Prêmios Birrer-Brookes e Arter-Darby, ambos do CGSC,
Regimento de Comunicações, estacionado no Reino Unido. É além de ter sido o primeiro colocado no Concurso de Artigos
bacharel pela Missouri State University e mestre em Estudos Douglas MacArthur sobre Liderança. Seu livro, The Fight
Militares Avançados pela Escola de Comando e Estado- for the High Ground: The U.S. Army and Interrogation
Maior do Exército dos EUA (CGSC, em inglês), no Forte during Operation Iraqi Freedom I, é o primeiro a ser
Leavenworth, Estado do Kansas. Em 2009, foi o ganhador publicado pela editora CGSC Foundation Press.

2 Maio-Junho 2011  MILITARY REVIEW


CONTROLAR A FERA

brigada pouco podia fazer além de monitorar a


batalha e aguardar o resultado. Não foi preciso
esperar muito. Em poucas horas, a Divisão de
carros de combate inimiga estava tão desgastada
que também acabou capitulando, incapaz de
prosseguir na ofensiva.
Os oficiais de estado-maior da brigada
exultaram, sorrindo e parabenizando uns aos
outros. Na verdade, algumas subunidades
das Forças amigas haviam sido subjugadas
e aniquiladas. Mesmo assim, esses oficiais
acreditavam ter provado que estavam certos.
Devido a uma consciência situacional inédita
nos anais da história, nenhuma baixa havia
sido provocada por fratricídio. O que é ainda
mais digno de nota: graças ao alcance superior
dos sistemas de combate e de reconhecimento
da brigada, eles haviam derrotado uma Força
atacante com poder de combate superior, que
teria levado à derrota qualquer outra brigada
estadunidense.
Durante o exercício, muitos dos oficiais do
estado-maior ouviram o termo “Revolução
em Assuntos Militares” e acreditaram estar
na vanguarda dessa revolução. O combate,
pensavam, havia mudado para sempre. Estava
prestes a chegar o dia em que o Exército dos “Les Huns à la bataille de Chalons”, Alphonse de Neuville
EUA seria capaz de derrotar facilmente qualquer (1836-1885).
inimigo que ousasse se opor a ele.
Logicamente, isso não passou de pura fantasia. recolher, Saville ordenou que os soldados o
seguissem até uma ponte sobre a Represa de
Uma Dose de Realidade Tharthar e que jogassem os dois primos no
Seis anos depois, em 03 Jan 04, um pelotão Rio Tigre 8. Ele não pretendia feri-los, mas
da mesma brigada deteve dois moradores em apenas assustá-los, segundo declarou em seus
um posto de controle em Samarra, no Iraque, depoimentos mais tarde9.
por volta das 23h, dentro do período do toque de O que aconteceu exatamente quando os
recolher3. No posto de controle, os soldados da dois iraquianos foram jogados no rio nunca foi
Companhia Alfa do 1º Batalhão, do 8º Regimento provado no tribunal militar. Marwan alegou aos
de Infantaria, revistaram cuidadosamente o investigadores, posteriormente, que ele havia
veículo 4. Convencidos de que os ocupantes escutado os soldados às gargalhadas enquanto
não eram insurgentes, os soldados disseram ele lutava, em vão, para impedir que seu primo
aos primos Marwan e Zaydoon Fadhil que eles de 19 anos se afogasse na forte correnteza10.
podiam seguir em frente5. Outros familiares dos jovens também alegaram
O Primeiro-Tenente Jack Saville, comandante que Zaydoon havia morrido naquele episódio,
do pelotão, estava sentado no interior de uma afirmando que seu cadáver havia sido retirado de
viatura de combate Bradley ali perto6. Quando um canal rio abaixo, 13 dias depois11. Entretanto,
os dois primos retomaram seu deslocamento, os soldados que estavam no local contaram uma
ele ordenou via rádio que o pelotão voltasse a história diferente, jurando ter visto — com óculos
parar o veículo7. Determinado a ensinar uma de visão noturna — os dois iraquianos alcançarem
lição aos dois, por terem violado o toque de a margem, sãos e salvos12. Outros oficiais do

MILITARY REVIEW  Maio-Junho 2011 3


batalhão também afirmaram, em depoimento, que inadequada a qualquer oficial norte-americano.
informantes lhes haviam dito que Zaydoon ainda O fato de ele ser oriundo da Academia Militar
estava vivo13. Acreditavam que sua morte havia de West Point, uma entidade respeitadíssima por
sido encenada pelos insurgentes, em uma tentativa sua ênfase na integridade dos oficiais, torna sua
de denegrir as Forças da coalizão14. decisão ainda mais surpreendente. “O cadete
Independentemente de Zaydoon ter morrido não irá mentir, trapacear, roubar ou aceitar que
ou não, Saville demonstrou péssima capacidade outros o façam” é o famoso código de honra da
de julgamento. Como violadores do toque de Academia, em West Point.
recolher, apenas, os dois primos iraquianos tinham O incidente teve repercussão internacional18. A
direito às proteções das Convenções de Genebra, cobertura dada pela imprensa revelou uma imagem
sem dúvida alguma15. Além disso, Saville foi nada lisonjeira das táticas usadas pelo batalhão.
imprudente e colocou a si e a seus homens sob o Os jornalistas relataram que a Unidade havia
risco de serem acusados de homicídio culposo por invadido casas, arrombado portas, humilhado os
negligência. Mesmo que não seja o caso, Zaydoon ocupantes do sexo masculino ao agredi-los na
poderia ter se afogado, considerando a velocidade frente de suas famílias, conduzido interrogatórios
da correnteza e a profundidade da represa em violentos no local de captura, detido grandes
alguns pontos16. Com certeza, para ensinar aos grupos de iraquianos indiscriminadamente,
dois infratores primários a importância de se exagerado na execução de fogos de contrabateria
respeitar o toque de recolher, teria sido suficiente e recusado tratamento médico aos insurgentes
detê-los, por toda a noite. feridos19.
O que também está claro é que o discernimento Essa imagem negativa pode ter sido exagerada,
ético do Tenente-Coronel Nathan Sassaman, até certo ponto. Mesmo assim, ela sugere
comandante do batalhão ao qual pertenciam esses que havia graves problemas arraigados nessa
soldados, era tão distorcido quanto o de seus Unidade, tanto com relação a táticas agressivas e
subordinados. Ao ser informado da sindicância contraproducentes, quanto com relação a decisões
que estava sendo conduzida pela 3ª Brigada ruins do ponto de vista ético. Em virtude desse
sobre o incidente, Sassaman tentou encobri-lo, problema subjacente, mesmo que a morte de
ordenando que seus subordinados falassem tudo Zaydoon tenha sido encenada, o escândalo que
para o sindicante, exceto “sobre a água”17. Sua se seguiu prejudicou muito a credibilidade da
decisão de mentir e de ordenar que seus soldados coalizão, a tal ponto que é possível que tenha
também o fizessem foi incrivelmente ruim, superado até mesmo as expectativas mais radicais
dos insurgentes, em Samarra.
A Brigada de Ferro acabou
aprendendo, no Iraque, que
o sucesso duradouro tinha
pouco a ver com tecnologias
de informação caras, menos
ainda com o conhecimento da
Departamento de Defesa, Jim Garamone

localização exata de Unidades


amigas e absolutamente nada com
a capacidade de detectar grandes
formações de carros de combate
do outro lado do planeta. Em
vez disso, teria de repensar sua
organização e suas táticas, para
obter um êxito duradouro.
O Ten Brig Ar Richard B. Myers (centro), da Força Aérea dos EUA, assiste ao O que é ainda mais importante:
briefing do Cel Frederick Rudesheim (à direita) e do Ten Cel Nate Sassaman, a Brigada de Ferro precisaria
ambos do Exército dos EUA, no quartel-general do 1º Batalhão da 8ª
Divisão de Infantaria, em Balad, no Iraque, em 2004. Atrás de Myers está o repensar quanta ênfase deveria
comandante da 4ª Divisão de Infantaria, Gen Brig Ray Odierno. colocar na conduta correta.

4 Maio-Junho 2011  MILITARY REVIEW


CONTROLAR A FERA

Biblioteca do Congresso, LC-USZ62-128831

George Washington e outros oficiais do Exército Continental são recebidos por uma multidão exultante em Nova York, em
25 de novembro de 1783. O Exército Continental não só havia vencido a guerra, como também havia provado que poderia
ganhá-la de modo compatível com os ideais de liberdade e direitos humanos do Iluminismo.

A Ética e a Era da Informação na verdade, batalhões e companhias perderam


A Brigada de Ferro da 4ª Divisão de Infantaria algumas das batalhas travadas nesse conflito,
não foi a única a enfrentar dificuldades para se essa máxima não deixa de ser um exagero 21.
adaptar ao combate no século XXI. A história Não é, no entanto, um grande exagero. Além do
dessa brigada é também a história do Exército mais, chega quase a descrever a nossa situação
dos EUA. Certa feita, Donald Rumsfeld soltou frequentemente perigosa em nossos conflitos
sua famosa máxima: “Você vai à guerra com militares mais recentes.
o exército que tem... e não com o exército que No Iraque e no Afeganistão, mais que no
você gostaria de ter um dia”20. Rumsfeld teria Vietnã, a força das armas não derrotou o
demonstrado maior honestidade intelectual se Exército dos EUA. Tivemos de ceder terreno
tivesse dito que, às vezes, ao “escolher” uma várias vezes e — é verdade — perdemos alguns
guerra, pode ser que você acabe com outra, confrontos no escalão pelotão. Também houve
diferente da que pensava ter escolhido ou da que alguns enfrentamentos no escalão companhia
gostaria de ter. que vencemos por pouco. Não obstante, nem os
Nós, sem dúvida, não obtivemos as guerras insurgentes iraquianos nem o Talibã puderam
que esperávamos no Iraque e no Afeganistão. Em manter terreno algum que o nosso Exército
retrospecto, o que talvez seja mais surpreendente tenha decidido conquistar. Nossa avassaladora
sobre o que Clausewitz teria denominado a vantagem em poder de combate pouco importou,
“natureza” de cada uma dessas guerras é que porém. Apesar dela, conseguimos sofrer derrotas
elas nos pegaram completamente de surpresa. Se tão terríveis nos dois países que quase “perdemos
tivéssemos “lido as folhas de chá” corretamente, a guerra”, como aconteceu no Vietnã — o que
teríamos visto que a Guerra do Vietnã, e não a ainda pode vir a acontecer.
Guerra do Golfo, era o verdadeiro prenúncio do Graças aos computadores pessoais, à internet,
que estava por vir. aos telefones celulares, às câmeras digitais e a uma
Atualmente, a convicção geral é que o nosso série de outros aparelhos de comunicações de alta
país perdeu a Guerra do Vietnã, sem que o nosso velocidade, o mundo consegue obter informações
Exército tenha perdido uma só batalha. Como, sobre a má conduta de soldados estadunidenses de

MILITARY REVIEW  Maio-Junho 2011 5


AudeVivere, fotógrafo e proprietário desta foto, não endossa este artigo.

Dezenas de milhares de pessoas participaram de um protesto contra a guerra no Iraque no dia 27 Jan 07, em Washington,
D.C. Os organizadores, da entidade United for Peace and Justice, pretendiam incitar o Congresso democrata recém-eleito
a pôr fim à guerra. Condições políticas favoráveis no Iraque (especialmente o “Despertar Sunita”), apoiadas por uma
escalada de tropas e por táticas mais efetivas de contrainsurgência, impediram uma retirada precipitada.

modo muito mais rápido, completo e impactante, infligimos a nós mesmos, com nossas ações
em comparação ao que era possível, no passado. antiéticas. Portanto, para entendermos o que é
Os relatos sobre tais condutas inspiram os preciso para alcançarmos o êxito, restringirei
combatentes inimigos, servem como incentivo minha análise ao Exército dos EUA nos teatros
para seus esforços de recrutamento, colocam de operações do Afeganistão e do Iraque, no que
as populações locais contra nós, diminuem o resta deste artigo. Examinarei nossas próprias
nosso apoio interno aos conflitos no exterior e fileiras, onde um inimigo muito mais perigoso
prejudicam o relacionamento do nosso país com se esconde. Não deve ser difícil alcançar essa
os aliados. vitória interior, se realmente nos esforçarmos.
Incidentes especialmente atrozes recebem Afinal, quando estamos em nossa melhor forma,
tanta cobertura negativa que acabam adquirindo a somos um Exército alicerçado em princípios
mesma infâmia antes reservada apenas às grandes éticos.
derrotas em campanhas históricas. Contudo,
em vez de reveses no Passo de Kasserine ou Quem Somos, em Nossa Melhor
na Floresta de Hurtgen, o público fala hoje de Forma
nomes como Guantánamo, Abu Ghraib, Bagram, As derrotas morais que temos sofrido na Guerra
Samarra, Mahmudiyah ou Kunduz22. Contra o Terrorismo são terrivelmente irônicas,
Essas derrotas não nos foram trazidas considerando a nobre história do Exército dos
pelas mãos do inimigo. Infelizmente, nós as EUA.

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CONTROLAR A FERA

Nenhum exército jamais apresentou maior o Exército deveria lidar com os combatentes
ameaça à nossa existência que o poderoso irregulares confederados. Em uma carta a um
Exército britânico, no nascimento de nossa nação. acadêmico, desabafou: “As autoridades rebeldes
Não obstante, durante a Guerra Revolucionária, alegam o direito de enviar homens, vestidos como
os líderes do Exército Continental e do Congresso cidadãos pacíficos, para armar ciladas e atacar
estavam determinados não só a ganhá-la, como nossas tropas, queimar pontes e casas, destruir
também a vencer de um modo que fosse propriedades e matar pessoas dentro de nossas
compatível com seus princípios morais e sua linhas”25.
crença fundamental nos direitos humanos 23. O acadêmico era Francis Lieber, nascido
O General George Washington estabeleceu na Prússia e veterano de Waterloo, que agora
condições para isso por meio do exemplo pessoal lecionava Ciência Política em Columbia College,
e de ordens militares. Em uma ordem por escrito, em Nova York26. Lieber aceitou o desafio de
por exemplo, determinou que os 211 prisioneiros Halleck de produzir um código que regulamentasse
britânicos fossem tratados “com humanidade” a conduta de guerra pelo Exército da União. Em
e que ninguém lhes desse “razão alguma para abril de 1863, depois de ter sido revisado por um
reclamar que nós estejamos copiando o exemplo comitê de generais, o Presidente Abraham Lincoln
brutal do Exército britânico no tratamento aprovou o “Código Lieber”. O documento foi
dado aos nossos infelizes irmãos” 24 . Em finalmente publicado como a “Ordem Geral 100”,
consequência, o Exército Continental portou-se em maio de 1863.
com humanidade incomum para a época. Durante Lieber esperava, sobretudo, que seu código
os mais de dois séculos que se passaram desde orientasse o Exército da União a exercer
o seu nascimento, nosso Exército conduziu a comedimento, com sabedoria e compaixão, no
maioria de suas campanhas dentro dessa tradição campo de batalha27. Em consequência, o Código
de humanidade. Lieber continha uma longa relação de regras,
Entretanto, ele também contém uma tradição destinadas a garantir que as tropas da União
ética menos dominante. Dentro dessa outra tratassem humanamente tanto os não combatentes
tradição, o imaginado bem maior se sobrepõe quanto os prisioneiros de guerra. O Código Lieber
aos direitos do indivíduo. Em particular, essa proibia terminantemente certas táticas no campo
perspectiva sustenta que o fim justifica os meios, de batalha, como a tortura, o uso de venenos e a
quando esse fim é obter a vitória ou salvar vidas recusa de clemência ou tratamento misericordioso
de estadunidenses. Com frequência (mas nem a soldados que se rendessem28.
sempre), o racismo teve algo a ver com sua Décadas depois da guerra, esse código se
adoção. Considere-se, por exemplo, o contraste tornaria a fonte principal para os formuladores
entre o comedimento do Exército Continental ao das Convenções de Haia de 1899 e 1907 29.
combater o Exército britânico com o tratamento Portanto, os soldados estadunidenses de hoje
por ele dispensado às tribos iroquesas. Vale podem afirmar, com razão e com orgulho, que seu
lembrar, também, a forma por vezes bárbara grande Exército não só foi o primeiro a codificar
como tratamos os filipinos durante a Guerra das a Lei da Guerra, como também ajudou a definir
Filipinas, os japoneses durante a Segunda Guerra a forma final dada a essa lei, mediante o tratado
Mundial e os sudeste-asiáticos durante a Guerra internacional.
do Vietnã. Entretanto, sob a óbvia corrente de princípios
Uma notável diretriz do Exército não só humanitários do Código Lieber, havia uma forte
englobou essas duas tradições, como também contracorrente baseada na ideia de que os “fins
refletiu sua relativa ordem de precedência. justificam os meios”. Em vários trechos, o Código
Em julho de 1862, o General Henry Halleck Lieber conferiu aos comandantes a opção de
foi nomeado Comandante das Forças da União. violar a regra em caso de “necessidade militar”.
Ao longo daquele terrível primeiro verão da “A pessoa, propriedade e honra” dos cidadãos
Guerra Civil, a frustração de Halleck em relação desarmados deveriam ser poupadas, mas apenas
aos insurgentes foi aumentando. Advogado na medida em que “as exigências da guerra o
por formação, ele buscava clareza sobre como permitissem”30.

MILITARY REVIEW  Maio-Junho 2011 7


Essa tensão entre nossas tradições éticas Lewis Welshofer [graduação sem equivalente
— a dominante e a subordinada — nunca foi no Exército Brasileiro — N. do T.], têm vários
completamente resolvida. No início de 2002, por defensores35.
exemplo, o Presidente George W. Bush e Donald Indicativa da gravidade do problema, a
Rumsfeld possibilitaram o emprego de técnicas de pesquisa sobre a saúde mental dos soldados e
interrogação severas, quando assinaram diretrizes dos fuzileiros navais no Iraque, realizada pelo
que afirmavam que, em casos de “necessidade Departamento de Defesa no segundo semestre de
militar”, os agentes do Talibã e da Al Qaeda não 2006, apresentou as seguintes conclusões:
precisavam ser tratados segundo as Convenções Apenas 47% dos soldados e 38% dos
de Genebra31. fuzileiros navais concordaram que não
Graças a escândalos de tortura que se seguiram e combatentes deveriam ser tratados com
a outras histórias aterradoras sobre o uso excessivo dignidade e respeito. Mais de um terço de
de poder de combate pelas Forças estadunidenses, todos os soldados e fuzileiros navais afirmou
não surpreende que alguns observadores externos que a tortura deveria ser permitida para
acreditem que o nosso Exército tenha se tornado salvar a vida de um companheiro e menos
imoral. Esses observadores externos estão da metade disse que delataria um colega da
errados. Qualquer pessoa que tenha sido enviada equipe por comportamento antiético. Além
para a zona de combate com o Exército dos EUA disso, 10% dos soldados e fuzileiros navais
sabe que a grande maioria dos soldados se porta informaram ter maltratado não combatentes
de forma honrosa nos atuais campos de batalha. ou danificado propriedades quando isso não
Mesmo assim, é assustador pensar que esses era necessário36.
observadores quase chegaram a estar certos. O General David Petraeus, comandante das
nossas Forças Armadas no Iraque à época, ficou
Uma Ética Profissional em justificadamente assustado com os resultados
Perigo dessa pesquisa. Em resposta, escreveu uma
Em retrospecto, parece claro que a ética profis- carta aberta aos integrantes do seu comando. As
sional do Exército dos EUA esteve em apuros no Forças estadunidenses, Petraeus afirmou na carta,
início do século XXI. Devido, em parte, ao nosso fracassariam em sua missão se não pudessem
sucesso na Guerra do Golfo, passamos a crer que mostrar aos iraquianos que elas, e não os inimigos,
podíamos ignorar a dimensão humana e moral possuíam a “superioridade moral”37.
da guerra, apoiando-nos em sistemas de armas e Embora recentemente tenhamos tomado
Inteligência de alta tecnologia32. Nossas experi- medidas para sanar nossa ética profissional,
ências no Líbano, em Mogadíscio e nos Bálcãs o processo de cura tem sido extremamente
estimularam uma mentalidade de “proteção da lento, no Exército. Uma das medidas foi revisar
Força a qualquer custo” em alguns comandantes, substancialmente nossa doutrina sobre a conduta
que posteriormente defenderam que era preciso no campo de batalha, que é, hoje, bem mais firme,
“deixar de delicadezas” nos interrogatórios, para coerente e clara em relação ao que era há apenas
salvar a vida de soldados norte-americanos33. cinco anos.
Além disso, o planejamento operacional “baseado Outra importante medida foi aprimorar o
em efeitos” nos levou a adquirir o hábito de avaliar ensino de ética no treinamento básico: hoje,
as ações propostas com base apenas nos efeitos todos os alunos portam um cartão denominado
previstos, em vez de imediatamente rejeitarmos “Regras do Soldado” (uma versão resumida da
algumas ações em princípio34. Lei da Guerra) e recebem de 35 horas a 45 horas
O prejuízo causado à ética profissional do de instrução sobre valores38. Além disso, em
nosso Exército é grave. Os oficiais e soldados maio de 2008, o Exército estabeleceu o promissor
continuam a debater se é certo utilizar a tortura Centro da Profissão e da Ética do Exército, com
em algumas circunstâncias e as transgressões o propósito de estudar, definir e divulgar nossa
de ex-comandantes de Unidades do Exército, ética profissional39. Igualmente promissor é o
como o Tenente-Coronel Sassaman, o Tenente- fato de o Exército haver designado 2011 como
Coronel Allen West e o Chief Warrant Officer o “Ano da Profissão das Armas” (com o claro

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CONTROLAR A FERA

objetivo de desenvolver a ética profissional), forte Isso só pode ser feito indo diretamente às suas
sinal de que sua cúpula pretende melhorar nosso guarnições.
desempenho nessa área.
É o que, de fato, precisamos fazer. A oficialidade O Treinamento Cultural Mais
integra uma área que precisa de aperfeiçoamento, Necessário
conforme evidenciado por eventos em locais como Nos últimos anos, o Exército vem aumentando a
Guantánamo, Abu Ghraib, Bagram e Samarra. ênfase na necessidade de os soldados empregados
Contudo, o problema mais grave reside nas em operações entenderem a cultura local.
subculturas ocultas em nosso Exército operacional. Hoje, todos os soldados que se destinam ao
Em A Tactical Ethic: Moral Conduct in the Iraque e ao Afeganistão recebem estágios de
Insurgent Battlespace, Dick Couch, ex-oficial orientação cultural e de idioma, normalmente
integrante das Forças Especiais da Marinha dos ministrados por equipes de especialistas do
EUA (SEAL), apresenta argumentos convincentes Forte Huachuca ou do Instituto de Idiomas do
de que, atualmente, nossos recrutas saem da Departamento de Defesa. Igualmente importante
instrução militar básica com um entendimento é a “equipe de terreno humano”, composta de
completo dos valores militares estadunidenses, cinco integrantes — antropólogos e cientistas
mas, ao serem designados para Unidades sociais —, que apoia o comandante de cada
operacionais, podem ingressar em uma cultura brigada de combate desdobrada atualmente.
interna de suas subunidades, que não corresponde Essa ênfase é visivelmente benéfica. Afinal, não
ao que desejam os escalões superiores. Segundo é raro acontecer que, mesmo atuando em plena
Couch, uma subcultura potencialmente perigosa conformidade com a lei e com as expectativas
resulta de um ou dois formadores de opinião profissionais do Exército, os soldados acabem por
(“insurgentes morais”), que convertem ou obtêm prejudicar o apoio popular aos EUA no exterior,
o consentimento tácito de outros integrantes da devido a violações não intencionais de costumes
Unidade40. Como querem se encaixar no grupo, os locais religiosos e étnicos.
jovens soldados geralmente se amoldam a ele41. O treinamento cultural permanecerá relevante
Couch está certo. Abu Ghraib, o exemplo mais para o nosso êxito na era da informação, mas
extremo de uma tropa liderada por “insurgentes também deve incluir treinamento que desenvolva
éticos”, está longe de ser o único. De fato, não culturas éticas dentro das Unidades operacionais,
é nenhum exagero dizer que todas as grandes diretamente em suas sedes, especialmente nas
pequenas Subunidades. A seguir, são relacionadas
algumas propostas:
...o Código Lieber continha ●●O treinamento sobre os valores do Exército,
a Lei da Guerra e as regras de engajamento
uma longa relação de regras, precisa ser de responsabilidade do comando. O
destinadas a garantir que as impacto desse treinamento sobre a tropa assume
outra magnitude quando ele é conduzido pelo
tropas da União tratassem comandante ou por outro oficial combatente da
Unidade; completamente diferente do que ocorre
humanamente tanto os não quando ele é ministrado por um assessor jurídico.
combatentes quanto os Os advogados devem ajudar a desenvolvê-lo e
podem até apresentar parte do assunto. Entretanto,
prisioneiros de guerra. nas Unidades operacionais, deve ser obrigatório
que o comandante, o chefe do estado-maior ou
o oficial de operações conduza o treinamento.
derrotas morais que sofremos, até agora, na Guerra Como disse o Major Tony Suzzi, chefe do
Contra o Terrorismo envolveram subculturas estado-maior de um regimento de cavalaria na 1ª
nocivas, em diferentes graus. Para evitar futuras Brigada de Combate, da 1ª Divisão de Infantaria:
derrotas precisamos, primeiro, corrigir a conduta “Talvez eu seja uma cara simplório, mas, pela
nas subunidades. minha experiência de combate, a conversa que o

MILITARY REVIEW  Maio-Junho 2011 9


comandante de batalhão teve com cada soldado,
sobre voltar para casa com sua honra intacta,
funcionou”42.
●●Nosso Exército deve colocar a principal
ênfase no treinamento ético nos escalões mais
baixos. O comandante, ou alguém entre os
combatentes mais antigos da Unidade, deve
liderar as discussões iniciais sobre ética, dando o
tom para que se sucedam debates posteriores, no
âmbito das frações subordinadas. Os comandantes
dos pelotões, dos grupos de combate e das
esquadras devem liderar suas frações nesses
debates em separado.
●●As discussões nas unidades, subunidades
e frações devem ser baseadas em cenários e em
debates socráticos, em vez de fazer com que, na
maior parte do tempo, assistam passivamente
a apresentações de PowerPoint. Além disso, o
comedimento moral precisa ser incorporado em
todos os treinamentos de táticas individuais de
combate, como os módulos de tiro de carros de
combate, as pistas de combate aproximado em
área urbana e a prática de interrogatórios, por

Exército dos EUA


exemplo. “Depois que os meus interrogadores
viram, com seus próprios olhos, as vantagens
de entender os aspectos positivos da cultura
muçulmana”, disse Matthew Alexander, o General George C. Marshall, 1942.
renomado autor e interrogador que levou as
Forças norte-americanas a Zarqawi, “eles se batalhões — à semelhança do “oficial de tiro” das
converteram rapidamente [quanto a deixar a Unidades — para assegurar essa integração, sob
prática de utilizar táticas severas]”43. a coordenação do oficial de operações? Outros
●●Os assessores jurídicos devem apenas instrutores de ética também seriam designados
participar das discussões sobre ética no estado- no escalão companhia. Esses “oficiais de ética”
maior, e não serem os responsáveis por elas. e seus instrutores também supervisionariam em
Primeiro, o que é tecnicamente legal não é nome dos comandantes, assegurando que casos
necessariamente o que é certo. “As decisões ilustrativos de questões e decisões éticas fossem
morais são importantes demais para serem plenamente integrados em todos os eventos de
deixadas a cargo dos advogados”, observou, certa treinamento.
vez, o renomado historiador Michael Ignatieff44. O ●●Apenas oficiais mais antigos da Unidade
que é ainda mais importante: como os assessores seriam designados para funções relacionadas com
jurídicos não são combatentes, eles não são os a ética no estado-maior. Nos escalões brigada e
instrutores ideais para supervisionar treinamentos batalhão, o oficial de operações, o seu adjunto ou
de conduta de combate que envolvam armamento o sergeant major da Seção seriam boas opções.
em situações simuladas. Como os capelães nem Nas companhias, a função seria atribuída ao
armas portam, eles seriam uma opção ainda pior. subcomandante ou ao first sergeant [no Exército
●●Para efetivamente integrar a teoria e a Brasileiro, poderia ser o equivalente ao Sargento-
prática da ética no treinamento, precisamos Adjunto mais antigo da subunidade — N. do T.].
de um responsável geral no estado-maior que ●●Para preparar esses oficiais de ética, seria
seja versado em ambas. Por que não designar necessário um estágio com duração de duas a
um “oficial de ética” nas brigadas, grupos e quatro semanas, a ser desenvolvido. Esse estágio

10 Maio-Junho 2011  MILITARY REVIEW


CONTROLAR A FERA

seria administrado no âmbito das guarnições ou Iraque esteja bem mais estável que há dois anos,
inserido nos cursos de aperfeiçoamento de oficiais ainda é possível que o país mergulhe na guerra
e sargentos já existentes. civil. No Afeganistão, embora a esperança de
●●A fase I desse curso sobre ética deveria uma paz honrosa tenha se renovado com a recente
se concentrar na “teoria”, com advogados, escalada de tropas, o conflito ainda é mais bem
acadêmicos, profissionais de saúde mental, definido como um beco sem saída48.
capelães e ex-comandantes ministrando as Um motivo fundamental para a nossa situação
instruções. A segunda fase poderia se concentrar atual é a trágica sucessão de derrotas morais
na aplicação prática. O Centro da Profissão e Ética que nós sofremos nesses dois campos de
do Exército já desenvolveu um estágio teórico batalha. Essas derrotas vergonhosas reforçaram
de uma semana para os instrutores de ética, que a determinação dos nossos inimigos, ao mesmo
pode servir como base para a fase I. Para a fase tempo em que enfraqueceram a vontade do povo
II, pode-se aproveitar a experiência de uma firma norte-americano em alcançar a vitória. Tais
como a Close Quarters Defense® (CQD®) para derrotas são especialmente penosas, considerando
o desenvolvimento do currículo, a construção das o histórico honroso de boa conduta do Exército
instalações e o treinamento de multiplicadores45. dos EUA nos campos de batalha.
●●Os oficiais, em geral, recebem treinamento O General George Marshall (um modelo de
suficiente em ética nas suas escolas de formação oficial íntegro, chamado por Winston Churchill de
— na Academia Militar dos EUA em West Point, “aquele nobre romano”) falou da “fera interior”,
em uma das escolas militares ou no Curso de que aflora dentro do indivíduo em combate.
Formação de Oficiais da Reserva do Exército dos Durante a Segunda Guerra Mundial, Marshall
EUA (ROTC, na sigla em inglês). Entretanto, um esteve mais preocupado em controlar essa “fera”,
tenente de 22 anos recém-formado talvez tenha a fim de preservar a boa ordem e a disciplina nas
a mesma dificuldade que teria um recruta da fileiras. Na era da informação, se essa fera assumir
mesma idade em resistir a uma subcultura imoral o controle, poderá surgir um insurgente dentro
de seu pelotão, mesmo sendo o seu comandante46. das nossas próprias fileiras; alguém muito mais
Para promover boas práticas entre os oficiais, perigoso politicamente que qualquer outro que
precisamos nos concentrar mais em treinamentos enfrentemos com armas no campo de batalha: o
que os ajudem a manter seu entendimento e seu “insurgente moral”.
compromisso ético no exercício de suas funções.
Fazer com que os oficiais mais antigos conduzam
o treinamento sobre ética nas sedes também “...a conversa que o
contribuirá para isso. O fortalecimento da nossa
ética profissional militar também deverá ser a comandante de batalhão teve
espinha dorsal do Programa de Desenvolvimento
Profissional de Oficiais. Além disso, as escolas
com cada soldado, sobre
de nossas Forças Armadas precisam contribuir voltar para casa com sua
mais nesse sentido. Durante o ano que passam
na Escola de Comando e Estado Maior dos EUA, honra intacta, funcionou”.
por exemplo, os oficiais superiores só recebem
quatro horas de instrução relacionada à ética.
Isso é tremendamente inadequado, considerando Para derrotar esse indivíduo tão perigoso, a
a natureza moral das nossas derrotas nos últimos cultura operacional do nosso Exército precisa
anos47. aprender que a conduta correta no campo de
batalha importa mais do que qualquer outra coisa,
A Verdadeira Revolução hoje em dia. A boa conduta não é, por si só, capaz
Ganhamos quase todas as batalhas no Iraque e de conquistar a paz, que depende muitas vezes
no Afeganistão e, mesmo assim, quase “perdemos de condições estratégicas fora do controle dos
a guerra”. Mesmo hoje, o resultado desses dois soldados. Contudo, a conduta correta no campo de
conflitos é extremamente questionável. Embora o batalha, aliada aos objetivos e às táticas corretas,

MILITARY REVIEW  Maio-Junho 2011 11


marginaliza os insurgentes, ao privá-los do apoio da informação transformou-se no grande fator
popular de que precisam para prosperar. Assim, nivelador de todas as formas de combate.
por mais surreal que isso possa parecer àqueles Quer estejamos nos preparando para uma
de nós que já estávamos na Força nos anos 90, guerra convencional, quer para uma guerra não
hoje em dia, a tecnologia do campo de batalha, as convencional, não podemos permitir que as
viaturas blindadas, as técnicas de tiro e o alcance habilidades em armas e combate nos ensurdeçam
das armas contribuem menos para o sucesso da para o que se tornou mais importante e, como no
missão do que o comportamento ético das nossas proverbial canto da sereia, nos façam afundar nas
tropas. rochas escarpadas do mundo que nos observa.
Isso não quer dizer que nossos meios tradicionais Devemos fazer com que a conduta correta no
de combater não sejam mais importantes. É campo de batalha seja a prioridade máxima do
evidente que são. Muitos soldados continuam a Exército no ensino e no treinamento.
se deparar com situações nas quais dão graças por Por fim, o conceito de “Revolução em
disporem de boas armas e por saberem utilizá- Assuntos Militares” talvez seja a expressão mais
las. Às vezes, “selvageria calculada” é o que é erroneamente empregada nos textos militares de
necessário aos soldados. Contudo, no século XXI, hoje. Entretanto, já que eu comecei este artigo
a conduta no campo de batalha não é importante com o mau emprego do termo, vale a pena
apenas ocasionalmente; ela é importante sempre, mencioná-lo, mais uma vez. Depois de termos
e essa importância só continuará a crescer, à despendido bilhões de dólares para obter enorme
medida que a tecnologia da informação melhorar. superioridade tecnológica sobre outros exércitos,
No futuro, até as guerras convencionais — pelo não seria irônico se descobríssemos que, no
menos as que envolverem democracias maduras século XXI, o componente fundamental de uma
como os EUA — terão de ser travadas de acordo revolução em assuntos militares é simplesmente
com princípios éticos por pura necessidade nos lembrarmos de que, em nossa melhor forma,
prática, o que inclui as Leis da Guerra49. Graças à somos um Exército íntegro? Se essa lição deve
sua capacidade de impor uma conduta no campo ser o ponto de partida para uma revolução militar
de batalha, que seja socialmente aceitável, às com algum sentido, então certamente não é tarde
Forças militares das democracias, a tecnologia demais para que a aprendamos.MR

Referências

1. ALEXANDER, Matthew. “My Written Testimony to the Senate Judiciary categoria criada pelo governo Bush para descrever os insurgentes armados —
Committee Hearing”, The Huffington Post, 13 May 2009, disponível em: terem ou não direito às proteções das Convenções de Genebra. Essa confusão
<http://www.huffingtonpost.com/matthew-alexander/my-written-testimony- resultou das políticas assinadas pelo Presidente Bush e seu Secretário de
to-t_b_203269.html> (28 Jun 2010). Ao referir-se a “controlar” a fera interior, Defesa, Donald Rumsfeld, no início de 2002, que negavam essas proteções aos
Marshall falava de “administrar” e não de eliminar a ferocidade dos soldados integrantes da Al Qaeda e ao Talibã em casos de “necessidade militar”. Em sua
norte-americanos. É esse também o sentido que emprego em meu artigo: como decisão histórica de 29 Jun 06, no processo Hamdan versus Rumsfeld, o Supremo
falcões adestrados por falcoeiros, as violentas paixões que afloram dentro dos Tribunal dos EUA decidiu que cabia aos combatentes ilegais pelo menos o direito
soldados profissionais durante o combate devem ser treinadas para atingir apenas às proteções conferidas pelo Artigo 3º Comum das Convenções de Genebra.
os alvos certos. Diferentemente dos falcões, porém, o treinamento de seres Contudo, não havia dúvida alguma, em nenhum teatro de operações, quanto ao
humanos requer muito mais que o simples condicionamento físico. É preciso fato de criminosos terem pleno direito às proteções das Convenções de Genebra.
também apelar para as nossas faculdades da razão e da emoção. 16. Ibid, p. 11.
2. Essa história de introdução se baseia nas minhas próprias experiências 17. Ibid, p. 1.
como subchefe de Inteligência de brigada, nesse exercício. 18. Uma indicação da enorme cobertura de imprensa recebida pelo incidente
3. FILKINS, Dexter. “The Fall of the Warrior King”, The New York Times, de Samarra é o fato de o ator Tom Cruise estar produzindo um filme sobre o caso.
23 October 2005, disponível em: <http://www.nytimes.com/2005/10/23/ 19. Ibid., p. 5-8; RICKS, Thomas E. Fiasco: The American Military Adventure
magazine/23sassaman.html?_r=1> (28 June 2010), p. 1. in Iraq (New York: The Penguin Press, 2006), p. 279-90.
4. Ibid., p. 2. 20. KRISTOL, William. The Defense Secretary We Have, 15 Dec 2004,
5. Ibid. disponível em: <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A132-
6. Ibid. 2004Dec14.html> (28 June 2010).
7. Ibid. 21. Uma derrota tática dessas quase levou à aniquilação do 2º Batalhão, do
8. Ibid. 7º Regimento de Cavalaria, da 1ª Divisão de Cavalaria, em 17 Nov 65, no Vale
9. Ibid, p. 12. Ia Drang. Essa batalha foi descrita de forma clara pelo Gen Div Harold G. Moore
10. Ibid, p. 10. (Reserva) e por Joseph L. Galloway, no livro We Were Soldiers Once... and Young.
11. Ibid, p. 11-12. 22. O emprego de técnicas avançadas de interrogatório está indissociavelmente
12. Ibid, p. 10-11. ligado aos escândalos de Guantánamo, Abu Ghraib e Bagram. O incidente de
13. Ibid, p. 11-12. Samarra foi descrito acima. Na matança em Mahmudiyah, em 12 Mar 06,
14. Ibid. cinco soldados do 502º Regimento de Infantaria, da 101ª Divisão Aeroterrestre,
15. À época, havia certa confusão quanto aos “combatentes ilegais” — uma estupraram uma menina iraquiana de 14 anos e assassinaram sua família. O

12 Maio-Junho 2011  MILITARY REVIEW


CONTROLAR A FERA

incidente é tema de um livro recente, Black Hearts, de Jim Frederick. O Massacre interrogador mais antigo do 3º Regimento de Cavalaria Blindado. Welshofer foi
de Kunduz é tema de um documentário europeu. Nesse massacre, centenas condenado por homicídio culposo por negligência, no caso de um detento que
de talibãs morreram ao serem transportados em contêineres hermeticamente havia morrido durante o emprego especialmente brutal de uma técnica avançada
fechados, por tropas da Aliança do Norte, que estariam sob a supervisão de uma de interrogatório.
equipe das Forças Especiais do Exército dos EUA. O Corpo de Fuzileiros Navais 36. WOOD, Sgt Sara. “Petraeus urges troops to adhere to ethical standards in
dos EUA também tem sua parcela de escândalos morais, tendo os incidentes mais recent letter”, Operation Iraqi Freedom: Official Website of United States Forces-
infames ocorrido em Haditha, Hamdania e Shinwar. Iraq, 14 Mai 2007, disponível em: <http://www.usf-iraq.com/?option=com_con
23. FISHER, David Hackett. Washington’s Crossing (New York: Oxford tent&task=view&id=11869&Itemid=110> (28 June 2010). Segundo a definição
University Press, 2004), p. 375. constante do relatório, os maus tratos a não combatentes englobam: roubar de
24. Ibid, p. 379. um não combatente, destruir ou danificar propriedades quando desnecessário ou
25. BOSCO, David. “Moral Principle vs. Military Necessity”, American bater ou chutar em um não combatente.
Scholar, Winter 2008, disponível em: <http://www.theamericanscholar.org/ 37. PETRAEUS, Gen David H. “Appendix I: General David H. Petraeus
moral-principle-vs-military-necessity/> (28 June 10). on Values”, in COUCH, Dick. A Tactical Ethic: Moral Conduct in the Insurgent
26. Ibid. Battlespace, p. 113-15 (Annapolis: Naval Institute Press, 2010): p. 114, p. 113.
27. Ibid. 38. COUCH, p. 46.
28. LIEBER, Francis (Ph.D.). “Instructions for the Government of Armies of 39. “About the CAPE”, U.S. Army Center for the Army Profession and
the United States in the Field”, Law of War, 24 Apr 1863, disponível em: <http:// Ethic (29 July 2010), disponível em: <http://acpme.army.mil/about.html> (15
www.lawofwar.org/general_order_100.htm> (10 June 10), Artigos 16 e 49. August 2010).
29. TAYLOR, Telford. “Foreword”, In: FRIEDMAN, Leon (editor). The Law 40. COUCH, p. 77. Talvez para evitar confusão nas mentes dos
of War: A Documentary History (New York: Random House, 1973), p. 6. Segundo contrainsurgentes, Couch, na verdade, chama esses indivíduos imorais de
Taylor, o Código Lieber “foi, por cinquenta anos, o pronunciamento oficial do “piratas”, em vez de insurgentes, embora o papel deles seja muito mais semelhante
Exército sobre o tema; forneceu grande parte do material para as Convenções de ao destes últimos.
Haia de 1899 e 1907; e continua a receber atenção hoje, como o documento que 41. COUCH, p. 54. O que exacerba o problema, ressalta Couch, é que a
deu início à codificação das Leis da Guerra Terrestre”. geração atual de recrutas (composta, em grande parte, de integrantes da Geração Y)
30. LIEBER, Artigo 22. demonstra maior “necessidade de pertencer ao grupo” que as gerações anteriores.
31. BUSH, Presidente George W. “Memorandum, Humane Treatment of al 42. Maj Tony Suzzi, em e-mail ao Maj Doug Pryer, 16 Jun 2010.
Qaeda and Taliban Detainees, February 7, 2002”, George Washington University’s 43. Matthew Alexander, em email ao Maj Doug Pryer, 23 Jun 2010. Abu
The National Security Archives, disponível em: <http://www.gwu.edu/~nsarchiv/ Musab al-Zarqawi era um militante jordaniano, fundador do grupo terrorista “Al
NSAEBB/NSAEBB127/02.02.07.pdf> (28 June 10), p. 2; RUMSFELD, Donald. Qaeda no Iraque”. Antes de ser atingido e morto por munição teleguiada, em 7
“Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff, Status of Taliban and Jun 06, Zarqawi era o homem mais procurado pelas Forças da coalizão no Iraque.
Al Qaeda, 19 January 2002”,George Washington University’s The National 44. COUCH, p. xvi.
Security Archives. Disponível em: <http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/ 45. Segundo o Maj Kevin Cutright, ex-professor de Filosofia na Academia
NSAEBB127/ 02.01.19.pdf> (28 June 10). Militar dos EUA, em West Point, o Centro da Profissão e Ética do Exército
32. Das estimativas de Inteligência que mantive sobre o Exercício de conduz, na entidade, um estágio de uma semana chamado “Master Army
Combate Avançado de 1996, descrito anteriormente, nenhuma contém uma Profession and Ethic Trainer Course” (“Curso Avançado para Instrutores de
única referência a uma questão civil-militar. Essas estimativas de Inteligência Profissão e Ética do Exército”). Segundo ele, um terço dos alunos são capelães,
discutem apenas a ordem de batalha, os equipamentos e as prováveis linhas de sendo o restante do grupo composto de oficiais de estado-maior, graduados mais
ação do inimigo teórico. Antes de 2003, participei de três missões no Centro antigos e sargentos instrutores. Em relação ao proposto treinamento da fase II,
Nacional de Adestramento, no Forte Irwin, Estado da Califórnia, e de duas no há duas décadas que equipes do Comando de Operações Especiais e de vários
Centro de Adestramento para Manobras em Combate em Hohenfels, Alemanha. órgãos civis passam pela instalação de treinamento pertencente à empresa civil
Com exceção da última, todas elas negligenciaram os aspectos civis-militares da Close Quarters Defense®. O que torna esse programa especial é a integração
guerra (e meu último rodízio, em 2002, não foi muito diferente). Nesse caso é do treinamento “Internal Warrior Training™” (princípios éticos) com técnicas
pertinente, sem dúvida, o chavão de que um Exército treina para a última guerra de combate aproximado. Segundo o programa, um soldado combate melhor
que venceu, e não para a próxima guerra que irá combater. O único inimigo se ele não estiver lutando apenas pelos seus companheiros, mas também pela
puramente militar que havíamos combatido, e que era vagamente semelhante sua família e pela nação. O programa também ensina que verdadeiros soldados
ao dos exercícios de treinamento nos anos 90, era o Exército do Iraque, já que exibem qualidades como respeito, compaixão e corajoso comedimento. Um
havíamos lutado contra ele nos desertos da Guerra do Golfo. dos cursos conduzidos por essa empresa incorpora treinamento armado e não
33. SNIDER, Don M. (Ph.D.); NAGL, Maj John A.; PFAFF, Maj Tony, armado, evoluindo do indivíduo para a equipe. Cada curso é especializado
“Army Professionalism, the Military Ethic, and Officership in the 21st Century”, segundo a missão do grupo. O exercício “Hooded Box Drill™” é uma técnica
U.S. Army War College Strategic Studies Institute, December 1999, disponível especialmente eficaz da empresa, que ela emprega para reforçar as respostas
em: <http://www.strategicstudiesinstitute.army.mil/pdffiles/pub282.pdf> (28 certas nos soldados em diversos cenários. Nesse exercício, o aluno é colocado
June 2010), p. 2. Como esse documento foi redigido antes da Guerra contra o dentro de uma caixa coberta e, quando a caixa é levantada, ele precisa reagir
Terrorismo, ele não estabelece uma ligação direta entre a nossa mentalidade rapidamente a uma situação “letal” ou “não letal”.
de “proteção da força a qualquer custo” dos anos 90 e a nossa mentalidade de 46. PRYER, Maj Douglas A. The Fight for the High Ground: The U.S. Army
“informações a qualquer custo, se elas salvam vidas”, dos primeiros anos desta and Interrogation During Operation Iraqi Freedom, May 2003-April 2004 (Fort
guerra. Mesmo assim, esse documento incrivelmente visionário antevê essa Leavenworth: CGSC Foundation Press, 2009), p. 88. A história ora citada é a de
conexão, declarando que “as normas de comportamento profissional do Exército um comandante de pelotão da FT 1º/36º Regimento de Infantaria, da 1ª Brigada
estão sendo minadas pelas orientações políticas sobre proteção da força”. Esse de Combate, FT 1ª Divisão Blindada. No início do verão de 2003, esse fraco
trabalho também recomendou que o Exército dos EUA retomasse uma ética oficial não interferiu quando seu pelotão se entregou ao comportamento violento.
profissional militar alicerçada em princípios. O pelotão extorquiu dinheiro dos moradores para comprar objetos de luxo, atacou
34. MATTIS, Gen James N. “USJFCOM Commander’s Guidance for saqueadores e, aparentemente, espancou pelo menos um iraquiano inocente
Effects-Based Operations”, Joint Force Quarterly, 4th Quarter, 2008: p. 105- por um prazer perverso, apenas. Pelos crimes do pelotão, seu sargento cumpriu
108, p. 107; CHALLANS, Ten Cel Tim. “Tipping Sacred Cows: Moral Potential pena de prisão e seu comandante foi expulso do Exército. Esse é apenas um de
through Operational Art”, Military Review (Sept-Oct 2009): p. 19-28, p. 19. Em vários exemplos recentes, no Iraque e no Afeganistão, de jovens tenentes sendo
sua diretriz de comando para o USJFCOM, o General Mattis limitou o escopo transformados pela subcultura imoral de suas tropas, em vez de transformá-las.
do planejamento operacional baseado em efeitos, afirmando: “Todo conceito 47. Nesse sentido, o CGSC (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
de planejamento que busca, de forma mecanicista, proporcionar certeza em um dos EUA) não é a única entre as escolas das Forças Armadas dos EUA.
ambiente inerentemente incerto está em desacordo com a natureza da guerra.” 48. Em 13 Mai 10, o Gen Stanley McChrystal qualificou o conflito como
Challans estabelece uma conexão direta entre o planejamento operacional baseado um “beco sem saída”.
em efeitos e uma mentalidade amoral, afirmando: “Essa abordagem, seja qual for o 49. Entende-se por democracia “madura” uma democracia em que as
seu nome, tem pouco potencial para comportar preocupações morais importantes, pessoas tenham adquirido poder verdadeiro sobre seu governo. A definição de
que mostraram ter ramificações estratégicas.” democracia madura, de Samuel P. Huntington, é provavelmente a mais citada.
35. O Ten Cel Allen West foi, como Sassaman, comandante de batalhão na Segundo ele, uma democracia que viu o partido governante ser substituído
4ª Divisão de Infantaria, durante a Operação Iraqi Freedom I. Para obter dados por um partido de oposição duas vezes de forma pacífica e democrática pode
de Inteligência, West permitiu que seus soldados espancassem um detento, ser considerada “madura”. O que é debatido entre cientistas políticos, com
tendo e ele próprio disparado dois tiros perto de sua cabeça. O Chief Warranty frequência, é se as verdadeiras democracias maduras seriam capazes de travar
Officer Welshofer, contemporâneo de West e de Sassaman no Iraque, era o guerras umas contra as outras.

MILITARY REVIEW  Maio-Junho 2011 13


A Ética Automática: Nossos Pressupostos São
Importantes
Keith Leavitt, Ph.D., e Major Walter J. Sowden, Exército dos EUA

Q UASE TODAS AS decisões ou ações


que tomamos ao longo do dia são
baseadas em uma diversidade de
pressupostos, que aceitamos sem questionar.
Atitudes e Pressupostos
Implícitos
Segundo sugerem pesquisas comportamentais
recentes, muitos dos nossos pressupostos
Quando visitamos um supermercado novo, automáticos talvez sejam equivocados e até
podemos presumir que o leite estará na seção de nocivos. Os psicólogos sociais descobriram a
laticínios. Também esperamos que ele esteja em importância das “atitudes implícitas”. Essas
um determinado tipo de embalagem e sabemos associações simples operam fora da consciência,
quanto ele deve custar e a quem devemos pagar. são difíceis de coibir e ditam grande parte do
Ao pisarmos na faixa de pedestres, estamos nosso comportamento quando não há tempo
contando com o fato de que o motorista do para realmente refletir sobre uma situação. Os
carro seja obediente à lei, esteja acordado e cientistas desenvolveram tarefas de resposta
tenha um mínimo de lucidez. Como soldados, rápida válidas e confiáveis para analisar esses
fazemos suposições como essas durante o processos automáticos e fizeram descobertas
treinamento e as operações de contingência. interessantes e, por vezes, perturbadoras.
Por exemplo, durante um curso de navegação Por exemplo, uma associação implícita entre
terrestre, fazemos diversas suposições sobre as “sexo masculino” e “ciência” provou ser um
características do terreno que encontraremos melhor indicador de que curso seria escolhido
com base no que vemos (ex.: terreno baixo por alunas na fase pré-universitária do que sua
significa que há um riacho ou um córrego) e nota média, sua pontuação no vestibular ou seus
elaboramos nossos planos de acordo. Além interesses expressos1. Ou, de modo bem simples:
disso, no ambiente operacional de combate, alunas inteligentes, confiantes e competentes, mas
presumimos que nossos colegas soldados irão que acreditavam implicitamente que as ciências
desempenhar sua missão, obedecer ao Credo do estão relacionadas com “sexo masculino”,
Soldado e personificar os Valores do Exército. deixaram de considerar suas habilidades ao
Nosso comportamento se baseia completamente escolher que carreira seguiriam.
na ideia de que esses pressupostos são O que é mais preocupante: em uma tarefa
verdadeiros, apesar de a maioria de nós nunca conhecida como “tiro ao alvo”, na qual são
tê-los considerado ou lapidado em detalhes. exibidas, na tela, imagens de pessoas com
Com certeza, não pensamos neles quando armas e de pessoas com objetos inofensivos
agimos. Frequentemente, as decisões que (uma banana, um livro, etc.), os participantes
precisamos tomar com pouco tempo de reação devem rapidamente pressionar a tecla de
são da maior gravidade e se apoiam fortemente “atirar” para as que portam armas e a de
nos nossos alicerces e premissas morais. “não atirar” no caso das que seguram outros

Keith Leavitt, Ph.D., é professor adjunto da Academia O Major Walter J. Sowden, Exército dos EUA, é subchefe
Militar dos EUA, em West Point, e pesquisador do de logística no Posto do Comando Operacional do
Projeto Implicit. Trabalha atualmente no Center for the 807º Comando de Apoio de Desdobramento Médico em
Army Profession and Ethic. É doutor em Comportamento Seagoville, no Texas. É bacharel em Sociologia pela
Organizacional (Administração) pela Foster School South Dakota State University e mestre em Psicologia
of Business da University of Washington e mestre em Organizacional e Social pela Columbia University.
Administração e Psicologia Social.

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2011 27


objetos. Constatou-se que os participantes o processo decisório e para o comportamento
eram mais rápidos e precisos ao decidir atirar ético dentro do Exército. Durante uma entrevista
em pessoas negras com armas ou não atirar em recente, um chefe de equipe que servia no Iraque
brancos que seguravam objetos inofensivos. contou que, durante uma noite em que sua
Em outras palavras, “negros” e “armas” estão equipe estava de guarda na base, um iraquiano
automaticamente mais próximos em nossas portando uma bandeira branca tentou chamar sua
mentes do que “brancos” e “armas”. Diversos atenção. Antes que alguém no terreno pudesse se
estudos (com diferentes populações) exibiram aproximar dele, o iraquiano começou a escalar o
um padrão semelhante: independentemente de muro de proteção da base avançada de operações
os participantes serem brancos, negros, alunos e efetivamente cruzou o perímetro de segurança.
universitários ou policiais, era mais fácil As regras de engajamento estabelecem diretrizes
conflitantes: o sargento deveria atirar no homem
por ele ter cruzado o perímetro, mas, por outro
Em suma, os pressupostos lado, não deveria atirar por causa da bandeira
branca que ele portava. Naquele momento, com
automáticos do sargento pouco tempo para agir, é possível imaginar
moldaram sua reação ao como pressupostos automáticos influenciaram
a decisão do sargento: suas crenças sobre o
intruso. povo iraquiano, seu papel de soldado e suas
opiniões sobre a natureza humana4. Em suma, os
pressupostos automáticos do sargento moldaram
reconhecer um negro perigoso — e atirar contra sua reação ao intruso. Exemplos mais infames,
ele — do que um branco perigoso2. como o abuso de detentos em Abu Ghraib
Nossas crenças implícitas são bem mais e o assassinato de cidadãos iraquianos em
profundas do que atitudes em relação à Iskandaria, também podem ser compreendidos
raça e ao gênero. Em um estudo recente, dessa forma5.
pesquisadores analisaram as crenças implícitas No Manual de Campanha 6-22 — Liderança
de leigos, de estudantes de Administração e do Exército (FM 6-22 — Army Leadership),
de gerentes de empresas sobre o caráter ético reconhecemos que, ao ingressarem no Exército,
dos negócios. Primeiro, constataram que os os homens e mulheres que o integram já têm o
gerentes faziam uma associação mais forte caráter definido por seu histórico, suas crenças,
entre os conceitos de “negócios” e “ética” que sua formação e sua experiência. Durante a
os alunos de Administração e que estes, por instrução inicial de um soldado, a organização
sua vez, faziam uma associação mais forte busca compensar a infinidade de diferenças de
que os leigos. Faz sentido que quanto mais caráter preestabelecidas e igualar as condições,
tempo as pessoas exerçam uma profissão, mais fazendo com que todos os soldados passem
elas acreditem nela. Mais preocupante foi a por um processo de socialização amplo e
constatação de que os que mais acreditavam abrangente. Contudo, não se pode esperar
que o meio empresarial fosse extremamente que o processo neutralize completamente as
ético foram os mais propensos, durante uma associações formadas pelas experiências de
simulação, a exagerar em um sinistro de uma vida inteira e pela exposição a várias fontes
seguro em favor de sua empresa ou a negociar de informação.
usando informações privilegiadas ilegais. Em Como, muitas vezes, os pressupostos
suma, um pressuposto (de que os negócios são implícitos estão fora da nossa capacidade
éticos) os impediu de usar seu critério pessoal. de percebê-los, isso cria certo paradoxo.
Presumiram erradamente que, se os negócios Por um lado, as informações neles contidas
são inerentemente éticos, então tudo que não são nossa “culpa”, porque os geramos
fizerem em seu nome também o será3. inconscientemente por meio das experiências
Não é preciso forçar muito a imaginação que a vida nos apresentou (um estudo de
para enxergar as implicações de tudo isso para associações raciais implícitas mostra que

28 Janeiro-Fevereiro 2011  MILITARY REVIEW


ÉTICA AUTOMÁTICA

essas crenças estão mais fortemente ligadas às Hoje, uma das mais confiáveis é o teste de
atitudes de nossos pais em relação às minorias associação implícita disponível on-line (www.
do que às nossas próprias atitudes6). projectimplicit.com). O site fornece pontuação
Por outro lado, precisamos nos responsabilizar e feedback para ajudar o usuário a entender seus
por nossas decisões e por nosso comportamento próprios pressupostos automáticos, tudo de forma
em situações críticas, especialmente quando anônima. É chamado “Project Implicit” (Projeto
houver implicações morais e éticas. Embora haja Implícito) e é uma organização de pesquisa sem
um número limitado de pesquisas empíricas, fins lucrativos localizada nas Universidades de
que demonstram como esses pressupostos Harvard, Washington e Virgínia.
implícitos podem mudar, a maioria das possíveis
intervenções se concentra em reduzir nossa Monitorar as Próprias Reações
dependência em relação a eles, por meio da Embora situações complexas e intensas se
conscientização. É preciso fazer um esforço para desenrolem rapidamente, o dia a dia nos oferece
considerar a situação antes de agir. várias oportunidades para identificar e corrigir
É possível reduzir o impacto prejudicial pressupostos que possam surgir em situações
dos próprios pressupostos implícitos com as importantes. Por exemplo, se uma interação
seguintes medidas: problemática durante o atendimento ao cliente
●●Conscientizar-se do conteúdo dos próprios levar a um pensamento negativo automático
pressupostos implícitos. sobre a etnia da pessoa, esse momento deve servir
●●Monitorar ativamente as próprias reações como um alerta, assim como uma oportunidade
automáticas a situações e praticar substituí-las de lidar com o surgimento desses pressupostos
por bons julgamentos. automáticos no nosso pensamento. Uma vez
●●Incorporar complexidade ao próprio que reconheçamos nossos próprios pressupostos
modo de pensar, por meio da análise e do automáticos e as tendências comportamentais
questionamento de premissas. deles advindas, podemos nos empenhar em
considerá-las mais a fundo em vez de agir
Conscientizar-se imediatamente. Se acreditarmos implicitamente,
Conscientizar-se dos pressupostos implícitos por exemplo, que os habitantes do Oriente Médio
faz parte do desenvolvimento do autoconheci- são mentirosos, é óbvio que isso afetará uma
mento. Por autoconhecimento entende-se ter interação com um afegão ou com um iraquiano.
consciência de si mesmo, incluindo as próprias Podemos ignorar informações valiosas ou
características, sentimentos e comportamentos prejudicar relacionamentos construtivos.
(FM 6-22, Capítulo 8) 7. Nossa
organização valoriza o autoconhe-
cimento, segundo a antiga doutrina
de liderança e treinamento do Departamento de Defesa, Sgt Paul L. Anstine II, CFN dos EUA.
Exército (“Ser, Saber, Fazer”). O
Manual de Campanha 6-22 defende
os 11 princípios de liderança, dos
quais o primeiro é “conhecer-se
e buscar o autoaperfeiçoamento”.
Como, não raro, os pressupos-
tos automáticos operam sem que
tenhamos consciência disso, é
quase impossível conhecer nossas
próprias mentes. Felizmente, os
pesquisadores comportamentais
começaram a desenvolver uma
ampla gama de ferramentas para Um iraquiano acena com um pano branco, próximo à Ponte An Nu’maniyah,
identificar “pressupostos ocultos”. no Iraque,durante a Operação Iraqi Freedom.

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2011 29


Força Aérea dos EUA, Sgt Jonathan Doti

Um militar fornece segurança durante apreensões de iraquianos, em Bagdá, Iraque, 13 Ago 07.

Questionar os Próprios sempre intimamente ligadas pode nos levar a


Pressupostos e Crenças fazer algo errado. Discutir essas questões em suas
Da mesma forma que os gerentes e os alunos de Unidades e obrigar-se a reconhecer e a questionar
Administração, que acreditavam que os “negócios” as próprias pressuposições podem desencadear
eram inerentemente “éticos”, deixaram de utilizar crescimento pessoal e coletivo.MR
qualquer critério pessoal no seu comportamento
profissional, corremos o risco de acreditar que a
nossa missão confere moralidade automática ao REFERÊNCIAS
nosso comportamento. Os campos de batalha e os 1. SMYTH, F.L.; NOSEK, B.A.; GREENWALD, A.G.; BANAJI, M.R.
teatros de operações modernos são inerentemente (2009). “Implicit gender stereotype outperforms scholastic aptitudes in predicting
a science major for women”, documento de trabalho.
complexos e trazem consigo a capacidade de 2. GREENWALD, A.G.; OAKES, M.A.; HOFFMAN, H.G., “Targets of
se fazer tanto um grande bem, como um grave discrimination: Effects of race on responses to weapon holders”, Journal of
Experimental and Social Psychology 39 (2003): p. 399-405.
e irreparável mal. Os valores e a história do 3. CORRELL, J.; PARK, B.; JUDD, C.M.; WITTENBRINK, B.; SADLER,
Exército dos EUA geralmente nos levam a fazer M.S.; KEESEE, T. “The thin blue line: Police officers and racial bias in the
decision to shoot”, Journal of Personality and Social Psychology 92 (2007):
o bem, mas, se começarmos a acreditar que p. 1006-23.
4. REYNOLDS, S.J.; LEAVITT, K.N.; DECELLES, K. (em via de
os nossos esforços são inerentemente éticos, publicação), “Automatic ethics: The effects of implicit assumptions and contextual
corremos o risco de não reconhecer graves cues on moral behavior”, Journal of Applied Psychology.
5. O sargento envolvido neste incidente apontou sua arma para o indivíduo,
perigos morais. Um estudo recente constatou mas sabiamente resistiu ao impulso de atirar. Quando reforços chegaram,
exatamente isto: quando uma tarefa discretamente descobriu-se que o homem era um policial local e sobrinho de um xeque amigo das
Forças da coalizão. Esse estudo de caso consta do site ACPME AKO, disponível
reafirmava a identidade moral dos participantes em: <https://acpme.army.mil>.
(isto é, fortalecia a crença de que eram pessoas 6. O estudo de caso de Michael Hensley consta do site ACPME AKO.
7. FM 6-22, Army Leadership (Washington DC: U.S. Government Printing
moralmente corretas), eles se mostravam menos Office), p. 4-12.
motivados a portar-se bem8. Em suma: Aceitar, 8. SACHDEVA, S.; ILIEV, R.; MEDIN, D.L. “Sinning saints and saintly
sinners: The paradox of moral self-regulation”, Psychological Science 20 (2009):
automaticamente, que “missão” e “moral” estão p. 523-28.

30 Janeiro-Fevereiro 2011  MILITARY REVIEW


Competência X Caráter?
Ambos São Necessários!
Ten Cel Joe Doty e
Maj Walter Sowden, Exército dos EUA
As opiniões expressas neste artigo são dos autores e não re- mentalidade e abordagem em relação ao treinamen-
fletem as da Academia Militar dos EUA, do Departamento to, ensino e desenvolvimento de caráter dos nossos
do Exército ou do Departamento de Defesa. soldados. Essa total mudança cultural na forma
A competência sem o caráter é uma perversão e a nossa como o Exército treina, educa e desenvolve os solda-
maior ameaça. dos não será divertida ou fácil. Esse tipo de mudan-
—Dr. James Toner1 ça em uma organização tão grande, diversificada e
eficaz como o Exército terá de vir de cima para baixo

V isualize um Exército no qual os soldados


nunca tenham de assistir a aulas e a slides de
PowerPoint sobre ética e liderança. Imagine
um Exército sem aulas que se concentrem exclusi-
vamente nos sete valores do Exército. Considere um
e de baixo para cima.

Em que Pé Estamos?
Qual é o motivo dessa proposta? Por que agora?
Nosso Exército continuará a operar em alguns dos
Exército no qual o desenvolvimento de caráter é inten- ambientes mais moralmente ambíguos e complexos
cionalmente parte de, literalmente, tudo o que fazemos. da história — sem um final à vista. Nosso chefe de
Parece fantasioso e absurdo? Não deveria. Estado-Maior, general George Casey, chama, apro-
Conforme nosso Exército olha para o futuro, pre- priadamente, a presente
cisamos examinar como formamos e desenvolvemos época de era de conflito
soldados e líderes para que possuam o caráter e a com- persistente. Casey e ou- O Maj Walter Sowden
petência que compõem o contrato não negociável entre tros líderes mais antigos é o subchefe de logística
nossa nação e seus profissionais militares. Nossa proposta do 807° Comando de
é que nos livremos de praticamente todo o treinamento Apoio de Desdobramento
e ensino isolados em desenvolvimento ético e de caráter O Ten Coronel Joe Doty, Médico, Posto de Comando
em todo o Exército. Nada mais de aulas sobre assédio Ph.D., Exército dos EUA, Operacional, Seagoville, TX.
sexual. Nada mais de aulas sobre a “lei de guerra terres- é vice-diretor do Centro de Anteriormente, foi diretor
tre”. Nada mais de orientações jurídicas sobre conflito Excelência de Ética Militar de pesquisa e operações
de interesse e aceitação de suborno. Em vez disso, nossa Profissional, na Academia do Centro de Excelência de
proposta é incorporar o ensino de ética e caráter em tudo Militar dos Estados Unidos. Ética Militar Profissional na
o que fazemos, em todos os canais de treinamento, todas Comandou, anterior- Academia Militar dos Estados
as experiências educacionais, tudo. Essa significativa mente, o 1º Batalhão, 27º Unidos. É bacharel pela South
mudança cultural não só será mais produtiva e eficiente, Regimento de Artilharia Dakota State University e mes-
como também acabará sendo mais eficaz e mais acertada de Campanha (Sistema de tre pela Columbia University.
pedagogicamente e exigirá menos recursos. Lançamento Múltiplo de Atuou como comandante de
Entendemos que pedimos uma transformação Foguetes), V Corpo de companhia na 1ª Divisão de
enorme e revolucionária ao propor isso agora. Os Artilharia, Exército dos EUA Cavalaria durante a Operação
líderes do Exército terão de mudar radicalmente sua na Europa. Iraqi Freedom II.

30 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

Instruções de segurança com soldados e praças da Força Aérea da equipe de reconstrução provincial de Kapisa-Parwan, na base avan-
çada de operações Morales-Frazier, na Província de Kapisa, Afeganistão, 13 de agosto de 2009, antes de uma missão. (Departamento de
Defesa, Sgt Teddy Wade)

reconhecem que a presente época terá um efeito no jovens o treinamento e a educação necessários para o
desenvolvimento e no ambiente moral e ético do devido desenvolvimento e mudança cognitiva” — o que
nosso Exército. significa que os atuais métodos não estão produzindo os
O nosso é, sem dúvida, o Exército mais competen- efeitos que desejamos2.
te, experiente, bem treinado e equipado do mundo.
Nossos modelos, sistemas e centros de treinamento são, Sinais do Problema
de longe, os melhores, mais avançados e mais eficazes Uma análise recente do currículo do Centro de
do mundo, e nossa superioridade tecnológica é igual- Preparação dos Oficiais da Reserva (Reserve Officer
mente impressionante. O nosso é um Exército em que Training Corps — ROTC) do Exército revelou que mais
o “treinamento é rei”. E com razão. Contudo, ao olhar- de 90% dele se concentra em desenvolver a compe-
mos para o futuro e nos examinarmos de forma crítica tência, enquanto menos de 10% se refere ao ensino de
(como devem fazer os profissionais), constatamos um caráter. Além disso, apenas cerca de 5% da instrução
descompasso entre competência e caráter. do Comando de Instrução e Doutrina do Exército dos
Curiosamente, esse mesmo tema foi abordado há EUA (Training and Doctrine Command — TRADOC)
12 anos pelo coronel Darryl Goldman, agora re- no sistema de ensino tanto de oficiais quanto de
formado, no artigo “The Wrong Road to Character graduados se concentra na ética e na liderança. É essa
Development”, na edição em inglês de janeiro-fevereiro proporção de 5% de caráter para 95% de competência
de 1998 da Military Review. Em seu artigo, Goldman que o Exército quer defender?
também enfocou a necessidade de uma mudança E quanto ao treinamento e ensino voltados ao cará-
cultural em função da natureza compartimentada do ter em nossas unidades? O descompasso entre compe-
nosso treinamento de “caráter”. Observou, de forma tência e caráter existe em nossas unidades (em termos
acertada, que, no Exército, “não proporcionamos aos de tempo devotado a cada um), e as experiências o

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 31


[…] 90% dele se concentra em desenvolver a
competência, enquanto menos de 10% se refere
ao ensino de caráter.

agravam. Por exemplo, examine o cronograma de trei- trabalho, etc.) como “treinamento obrigatório” ou
namento de qualquer unidade e compare o tempo gasto “ensino em cadeia”. Para executar esse treinamento, o
em competência com o tempo despendido em caráter. Exército normalmente envia apresentações “enlatadas”
Quantas vezes um grupo de combate teve de repetir de PowerPoint para os comandantes e instrutores,
um exercício tático porque ele não correu conforme o ordenando-lhes que treinem todos os integrantes da
planejado? Compare isso com o número de vezes que unidade sobre um tema específico antes de certa data.
um instrutor teve de repetir uma aula sobre os valores Essas aulas consistem em sessões de uma hora no
do Exército. Está claro que há um descompasso. Além cronograma de treinamento da unidade. Durante essa
disso, o Exército começou, recentemente, a eliminar hora, o comandante ou algum outro líder da unidade
vagas para capelães nas escolas mediante um plano de apresenta o treinamento. Depois que o treinamento é
transferir as aulas de ética para o ensino a distância. Por concluído, coloca-se um “X” na lista de conferência e a
muitos anos, essas aulas foram de responsabilidade dos unidade passa para a tarefa seguinte.
capelães. Todos esses são exemplos de uma incapaci- Esse método não é uma forma eficaz de desenvolver
dade sistêmica de entender e implantar uma estratégia um indivíduo ou incutir um valor referente à cultura
holística de ensino e desenvolvimento de liderança ética de uma organização4. Na verdade, pode ter o efeito con-
para o nosso Exército. trário. Esse método de transferir conhecimentos sobre
O Exército, inconscientemente, adotou um mo- esses importantes assuntos não é exclusivo das unidades
delo empresarial ineficaz de treinamento de caráter. valor companhia. É como o treinamento moral e ético
Contudo, as pessoas aprendem melhor a partir da ocorre em todos os níveis do Exército. Infelizmente,
experiência. Treinar para ensinar uma habilidade não funciona e talvez seja até contraproducente:
inclui tentar encaixar uma grande quantidade de Essa tendência de criar iniciativas novas e
experiências em um curto espaço de tempo. Isso se isoladas para tratar vários tipos de má condu-
dá normalmente por meio de uma palestra ou aula. ta em relações humanas constitui o fracasso
Essa abordagem só é eficaz se a intenção é munir o fundamental na forma como as forças mili-
aluno de uma habilidade. Esse é um ótimo método tares americanas abordam o desenvolvimen-
se o resultado almejado é ensinar um soldado como to de caráter desde o governo Eisenhower.
carregar e limpar uma arma ou trocar o pneu de um Presumimos continuamente que as iniciativas
caminhão. Contudo, essa não é a forma de desenvolver isoladas de abordar a ética, moralidade ou
alguém, especialmente no campo moral ou ético. Não valores sejam importantes só porque elas dão
se pode ensinar como reconhecer um dilema moral, a impressão de que “estamos fazendo algo”. Na
avaliar os efeitos potenciais de uma decisão e portar- verdade, essa fé enganosa em projetos novos
-se de forma moralmente correta por meio de uma e desconectados é um sinal de que eles fazem
apresentação de PowerPoint. A única forma de fazer mais mal que bem ao desviar a atenção da li-
isso é desenvolver — mudar — uma pessoa3. derança, que tem a autoridade para provocar
Como em relação à maioria dos temas que ensina- a verdadeira mudança5.
mos no Exército, atualmente transmitimos a ética e os Em outubro de 2008, o Exército realizou uma
valores de forma compartimentada. Isso fica evidente Reunião de Cúpula de Treinamento em Prevenção do
quando se examinam os cronogramas de treinamento Assédio Sexual e Redução de Risco. Durante a reunião
das unidades. Designamos os cursos enquadrados na (cujos palestrantes convidados incluíam o secretário e
categoria de educação moral e ética (respeito, ética o chefe do Estado-Maior do Exército), foi anunciada a
na guerra, assédio sexual, violência doméstica e no nova campanha “I A.M. Strong” para ajudar a prevenir

32 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

a agressão sexual no Exército. Por que o Exército pre- Cinco dos comandantes de brigada tiveram de subs-
cisaria tratar de questões de respeito por membros da tituir ou admoestar um chefe ou sargento de pelotão
força singular em 2008? Um dos sete valores do nosso pelo abuso de detentos ou violação das regras de engaja-
Exército é o “respeito”. Temos certeza de que a maio- mento ou regras de escalada da Força. Um comandante
ria das pessoas no Exército sabe os sete valores de cor. de batalhão no Iraque, envolvido em uma investigação
Contudo, não basta decorá-los. Para que os valores do segundo o Artigo 15-6 do Código Uniforme de Justiça
Exército tenham algum significado, é preciso internali- Militar dos EUA sobre as circunstâncias que levaram
zá-los, personificá-los e vivenciá-los. Podemos e deve- a um caso de sequestro e morte horrível, afirmou que
mos ser melhores que isso. seria preciso um “comandante especial” para impedir a
Um poderoso exemplo da mentalidade de “slogan” ocorrência desse terrível incidente (por causa do clima
dos nossos valores do Exército ocorreu em 2005, duran- depreciativo na unidade depois do amplamente divul-
te a corte marcial de um soldado acusado de empurrar gado estupro e assassinato de uma menina iraquiana).
um iraquiano de uma ponte sobre o rio Tigre. Durante Quando lhe perguntaram se o Exército possuía esses
a fase de sentença da corte marcial do soldado, o tenen- “comandantes especiais”, ele respondeu: “sim, mas muito
te-coronel Nate Sassaman, o comandante do batalhão, poucos apenas”7. Como cultivar e desenvolver esses sol-
depôs que todos os integrantes do batalhão portavam dados e líderes especiais para atuarem em um ambiente
um cartão “baseado nos valores do Exército” e “sabiam complexo e moralmente ambíguo que provavelmente
os valores do Exército — de trás para frente — e os se- persistirá por alguns anos ainda?

[…] carregar um cartão impresso com os valo-


res do Exército ou ser capaz de recitá-los não é,
nem de longe, compreender o que as palavras sig-
nificam […]

guiam rigorosamente na verdade”6. Contudo, carregar Treinamento – Ensino


um cartão impresso com os valores do Exército ou ser – Desenvolvimento
capaz de recitá-los não é, nem de longe, compreender O problema principal é que o Exército não dispõe
o que as palavras significam, acreditar nelas, interna- de um modelo para o desenvolvimento de caráter e
lizá-las e por fim, incorporar os valores nos próprios liderança. Temos uma “lista de conferência” de treina-
pensamentos, sentimentos, crenças e comportamentos. mento fragmentada e improvisada, que busca ensinar
Recentemente, durante entrevistas realizadas com caráter e ética aos soldados. Contamos com que os
12 antigos comandantes de brigada que haviam coman- líderes ofereçam aos subordinados “treinamento no
dado tropas no Iraque ou no Afeganistão, constatamos trabalho” em caráter sem um modelo explícito ou es-
que havia frustração e insatisfação com a forma como o tratégia e sem muni-los de conhecimentos e ferramen-
Exército atualmente conduz o treinamento e o ensino tas para realizar a tarefa. Nosso Exército precisa fazer
na área de desenvolvimento moral e ético. Os temas a melhor que isso.
seguir surgiram durante as entrevistas: O caráter deve ser desenvolvido, não ensinado.
• O Exército não faz um bom trabalho em desenvolver O treinamento resulta em uma habilidade, o ensino
os soldados moral e eticamente. resulta em mais ou novos conhecimentos e o de-
• A competência em caráter é tão importante quanto a senvolvimento resulta em uma pessoa transforma-
competência tática para o futuro do nosso Exército. da. Portanto, nosso Exército precisa desenvolver o
• Se tivesse de fazer tudo de novo, gastaria mais tem- caráter e, para se desenvolverem, as pessoas precisam
po desenvolvendo a competência em caráter dos sofrer uma transformação que altere fundamen-
meus soldados. talmente a forma como pensam, sentem e se com-
• O treinamento de ética em sala de aula não é eficaz. portam. Em suma, é preciso que haja uma mudança

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 33


Um bom teste do caráter dos soldados é como
eles se comportam quando algo dá errado. O ca-
ráter não se revela em um vazio.

permanente. Por exemplo, podemos treinar (trans- Nossa meta precisa ser a de intencionalmente criar
ferindo habilidades e competências) um líder em oportunidades e estabelecer as condições para que os
técnicas de acompanhamento (mentorship). Podemos soldados entendam e internalizem as quatro etapas de
ensinar (transferindo conhecimentos) a um líder o desenvolvimento moral de James Rest9:
processo de desenvolvimento humano por trás dessas • reconhecimento moral;
mesmas técnicas de acompanhamento. Por fim, po- • discernimento moral;
demos desenvolver (mudanças duradouras na identi- • intenção moral;
dade, perspectivas e sistema de criação de significado • ação moral.
de uma pessoa) líderes ao criar uma identidade em Precisamos desenvolver soldados que sejam mais
que eles veem a si próprios como mentores e forma- complexos intelectual e moralmente e que tenham a co-
dores de líderes8. ragem moral de agir segundo suas crenças e valores. Isso
Os soldados revelam o seu caráter pelo seu é mais fácil falar do que fazer. Os programas de sucesso
comportamento — no contexto do seu dia-a-dia e “começam com um modelo que inclui a dimensão cogni-
enquanto exibem sua competência. Um bom teste tiva, afetiva e comportamental… e uma programação tão
do caráter dos soldados é como eles se comportam variada quanto o esclarecimento de valores, a discussão
quando algo dá errado. O caráter não se revela em de dilemas morais, a dramatização e a resolução de con-
um vazio. O conceito de “caráter” está visível no que flitos”. Além disso, há indícios de que “o desenvolvimento
fazemos o tempo todo (embora muitas vezes não moral possa continuar durante a idade adulta e que
pensemos nesses termos). Assim, nosso Exército mudanças especialmente drásticas possam ocorrer em
precisa desenvolver moralmente líderes éticos para jovens adultos no contexto da educação profissional… O
as contingências complexas. desenvolvimento moral e ético ocorre em vários contex-
Como as pessoas desenvolvem o caráter? As tos, tanto formais quanto informais”10.
pesquisas dessa área mostram resultados variados. Nosso Exército precisa criar esses contextos formais
Um poderoso método pedagógico, proposto por Lee e informais e praticar (por meio da dramatização e
Knefelkemp, da Universidade Columbia, em Nova do ensaio) a intenção moral e a ação moral. A maior
York, é fazer com que as pessoas saiam da sua zona lacuna no modelo de Rest é a etapa entre as intenções
de conforto — fazer com que se sintam incomodadas morais e as ações morais. Muitas vezes, nossos soldados
mediante debates sobre assuntos que elas não queiram sabem qual é o certo a fazer, mas (com frequência devi-
discutir. Esse processo provoca uma dissonância cog- do a um sentido distorcido de lealdade) não têm a co-
nitiva na mente das pessoas, que desafia suas crenças e ragem moral para de fato fazê-lo. Há muitos exemplos
leva à mudança. dos nossos conflitos atuais (os espancamentos na base
O Exército precisa adotar uma visão holística do aérea de Bagram, Abu Ghraib, Operação Iron Triangle);
desenvolvimento de caráter. Um modelo comum utili- os soldados sabiam qual era o certo a fazer, mas não o
zado para o desenvolvimento é descrito a seguir: fizeram. Toner observa que esse problema fundamen-
tal tem uma solução: “Um importante problema com
o ensino de ética é que ele não pode ser colocado em
Novos Conhecimentos
compartimentos perfeitos e convertido em resultados
de aprendizagem sonoros e desejados… Não existe uma
solução “mágica” — nenhuma bússola ética sempre se-
Reflexão Experiências de
gura. Devemos ensinar o raciocínio moral, e não apenas
Desenvolvimento
‘valores centrais’ ou ‘listas de conferência éticas’”11.

34 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

Albert Bandura descreveu a escolha de não fazer por uma série de prismas éticos (voltados para o re-
nada (ou fazer vista grossa) como um ato de “desco- sultado, voltados para regras/processos, voltados para
nexão moral”: valores). Ao expô-los a operações táticas, multitarefas
Em palavras simples, a “desconexão moral” é e complexas, devemos incorporar variáveis moral-
o que acontece com as pessoas quando elas mente intensas à equação. Devemos buscar fazer com
recebem uma carga além da sua capacidade que os soldados saiam de suas zonas de conforto, gerar
emocional e psicológica. Seus corpos, psiques, ansiedade e exigir que tomem decisões difíceis que
mentes e almas se desconectam dos eventos não tenham uma resposta necessariamente certa, mas
à sua volta e elas se tornam alheias, em um que tenham consequências.
estado quase de dissociação. Se não for con- A orientação (coaching) e o acompanhamento (refle-
trolada, a pessoa “reinterpretará” ou utilizará xão orientada) de qualidade devem ser contínuos du-
uma lógica forçada para justificar comporta- rante todo o processo. Um líder, orientador ou mentor
mentos amorais12. deve ajudar os alunos a encontrar significado em suas

[…] soldados sabem qual é o certo a fazer, mas


(com frequência devido a um sentido distorcido
de lealdade) não têm a coragem moral para de
fato fazê-lo.

A presente era de conflito persistente sobrecarrega experiências e examinar suas percepções e decisões. Os
e continuará a sobrecarregar os soldados além de sua líderes e orientadores também devem transmitir suas
capacidade emocional e psicológica: experiências sem julgar. Escolhemos a palavra “orien-
Para desenvolver o bom caráter, os alunos tador”, e não professor ou conselheiro, porque a forma
precisam de várias oportunidades diferentes como se transmite a mensagem é importante. Para que
para aplicar valores como responsabilidade alguém mude, é preciso que se desenvolva, e isso exige
e justiça em interações e discussões diárias… realismo, experiência e repetição. O ponto-chave é que
Por meio de repetidas experiências morais, os o treinamento é ineficaz quando se tenta desenvolver
alunos… desenvolvem e praticam as habili- as pessoas. “Só depois que o ‘líder em treinamento’ é
dades morais e os hábitos comportamentais obrigado a passar por um problema e resolvê-lo em
que compõem o aspecto da ação do caráter… primeira mão é que ele absorve a lição”14.
em uma comunidade moral e que aprende, na Essa ideia não é nova. A integração do treina-
qual todos compartilham da responsabilidade mento, ensino e desenvolvimento em um modelo ho-
pelo ensino de caráter e buscam aderir aos lístico de desenvolvimento de competência começa a
mesmos valores centrais13. infiltrar-se na cultura do Exército. Nosso Exército se
Como se criam as experiências de desenvolvimento movimenta lentamente em direção a um modelo de
e se introduzem os novos conhecimentos para desen- treinamento e desenvolvimento de liderança adap-
volver os soldados moral e eticamente? Não é difícil, tável. Por causa da complexidade cada vez maior do
mas leva tempo, raciocínio e acompanhamento. Um campo de batalha moderno, os soldados e os líderes
ponto de partida é oferecer aos soldados experiências devem tomar decisões extremamente importan-
simuladas do mundo real, semelhantes às pistas de tes em uma fração de segundo, que têm efeitos de
exercício tático, e acrescentar contextos e situações segunda e de terceira ordem e, às vezes, estratégicos.
realistas a serem enfrentados; desenvolver problemas Não devem ser treinados em habilidades específicas,
do mundo real com os quais eles precisem lidar; criar mas desenvolvidos para possuir certas características
oportunidades para que os soldados e líderes prati- e traços — os soldados e líderes terão de ser ágeis
quem a tomada de decisões éticas e analisem cenários física, mental, social e emocionalmente — e possuir

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 35


[…] para que a reflexão resulte em desenvol-
vimento, algu […] deve forçar os limites e facilitar
uma experiência de reflexão que faça o indivíduo
sair da sua zona de conforto.
força de caráter e de competência. Todos os soldados Como se Apresenta em Ação
precisam ter a capacidade de pensar de forma crítica Analisemos dois componentes-chave do caráter:
e agir com determinação. o respeito e a integridade. Temas como o respeito
Como mencionado, um aspecto importante do e a integridade não devem ser compartimentados
modelo de desenvolvimento é a reflexão. A reflexão é nos cérebros dos soldados e líderes. O respeito e a
um conceito do qual muitas pessoas no Exército não integridade não são termos vagos e teóricos, sobre
gostam ou não têm conhecimento, mas é vital para o os quais devamos pensar e discutir ocasionalmente.
desenvolvimento do caráter. A reflexão implica que Eles devem ser o que somos. Os soldados não podem
uma pessoa (ou grupo) pense, escreva e discuta em compreender e demonstrar o respeito e a integridade
detalhe sobre uma experiência, ideia, valor ou novo em termos de estar “de serviço” ou “de folga”. O re-
conhecimento. Além disso, para que a reflexão resulte cente escândalo sexual envolvendo sargentos instru-
em desenvolvimento, alguém (um líder de grupo de tores e recrutas é um exemplo dessa mentalidade “de
combate, um sargento ou chefe de pelotão, um orien- serviço” em contraste com “de folga”.
tador ou um mentor) deve forçar os limites e facilitar Por exemplo, um comandante de pelotão pode
uma experiência de reflexão que faça o indivíduo sair discutir a importância de um relatório preciso de
da sua zona de conforto. contagem e aprestamento de recursos ao conduzir uma

Soldados do Gabinete de Relações Públicas ouvem um graduado na Estação de Segurança Conjunta Zafaraniya, leste de Bagdá, Iraque,
18 de abril de 2009. (Exército dos EUA, Sgt James Selesnick)

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CARÁTER

inspeção da seção de transportes. Um comandante de integrar lições de caráter e competência no currículo.


batalhão pode iniciar uma discussão de dez minutos Os indivíduos mais aptos a modificar essa cultura no
sobre o respeito no final de uma reunião de treina- Exército são os selecionados para liderar os soldados nos
mento. Um comandante de companhia pode discutir escalões de companhia, batalhão e brigada — os co-
lealdades conflitantes com outros comandantes ou com mandantes e os sargentos-ajudantes. Esses líderes-chave
soldados durante uma refeição. Durante um intervalo têm a influência mais direta sobre os soldados e líderes
de “descanso” selecionado em um exercício de treina- subordinados e devem liderar o caminho na transfor-
mento da missão, um sargento de pelotão pode inserir mação da cultura (e ambiente) do Exército. Também
uma discussão de cinco minutos sobre a importância estabelecem a cultura e o ambiente de suas unidades de
da precisão nos relatórios. Há inúmeras oportunidades modo que os soldados façam e se sintam parte da equipe.
como essas, e vale lembrar que, de uma perspectiva de Os líderes-chave de uma organização têm mais êxito em
desenvolvimento, “a omissão de discurso não é uma mudar sua cultura16.

Podemos e devemos tornar assuntos como ho-


nestidade e integridade parte comum da conver-
sa nas seções de transporte, bases avançadas de
operações, áreas de treinamento, postos de co-
mando de comandantes de subunidades e praças
de esporte.
educação de valor neutro. Isso não existe. A omissão é Portanto, os comandantes e subtenentes em todos
um sinal poderoso, ainda que não intencional, de que os escalões devem desafiar uns aos outros e desafiar seus
essas questões não são importantes”15. Em consequên- soldados a ajudar a mudar nossa cultura. Essa não é uma
cia, quando nosso Exército, em qualquer canal, deixa tarefa intensiva em recursos. Podemos e devemos tornar
de abordar implicações morais e éticas, uma mensagem assuntos como honestidade e integridade parte comum
clara é transmitida para o público: “No presente mo- da conversa nas seções de transporte, bases avançadas
mento, isso não é tão importante”. de operações, áreas de treinamento, postos de comando
Um ponto de partida para implantar essa mudança de comandantes de subunidades e praças de esporte.
pode ocorrer em nossas escolas se os instrutores sim- Devemos falar abertamente e à vontade sobre o que
plesmente se perguntarem: “Quais são alguns dos desa- essas palavras significam. Devemos ter diálogos abertos
fios éticos que surgem em minha disciplina (gestão de e francos sobre o tema do respeito (Em que consiste? Em
manutenção, tática, primeiros socorros, comunicações, que não consiste?). Essas discussões não precisam ser aulas
Inteligência, segurança de tiro, gestão de suprimento, formais, constantes de um cronograma de treinamento.
operações de comboio, etc.)? O instrutor pode, então, Desenvolver as pessoas para serem mais complexas mo-
inserir os desafios no currículo ou mediante técnicas ral e intelectualmente (em vez de treiná-las ou ensinar-
pedagógicas. Por exemplo, uma aula sobre como reali- -lhes os assuntos) exige tirá-las de suas zonas de conforto
zar verificações e serviços de manutenção preventiva e falar com elas, e não a elas.
em um veículo pode incluir uma discussão sobre a im- Os comandantes e outros líderes devem deixar que
portância de relatórios precisos sobre o aprestamento jovens soldados liderem discussões nessas áreas. Um
do material bélico. O instrutor talvez diga: “seus colegas comandante de pelotão pode solicitar que um especia-
soldados podem ser colocados em risco se você infor- lista dê um exemplo de um conflito entre lealdade e
mar que uma viatura está plenamente habilitada para integridade. Dois sargentos de pelotão podem discutir
a missão quando, na verdade, não está”. Na solução de o que não constitui o respeito na frente de seus pelotões.
longo prazo, especialistas no campo de desenvolvimen- Um grupo de soldados pode atuar em uma dramati-
to de caráter auxiliariam o TRADOC e nossas escolas a zação de exemplos de honestidade. A interação entre

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 37


Soldados americanos e policiais de fronteira afegãos caminham ao longo de uma trilha de montanha durante uma patrulha na Província
de Paktiya, no Afeganistão, 13 de outubro de 2009. (Exército dos EUA, Sgt Andrew Smith)

colegas quanto a esses temas difíceis e incômodos é uma diferente nas mentes dos comandantes. Os comandantes
das técnicas de desenvolvimento mais eficazes. Somos compreenderão que, se deixarem de desenvolver o caráter
limitados nessa área apenas pela nossa imaginação e de seus soldados de forma adequada e plena, estabelecerão
não precisamos reservar um período de instrução de condições para o fracasso.
uma hora para iniciar essas discussões.
Garantir que os soldados de uma unidade verdadeira- Como Mudar uma Cultura
mente tenham caráter (e sejam competentes) é uma res- A mudança que defendemos seria uma transfor-
ponsabilidade de liderança e comando em seu nível mais mação revolucionária na cultura do Exército, não uma
básico. Como a maioria dos “problemas” no Exército, esse é transformação gradual ou metódica. Para que ela seja efi-
simplesmente um problema de liderança. Historicamente, caz, os líderes dos escalões mais elevados da organização
“os comandantes são responsáveis por tudo que uma teriam de exigi-la. Esses líderes precisam criar, direcionar
unidade faz ou deixa de fazer”. Esse é um conceito sim- e impulsionar essa mudança para assegurar que ela afete
ples, mas poderoso. Curiosamente, em termos de aceitar todas as facetas dos sistemas de desenvolvimento e ensi-
responsabilidade pelo ambiente e comportamento de “ca- no de liderança do Exército17. O atual status quo separa o
ráter” de uma unidade, podemos aprender algo dos nossos desenvolvimento de competência do baseado em caráter.
companheiros de armas da Marinha. Se nosso Exército O novo paradigma sempre desenvolverá a competência
adotasse o conceito da Marinha de que “se um navio enca- e o caráter simultaneamente — aumentando, assim, o
lha, o comandante é o responsável”, criaria um paradigma tempo gasto no desenvolvimento do caráter.

38 Março-Abril 2010  MILITARY REVIEW


CARÁTER

Depois da mudança cultural, a competência e o facilitar essas conversas incômodas. Entretanto, boa
caráter passarão a fazer parte de tudo o que fizermos. parte da estratégia para implantar essa mudança é
Como um guia para impulsionar essa mudança, propo- “simplesmente fazê-lo”. Precisamos estabelecer as
mos que se utilizem os oito passos de John Kotter para condições e criar oportunidades para os soldados
mudar a cultura de uma organização: pensarem sobre a forma como entendem questões di-
1. estabelecer um sentido de urgência (de cima para fíceis, como o assassinato, a tortura, o estupro, e como
baixo e de baixo para cima); elas são relacionadas com detentos e estrangeiros. Os
2. criar uma coalizão orientadora (para iniciar e con- soldados precisam testar e desafiar seus pensamentos,
tinuar o processo); crenças e valores. Esse simples primeiro passo será, na
3. desenvolver uma visão e estratégia para integrar o realidade, um enorme passo rumo a tratar da mudan-
caráter e a competência; ça cultural que propomos.
4. comunicar a visão de mudança utilizando os líderes Se o Exército decidir realizar essa mudança
mais antigos; cultural, economizará na verdade tempo e dinheiro.
5. possibilitar a ação de base ampla ao remover obstá- A economia líquida ocorrerá porque os soldados não
culos à mudança; terão mais de entrar em salas de aula ou auditórios
6. gerar ganhos de curto prazo integrando o ensino de para assistirem a treinamentos referentes a ética.
caráter em nossos currículos; Nosso Exército se transformará em uma profissão
7. consolidar os ganhos e produzir mais mudança em que o treinamento, ensino e desenvolvimento de
(integrando o ensino de caráter em nossos canais caráter e competência ocorrerão simultaneamente
de treinamento); — e o resultado será soldados que entendem e
8. fixar novas abordagens na cultura desafiando ou- internalizam o que significa ser um soldado america-
tros na organização a falar sobre a mudança18. no. Por fim, nosso Exército e nossa nação se benefi-
Haverá uma curva de aprendizado pronuncia- ciarão de tal mudança. É a coisa certa a fazer e agora
da para os instrutores e líderes sobre como criar e é a hora de fazê-lo.

Referências
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Journal (Summer 1998). Business School, 2007), p. 13.
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ph and Betrayal of an American Commander in Iraq (New York: gton, DC: Center for Defense Information, December 2006).
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Can Ethics Be Taught? Perspectives, Challenges and Approaches Differs from Management (New York: Free Press, 1990).

MILITARY REVIEW  Março-Abril 2010 39


Articulando a nossa Ética Profissional
Tenente-Coronel Brian Imiola, Ph.D., Exército dos EUA, e
Major Danny Cazier, Exército dos EUA

“Divorciadas da ética, a liderança fica ●●Como ética é um conceito objetivo, uma ética
reduzida à gestão e a política, à mera técnica.” profissional não pode divergir radicalmente do
——James MacGregor Burns código moral que deve reger toda a humanidade.

H
●●Embora não seja radicalmente diferente,
Á MUITO O Exército funciona a ética de uma profissão serve a um público
sem uma expressão formal da sua específico. Sua expressão deve ser útil para tal
ética profissional. Entretanto, várias público.
pessoas ligadas à profissão das Armas têm ●●Uma ética é expressa com uma finalidade.
questionado abertamente se é prudente, ou Um dos principais objetivos de expressar a nossa
mesmo possível, tentar formalizar uma “ética ética profissional é promover o desenvolvimento
profissional militar” (EPM). É justamente isso, moral dos nossos soldados. Portanto, ela deve
porém, que o Exército vem se empenhando ser apresentada de modo que lhes seja permitido
em fazer. Ele tem promovido esforços para internalizá-la.
expressá-la, incentivando o debate aberto sobre
o tema com indagações sobre a natureza e o Uma EPM Deve ser Normativa e
conteúdo da ética profissional militar norte- Não Pode ser Criada
americana. Apresentamos algumas opiniões O Manual de Campanha 1, O Exército
que, esperamos, irão enriquecer o debate e a (FM 1, The Army) afirma: “As profissões
investigação sobre o tema. criam seus próprios padrões de desempenho e
códigos de ética para manter sua eficácia”. Uma
assertiva problemática como essa — por diversos
Constatamos que o etos motivos — demanda uma análise. Antes disso,
vem se tornando um tema é preciso esclarecer o que é ética e o que é etos.
Constatamos que o etos vem se tornando um tema
cada vez mais comum em cada vez mais comum, em função do destaque do
“etos do guerreiro”, no Credo do Soldado. Dada
função do destaque do “etos a semelhança do termo etos com ética, muitos
do guerreiro”, no Credo do logo confundem os dois. Entretanto, salvo o fato
de terem a mesma origem etimológica, as duas
Soldado. palavras possuem pouco em comum.
A ética responde a perguntas sobre o certo e
o errado. Ela deriva de características imutáveis
Resumidamente, propomos que qualquer da natureza humana. O etos reflete o espírito
análise da ética profissional militar leve em de uma organização ou o espírito que ela busca
consideração o seguinte: incutir em seus integrantes. Ele deriva da postura
●●Afirmamos que todo esforço para ou de metas compartilhadas da organização. Não
desenvolver um código de ética deve estar sujeito há uma relação essencial entre os dois termos.
às restrições da moral objetiva preexistente. Um etos não é necessariamente ético. Pode-se

O Tenente-Coronel Brian Imiola, Exército dos EUA, é O Major Danny Cazier é professor adjunto de Filosofia
professor no Departamento de Inglês e Filosofia da Academia na Academia Militar dos EUA. É mestre em Filosofia pela
Militar dos EUA. É doutor em Filosofia pela University at Virginia Tech. Seus atuais interesses de pesquisa são as
Buffalo. Serviu na Somália, Haiti, Turquia e Iraque. Éticas Profissional e Militar.

28 Novembro-Dezembro 2010  MILITARY REVIEW


ÉTICA PROFISSIONAL

Departamento de Defesa, Sgt D. Myles Cullen, Força Aérea dos EUA.

Soldados da 3ª Divisão de Infantaria do Exército dos EUA prestam continência durante cerimônia de realistamento no Camp
Liberty, no Iraque, 17 Jul 07.

imaginar um etos nazista e o que ele acarretaria. podemos criá-la, mas apenas nos empenhar em
Um etos que vise a ser ético estará sujeito a uma descobrir ou discernir o que ela determina e,
análise para determinar se ele o é de fato. então, agir em conformidade com isso. Se isso
A ética em si não está sujeita a essa análise. parece surpreendente, considerem-se documentos
Não faria sentido perguntar se a ética é ética, importantes, como a Declaração da Independência
mas faz sentido questionar se um código de dos EUA, a Carta de Direitos dos EUA e a
ética específico representa devidamente as Declaração Universal dos Direitos Humanos da
responsabilidades morais de uma pessoa. O ONU, de 1948. Eles se concentram em direitos
que se almeja, quando se busca uma ética “inalienáveis”. Exemplos incluem o direito à
profissional, é a melhor compreensão dos vida e à liberdade. Eles também se baseiam no
princípios que devem determinar nossa fundamento de que todos os seres humanos nascem
conduta, não o espírito ou a mentalidade que a livres e iguais. Nenhum desses documentos teve a
influenciam. Com isso em mente, nossa meta pretensão de criar esses direitos. Eles já existiam,
deve ser cultivar um etos que reflita a nossa com base em princípios preexistentes. Os
ética, de forma deliberada. O que realmente documentos apenas os discernem e os descrevem,
queremos é que o autêntico espírito da nossa de modo a influenciar e a guiar nossa conduta.
organização reflita nossas obrigações morais. Não estamos criando novos princípios quando
A ética é normativa, o que significa apenas tentamos expressar nossa ética profissional. Em
que ela nos diz o que devemos fazer. Ela advém vez disso, buscamos descrever com precisão os
da nossa natureza humana comum, incluindo princípios éticos preexistentes, de modo que
características-chave, que definem que seres possam orientar a conduta em nossa profissão.
somos. Somos seres racionais e sociais. Como Os cientistas não criam leis físicas. Eles as
a moral deriva da nossa natureza humana, não descobrem. Eles tentam, então, descrevê-las da

MILITARY REVIEW  Novembro-Dezembro 2010 29


forma mais precisa, clara e útil possível. A tarefa Nessas duas áreas, as profissões são diferentes
de desenvolver uma ética profissional militar se do resto da sociedade. Cada profissão representa
baseia no mesmo princípio. Não estamos criando um conjunto de competências — ou habilidades
imperativos morais. Estamos apenas identificando — especiais. Um grupo de profissionais
imperativos que já existem. Ao se desenvolver “professa” estar pronto a desempenhar um
uma ética profissional militar, a descrição deve serviço essencial específico à sua clientela.
suceder a descoberta. A descrição dessa ética deve Essa “profissão” é uma promessa implícita.
representar a nossa descoberta, com precisão, Assim, ao estarem especialmente preparados
e ilustrar como os seus princípios se aplicam à para exercer uma função específica e ao terem
nossa profissão. anunciado sua determinação nesse sentido, os
Parece-nos difícil conciliar o nosso trabalho profissionais incorrem em maior obrigação
de identificar e descrever uma ética profissional de desempenhar esse papel do que o público.
militar com a alegação do Manual de Campanha Vale observar que essa diferença entre a ética
1 de que “As profissões criam seus... códigos profissional e a moral em geral é de grau, e
de ética para manter sua eficácia”. Podemos não de gênero. Os profissionais têm maior
concordar com a primeira parte dessa assertiva, obrigação moral de realizar certas ações em
apenas na medida em que se entenda que o que relação aos demais na sociedade, mas não têm
está sendo criado não é a própria ética e sim, uma a licença para agirem de forma diversa da que
representação dela — da mesma forma que um se permite moralmente a estes. Não há nada
artista não cria o tema em si, mas uma ilustração de fundamentalmente diferente nos fatores
do tema. A segunda parte da assertiva, no entanto, basilares que determinam as responsabilidades
é mais problemática. A finalidade da ética é guiar éticas dos profissionais.
a conduta em direção a um ideal moral, e não Para ilustrar essa observação, considere-se
apenas manter a eficácia. Como pode a eficácia a obrigação moral de salvar uma criança que
servir como ponto de partida adequado para um esteja se afogando. Todos temos tal obrigação.
autêntico código de ética? Contudo, caso o resgate exija que se saiba
Um código, cujo objetivo básico seja nadar, apenas aqueles capazes de fazê-lo terão
simplesmente atingir a eficácia, irá funcionar essa obrigação. Simplesmente, uma pessoa não
bem tanto para o combatente justo quanto para pode ter a obrigação de tomar uma ação para
o injusto. Talvez seja eficaz mentir para os a qual não esteja habilitada (na verdade, quem
nossos soldados para conquistar seu apoio a não souber nadar continua a ter a obrigação de
uma guerra injusta. Talvez, também, seja eficaz fazer o possível para apoiar o resgate da criança,
adotar uma política que ignore um alto índice pedindo ajuda, jogando uma corda ou efetuando
de baixas civis em determinadas situações, para algum outro tipo de intervenção). Pelo mesmo
conservar o poder de combate e a efetividade. raciocínio, os que forem bons nadadores certa-
Nossa ética profissional militar deve apontar mente terão uma obrigação moral ainda maior.
verdadeiramente para a conduta ética e não para Contudo, à parte da questão de capacidade,
a mera conveniência. um salva-vidas tem uma obrigação de resgatar
os que estiverem se afogando maior do que a
Uma EPM Deve Refletir Códigos do público em geral. Isso porque, ao ocupar
Morais que Regem Todos os tal posição, ele professou (fez uma promessa
Seres Humanos implícita) ao público que tentaria salvar os que
A ética profissional militar do Exército não estivessem se afogando. Assim, sua obrigação
pode divergir radicalmente do código moral que é maior do que a de qualquer outro cidadão no
deve reger todos nós, como seres humanos. Todos local, cujas habilidades de salvamento sejam
temos certas responsabilidades morais, coisas que idênticas às suas. Esse cenário sugere que a
devemos fazer e coisas que não podemos fazer, responsabilidade do salva-vidas de resgatar
uns aos outros. Nossas habilidades especiais e os que se estiverem se afogando é maior que
as promessas que fazemos aos outros ajudam a a do público em geral tanto por causa do seu
determinar nossas responsabilidades morais. conjunto de competências especiais, quanto

30 Novembro-Dezembro 2010  MILITARY REVIEW


ÉTICA PROFISSIONAL

Força Aérea dos EUA, Sgt David H. Lipp

Uma militar da Força Aérea dos Estados Unidos ajuda a admitir pacientes e a controlar a entrada na Clínica Governamental
do Mercado de Mallam-Atta como parte do Exercício de Assistência Médica Humanitária das Forças Combinadas de 2006,
em Acra, Gana, 14 Set 06.

por haver “professado” seu papel. Assim, o papel ou um relacionamento pressupõem a


salva-vidas tem a obrigação moral de obter obrigação de cometer algo errado, então seria
as habilidades, os conhecimentos, os equipa- imoral assumi-los. Atos que sejam moralmente
mentos, etc. necessários para salvar nadadores inadmissíveis não podem ser convertidos em
em perigo. Mais uma vez, por ter declarado algo moralmente certo em virtude da condição
sua determinação de prestar esse serviço, ele profissional de uma pessoa, da mesma forma
incorre na obrigação de se preparar e de se que atos imorais não podem se tornar obriga-
manter pronto para cumprir a promessa implí- tórios, ao prometer-se realizá-los. Não se pode,
cita. Ainda assim, a obrigação do salva-vidas, simplesmente, ter uma obrigação moral de
embora maior em grau, é do mesmo gênero cometer algo imoral, não importa o papel ou
daquela que o público já tem. relacionamento que se tenha.
Essas duas características — um papel ou Alguns podem contestar, afirmando que um
relacionamento especial e uma habilidade policial que emprega a força para apreender
especial — não podem gerar obrigações morais alguém faz algo que a sociedade em geral não
diferentes em gênero das que as pessoas já tem liberdade para fazer. Contudo, mesmo que
têm umas para com as outras. As habilidades seja verdade, até certo ponto, isso não prejudica
especiais apenas aumentam as nossas obriga- o argumento. Um policial extrai sua autoridade
ções em relação aos outros. Elas não alteram moral para empregar a força da sua autoridade
fundamentalmente o caráter de tais obrigações. moral para proteger inocentes. Ademais, a
E a nossa relação com o público em geral não sociedade lhe transferiu a autoridade natural que
nos autoriza a fazer coisas que seriam erradas tem para se proteger. Assim, o policial não está
se ele as fizesse. Comprometer-se a fazer algo fazendo algo fundamentalmente diferente do que
errado seria imoral. Assim, se um determinado os cidadãos têm o direito natural de fazer.

MILITARY REVIEW  Novembro-Dezembro 2010 31


Uma EPM Deve ser Expressa Nosso principal desafio é determinar a melhor
como Princípios forma de comunicarmos essas obrigações a todos
Uma expressão funcional de uma ética em nossa profissão.
profissional deve ser declarada em termos Considerando a diversidade das nossas forças
acessíveis para todos os membros da profissão militares e a função de uma ética profissional,
que busca servir. Caso contrário, não terá grande conclui-se que qualquer expressão prática da
valor para essa profissão. Para que seja útil para nossa ética profissional militar deve ser:
uma grande parcela da nossa profissão e em todo ●●Clara e sucinta, para que seja facilmente
o espectro das atividades militares, precisamos compreendida e lembrada.
declarar qualquer expressão funcional da nossa ●●Abrangente, de modo que ofereça
ética profissional sob a forma de princípios, em orientações morais suficientes para os soldados
vez de “valores” ou de regras. Esse não é um norte-americanos.
pequeno desafio, se considerarmos a grande ●●Educativa, de modo que promova um
diversidade dentro da nossa profissão militar entendimento verdadeiro do caráter das nossas
com respeito à formação acadêmica (desde a obrigações morais profissionais e influencie o
conclusão do supletivo até vários cursos de ensino juízo moral em novas situações.
superior), à maturidade (de cabos adolescentes ●●Inspiradora, de modo que motive os soldados
a graduados e oficiais com mais de 50 anos) e à a alcançá-la.
motivação para o serviço (jingoísmo, patriotismo, Os dois primeiros critérios parecem
bolsas de estudo para cursar a faculdade, interesse razoavelmente autoevidentes e fáceis de entender.
técnico em um campo específico, aprendizado Os dois últimos merecem ser discutidos. Não se
de um ofício). A complexidade e a diversidade pode expressar nossa ética em termos de valores
da nossa profissão provavelmente não podem ou regras e esperar que ela seja educativa e
ser equiparadas às de qualquer outra profissão. inspiradora.
Em termos de perícia técnica, abarcamos uma O argumento contra os valores. Embora
gama tão ampla de competências (nas diversas valores sejam essenciais à moral, a forma pela
Armas) que talvez sejamos mais bem descritos qual os expressamos é vaga demais para oferecer
como uma aliança de várias profissões, em vez orientação de como agir, por si só. Por exemplo,
de uma profissão homogênea. Isso levou alguns o valor “respeito” não oferece orientação alguma
a questionarem se há uma única ética militar ou se não for mais bem definido e desenvolvido.
se as Forças Armadas têm várias éticas. Embora todos tenhamos uma compreensão geral
Nossa profissão fica mais bem servida por dos valores, não compreendemos claramente com
uma única expressão da nossa ética profissional. quais ações esses valores nos comprometem. Ou,
A função fundamental de uma ética profissional mais simplesmente, não fica claro o que os valores
é oferecer orientação para as ações a um grupo exigem. Nossa atual abordagem no formato de
de profissionais. Ela deve enriquecer-lhes a “Valores do Exército” reconhece implicitamente
compreensão em relação às suas obrigações que um valor, por si só, é insuficiente para orientar
morais. Deve ajudá-los a determinar o que é a ação. Ao apresentar os Valores do Exército,
moralmente exigido em seu papel específico. o Manual de Campanha 6-22 “Liderança do
Deve descrever a ação certa no contexto da Exército” (FM 6-22, Army Leadership) vai além
profissão. Talvez o mais importante para os nossos de simplesmente citá-los. Ele tenta convertê-los
presentes objetivos, porém, é o fato de que uma em princípios orientadores da ação. Comenta os
ética profissional deve unir a profissão em torno tipos de ação que tais valores podem exigir. Por
de um propósito. A melhor forma de alcançarmos exemplo, relata que a lealdade requer que se tenha
isso é por meio de uma única expressão da nossa “lealdade à Constituição dos Estados Unidos, ao
ética. Além disso, como uma ética profissional Exército, à sua Unidade e aos outros soldados”.
não difere radicalmente do código moral ao Esse esforço para conferir significado aos valores
qual já estamos obrigados, não se deve esperar reflete como eles são, por si só, insuficientes
encontrar diferenças radicais nas obrigações como orientadores da ação e como educadores
morais dos vários elementos da nossa profissão. dos profissionais.

32 Novembro-Dezembro 2010  MILITARY REVIEW


ÉTICA PROFISSIONAL

Devido ao caráter vago dos valores, os soldados O argumento em prol dos princípios. Se os
podem interpretá-los de maneiras que gerem con- valores e as regras são fracos candidatos para
flitos irreconciliáveis, ao tentarem utilizá-los como expressar nossa ética profissional militar, o que
base para decisões. Muitos valores sequer são valo- nos resta? Entre os valores e as regras estão os
res morais objetivos, mas instrumentais. Os valores princípios. Eles são menos vagos que os valores
morais objetivos melhoram verdadeiramente a e menos específicos que as regras. Expressam
ação, quando respeitados. Os valores instrumentais verdades morais genéricas, mas continuam a
simplesmente auxiliam o cumprimento de uma defender ou a condenar tipos de ação específicos.
causa particular. Para ilustrar essa observação, Oferecem uma orientação geral, ao mesmo tempo
considerem-se os valores da coragem pessoal e em que exortam os membros da profissão a
da lealdade. Eles parecem ser valores adequados, exercerem sua capacidade de discernimento, ao
mas podem ser facilmente empregados na busca aplicá-los com maior precisão do seria possível
de fins imorais. A coragem, por exemplo, torna um com os valores ou com as regras. Defendemos
ladrão de bancos ainda mais perigoso à sociedade que os princípios são o veículo adequado para
do que se ele não a possuísse. A lealdade torna o expressar nossa ética profissional.
crime organizado uma ameaça mais pérfida do que Os princípios educam. Eles oferecem melhor
se os seus membros fossem desleais a uma gangue orientação para a ação do que valores vagos ou
ou à máfia. Até mesmo indivíduos envolvidos em regras aplicáveis de forma restrita. Como eles se
atividades ilícitas acham a coragem e a lealdade aplicam a categorias de ação, não são necessários
úteis. E sua conduta torna-se ainda mais imoral muitos deles. Funcionam melhor do que regras
por haverem explorado esses valores. específicas, porque educam.
O argumento contra as regras. Vale observar, Cobrem uma infinidade de casos e, assim,
também, o argumento contra as regras. Primeiro, oferecem um entendimento do elemento comum
uma relação de regras nunca seria suficientemente a todos eles. O princípio envolvido explica o
longa para registrar tudo o que se deve ou não caráter correto ou incorreto. À medida que os
fazer. Segundo, qualquer lista de regras — se apli- profissionais amadurecerem, o mesmo ocorrerá
cada — na verdade só se aproximaria de mais um em relação à sua compreensão do que os
código legal. Daria margem à interpretação voltada princípios requerem.
a aspectos legais e a manobras. Não só já temos Os princípios também promovem a autonomia
um código legal adequado (Código Uniforme de de decisão, a marca de uma profissão (as regras,
Justiça Militar), como nossa ética não deve ser por outro lado, o eliminam – essa é a marca da
relegada à condição de lei. A lei determina o que burocracia). Como eles educam e passam a exigir
fazer para evitar uma punição, mas, em última aná- o uso do próprio critério, os princípios incentivam
lise, não diz o que se deve fazer. Terceiro, as regras uma conduta melhor do que o fariam as regras.
são impotentes se não houver imposição. Quando Por exemplo, o respeito é um valor essencial.
impostas, a principal motivação para segui-las é o Contudo, mesmo que chegássemos a um consenso
mecanismo de imposição (ou seja, a punição). No quanto ao significado do respeito, isso não geraria
campo de batalha atual, os soldados muitas vezes automaticamente qualquer orientação para a
operam de forma independente. A perspectiva de ação, até que convertêssemos o respeito em um
punição é remota demais para guiá-los, especial- princípio moral. Além disso, há uma série de
mente quando não têm a certeza de que sobrevi- princípios morais que podem, plausivelmente,
verão para recebê-la. As regras simplesmente não derivar do valor respeito. Alguns são compatíveis,
serão capazes de compelir um soldado a adotar a enquanto outros se chocam.
devida conduta se ele já não for alguém preocupado Algumas possibilidades são relacionadas a
em agir corretamente. seguir:
Por fim, as regras não educam. Elas afirmam o ●●Enxergar os outros como tendo o mesmo
que se deve ou não fazer, mas não dizem o porquê. valor que você.
Isso se deve ao fato de que elas são específicas a ●●Tratá-los da forma como devem ser tratados.
alguns casos, sem possuírem implicações aplicá- ●●Não prejudicar ninguém (incluindo os
veis aos demais. culpados) infundadamente.

MILITARY REVIEW  Novembro-Dezembro 2010 33


●●Demonstrar consideração adequada aos Cada uma dessas “regras” ilustra sua
superiores. inadequação geral. A primeira comunica ao soldado
●●Exigir atenção à missão e respeitar o poder que ele não deve empregar munição contendo
legítimo. veneno. Contudo, como ela não explica por quê,
Saber quais ações são requeridas por um o soldado não compreende automaticamente
valor específico requer considerável reflexão, que ele também não deve empregar munição
compreensão e sensibilidade a outros valores que tenha sido modificada. Assim, seria preciso
relevantes. acrescentar uma proibição separada para projéteis
Defendemos que se deve entender que o res- raiados, outra para cartuchos limados, etc. Mesmo
peito exige, entre outras coisas, evitar causar que a simplificássemos com uma política contra
o mal desnecessário. Esse parece ser o tipo de munição modificada em geral, ela continuaria
orientação que pode guiar a ação sem ditá-la. sendo inadequada para expressar tudo o que está
Em outras palavras, ela oferece orientação, mas incluído no princípio de “evitar o sofrimento
continua a exigir que o soldado empregue o seu desnecessário”. Assim, correria o risco do erro
próprio critério. Se optássemos por negar o uso do introduzido pela segunda regra citada. “Não
próprio critério aos soldados, poderíamos conver- lançar material bélico a menos de 500 metros de
ter o princípio do respeito em uma série de regras. áreas construídas” é, provavelmente, uma boa
Algumas possibilidades são relacionadas a seguir: regra geral. Contudo, sem dúvida, ela não deve ser
●●Não empregar munição contendo veneno. aplicada a todos os casos. O alvo visado às vezes
●●Não lançar munição a menos de 500 metros justificará esse risco. Ou as áreas construídas
de áreas construídas. talvez sejam habitadas apenas por combatentes.
●●Não empregar herbicidas, exceto para Talvez tenham sido abandonadas pelos antigos
controlar a vegetação no entorno imediato de moradores. Regras definidas e fixas como essa se
perímetros defensivos. mostrarão inadequadas em muitos casos.

Departamento de Defesa

Soldado segura a mão de um iraquiano ferido, depois da explosão de um carro-bomba em um cruzamento em Tameem,
Ramadi, no Iraque, 10 Ago 06.

34 Novembro-Dezembro 2010  MILITARY REVIEW


ÉTICA PROFISSIONAL

A regra relativa à utilização de herbicidas realizar de forma rotineira as ações por eles
parece se aproximar de um princípio, já que ditadas. Idealmente, isso levará à internalização.
ela requer certo grau de discernimento ou Não só agirão de acordo com eles, mas também
interpretação para determinar o que significa irão acreditar, verdadeiramente, que eles são os
“no entorno imediato”. Como está expressa em princípios morais corretos. Tal crença não pode
termos de uma proibição rigorosa, ela assume ser fabricada: deve advir da experiência de se
a forma de uma regra. Ao fazê-lo, suscita o entender a verdade em ação.
equívoco. O que significa “entorno imediato”: Precisamos tomar três passos para promover
o alcance de uma granada de mão, o alcance de o desenvolvimento moral da nossa profissão.
armas portáteis, o alcance de utilização da arma Primeiro, devemos gerar uma abordagem simples
que produza o maior número de baixas? Embora e inspiradora da ética profissional militar, que
também exijam esse tipo de interpretação, os seja fácil de lembrar e de entender. Segundo,
princípios buscam ensinar o discernimento em precisamos gerar uma descrição mais longa e
vez de eliminá-lo. Buscam incentivar em vez de mais aprofundada dessa ética, que forneça a
compelir. Em suma, estimulam a conduta ética. fundamentação dos princípios inclusos na versão
resumida. Ela deve explicar os princípios de
Uma EPM Deve ser forma mais completa e ajudar a nossa profissão
Internalizada; Não Apenas a determinar as ações que deles decorrem e
Decorada como aplicá-las. Terceiro, precisamos reforçar
A ética profissional militar do Exército não a ética profissional militar em todos os aspectos
é apenas algo para o soldado decorar. Ele deve do serviço militar, incluindo as atividades
internalizá-la. Os Estados Unidos são uma nação na caserna, os exercícios de campanha e os
de extrema diversidade. Os integrantes da nossa desdobramentos.
profissão ingressam nela com visões de mundo e O êxito nesse empreendimento promete uma
crenças éticas diferentes, algumas das quais não grande recompensa. Os benefícios internos de
estão de acordo com a ética do Exército. Não se expressar essa ética irão:
obstante, a meta final da nossa ética profissional ●●Oferecer um veículo para a compreensão e
militar é que os soldados não simplesmente a internalização dos nossos valores essenciais.
ajam de acordo com esses princípios, mas que ●●Unir as diversas subprofissões (isto é, as
os internalizem. Por internalizar, entende-se várias Armas) em torno de um propósito.
que os integrantes da profissão acreditem, ●●Possibilitar o desenvolvimento moral de
verdadeiramente, que esses princípios sejam cada profissional, individualmente.
moralmente corretos e justos. Ao considerá- ●●Inculcar a confiança moral em nossos
los justos, buscarão entendê-los melhor e soldados.
conformar suas ações a eles. O primeiro passo ●●A p r i m o r a r c o n s i d e r a v e l m e n t e o
rumo à internalização consiste na educação e no desempenho moral dos nossos soldados.
treinamento. A compreensão moral necessária ●●Melhorar a relação de confiança com a
para se fazer um juízo moral correto requer nossa clientela, o público norte-americano.
muito estudo. Para que fomente tal compreensão, ●●Melhorar nosso status como profissão,
uma expressão da ética profissional militar deve alinhando-nos com outras profissões estabelecidas
não apenas esclarecer, mas também promover a (e ajudando a minimizar preocupações quanto ao
reflexão e o diálogo sobre os princípios morais fato de constituirmos ou não uma profissão).
que regem nossa profissão. Só dessa forma ●●Servir de modelo para as forças militares
ela poderá estimular o profissional a, de fato, de outras nações, que estejam empenhadas em
internalizá-los. se profissionalizar e em discernir as implicações
Depois de explicar e ensinar a ética profissional morais da profissão das Armas.
militar, o passo seguinte rumo à internalização Considerando que o Exército dos EUA adentra
é a formação de hábito. Com o tempo e com o seu 236º ano de existência, está na hora, sem
reforço e a correção, nossos soldados converterão dúvida, de expressarmos claramente nossa ética
esses princípios em tal hábito que passarão a profissional.MR

MILITARY REVIEW  Novembro-Dezembro 2010 35


O Sargento como Exemplo Moral
Major Kenneth R. Williams, Exército dos EUA

4ª Colocação na competição de escritores


DePuy

N A GUERRA, A verdade é a primeira


baixa”, segundo o dramaturgo trágico
grego Ésquilo (525-456 a.C.). Com
certeza, a guerra sujeita os soldados a forças
físicas, emocionais, espirituais e morais que
os influenciam a violar suas identidades
morais pessoais e profissionais. Tais violações
frequentemente têm efeitos significativos e de
longo alcance em detrimento a longo prazo do
Exército. O corpo de sargentos pode e deve ter uma
influência moral positiva sobre os soldados que
lidera. O Exército altamente desdobrável de hoje

Exército dos EUA, Cabo Aaron J. Herrera


precisa de sargentos que se considerem agentes
morais e exemplos morais. Na discussão seguinte,
tento delinear as razões dessa necessidade e um
ideal do que um sargento como um “exemplo
moral” deve ocasionar.

Por que o Exército precisa de


Sargentos para Serem Exemplos
Morais? Um graduado do Exército dos EUA conduz uma análise
A introdução do Manual de Campanha FM pós-ação durante um exercício de treinamento no Centro
Combinado de Treinamento de Aprestamento, no Forte Polk,
6-22, Army Leadership (Liderança do Exército), no Estado de Louisiana, 15 de julho de 2009.
lista duas características do líder ideal do Exército
como “de elevado caráter moral” e “serve como influência de longo alcance não apenas sobre
um modelo exemplar”.1 As perguntas levantadas o ambiente e os relacionamentos da unidade,
nos ambientes operacionais atuais ao longo dos mas também sobre o sucesso da missão, o apoio
últimos anos indicam a razão pela qual, agora, público das operações militares e as relações entre
a ênfase deve ser colocada no desenvolvimento as forças dos EUA e aquelas de outras nações.2
de sargentos como exemplos morais. O serviço A natureza da “guerra de três blocos” exige que
militar está cheio de problemas éticos que hoje os sargentos, e os soldados que eles lideram,
possuem consequências estratégicas além de suas sejam profundamente arraigados nos princípios
implicações morais normais. As oportunidades éticos que capacitam moralmente o desempenho
para um colapso moral proliferam nos ambientes adaptável.3 Os soldados devem fazer a transição do
complexos, e há razões utilitárias críticas para combate para o estabelecimento e a manutenção
evitar tais fracassos. O colapso moral tem uma da lei e da ordem, proporcionando assistência

O major Kenneth R. Williams é o capelão da 14ª Brigada de Brown University e mestre pela Southwestern Baptist Theologi-
Polícia do Exército, no Forte Leonard Wood, Missouri. Ele é cal Seminary. Ele desempenhou várias funções de Estado-Maior
bacharel pela Ouachita Baptist University, mestre pela John no território continental dos EUA, Coreia e Timor Leste.

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2010 49


humanitária, e se engajando na reconstrução de Reduzir o impulso de ficar desatento é moral e
nações, enquanto aplica não apenas as habilidades estrategicamente fundamental; deve haver um
técnicas necessárias, mas também os princípios esforço ativo para incutir uma perspectiva moral
morais exigidos para tal transição. na Força por meio de um exemplo de liderança
O conflito prolongado sempre teve um efeito na linha de frente.
adverso no juízo e no comportamento moral dos O Exército continua a experimentar um grande
combatentes.4 Os inimigos não tradicionais são número de fracassos morais. Durante os primeiros
evasivos, e os conflitos muitas vezes podem quatro anos das operações no Afeganistão e no
se agravar rapidamente. Os soldados sob tais Iraque, mais de cem crimes ocorreram, incluindo
condições são frequentemente induzidos a ver estupro, homicídio, agressões e roubo.6 Continua
a população local como o inimigo. Por causa a haver um número significativo de agressões
da exposição prolongada aos estresses de tentar sexuais, conduta sexual imprópria e outros
discernir o inimigo, a disciplina em aderir às crimes. O Exército valoriza muito os programas
proteções dos não combatentes pode diminuir. planejados para evitar tais lapsos morais. Enfatizar
As proibições delineadas no FM 27-10, The Law o sargento como um exemplo moral pode ajudar a
of Land Warfare (“A Lei de Guerra Terrestre”, reforçar a necessidade estratégica moderna de que
em tradução livre), e em regras de engajamento os soldados devem se comportar rigorosamente
têm menos importância em tais condições. conforme as expectativas morais.
A “diversidade” extrema de uma população O desenvolvimento moral dos soldados. Um
não combatente nativa não pode ajudar, mas estudo do treinamento básico inicial indica um
influenciar um jovem impulsivo para o combate.5 efeito limitado no desenvolvimento moral dos
Os métodos altamente letais e desproporcionais soldados, sem nenhuma mudança significativa
podem se tornar mais aceitáveis em reduzir os no padrão moral de tomada de decisões. 7
riscos à custa das baixas não intencionais. Em Os resultados do estudo também indicam
tais condições, um combatente pode rapidamente uma grande influência que os líderes têm de
perder a fé e ficar desatento à população inocente. maneiras positivas e negativas, a incorporação
superficial do código moral do Exército e a
necessidade da educação moral continuada após o
treinamento. Os educadores de ética têm afirmado
fortemente a eficácia de mentores na facilitação
do desenvolvimento moral.8 A influência mais
eficaz sobre o desenvolvimento moral dos
membros de qualquer organização é o supervisor
de primeira linha.9
Análise ética. Em seu estudo de exemplos
m o r a i s , A n n C o l b y e Wi l l i a m D a m o n
desenvolveram cinco critérios para descrever
um exemplo moral:
●●Compromisso continuado aos ideais ou
princípios morais, que incluem um respeito
generalizado pela humanidade ou uma evidência
Cortesia do autor.

sustentada de virtude moral.


●●Disposição para agir de acordo com os ideais
ou princípios morais, implicando na consistência
entre as ações e intenções e entre os meios e os
O Sgt Matthew Solomon, sargento de instrução básica,
discute o comportamento pessoal com um grupo de soldados fins das ações.
em treinamento para se tornarem policiais do Exército. A ●●Boa vontade para arriscar o interesse próprio
influência mais poderosa sobre o comportamento moral de em prol de valores morais.
um soldado é o exemplo estabelecido por um sargento. Os
soldados adquirem a autodisciplina ao observar o exemplo ●●Tendência em ser inspirador para outros e
de seu sargento. por meio disso instigá-los à ação moral.

50 Janeiro-Fevereiro 2010  MILITARY REVIEW


EXEMPLAR MORAL

●●Sentido de humildade realista sobre a profissão. Fazer um juramento para apoiar e


importância de si em relação ao mundo em geral, defender a Constituição e obedecer às ordens
indicando um interesse mais abrangente que o legais de oficiais que fizeram esse juramento é o
próprio ego. requerimento básico para a profissão militar nos
Um exemplo moral possui, de preferência, Estados Unidos. Uma carreira militar começa,
comportamento e entendimento éticos altamente assim, com uma fundação moral explícita, visto
desenvolvidos. Além dos cinco critérios acima que a Constituição acarreta o compromisso a
listados, um exemplo moral se engaja em quatro todos os acordos internacionais com respeito à
processos, também conhecidos como o modelo de Guerra Justa, bem como aos direitos e valores que
quatro componentes da ação moral: sensibilidade os americanos consideram fundamentais. Como
ética, juízo ético, motivação ética e caráter ético:10 tal, um sargento tem um sistema de valores e uma
●●A s e n s i b i l i d a d e é t i c a e n v o l v e u m identidade profissional únicos.11 O fracasso de
conhecimento do problema moral, um viver à altura desses padrões é ser um comediante,
entendimento dos fatores envolvidos e as causas, um charlatão que não entende os requerimentos
efeitos e consequências de várias escolhas, mais básicos da profissão.
especialmente os efeitos nas pessoas envolvidas. Ao entrar para a profissão, então, um sargento
Um exemplo moral é capaz de entender a assume ambas as expectativas da profissão e da
perspectiva de outra pessoa. sociedade sobre identidade e comportamento
●●O juízo ético envolve a capacidade de éticos. Um sargento, como profissional, deve
determinar qual escolha é justificável. Os conscientemente deliberar a integração de ambos
exemplos morais são peritos nos processos de os códigos e identidades morais profissionais
tomada de decisões morais. e pessoais. É essencial, ainda, determinar se a
●●A motivação ética envolve o nível de identidade pessoal e a identidade profissional
compromisso e responsabilidade pessoal aos escolhida são compatíveis. Ele deve ter analisado
valores morais e à ação moral. Os exemplos morais a própria vida, entendendo completamente as
são capazes de sustentar seus compromissos implicações éticas de continuar a ser o que uma
morais porque incorporam valores morais em sua pessoa é, ou para avançar, moralmente, em outra
autoidentidade. direção. Se as forças militares institucionalizassem
●●O caráter ético envolve a persistência e a esse processo de integração, o corpo de sargentos
determinação na perseguição das metas morais, desenvolveria uma postura ética profissional
i.e., a capacidade de exercer o autocontrole para muito mais construtiva e confiante.
cumprir a linha de ação moral.
Entender o código. Portanto, o exemplo Descrever o Sargento
moral é idealmente um perito na teoria e na Moralmente Ideal
prática da ética. Por conseguinte, pedir que um A integração dos cinco critérios de Colby e
sargento seja um exemplo moral é dizer que Damon com o modelo de quatro componentes
de um sargento deve-se esperar a prática das produz sete extrapolações para descrever o
habilidades relacionadas aos códigos morais sargento ideal como um exemplo moral:
do Exército como exemplificados no Credo do ●●Compromisso moral.
Soldado, o Etos do Guerreiro e os Valores do ●●Sensibilidade moral.
Exército. Um sargento deve ir além de decorar ●●Juízo moral.
os códigos morais do Exército. Deve interiorizá- ●●Primazia dos valores morais.
los como elementos de sua identidade pessoal, ●●Inspiração moral.
para entendê-los realmente no contexto de sua ●●Humildade (evitando ares de superioridade
própria vida. Portanto, um sargento deve entender moral).
a lógica, não simplesmente as regras pelas quais ●●Caráter.
ele ou ela tem de agir como soldado. É lógico Compromisso moral. Um compromisso
que uma pessoa que decidiu entrar em um sustentado de um estilo de vida moral é ideal. A
campo de carreira profissional deve se esforçar confiabilidade ética não pode ser encontrada em
para viver à altura dos padrões envolvidos na acessos isolados e convenientes de ações morais.

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2010 51


A ação deve corresponder a um princípio. Tal códigos, regulamentos e normas da profissão de
compromisso sustentado deve se originar do respeitouma pessoa, e o reconhecimento de quando eles
para com todas as pessoas como fins individuais em se aplicam”.13 Por isso, um sargento moralmente
si mesmos, da mesma forma que se vê a si mesmo exemplar será bem versado nos princípios da
(quer dizer, não simplesmente como o meio para tradição da Guerra Justa, da lei de guerra terrestre,
alcançar um objetivo). Por isso, esse critério remove
das Convenções de Genebra e dos códigos
a discriminação associada com racismo, sexismo morais do Exército. Como sugerido mais cedo, a
e outras generalizações semelhantes. O sargento, sensibilidade moral não significa simplesmente
como exemplo moral, deve se comprometer com ter conhecimento superficial de ou ter decorado
esse princípio moral principal como uma questão esses padrões. Significa ser capaz de aplicá-los a
de integridade pessoal. A vida pessoal de tal uma variedade de situações com conhecimento
sargento, então, deve servir como a fundação para de sua lógica ética. O FM 6-22 enfatiza esse
o compromisso na vida profissional. Deve primeiro requerimento: “Ser um líder ético exige mais
comprometer-se com um tratamento justo e certo que conhecer os valores do Exército. Os líderes
para todas as pessoas sem importar as prevenções devem ser capazes de aplicá-los para encontrar
e preconceitos de uma pessoa. Deve disciplinar-se soluções morais aos problemas diversos”.14 Tudo
para alinhar habitualmente a ação pessoal para com isso implica no mais alto grau de educação ética
os outros como o princípio de tratar cada pessoa que o Exército emprega atualmente.
como um fim em si e não como um meio para Juízo moral. O juízo moral envolve a
alcançar um objetivo. capacidade de pensar criticamente e tomar
Sensibilidade moral. A sensibilidade moral decisões baseadas em um compromisso a
exige discernimento, a capacidade de identificar princípios éticos, no cultivo de virtudes (por meio
os assuntos e forças morais em jogo em um dilema de valores fundamentados) e na sensibilidade
moral.12 Um exemplo moral deve ser capaz de se moral da pessoa.15 Ambos, os princípios gerais e
colocar na posição de outros e ver as coisas das as regras específicas, influenciam o juízo moral.
perspectivas de outros. Essa habilidade envolve O juízo moral envolve as decisões baseadas no
não apenas o engajamento em empatia para com interesse e nos benefícios pessoais, na manutenção
da ordem atual da vida social, ou nos princípios
e valores essenciais. O padrão de juízo moral do
Portanto, um sargento Exército parece ser baseado principalmente nas
regras, regulamentos e procedimentos padrões.
deve entender a lógica, não Em um ensaio recente, discuti o juízo moral
de soldados no treinamento inicial na Polícia
simplesmente as regras pelas do Exército. Meu estudo indicou que seu juízo
quais ele ou ela tem de agir moral no início e na conclusão do treinamento
era avaliado em:
como soldado. ●●42% manutenção das normas (baseado em
regras).
●●28% interesse pessoal.
os outros, mas também ser sensível à necessidade ●●24% baseado em princípios.16
de tomar uma ação moral. A capacidade de O estudo não apresentou nenhuma mudança
assumir a perspectiva de outros também evoca estatisticamente significativa em juízo moral
o sentido de reciprocidade que deve se estender como resultado do treinamento inicial na Polícia
aos cidadãos locais dos países em que as forças do Exército. Embora tal estudo não fosse
dos EUA são desdobradas, e até ao inimigo. A conduzido em outras populações, há razão para
assunção de perspectiva e a empatia servem para acreditar que resultados semelhantes ocorrerão.
prevenir uma pessoa de cometer atos imorais (i.e., Embora as regras sejam necessárias para a estru-
crimes de guerra) contra essas pessoas. tura e a ordem, uma abordagem com base em regras
A sensibilidade moral também envolve, muitas vezes é inadequada para resolver enigmas
como acima mencionado, “o conhecimento dos morais e dilemas aparentes. As regras entram

52 Janeiro-Fevereiro 2010  MILITARY REVIEW


EXEMPLAR MORAL

frequentemente em conflito.
Muitas vezes, pode-se encon-
trar uma razão em torno de uma
regra como justificativa para se
agir segundo os próprios inte-
resses. Um profissional leva
tal juízo ético seriamente em
consideração, cauteloso de jus-
tificativas simplistas e superfi-
ciais para evitar as implicações
do princípio moral. Como dois
peritos conhecidos observa-
ram, “A prática profissional é

Departamento de Defesa
essencialmente um empreen-
dimento moral”.17 O Exército
enfrenta um inimigo adaptável
e mudanças na guerra; os sol-
dados devem ser capazes de
O Sgt Keven Jaques, membro do Comitê de Detenção da Divisão de Adestramento
“raciocinar cuidadosamente Básico da Polícia do Exército, instrui soldados sobre a execução de uma
sobre os dilemas de uma pro- transferência forçada de detidos entre células. Relacionar os valores do Exército
fissão...”18 e o Etos do Guerreiro ao tratamento moral de detidos prepara os soldados para
enfrentarem dilemas morais sem violar o código moral do Exército.
P r i m a z i a d e v a l o re s
morais. O estudo de Colby e Damon indica que ambiente ao redor dele. A influência é a essência
para manter seus valores morais os exemplos da liderança. Outro autor define liderança como
morais estão dispostos a anular seu ganho pessoal “um relacionamento de influência entre líderes e
para o bem de outros. Isso não significa que os seguidores que planejam mudanças verdadeiras
exemplos morais desconsideram sua saúde e que reflitam seus propósitos mútuos”. 20
bem-estar pessoais, mas significa que os valores Paralelamente, um exemplo moral inspira outros
essenciais têm precedência sobre os benefícios a terem um desempenho de mais alto nível, por
pessoais quando uma pessoa enfrenta um dilema meio dessa influência associada.
moral. Os exemplos morais cumprem seu Idealmente, um sargento deve facilitar
compromisso com os valores morais. a mudança e o crescimento, construir
Para um sargento, ser um exemplo moral uma equipe e motivar outros para o
resume o valor do Exército de “serviço altruísta”. desenvolvimento ético e a ação moral. Da
Um sargento escolhe a ação moral acima do mesma forma que um exemplo mostra tais
autointeresse, não usa soldados para ganho pessoal atributos em sua vida, os sargentos devem
e vê o código moral do Exército como a premissa liderar os soldados a incorporá-los em
dominante para o sucesso a longo prazo, como suas vidas. O FM 6-22 enfatiza o poder
uma influência duradoura e que faz a diferença no do exemplo do sargento: Os líderes de
mundo. Quando enfrentado com um dilema moral, caráter do Exército lideram pelo exemplo
o sargento acata o princípio em vez de agir em seu pessoal e agem consistentemente como
autointeresse. Por exemplo, o Credo de Sargentos modelos de vida, por meio de um esforço
afirma, “Não usarei minha graduação ou posição dedicado ao longo da vida para aprender e
para conseguir prazer, lucro ou segurança pessoal... se desenvolver. Alcançam a excelência para
sempre colocarei suas [soldados] necessidades suas organizações quando os seguidores são
acima das minhas”. O Army Study Guide (Guia disciplinados para fazer seus deveres, são
de Estudo do Exército, em tradução livre) também comprometidos com os Valores do Exército e
enumera esse princípio.19 se sentem capacitados para cumprir qualquer
Inspiração moral. O estudo de Colby e Damon missão, enquanto melhoram simultaneamente
reconhece que um exemplo moral influencia o suas organizações com o enfoque no futuro.21

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2010 53


Humildade. O estudo de Colby e Damon com os Valores do Exército, fortalece os
também enfatiza o elemento da humildade. Um líderes a tomarem as decisões certas quando
exemplo moral se esforça para uma autoavaliação confrontados com assuntos difíceis. Visto
realista e não assume a postura de superioridade que os líderes do Exército buscam fazer
moral. Tal exemplo confere mérito a qualquer o que é certo e inspiram outros a fazerem
um que mereça e que entenda que ele ou ela não o mesmo, eles têm de personificar esses
é a fonte de toda a sabedoria. A humildade não valores.24
é um sinal de fraqueza, mas de força. É a força A coerência tem a ideia de integridade. Em
para proativamente evitar a autoilusão, ao avaliar sua descrição de integridade, o FM 6-22 expõe:
e reconhecer suas próprias vulnerabilidades, e se Os líderes íntegros agem consistentemente
conforme princípios claros, não apenas
pelo que está atualmente em vigor. O
...soldados devem ser Exército depende de líderes íntegros que
possuam altos padrões morais e que sejam
capazes de “raciocinar honestos em palavras e ações. Os líderes
cuidadosamente sobre os são honestos para com os outros ao não
apresentarem eles mesmos, ou suas ações,
dilemas de uma profissão...” como qualquer outra coisa diferente do que
eles são, permanecendo comprometidos com
a verdade.25
proteger contra elas, confiando nos pontos fortes Para se engajar em uma ação moral coerente
dos outros membros da equipe. com o caráter de uma pessoa, deve-se muitas
O FM 6-22 assinala que todos os soldados são vezes demonstrar uma coragem pessoal. O FM
líderes, quer estejam ou não em uma posição, 6-22 proporciona uma descrição fiel de coragem:
ou tenham a autoridade para a liderança. Tais A coragem moral é a vontade de manter-se
“líderes sem autoridade”, também conhecidos firme nos valores, princípios e convicções.
como líderes informais, demonstram a liderança Ela capacita todos os líderes a defender o que
por meio de uma combinação de autoconfiança acreditam ser certo, sem se importar com as
e humildade.22 A raiz das palavras humildade e consequências. Os líderes, que aceitam toda
humilde vem da palavra latina “da terra”.23 O a responsabilidade por suas decisões e ações,
sargento tem de pôr os pés no chão. demonstram a coragem moral.26
Caráter. Nenhuma das opções acima tem O modelo de quatro componentes descreve o
valor a não ser que seja sustentada com uma ação caráter não como um conjunto de características
que seja consistente com os valores e crenças ou qualidades, mas como a persistência e a
de uma pessoa. Não é suficiente ter valores e coragem de permanecer integralmente com os
crenças morais. Um exemplo exerce tais valores valores morais pessoais e morais.27 O sargento
e crenças na vida cotidiana. A capacidade de se como exemplo moral exibe idealmente as
engajar em uma ação que é consistente com os habilidades éticas profissionais que demonstram
próprios valores e crenças muitas vezes é chamada um caráter com uma ação consistente. Essas
autorregulação. Ela envolve a integração dos habilidades o capacitam a:
elementos de pensamento moral e emoções ●●Agir sobre o principal valor moral discernido.
morais. ●●Assumir o papel de outros.
O caráter moral é um dos elementos do modelo ●●Conduzir ética e moralmente a tomada de
de quatro componentes. Segundo o FM 6-22: decisões.
O caráter (as qualidades morais e éticas ●●Exercer a força apropriada.
de uma pessoa) ajuda a determinar o que é ●●Tratar todos com respeito.
certo e proporciona ao líder a motivação para
fazer o que é apropriado, sem se importar O Sargento como Exemplo
com as circunstâncias ou consequências. Formar o caráter envolve o desenvolvimento
Uma consciência ética esclarecida, coerente da perícia. Um sargento é um profissional ideal

54 Janeiro-Fevereiro 2010  MILITARY REVIEW


EXEMPLAR MORAL

porque ele ou ela é um perito, i.e., o mestre. instrução.30 A instrução que um sargento como
O subordinado é o aprendiz. Um processo exemplo moral proporciona deve incluir elementos
aplicável de desenvolvimento moral e de caráter específicos.
é a educação ética integrada, que aborda o Os métodos do exemplo moral são
desenvolvimento do caráter com três premissas autoconstrutivos, quer dizer, deve-se resolver ter
básicas: a assimilação por si próprio. Susan Martinelli-
●●O caráter é o desenvolvimento da perícia. Fernandez, inferindo a noção de autonomia na
●●O cultivo do caráter é o cultivo da perícia. educação moral de Immanuel Kant, afirma que
●●A autorregulação é necessária para manter a autonomia não significa que os soldados têm o
o caráter.28 direito de agir espontaneamente para aceitar ou
Portanto, a educação ética integrada envolve a rejeitar certas ações ou regras morais.31 A autonomia
transformação de um aprendiz em perito por meio significa que os soldados têm o direito, a liberdade
do treinamento da aprendizagem. O sargento, e, mais importante, a responsabilidade de participar
como exemplo moral, serve de modo ideal como ativamente na construção de sua identidade moral à
um treinador ou perito que guia o novato ou luz da razão. Porque a ação moral tem princípios, os
aprendiz à perícia. Nesse processo de treinamento líderes não podem forçar que os soldados mudem.
da aprendizagem, o sargento serve como exemplo Os soldados têm de escolher mudar.
pessoal, como instrutor e como criador de um No entanto, os líderes podem criar as condições
clima de autoridade. pelas quais os soldados são capacitados, e eles
Exemplo pessoal. No treinamento da podem escolher mudar. Se os líderes alimentam
aprendizagem, o soldado raso novato observa à força as regras, a motivação para engajar em ou
as ações e atitudes do perito, o sargento. A ignorar uma ação moral se reduz ao autointeresse,
autorregulação é resultado da observação evitar uma punição ou à obtenção de uma
do exemplo de líderes e a aplicação do
código moral e as normas e procedimentos da
organização. O sargento como exemplo moral ...os líderes não podem forçar
proporciona ao soldado um modelo visível. O
FM 6-22 afirma: que os soldados mudem. Os
Vivendo conforme os Valores do Exército soldados têm de escolher
e o Etos do Guerreiro, vizualiza-se melhor
o caráter e a liderança pelo exemplo. mudar.
Isso significa priorizar a organização e
os subordinados antes do autointeresse,
da carreira e do conforto pessoais. Para recompensa. Como Martinelli-Fernandez observa,
o líder do Exército, isso exige priorizar a “A meta de educação moral, portanto, não é
vida dos outros acima do desejo pessoal de simplesmente conseguir que o agente obedeça às
autopreservação.29 regras. É o cultivo da atuação moral, uma atuação
O exemplo pessoal de um sargento não pode que envolve uma pessoa para que ela se torne
ser subestimado. Os resultados de meu estudo um pensador correto e independente, e que aja
de 2009 mostram que o exemplo de líderes em corretamente.”32
geral e o de sargentos no treinamento inicial, Um exemplo moral deve desenvolver uma
em particular, tinham o efeito mais significativo perícia em duas dimensões: o entendimento
no desenvolvimento moral dos soldados. Se os explícito e consciente, e o entendimento implícito
soldados têm de ser preparados para a batalha, e intuitivo. A instrução deve envolver a aquisição
não apenas tática e tecnicamente, mas, de modo do conhecimento específico do código moral do
especial, moralmente, o Exército precisa de Exército e o desenvolvimento da capacidade de
sargentos como exemplos morais. aplicá-lo a uma variedade de soluções. O exemplo
Métodos de instrução. O fracasso de muitos moral desenvolve a capacidade de autorregulação
programas de educação ética e de caráter não e de automonitoramento do soldado. Os soldados
é devido ao conteúdo, mas aos métodos de devem ser capazes de demonstrar o caráter moral

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2010 55


instrutivos do sargento como exemplo moral
devem incluir o raciocínio moral, a emoção
moral de empatia, a descoberta de significado e
propósito e o ensaio de tarefas morais difíceis,
além disso, os métodos instrutivos devem ser um
pouco agradáveis.34
Ambiente de autoridade. O exemplo moral é
um líder que cria um ambiente de autoridade que
proporciona as condições para o desenvolvimento
ideal.35 Ao criar um ambiente de autoridade, o
exemplo moral usa erros como oportunidades
de aprendizagem. Tudo o que ocorre é uma
experiência de aprendizagem sobre como agir
ou como não agir. Uma alta prioridade do
exemplo moral é o desenvolvimento da coesão

Cortesia do autor.
da unidade. Um ambiente de autoridade fomenta
relacionamentos positivos entre pares porque
esses relacionamentos incentivam a aprendizagem
O Sgt Todd Warner, sargento de instrução básica, da cooperativa e o encorajamento mútuo.36
Companhia Alfa/795° Batalhão de Polícia do Exército, Dentro de um ambiente de autoridade, o exemplo
discute com soldados sobre o código moral do Exército
para desenvolver seu entendimento moral. O sargento cria moral reforça o comportamento consistente com
as condições para o desenvolvimento moral ideal, i.e., um o código moral da organização por meio de
ambiente de autoridade. honrarias públicas e elogio pessoal individual. Ele
solicita uma realimentação dos seus seguidores
“quando ninguém está olhando”. Isso significa sobre o ambiente moral da organização. Ele faz
que os soldados devem interiorizar o código moral com que seja seguro discutir os assuntos sem
do Exército. Essa autorregulação é mais bem medo de retaliação. O exemplo enfoca a melhora
desenvolvida pela observação do desempenho no desempenho e no comportamento moral da
moral de um líder.33 unidade, não os sentimentos pessoais de seus
Os métodos de um exemplo moral envolvem soldados.
uma prática extensiva. As unidades ensaiam Ao criar o ambiente de autoridade, os exemplos
missões e devem também ensaiar os dilemas morais também incentivam a participação ativa do
morais. Os métodos instrutivos eficazes desafiam novato/aprendiz no desenvolvimento do caráter
os padrões atuais do pensamento moral. Se o juízo moral. O papel do sargento na educação moral e
moral de um soldado é baseado principalmente no caráter não se refere a “imprimir as mensagens
em regras, o sargento deve apresentar os dilemas do código moral” nas mentes dos soldados.37
que criam o conflito entre as regras e orientá-lo Tampouco é o sargento um agente de marketing
a aplicar princípios e valores morais ao dilema. que usa cartazes e slogans em “uma abordagem
Os métodos mais eficazes de facilitar a perícia de conscientização pública dos valores”.38 As
no juízo moral incluem discussões do dilema abordagens de mudanças rápidas da educação
e exercícios de interpretação de um papel. moral e do caráter tendem a produzir agentes
O elemento mais significativo do processo é morais que são soldados morais “apenas nos
repensar um assunto ao interagir com outros. bons momentos”. Aderem a seu código moral em
Em meu estudo, os soldados em grupos de situações favoráveis, mas tendem a não segui-lo
discussão indicaram que muito do treinamento em situações adversas ou ambíguas.39 Em vez
moral atual consiste em correção em vez de disso, o sargento engaja os soldados em diálogos
instrução. Esse enfoque no que não fazer em vez planejados para desafiar seu pensamento moral.
do que fazer contribuiu para uma descoberta- O ambiente de autoridade envolve o exemplo
chave do estudo — a interiorização superficial do moral na prática dos estilos de liderança e de
código moral do Exército. Contudo, os métodos comunicação que fomentam relacionamentos

56 Janeiro-Fevereiro 2010  MILITARY REVIEW


EXEMPLAR MORAL

e educação para o conhecimento. Isso significa Olhando para o Futuro


que a relação entre líderes e seguidores tem de Os sargentos têm uma obrigação moral de
ser interativa, não unidimensional, na aplicação assegurar que os soldados estejam preparados
das regras e na memorização do código. O estilo para a batalha. A preparação para a batalha
de comunicação e de liderança do sargento deve vai além da proficiência tática e técnica e
engajar os soldados na prática que os leva à perícia. inclui a aplicação moral de força letal. Essa
O FM 6-22 assinala: aplicação moral é a base fundamental de ser
Uma das principais responsabilidades do de um profissional militar. Progressivamente,
líder do Exército é manter um ambiente os soldados estão em situações em que têm
ético que apoia o desenvolvimento desse de tomar decisões morais e realizar ações que
caráter. Quando o ambiente ético de uma podem causar a morte de seus pares e civis
organização fomenta o comportamento inocentes, bem como do inimigo. Além disso,
ético, as pessoas, ao longo do tempo, o comportamento de um soldado no dia a dia
pensarão, sentirão e agirão eticamente. deve facilitar os relacionamentos positivos entre
Incorporarão os aspectos do caráter.40 os pares para o desenvolvimento de uma forte
Mais tarde, “Os líderes do Exército devem coesão. Essas ações devem aderir aos códigos
consistentemente enfocar a formação de morais do Exército e às normas da Constituição.
ambientes organizacionais baseados na ética, Os meios mais eficazes de se criar soldados
onde subordinados e organizações podem morais são por sargentos que exibem um alto
alcançar todo o seu potencial.”41 caráter moral todos os dias.MR

REFERÊNCIAS

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THOMA. 40. FM 6-22, para 4-56.
16. WILLIAMS. 41. Ibid., para 4-67.

MILITARY REVIEW  Janeiro-Fevereiro 2010 57


A Tendência para os Crimes de Guerra
Tenente-Coronel Robert Rielly, Exército dos EUA, Reformado

V OCÊ PENSA QUE sua unidade não


pode ser envolvida em crimes de
guerra? Como sabe? A maioria dos
líderes acredita que isso nunca ocorreria em sua
unidade, mas histórias relacionadas aos soldados
e fuzileiros navais americanos que supostamente
participaram em crimes de guerra apareceram,
uma após a outra, nos noticiários. Abu Ghraib,
Haditha, Hamandiya e Mahmudiya agora são
partes da história militar. As investigações estão
em curso, e alguns conselhos de guerra ocorreram,
mesmo assim, as questões que atormentam os
comandantes desses soldados e fuzileiros navais
permanecem. O que saiu errado? Há algo que me
passou despercebido? Eu poderia ter evitado isso?
Outros comandantes são gratos porque crimes de
guerra não aconteceram em sua unidade. Alguns
estão convencidos que isso não poderia ocorrer em
suas organizações. Embora haja muitas diferenças

(Biblioteca do Congresso)
entre os incidentes acima listados, a tragédia para
as forças militares não é apenas porque esses atos
foram cometidos, mas que grupos de soldados ou
fuzileiros navais os cometeram ou os toleraram.
Portanto, na prática, nenhuma das salvaguardas
que as forças militares associam com grupos Foto exibida no Inquérito Peers (Relatório do Departamento
do Exército das Investigações Preliminares do Incidente de My
coesivos funcionou nessas unidades. Lai). RON HAEBERLE, ex-fotógrafo do Exército dos EUA: Por
Os líderes estão agora buscando respostas e acaso encontrei um grupo de soldados rodeando essas pessoas
pensando se aconteceria de novo. Infelizmente, a e um dos soldados americanos gritou: ‘Olhe ele tem uma
câmera’. Então se dispersaram um pouco, e me aproximei deles
história indica que acontecerá. Como identificar a e ao olhar a cena percebi que aquela menina estava um pouco
probabilidade de uma unidade cometer um crime frenética e uma mulher mais velha tentou proteger a pequena
criança e a mulher idosa à frente estava, você sabe, tentando
de guerra é uma preocupação de liderança. Parte da suplicar, tentando implorar, você sabe, e uma outra pessoa,
resposta a essa pergunta pode estar nos achados de uma mulher, estava abotoando a blusa e segurando um pequeno
uma investigação, conduzida a 39 anos, de outro bebê. Tirei a fotografia e pensei que apenas iriam questionar
as pessoas, mas logo que eu virei e fui embora, ouvi disparos,
evento lamentável e trágico na história militar olhei por cima dos ombros e vi as pessoas caídas. Continuei
americana, o Massacre de My Lai. O Exército a andar. Na época eu estava apenas, você sabe, capturando
conduziu um inquérito sobre as razões pelas quais uma reação, mas quando se olha mais tarde na vida, você sabe
agora que essas pessoas estão mortas, foram fuziladas, é uma
a tragédia de My Lai ocorreu. Os resultados desse sensação estranha, que passa, você sabe, por todo o corpo e
inquérito são importantes. Proporcionam aos você reflete, eu poderia ter evitado isso? Como é que eu poderia
líderes de hoje maneiras para monitorar e avaliar ter impedido isso? Isso é uma pergunta que ainda, você sabe,
me questiono hoje.

O tenente-coronel Robert Rielly, do Exército dos EUA, Norwich University, Mestre pela Kansas State University e
reformado, é professor adjunto no Departamento de Comando e Mestre pela College of Naval Command and Staff. Seu artigo
Liderança, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército “The Darker Side of the Force” foi publicado na edição em
dos EUA, no Forte Leavenworth, Kansas. Ele é bacharel pela inglês da Military Review de Março-Abril de 2001.

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CRIMES DE GUERRA

as unidades para determinar se seria possível operacional sobre as forças americanas e aliadas
que cometessem um crime de guerra. Os líderes na Zona Tática do II Corpo de Exército, bem como
poderiam então implantar medidas preventivas proporcionar assessoria de combate às unidades
para evitar que isso ocorresse. vietnamitas na área]. Ele entrou no Exército
imediatamente após graduar-se pela UCLA em
O Inquérito Peers 1937 e serviu na Birmânia durante a II Guerra
As palavras “My Lai” são sinônimas de um Mundial. Como Peers não havia se formado
colapso significativo de liderança. Com muita em West Point, Westmoreland reconheceu que
frequência, repudiamos os eventos como My Lai ninguém poderia acusá-lo de fidelidade ou
como incidentes isolados, ações de um pelotão favoritismo a outros graduados de West Point.
indisciplinado ou um fracasso de liderança de Peers tinha uma tarefa nada invejável. Em
nível direto. Essa análise não consegue entender essência, o Exército estava investigando a
a profundidade, amplitude e complexidade dos si mesmo e estaria sujeito a críticas se não
eventos e decisões associados com My Lai. Muitas conduzisse a investigação devidamente. Ao
pessoas, embora chocadas com a magnitude de dirigir-se aos membros do inquérito, Peers
My Lai, reconheceram uma tendência parecida e explicou, “Não importa o que qualquer um de nós
se preocuparam que My Lai poderia ocorrer de possa acreditar, é nosso trabalho apenas averiguar
novo, se ocorrerem as circunstâncias certas. O e relatar os fatos, e que aconteça o que tiver que
Exército reconheceu isso também e, muito a seu acontecer. Não é nosso trabalho determinar a
favor, tentou descobrir por que os eventos de 16 inocência ou a culpa de indivíduos, tampouco
de março de 1968 aconteceram. Embora poucas ficar preocupado sobre os possíveis efeitos que
pessoas percebam, além da investigação criminal o inquérito terá na imagem do Exército, ou sobre
executada sobre My Lai, o Exército também a reação da imprensa ou do público a nossos
investigou áreas adicionais associadas com as procedimentos.”2 Para garantir a objetividade,
operações daquele dia. Peers foi até ao ponto de incluir dois advogados
Em novembro de 1969, o chefe do Estado-Maior civis no grupo, Robert MacCrate e Jerome Walsh,
do Exército, general William C. Westmoreland, para servir como a “consciência pública”.3
escolheu o general William Peers para conduzir O inquérito estava sujeito às pressões de
o inquérito de My Lai para determinar: tempo desde o início. A investigação tinha que
●●o que aconteceu de errado com a sistemática se encerrar em quatro meses porque todas essas
de relatórios; ofensas militares como negligência, falta de
●●por que o comandante das forças dos EUA
no Vietnã, na época, não foi totalmente informado;
●●se a operação foi investigada.1 …My Lai poderia ocorrer
O título oficial do inquérito foi a “Análise de novo se ocorrerem as
do Departamento do Exército das Investigações
Preliminares do Incidente de My Lai”. Contudo, foi circunstâncias certas.
mais comumente referido como o Inquérito Peers.
Uma das partes mais significativas do relatório é o
capítulo que discute os fatores contribuintes para cumprimento do dever, ausência de relatório,
a tragédia. Esse capítulo contém informação de informação falsa e cumplicidade em um crime
grande valor aos comandantes de hoje. grave tinham um período limitado de dois anos
Na decisão de quem dirigiria a investigação, o para prescrição. 4 Sob a direção de Peer, os
general Westmoreland não poderia ter escolhido militares e civis do inquérito terminaram sua
um oficial mais apropriado. William Peers era o investigação em 14 semanas, entrevistando mais
chefe do Gabinete dos Componentes da Reserva, de 400 testemunhas, muitas das quais tinham se
tinha uma reputação de objetividade e justiça e afastado do Exército.5 Os membros do inquérito
tinha servido no Vietnã como comandante da 4ª tinham que organizar as viagens, marcar os
Divisão de Infantaria e comandante da I Field comparecimentos perante o júri e coletar todos
Force [que tinha a missão de exercer o controle os documentos associados — que incluíram ao

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final mais de 20.000 páginas só de testemunhos. Nove Fatores
Em dezembro de 1969, apenas com dois meses Embora o relatório oficial enumerasse 13
de investigação, Peers e vários membros do grupo fatores que contribuíram para My Lai, Peers
viajaram ao Vietnã para ter uma experiência em reduziu a lista para nove em seu livro de 1979.
primeira mão da aldeia de My Lai. Ao fazer isso, parece ter combinado vários fatores
Enfim, os membros do inquérito compilaram em vez de eliminar qualquer um dos 13 originais.
uma “lista de 30 pessoas que tinham conhecimento Peers chegou a nove fatores que incluem:
sobre a matança de não combatentes e outras sérias ●●Falta de adequado treinamento.
ofensas cometidas durante a operação de My Lai, ●●Atitude para com os vietnamitas.
mas não tinham feito relatórios oficiais, tinham ●●Atitude permissiva.
suprimido informações relevantes, tinham deixado ●●Fatores psicológicos.
de ordenar uma investigação ou não tinham ●●Problemas organizacionais.
acompanhado as investigações que foram feitas”.6 ●●Natureza do inimigo.
Na conclusão do relatório, Peers pediu aos ●●Planos e ordens.
membros do grupo para que chegassem a ●●Atitude de oficiais e líderes governamentais.
conclusões sobre as razões pelas quais My Lai ●●Liderança.
ocorreu, com base nas evidências que tinham Cada um dos nove fatores merece uma
examinado. Peers acreditava que era importante explicação.
incluir os resultados detalhando por que e como a Falta de adequado treinamento. O inquérito
operação se transformou em um massacre. Vários determinou que “nem as unidades nem os
membros argumentaram contra a inclusão das membros individualmente da Força-Tarefa Barker
conclusões porque parecia ser uma única razão ou e da 11a Brigada receberam treinamento adequado
padrão. Bob MacCrate, um dos dois advogados sobre a Lei da Guerra, a salvaguarda de não
civis trabalhando no inquérito, sustentou que a combatentes ou as regras de engajamento”.9 O
inclusão do capítulo conclusivo poderia invalidar inquérito determinou que a falta de treinamento
o relatório inteiro se os leitores achassem as foi devido a uma programação acelerada de
conclusões errôneas. Peers entendia o risco, mas movimentação, grande rotatividade de pessoal
acreditava que o capítulo precisava ser incluído antes do desdobramento e a chegada continuada
“para não somente salientar as deficiências na de novos soldados à unidade. 10 No entanto,
operação de May Lai, mas também para indicar
algumas das diferenças entre essa operação e
aquelas de outras unidades no sul do Vietnã”.7
Também queria chamar a atenção para os
problemas de comando e controle que existiam
dentro da Divisão América (Americal Division),
problemas que exigiriam ações corretivas
vigorosas do Exército para evitar a repetição de
tal incidente no futuro”.8 Finalmente, Peers foi
capaz de persuadir o grupo a incluir o capítulo, e,
depois de muito estudo, o grupo determinou que
13 fatores contribuíram para My Lai.
Essa lista de fatores compilada pelo Inquérito
Peers hoje proporciona aos comandantes uma
maneira de avaliar suas organizações e determinar
se os soldados ou pequenas unidades sob seu
comando têm a propensão para cometer crimes de
Foto da AP

guerra. A intuição de Peers de incluir os resultados


do grupo foi certa e não intencionalmente deu
ao Exército uma ferramenta com implicações de O general William R. Peers, 10 de dezembro de 1969, chefiando um
longo alcance. júri do Exército investigando o massacre de My Lai.

60 Janeiro-Fevereiro 2010  MILITARY REVIEW


CRIMES DE GUERRA

o problema da falta de treinamento não foi status abaixo de um americano, os comandantes


predeterminado. A investigação descobriu que devem reparar. O pouco respeito com que
alguns soldados receberam treinamento sobre a alguns membros da unidade consideravam
Lei da Guerra, mas alguns não podiam lembrá-la. os vietnamitas, rotineiramente referindo-se a
O inquérito determinou que parte da razão eles com palavras pejorativas que se referem
disso foi porque o treinamento foi conduzido à etnia asiática, perturbou Peers.13 Hoje, basta
apenas falar com soldados e fuzileiros navais
ou ler entrevistas de revistas e jornais para notar
…o grupo [Peers] determinou termos depreciativos usados para descrever
que 13 fatores contribuíram cidadãos iraquianos. Mesmo que o comandante
realmente não ouvisse, seria ingênuo pensar que
para My Lai. alguns soldados em comando não possuem uma
atitude negativa em relação à população local.
O problema é maior durante uma insurgência
de uma maneira “relaxada”. Além disso, os quando a lealdade da população está em questão
comandos superiores distribuíram cartões de ou há uma lacuna cultural significativa, ambas
bolso e memorandos, mas nunca explicaram ou das quais são condições prováveis no ambiente
reforçaram a informação contida neles.11 Peers operacional contemporâneo.
declara “Alguns membros do grupo pensavam que Para evitar que isso ocorra, os líderes devem
a política do Comando de Assistência Militar no avaliar a atitude, crenças e normas de operações
Vietnã (Military Assistance Command Vietnam — de sua unidade em relação ao inimigo e à
MACV) de exigir que os soldados levassem uma população local. Além disso, os comandantes
variedade de carteiras não passava de ridículo. devem prevenir que seus jovens líderes tolerem
Podiam servir como lembranças, mas não eram uma atitude depreciativa de seus soldados e
substitutos de instrução”.12 fuzileiros navais para com a população.
Nas forças militares de hoje, muitos líderes Uma das formas consagradas com que exércitos
sustentariam que a falta de treinamento não é tentaram superar o medo de seus soldados de
um problema porque todas as unidades recebem matar outros em combate foi de desumanizar o
treinamento sobre a Lei da Guerra, salvaguarda inimigo e fazer com que os soldados o odiassem.
de não combatentes e regras de engajamento Matar pelo ódio é um motivador poderoso, mas
antes do desdobramento. No entanto, os pode render consequências não intencionais.
mesmos problemas que afligiram a 11a Brigada Por exemplo, se treinamos uma unidade para
em 1968 também atormentam as unidades odiar os insurgentes e matá-los em combate, e
hoje. Movimentações aceleradas, perturbações se torna cada vez mais difícil para essa unidade
pessoais excessivas, rotatividade da liderança das distinguir os insurgentes no meio da população,
pequenas unidades e novos militares chegando nas mentes dos soldados, a população pode virar
ao teatro de operações, todos esses fatos em pouco tempo o inimigo odiado e, assim, as
ocorrem durante as operações de hoje. A lição vítimas de uma conduta ilegal. Para dissuadir
para os líderes em todos os níveis é assegurar isso, na medida em que os líderes preparam seus
que a qualidade do treinamento combine com a soldados e fuzileiros navais para as realidades do
importância do assunto e que eles o conduzam, combate, devem enfatizar razões positivas para
integrem e o reforcem constantemente. Avaliar matar o inimigo.
a qualidade do treinamento e assegurar que esse Atitude permissiva. Peers escreve “A Divisão
é contínuo e que os soldados entendam as regras América e a 11a Brigada tinham políticas bem
proporcionam ao líder um controle do ambiente concebidas sobre o tratamento de prisioneiros,
de sua organização. o tratamento de civis vietnamitas e a proteção
Atitude para com os vietnamitas. Se os de seus bens. No entanto, foi evidente que
soldados fazem comentários depreciativos ou houve lapsos de comunicação e na execução
raciais e parecem tratar a população local como dessas políticas”.14 De fato, incidentes de mau
uma forma de ser humano inferior ou com um tratamento de prisioneiros não começaram

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com My Lai, mas estavam presentes por algum Fatores psicológicos. Quando as praças de My
tempo antes da operação. Peers sugere que Lai prestaram depoimento perante o inquérito,
os comandantes deixaram de descobrir que o Peers declarou que muitas vezes usaram as
tratamento ilegal ocorria ou permitiram que palavras “medo”, “apreensão” e “tensão” para
acontecesse pela aprovação tácita. O resultado foi descrever suas emoções. 16 Os soldados da
que ele rapidamente se tornou parte do modo com Companhia Charlie do 1º Batalhão/20° Regimento
que as unidades operavam. Como as operações de Infantaria, em particular, estavam apreensivos
continuaram no Vietnã, os soldados suspeitaram e frustrados pelo número de baixas que a unidade
que a população estivesse em conluio com o sofreu oriundas de minas e armadilhas e de sua
inimigo devido à capacidade da população de incapacidade de estabelecer qualquer contato com
evitar minas e armadilhas no solo.15 o inimigo. Para os homens da Companhia Charlie,
Exemplos históricos das operações de ver outros soldados feridos ou desfigurados
contrainsurgência têm mostrado que os soldados durante as operações, sem qualquer forma de
e fuzileiros navais ficarão frustrados pela retaliação, levou à frustração crescente.
ambivalência da população que tentam ajudar Além disso, os comandantes da Divisão
e proteger. Isso pode frustrar os soldados e América e da Força-Tarefa Barker tinham
fuzileiros navais, e o desrespeito e o mau pressionado as unidades para “serem mais
tratamento da população podem surgir agressivas e engajar o inimigo”.17 No caso de
rapidamente. Os incidentes no Iraque levaram à My Lai, a natureza agressiva do comandante
ênfase do tratamento apropriado de prisioneiros, da força-tarefa, tenente-coronel Frank Barker, e
detidos e civis, mas em um ambiente estressado, seu fomento de competição entre as companhias
as atitudes podem mudar rapidamente. Os pressionaram os soldados a fazer contato com o
comandantes devem definir os rumos da inimigo evasivo.
organização e avaliar como suas unidades A apreensão, frustração e a pressão vinda dos
tratam os prisioneiros, detidos e civis e seus escalões superiores formam uma mistura volátil
bens. Os líderes em todos os escalões devem para qualquer organização. Cada um desses
claramente expor a seus subordinados quais elementos isoladamente pode levar a problemas,
comportamentos devem tolerar e quais não especialmente em operações de estabilidade e
tolerar e reforçar continuamente essa orientação. apoio. Na medida em que as baixas aumentam
causadas por um inimigo evasivo e oculto, os
comandantes devem estar mais visíveis e exercer
mais influência e orientação. Os líderes devem
avaliar e monitorar as atitudes de seus soldados
e a coesão de suas pequenas unidades para
determinar se há um nível não saudável de pressão
e frustração. Além disso, os comandantes devem
estabelecer um ambiente em sua organização
que fomente discussões abertas das emoções dos
soldados, especialmente o medo.
Problemas organizacionais. Peers escreve
que embora “problemas organizacionais
existissem em todos os níveis, de companhia
a força-tarefa e brigada até o quartel-general
da Divisão América”, os problemas podiam
ser encontrados em cada Grande Unidade
Scott Andrew Ewing

no Vietnã. 18 A Força-Tarefa Barker era um


batalhão improvisado com uma companhia de
cada um dos batalhões orgânicos da brigada.
Pichação deixada em uma casa iraquiana após uma unidade O comandante na realidade era o oficial de
americana ter executado uma busca, setembro de 2005. operações da 11ª Brigada e escolheu seu estado-

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CRIMES DE GUERRA

maior de dentro da força-tarefa, tirando um Planos e ordens. Peers observou que em My


número mínimo de pessoal do estado-maior da Lai, “como as ordens de Barker foram transmi-
brigada para assisti-lo. Peers opinou que embora tidas pela cadeia de comando, elas foram ampli-
os problemas educativos contribuíssem, não ficadas e expandidas, com o resultado que um
podiam ser “citados como a causa principal”.19 grande número de soldados adquiriu a impressão
Podemos ver muitos dos problemas de que apenas o inimigo ficaria em My Lai 4 e
organizacionais que a unidade enfrentou em que todos os encontrados seriam eliminados”.21
My Lai nas organizações de hoje. Pequenos O problema foi exacerbado devido a uma atmos-
estados-maiores, organizações improvisadas, fera de comando em que os subordinados tinham
incorporações temporárias e faltas de pessoal medo de questionar ou pedir esclarecimentos de
ainda são problemas que algumas organizações qualquer instrução proporcionada pelo coman-
enfrentam. Os líderes lutam com a proporção dante de companhia, o capitão Ernest Medina,
“soldados-tarefa” associada com combate a pelo comandante da FT Barker ou pelo coman-
uma insurgência. A determinação se as unidades dante da divisão, general Samuel Koster.22 Além
possuem homens suficientes para cumprir suas de estabelecer um ambiente em que os soldados
missões sem quebrar sua cadeia de comando ou acreditem que possam fazer perguntas, os coman-
coesão de grupo é uma consideração importante. dantes devem assegurar que todas as pessoas em
Para aliviar quaisquer problemas potenciais suas unidades ou anexadas a suas organizações
associados com a estrutura organizacional,
os comandantes de unidade devem avaliar o
impacto que sua estrutura organizacional tem Hoje,basta apenas falar
nas operações bem como o efeito que novas
organizações têm na organização original quando com soldados e fuzileiros
se juntam à unidade. navais ou ler entrevistas de
Natureza do inimigo. Da mesma forma que
ocorre com as operações de hoje e provavelmente revistas e jornais para notar
será no futuro próximo, era difícil distinguir entre
os combatentes e não combatentes no Vietnã. termos depreciativos usados
Peers escreveu que nos “redutos comunistas para descrever cidadãos
tradicionais e nas áreas dominadas pelo Viet
Cong (VC)…, pode-se razoavelmente presumir iraquianos.
que todo homem em idade militar era um VC, de
uma forma ou outra”.20 Contudo, isso não era o
caso por todo o país. acreditem que os subordinados podem se apro-
Os comandantes enfrentarão situações ximar deles em qualquer tempo, com qualquer
semelhantes no futuro e deverão considerar a tipo de informação. Em situações ambíguas e
natureza do inimigo quando avaliarem suas flexíveis, os líderes devem assegurar que eles
unidades. Como o inimigo tem pouco ou e seus subordinados promulguem ordens claras
nenhum respeito pela Lei de Guerra Terrestre, que as unidades em todos os níveis entendam.
ele não obedece ao que nós consideramos “a lei Além disso, embora o treinamento e a escola de
do jogo”, e irá testar constantemente o nosso formação enfatizem a importância da clareza de
compromisso com a moralidade, caso torne ordens e planos, os líderes nem sempre salientam
tentador para os soldados frustrados responder essa importância durante as operações reais, onde
da mesma forma. As forças inimigas continuarão o tempo e a familiaridade afetam o processo. Os
a tirar proveito dessa tática. Em um ambiente líderes devem continuamente assegurar que todo
como esse, os comandantes devem apreciar o o pessoal, especialmente aqueles nas organizações
efeito que as táticas do inimigo têm sobre seus incorporadas, entendam claramente suas ordens
próprios soldados e avaliar o impacto no ambiente ou instruções.
organizacional e nas normas operacionais das Atitude de governos oficiais. Os Estados
pequenas unidades. Unidos nem sempre poderão se dar ao luxo de

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trabalhar com governos nacionais
e locais que tenham um grande
respeito pela vida humana. Peers
escreve que os funcionários
vietnamitas locais acreditavam
que qualquer um morando na área
de My Lai era ou Viet Cong ou
um simpatizante do Viet Cong
e, portanto, a consideravam uma

Haberle, Biblioteca do Congresso


zona de fogo livre, aprovando
automaticamente qualquer pedido
de disparo na área.
Os líderes podem enfrentar
situações parecidas hoje, em que
um governo local não valoriza as
vidas de seus cidadãos ou usa a
área para fins políticos, como o Um soldado americano queimando produtos agrícolas em My Lai, Vietnã,
1968. Tais atos são crimes de guerra.
controle do apoio ao partido de
oposição, por meio de operações
militares. Ao mesmo tempo de My Lai, a atitude relação de trabalho com seus subordinados”.26
dos vietnamitas do sul influenciou alguns dos Portanto, ninguém questionou suas ordens. Foi
soldados americanos, que logo começaram a uma situação bem parecida com o comandante
ver a população como descartável. Se o governo da Companhia Charlie, Ernest Medina, cujos
é indiferente sobre as baixas civis, as forças soldados e subordinados o valorizaram muito.
dos EUA também podem ficar indiferentes e O inquérito comentou “Ninguém questionou sua
descuidados em relação à redução de baixas de autoridade ou seu discernimento”.27 O general
não combatentes, como ocorreu em My Lai.23 Samuel Koster exacerbou essa situação ainda
Como os comandantes avaliam suas unidades, mais ao criar uma atmosfera de comando em que
devem levar em consideração as crenças, atitudes seu estado-maior tinha medo de se aproximar
e costumes dos governos locais e nacionais dele com más notícias ou um problema. 28
para com seus cidadãos. Se existe uma atitude Portanto, quando informações começaram
indiferente, eles precisam assegurar que seus surgir sobre o que ocorreu em My Lai, ninguém
subordinados não adotem uma atitude parecida. no estado-maior da divisão teve a coragem de
Será difícil, mas essencial, determinar se a informar o general em comando. Em vez disso,
atitude existe no nível de governo local. os membros da cadeia de comando ignoraram a
Liderança. O Inquérito Peers determinou informação.
que, acima de tudo, uma falta de liderança foi O inquérito concluiu que os comandantes de
a causa principal do massacre. A falha em pelotão da Companhia Charlie se identificavam
24

seguir políticas, a falta de imposição da política, mais com seus homens que com os comandos
o fracasso no controle da situação, o fracasso superiores. Os tenentes queriam ser aceitos
na verificação, o fracasso na execução de uma pelos homens de seus pelotões e ser um dos
investigação e a falta de acompanhamento “rapazes”. Peers concluiu que como eram jovens
estavam todos presentes. Os responsáveis pelo e inexperientes, não tomaram ações positivas
Inquérito determinaram que, embora Barker para corrigir as injustiças.29
empregasse a missão pela finalidade, ele deixou O fracasso em fomentar o ambiente certo e em
de verificar se seus subordinados cumpriram impor os padrões é suficientemente ruim, mas
suas ordens corretamente. 25 Além disso, o fica aquém de ser a razão abrangente para um
ambiente de comando por toda a organização fracasso de liderança. Entre as causas principais
não fomentou comunicações francas. Na do massacre de My Lai está o fato que os valores
força-tarefa, Barker não tinha “uma estreita e normas de uma unidade coesa toleraram a

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CRIMES DE GUERRA

prática desses crimes e também asseguraram tais grupos. Os comandantes erram ao assumir
a lealdade ao grupo em vez da instituição, que uma vez incutidos, todas as unidades retêm
justificando assim o silêncio sobre os crimes. No para sempre os bons valores organizacionais. Os
caso de My Lai e de alguns incidentes recentes, valores precisam ser reforçados constantemente,
foi necessária a coragem de indivíduos fora da e os comandantes devem monitorar os valores
organização para relatar o que ocorreu, porque dos pequenos grupos em sua organização para
ninguém dentro da unidade o fez. A coesão era determinar se alcançam os padrões de sua
forte demais. instituição.
Muitas vezes os líderes assumem que seus A lição mais significativa que esses últimos
soldados e fuzileiros navais ficarão mais fiéis à incidentes no Iraque nos ensinaram é que os
organização que a seus camaradas. As pesquisas crimes de guerra ainda podem ocorrer, até em
do historiador Richard Holmes comprovam de uma força militar profissional e disciplinada.
modo diferente. Holmes escreve “Há toda chance Os comandantes têm de permanecer vigilantes
que as normas do grupo irão conflitar com as e perceber que isso de fato pode acontecer em
metas da organização da qual ele faz parte”.30 suas unidades. A compreensão das áreas de
Uma conclusão sensata para qualquer líder – avaliação em suas organizações pode lhes dar
mas que se deve dar importância. Os achados uma vantagem na identificação de problemas
do Centro de Lições Aprendidas do Exército e atitudes incipientes. William Peers e sua
(Center for Army Lessons Learned — CALL) comissão prestaram um serviço para a Nação ao
validam a conclusão de Holmes de que um dos identificarem as áreas em que os comandantes
desafios enfrentados pelos líderes de unidades militares devem monitorar e avaliar. A vigilância
pequenas é que eles se identificam demais com sustentada e a educação proporcionalmente
os homens com quem vivem e compartilham os focalizada ajudarão os futuros comandantes a
perigos das operações. O CALL previne que a evitar que um crime de guerra aconteça. MR
missão, em vez dos relacionamentos, deve ser o
elemento-chave da tomada de decisões.31
REFERÊNCIAS
1. PEERS, Gen W.R., The My Lai Inquiry (New York and London: W.W.

Podemos ver muitos dos Norton and Company, 1979), p. 3.


2. Ibid., p. 10.
3. Ibid., p. 20.
problemas organizacionais 4. Ibid., p. 50.
5. Ibid., p. 11.
6. Ibid., p. 212.
que a unidade enfrentou em 7. Ibid., pp. 229-230.
8. Ibid., p. 230.

My Lai nas organizações de 9. Ibid.


10. Ibid.
11. Ibid.
hoje. 12. Ibid.
13. Ibid., p. 230-231.
14. Ibid., p. 232.
15. ANDERSON, David L., Facing My Lai: Moving Beyond the Massacre
(Lawrence: University of Kansas Press, 1998), p. 100.
Implicações Atuais 16. PEERS, p. 234.
Os atuais comandantes têm de avaliar o 17. Ibid.
18. Ibid., p. 235.
clima da unidade para determinar se seus 19. Ibid.
20. Ibid., p. 236.
subordinados acreditam que podem questionar 21. Ibid.
instruções ambíguas ou incertas ou repassar más 22. ANDERSON, p. 126.
23. PEERS, p. 237.
notícias aos comandos superiores. É igualmente 24. Ibid., p. 232.
importante para os comandantes avaliar o 25. Ibid., p. 233.
26. Ibid.
clima das unidades subordinadas. Os líderes 27. Ibid.
devem reconhecer que os valores podem mudar 28. ANDERSON, p. 126.
29. PEERS, p. 233.
durante eventos emocionais significativos como 30. HOLMES, Richard, Acts of War: The Behavior of Men in Battle (New
o combate, e avaliar a coesão das pequenas York: The Free Press, 1985), p. 323.
31. Center for Army Lessons Learned, Leader Challenges: Initial Impressions
unidades e os valores subjacentes presentes em Report (Fort Leavenworth, KS, December 2005), p. 14.

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