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A Ética Automática: Nossos Pressupostos São

Importantes
Keith Leavitt, Ph.D., e Major Walter J. Sowden, Exército dos EUA

Q UASE TODAS AS decisões ou ações


que tomamos ao longo do dia são
baseadas em uma diversidade de
pressupostos, que aceitamos sem questionar.
Atitudes e Pressupostos
Implícitos
Segundo sugerem pesquisas comportamentais
recentes, muitos dos nossos pressupostos
Quando visitamos um supermercado novo, automáticos talvez sejam equivocados e até
podemos presumir que o leite estará na seção de nocivos. Os psicólogos sociais descobriram a
laticínios. Também esperamos que ele esteja em importância das “atitudes implícitas”. Essas
um determinado tipo de embalagem e sabemos associações simples operam fora da consciência,
quanto ele deve custar e a quem devemos pagar. são difíceis de coibir e ditam grande parte do
Ao pisarmos na faixa de pedestres, estamos nosso comportamento quando não há tempo
contando com o fato de que o motorista do para realmente refletir sobre uma situação. Os
carro seja obediente à lei, esteja acordado e cientistas desenvolveram tarefas de resposta
tenha um mínimo de lucidez. Como soldados, rápida válidas e confiáveis para analisar esses
fazemos suposições como essas durante o processos automáticos e fizeram descobertas
treinamento e as operações de contingência. interessantes e, por vezes, perturbadoras.
Por exemplo, durante um curso de navegação Por exemplo, uma associação implícita entre
terrestre, fazemos diversas suposições sobre as “sexo masculino” e “ciência” provou ser um
características do terreno que encontraremos melhor indicador de que curso seria escolhido
com base no que vemos (ex.: terreno baixo por alunas na fase pré-universitária do que sua
significa que há um riacho ou um córrego) e nota média, sua pontuação no vestibular ou seus
elaboramos nossos planos de acordo. Além interesses expressos1. Ou, de modo bem simples:
disso, no ambiente operacional de combate, alunas inteligentes, confiantes e competentes, mas
presumimos que nossos colegas soldados irão que acreditavam implicitamente que as ciências
desempenhar sua missão, obedecer ao Credo do estão relacionadas com “sexo masculino”,
Soldado e personificar os Valores do Exército. deixaram de considerar suas habilidades ao
Nosso comportamento se baseia completamente escolher que carreira seguiriam.
na ideia de que esses pressupostos são O que é mais preocupante: em uma tarefa
verdadeiros, apesar de a maioria de nós nunca conhecida como “tiro ao alvo”, na qual são
tê-los considerado ou lapidado em detalhes. exibidas, na tela, imagens de pessoas com
Com certeza, não pensamos neles quando armas e de pessoas com objetos inofensivos
agimos. Frequentemente, as decisões que (uma banana, um livro, etc.), os participantes
precisamos tomar com pouco tempo de reação devem rapidamente pressionar a tecla de
são da maior gravidade e se apoiam fortemente “atirar” para as que portam armas e a de
nos nossos alicerces e premissas morais. “não atirar” no caso das que seguram outros

Keith Leavitt, Ph.D., é professor adjunto da Academia O Major Walter J. Sowden, Exército dos EUA, é subchefe
Militar dos EUA, em West Point, e pesquisador do de logística no Posto do Comando Operacional do
Projeto Implicit. Trabalha atualmente no Center for the 807º Comando de Apoio de Desdobramento Médico em
Army Profession and Ethic. É doutor em Comportamento Seagoville, no Texas. É bacharel em Sociologia pela
Organizacional (Administração) pela Foster School South Dakota State University e mestre em Psicologia
of Business da University of Washington e mestre em Organizacional e Social pela Columbia University.
Administração e Psicologia Social.

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objetos. Constatou-se que os participantes o processo decisório e para o comportamento
eram mais rápidos e precisos ao decidir atirar ético dentro do Exército. Durante uma entrevista
em pessoas negras com armas ou não atirar em recente, um chefe de equipe que servia no Iraque
brancos que seguravam objetos inofensivos. contou que, durante uma noite em que sua
Em outras palavras, “negros” e “armas” estão equipe estava de guarda na base, um iraquiano
automaticamente mais próximos em nossas portando uma bandeira branca tentou chamar sua
mentes do que “brancos” e “armas”. Diversos atenção. Antes que alguém no terreno pudesse se
estudos (com diferentes populações) exibiram aproximar dele, o iraquiano começou a escalar o
um padrão semelhante: independentemente de muro de proteção da base avançada de operações
os participantes serem brancos, negros, alunos e efetivamente cruzou o perímetro de segurança.
universitários ou policiais, era mais fácil As regras de engajamento estabelecem diretrizes
conflitantes: o sargento deveria atirar no homem
por ele ter cruzado o perímetro, mas, por outro
Em suma, os pressupostos lado, não deveria atirar por causa da bandeira
branca que ele portava. Naquele momento, com
automáticos do sargento pouco tempo para agir, é possível imaginar
moldaram sua reação ao como pressupostos automáticos influenciaram
a decisão do sargento: suas crenças sobre o
intruso. povo iraquiano, seu papel de soldado e suas
opiniões sobre a natureza humana4. Em suma, os
pressupostos automáticos do sargento moldaram
reconhecer um negro perigoso — e atirar contra sua reação ao intruso. Exemplos mais infames,
ele — do que um branco perigoso2. como o abuso de detentos em Abu Ghraib
Nossas crenças implícitas são bem mais e o assassinato de cidadãos iraquianos em
profundas do que atitudes em relação à Iskandaria, também podem ser compreendidos
raça e ao gênero. Em um estudo recente, dessa forma5.
pesquisadores analisaram as crenças implícitas No Manual de Campanha 6-22 — Liderança
de leigos, de estudantes de Administração e do Exército (FM 6-22 — Army Leadership),
de gerentes de empresas sobre o caráter ético reconhecemos que, ao ingressarem no Exército,
dos negócios. Primeiro, constataram que os os homens e mulheres que o integram já têm o
gerentes faziam uma associação mais forte caráter definido por seu histórico, suas crenças,
entre os conceitos de “negócios” e “ética” que sua formação e sua experiência. Durante a
os alunos de Administração e que estes, por instrução inicial de um soldado, a organização
sua vez, faziam uma associação mais forte busca compensar a infinidade de diferenças de
que os leigos. Faz sentido que quanto mais caráter preestabelecidas e igualar as condições,
tempo as pessoas exerçam uma profissão, mais fazendo com que todos os soldados passem
elas acreditem nela. Mais preocupante foi a por um processo de socialização amplo e
constatação de que os que mais acreditavam abrangente. Contudo, não se pode esperar
que o meio empresarial fosse extremamente que o processo neutralize completamente as
ético foram os mais propensos, durante uma associações formadas pelas experiências de
simulação, a exagerar em um sinistro de uma vida inteira e pela exposição a várias fontes
seguro em favor de sua empresa ou a negociar de informação.
usando informações privilegiadas ilegais. Em Como, muitas vezes, os pressupostos
suma, um pressuposto (de que os negócios são implícitos estão fora da nossa capacidade
éticos) os impediu de usar seu critério pessoal. de percebê-los, isso cria certo paradoxo.
Presumiram erradamente que, se os negócios Por um lado, as informações neles contidas
são inerentemente éticos, então tudo que não são nossa “culpa”, porque os geramos
fizerem em seu nome também o será3. inconscientemente por meio das experiências
Não é preciso forçar muito a imaginação que a vida nos apresentou (um estudo de
para enxergar as implicações de tudo isso para associações raciais implícitas mostra que

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ÉTICA AUTOMÁTICA

essas crenças estão mais fortemente ligadas às Hoje, uma das mais confiáveis é o teste de
atitudes de nossos pais em relação às minorias associação implícita disponível on-line (www.
do que às nossas próprias atitudes6). projectimplicit.com). O site fornece pontuação
Por outro lado, precisamos nos responsabilizar e feedback para ajudar o usuário a entender seus
por nossas decisões e por nosso comportamento próprios pressupostos automáticos, tudo de forma
em situações críticas, especialmente quando anônima. É chamado “Project Implicit” (Projeto
houver implicações morais e éticas. Embora haja Implícito) e é uma organização de pesquisa sem
um número limitado de pesquisas empíricas, fins lucrativos localizada nas Universidades de
que demonstram como esses pressupostos Harvard, Washington e Virgínia.
implícitos podem mudar, a maioria das possíveis
intervenções se concentra em reduzir nossa Monitorar as Próprias Reações
dependência em relação a eles, por meio da Embora situações complexas e intensas se
conscientização. É preciso fazer um esforço para desenrolem rapidamente, o dia a dia nos oferece
considerar a situação antes de agir. várias oportunidades para identificar e corrigir
É possível reduzir o impacto prejudicial pressupostos que possam surgir em situações
dos próprios pressupostos implícitos com as importantes. Por exemplo, se uma interação
seguintes medidas: problemática durante o atendimento ao cliente
●●Conscientizar-se do conteúdo dos próprios levar a um pensamento negativo automático
pressupostos implícitos. sobre a etnia da pessoa, esse momento deve servir
●●Monitorar ativamente as próprias reações como um alerta, assim como uma oportunidade
automáticas a situações e praticar substituí-las de lidar com o surgimento desses pressupostos
por bons julgamentos. automáticos no nosso pensamento. Uma vez
●●Incorporar complexidade ao próprio que reconheçamos nossos próprios pressupostos
modo de pensar, por meio da análise e do automáticos e as tendências comportamentais
questionamento de premissas. deles advindas, podemos nos empenhar em
considerá-las mais a fundo em vez de agir
Conscientizar-se imediatamente. Se acreditarmos implicitamente,
Conscientizar-se dos pressupostos implícitos por exemplo, que os habitantes do Oriente Médio
faz parte do desenvolvimento do autoconheci- são mentirosos, é óbvio que isso afetará uma
mento. Por autoconhecimento entende-se ter interação com um afegão ou com um iraquiano.
consciência de si mesmo, incluindo as próprias Podemos ignorar informações valiosas ou
características, sentimentos e comportamentos prejudicar relacionamentos construtivos.
(FM 6-22, Capítulo 8) 7. Nossa
organização valoriza o autoconhe-
cimento, segundo a antiga doutrina
de liderança e treinamento do Departamento de Defesa, Sgt Paul L. Anstine II, CFN dos EUA.
Exército (“Ser, Saber, Fazer”). O
Manual de Campanha 6-22 defende
os 11 princípios de liderança, dos
quais o primeiro é “conhecer-se
e buscar o autoaperfeiçoamento”.
Como, não raro, os pressupos-
tos automáticos operam sem que
tenhamos consciência disso, é
quase impossível conhecer nossas
próprias mentes. Felizmente, os
pesquisadores comportamentais
começaram a desenvolver uma
ampla gama de ferramentas para Um iraquiano acena com um pano branco, próximo à Ponte An Nu’maniyah,
identificar “pressupostos ocultos”. no Iraque,durante a Operação Iraqi Freedom.

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Força Aérea dos EUA, Sgt Jonathan Doti

Um militar fornece segurança durante apreensões de iraquianos, em Bagdá, Iraque, 13 Ago 07.

Questionar os Próprios sempre intimamente ligadas pode nos levar a


Pressupostos e Crenças fazer algo errado. Discutir essas questões em suas
Da mesma forma que os gerentes e os alunos de Unidades e obrigar-se a reconhecer e a questionar
Administração, que acreditavam que os “negócios” as próprias pressuposições podem desencadear
eram inerentemente “éticos”, deixaram de utilizar crescimento pessoal e coletivo.MR
qualquer critério pessoal no seu comportamento
profissional, corremos o risco de acreditar que a
nossa missão confere moralidade automática ao REFERÊNCIAS
nosso comportamento. Os campos de batalha e os 1. SMYTH, F.L.; NOSEK, B.A.; GREENWALD, A.G.; BANAJI, M.R.
teatros de operações modernos são inerentemente (2009). “Implicit gender stereotype outperforms scholastic aptitudes in predicting
a science major for women”, documento de trabalho.
complexos e trazem consigo a capacidade de 2. GREENWALD, A.G.; OAKES, M.A.; HOFFMAN, H.G., “Targets of
se fazer tanto um grande bem, como um grave discrimination: Effects of race on responses to weapon holders”, Journal of
Experimental and Social Psychology 39 (2003): p. 399-405.
e irreparável mal. Os valores e a história do 3. CORRELL, J.; PARK, B.; JUDD, C.M.; WITTENBRINK, B.; SADLER,
Exército dos EUA geralmente nos levam a fazer M.S.; KEESEE, T. “The thin blue line: Police officers and racial bias in the
decision to shoot”, Journal of Personality and Social Psychology 92 (2007):
o bem, mas, se começarmos a acreditar que p. 1006-23.
4. REYNOLDS, S.J.; LEAVITT, K.N.; DECELLES, K. (em via de
os nossos esforços são inerentemente éticos, publicação), “Automatic ethics: The effects of implicit assumptions and contextual
corremos o risco de não reconhecer graves cues on moral behavior”, Journal of Applied Psychology.
5. O sargento envolvido neste incidente apontou sua arma para o indivíduo,
perigos morais. Um estudo recente constatou mas sabiamente resistiu ao impulso de atirar. Quando reforços chegaram,
exatamente isto: quando uma tarefa discretamente descobriu-se que o homem era um policial local e sobrinho de um xeque amigo das
Forças da coalizão. Esse estudo de caso consta do site ACPME AKO, disponível
reafirmava a identidade moral dos participantes em: <https://acpme.army.mil>.
(isto é, fortalecia a crença de que eram pessoas 6. O estudo de caso de Michael Hensley consta do site ACPME AKO.
7. FM 6-22, Army Leadership (Washington DC: U.S. Government Printing
moralmente corretas), eles se mostravam menos Office), p. 4-12.
motivados a portar-se bem8. Em suma: Aceitar, 8. SACHDEVA, S.; ILIEV, R.; MEDIN, D.L. “Sinning saints and saintly
sinners: The paradox of moral self-regulation”, Psychological Science 20 (2009):
automaticamente, que “missão” e “moral” estão p. 523-28.

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