Você está na página 1de 11

NOSSA CAPA

A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR


“O treinamento militar deveria focar nos valores
profissionais militares e na importância da conduta
disciplinada e profissional em combate.”
Lieutenant General (US) Peter Chiarelli
Commander of the Multinational Corps in Iraq, 2006
(Tradução do autor)

ARCHIMEDES FRANCISCO DELGADO*


Capitão de Mar e Guerra (RM1)

SUMÁRIO
Introdução
A liderança e a ética militar

INTRODUÇÃO A origem da palavra ética é o termo


grego ethos, cuja grafia é encontrada de duas

É comum certa confusão entre moral e


ética, levando a que sejam muitas vezes
utilizadas como sinônimos. A causa disso é
formas: êthos, significando o local onde se
guardavam os animais e, por semelhança,
de onde surgem os atos humanos; e éthos,
que ambas têm origem em palavras gregas que significa comportamento, costumes,
cujos significados são semelhantes. hábitos e caráter1. Por outro lado, a palavra
*Comandou o Aviso de Instrução Aspirante Nascimento, o Rebocador de Alto-Mar Tridente e a Base Fluvial de
Ladário. Possui MBA em Gestão Internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Curso
Superior de Guerra Naval no Instituto de Guerra Marítima da Itália e Curso Superior de Estado-Maior In-
terforças na Itália. É autor do livro Liderança – A arte de conduzir ao sucesso, professor de Liderança e de
Jogos de Guerra na Escola de Guerra Naval.
1 RENAUD, I. “A noção de dever na ética contemporânea”. In: J.Brito (Coord.). Temas fundamentais de ética
(pág. 31-44). Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2001.
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

moral deriva do latim mos, que se refere quando seus atos e palavras são regidos pe-
ao comportamento segundo costumes, los princípios morais vigentes e quando se
normas e leis2. A confusão citada é devida preocupa em avaliar o resultado desses atos
ao segundo significado de ethos, bastante e palavras sobre a sociedade ou o grupo de
similar ao de mos. pessoas por eles influenciado, comumente
Entretanto, como ressalta Adolfo chamado de stakeholders4.
Sánchez Vasquez , ambas as expres-
3
Dessa forma, comportar-se de maneira
sões – ethos e mos – indicam um tipo de ética é jamais contrariar os princípios e os
comportamento humano adquirido pelo valores morais aceitos pela sociedade em
hábito, ou seja, não natural. No caso da que se vive e evitar falar e agir de maneira a
moral, decorre do padrão cultural vigente ofender ou prejudicar outras pessoas, salvo
e é constituída pelas regras consideradas no caso em que tais atos e palavras tragam
necessárias para o convívio dos integran- um benefício maior para a coletividade e
tes de uma sociedade. estejam de acordo com
Portanto, é formada aqueles princípios e
pelos valores estabe- Comportar-se de maneira valores morais.
lecidos pela sociedade No caso de líderes,
e define o comporta- ética é jamais contrariar qualquer que seja o
mento socialmente princípios e valores morais nível em que exerça
aceito. essa liderança, o com-
A ética, por sua
aceitos pela sociedade. promisso com os prin-
vez, é o ramo da fi- No caso de líderes, o cípios e valores morais,
losofia que estuda os compromisso deve ser assim como a avaliação
princípios que funda- dos atos e palavras,
mentam a moral. Na realizado de maneira ainda deve ser realizado de
prática, a ética regula mais criteriosa maneira ainda mais cri-
a maneira como as teriosa, tendo em vista
pessoas lidam com as a influência que o líder
situações cotidianas e o modo como se exerce sobre o grupo que lidera e sobre as
relacionam com os demais integrantes de pessoas que dele dependem.
seu grupo social. Nesse sentido, o líder ético deve pautar
Assim, apesar de conceitualmente dife- seu comportamento em alguns aspectos
rentes, moral e ética guardam entre si es- importantes:
treito relacionamento, uma vez que a moral 1 – Agir com humildade e ter como
é o objeto de estudo da ética e fundamenta propósito criar valor e gerar benefícios para
o chamado comportamento ético. as pessoas sobre as quais exerça influência
Nesse ponto, é possível concluir, então, (stakeholders), tendo sempre em mente o
que uma pessoa tem comportamento ético fato de que o mundo não gira ao seu redor.

2 TUGENDHAT, E. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1999.


3 VASQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. São Paulo: Civilização, 1987.
4 Palavra inglesa para definir grupos ou indivíduos direta ou indiretamente afetados pelas ações realizadas por
uma organização na busca por seus objetivos. Podem ser externos, tais como clientes, competidores, forne-
cedores, governo, instituições financeiras, meios de comunicação; ou internos, como funcionários, acionistas,
diretores e conselheiros.

10 RMB3oT/2017
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

2 – Tratar as pessoas com respeito e No caso dos líderes militares, o grupo


consideração, dedicando atenção aos seus sobre o qual exercem influência é cons-
problemas e procurando atender suas reais tituído não só por seus chefes, pares e
necessidades. Colocar-se na situação do subordinados, mas também pela sociedade
outro e tentar entender o problema sob como um todo, uma vez que é para ela, em
a sua ótica, tratando-o como gostaria de última análise, que os militares prestam
ser tratado. seu serviço.
3 – Jamais abrir mão dos valores morais, Em face dessa grande amplitude de in-
situando-os acima de qualquer desejo, opi- fluência, aliada ao fato de que a sociedade
nião ou objetivo a ser alcançado. Os fins brasileira sempre considerou as Forças
não podem justificar os meios. Armadas como exemplo de honestidade e
4 – Conscientizar-se de que suas ações retidão de procedimentos, é de suma im-
afetarão a vida de muitas pessoas e de que portância que todos os militares cultivem
seus liderados o veem como um exemplo a liderança ética, sem esmorecer.
a ser seguido. A atual situação do
5 – Assumir a res- País, em que os políti-
ponsabilidade por Liderança e ética militar cos enfrentam enorme
seus atos e por aqueles
praticados pelos seus
precisam andar juntas, de descrença popular, e até
mesmo alguns setores
liderados em cumpri- modo que a sociedade e os do Judiciário sofrem
mento às suas orienta- jovens militares brasileiros com a desconfiança, não
ções, assim como pelas permite que os militares
consequências deles recebam o devido apoio esmoreçam no cultivo
advindas. O sucesso para resistir à atual e na disseminação aos
é da equipe, mas o mais jovens das tradi-
fracasso deve ser as-
conjuntura nacional ções e dos valores que
sumido pelo líder. sempre nortearam as
6 – Estar disposto a Forças Armadas.
aprender e melhorar continuamente, como A liderança e a ética militar precisam
pessoa e como profissional, consciente de andar juntas, de modo que a sociedade e
que sempre haverá muito o que fazer e os jovens militares brasileiros recebam
aprender. Liderança é uma jornada de o devido apoio para resistir à atual con-
aprendizado sem fim. juntura nacional, em que diversos setores
7 – Comprometer-se consigo mesmo a tentam relativizar os valores tradicionais,
construir um mundo melhor e mais justo, manipular as notícias, gerando desinfor-
agindo de acordo com os valores morais mação, e fomentar a disputa pelo poder a
vigentes na sociedade, sem se importar com qualquer custo.
possíveis consequências desagradáveis. O Lembrando o grande Almirante Barroso,
mundo será melhor e mais justo se cada comandante da força naval brasileira na
cidadão fizer a sua parte. Batalha do Riachuelo, “o Brasil espera que
8 – Cuidar da coisa pública como se fosse cada um cumpra o seu dever”. Nos dias
sua, tanto no que se refere a verbas, como a de hoje, esse dever parece ser mais árduo
material. O bem público é de propriedade e necessário no campo da ética, embora
de todos os cidadãos e, por isso, deve ser não se possa jamais relegar a capacidade
tratado com o maior cuidado possível. de combate.

RMB3oT/2017 11
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

A LIDERANÇA E A compreensão do problema, o qual, segundo


ÉTICA MILITAR ele, vem adquirindo importância vital e in-
fluenciando os acontecimentos nos campos
Em junho de 2006, o Pentágono anunciou de batalha do século XXI.
que todos os militares dos Estados Unidos A primeira questão abordada pelo
da América (EUA) em serviço no Iraque artigo foi se os militares precisariam ser
iriam passar por um treinamento adicional moralmente bons cidadãos ou bastaria
sobre ética militar, com ênfase nos valo- que fossem bons soldados. Nesse sentido,
res cruciais do combatente. Tal decisão argumenta que, no momento da batalha, os
originou-se de uma constatação, do então soldados querem ser conduzidos por um lí-
comandante das Forças Multinacionais que der que tenha condições de vencer a batalha
atuavam naquele país, de que os militares e garantir-lhes a vida, não importando se
estadunidenses estavam deixando a dese- ele é um cidadão de moral elevada. Essa
jar no aspecto da ética questão, que nos pare-
militar.
Assim, para avaliar O comportamento imoral ce essencial, remete à
trindade paradoxal de
os programas de ensino dos integrantes das Forças Clausewitz 8 , segun-
de ética existentes no Armadas pode destruir o do a qual a guerra só
meio militar, suas ba- pode ser vencida se
ses teóricas e os efeitos apoio popular necessário for suportada por um
das diferenças culturais ao cumprimento de suas poder militar crível,
e nacionais sobre o seu pela vontade política
conteúdo, foi realizado missões. e por uma opinião pú-
na Universidade de Bons soldados precisam ser blica favorável. E aí
Hull, Grã-Bretanha, também bons cidadãos cabe a pergunta: Será
o seminário “Ética na que a opinião pública
formação e desenvol- nacional apoiaria For-
vimento militares”, ao qual compareceram ças Armadas cujos integrantes tivessem
cientistas políticos, historiadores, filósofos comportamento considerado moralmente
e representantes dos meios militar e acadê- inadequado? Certamente seria muito im-
mico de dez países5. provável.
Apoiado nas conclusões desse semi- E foi justamente essa a conclusão final a
nário, o professor Paul Robinson6 publi- que chegou o seminário. O comportamento
cou um artigo7 resumindo as conclusões imoral dos integrantes das Forças Armadas
iniciais a que chegaram os participantes pode destruir o apoio popular necessário ao
do seminário, de modo a assegurar maior cumprimento de suas missões. Portanto,

5 Alemanha, Austrália, Canadá, EUA, França, Holanda, Israel, Japão, Noruega e Reino Unido.
6 Paul Robinson é professor de Relações Internacionais na Universidade de Ottawa, Canadá, e foi vice-diretor do
Instituto de Ética Aplicada da Universidade de Hull, Inglaterra.
7 “Ethics Training and Development in the Military”, disponível em ssi.armywarcollege.edu/pubs/parameters/
articles.
8 Karl von Clausewitz (1780-1831), militar prussiano, é considerado um dos maiores escritores sobre a guerra,
sendo o seu livro Da Guerra uma referência mundial. É o autor da frase “A guerra é a continuação da política
por outros meios”.

12 RMB3oT/2017
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

bons soldados precisam ser também bons Acrescente-se ainda a necessidade de


cidadãos. E esse aspecto ganha relevância que os chefes e líderes da instituição se-
nos períodos entre guerras, quando a maior jam os responsáveis por demonstrar essa
parte das operações militares é de manuten- valorização para os subordinados, a cada
ção da paz em países estrangeiros, havendo instante, por meio da premiação, como diz
necessidade que o comportamento dos mi- Robinson, mas, principalmente, a nosso
litares seja moralmente irrepreensível, para ver, por meio do exemplo.
que não provoque sérios danos políticos ao Nesse sentido, vale relembrar uma frase
seu país de origem9. bem conhecida de Napoleão Bonaparte, que
Entretanto, o ensino formal de ética seria dizia: “Servir de exemplo não é a melhor
suficiente para formar bons cidadãos? forma de ensinar; é a única.”. Tal afirmativa
Após longa discussão sobre o tema, Ro- demonstra, com simplicidade, o grau de
binson conclui que “o ensino da ética, por influência que o exemplo do líder exerce
si só, não irá produzir soldados moralmente sobre seus subordinados.
perfeitos”. Mais adiante, afirma ser “pouco Essa influência sobre o comportamen-
objetivo ensinar às pessoas uma forma to dos liderados é, em última análise, a
particular de compor- própria essência da
tamento se elas perce- liderança, e por isso
bem que a instituição à Servir de exemplo não é a os subordinados sem-
qual estão vinculadas pre procurarão seguir
premia e valoriza, na melhor forma de ensinar; o exemplo do líder e
prática, outros tipos é a única imitá-lo, encarando-o
de atitude”. Napoleão Bonaparte como um modelo. E
O artigo do pro- como as ações valem
fessor ressalta que a muito mais do que as
“liderança moral é palavras, é preciso que
um suplemento vital para o ensino formal o líder procure sempre demonstrar um com-
da ética” (grifo nosso). E enfatiza ser “im- portamento ético e íntegro, pois de nada vale
portante que os líderes disseminem uma pregar atitudes moralmente corretas se não
cultura que encoraje o debate ético” e que as praticar rotineiramente.
devem ser implantados programas capazes Reforçando esse entendimento, o EMA-
de “criar uma cultura organizacional que 137 – Doutrina de Liderança da Marinha10
objetive discutir erros do passado, bem – é muito feliz ao relacionar em primeiro
como promover tradições que enfatizem as lugar, dentre os atributos da liderança,
conquistas militares e os exemplos positivos o exemplo, conferindo-lhe, com isso, a
da ética militar e dos valores nacionais”. devida importância. Sobre o exemplo, o
Não podemos deixar de concordar EMA-137 preceitua:
com Paul Robinson, notadamente quando Não há nada que se exija tanto de um
afirma a exigência de que a instituição líder quanto dar o exemplo pessoal, ou
premie e valorize o comportamento ético. seja, o exemplo do seu comportamento,

9 Como ocorreu, por exemplo, no caso da soldado do Exército dos EUA Lynndie England, que torturou de forma
humilhante um prisioneiro em Abu Ghraib, no Iraque, em 2004. Julgada no ano seguinte por uma Corte
Marcial dos EUA, Lynndie foi condenada a três anos de prisão e a uma reserva desonrosa.
10 BRASIL. Estado-Maior da Armada. EMA-137: Doutrina de Liderança da Marinha. Rev.1 Mod.1. Brasília:
EMA, 2017.

RMB3oT/2017 13
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

pleno de valores inerentes à ética militar, erros do passado, cultivar as tradições e os


aceitos e respeitados pelo grupo. [...] A valores nacionais, assim como enfatizar
todo o momento, o líder é observado exemplos positivos de comportamentos
por seus subordinados e deve buscar militarmente éticos parece ter potencial para
conquistar-lhes a confiança, o respeito e produzir resultados bem interessantes.
a admiração (EMA-137 – p. A-1). Todavia, ao se cultivar os valores tra-
Em seguida, dentre os demais atributos dicionais da ética militar, é preciso que se
do líder, o EMA-137 inclui a integridade- esteja atento para o perigo que pode ocorrer
ética, composta por lealdade, coragem e desses jovens militares sentirem-se seres
caráter, definindo-a como: moralmente superiores aos demais cidadãos,
Honestidade, transparência e com- como se fizessem parte de uma casta privile-
prometimento inquebrantável com os giada. Na verdade, não se pode esquecer que
valores éticos da instituição, tais como: os militares fazem parte da mesma sociedade
honra, lealdade para com seus superiores, que os cidadãos civis de seu país, embora
pares e subordinados, fidelidade e cora- realmente cultivem valores éticos com mais
gem, dentre outros (EMA-137 – p. A-1). rigor e perseverança.
No caso brasileiro, os militares têm
Portanto, segundo a Doutrina de Lide- sido, tradicionalmente, exemplos de
rança da Marinha do Brasil, que corrobora idoneidade moral e de conduta ilibada,
as teorias de liderança mais aceitas, o traduzidos na confiança que o povo tem
exemplo é fundamental para o exercício da demonstrado pelas Forças Armadas11, a
liderança e deve estar calcado em valores qual é fruto dos valores morais que nor-
moralmente aceitos, cuja base é essencial- teiam a ética militar brasileira e que estão
mente a ética. E isso é válido para qualquer definidos no artigo 28 do Estatuto dos
que seja o ramo de atividade do líder e de Militares (EM) – Lei no 6.880, de 9/12/80
seus liderados. –, que estabelece:
Apesar disso, não se pode negar que, nos Art. 28. O sentimento do dever, o
dias atuais, a influência dos líderes sobre pundonor militar e o decoro da classe
seus subordinados tem sofrido forte “con- impõem, a cada um dos integrantes
corrência externa”, oriunda da internet e das das Forças Armadas, conduta moral
redes sociais. Por isso, é arriscado acreditar e profissional irrepreensíveis, com a
que somente o exemplo dos mais antigos e o observância dos seguintes preceitos de
culto às tradições sejam capazes de inculcar ética militar (grifo nosso):
os valores militares nos jovens alunos das I - amar a verdade e a responsabili-
escolas de formação das Forças Armadas. dade como fundamento de dignidade
É preciso, mais do que nunca, incluir nos pessoal;
currículos dessas escolas aulas formais de II - exercer, com autoridade, efici-
ética e liderança. E, para isso, talvez o estu- ência e probidade, as funções que lhe
do de casos seja a técnica mais apropriada, couberem em decorrência do cargo;
evitando-se, todavia, somente casos que III - respeitar a dignidade da pessoa
apresentem aspectos negativos. Discutir humana;

11 De acordo com pesquisas realizadas nesse sentido entre 2010 e 2016, pela Escola de Direito da Fundação Getúlio
Vargas de São Paulo, as Forças Armadas são a instituição brasileira mais respeitada pela opinião pública,
seguida pela Igreja Católica, pela imprensa escrita e pelo Ministério Público.

14 RMB3oT/2017
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

IV - cumprir e fazer cumprir as leis, XVIII - abster-se, na inatividade, do


os regulamentos, as instruções e as or- uso das designações hierárquicas:
dens das autoridades competentes; a) em atividades político-partidárias;
V - ser justo e imparcial no julgamen- b) em atividades comerciais;
to dos atos e na apreciação do mérito dos c) em atividades industriais;
subordinados; d) para discutir ou provocar discus-
VI - zelar pelo preparo próprio, sões pela imprensa a respeito de assun-
moral, intelectual e físico e, também, tos políticos ou militares, excetuando-se
pelo dos subordinados, tendo em vista o os de natureza exclusivamente técnica,
cumprimento da missão comum; se devidamente autorizado; e
VII - empregar todas as suas energias e) no exercício de cargo ou função
em benefício do serviço; de natureza civil, mesmo que seja da
VIII - praticar a camaradagem e de- Administração Pública; e
senvolver, permanentemente, o espírito XIX - zelar pelo bom nome das
de cooperação; Forças Armadas e de cada um de seus
IX - ser discreto em suas atitudes, integrantes, obedecendo e fazendo
maneiras e em sua linguagem escrita obedecer aos preceitos da ética militar
e falada; (Lei 6.880/80).
X - abster-se de tratar, fora do âm-
bito apropriado, de matéria sigilosa de Assim, não há o que se discutir quanto
qualquer natureza; ao significado da ética militar brasilei-
XI - acatar as autoridades civis; ra e aos preceitos que a caracterizam.
XII - cumprir seus deveres de ci- Entretanto, muito se tem questionado a
dadão; respeito da atualidade desses preceitos,
XIII - proceder de maneira ilibada na acusando-os de “fora de moda” ou “de
vida pública e na particular; difícil aceitação pelas novas gerações”.
XIV - observar as normas da boa Sustentando essa discussão, os que
educação; acusam de caducidade os valores que
XV - garantir assistência moral e constituem os preceitos da ética militar
material ao seu lar e conduzir-se como argumentam que as novas gerações – as
chefe de família modelar; chamadas gerações y e z – não aceitariam
XVI - conduzir-se, mesmo fora do com facilidade preceitos que lhes sejam
serviço ou quando já na inatividade, de impostos como verdades, sem a devida
modo que não sejam prejudicados os justificativa lógica e aceitável.
princípios da disciplina, do respeito e A geração y, constituída pelos nascidos
do decoro militar; após 198512, desenvolveu-se, segundo al-
XVII - abster-se de fazer uso do posto guns sociólogos, numa época de grandes
ou da graduação para obter facilidades avanços tecnológicos e prosperidade eco-
pessoais de qualquer natureza ou para nômica. Seus pais, não querendo repetir o
encaminhar negócios particulares ou abandono sentido em sua própria infância
de terceiros; e adolescência, encheram-nos de presentes,

12 A maioria dos estudiosos dos EUA considera a geração y os jovens nascidos a partir do início dos anos 80.
Entretanto, alguns estudiosos brasileiros julgam que os aspectos que os moldaram sofreram um atraso de
cerca de cinco anos para fazer efeito no nosso país.

RMB3oT/2017 15
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

atenções e atividades, fomentando a sua au- dades. Procuram manter-se “conectados”


toestima. Com isso, esses jovens cresceram e buscam ser aceitos em grupos de jovens
julgando-se seres especiais e superdotados, com interesses semelhantes. Em princípio,
no que foram estimulados pelos filmes e não são fiéis a organizações, e a afeição
jogos eletrônicos de ação; pela convivência, a marcas constitui a forma preferida de
desde tenra idade, com sistemas de alta expressar um comportamento coletivo,
tecnologia e pela capacidade de realizar não dando importância aos tradicionais
tarefas múltiplas13. símbolos de status pessoal. Esses jovens
Em face desse sentimento, ao entrarem são impulsivos, impacientes e, no merca-
no mercado de trabalho, normalmente não se do de trabalho, não pensam duas vezes
sujeitam à realização de tarefas subalternas, antes de mudarem de emprego, caso não
típicas de início de carreira, e julgam-se se sintam valorizados ou confortáveis no
merecedores de cargos e salários elevados ambiente corporativo.
desde cedo, por terem sido acostumados Conforme observa Renato Trindade,
pelos pais a obter tudo o que desejam. Uma presidente da Bridge Researchs, empresa
de suas características atuais é a utilização paulista especializada no público jovem,
de aparelhos de telefonia celular para muitas “essa geração precisa que as coisas sejam
outras finalidades além de apenas fazer e muito bem explicadas. O que para a geração
receber ligações, como é característico das anterior poderia ser algo óbvio – a questão
gerações anteriores. da hierarquia dentro de uma corporação ou
Esse grupo, exigente e ávido por ino- regras de comportamento – para eles nem
vações, tem se tornado o público-alvo das sempre o é”. Prossegue Trindade dizendo
ofertas de novos serviços e da difusão de que “eles precisam que os limites sejam
novas tecnologias. Preocupado com o explicitados. Mas escutam a empresa e
meio ambiente e as causas sociais, tem aceitam esses limites, desde que compre-
um ponto de vista diferente das gerações endam sua razão de ser”.
anteriores, que viveram épocas de guerras Quanto à geração z, dos nascidos a partir
e desemprego. Com o mundo praticamen- de 200515 e que em breve estará se juntando
te estável e mais favorável à liberdade ao efetivo das nossas Forças Armadas, é es-
de expressão, esses jovens passaram a perado que seu comportamento no mercado
preocupar-se com valores antes menos de trabalho seja semelhante ao da geração y,
prioritários, como vida pessoal, bem-estar com recrudescimento em alguns aspectos.
e enriquecimento pessoal, deixando de Isso porque os jovens da geração z estão
lado os valores coletivistas, típicos de sendo mais influenciados ainda pelo avanço
períodos de carência de recursos. tecnológico. Assim, consideram tediosa a
Segundo Clayton Melo 14, a geração vida sem conectividade, são imediatistas,
y é constituída por jovens “liberais no autodidatas, críticos, exigentes, dinâmicos,
consumo, mas um tanto conservadores no maduros e assertivos. Além disso, se acostu-
aspecto social”, onde não apreciam novi- maram a viver virtualmente o que a realidade

13 Ryan, Rebecca. Millenial Leaders. Ed. Morgan-James, 2008.


14 Disponível em http://idgnow.uol.com.br/carreira/2010/01/22/o-que-deseja-como-pensa-e-age-a-geracao-y/
(acessado em 23 de novembro de 2010).
15 Para a maioria dos estudiosos dos EUA, a geração z é formada pelos jovens nascidos a partir de 2001. Entretanto,
alguns estudiosos brasileiros julgam que os aspectos que os moldaram sofreram um atraso de cerca de cinco
anos para fazer efeito no nosso país.

16 RMB3oT/2017
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

não permite e, devido à rapidez das evoluções de esportes, culto ao amor livre e outras
tecnológicas, estão condicionados a deixar de quebras de costumes fizeram dessa geração
valorizar as coisas rapidamente, pela obsoles- a responsável pelo surgimento de novos
cência. A facilidade de acesso à informação costumes e novos valores.
os tornou generalistas, e as redes sociais lhes Assim, pode-se concluir que a tarefa
impuseram certa dificuldade de interação so- dos líderes nos anos 60, quando os baby
cial e baixa capacidade de expressão escrita, boomers chegaram ao mercado de trabalho
além de impaciência para ouvir. e às Forças Armadas, foi mais árdua do que
Essa pequena digressão em torno das a dos líderes atuais. Diferentemente daquela
características dos jovens de hoje faz-se época, os jovens de hoje não julgam que os
necessária para analisar a argumentação valores cultivados pelas gerações anteriores
daqueles que defendem a caducidade dos estejam ultrapassados e devam ser substituí-
preceitos da ética militar, os quais têm o dos, não buscam uma quebra de costumes ou
foco no interesse coletivo, contrariamente uma mudança na ordem social e não pregam
ao foco individualista das gerações y e z. nenhuma revolução, seja ela política, social,
Para isso, vale lembrar que os especialis- econômica, cultural ou religiosa.
tas reconhecem que, apesar de ansiosos, Dessa forma, o que se faz necessário
ambiciosos e individualistas, esses jovens modificar é a forma como os valores são
aceitam os limites que lhes são impostos, transmitidos às novas gerações y e z, e não
desde que os compreendam, e são conser- os valores. A prática do “faça o que digo,
vadores em seus hábitos sociais. mas não o que faço”, comum na segunda
Portanto, não se trata de aversão aos metade do século passado, não funciona
valores aceitos e respeitados pelas gera- mais, pois as novas gerações não aceitam
ções anteriores e listados no artigo 28 do que algo deva ser feito de determinada ma-
Estatuto dos Militares, o que indica uma neira apenas porque os mais velhos assim o
postura completamente diferente daquela desejam ou ensinam. Os jovens aceitam os
adotada pela geração nascida logo após valores, mas é preciso que lhes seja expli-
a Segunda Guerra Mundial, chamada de cada a razão pela qual são importantes que
geração baby boomer16, a qual tem sido sejam cultuados. E, mais ainda, é preciso
descrita como portadora de uma “onda que os mais velhos pratiquem o comporta-
de choque”. Os chamados baby boomers, mento que exigem dos jovens. Mais uma
estes sim, estão associados a um movi- vez, devemos ressaltar o valor do exemplo.
mento de rejeição ou de redefinição dos Mesmo assim, atravessamos hoje um
valores tradicionais que, segundo eles, período que alguns estudiosos insistem
teriam levado o mundo a duas guerras em caracterizar por uma “crise de valores
mundiais e, consequentemente, a um pe- morais”, com o que não concordamos. Em
ríodo de escassez de recursos e de falta de nossa opinião, a crise que atravessamos é
conforto. Cabelos grandes, calças justas, de exemplos; ou, melhor especificando,
minissaias, abolição do uso do soutien, de liderança, o que não ocorreu nos anos
uso de tênis como calçados sociais, e não 60. Naquela época, apesar da rebeldia dos
apenas como equipamento para a prática jovens, o exemplo dos mais velhos era muito

16 A Geração Baby Boomer é conhecida assim devido à explosão demográfica após a Segunda Guerra Mundial.
São pessoas nascidas entre 1950 e 1960 que passaram por forte transformação cultural, capitaneada pela
ascensão da TV.

RMB3oT/2017 17
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

claro e virtuoso. Não se podia contestar a cabe ao líder diferenciar seus liderados com
honestidade, o altruísmo, o preparo profis- base na simpatia ou na subserviência; cabe,
sional ou o caráter, apenas para citar algumas ao contrário, premiar e valorizar os mais
características, dos líderes de então. E, com competentes profissionalmente, os dotados
isso, ainda que rebeldes, os jovens tinham de coragem moral e os que ajam com ética.
bons exemplos nos quais se espelhar. Con- E, acima de tudo, cabe aos líderes servir de
testavam alguns valores, mas percebiam que exemplo aos seus liderados e praticar os
os mais velhos realmente acreditavam neles valores éticos militares.
e os praticavam (ao menos, transmitiam essa Entretanto, voltando ao Estatuto dos
percepção aos mais jovens). Militares, é possível afirmar que todos os
Quanto aos líderes de hoje, são na verda- líderes, ou seria melhor chamá-los sim-
de aqueles jovens que se rebelaram contra os plesmente de chefes, cumprem os preceitos
valores cultivados nos éticos listados no ar-
anos 60 e seus filhos. tigo 28, notadamen-
Os pais dos jovens te nos incisos III, V,
das gerações y e z são VI, VII e XIV? Será
os filhos dos baby que todos os chefes
boomers que, talvez da atualidade tratam
por terem sido criados seus subordinados
sob disciplina rigoro- com respeito e edu-
sa e perceberem que cação, conforme
seus pais não eram tão preceituam os inci-
autênticos e virtuosos sos III e XIV? Será
quanto pareciam, não que todos os chefes
souberam transmitir da atualidade são
aqueles valores e im- justos e imparciais
por limites aos seus no julgamento dos
filhos, atendendo a atos e na aprecia-
todas as suas vontades ção do mérito dos
A Rosa das Virtudes
e criando-os em um seus subordinados,
mundo irreal, em que podiam fazer de tudo. como preceitua o inciso V, negando a
Dessa forma, quando esses jovens che- prática do apadrinhamento ou, como se diz
gam ao mercado de trabalho ou às Forças na Marinha, da “cocha não adquirida pela
Armadas, não admitem que suas vontades competência”? Será que todos os chefes
não sejam atendidas, que não possam fazer da atualidade zelam pelo preparo próprio,
tudo o que queiram e que lhes seja exigido moral, intelectual e físico e também pelo
obedecer a regras que lhes impõem limites dos subordinados, como preceitua o inciso
que nunca conheceram. VI, não buscando esconder seu despreparo
O problema não decorre da falta de valo- com o uso abusivo do estilo autoritário de
res ou de ética dos jovens. Decorre, isto sim, liderança? E o mais importante: Será que
da falta de limites, o qual tem sua origem na os chefes atuais estão empregando todas
falta de bons exemplos. Não cabe ao líder as suas energias em benefício do serviço,
atender às vontades de nenhum subordinado; conforme estabelece o inciso VII, relegando
cabe, sim, atender às necessidades verdadei- seus interesses pessoais, inclusive os de
ras e justas da maioria de seus liderados. Não carreira, para segundo plano?

18 RMB3oT/2017
A LIDERANÇA E A ÉTICA MILITAR

Relembrando as características das novas retorno desejado e fomentada a confiança


gerações, os jovens de hoje não aceitam dos subordinados nos seus chefes, condição
como verdadeiras e justas decisões ou ordens sine qua non para o exercício da liderança.
baseadas somente na vontade dos chefes. Concluindo, o ensino teórico da ética é
Também não aceitam limites somente útil e deve ser realizado em todos os níveis
porque o chefe lhes deseja impor. É preciso da formação do militar. A fonte para isso é
que as decisões, as ordens e os limites sejam o EM, notadamente o artigo 28, e, no caso
explicitados e explicados, para que os jovens particular da Marinha, a Rosa das Virtu-
os compreendam e os aceitem. O convenci- des. Porém de nada valerá esse esforço
mento, nos dias de hoje, deve ser a principal se não houver uma conscientização dos
forma de obter a execução de tarefas pelos mais antigos, em todos os postos e gradu-
subordinados. O autoritarismo vem perden- ações da carreira, sobre o impacto que seu
do efetividade e, salvo nos casos em que haja exemplo causa nos subordinados. E para
risco à integridade física dos subordinados, que esse impacto seja positivo e gere uma
a probabilidade de que o estilo de liderança reação em cadeia capaz de manter vivos
autoritário seja eficaz é os valores da ética mi-
muito pequena. litar, é preciso que os
E, para que o con- A crise atual não é de ética, mais antigos cultuem
vencimento ocorra, é mas sim de liderança e pratiquem, verdadei-
fundamental o exem- ra e honestamente, os
plo. Se os chefes não- valores da Rosa das
cultuarem e praticarem os preceitos éticos Virtudes e os preceitos estabelecidos no
estabelecidos no Estatuto dos Militares, artigo 28 do EM, principalmente aqueles
de nada valerá ministrar aulas sobre ética contidos nos incisos III, V, VI, VII e XIV.
para os subordinados, sejam eles oficiais, Assim, a conclusão final a que se pode
aspirantes, alunos do Colégio Naval, praças chegar é que a crise atual não é de ética,
ou aprendizes-marinheiros. mas sim de liderança. E para reverter essa
No caso da Marinha do Brasil, temos situação, o caminho é, mais do que ensinar,
outra excelente ferramenta que explicita os praticar os valores morais da ética militar
valores morais que devem nortear o com- e incrementar a realização de eventos que
portamento dos nossos oficiais e praças, demonstrem a importância da liderança,
que é a Rosa das Virtudes, distribuída aos como palestras, simpósios, estudos de
alunos das escolas de formação quando do caso, exibição comentada de filmes etc.,
seu ingresso. Mas, não basta distribuir a com a participação de todos os servidores
Rosa das Virtudes e exigir que os jovens lotados nas Organizações Militares, desde
cultivem os valores ali expressos. É preciso o marinheiro mais moderno até o coman-
dar o exemplo de honra, lealdade, fidelida- dante, pois só com a participação deste os
de, disciplina e de todos os demais valores subordinados perceberão a importância
ali expressos, os quais devem ser praticados do tema. O exemplo é tudo, inclusive na
de cima para baixo, do mais antigo para demonstração de que a ética e a liderança
o mais moderno, para que seja obtido o são fundamentais para a carreira militar.

1 CLASSIFICAÇÃO PARA ÍNDICE REMISSIVO:


<VALORES>; Comportamento; Ética; Exemplo; Honra; Liderança; Moral;

RMB3oT/2017 19

Você também pode gostar