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Como evitar as catástrofes da emergência climática 4/30/23, 8:57 PM

anais do desastre II

COMO EVITAR AS CATÁSTROFES DA


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O que as cidades estão fazendo para evitar a repetição das catástrofes climáticas
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Bernardo Esteves | Edição 199, Abril 2023

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De Punta del Este

U
m forte temporal caiu sobre Salvador no começo de outubro de 2019. Por
volta das onze e meia da noite do dia 3, um estrondo assustou os
moradores do bairro Fazenda Grande do Retiro, na Zona Norte da
capital baiana. A chuva que caía havia dois dias tinha saturado o solo de um
barranco já encharcado pelo vazamento numa tubulação de água. O solo cedeu, o
muro de contenção da encosta rompeu, e cinco casas desabaram. Os escombros
foram arrastados morro abaixo até atingir um galpão no pé da encosta. Dezenas
de casas tinham sido construídas no declive, onde viviam 31 famílias com cerca
de 150 pessoas no total. Ninguém se feriu. Ninguém morreu.

Dois meses antes do desastre, aconteceu algo raro nas cidades brasileiras: adotou-
se uma medida preventiva eficaz. A Defesa Civil de Salvador havia retirado as 31
famílias de suas casas. O diretor da instituição, Sosthenes Macêdo, tomou a
iniciativa depois de ouvir o relato de um engenheiro que estivera no local e
constatara a existência de rachaduras. “Chefe, tira essas famílias daí, porque vai
ruir”, recomendou o perito. Macêdo ordenou a desocupação. No dia em que se
reuniu com as famílias para comunicar a decisão, uma senhora lhe disse que não
iria sair de casa. O diretor alegou que, pela lei, podia retirá-la. “Deus foi tão bom

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que não precisou de lei”, disse ele à piauí ao evocar o caso mais de três anos
depois. “A parede de uma das casas caiu e todos entenderam que era para sair.”

Depois do deslizamento, outras dezenas de casas no entorno foram isoladas, por


ordem da Defesa Civil, porque estavam com a estrutura condenada – 54 casas
foram desocupadas no total, antes e depois do deslizamento. A desocupação é
uma medida drástica, impopular e seu benefício – o número de vidas poupadas –
nunca é notícia. “Naquele dia ninguém teve como contabilizar as vidas salvas”,
afirmou Macêdo. Mas o desabamento acabou provando que o gestor havia
tomado a decisão acertada. Naquela noite, ele ligou para a esposa e contou que,
com sua equipe, havia salvado 150 vidas.

(Nem tudo deu certo, no entanto: os moradores desalojados receberiam da


prefeitura um auxílio-moradia de 300 reais por mês enquanto não fossem
alocados em prédios construídos pela própria prefeitura ou pelo governo federal.
A autônoma Jamile Farias alegou que ainda não tinha recebido o benefício três
meses depois de ter deixado sua casa, conforme relatou ao jornal Tribuna da Bahia.
“Os 300 reais do auxílio são muito pouco perto do gasto que vamos ter”,
reclamou outra moradora.)

N
o fim de fevereiro, Sosthenes Macêdo foi a Punta del Este, no litoral do
Uruguai, para representar a cidade de Salvador em um encontro
promovido pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de
Desastres (UNDRR, na sigla em inglês). Durante o evento, a capital baiana foi
reconhecida como um “hub de resiliência”, um selo que a ONU confere às cidades
que demonstram estar preparadas para enfrentar desastres e dispostas a trabalhar
em parceria com outros municípios.

No caso de Salvador, a principal ameaça de catástrofes vem dos deslizamentos de


terra, como o de 2019. “É uma cidade de topografia extremamente complexa,
como se tivesse dois andares, com a Cidade Alta e a Cidade Baixa”, disse
Macêdo. “Há várias edificações erguidas em áreas de risco sem o
acompanhamento de um engenheiro”, continuou. Não é que as pessoas tenham
escolhido morar ali: muitas delas sabem do risco que correm, mas não têm outra
opção no horizonte.

Salvador decidiu levar o trabalho de prevenção a sério depois de um evento

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traumático. Entre abril e maio de 2015, desabamentos de encostas em mais de


uma localidade deixaram pelo menos dezessete vítimas. Depois disso, a cidade
ganhou um plano municipal de redução de riscos, programas para capacitar
moradores das áreas com risco de desabamento e um centro de monitoramento e
emissão de alertas para a população. Em vez de só agir em resposta aos desastres,
a Defesa Civil passou a atuar para tentar evitá-los, como aconteceu na Fazenda
Grande do Retiro.

Se o trabalho de prevenção for bem-feito, o resultado é que ninguém morre


quando chove forte – um fato que, além de não sair nos jornais, não converte
votos como obras visíveis, em geral inauguradas com fanfarra. Os resultados das
ações preventivas são intangíveis porque não é possível medir o que não se vê,
conforme disse Álvaro Delgado, assessor direto do presidente do Uruguai, na
abertura do evento em Punta del Este. Por isso, é preciso contar aquilo que se
conseguiu evitar, concluiu Delgado. É exatamente o que faz Macêdo para dar a
medida dos resultados do trabalho de sua equipe. “Estamos há mais de dois anos
sem nenhuma vida perdida”, afirmou.

O
s ingredientes do desabamento na Fazenda Grande do Retiro não eram
muito diferentes daqueles que produziram a tragédia de São Sebastião,
no litoral de São Paulo. Também ali, uma chuva fortíssima provocou o
deslizamento de terra em encostas onde haviam sido construídas casas
irregularmente, apesar do risco conhecido. A partir de um dado patamar, o solo
se liquefaz e a terra vem abaixo, trazendo junto o que estiver nela.

Não foi uma chuva qualquer: foi simplesmente a tempestade mais intensa já
registrada em todo o território brasileiro. Na cidade de Bertioga, choveram 682
mm em 24 horas, o suficiente para encher mais de meia caixa d’água de mil litros
em cada metro quadrado da cidade. O volume ajuda a explicar o estrago deixado
pela chuva e o saldo de 65 mortes. Ainda assim, a tragédia poderia ter sido
minimizada.

Por trás da quantidade atípica de chuva no litoral paulista está a chegada de uma
frente fria muito intensa que ficou estacionada naquela região. Ao encontrar o
oceano muito aquecido, a frente fria começou a sugar a umidade do oceano,
alimentando a tempestade ao longo de horas. Se a meteorologia explica o volume
anormal da chuva que caiu naquela noite, a violência de seus efeitos pode ser

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compreendida a partir das desigualdades que marcam a ocupação do território


em São Sebastião.

Uma foto de satélite que viralizou nas redes sociais escancarou como a ocupação
do território determinou a seletividade dos impactos da tempestade. Publicada
pelo geógrafo Adriano Liziero, a imagem retrata uma cidade dividida em duas
realidades distintas pela BR-101 (Rio-Santos). Do lado plano, mais próximo do
litoral, está a Barra do Sahy, que abriga condomínios de luxo e casas de veraneio
ocupadas apenas durante parte do ano. Do outro lado da rodovia, fica a Vila do
Sahy, onde mora boa parte da população local, em casas precárias construídas
nas áreas de encosta da Serra do Mar. Foi de lá que veio a maioria das vítimas. A
parte abastada da cidade sofreu principalmente prejuízos materiais.

A discrepância é uma manifestação cristalina do que se chama de “racismo


ambiental”, o lado perverso dos eventos extremos que faz com que seus impactos
sejam sofridos de forma mais aguda pelos grupos já marginalizados na
sociedade. Na tragédia evitada em 2019 em Salvador, tampouco seria preciso
muito esforço para determinar qual era a cor da pele e classe social das vítimas
potenciais. Na Fazenda Grande do Retiro, 86% dos moradores se declaram pretos
ou pardos, e 44% dos responsáveis pelos domicílios têm renda de até um salário
mínimo, de acordo com dados do Observatório de Bairros Salvador, da
Universidade Federal da Bahia.

A ciência hoje tem meios de determinar se um evento foi provocado – ou


intensificado – pelo aquecimento global. Nenhum estudo neste sentido foi
realizado para investigar a origem da chuva recorde no litoral paulista. De um
jeito ou de outro, é exatamente esse tipo de evento que se tornará cada vez mais
frequente à medida que aumentar a temperatura média do planeta – o mundo já
está 1,1ºC mais quente do que antes da Revolução Industrial. É a era das
catástrofes.

S
e a chuva é um evento natural – ainda que sua intensidade seja turbinada
pelos gases do efeito estufa que lançamos na atmosfera –, as áreas mais
vulneráveis de uma cidade são determinadas pelas desigualdades sociais.
Por isso, os especialistas se mostram muito cuidadosos ao selecionar os termos
que usam para nomear esses eventos. “Desastres não são naturais, são
socioeconômicos”, disse a economista Adriana Campelo. “Se não houvesse ali

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uma população exposta numa determinada área, não haveria o desastre”,


arrematou ela, que é coordenadora nas Américas da campanha da UNDRR para
construir uma rede de cidades resilientes.

Salvador não foi a única cidade formalmente reconhecida como um hub dessa
rede no evento de Punta del Este. Bogotá e Dosquebradas, na Colômbia, também
receberam o certificado, juntando-se a outras quatro cidades da América Latina e
do Caribe que já tinham o título: Campinas e Recife, no Brasil, Medellín, na
Colômbia, e Cidade do México. “São cidades que têm ou tiveram problemas, mas
se comprometem a criar uma capacitação para si, fazer mentoria e apoiar outros
municípios”, definiu Campelo.

Campinas foi a pioneira no Brasil. Em sua participação no evento de Punta del


Este, o prefeito da cidade, Dário Saadi (Republicanos), disse à plateia que
Campinas tem a resiliência na sua própria identidade. O brasão do município
mostra uma fênix, a ave mitológica que ressurge das próprias cinzas, para
simbolizar o renascimento de Campinas após as sucessivas epidemias de febre
amarela que a castigaram no fim do século XIX, particularmente a de 1889. Além
de vitimar 2 mil pessoas, de acordo com uma estimativa, a doença motivou a fuga
de muitos moradores. “A cidade quase sumiu do mapa”, disse o prefeito.

No caso dos eventos climáticos extremos, a resiliência foi construída depois da


chuva histórica de 2003, que deixou mais de um décimo do território de
Campinas debaixo d’água. Choveram 141 mm em duas horas. Seis pessoas
morreram, incluindo um bombeiro. Depois disso, a prefeitura apontou áreas de
risco prioritárias para a realização de obras e para a transferência dos moradores,
e diminuiu em 60% o número de áreas ameaçadas da cidade. Com essa ação,
chamou a atenção da ONU que, anos mais tarde, já na gestão do prefeito Jonas
Donizete, do PSB, lhe concedeu o certificado de hub de resiliência.

O prefeito Saadi argumentou que os resultados do trabalho de adaptação


puderam ser vistos nas chuvas deste verão. “Tivemos chuvas intensas em
fevereiro, mas não houve nenhuma vítima por alagamento ou inundação”, disse
ele à piauí, ressaltando que houve duas mortes causadas pela queda de árvores
sadias derrubadas pela tempestade. “O conceito de resiliência não é um objetivo
final, mas um processo que tem que ser perseguido, principalmente nessa época
de mudança climática e de fenômenos ambientais extremos”, disse.

Representantes de várias cidades brasileiras que estiveram em Punta del Este

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aproveitaram a ocasião para lançar o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes


da Defesa Civil, que pretende promover ações conjuntas e trocar experiências
entre os gestores. Além disso, outras duas cidades brasileiras formalizaram suas
candidaturas para virarem hubs de resiliência: Porto Alegre e Barcarena, que
pertence à Região Metropolitana de Belém. Se for aprovada, Barcarena será a
primeira cidade da Amazônia a receber o selo.

O
padrão que se viu em Salvador depois dos deslizamentos de 2015 – um
poder público que só age com firmeza depois de uma grande tragédia – é
a norma na maneira como o Brasil tem combatido os eventos climáticos
extremos. Os gestores costumam estar a reboque dos desastres. Não é o que
recomendam os especialistas, que rezam pela cartilha da ação preventiva. “Se
você investir 1 dólar em prevenção, pode economizar de 7 a 15 dólares que
seriam gastos para remediar as consequências do desastre”, disse a japonesa
Mami Mizutori, diretora da UNDRR. Mizutori sacou outra estatística eloquente
para defender a eficácia dos sistemas de alerta precoce para a redução de danos.
“Nos países que têm esses sistemas efetivos, a mortalidade por desastres é oito
vezes menor do que nos demais”, afirmou.

No entanto, os dividendos políticos das ações de prevenção são difíceis de colher,


e a importância que os gestores dão a essas ações é reveladora de suas
prioridades. O volume de recursos que o governo Jair Bolsonaro separou para as
ações de prevenção e gestão de desastres no Orçamento de 2023 é o menor dos
últimos catorze anos – apesar de o valor ter quase dobrado depois da aprovação
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição.

Antes disso, o Brasil tinha dado um passo significativo para romper com essa
lógica perversa de esperar o desastre e agir depois. Em 2011, fortaleceu o
arcabouço legal e institucional para a prevenção dos desastres. Aconteceu, claro,
depois de uma tragédia de vulto – as enchentes e deslizamentos na Região
Serrana do estado do Rio de Janeiro. Foi o evento climático extremo que deixou o
maior número de vítimas na história recente do país: mais de novecentos mortos
e centenas de desaparecidos, com a maior parte das ocorrências registradas em
Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis.

Na esteira dessa catástrofe, o Brasil criou uma política nacional de proteção, e a


Defesa Civil passou a ser pautada pela prevenção. Criou-se, também, um órgão

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técnico que forneceria dados essenciais para orientar essas ações: o Centro
Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden),
vinculado ao Ministério da Ciência e sediado em São José dos Campos, no
interior paulista.

O Cemaden é encarregado de monitorar e estimar o impacto de deslizamentos de


terra, alagamentos, inundações e enxurradas, além de secas prolongadas. O órgão
não monitora todo o território nacional, mas apenas as áreas de risco. Depois da
tragédia das chuvas no litoral paulista, anunciou-se que o número de municípios
observados pelo centro passaria de 1 038 para 2 120, cobrindo uma área onde
vivem 70% da população brasileira.

Além de meteorologistas, hidrólogos e geólogos, o Cemanden também tem


cientistas sociais que ajudam a determinar a vulnerabilidade das áreas
monitoradas. Numa entrevista à piauí em Punta del Este, o físico Osvaldo de
Moraes, diretor do Cemaden, disse que o órgão conhece o perfil das populações
que vivem em cada área de risco no Brasil. “Sabemos quantos moradores há
nessas áreas, quantos são crianças, mulheres ou idosos, quantos trabalham fora,
qual a escolaridade e a renda média”, disse Moraes.

Na sala de operação do Cemaden, há equipes de plantão 24 horas por dia


recebendo informações em tempo real de uma rede de 10 mil sensores
posicionados nas áreas de risco. Os peritos cruzam as projeções meteorológicas
com as informações sobre a vulnerabilidade dessas áreas para avaliar o impacto
provável de cada evento. “Com isso conseguimos estimar quantas pessoas serão
afetadas ou quantas casas estão em risco”, disse Moraes. É a partir desse
cruzamento que o centro decide emitir ou não um alerta de risco.

Mas há um longo caminho até que um alerta do Cemaden chegue à população.


Primeiro, o alerta é enviado a outro órgão federal, o Cenad – Centro Nacional de
Gerenciamento de Riscos e Desastres, filiado ao Ministério da Integração e do
Desenvolvimento Regional e sediado em Brasília. O Cenad, por sua vez,
encaminha o alerta à Defesa Civil de estados e municípios, que, aí sim, se
encarregam de levá-lo até os moradores – pelo toque de sirenes, ou envio por
mensagens de SMS ou WhatsApp, ou outros meios. (Moraes contou que, depois
das chuvas deste ano, está sendo elaborado um novo protocolo que permitirá que
o Cemaden pule o Cenad em Brasília e envie seus alertas diretamente para a
Defesa Civil dos municípios.)

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A boa articulação com as cidades e a população é fundamental para que o sistema


de prevenção seja efetivo. A cadeia de transmissão dos alertas tem que estar
azeitada, e os gestores e a população precisam adotar as medidas cabíveis. Parece
óbvio, mas a falha nesse sistema ajudou a ampliar o desastre no litoral de São
Paulo. O risco de desastres foi apontado de forma clara pelo órgão de
monitoramento, mas a mensagem não chegou a todos que deveriam recebê-la –
com resultado trágico.

Na sexta-feira, véspera da tempestade, os dados compilados pelo Cemaden já


permitiam dizer que haveria uma tempestade atípica no litoral. Nesse dia, o
Cenad convocou uma reunião com representantes da Coordenadoria Estadual de
Proteção e Defesa Civil de São Paulo, na qual técnicos do Cemaden informaram
os gestores do alto risco de um evento extremo. No dia da chuva, os alertas
formais foram disparados por volta de 14 horas para a cidade de Santos e, em
torno das 17 horas, para os demais municípios do litoral Norte. Ou seja: tudo
aconteceu horas antes da chuva mais intensa, que começou à noite e varou a
madrugada.

Até aí, o sistema de prevenção funcionou conforme o roteiro. Naquele ponto, as


prefeituras já deveriam ter sido notificadas pela Defesa Civil estadual, que já
estava ciente do risco desde a véspera. Mas a mensagem empacou no meio do
caminho. Em relatos à imprensa, moradores contaram que não foram avisados
para abandonar suas casas. “Não vou entrar no mérito de julgar se as defesas
civis fizeram alguma coisa ou não”, disse Moraes, o diretor do Cemaden. “O que
sei é que a população disse que o alerta não chegou para eles.”

Mesmo que os moradores tivessem recebido o recado em tempo hábil, não seria
garantia de sucesso da operação. Depois do alerta, é fundamental que a
população tenha confiança nas orientações e saiba o que fazer. Para isso, cada
área de risco precisa ter um plano de ação para o caso de um desastre, incluindo
rotas de fuga e um ponto de abrigo previamente definido para socorrer os
evacuados – em geral, são escolas da própria localidade.

O
Recife mudou a partir de 2014. Naquele ano, um relatório do IPCC, o
painel de cientistas montado pela ONU para avaliar o que a ciência sabe
sobre o aquecimento global, informou que a capital pernambucana era a
16ª cidade mais vulnerável do mundo à crise climática. A principal

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vulnerabilidade: as chuvas violentas em áreas de ocupação inadequada e sem


infraestrutura suficiente para a drenagem da água. Com o aquecimento global, as
projeções indicam que o Recife terá aumento de doenças transmissíveis (o calor
favorece os vetores), elevação do nível do mar e chuvas cada vez mais intensas,
com mais inundações e deslizamentos.

Diante desse cenário, em 2019 a Prefeitura do Recife decretou emergência


climática e elaborou um plano de adaptação em parceria com várias instituições.
O plano inclui ações para modernizar as redes de drenagem, universalizar o
acesso ao esgoto e repensar a ocupação das áreas de risco. O conjunto de políticas
públicas levou a ONU a reconhecer a capital pernambucana como um hub de
resiliência.

Em maio do ano passado, três meses depois de ter recebido o certificado, o Recife
foi palco da pior catástrofe climática de Pernambuco nos últimos cinquenta anos.
Em 24 horas, caiu um volume de água correspondente a 70% do que se esperava
para o estado em um mês inteiro. As inundações e deslizamentos de terra
provocados pela chuva mataram mais de 130 pessoas em todo o estado.

O que deu errado? Na verdade, um olhar atento mostra que o Recife sofreu
menos do que algumas cidades do seu entorno. A maior parte das fatalidades
aconteceu em Jaboatão dos Guararapes, com 64 vítimas, e houve mortes
registradas em outros oito municípios. A chuva do Recife mostrou os limites de
se pensar as estratégias de prevenção em escala municipal, já que os eventos
climáticos desconhecem divisas e fronteiras. Para o escritório da ONU que
promove a redução de riscos de desastres, o caso está servindo como um
aprendizado. “É preciso preparar a resiliência em escala regional”, disse Adriana
Campelo. “Para não deixar ninguém para trás, temos que ir todos juntos.”

M
esmo as cidades que fizerem o dever de casa podem sofrer impactos
severos na era das catástrofes, em razão dos limites da ciência.
Petrópolis foi vítima disso em fevereiro do ano passado, na avaliação
de Osvaldo de Moraes, do Cemaden. “O que aconteceu ali foi um fenômeno
meteorológico que a ciência ainda não é capaz de prever com altíssima
resolução”, disse ele.

A maneira como aquele temporal se formou não difere muito da tempestade que

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desabou sobre o litoral Norte de São Paulo. Uma bolha de baixa pressão
estacionou sobre Petrópolis, com a convergência de umidade vinda da Amazônia
canalizada pela serra, e isso foi alimentando a tempestade. Para piorar, a
precipitação naquele dia se concentrou exatamente sobre as áreas de maior risco.
“No próprio Centro de Petrópolis e em bairros um pouco afastados não houve
chuva nenhuma”, disse Moraes.

O que fez daquela chuva um evento singular foi a grande intensidade aliada à
formação muito rápida. Foram 260 mm de água em seis horas, mais do que a
média histórica para todo o mês de fevereiro na cidade. “Quando veio o primeiro
aviso do Cemaden, já estava chovendo em Petrópolis”, reconheceu Moraes. Para
o físico, o caso se enquadra nos cerca de 5% de eventos extremos que a ciência
não é – talvez nunca seja – capaz de antecipar. “Esse evento tampouco teria sido
previsto com antecedência se tivesse acontecido nos Estados Unidos ou na
Europa.”

A cidade não estava despreparada. Desde a grande chuva de 2011, aquela que
motivou a criação do Cemaden e da política nacional para enfrentar eventos
extremos, Petrópolis tinha se reforçado para outros temporais de proporções
bíblicas. A Defesa Civil virou uma secretaria da prefeitura. A infraestrutura
ganhou radares, pluviômetros e uma rede de dezoito sirenes espalhadas pelas
áreas de risco. Mas parte desse sistema dependia do alerta precoce para entrar em
funcionamento. O resultado é que, embora a chuva de 2022 tenha alcançado
intensidade comparável com a tempestade histórica de 2011, que vitimou 71
pessoas em Petrópolis, o número de vítimas explodiu: 241.

A tragédia deixou os gestores em alerta. “Foi um ano muito difícil para nós”,
disse à piauí Rodrigo d’Almeida, que ocupa uma diretoria da Secretaria Municipal
de Proteção e Defesa Civil e representou Petrópolis em Punta del Este. Segundo
ele, depois do desastre, a prefeitura, entre outras medidas, aumentou o número
de escolas para operarem como ponto de apoio aos moradores evacuados.

Para ele, são fundamentais as ações que envolvem a comunidade, como a


construção colaborativa de rotas de fuga para chegar aos pontos de apoio, o
treinamento de professores e alunos para ações preventivas ou o
desenvolvimento de sistemas alternativos de alertas operados pelos próprios
moradores – como o uso de apitos onde não há sirenes. “A reconstrução tem que
ser feita de forma participativa”, disse D’Almeida. “Se a comunidade não entrar
de cabeça nesse jogo sentindo que ela é protagonista, a gente vai estar sempre

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contabilizando óbitos.”

O gestor lembrou ainda que essas ações são apenas uma parte do sistema de
gestão de risco dos desastres. E elas continuarão sendo o equivalente a enxugar
gelo se o poder público não atacar as raízes estruturais do problema – que, em
Petrópolis como em tantas cidades brasileiras, tem a ver com a ocupação
desordenada do território. “O que pode mudar essa situação é uma política
pública de habitação”, avalia D’Almeida. “Não vamos impedir a chuva de cair
cada vez mais forte, mas com certeza vai diminuir o número de óbitos.”

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_199 com o título “Antes da chuva”.

O repórter viajou a Punta del Este a convite da UNDRR (Escritório das Nações Unidas
para Redução do Risco de Desastres).

Bernardo Esteves
Repórter da piauí, é apresentador do podcast A Terra é Redonda (Mesmo) e
autor do livro Domingo É Dia de Ciência (Azougue Editorial)

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