Você está na página 1de 336

e

PRÁTICASPEDAGOGICAS
política, Currículo e espaço escolar

(e_>O>G)
e

Heloisa Salles Gentil


Maria Helena Michels
i Organizadoras j

junqueira&marin
editores
5
........................................................................................................................................
Coordenação: Prof. Dr. Dinael Marin
Produção: ZEROCRIATIVA
Revisões: Fabiana Abi Rached de Almeida
Impressão: Gráfica Viena
........................................................................................................................................
Conselho Editorial da Junqueira&Marin:

Profa. Dra. Alda Junqueira Marin


Prof. Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira
Profa. Dra. Dirce Charara Monteiro
Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno
Profa. Dra. Luciana Maria Giovanni
Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio
Profa. Dra. Maria Isabel da Cunha
Prof. Dr. Odair Sass
Profa. Dra. Paula Perin Vicentini
Profa. Dra. Suely Amaral Mello
........................................................................................................................................

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

P925

Práticas pedagógicas : política, currículo e espaço escolar / organização


Heloisa Salles Gentil, Maria Helena Michels. - Araraquara, SP: Junqueira&Marin;
Brasília, DF: CAPES, 2011.
336p. : 21cm

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86305-89-4

1. Professores - Formação. 2. Prática de ensino. 3. Educação - Política


governamental. 4. Educação - Currículos - Brasil. I. Gentil, Heloisa Salles. II.
Michels, Maria Helena. III. Brasil. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior.

11-2471. CDD: 370.71


CDU: 37.02

05.05.11 06.05.11
026160
........................................................................................................................................
DIREITOS RESERVADOS:

JUNQUEIRA&MARIN EDITORES
J.M. Editora e Comercial Ltda.
Rua Voluntários da Pátria, 3238
Jardim Santa Angelina
Fone/Fax: 16 - 33363671
CEP 14802-205
Araraquara - SP
www.junqueiraemarin.com.br
........................................................................................................................................
Esta edição recebeu apoio da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior por meio do PROCAD – Programa Nacional de Cooperação
Acadêmica.
........................................................................................................................................

Proibida a reprodução total ou parcial desta edição, por qualquer meio ou forma, em
língua portuguesa ou qualquer outro idioma, sem a prévia e expressa autorização
da editora.
........................................................................................................................................
Impresso no Brasil
5
Printed in Brazil
........................................................................................................................................
e SUMÁRIO e
Apresentação
11 Maria Helena
Heloisa SallesMichels
Gentil

PARTE I
POLÍTICAS E PRÁTICAS EDUCACIONAIS

CAPÍTULO I
Quatro teses sobre política de formação de

21 professores
Maria Helena Michels
Eneida Oto Shiroma
Olinda Evangelista

CAPÍTULO II
O fracasso escolar das crianças
41 migrantes no Japão: as políticas
educacionais em discussão
Izumi Nozaki

CAPÍTULO III
A educação infantil no contexto

75 pós-reforma: institucionalização e
regulação no Brasil e na Argentina
Roselane Fatima Campos

CAPÍTULO IV
uma das alternativas
Avaliação institucional
departicipativa:

97 (re)construção da
emancipação nos espaços educacionais
Elizeth Gonzaga dos Santos Lima

8
PARTE II
CURRÍCULO E FORMAÇÃO
NO ENSINO SUPERIOR

CAPÍTULO V
Interdisciplinaridade
no curso
uma prática
de pedagogia:
de difícil construção
131 Ilma Ferreira Machado
Irton Milanesi

CAPÍTULO VI
Educação da pequena infância: um olhar
151 sobre a formação inicial dos professores
de educação infantil
Moema Helena Koche de Albuquerque Kiehn

CAPÍTULO VIIde estagiários de


Experiências

171 licenciaturas: as relações entre a


universidade escola
Heloisa Salles Gentil

PARTE IIIE RELAÇÕES PEDAGÓGICAS


ESCOLAS

CAPÍTULO VIII
Escola e formação escolar:
reflexões a partir da produção dogrupo de
195 trabalho
(2000–2005)
educação fundamental daANPEd
Solange Aparecida da Rosa
Maria Isabel Batista Serrão

CAPÍTULO IX
Elementos políticos e pedagógicos em
217 cartilhas escolares italianas
Claricia Otto

8
CAPÍTULO
A
pedagógica:
sombra da
X um estudona
violência das
relação
representações

233 de dirigentes e professores de escolas de


ensino fundamental e médio
Emília Darci de Souza Cuyabano

Fazeres na XI
CAPÍTULO pré-escola:

261 uma prática consistente?


Maria Izete de Oliveira
Rinalda Bezerra Carlos

CAPÍTULOna
Mediação XIIprática pedagógica de
professores dos ciclos iniciais do ensino
fundamental
287 Tatiane Lebre Dias
Sônia Regina Fiorim Enumo
Mirian da Silva Marinho Moreira
Fabiana Muniz Mello Félix

CAPÍTULO XIII
Escola, multiplicidade e desejo:
305 agenciamentos necessários
Maritza Maciel Castrillon Maldonado

321
331 NOTAS

SOBRE OS AUTORES

8
U APRESENTAÇÃO V

Este livro é fruto de um trabalho de


cooperação acadêmica entre a Universidade
do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), especificamente do
seu Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação (NEPE), e o
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), viabilizado pelo Programa
Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD-CAPES). Esta
cooperação vem acontecendo deste junho de 2007 e culminou
com a aprovação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) da proposta do curso de
Mestrado em Educação da UNEMAT, no final de 2009.
Os estudos aqui apresentados se originam dos
trabalhos de investigação realizados pelos grupos de pesquisa
das duas instituições, cumprindo o objetivo de efetivar o
intercâmbio dos pesquisadores e tornar pública a produção
realizada nos Programas de Pós-graduação. Nossa expectativa
é colaborar com as discussões contemporâneas acerca das

9 junqueira&marin editores 9 11
APRESENTAÇÃO PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
questões educacionais, com o compromisso de promover um
diálogo a partir de interrogações a respeito da articulação entre
teoria e prática, questão tão cara à área da educação. Análises a
respeito das práticas pedagógicas, tanto em nível de educação
básica como superior, exigem uma leitura mais ampla da
realidade em que estão inseridas na tentativa de compreendê
las. Com esse intuito, apresentamos, neste livro, estudos a
respeito de políticas, currículos, espaços escolares que possuem
como eixo articulador a prática pedagógica, entendendo-a, com
base em Bernstein (1996), tanto como aquela explicitamente
apresentada, a pedagogia visível, quanto àquela que não se
manifesta a priori, mas que organiza a escola e seus fazeres, a
pedagogia invisível.
A parte 1 aborda o tema Políticas e Práticas
Educacionais, apresentando análises de políticas educacionais
que orientam determinadas práticas pedagógicas. A parte 2,
Currículo e Formação no Ensino Superior, concentra os estudos
acerca de currículos como expressões de relações pedagógicas
e seus determinantes. A terceira parte, Escolas e Relações
Pedagógicas, reúne as discussões referentes ao espaço escolar
como lugar privilegiado das ações pedagógicas.
Sabemos que as relações analisadas por esses
estudos e pesquisas são amplas e, portanto, não serão esgotadas
aqui. Porém, temos a clareza das contribuições que essa
reflexão sobre as práticas pedagógicas pode trazer para a área
educacional.
No primeiro capítulo do livro, quatro textos têm o
propósito de articular as discussões entre Políticas e Práticas
Educacionais. O primeiro texto intitulado Quatro teses sobre
política de formação de professores, de Maria Helena Michels,
Eneida Oto Shiroma e Olinda Evangelista, apresenta pesquisas
desenvolvidas no Grupo de Estudos sobre Política Educacional e
Trabalho (GEPETO/UFSC), referentes à formação de professores.
Situados no campo da política educacional, tais estudos utilizam

12 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar APRESENTAÇÃO
referenciais teórico-metodológicos desenvolvidos por autores
como Ball, Fairclough, Ozga e Neves. As autoras sintetizam
as investigações sobre formação docente em quatro teses:
1ª) profissionalização como estratégia de (con)formação
docente; 2ª) desintelectualização do professor; 3ª) certificação
de professores e 4ª) reconversão docente. Essas teses são
analisadas, também, no que concerne ao ensino fundamental, à
educação infantil e à educação especial.
O texto de Izumi Nozaki, O fracasso escolar das
crianças migrantes no Japão: as políticas educacionais em
discussão, busca compreender a relação entre o que a autora
denomina de “duplo movimento”: de crescimento gradativo no
número de matrículas de crianças brasileiras em idade escolar
nas escolas públicas japonesas e de evasão escolar desses alunos.
Para tanto, apresenta o contexto da migração de brasileiros
para o Japão, evidencia aspectos da política educacional
japonesa, analisa especialmente a política curricular e apresenta
informações a partir de uma escuta sensível das crianças
brasileiras estudantes no Japão. Os resultados de sua pesquisa
apontam para as relações entre obrigatoriedade escolar e
aprovação automática, permeadas pela questão da diversidade
cultural e linguística, e entre escola e trabalho. Para desenvolver
suas análises, a autora se fundamenta em autores como Berquó,
Tajima, Sacristán, entre outros.
Com o intuito de contribuir com os estudos sobre
as novas regulações no campo da Educação Infantil, Roselane
Fatima Campos apresenta A educação infantil no contexto pós
reforma: institucionalização e regulação no Brasil e na Argentina,
buscando discutir os novos marcos regulatórios que orientam a
Educação Infantil, especificamente no Brasil e na Argentina. A
autora procura explicitar as estratégias políticas adotadas por
intermédio de dados referentes aos dois países, no que tange ao
atendimento das crianças de 0 a 3 anos, destacando as novas
configurações que orientam as relações entre o Estado e a esfera

9 junqueira&marin editores 9 13
APRESENTAÇÃO PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
privada, constituída especialmente pelas chamadas instituições
sem fins lucrativos. Em sua perspectiva, as novas configurações
do campo da Educação Infantil vêm tornando os limites entre
público e privado, o formal e não formal, cada vez mais tênues.
Para tais análises, a autora recorre especialmente às obras de
Ball e Maroy.
A produção de Elizeth Gonzaga dos Santos Lima,
intitulada Avaliação institucional participativa: uma das
alternativas de (re)construção da emancipação nos espaços
educacionais, mostra uma clara articulação entre política e
prática avaliativa. A autora apresenta uma discussão conceitual e
teórica referente à perspectiva da participação e da emancipação
e um debate sobre o Estado avaliador. Este texto aponta para a
importância de se usar os resultados da avaliação institucional
como estratégias de (re)organização dos espaços institucionais
a fim promover mudanças individuais, coletivas e institucionais,
sob a lógica da emancipação. Conceitos como espaço social e
habitus de Bourdieu e emancipação de Freitas são basilares para
a discussão proposta.
Na segunda parte, apresentamos discussões
concernentes a Currículo e Formação no Ensino Superior por
meio de análises a respeito de práticas pedagógicas no Ensino
Superior, no curso de Pedagogia e demais licenciaturas.
Ilma Ferreira Machado e Irton Milanesi, no texto
Interdisciplinaridade no curso de pedagogia: uma prática de difícil
construção, trazem uma reflexão sobre a interdisciplinaridade a
partir da realidade do Curso de Pedagogia da Universidade do
Estado de Mato Grosso, Campus Jane Vanini, Cáceres-MT. Com
as contribuições de autores como Jantsch; Bianchetti, Milanesi,
Frigotto, analisam documentos do curso e entrevistas com alunos
e apresentam como uma das conclusões a ideia de que para que se
concretize a interdisciplinaridade três fatores são fundamentais:
profissionalidade docente, forma de organização do trabalho
pedagógico e gestão escolar. Além disso, a participação dos

14 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar APRESENTAÇÃO
acadêmicos é considerada extremamente relevante, uma vez
que eles se inserem nessa relação em uma dupla dimensão:
estão em processo de formação e são formadores em potencial.
O texto de Moema Helena Koche de Albuquerque
Kiehn, intitulado Educação da pequena infância: um olhar sobre
a formação inicial dos professores de educação infantil, contribui
com o debate referente à formação de professores das crianças
pequenas nos cursos de Pedagogia. Para tanto, analisa currículos
de cursos oferecidos em dezesseis universidades federais
brasileiras, por intermédio de três eixos: Fundamentos Teóricos,
Metodologias e Prática. Rocha, Sacristán, Popkewitz, Moreira e
Silva são autores que sustentam suas análises.
Contribuindo também com a discussão sobre
formação de professores, o texto Experiências de estagiários
de licenciaturas: as relações entre a universidade escola, de
Heloisa Salles Gentil, traz a visão dos alunos de três cursos
de licenciatura - História, Matemática, Computação - de uma
universidade pública brasileira sobre os estágios. Analisando as
orientações legais para a realização de estágios, os documentos
dos cursos e entrevistas com alunos, a autora busca, baseada
em autores como Pimenta, Marcondes e Veiga, perceber a
relação entre universidade e escola presentes nesse momento
específico da formação de professores. Suas conclusões indicam
que, apesar de ser fundamental para a formação do professor,
o momento do estágio tem privilegiado as ações de regência,
em especial conteúdos e métodos de ensino, mas as relações
entre a universidade e a escola têm sido pouco consistentes, não
contribuindo para uma verdadeira relação dialógica.
A terceira parte, Escolas e Relações Pedagógicas,
compõe-se de seis textos que tomam o espaço escolar como
local privilegiado para as análises das relações pedagógicas.
O primeiro deles, de autoria de Solange Aparecida da Rosa e
Maria Isabel Batista Serrão, intitulado Escola e formação escolar:
reflexões a partir da produção do grupo de trabalho educação

9 junqueira&marin editores 9 15
APRESENTAÇÃO PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
fundamental da ANPEd (2000-2005), apresenta uma análise
referente a trabalhos apresentados nas reuniões da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),
buscando perceber como são concebidas e tratadas as categorias
“escola” e “formação escolar”. Tais trabalhos, oriundos do Grupo
de Trabalho “Educação Fundamental”, referem-se ao período
entre 2000 e 2005. Warde, Davídov e Canário são bases para as
análises desenvolvidas pelas autoras, que observam a relação
entre formação de professores e o que se produz academicamente
sobre tal tema.
Claricia Otto com o seu artigo Elementos políticos
e pedagógicos em cartilhas escolares italianas nos possibilita
pensar as tensões entre educação, sociedade e cultura mediadas
pelo ensino. Toma como fonte principal uma cartilha italiana
intitulada “A menina italiana na escola”, usada nos três Estados
do Sul no final do século XIX e início do XX. A autora leva-nos
inferir que a função social das escolas da época consistia em
afirmar os valores de determinada cultura - a italiana, a fim
de legitimar o pertencimento a ela. Bourdieu, Frago e Forquin
foram alguns autores que subsidiam suas análises.
O texto A sombra da violência na relação pedagógica:
um estudo das representações de dirigentes e professores de
escolas de ensino fundamental e médio, de Emília Darci de Souza
Cuyabano,abordaas possíveislidasde gestorese professorescom
a violência e a articulação de tais ações na relação pedagógica.
Tendo Gilbert Durand, Michel Maffesoli e Paula Carvalho como
seus principais aportes teóricos, a autora indica que, para
professores e dirigentes, o imaginário heróico e o imaginário
místico são as matrizes das práticas e das representações sobre
a violência.
Maria Izete de Oliveira e Rinalda Bezerra Carlos,
em seu texto Fazeres na pré-escola: uma prática consistente?,
discutem a prática pedagógica das professoras envolvendo duas
temáticas específicas da educação infantil: o movimento e a

16 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar APRESENTAÇÃO
linguagem oral e escrita. Vygotsky, Arce e Martins são alguns dos
autoresque contribuem com asanálisesapresentadas.Asautoras
sintetizam suas análises indicando que as práticas pedagógicas
das professoras se fundamentam ora numa concepção de pré
escola como um momento de passatempo, ora como preparação
da criança para o Ensino Fundamental, não há intencionalidade
em trabalhar movimento e linguagem de forma a propiciar as
aprendizagens necessárias.
O texto intitulado Mediação na prática pedagógica
de professores dos ciclos iniciais do ensino fundamental, de
autoria de Tatiane Lebre Dias, Sônia Regina Fiorim Enumo,
Mirian da Silva Marinho Moreira e Fabiana Muniz Mello Félix,
possibilita-nos perceber critérios que, segundo a Teoria
da Modificabilidade Cognitiva Estrutural e o conceito de
Experiência de Aprendizagem Mediada, poderiam organizar
as análises referentes às ações pedagógicas: Intencionalidade;
Transcendência; Competência/Regulação na tarefa;
Competência/Elogiar-encorajar e Responsividade contingente.
Estudando o contexto de quatro professoras do primeiro e
segundo ciclos do Ensino Fundamental de uma escola pública
em Mato Grosso, as autoras observaram a pertinência da escala
para avaliação da Experiência de Aprendizagem Mediada
denominada Mediated Learning Experience (MLE) Rate Scale
(Escala de Avaliação da Experiência de Aprendizagem Mediada).
Suas análises são subsidiadas por estudos de autores, como
Fonseca, Lidz, Tzuriel e Haywood & Tzuriel.
Por fim, as contribuições de Maritza Maciel
Castrillon Maldonado, no texto Escola, multiplicidade e desejo:
agenciamentos necessários, apresenta uma discussão a respeito
do processo de subjetivação de crianças a partir de questões
sobre a possibilidade de conciliação entre escola, multiplicidades
e desejos. A autora tem como interlocutores principais Walter
Benjamin, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari. A
narrativa de uma vivência escolar exemplifica a disciplinarização

9 junqueira&marin editores 9 17
APRESENTAÇÃO PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
dos saberes e do corpo como resultado das práticas pedagógicas
escolares e a análise da autora coloca em questão o papel dos
educadores.
Assim, acreditamos que a leitura desse livro
contribuirá com as reflexões necessárias acerca de questões
educacionais contemporâneas, especialmente por apresentar
como eixo as práticas pedagógicas sem, contudo, ater-se a um
nível de ensino. Os temas apresentados buscaram apresentar
o entrelaçamento existente entre as políticas, as práticas, os
contextos em que se desenvolvem e também as possibilidades
de análise e compreensão da realidade educacional sob várias
perspectivas teórico-metodológicas. 3

Heloisa Salles Gentil


Maria Helena Michels

18 9 junqueira&marin editores 9
L
PARTE I
POLÍTICAS E PRÁTICAS
EDUCACIONAIS
U PARTE
POLÍTICAS I
E PRÁTICAS V
EDUCACIONAIS

i CAPÍTULO I j
QUATRO TESES SOBRE POLÍTICA
DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Maria Helena Michels¹


Eneida Oto Shiroma²
Olinda Evangelista³

Introdução

O
de formação de professores
apresentar algumas
presente texto
desenvolvidas
análises
tem como objetivo
sobre a política
pelo Grupo de
Estudo sobre Política Educacional e Trabalho (GEPETO), da
Universidade Federal de Santa Catarina. Discutir política de
formação de professores é um desafio considerando os muitos
aspectos e dimensões relacionados ao tema. Para contribuir
com tal debate, optamos por apresentar algumas das teses
desenvolvidas pelo GEPETO concernentes à formação docente.
O GEPETO foi criado em 1996 e é constituído por
professores e alunos de doutorado, mestrado e graduação que
buscam novos referenciais para análise de documentos, tendo
em vista embasar os estudos que desenvolve relacionados à
política educacional e trabalho. As pesquisas realizadas pelo
grupo podem ser agrupadas em cinco grandes linhas: educação

9 junqueira&marin editores 9 21
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
e inclusão; formação, gestão e profissionalização de educadores;
inserção profissional, trabalho e educação; política e reforma
educacional e trabalho docente.
Os estudos acerca da formação referem-se ao
âmbito do Ensino Superior focando, principalmente, o Curso
de Pedagogia e sua relação com a Educação Básica. Dentre as
temáticas mais investigadas pelo grupo, estão as da formação de
professores para as séries iniciais do Ensino Fundamental, para a
Educação Infantil e para a Educação Especial. Situados no campo
da política educacional, tais estudos utilizam referencial teórico
metodológicodesenvolvidosporautores,comoBall(2007,1994),
Fairclough (2001), Ozga (2000), Neves (2005), entre outros.
Ademais, Gramsci e Thompson são referências importantes
nas pesquisas empreendidas. As investigações sobre formação
docente produzidas nesta década podem ser sintetizadas
em quatro teses, quais sejam: 1ª) profissionalização como
estratégia de (con)formação docente; 2ª) desintelectualização
do professor; 3ª) certificação de professores de resultado e 4ª)
reconversão docente. Pretendemos evidenciar que essas teses
relacionam-se pelo eixo da política educacional de modo que
permitem reconhecer os contornos da proposição de formação
de professores no Brasil, hoje. De outro lado, as três últimas
teses podem ser vistas como desdobramentos da primeira, isto
é, da problemática da profissionalização docente. Para discutir
cada uma delas, neste artigo, elegemos uma produção do grupo
referente às mesmas. Com isso não temos a pretensão de esgotar
os debates sobre formação nessas produções, mas procuramos,
por intermédio delas, auxiliar nesse debate.

1ª Tese:
profissionalização como estratégia
de (con)formação docente
A primeira tese a ser apresentada vem sendo
desenvolvida, principalmente, por Shiroma e Evangelista

22 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
(2003)⁴. As autoras partem do pressuposto de que a
racionalidade presente na reforma educacional dos anos de
1990 assume claramente a perspectiva gerencial norteadora da
Reforma do Estado. Segundo Oliveira (2004), o principal traço
dessa política é a tentativa de modernização administrativa do
aparato público, processo que demanda esforços na direção da
profissionalização do funcionalismo.
O conceito de “profissionalização” ganhou priori
dade na política educacional brasileira, entretanto não recebeu
proporcional atenção por parte dos pesquisadores. Para Shiro
ma e Evangelista (2003, p. 269),

Poucos estudos o discutiram como conceito chave da política


educacional, fortemente articulado aos determinantes
da reforma da formação docente no período em tela. Por
conseguinte, dificilmente se encontra na literatura a elucidação
das intenções subjacentes à popularização do conceito, à
demonstração de seu caráter polissêmico que consiste em ora
conceder ao professor maior status, ora em inseri-lo em uma
dinâmica de tecnificação que conduz à perda de controle sobre
os objetivos de seu trabalho.

Para as autoras, a Organização Internacional do


Trabalho (OIT) compreende e divulga a ideia de que o conceito
indica uma “performance própria à docência” relacionada à
“motivação do docente para alcançar os padrões do que se
denomina ‘conduta profissional’” (SHIROMA; EVANGELISTA,
2003, p. 270). Esse processo pode ser caracterizado como
uma nova racionalidade no ensino, conforme Popkewitz
(1997) indicou. Segundo o autor, ele “[...] tem sido utilizado
para introduzir sistemas de racionalização no ensino, visando
a homogeneização da prática docente e sua burocratização,
ocasionando a perda da autonomia dos professores”
(POPKEWITZ apud SHIROMA; EVANGELISTA, 2003, p. 270).
Uma das facetas apresentadas por Shiroma e
Evangelista (2003), referente à profissionalização, é o fato do

9 junqueira&marin editores 9 23
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
Estado gerir o quadro do magistério que deve ser controlado.
“Ou seja, essa política está menos relacionada à qualificação
docente e mais ao controle do professor, forjado sob a designação
de ‘novo’ profissional, responsável, competente e competitivo”
(SHIROMA; EVANGELISTA, 2003, p. 271-272).
Neste sentido, podemos perceber o papel estratégico
que o diretor de escola assume nos documentos nacionais e
internacionais. Para as referidas autoras, ao diretor é atribuída
a função de

[...] líder capaz de inovar a cultura organizacional da escola, de


sensibilizar a comunidade, de eliminar os “gargalos” no fluxo
escolar e, principalmente, de melhorar o desempenho escolar
a fim de comprovar melhoria nos resultados de aprendizagem.
Entre os professores de melhor performance serão recrutados
aqueles que poderão fazer formação em liderança educacional.
Na década em curso tal formação incide sobre a cúpula diretiva,
os administradores e os líderes, numa massiva campanha
de formação de gestores a partir de princípios que vêm
sendo introduzidos, com força significativa, nas instituições
educacionais (SHIROMA; EVANGELISTA, 2003, p. 272).

Tais determinações coadunam-se com o objetivo


deliberado de diminuir a base de conhecimento da docência
como profissão (HOYLE; JOHN, 1995, p. 11), reduzindo-a a uma
atividade técnica cujo fim é viabilizar a aquisição, pelos alunos,
de competências determinadas (SHIROMA; EVANGELISTA,
2003).
O gerencialismo está intimamente associado ao
novo conceito de profissionalismo, principalmente no que
tange às noções de eficiência, habilidade e competência. Hanlon
(1998) esclarece que, após 1980, ganhou aceitação a noção de
“profissionalismo comercializado” na qual se destacam três
fatores: 1. habilidade técnica; 2. habilidade de gestão referida
às habilidades de gerenciar outros empregados, balancear

24 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
orçamento e satisfazer os clientes e 3. habilidade de agir de
forma empreendedora (SHIROMA; EVANGELISTA, 2003, p. 274).
Na perspectiva gerencial, a gestão escolar converte
se em estratégia pela qual os líderes escolares mantêm a
burocracia da organização para assegurar seu poder e controle
sobre a escola, mais do que para ajudar seus membros a
realizarem seus propósitos (SHIROMA; EVANGELISTA, 2003)⁵.
As autoras indicam que, quando se implementa a
profissionalização do magistério, promove-se o consenso em
torno de uma demanda que é histórica da categoria, qual seja, a da
formação em nível superior e a da maior qualificação profissional
dosdocentes. Neste sentido, a qualidade de ensino é almejada por
todos os segmentos: professores em busca de aprimoramento e
desenvolvimento profissional; diretores em busca de eficiência
para que seu estabelecimento apresente melhores resultados
nas avaliações; sindicatos na luta por melhores condições de
trabalho, plano de carreira, status e remuneração; empresários
que realizam ações de “responsabilidade social” investindo em
educação; políticos que podem gabar-se de terem implantado
políticas de profissionalização.
Porém, esse mesmo consenso poderá promover
a segmentação da categoria, pois tem como cerne de sua
proposta a meritocracia, a avaliação por desempenho de alunos
e professores para o estabelecimento de rankings e o pagamento
por produtividade. Tais encaminhamentos não conduzem à
propalada “eficiência coletiva”.
Para Shiroma e Evangelista (2003, p. 277),

Os efeitos da ideologia do profissionalismo sobre a categoria


do magistério fomenta a disputa entre pares, o individualismo,
alterando as relações no interior do grupo ocupacional e
dele com seus superiores. Por parte dos docentes, o apelo à
profissionalização constitui uma forma de obter boas condições
de trabalho, formação, melhoria salarial, reconhecimento
social, ao passo que por parte dos empregadores é um recurso

9 junqueira&marin editores 9 25
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
para administrar conflitos, forjar consensos, estabelecer
meritocracia, salários diferençados, condições para o
gerenciamento do imenso contingente de professores.

Em síntese, a racionalidade presente na


profissionalização de professores busca obscurecer as
determinações históricas dessa categoria. Quanto aos efeitos
da ideologia do profissionalismo sobre o magistério, podemos
destacar a disputa entre pares; o individualismo; as maneiras
forjadas de obter boas condições de trabalho, formação, melhoria
salarial, reconhecimento social. Por parte dos empregadores, as
políticas de profissionalização são um recurso para administrar
conflitos, forjar consensos, estabelecer meritocracia, salários
diferençados, condições para o gerenciamento dos professores,
um dos maiores contingente de servidores públicos segundo a
UNESCO.
No âmbito das políticas de formação docente, a
profissionalização faz decorrer, pelo menos, três formas de
expressão. A primeira refere-se à desintelectualização do
professor; a segunda, à certificação e a terceira, à reconversão
docente.

2ª Tese:
a desintelectualização do professor

Corroborandoastesesapresentadas,Shiroma(2003)
vem desenvolvendo análises sobre o eixo desintelectualização
do professor⁶. Em seu exame, a autora indica que a reforma
educacional, não somente no Brasil, baliza-se por alguns
conceitos que buscam construir o consenso em torno de sua
necessidade e de seus conceitos centrais. A autora destaca os
conceitos de competência, excelência, mérito, produtividade e
sua capacidade de seduzir os profissionais da educação. Segundo
Shiroma (2003, p. 3),

26 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
A dificuldade de se contrapor a este discurso deve-se ao fato
de que inseridos na “cultura da avaliação” implementada nas
instituições educacionais durante os governos de FHC, estes
termos adquirem tal valoração positiva que ninguém quer
ser identificado com os antônimos: incompetente, medíocre,
improdutivo. Ademais, a retórica da reforma encontra um
terreno fértil em meio aos apaixonados pelo conhecimento,
saber, pelo trabalho acadêmico.

Ressalta-se, ainda, que documentos emanados do


Ministério da Educação brasileiro indicam uma política para
formação de professores cada vez mais centrada na prática.
Para esse Ministério, a prática parece estar em oposição direta
à teoria⁷.
Analisando a última versão do documento Propostas
de diretrizes para a formação inicial de professores da educação
básica, em cursos de nível superior, publicado pelo Conselho
Nacional de Educação em 2001 (BRASIL, 2001), Shiroma (2003,
p. 5) indica que

Todo o arrazoado caminha para apresentar a “pesquisa da


prática” como o elemento essencial na formação do professor,
sobrevalorizando o conhecimento experiencial designado
como o conhecimento construído “na” e “pela” experiência. A
proposta pretende dar destaque à natureza e à forma com que
esse conhecimento é constituído pelo sujeito. Trata-se de um
tipo de conhecimento tácito que não pode ser construído de
outra forma senão na prática profissional.

Nesse documento a autora mostra que há uma


compreensão de que, para ensinar, o professor deve dispor
e mobilizar conhecimentos que possibilite a ele “improvisar,
intuir, atribuir valores e fazer julgamentos que fundamentem a
ação mais pertinente e eficaz possível” (SHIROMA, 2003, p. 5).
Com essa abordagem⁸, a autora chega à tese de
que a política de profissionalização de professores e gestores,

9 junqueira&marin editores 9 27
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
nos moldes em que vem sendo implantada, tem por objetivo
não a qualificação do quadro do magistério, mas a sua
desintelectualização. Essa seria a via mais rápida de torná-los
pragmáticos, diminuindo-lhes a capacidade de intervenção
crítica consciente.
Convém salientar que essas são recomendações
que estão – não explicitamente – inscritas nas indicações de
organismos internacionais com o intuito de criar uma “nova
cultura organizacional” para a escola. Tal cultura estaria
marcada pelo aumento da disputa, pelo individualismo e pela
pseudo cooperação entre os profissionais da educação. Nessa
perspectiva, a escola seria transformada em espaço “acolhedor”
dos segmentos “vulneráveis”, que poderiam pôr em risco os
interesses dominantes de reprodução da ordem capitalista.
Por que, então, a centralidade da política está no
professor? Certamente não é para promover habilidades e
competências nos profissionais da educação, mas – ao que tudo
indica – para formá-los tendo em vista a preparação das novas
gerações lastreada em valores que perpetuem as relações sociais
capitalistas.

3ª Tese:
certificação de professores de resultados

A terceira tese⁹ está sendo desenvolvida em nosso


grupo principalmente por Shiroma e Schneider (2008). As
autoras questionam por que, diante de necessidades objetivas
de melhores condições de trabalho, formação, salário e carreira
dos professores, o governo opta justamente pela certificação?
O governo, ao eleger a certificação como saída
para as mazelas da educação, trata o ensino, nas políticas
educacionais, como âmbito da competência técnica. Dessa
maneira, procuram desideologizar a educação dando-lhe um
status pragmático. Este pragmatismo vem acompanhado pelo

28 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
enfraquecimento dos sindicatos de professores – e mesmo sua
extinção – e de uma “cultura de avaliação” que culpabiliza os
professores pelo fracasso dos alunos e deles próprios. Exime
se, dessa maneira, o Estado de sua responsabilidade sobre as
diretrizes políticas e os percursos que produziram os problemas
educacionais (SHIROMA; SCHNEIDER, 2008).
As autoras destacam que o projeto de certificação de
professores vem sendo defendido desde 1990 pelos educadores
ligados à social-democracia no Brasil, como é o caso de Mello
(2000). Para a autora, a certificação de competências

Pode ser levada em conta para o ingresso e o percurso no


mercado de trabalho, avaliando a flexibilidade e alaborabilidade
ao longo do desenvolvimento profissional, quando existem
exigências de periodicidade para certificar novas competências
ou recertificar as já constituídas. No caso da carreira docente,
esse processo poderá ser de grande impacto para aferir a
atualização e a educação continuada do professor e, ao mesmo
tempo, impor parâmetros para o ingresso, a progressão na
carreira e a remuneração do docente. (MELLO, apud SHIROMA;
SCHNEIDER, 2008, p.5)

[...] uma vez estabelecido um padrão de qualidade nacional,


ninguém poderá ser professor se seu desempenho revelar
competências profissionais inferiores ao padrão nacional.
(MELLO apud SHIROMA; SCHNEIDER, 2008, p.5).

Também indicam que a certificação vem se


constituindo em uma estratégia política de cunho avaliativo
e regulador, relacionada diretamente à reestruturação do
papel do Estado no contexto atual do capitalismo (SHIROMA;
SCHNEIDER, 2008).
Com o intuito de perceber a relação entre formação
de professores e melhoria do ensino, Shiroma e Schneider
(2008) analisam alguns documentos sobre o tema publicados

9 junqueira&marin editores 9 29
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
por agências internacionais. Destacam, por exemplo, que, para
o Banco Interamericano de Desenvolvimento, “[...] melhorar a
aprendizagem dos alunos pressupõe melhorar a qualidade do
ensino, o que inclui realizar reformas na formação inicial dos
docentes, introduzir avaliações e exames de licença” (BID, 2005
apud SHIROMA; SCHNEIDER, 2008, p. 13). Ao mesmo tempo, o
BID reconhece que a capacitação em serviço não tem resultado
em melhoras significativas na sala de aula. Segundo o BID, esses
resultados estariam relacionados ao fato de que, no Chile e no
Brasil, por exemplo, os cursos de formação contêm muita teoria
e pouco ensino de técnicas e de métodos de ensino (SHIROMA;
SCHNEIDER, 2008, p. 13).
Na mesmalinha, asautorasapresentamodocumento
do Banco Mundial intitulado Brazil: Teachers Development and
Incentives: A Strategic Framework, publicado em 2000. O Banco
também afirma que a qualidade da educação no Brasil não é boa
porque os cursos de formação de professores são deficientes.
O BM “considera que a formação inicial é ineficiente, pois os
cursos ofertados pelas Escolas Normais são academicamente
fracos e aqueles ofertados por universidades são excessivamente
teóricos” (BM apud SHIROMA; SCHNEIDER 2008, p. 14).
As autoras concluem seu trabalho afirmando que

Os dados encontrados nessa pesquisa documental permitem


inferir que a certificação de professores, nos moldes propostos,
pretende conduzir, a médio e longo prazo, a um contingente
de professores tecnicamente competentes e devidamente
segmentados e despolitizados. Essa meta, recomendada
pelos consultores dos bancos multilaterais, aqui entendidos
como intelectuais orgânicos do capital, certamente cumpre
um papel no processo de reprodução da sociabilidade
capitalista, a favor, portanto, dos interesses capitalistas. Ao
serem publicados, visando produzir o consenso em torno das
reformas, contraditoriamente, esses documentos das agências
multilaterais indicam um caminho que nós, que lutamos por

30 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
uma nova ordem social, precisamos reforçar em nossos cursos
de formação inicial e/ou continuada de professores: justamente
a formação teórica, a natureza científica, a perspectiva da práxis
e a dimensão política da formação do professor (SHIROMA;
SCHNEIDER, 2008, p. 16-17).

Nessa perspectiva, podemos entender que essa


lógica de formação, calcada na certificação, procura avaliar e
identificar os professores eficazes, com perfil e “competências”
capazes de melhorar o desempenho dos alunos. Considerando
que a política de certificação atrela os resultados nos exames
à remuneração e/ou incentivos para apenas um percentual da
categoria docente, a generalização dessa medidatende a reforçar
o individualismo, a classificação e a competição como bases
da estratégia de gestão de professores. Dentro dessa lógica, os
reajustes ou melhorias salariais funcionariam como chamariz
para motivar os professores a melhorar seu desempenho e de
seus alunos, aferidos por indicadores quantitativos, forjando
assim o professor de resultados. Além disso, a meritocracia e a
responsabilização pelos resultados endereçam aos professores
uma pressão que se, para alguns, pode trazer reconhecimento
e valorização em forma de bônus, para a maioria pode se
expressar em sofrimento, adoecimento, mal-estar decorrentes
da intensificação do trabalho docente.

4ª Tese:
reconversão docente
Analisando principalmente a Resolução nº 1/2006
(BRASIL, 2006) – Diretrizes Curriculares para o Curso de
Pedagogia (DCNP), Evangelista (2006) elabora a tese da
reconversão do trabalho docente no Brasil¹⁰. Para a autora
(EVANGELISTA, 2006, p. 5),
As discussões sobre “reconversão docente” têm-se estruturado,
principalmente, em torno da idéia de que, dadas algumas

9 junqueira&marin editores 9 31
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
condições objetivas – falta de professores em algumas áreas,
sobra de professores em outras, formação continuada –, os
docentes deveriam aceitar mudanças em sua área de atuação
original.

Essa hipótese de trabalho tem sido argumentada


sob a perspectiva de que um profissional polivalente – ou
multifuncional – está sendo formado e deverá atuar em um
amplo espectro de funções. Tal formação deverá ser restrita do
ponto de vista teórico e alargada em termos de ação docente.
Essa necessidade de formar um novo profissional
da educação pode ser observada na afirmação de Mello, na
Conferência Regional O desempenho dos professores na América
Latina e no Caribe: novas prioridades, em 2002,

[...] é possível observar que em todos os países, praticamente


todas as reformas que vêm sendo implementadas, contemplam,
entre seus principais itens, medidas relacionadas tanto com
a formação inicial dos professores como com alternativas
de aperfeiçoamento quanto a capacitação de quem está em
serviço [...] Há um reconhecimento unânime de que os desafios
colocados à escola atualmente exigem do trabalho educativo
um patamar profissional muito superior ao hoje existente, o
que sugere uma espécie de reinvenção da profissão docente.
(MELLO apud EVANGELISTA; TRICHES, 2008, p. 3) [Sem grifos
no original]

No Curso de Licenciatura em Pedagogia, com a


aprovação das DCNP nº 1/2006, podemos verificar um processo
de reconversão docente que atuará em sentido amplo na
docência, na gestão e na pesquisa (EVANGELISTA; TRICHES,
2008). Percebemos que o conceito de docência expresso nas
DCNP compreende toda e qualquer “ação educativa”, incluindo
o “processo pedagógico metódico e intencional”. Para Saviani
(2007), essas indicações são restritas no que se refere ao campo

32 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
teórico-prático e extensivas “no acessório, isto é, se dilatam em
múltiplas e reiterativas referencias à linguagem hoje em evidência”
(2007, p. 127).
Nessa perspectiva, o saber fazer tomaria o lugar
do esforço teórico em conhecer (MORAES, 2004). Sem sombra
de dúvidas, o professor precisa saber como desenvolver
suas atividades em sala de aula. Porém, como prescindir do
conhecimento para tal atividade? Para Duayer (apud MORAES,
2004, p. 17), “em um mundo cada vez mais complexo teorizar é
um imperativo da prática”.

As teses e suas repercussões no


exame das políticas para a Educação Básica

O GEPETO vem estudando, também, as repercussões


desses encaminhamentos políticos na Educação Básica,
especialmente na Educação Infantil, com Campos (2008), e na
Educação Especial, com Michels (2009).
Campos (2008) indica as condições de formação
do professor para a Educação Infantil. De acordo com a autora
(2008, p. 7-8), no Brasil,

[...] a docência na educação infantil é marcada por segmentações


decorrentes das características sócio-organizacionais de
suas instituições, da divisão dos professores em categorias
funcionais distintas que se desdobram, por sua vez, em
condições laborais, em vínculos empregatícios e mobilidade na
carreira diferenciados, reafirmando e cristalizando hierarquias
e relações de poder entre iguais.

No que se refere ao trabalho docente, a autora


assinala que, na Educação Infantil, emergem novas funções
que, de alguma maneira, intensificam e precarizam o trabalho
docente. Salienta ainda que, nessa etapa da Educação Básica, os
professores não estão divididos somente entre aqueles que têm

9 junqueira&marin editores 9 33
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
seus contratos temporários e os que são efetivos. Além disso,
dividem-se entre aqueles que atuam nas creches e aqueles que
trabalham nas pré-escolas. Tal divisão confere um determinado
status social diferente além de apresentar distinções em termos
de salários, de formação e de carreira¹¹.
Ademais, entre os docentes da Educação Infantil,
há outra distinção que parece passar despercebida por muitos
e sobre a qual Campos (2008) chama atenção sobre a existência:
auxiliares de classe, atendentes ou monitoras. Essas assumem,
por vezes, um papel de menor destaque na divisão de trabalho
nas classes de Educação Infantil; muitas vezes pertencem
ao quadro da administração civil e não são consideradas
professoras, embora desenvolvam suas atividades diretamente
com as crianças¹².
Essa maneira de organizar a Educação Infantil, que
dá nova forma e conteúdo às funções pedagógicas, parece justificar
a intensificação e precarização do trabalho docente nessa etapa
da educação.
Ao mesmo tempo em que se observa a precarização
e intensificação do trabalho docente, percebemos a exigência de
formação sem uma de política de formação docente:

Os indicadores do perfil de formação dos professores atuantes


na educação infantil – pouco mais de 30% com nível superior,
e os atuais movimentos de expansão da oferta dessa formação
pelas instituições privadas nos alertam para os riscos de
ascensão de um movimento de formação massiva e aligeirada,
em cursos de curta duração, de orientação pragmática, sem o
adensamento teórico necessário a uma atuação sólida e voltada
às necessidades desse nível de ensino (CAMPOS, 2008, p. 17).

Em relação à Educação especial, Michels (2009)


vem analisando a Resolução CNE/CP n. 1 (BRASIL, 2006), que
instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de
Pedagogia – Licenciatura e que extinguiu as habilitações do

34 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
Curso de Pedagogia, dentre essas, as responsáveis pela formação
dos professores para atenderem os alunos com deficiência.
Com tal modificação, podemos observar que, na maioria das
universidades públicas do país, houve reorganização das grades
curriculares, extinguindo-se as habilitações, mantendo-se
disciplinas específicas da área (na maioria delas, uma disciplina
de Fundamentos de Educação Especial)¹³.
Especificamente relacionada à formação docente
para atender alunos com deficiência, a Resolução n. 1 afirma, no
Artigo 5º, que os egressos do Curso de Pedagogia deverão estar
aptos a:

Demonstrar consciência da diversidade, respeitando as


diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial,
de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões,
necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras (BRASIL,
2006).

Em seu Artigo 8º, que trata da integralização dos


estudos em cada instituição, estabelece que esta se efetive
mediante:

III - atividades complementares envolvendo o planejamento e o


desenvolvimento progressivo do Trabalho de Curso, atividades
de monitoria, de iniciação científica e de extensão, diretamente
orientadas por membro do corpo docente da instituição de
educação superior decorrentes ou articuladas às disciplinas,
áreas de conhecimentos, seminários, eventos científico
culturais, estudos curriculares, de modo a propiciar vivências
em algumas modalidades e experiências, entre outras, e
opcionalmente, a educação de pessoas com necessidades
especiais, a educação do campo, a educação indígena, a
educação em remanescentes de quilombos, em organizações
não-governamentais, escolares e não-escolares públicas e
privadas (BRASIL, 2006). [Sem grifos no original]

9 junqueira&marin editores 9 35
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
Em 2008, a Secretaria de Educação Especial do MEC
lança a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva (BRASIL, 2008, p. 17-18) na qual apresenta
encaminhamentos sobre a formação de professores e indica que

Para atuar na educação especial, o professor deve ter como base


da sua formação, inicial e continuada, conhecimentos gerais
para o exercício da docência e conhecimentos específicos da
área. Essa formação possibilita a sua atuação no atendimento
educacional especializadoe deve aprofundar o caráterinterativo
e interdisciplinar da atuação nas salas comuns do ensino regular,
nas salas de recursos, nos centros de atendimento educacional
especializado, nos núcleos de acessibilidade das instituições de
educação superior, nas classes hospitalares e nos ambientes
domiciliares, para a oferta dos serviços e recursos de educação
especial. Esta formação deve contemplar conhecimentos
de gestão de sistema educacional inclusivo, tendo em vista
o desenvolvimento de projetos em parceria com outras áreas,
visando à acessibilidade arquitetônica, os atendimentos de
saúde, a promoção de ações de assistência social, trabalho e
justiça. [Sem grifos no original]

A começar pelo conceito “docência”, a análise dos


documentos citados, principalmente as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Pedagogia – Licenciatura (BRASIL,
2006) e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), possibilitam afirmar que
há uma dilatação em seu significado e, principalmente, uma
ampliação do espectro das atividades que constituem as funções
docentes. Há, então, o que alguns autores vêm denominando de
docência em sentido alargado.
Observamos em documentos propositivos e
normativos da política educacional direcionada à Educação
Especial, em uma perspectiva inclusiva, a pulverização das
ações docentes para as quais se indica que os professores da
área devam ser preparados. Aliado a esse fato, percebemos tanto

36 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
nos documentos aqui referidos como na pesquisa realizada nos
municípios catarinenses¹⁴, que há uma centralização em três
grandes estratégias de organização dessa formação, quais sejam:
a base instrumental, a gestão do sistema para torná-lo inclusivo
e o ensino a distância como o mais adequado para tal formação.
Diante de tais evidências, algumas questões
emergem: o que podemos pensar sobre a formação e as
funções do chamado professor dos serviços especializados em
uma perspectiva gerencial? Seria este um gestor dos recursos
pedagógicos especializados? A formação desse especialista
suporia a constituição de um facilitador de vivências inclusivas?
Se a tese da reconversão do trabalho docente se
confirma para a área de Educação Especial, juntamente com
estas três estratégias, podemos pensar que a este professor
está reservada a tarefa de fazer a inclusão, sem garantir, porém,
o processo de escolarização a uma parte dos sujeitos excluídos
historicamente. A quem interessa esta perspectiva de inclusão?
De que modo os organismos multilaterais influenciam na
formulação e implantação das políticas de inclusão e de formação
docente no Brasil? Como a atual política de profissionalização
docente concorre para reconversão dos professores a fim de
viabilizarem a referida inclusão? A que projeto histórico se
vincula?
Estas são algumas das questões derivadas das
pesquisas realizadas nos últimos anos pelos pesquisadores do
GEPETO¹⁵ relativas à formação de professores no Brasil. Não
tivemos a pretensão de apresentar todas as facetas da política
de formação docente no país. Apenas pretendemos contribuir
para a discussão sobre um tema tão abrangente e central na
política educacional brasileira como é o da formação docente
por intermédio das teses aqui apresentadas. 3

9 junqueira&marin editores 9 37
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
Referências

AGUERRÓNDO, I. Os desafios da política educacional relativos às reformas da


formação docente. 2002. p. 1-25. Disponível em: <http://novaescola.abril.com.
br/estante/oficio/01E4-InesAguerrondo.pdf>. Acesso em: 2 jul. 2006.

BALL, S.J. Education PLC: understanding private sector participation in public


sector education. London: Routledge, 2007.

BALL, S. What is policy?Texts, trajectories and toolboxes. In BALL, S. Education


Reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University
Press, 1994.

BOLÍVAR, A., GALLEGO, M. J., LEÓN, M. J. y PÉREZ, P. Políticas educativas de


reforma e identidades profesionales: el caso de la educación secundaria en
España. Archivos Analíticos de Políticas Educativas. v. 13, n. 45, 2005. Disponível
em: <http://epaa.asu.edu/epaa/v13n45/>. Acesso em: 17 mai. 2008.

BRASIL. MEC. Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da


educação básica em cursos de nível superior. Brasília, abril, 2001.

BRASIL. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP n. 1, de 15 de maio de 2006. Institui


Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia,
2006.

BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação


Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, 2008.

CAMPOS, R. F. Trabalho docente e formação de professores da educação


infantil. In: Anais VII Seminário REDESTRADO, “Nuevas Regulaciones en
América Latina”, Buenos Aires/Argentina, 3 à 4 de julio de 2008. CLACSO;
AGENCIA: Argentina, 2008.

ESTEVE, J. M. El profesorado de secundaria. Hacia un nuevo perfil profesional


para enfrentar los problemas de la educación contemporánea. Revista
Fuentes on line. Universidad de Sevilla. Facultad de CC de La Educación, n. 3,
2002. Disponível em: <http://www.revistafuentes.org/htm/article.php?id_
volumen=3&id_article=51>. Acesso em: 17 mai. 2008.

38 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO I
EVANGELISTA, O. Almas em Disputa. Reconversão do docente pela
ressignificação da educação. Projeto PQ/CNPq 2006-2010. Florianópolis:
EED/CED/UFSC, 2006.

EVANGELISTA, O.; SHIROMA, E. O.. Profissionalização como estratégia de


gerenciamento de professores.Revista de Estudos Curriculares, Braga/Portugal,
v. 1, n. 2, p. 267-281, 2003.

EVANGELISTA, O.; TRICHES, J. Reconversão, alargamento do trabalho docente


e Curso de Pedagogia no Brasil. In: Anais VII Seminário REDESTRADO, “Nuevas
Regulaciones en América Latina”, Buenos Aires/Argentina, 3 à 4 de julio de
2008. CLACSO; AGENCIA: Argentina, 2008.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 2001.

HANLON, G. Professionalism as enterprise: service class politics and the


redefinition of professionalism. Sociology, v.32, n. 1, p. 43-63, 1998. Disponível
em <http://soc.sagepub.com/cgi/content/abstract/32/1/43>. Acesso em 20
mar. 2010.

HOYLE, E.; JOHN, P. Professional knowledge and professional practice. London:


Cassell, 1995.

INEP. EFA 2000. Educação para Todos: avaliação do ano 2000, Informe nacional,
Brasil / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1999.

MEDEIROS, R. N. A formação continuada no Brasil, Portugal e Espanha. Rio De


Janeiro: UFRJ, s.d.. Disponível em: <http://www.sbec.org.br/evt2003/trab4.
doc>. Acesso em: 10 ago. 2006.

MELLO, G.N. de. Política e gestão do sistema de ensino no Brasil após a LDB:
a prioridade da formação inicial de professores para a educação básica. Mar.
2000. (Mimeo).

9 junqueira&marin editores 9 39
CAPÍTULO IPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
MICHELS, M. H. O instrumental, o gerencial e a formação à distância:
estratégias para a reconversão docente na perspectiva da Educação Inclusiva.
In: V Seminário Nacional de Pesquisa em Educação Especial: formação de
professores em foco. CD-rom. São Paulo, 2009.

MORAES, M. C. M. O renovado conservadorismo da agenda pós-moderna.


Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v.34, n.122, p. 337-357, 2004.

OLIVEIRA, D. A reestruturação do trabalho docente: precarização e


flexibilização. Educação & Sociedade, Campinas: Cedes, v. 25, n. 89, p. 11-27,
set/dez. 2004.

OZGA, J. Investigação sobre políticas educacionais: terreno de contestações.


Porto: Porto Editora, 2000.

POPKEWITZ, T. Reforma Educacional: uma política sociológica – poder e


conhecimento em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

SAVIANI, D. Pedagogia: o espaço da educação na universidade. Cadernos de


Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas. Autores Associados, v. 37, n. 130,
p. 99-134, jan/abr. 2007.

SCHNEIDER, M. C. Certificação de professores: contradições de uma política.


Dissertação de Mestrado. UFSC, Florianópolis, 2009.

SHIROMA, E. O. Política de profissionalização: aprimoramento ou


desintelectualização do professor? Intermeio (UFMS), Campo Grande, v. 9, n.
17, p. 64-83, 2003.

SHIROMA, E. O.; SCHNEIDER, M. C.. Certificação e gestão de professores. In:


Anais VII Seminário REDESTRADO, “Nuevas Regulaciones en América Latina”,
Buenos Aires/Argentina, 3 à 4 de Julio, 2008.

40 9 junqueira&marin editores 9
U PARTE
POLÍTICAS I
E PRÁTICAS V
EDUCACIONAIS

i CAPÍTULO II j
O FRACASSO ESCOLAR DAS CRIANÇAS MIGRANTES NO
JAPÃO: AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM DISCUSSÃO

Izumi Nozaki

Introdução

partir do fim da década de 1980, em


A paralelo ao paulatino aumento do movimento
migratório de trabalhadores brasileiros em direção ao Japão,
ocorreu um crescimento gradativo no número de matrículas
de crianças brasileiras em idade escolar nas escolas públicas
japonesas, o qual, ao longo dos anos, desenvolveu-se
acompanhado por altos índices de abandono escolar. Com a
finalidade de compreender este duplo movimento de inserção
e evasão escolar das crianças brasileiras migrantes no Japão,
foi elaborado o Projeto de Pesquisa Divisão Social do Trabalho,
Migração e Educação: O fracasso escolar das crianças brasileiras
residentes no Japão, o qual foi desenvolvido na cidade de
Hamamatsu, Japão, no período entre 2006 e 2008, dentro da
proposta de qualificação em nível de Pós-doutoramento em
Educação. Este artigo, desse modo, apresenta os resultados

9 junqueira&marin editores 9 41
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
parciais deste estudo exploratório e multirreferencial sobre
a evasão escolar desenvolvido junto a crianças e adolescentes
brasileiros inseridos nas escolas públicas japonesas de nível
primário e ginasial.

O movimento migratório de brasileiros para o Japão

A interdependência da economia desestatizada


e a mundialização dos mercados têm situado os países do
mundo de modo assimétrico entre dois blocos: o bloco dos
países economicamene desenvolvidos e o bloco dos países em
desenvolvimento. Segundo Berquó (2001, p. 11), esses dois
blocos se organizam da seguinte forma:

O descompasso temporal com que se deu a transição


demográfica no bloco dos países com economias desenvolvidas
e vem se dando no das economias em desenvolvimento coloca
no mundo contemporâneo uma situação pelo menos paradoxal.
O primeiro bloco, que concentra os maiores PIBs do mundo,
enfrenta sérias dificuldades quando ao declínio populacional e
ao envelhecimento de sua população – fenômeno decorrente, de
um lado, de continuadas taxas de fecundidade abaixo do nível
de reposição e, de outro, do aumento da longevidade. Com isso,
necessita de uma verdadeira “transfusão populacional”, vinda de
fora, para rejuvenescer suas populações e evitar o crescimento
negativo. Já o segundo bloco, com grandes contingentes de
população em idade produtiva, em conseqüência de altas
taxas de fecundidade no passado e do progressivo declínio
da mortalidade, enfrentam sérias dificuldades de trabalho e
emprego.

Neste cenário, apesar dos países, em princípio,


buscarem a segregação conforme maior ou menor grau de
desenvolvimento econômico, sabe-se que esses também buscam
a aproximação com os países do bloco oposto com a finalidade

42 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
de assegurar sua sobrevivência e manutenção. Assim, no
mundo globalizado, quando, de um lado, há a “necessidade de
população” devido à falta de força humana produtiva e, de outro,
a “necessidade de trabalho” devido à superpopulação, esta
combinação de carências inspira, de acordo com Berquó (2001,
p. 11), os fluxos migratórios de reposição populacional.
Neste contexto, o Brasil, apesar de seu crescimento
econômico nos últimos anos, por ser um país com uma população
de baixa escolaridade relativamente numerosa, com altos índices
de desemprego e com uma reforma na Previdência Social,
que conduz a um quadro em que “o trabalhador aposentado
continua trabalhando” (FREITAS, 2001, p. 528), posiciona-se no
bloco dos países em desenvolvimento. E, nesta posição, participa
do processo de reposição populacional por meio da migração
de brasileiros, em sua grande maioria, para países do primeiro
bloco e para o trabalho com baixa exigência de escolarização e
qualificação.
Como um país de emigração, o Ministério das
Relações Exteriores do Brasil (2001, p. 95), na virada do milênio,
identificou mais de um milhão e meio de brasileiros vivendo no
exterior, sendo que as maiores concentrações se encontravam
nos Estados Unidos, com 750 mil, no Paraguai, com 350 mil, e no
Japão, com 220 mil brasileiros.
Com relação ao movimento migratório de
brasileiros para o Japão, segundo Tajima (2005, p. 15-16), este
é constituído de três fases distintas, tendo seu início ocorrido
devido “à falta crônica de mão-de-obra não qualificada” e a partir
da necessidade de sua “importação de países onde há excesso
de força de trabalho dessa natureza”. Assim, a primeira fase,
marcada por dois movimentos diferentes, iniciou-se na década
de 1980 e caracterizou-se pela entrada de milhares de pessoas
da 1ª geração de japoneses natos residentes em regiões agrícolas
de países latino-americanos, notadamente do Brasil e Peru, que
almejavam acumular capital e saldar dívidas contraídas no país

9 junqueira&marin editores 9 43
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
residente. O segundo movimento teve início na segunda metade
da década de 1980 e caracterizou-se pela chegada de pessoas da
1ª geração oriundas de áreas urbanas.
A segunda fase, explica Tajima, começou com o
advento da reforma da Lei de Controle de Entradas e Saídas e
de Reconhecimento de Refugiados, homologada em 1° de junho
de 1990, a qual concedeu, aos descendentes de japonês e aos
seus cônjuges e filhos, o direito à entrada e permanência no país,
por três anos ao nissei (2ª geração) e por um ano ao sansei (3ª
geração), com possibilidade ilimitada de prorrogação. Esta fase
caracterizou-se, portanto, pela imigração de nisseis e sanseis de
ambos os sexos, entre 20 e 30 anos de idade, seus cônjuges e
filhos com ou sem ascendência japonesa. Finalmente, a terceira
fase começou em meados da década de 1990, quando ocorreu
a piora do desemprego no Japão (MISAWA, 2003, p. 140)¹⁶.
Neste período, a fixação do trabalhador brasileiro no país se dá,
segundo Kitawaki (2003), por consequência da implantação de
melhorias na infraestrutura de vida dos estrangeiros e, de acordo
com Tajima (2005, p. 16), por forças da enorme dificuldade de
retorno e inserção imediata no mercado de trabalho no país de
origem.
Neste contexto histórico de reposição populacional,
conforme Miyajima e Oota (2005, p. 6), em 2004, já se
encontravam, em todo o Japão, 274.700 brasileiros registrados,
sendo 27.613 crianças na faixa de 5 a 14 anos.
A cidade de Hamamatsu é o maior município do
distrito de Shizuoka com mais de 800 mil habitantes e é um dos
maiores centros industriais de peçasautomotivas e instrumentos
musicais. Após a Reforma da Lei, ocorreu em Hamamatsu, um
enorme crescimento populacional de migrantes estrangeiros,
representando, no período de 1991 a 2006, um aumento
de 8.346 para 30.977 estrangeiros, e de 4.407 para 18.457
brasileiros (ver Quadro 1).

44 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
Quadro 1:
Quadro evolutivo do número de estrangeiros na cidade
de Hamamatsu (30 Junho 2006)

Data Total Brasil China Filipinas Perú Coreia Vietnã Outros

30.04.1991 8.346 4.407 374 513 369 2.075 171 437

30.04.1992 11.541 6.240 503 805 812 2.150 206 825

30.04.1993 11.749 6.504 630 639 737 2.174 226 839

30.04.1994 10.824 5.893 602 778 632 1.984 223 712

30.04.1995 11.851 6.595 942 800 691 1.842 266 715

30.04.1996 12.604 7.370 890 678 715 1.924 317 710

30.04.1997 13.650 8.297 854 793 720 1.824 351 793

30.04.1998 16.049 10.070 1.059 900 826 1.707 399 1.088

30.04.1999 16.516 10.032 966 1.171 962 1.668 459 1.258

30.04.2000 17.827 10.759 977 1.291 1.099 1.637 528 1.536

30.04.2001 19.413 11.821 1.230 1.509 1.268 1.603 580 1.402

30.04.2002 20.443 12.138 1.321 1.758 1.381 1.587 612 1.646

30.04.2003 22.320 13.384 1.537 1.995 1.489 1.573 658 1.684

30.04.2004 23.447 13.408 1.720 2.442 1.585 1.652 755 1.885

30.04.2005 25.412 14.476 1.944 2.921 1.775 1.523 816 1.957

30.04.2006 30.903 18.572 2.550 2.468 2.247 1.707 922 2.437

30.05.2006 31.231 18.715 2.621 2.512 2.258 1.704 947 2.474

30.06.2006 30.977 18.457 2.579 2.556 2.241 1.692 938 2.514

Fonte: Kikoku-Gaikokujin Jidou Seito Toukeihyou (Quadros Estatísticos das


Crianças-Alunos Estrangeiros e Japoneses que Retornaram do Estrangeiro),
Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, Hamamatsu-shi Kyouiku An Inkai Shidouka
(Comitê de Educação da Cidade de Hamamatsu – Setor de Orientação), e
Kyouiku Soudan Gurupu (Grupo de Aconselhamento Educacional) e Gaikokujin
Kodomo Kyouiku Shienshitsu (Repartição de Ajuda à Educação da Criança
Estrangeira), 30 de junho de 2006.

9 junqueira&marin editores 9 45
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Particularmente no tocante às crianças migrantes, a
BBC Brasil, em 2005, noticiou que havia em todo o Japão, 40 mil
crianças estrangeiras em idade escolar, sendo que 17 mil delas
fora da escola. Sobre o assunto, em 2007, o governo japonês,
com base em um levantamento em nível nacional, afirmou que
havia cerca de 1% de crianças estrangeiras cadastradas no
país que se encontrava fora da escola, e 17% de crianças com
“paradeiro desconhecido” (cf. YOMIURI & SHINBUN, 2007). E,
especificamente na cidade de Hamamatsu, em 2007, a Prefeitura
divulgou os resultados de um levantamento geral, e seus dados
mostraram um aumento de 1.335 crianças estrangeiras em
idade escolar, no espaço de cinco anos.

Quadro 2
Sobre a situação escolar das crianças estrangeiras
(Cidade de Hamamatsu, 1o maio 2007)

Nível Ano N°
estrangeiras
cadastradas
em
de
escolar
crianças
idade N°
regular
frequência
públicas
de
escolas
com
crianças
nas crianças
regular
frequência
escolas
N° decom
em crianças
fora
escola
N° de
da % de

crianças

fora da

escola

étnicas

Idade 2002 1.088 616 247 225 20,7%

escolar 2003 1.228 661 ‐‐‐ ‐‐‐ ‐‐‐

nível 2004 1.392 765 350 277 19,9%

primário2005 1.581 842 433 306 19,4%

2006 2.019 1.022 543 454 22,5%

2007 2.140 1.172 ‐‐‐ ‐‐‐ ‐‐‐

Idade 2002 468 252 111 105 22,4%

46 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS:20072.140 política, currículo1.172 e espaço escolar‐‐‐
‐‐‐ CAPÍTULO‐‐‐ II
Idade 2002 468 252 111 105 22,4%

escolar 2003 500 251 ‐‐‐ ‐‐‐ ‐‐‐

nível 2004 494 266 102 126 25,5%

ginasial 2005 502 261 128 113 22,5%

2006 634 337 145 152 24,0%

2007 751 410 ‐‐‐ ‐‐‐ ‐‐‐

2002 1.556 868 358 330 21,2%

2003 1.728 912 530 286 16,6%

Total 2004 1.886 1.031 452 403 21,4%

Fonte: Impresso para divulgação, Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, 1o de


maio de 2007.

Na mesma proporção, conforme mostra outro


quadro estatístico (ver Quadro 3) apresentado pela Prefeitura
de Hamamatsu sobre as crianças estrangeiras matriculadas em
escolas públicas japonesas, observa-se que, ao longo dos 17
anos, entre 1989 e 2006, houve um aumento anual de matrículas
tanto no nível primário como no ginasial.

Quadro 3
Número de crianças estrangeiras matriculadas nas
escolas públicas japonesas de nível primário e ginasial
da cidade de Hamamatsu – 1989 a 2006

Data Nível SubtotalTotal Brasil Peru Vietnã China Filipinas Outros

1.5.1989 Primário 31 3 14 6 1 7

Ginásio 1 32 1

1.5.1990 Primário 72 37 11 8 3 13

9 junqueira&marin editores 9 47
CAPÍTULO II
Ginásio 1321
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
1.5.1990 Primário 72 37 11 8 3 13

Ginásio 14 86 3 8 1 1 1

1.5.1991 Primário 175 123 6 24 16 2 4

Ginásio 35 210 14 15 2 1 3

1.5.1992 Primário 311 230 23 33 13 4 8

Ginásio 84 395 54 2 17 4 2 5

1.5.1993 Primário 338 246 33 34 13 3 9

Ginásio 114 452 79 5 17 6 2 5

1.5.1994 Primário 304 210 32 30 17 3 12

Ginásio 124 428 86 10 14 8 2 4

1.5.1995 Primário 276 175 32 31 22 6 10

Ginásio 140 416 94 14 19 7 2 4

1.5.1996 Primário 346 230 41 26 29 8 12

Ginásio 150 496 99 19 19 10 1 2

1.5.1997 Primário 442 316 39 32 29 12 14

Ginásio 168 610 112 19 18 13 3 3

30.4.1998 Primário 545 407 50 34 33 12 9

Ginásio190 735 130 20 16 17 4 3

30.4.1999 Primário 556 403 54 33 37 15 14

Ginásio 195 751 133 19 21 13 5 4

30.4.2000 Primário 521 359 61 35 35 20 11

Ginásio 203 724 135 21 24 14 5 4

30.4.2001 Primário 548 374 55 40 35 24 20

48 9 junqueira&marin editores 9
sPRÁTICAS 203política, currículo724 135
PEDAGÓGICAS:Ginásio e espaço21escolar2414CAPÍTULO54 II
30.4.2001 Primário 548 374 55 40 35 24 20

Ginásio 193 741 125 29 15 20 3 1

30.4.2002 Primário 584 372 97 33 25 36 11

Ginásio 231 815 142 31 17 20 8 12

30.4.2003 Primário 619 394 80 57 23 40 25

Ginásio 231 850 132 33 23 26 11 6

30.4.2004 Primário 737 450 128 68 25 40 25

Ginásio 242 979 137 35 23 16 21 10

30.4.2005 Primário 825 515 133 72 32 42 31

Ginásio 247 1.072 144 32 17 21 20 13

30.4.2006 Primário 1.003 641 151 76 40 60 35

Ginásio 318 1.321 202 46 19 23 17 11

Fonte: Kikoku-Gaikokujin Jidou Seito Toukeihyou (Quadros Estatísticos das


Crianças-Alunos Estrangeiros e Japoneses que Retornaram do Estrangeiro),
Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, Hamamatsu-shi Kyouiku An Inkai
Shidouka (Comitê de Educação da Cidade de Hamamatsu – Setorde Orientação),
e Kyouiku Soudan Gurupu (Grupo de Aconselhamento Educacional) e
Gaikokujin Kodomo Kyouiku Shienshitsu (Repartição de Ajuda à Educação da
Criança Estrangeira), 30 de junho de 2006.

Em paralelo ao crescimento numérico da população


infantil em idade escolar e de crianças matriculadas em escolas
japonesas, os dados mostram além de uma taxa em torno de
20% de crianças fora da escola (ver Quadro 2), um número de
matrículas no nível primário substancialmente maior do que o
número de matrículas no nível ginasial (ver Quadro 3). Este fato
nos leva a acreditar que existe um conjunto de dificuldades que
impede as crianças estrangeiras de ascenderem naturalmente

9 junqueira&marin editores 9 49
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
de um nível a outro quando matriculadas nas escolas públicas
japonesas.
À parte, dados dos meses de abril (N = 202) e de
outubro de 2006 (N = 184), levantados, na época, pelo Colégio
Municipal de Ensino Secundário de Hamamatsu, quanto ao
número de alunos brasileiros matriculados no curso ginasial,
nas escolas públicas japonesas da cidade de Hamamatsu,
mostraram uma leve redução no seu quantitativo total, uma
diminuição na passagem de uma série a outra, e a presença de
um número reduzido de apenas 43 alunos brasileiros ao final do
ensino obrigatório em todo o município (ver Quadro 4).

Quadro 4
Número de crianças brasileiras matriculadas em
escolas públicas japonesas de ensino ginasial na cidade
de Hamamatsu
1a série 2a série 3a série Total

73 68 43 184

Fonte: Quadro organizado com base em informações obtidas nas escolas


públicas japonesas de ensino ginasial da cidade de Hamamatsu, pelo
Hamamatsu Shiritsu Koutou Gakkou (Colégio Municipal de Ensino Secundário
de Hamamatsu), em 17 de outubro de 2006.

Até aqui, os dados obtidos permitiam concluir que


muitas crianças brasileiras buscam a escola pública japonesa,
mas, uma vez dentro do sistema educacional japonês, nem todas
percorrem o processo de escolarização até a sua conclusão.
Os fatos conduzem à certeza de que existe entre as crianças
brasileiras migrantes um fracasso escolar expresso pela evasão
escolar, com maior ocorrência durante a passagem de um nível
para outro e após o início do curso ginasial.
Diante deste cenário contraditório representado
pela expansão do número de matrículas versus evasão escolar

50 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
de crianças estrangeiras em situação de migração no Japão, a
questão fundamental levantada pela proposta de estudo foi:
por que as crianças brasileiras migrantes se inserem e depois
abandonam a escola pública japonesa?

O direito à educação das crianças brasileiras


migrantes em questão: o direito constitucional e o
direito por concessão

Segundo Sayad (1998), a imigração e os imigrantes


só têm sentido e razão de ser através do trabalho e, como tal,
“um imigrante só tem razão de ser no modo do provisório e com
a condição de que se conforme ao que se espera dele; ele só está
aqui e só tem sua razão de ser pelo trabalho e no trabalho; porque
se precisa dele, enquanto se precisa dele, para aquilo que se
precisa dele e lá onde se precisa dele” (p.55). Assim, para Sayad,
uma vez que o migrante só existe quando existe a necessidade
de sua existência, a ordem da migração (emigração e imigração)
está fundamentalmente ligada à ordem nacional; e sob este ponto
de vista da relação com a nação e com o pertencimento nacional,
a imigração, em particular, pode ser definida como a “presença
no seio da ordem nacional de indivíduos não-nacionais” (1998,
p. 266).
Ao fazer alusão à imigração que se prolonga, Sayad
esclarece que a ideia de não pertencimento do indivíduo à
nação pode ser estendida até uma outra ideia, a de privação do
direito mais fundamental, isto é, do direito do nacional (p. 270).
Com base em tal lógica, explica que, não sendo o imigrante um
elemento nacional, isso justifica a economia de exigências que
se tem para com ele em matéria de igualdade de tratamento
frente à lei e na prática (p.58). Porém, acrescenta, uma vez que o
imigrante não é puramente mecânico, é forçoso conceder-lhe um
mínimo, e sendo ele casado e pai de família, não seria possível

9 junqueira&marin editores 9 51
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
proibi-lo de trazer para junto de si, dentro de certos limites e sob
certas condições, sua mulher e seus filhos. E, enquanto pai, “não
se poderia, por exemplo, privar seus filhos de educação escolar
e de formação profissional” (1998, p. 59).
No seio da discussão acerca da educação das
crianças no mundo globalizado da contemporaneidade,
Sacristán (2002), preocupado com a questão da justiça, discute
as faces da igualdade e da diferença na educação e, dentro desta
perspectiva, defende cinco momentos de sentido da igualdade.
Para ele, o primeiro momento refere-se ao acesso à educação, ou
seja, “a possibilidade de todos de poder ter uma vaga na escola,
a igualdade no acesso a escolas de qualidade equivalente” (p.
249).
Embora Sacristán defenda a igualdade de acesso
como uma questão de justiça, há quem explique que esta nem
sempre é praticada e por motivos variados. Carvalho (1997), por
exemplo, afirma que o direito à escolarização pode ou não ser
estendido a toda população, não por uma decisão pedagógica,
mas por uma escolha política da sociedade.
Seguindo, assim, a linha de raciocínio de Carvalho,
pode-se dizer que a escolha política sobre o direito igualitário de
acesso à escola e da obrigatoriedade escolar ocorre entre duas
alternativas, ou seja, entre aquela que entende que a Educação
Fundamental é um direito público e obrigatório a todas as
crianças e, portanto, também às crianças estrangeiras, tal como
ocorre na França e, conforme Miyajima e Oota (2005, p. 32),
em outros países como Alemanha, Holanda, Canadá e EUA; e
aquela que a compreende como um direito público e obrigatório
exclusivo às crianças pertinentes à nação e, portanto, excluídos
os filhos dos estrangeiros, como é o caso do Japão.
No caso específico do Japão, conforme sua
Constituição, a educação primária e ginasial com nove anos de

52 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
duração é compulsória a todas as crianças japonesas, porém,
esta não é claramente garantida para as crianças migrantes
(OOTA; TSUBOYA, 2005, p.18), mesmo para aquelas nascidas no
estrangeiro e com comprovada ascendência japonesa ou àquelas
nascidas no país, no seio de uma família migrante.
Em razão da falta de uma legislação que trate sobre
a educação de crianças estrangeiras, Oota e Tsuboya (2005,
p. 19) explicam que, no início do movimento migratório, as
famílias brasileiras solicitavam a autorização junto aos Comitês
Municipais de Educação para procederem a matrícula dos filhos
em escolas públicas japonesas. Entretanto, as solicitações eram
indeferidas com base no fato das crianças não dominarem o
idioma japonês.
Diante do grande contingente de crianças
brasileiras em idade escolar, em situação de migração e sem
direito constitucional à educação básica, na metade da década
de 1990, o Ministério da Educação e Cultura do Brasil – MEC
concedeu, em caráter especial, autorização para a criação de
escolas brasileiras, de natureza privada (HAINO, 2006); e como
efeito, em 2005, havia em todo o Japão, um total de 8 mil crianças
estudando em escolas brasileiras (BBC Brasil, 2005), e em 2006,
um total de 50 escolas homologadas pelo MEC.
Com o passar do tempo, diante da irreversibilidade
constitucional, segundo Oota e Tsuboya (2005), cada Comitê
Municipal de Educação começou a agir de modo diferenciado, e,
em algumas cidades com grande concentração de estrangeiros,
autorizações passaram a ser fornecidas para crianças de todas
as nacionalidades. Tal medida, particularmente na cidade de
Hamamatsu, repercutiu com uma expansão, entre 1990 e 2006,
de 25 para 1.311 crianças estrangeiras e, dentre elas, de 4 para
877 crianças brasileiras (ver Quadro 5).

9 junqueira&marin editores 9 53
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Quadro 5
Número de alunos estrangeiros matriculados nas
escolas públicas japonesas da cidade de Hamamatsu –
1990, 1998, 2006 (30 Junho 2006)
Data Total Brasil Peru Vietnã Filipinas China

04.1990 25 4 0 14 1 6

04.1998 723 537 70 50 16 50

06.2006 1.311 877 199 95 77 63

Fonte: Kikoku-Gaikokujin Jidou Seito Toukeihyou (Quadros Estatísticos das


Crianças-Alunos Estrangeiros e Japoneses que Retornaram do Estrangeiro),
Prefeitura da Cidade de Hamamatsu, Hamamatsu-shi Kyouiku An Inkai
Shidouka (Comitê de Educação da Cidade de Hamamatsu– Setorde Orientação),
e Kyouiku Soudan Gurupu (Grupo de Aconselhamento Educacional) e
Gaikokujin Kodomo Kyouiku Shienshitsu (Repartição de Ajuda à Educação da
Criança Estrangeira), 30 de junho de 2006.

AnalisandooestudodeWatanabeesuaequipe(1995)
sobre o movimento migratório de trabalhadores estrangeiros
do Japão, em particular, sobre as questões educacionais das
crianças brasileiras da cidade de Hamamatsu, vê-se que,
neste município, as medidas emergenciais não se resumiram
às políticas de inserção escolar. No estudo de Watanabe,
encontram-se relatadas diversas ações sociais implantadas no
seio das escolas japonesas e da comunidade local desde o ano de
1990, ano da homologação da Reforma da Lei. Por exemplo, em
1990, foi elaborada uma coletânea sobre conversação simples
em japonês-português; também foi implantado pelo Comitê de
Educação de Hamamatsu um programa especial de atendimento
e entrosamento de crianças estrangeiras com crianças japonesas
retornadas ao Japão após vivência no exterior, e criadas salas de
ensino de japonês e de português para crianças brasileiras. Em
1991, foram encaminhados às escolas japonesas, atendentes
falantes da língua portuguesa para atuarem como intérpretes; em
fevereiro de 1992, foi distribuído para todas as escolas japonesas
da cidade um manual contendo os recados escolares traduzidos

54 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
para o português destinado aos pais dos alunos brasileiros; e,
em fevereiro de 1993, 14 escolas japonesas desenvolviam um
trabalho de orientação de crianças estrangeiras por professores
destinados para tal fim pela Prefeitura da cidade.
O estudo da equipe de Watanabe mostra, assim,
que, na cidade de Hamamatsu, desde o início do movimento
migratório, as crianças brasileiras migrantes foram acolhidas
nas escolas públicas japonesas, de nível primário e ginasial,
ainda que o seu acolhimento não fosse legalmente compulsório;
além do mais, desde a chegada das primeiras crianças brasileiras
são desenvolvidas ações sociais coordenadas tanto por setores
públicos como por órgãos não-governamentais, tendo como alvo
as famílias migrantes e os problemas de aprendizagem escolar
das crianças, a sua adaptação ao Japão e a sua readaptação após
o retorno ao Brasil.
Em pesquisa de campo desenvolvida entre 2006 e
2007, em quatro escolas públicas de Hamamatsu e a dois projetos
comunitários desenvolvidos por voluntários, constatou-se que o
trabalho social iniciado em 1990 se perpetuava nos dias atuais
ao longo de quase duas décadas. E embora nos termos da lei
não houvesse indícios de uma solução para o problema da não
obrigatoriedade escolar, na prática, a adaptação das crianças
brasileiras inseridas nas escolas japonesas continuava sendo
motivo de grande preocupação.
Em visita ao Comitê de Educação de Hamamatsu,
observou-se que este atualmente não somente incentiva como
também orienta as famílias brasileiras residentes na localidade
quanto aos procedimentos de matrícula nas escolas públicas
japonesas, notadamente de Ensino Fundamental. Para tanto, é
mantida uma funcionária brasileira que, juntamente com uma
funcionária peruana, desempenha, dentre outras funções, a
de fornecer orientações gerais e específicas sobre educação
escolar aos pais e às crianças brasileiras em português ou em
espanhol para as famílias de outros países da América Latina.
Seguramente, os impactos de tal política de inserção podem
ser observados nos índices de matrícula, os quais, entre 1990

9 junqueira&marin editores 9 55
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
e 2006, revelaram um aumento de 15,36 vezes em termos de
crianças estrangeiras, e de 21,07 vezes, em termos de crianças
brasileiras (cf. Quadro 3).
Ainda dentro dos esforços da administração
local, a Prefeitura de Hamamatsu participa do movimento
em prol da aprovação do pedido de determinação do direito
à obrigatoriedade escolar para as crianças estrangeiras de
famílias trabalhadoras em contexto de migração no Japão.
Conforme consta do Relatório da Assembleia das Cidades
com Concentração de Estrangeiros (2006), evento do qual a
Prefeitura da cidade de Hamamatsu fez parte, foi aprovada a
“Petição de Controle da Reforma Resultante das Assembleias
das Cidades com Concentração de Estrangeiros”, por meio da
qual é solicitada ao governo central a determinação do direito
e da obrigação da criança estrangeira que permanecer no
país por mais de 90 dias de receber educação e a providência
de ambientes apropriados necessários à implantação da
obrigatoriedade da educação à criança estrangeira. A respeito
do assunto, até o início do ano de 2008, o governo japonês não
havia apresentado seu parecer final, mas, no dia 11 de janeiro
de 2007, declarou ao Jornal Nihon Keizai que medidas estavam
sendo preparadas para tornar obrigatório o acesso à escola aos
filhos de estrangeiros com visto de longa permanência, devido
principalmente ao interesse em estimular a convivência das
famílias estrangeiras com a comunidade local, evitar abusos e
prevenir a criminalidade (cf. JORNAL INTERNATIONAL PRESS,
de 20 de janeiro de 2007).

O direito à política curricular: igualitária


assimilacionista ou plural diferencialista

Para Sacristán (2002), depois do direito ao acesso


à escola, “a primeira acepção da justiça está em dispensar uma
igualdade de tratamento [...] na distribuição dos bens que são
essenciais, considerando-se a todos por igual” (p. 250). E, neste
sentido, dentre os cinco momentos de sentido da igualdade,

56 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
insere a igualdade de tratamento interno representada pelo
“direito de receber uma educação de igual qualidade: mesmos
professores, currículos, meios técnicos e condições ambientais”.
Assim, para ele, o significado de igualdade implica “desenvolver
políticas curriculares que garantam um currículo semelhante
para todos em relação a seus conteúdos, assim como condições
equiparáveis para seu desenvolvimento” (p. 251).
Na visão de Candau (2008), para tratar da
problemática da igualdade-diferença e dos direitos humanos em
um mundo marcado por uma globalização neoliberal excludente,
a primeira questão a ser respondida deve ser: afinal, somos iguais
ou somos diferentes? A partir desse questionamento, Candau
discute as várias abordagens do multiculturalismo e explica que,
na abordagem do multiculturalismo assimilacionista, parte
se da afirmação de que vivemos numa sociedade multicultural
e todos devem se integrar na sociedade incorporando-se à
cultura hegemônica. Nesta perspectiva, na educação, promove
se uma política de universalização da escolarização, e todos são
chamados a participar do sistema escolar. Na abordagem do
multiculturalismo diferencialista, por outro lado, a ênfase está
no reconhecimento da diferença; e, para garantira expressão das
diferentes identidades culturais presentes num determinado
contexto, são garantidos espaços em que estas possam se
expressar (CANDAU, 2008, p. 50).
Com o intuito de esclarecer qual tipo de tratamento
(se igualitário ou diferencialista) é dado à criança brasileira no
Japão, foram realizadas visitas às escolas públicas japonesas da
cidade de Hamamatsu tanto de nível primário como ginasial. Ao
longo da investigação, primeiramente, observou-se que, após
serem matriculadas, as crianças migrantes são encaminhadas
para as séries correspondentes à sua idade e, desse modo,
iniciam sua vida escolar igualmente como toda criança de
nacionalidade japonesa. Visto que não existe reprovação por
aproveitamento no sistema educacional japonês, em princípio,

9 junqueira&marin editores 9 57
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
todas as crianças migrantes inseridas nas escolas japonesas
seguem naturalmente de uma série a outra até concluírem o
Ensino Fundamental juntamente com seus colegas de classe.
Neste sentido, pode-se dizer que, ao serem inseridas nas escolas
públicas, as crianças estrangeiras são acolhidas por uma política
educacional que considera-as iguais a todas as demais crianças
japonesas e que busca garantir um currículo semelhante em
relação aos conteúdos.
Até aqui, o estudo mostrava, em linhas gerais, os
modos pelos quais as crianças brasileiras eram inseridas nas
escolaspúblicasjaponesasadespeito desua nãoobrigatoriedade.
Porém, este não esclarecia sobre os motivos pelos quais elas
abandonavam a escola. Em busca de uma compreensão sobre
as causas da evasão escolar, procurou-se uma resposta na
literatura japonesa, e, ao final do levantamento bibliográfico
verificou-se a existência de um arsenal de estudos acerca do
problema das crianças migrantes publicados em forma de livros
individuais, coletâneas ou relatórios de pesquisa (SASAKI, 2000;
ISHII, E., 2000; MURATA, 2000; IKEGAMI, 2001; ISHII, R., 2003;
SAKUMA, 2005; SHIMIZU, M., 2006; SHIMIZU, H., 2006; TANADA,
2006; MIYAJIMA, 2007, e outros). Em todos eles, observou
se um destaque aos problemas de aprendizagem das crianças
migrantes, em especial, das crianças brasileiras e, sem variação,
é apontada como causa a falta de domínio suficiente da língua
local necessário para a aprendizagem dos conteúdos escolares
nas escolas japonesas. E, como solução, os primeiros trabalhos
recomendavam a necessidade de priorização do ensino da
língua japonesa nos currículos escolares; e, nos últimos, havia
uma divergência de opiniões entre “dar prioridade ao ensino da
língua local” e “dar prioridade ao ensino da língua materna”, no
caso das crianças brasileiras, o ensino da língua portuguesa no
Japão.
Ao retomar a pesquisa de campo nas escolas
japonesas, verificou-se que levados pelos resultados das

58 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
pesquisas, o governo local e os agentes comunitários decidiram
enfrentar o problema da aprendizagem das crianças migrantes
com ações educativas dando prioridade ao ensino da língua
japonesa. Certamente, é em consequência disto que, em
todas as escolas públicas de Hamamatsu com determinado
número de crianças estrangeiras, notadamente de brasileiras,
são desenvolvidos programas educacionais envolvendo
voluntários e professores japoneses contratados pela Prefeitura
especificamente para o ensino do idioma local.
Na escola japonesa, em princípio, em obediência ao
sentido de igualdade, todas as crianças devem permanecer em
classe junto com seus colegas para estudar as matérias do currículo
comum. Contudo, devido às dificuldades de aprendizagem
resultantes do não domínio da língua local, excepcionalmente,
a criança migrante é autorizada a assistir somente as aulas nas
quais o conhecimento do idioma não é essencial, como as de
Matemática, Artes, Inglês, Música, Fundamentos Domésticos,
Educação Física; e enquanto os alunos japoneses da classe
assistem às aulas de Redação, Caligrafia, História, Geografia,
Ciências, etc., as quais requerem um domínio mais avançado da
língua local, a criança migrante desloca-se para as salas especiais
para participar individualmente ou em pequenos grupos das
aulas de língua japonesa em nível de alfabetização. Desse modo,
nas escolas públicas de ensino primário e ginasial, a prática do
ensino da língua japonesa para as crianças estrangeiras tem
notadamente prioridade sobre o ensino das matérias, e nas salas
especiais, os professores dão prioridade ao desenvolvimento
das habilidades de compreensão, comunicação, leitura e escrita
do idioma japonês.
Assim, nas visitas às escolas, verificou-se que a
criança migrante, de fato, é retirada da sala de aula e encaminhada
para as salas especiais. Nas escolas de nível primário, de modo
geral, as crianças estrangeiras são agrupadas para serem
alfabetizadas, e nas escolas de nível ginasial, enquanto algumas

9 junqueira&marin editores 9 59
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
se alfabetizam, outras são atendidas individualmente por
professores japoneses para tratar das dificuldades referentes
aos conteúdos escolares. Desse modo, em um contexto
concretamente complexo, na escola pública japonesa onde se
inserem crianças migrantes brasileiras, o currículo comum se
desenvolve em paralelo a um currículo plural.
Em termos gerais, pode-se dizer que a Educação
Fundamental no Japão apóia-se em princípios específicos da
abordagem do multiculturalismo diferencialista, pois reconhece
as diferenças culturais e permite à família a escolha entre a
escola japonesa ou a escola brasileira. No que diz respeito
especificamente à escola japonesa, as políticas educacionais, a
priori, embora reconheçam a sociedade multicultural, tentam
fixar seus princípios em uma abordagem assimilacionista,
promovendo a integração das crianças migrantes na cultura
hegemônica. Primeiramente, esta integração se dá por meio
de sua inserção nas classes conforme sua idade, do mesmo
modo como se procede com qualquer criança japonesa e,
em seguida, por meio da garantia ao direito de receber um
currículo semelhante para todos. Em resposta, quando as
crianças migrantes mostram que não podem compartilhar dessa
“igualdade interna”, as políticas curriculares japonesas reagem
implantando programas de alfabetização na língua japonesa.
Assim fazendo, em lugar de oferecer o currículo comum eleito
como instrumento de justiça e patrocinador da igualdade, a
escola japonesa termina por oferecer um currículo plural para
atender de imediato às diferenças de necessidades das crianças
migrantes e, de imediato, alcançar os princípios da igualdade de
condições de receber uma educação de qualidade para todos.
Ou seja, de uma perspectiva multicultural assimilacionista,
desloca-se para uma perspectiva multicultural assimilacionista
diferencialista.
A análise até aqui desenvolvida, embora tenha
permitido visualizar as bem intencionadas políticas de

60 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
intervenção implantadas pelo governo local na tentativa de
dirimir os problemas de aprendizagem das crianças brasileiras
migrantes, objetivamente, pouco auxiliam na compreensão do
fenômeno da evasão escolar.

A escuta sensível das crianças brasileiras

Para compreender melhor a situação escolar das


crianças brasileiras inseridas nas escolas públicas japonesas, foi
realizado um trabalho de escuta junto a 18 crianças, adolescentes
e jovens brasileiros do curso primário, ginasial, secundário e
universitário de instituições educacionaisjaponesas. Dentre elas,
havia 12 crianças que iniciaram seu processo de escolarização
no Brasil e que, na época da pesquisa, frequentavam a escola
japonesa e o Projeto Hamakko da Prefeitura de Hamamatsu de
ensino da língua local. As crianças revelaram que ao chegarem
ao Japão, inicialmente, frequentaram uma das escolas brasileiras
tendo em vista a adaptação ao país; mas, algum tempo depois,
por vontade própria ou de seus pais, transferiram-se para a
escola japonesa por considerá-la o local apropriado para a
aprendizagem da língua local, cuja importância apóia-se em
aspectos utilitários como a “sobrevivência humana”, a “relação
social (fazer amigos)” e “o desvio do trabalho operário”.
Nas entrevistas, todas as crianças contam que,
logo após terem sido inseridas na escola japonesa, na série
conforme sua idade, pelo fato de desconhecerem por completo
a língua local, foram encaminhadas às classes especiais para
o desenvolvimento da oralidade, leitura e escrita do japonês.
Dentro do processo de aquisição da língua japonesa, todos
relatam suas difíceis experiências por consequência da não
compreensão do que lhes era dito e da falta de dispositivos
linguísticos para expressarem seus pensamentos e sentimentos
no idioma japonês ou, pelo menos, em inglês. A despeito das
dificuldades, todas elas informam que contaram com a mediação

9 junqueira&marin editores 9 61
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
de colegas japoneses, principalmente por parte das meninas, e
também da família, especialmente por parte dos pais.
Na investigação acerca das condições de
aprendizagem dos conteúdos escolares em nível primário e
ginasial, as 12 crianças entrevistadas informaram que seu
desempenho escolar no Brasil, até antes de sua migração, não
era ruim: “as minhas notas no Brasil eram boas” (C1-BN); “até
que eu era bom aluno. Lá, eu não tirava nota abaixo da média
[...] Eu sempre tirava 8, daí pra cima” (C3-LN). Mas, agora, na
escola japonesa, todas elas comentam sobre seu rendimento
insatisfatório. Elas explicam que “eu consigo me comunicar
um pouco bem com eles, mas a única coisa que eu não consigo
é nas atividades” (C2-SC); “nas primeiras provas, eu consegui
2” (C1-BN). C12-RY conta o quanto é complicado o estudo dos
conteúdos escolares na escola japonesa mesmo para quem “sabe
falar japonês” e acrescenta:

“Sei, é claro que eu sei falar japonês, sei me virar quando é preciso,
só que quando o professor está falando, eu não entendo o quê que
ele fala, não sei do que ele está falando, que matéria [...] A melhor
nota que eu tirei? Acho que é Inglês [...] Acho que vai assim, de
Inglês, foi até 14. Acho que no resto, eu tiro tudo zero!” (C12-RY).

C6-MR sintetiza a situação dos estudantes


da
brasileiros seguinte forma:

“Eu acho que o que a gente mais aprende da escola japonesa é


realmente o idioma, porque as matérias, a gente não consegue
acompanhar realmente muito. A gente entende, que nem Inglês, e
Matemática, dá até pra você acompanhar. Daí, mais por a gente
fazer amizade, com os japoneses, [...], conhecer a cultura. Essas
coisas assim”(C6-MR).

UB1-FL, na ocasião do estudo era uma estudante


brasileira do Ensino Superior que chegara ao Japão com nove

62 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
anos de idade, quando cursava a 3a série do Ensino Fundamental
em uma escola privada no Brasil. Ela lembra que ao ser inserida
na escola japonesa,
“não sabia falar um A em japonês. [...] Eu ficava só sentada na
classe, ouvindo, só que não sabia nada. Escreviam no quadro,
eu não sabia nada. Tinha um caderno, assim, na minha frente,
mas como que eu ia escrever se eu não sei o que está escrito, nem
nada, assim, o que o professor está falando? No começo foi bem
difícil pra mim porque como minha mãe é professora, eu sempre
tive que tirar nota boa. Aí, eu estudava bastante, né? Aí, quando
cheguei aqui no Japão, como que eu vou estudar? Fiquei com
medo, né? Se eu tirar nota baixa, eu não vou passar de série, nem
nada. Eu estava pensando isso, no começo” (UB1-FL).

Ao iniciar os estudos da língua japonesa, contudo,


conta que o aprendizado primeiro do alfabeto silábico japonês
(hiragana) não a ajudava no acompanhamento imediato
das aulas das matérias e que, naquele momento, aprender
rapidamente a língua era vital. Em pouco tempo, descobriu que
o ensino era obrigatório, “por isso, não precisa passar ou não
passar nas aulas”. Aliás, quando tirava boas notas, seus amigos
brasileiros perguntavam: “Ah, você sempre tira nota boa, hein,
por quê? Aqui, a gente não precisa disso, dá pra passar de ano”.
Mais tarde, quando concluiu o Ensino Fundamental e seus pais
decidiram que deveria prestar os exames para cursar o Ensino
Secundário, argumentava que não queria seguir os estudos
porque “eu vou trabalhar na fábrica. Eu não quero, todo mundo
vai trabalhar na fábrica, por que eu vou pro colegial?”Do mesmo
modo, seus amigos a questionavam: “você vai pro colegial fazer
o que lá? A gente veio aqui no Japão pra trabalhar na fábrica,
trabalhar. Ué, o que você quer fazer lá? Ou vai sair do colegial e
não vai fazer mais nada, né? E depois, a gente vai trabalhar na
fábrica mesmo. Fazer o quê?”
Em poucas palavras, o estudo mostrou que no campo
da educação, há quatro elementos em relação que se destacam

9 junqueira&marin editores 9 63
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
no processo de escolarização das crianças brasileiras migrantes
no Japão, os quais são cruciais à análise da problemática
inserção escolar versus evasão escolar. Estes elementos são: a
relação entre obrigatoriedade escolar e aprovação automática,
e a relação entre escola e trabalho. Ambos as relações vinculam
se diretamente às causas da evasão escolar e, por isso, merecem
especial atenção nas discussões que tratam das políticas
educacionais direcionadas às crianças brasileiras de famílias
trabalhadoras residentes no Japão.

Conclusão

O trabalhador brasileiro (não qualquer


trabalhador, mas aquele favorecido direta ou indiretamente
pela descendência japonesa), interposto entre um país com
“carência de trabalho” e outro com “carência de mão-de
obra não qualificada”, insere-se no movimento migratório de
reposição populacional, juntamente com sua família, incluindo
se os filhos. No Japão, independentemente de sua qualificação e
grau de escolaridade, de um modo geral, o migrante brasileiro
é enquadrado na categoria de trabalhador de empreitada, cujo
sistema de trabalho é temporário, instável e com elevado risco de
desemprego. Quando de volta ao seu país de origem, ocorre que,
sem registros em sua carteira de trabalho, concorre a vagas de
emprego com jovens inexperientes e o salário percebido logo se
revela desproporcional àquele recebido no Japão e insuficiente
para a reestruturação da vida no Brasil. Assim, na terceira fase
do movimento migratório, o trabalhador brasileiro, perante as
dificuldades de sua (re)inserção no mercado de trabalho em
seu país de origem, conforme mencionado por Tajima (2005, p.
16), reintegra-se no movimento de volta ao Japão e aí se inicia
um processo de fixação definitiva. E, neste contexto, os filhos,
com ou sem descendência japonesa, com ou sem vivência de
escolarização no Brasil, grosso modo, são crianças migrantes e,

64 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
na escola ou fora dela, situam-se em um contexto de diversidade
cultural e linguística.
Os resultados do presente estudo mostraram, em
síntese, que as crianças brasileiras com vivência escolar no
Brasil antes da migração, iniciam sua vida escolar no Japão
em uma escola brasileira visando a sua imediata adaptação ao
país de migração em um contexto escolar cuja língua é aquela
de seu domínio. Em seguida, solicitam ao Comitê de Educação
seu ingresso na escola japonesa com o objetivo principal de
aprender a língua do país onde agora residem e respaldados
por um desejo de inserção na sociedade. Porém, logo se tornam
cientes do grau de dificuldade de sua apreensão; ainda assim,
em pouco tempo, desenvolvem o uso da linguagem oral, mas
este domínio, de certo, não é suficiente para a relação social com
os professores do mesmo modo que com os saberes escolares.
Assim, por longos anos, as crianças sobrevivem sem conexão
com o universo da sala de aula e dos saberes por causa do não
domínio suficiente da língua local; neste contexto, por mais que
se desenvolvam, este desenvolvimento sempre se encontra em
um estágio de atraso irrecuperável para o acompanhamento dos
estudos escolares.
Tendo já vivenciado a escola no Brasil, as crianças
sabem que lá, a não apreensão dos conteúdos resulta em uma
reprovação, mas sua experiência na escola japonesa leva-as
à compreensão de que a progressão depende meramente da
frequência. Com isso, mesmo assistindo às aulas de algumas
matérias, as crianças brasileiras logo percebem que os princípios
de estruturação do currículo especialmente pensado para
elas subordinam objetivos pedagógicos que não privilegiam o
conhecimento dos conteúdos escolares. Mais adiante, deduzem
o quanto a escola japonesa é ligada à função de controle
(disciplina, frequência, etc.) e desligada da função instrumental,
de formação do sujeito cultural e cognitivamente escolarizado.
Neste processo, muitas crianças migrantes abandonam a escola

9 junqueira&marin editores 9 65
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
e permanecem fora dela a espera da chegada da idade para a
sua inserção no mercado de trabalho; outras prosseguem até
a sua conclusão graças ao sistema de aprovação automática,
apresentando um desenvolvimento elementar do uso da língua
local e um não aprendizado dos conteúdos escolares. Aqui, pode
se dizer, está a razão principal para o seu afastamento. Assim,
parte delas se evade; e a outra parte resiste permanecendo na
escola alheia a tudo até a sua conclusão, à espera de sua inserção
no trabalho após a conclusão do ensino obrigatório.
Ao concluir o ensino obrigatório, as crianças devem
prestar, na língua japonesa, rigorosos e competitivos exames
de seleção para o Ensino Secundário. E, neste momento, as
crianças migrantes deparam-se com o dilema entre prestar os
exames ou inserir-se no mercado de trabalho, nas fábricas como
seus pais. Prestar os exames significa apresentar provas de seu
aprendizado nas matérias essenciais, e estar disposto a pagar
o curso porque, mesmo no setor público, o ensino secundário
não é gratuito. Quanto às crianças matriculadas nas escolas
brasileiras, após a conclusão do Ensino Fundamental, parte delas
prossegue os estudos em nível médio na escola brasileira; outra
parte insere-se no mercado de trabalho fabril. Na fábrica, todos
eles, indistintamente, enquadram-se como jovens trabalhadores
migrantes, apenas com a diferença de que há aqueles que não
podem se comunicar com os chefes japoneses e aqueles que
apresentam certo domínio oral da língua japonesa e detêm
certa vantagem sobre os primeiros. De todo modo, nenhum dos
grupos detêm as condições básicas para os prosseguimentos
dos estudos superiores, no Brasil ou no Japão.
Assim, quando as crianças brasileiras mostram o
entendimento de que seu futuro está previamente programado
para o trabalho na fábrica e que, para a sua inserção no mercado
laboral, o aprendizado escolar não é um requisito importante,
revelam a sua compreensão sobre a relação entre educação e
trabalho no Japão. No trabalho, visto que a aprendizagem dos

66 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
conteúdos escolares e o da língua local são irrelevantes, ou pelo
menos, secundária, as crianças intuem que a educação escolar
não tem utilidade prática e funcional para a sua vida profissional,
portanto, o vínculo entre educação e trabalho é fraco e,
evidentemente, dispensável. Aqui, notadamente, encontra-se o
segundo fator motriz da evasão escolar.
Assim, os dois aspectos, de aprovação automática
do sistema educacional japonês e de fraca vinculação entre
educação e trabalho, regulam, na criança brasileira migrante
no Japão, a sua “relação com o saber” e, por conseguinte, a sua
relação com o aprender e com o seu desejo de saber, conforme
conceitos desenvolvidos por Charlot (2000).
Entretanto, tal como afirma Sacristán (2002, p. 61
62), em uma sociedade capitalista,
saber ler e escrever, ou ser incapaz de fazê-lo, introduziu
uma das divisões sociais mais determinantes nas sociedades
modernas quanto a essa capacidade de acesso: a que se produz
entre os alfabetizados e os analfabetos. Uma divisão que
estabelece a fronteira entre a inclusão e a exclusão social.

E saber ler e escrever em japonês significa, no


mínimo, dominar os cinco sistemas diferentes, ou seja, o
hiragana, katakana e kanji, e as letras romanas e os algarismos
indo-arábicos, todos eles aprendidos pelas crianças japonesas
ao longo do ensino primário. Especificamente quanto aos
kanji, o Ministério da Educação do Japão, em 1947, oficializou
a lista contendo 1.900 kanji essenciais ao uso em documentos,
jornais e revistas, dos quais, 996 são ensinados durante os
seis anos do curso primário, assim distribuídos: 76, no 1° ano;
145, no 2° ano; 195, no 3° ano; 195, no 4° ano; 195, no 5° ano
e 190, no 6° ano. O restante é ensinado gradativamente até o
término do Ensino Secundário; e aqueles que prosseguem os
estudos de nível superior, de três anos, aprendem mais outros
kanji,principalmente aqueles utilizados na literatura técnica ou
científica.

9 junqueira&marin editores 9 67
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Em uma sociedade moderna, cuja língua é
indubitavelmente de difícil aquisição, a criança brasileira
migrante no Japão flutua entre ser “letrado” e ser “analfabeta”
e, nos limites dessa fronteira, sobrevive sem expectativa entre
a sua caótica inserção escolar e a predestinada exclusão social.
Em síntese, o estudo revelou que o problema da
educação das crianças brasileiras migrantes no Japão se liga a
três aspectos característicos da educação japonesa: a aprovação
automática, a política curricular assimilacionista e a fraca
vinculação entre educação e trabalho. Estes aspectos são fortes
reguladores da relação da criança com o saber e o aprender, e
levam-na ao abandono da Escola Fundamental, dificultam a sua
aprovação no Ensino Secundário e encaminham-na à precoce
inserção no mercado de trabalho fabril.
Ao longo dos 20 anos da história da migração, as
crianças brasileiras, ainda que fora da esteira educacional e das
possibilidades de uma carreira profissional, eram perfeitamente
reguladas pelos bons ganhos do trabalho nas fábricas. Em meados
do ano de 2008, entretanto, o Japão perdeu sua força econômica
devido ao enfraquecimento das exportações e a posterior queda
da produção industrial por conta do saneamento do mercado
financeiro dos Estados Unidos; e esta brusca alteração afetou a
vida dos trabalhadores migrantes e, por conseguinte, a educação
de seus filhos. Neste contexto, em fevereiro de 2009, Julieta
Yoshimura, presidente da Associação das Escolas Brasileiras no
Japão, declarou que “as escolas brasileiras perderam metade dos
alunos desde o início da atual crise econômica, já que, afetados
pelas demissões em massa, muitos pais ficaram sem condições
de arcar com as mensalidades. Segundo um levantamento feito
pela Associação das Escolas Brasileiras no Japão (AEBJ), até
novembro do ano passado o número de alunos em 40 das cerca
de 90 escolas brasileiras no país chegava a 6.300. Desse total,
cerca de 3 mil já deixaram as escolas” [...]“40% dessas crianças
já voltaram para o Brasil, 10% foram para escolas japonesas e

68 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
50% estão em casa” (cf. JORNAL INTERNATIONAL PRESS, 12 de
fevereiro de 2009).
Assim, com a crise econômica desencadeada em
meados de 2008, os jovens brasileiros passaram a conviver
com a nova situação entre o desemprego dos pais e a própria
necessidade de rápida imersão no mercado de trabalho japonês.
Neste cenário, seguem à margem do mundo do trabalho aqueles
que abandoram a escola ou não aprenderam a língua japonesa
durante sua estada no Japão; e aqueles concluintes do ensino
obrigatório na escola japonesa, estes podem ser absorvidos pelo
mercado, porém, sem o Ensino Secundário, ocupam apenas os
cargos mais inferiores da escala de ocupações.
Respeitada a complexidade da situação atual,
ao final, é importante dizer que o estudo buscou responder à
questão “por que as crianças brasileiras migrantes se inserem
e depois abandonam a escola pública japonesa?” orientando a
discussão para uma direção que ultrapassa os limites do ensino
da língua. Certamente, ainda há muito que ser compreendido
sobre a educação das crianças brasileiras migrantes no Japão,
e que a hipercomplexidade do problema não conduz a soluções
simples, principalmente quando novas configurações sociais,
políticas e econômicas redefinem o movimento migratório de
trabalhadores brasileiros.
Enfim, é claro que a falta de uma legislação específica
que trate da obrigatoriedade escolar voltada para as crianças
estrangeiras residentes no Japão, na atualidade, ainda causa
certo estranhamento. Não obstante, caso a obrigatoriedade
venha a ser democratizada em resposta às exigências dos direitos
universais, necessariamente ela deverá vir acompanhada de uma
reflexão aprofundada e séria sobre “qual é a finalidade da escola”
para a criança migrante no Japão. Isto porque, paradoxalmente,
ela irá destinar-se a crianças e jovens, filhos de trabalhadores
migrantes, que, no contexto do mundo globalizado, foram
“importados” para o trabalho fabril, para o suprimento de

9 junqueira&marin editores 9 69
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
uma mão-de-obra não qualificada oriunda de um país onde há
excesso de força de trabalho dessa natureza, conforme afirma
Tajima (2005). No contexto da migração, lamentavelmente, a
garantia, em lei, dos direitos à educação não é por si suficiente,
pois que, na prática, existe um conflito em torno do sentido da
escola e, exatamente por isso, os filhos dos imigrantes, com ou
sem ela, continuam nos corredores do trabalho laboral, no setor
industrial do país. E só por este motivo, este assunto merece
continuar sendo pensado e com muita seriedade. 3

Referências

ASSEMBLEIA DAS CIDADES COM CONCENTRAÇÃO DE ESTRANGEIROS, 2005,


Tokyo. Relatório. Tokyo: [s.n], 2006.

BERQUÓ, E. Prefácio. In: CASTRO, Mary Garcia. Migrações internacionais:


contribuições para políticas. Brasília: CNPD - Comissão Nacional de População
e Desenvolvimento, 2001, p. 11-2.

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Atendimento consular a


brasileiros no exterior. In: CASTRO, Mary Garcia. Migrações internacionais:
contribuições para políticas. Brasília: CNPD - Comissão Nacional de População
e Desenvolvimento, 2001.

CANDAU, V. M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões


entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 13, n.
37, p.45-56, jan.-abr. 2008.

CARVALHO, J. S. F. de. As noções de erro e fracasso no contexto escolar:


algumas considerações preliminares. In: AQUINO, Julio Groppa. Erro e fracasso
na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1997, p. 11-24.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Tradução de


Bruno Magne. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

70 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
DEMAZIÈRE, D. et al. Desemprego: Abordagens institucionais e biográfica.
Uma comparação Brasil, França, Japão. Março, 2000. Disponível em: <www.
moodle.univ-ab.pt/moodle/file.php/974/moddata/forum/7920/451804/
ArtigoAESE.pdf>. Acesso em: 04 fevereiro 2009.

DESEMPREGO chega a 4,4% no Japão. Disponível em: <http://www.


ultimosegundo.ig.com.br/economia/2009/01/30/desemprego+chega+a+44
+no+japao+3717921.html>. Acesso em: 05 fevereiro 2009.

EDUCAÇÃO. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/bbc/2005/05/28/


ult2363u3175ihtm>. Acesso em: 28 maio 2005.

EDUCAÇÃO. Jornal Yomiuri Shinbun. Tokyo, Japão, 1 ago. 2007.

EDUCAÇÃO. Jornal International Press, Japão, 20jan. 2007.

ESCOLAS brasileiras perdem 50% dos alunos por causa da crise. Disponível
em: <http://www.ipcdigital.com/ver_noticiaA.asp?descrIdioma=br&codNotic
ia=15610&codpagina=16223&seçao=739>. Acesso em: 26 março 2009.

FEIJÓ, C.A.; CARVALHO, P. G. M. de. Desemprego nos países da OCDE: Posições


em debate. Econômica, v. I, n. II, p.57-78, dez. 1999. Disponível em: <www.uff.
br/cpgeconomia/v1n2/3-carmem-paulo.pdf>. Acesso em: 04 fevereiro 2009.

FREITAS, C. E. S. de. Precarização do trabalho e estrangeiros no Brasil em


um contexto neoliberal. In: CASTRO, Mary Garcia. Migrações internacionais:
contribuições para políticas. Brasília: CNPD - Comissão Nacional de População
e Desenvolvimento, 2001, p. 525-544.

HAINO, S. Nihon ni okeru burajiru kaigai shijou kyouiku seisaku no yuukousei ni


kansuru shikou: zainichi burajirujin gakkou ninka seido to sotsugyou shikaku
nintei shaken. Gakkou kyouikugaku kenkyuuronshuu. N° 13, Tokyo Gaku
Geijutsu Daigaku, março 2006, p. 17-30.

IKEGAMI, S. (Org.) Burajirujin to kokusaika suru chiiki shakai: kyojuu, kyouiku,


iryou. Tokyo, Japão: Meiseki, 2001.

9 junqueira&marin editores 9 71
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
ISHII, E. Parents’ attitudes/beliefs towards language education for Portuguese
speaking children in Japan. In: ________. (Org.) Bilingualism of Japanese Brazilian.
The Seventh International Symposium. Anais. Tokyo, Japão: Bonjinsha, 2000, p.
116-42.

ISHII, R. Questões presentes acerca da educação das crianças brasileiras nas


escolas públicas japonesas. In: ICCLP Publications, n° 8: Simpósio Internacional
de Direito Comparado: Trabalhadores brasileiros no Japão. Anais. Tokyo, Japão:
Universidade de Tokyo, 2003, p. 150-6.

JAPÃO: TAXA DE DESEMPREGO. Disponível em: <http://www.indexmundi.


com/pt/japao/taxa_de_desemprego.html>. Acesso em: 04 fevereiro 2009.

KITAWAKI, Y. Medidas relativas aos estrangeiros da cidade de Hamamatsu: em


busca de uma sociedade de coexistência. In: ICCLP Publications, n° 8: Relatório
do Simpósio Internacional de Direito Comparado: trabalhadores Brasileiros no
Japão, 26 a 29 de agosto em São Paulo, 29 a 31 de agosto em Londrina. Tokyo,
Japão: Universidade de Tokyo, 2003, p. 144-149.

MISAWA, T. Palestra de abertura do Simpósio Internacional de Direito


Comparado: Os trabalhadores brasileiros no Japão. In: ICCLP Publications, n°
8: Simpósio Internacional de Direito Comparado: Trabalhadores brasileiros no
Japão. Anais. Tokyo, Japão: Universidade de Tokyo, 2003, p. 139-149.

MIYAJIMA, T. (Org.) Gaikojin jidou-seito no shuugaku mondai no kazokuteki


haikei to shuugaku shien nettowaku no kenkyuu. Relatório de pesquisa. Japão,
2007.

MIYAJIMA, T; OOTA, H. Gaikokujin no kodomo to Nihon no Kyouiku: fushuugaku


mondai to tabunka kyousei no kadai. Tokyo: Japão: Editora da Universidade de
Tokyo, 2005.

MURATA, Y. (Org.) Zainichi keiken Burajirujin-Perujin: kikoku jidou seito no


tekiou joukyou - Ibunkakan kyouiku no shiten ni yorubunseki. Relatório de
Pesquisa. Japão, s.n., 2000.

72 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO II
OOTA, H; TSUBOYA, M. Gakkou ni kayowanai kodomotachi: “fushuugaku” no
genjou. In: MIYAJIMA, Takashi; OOTA, Haruo (Orgs.). Gaikokujin no Kodomo to
Nihon no Kyouiku: fushuugaku mondai to tabunka kyousei no kadai. Tokyo,
Japão: Tokyo Daigaku Shuppankai, 2005, p. 17-36.

SACRISTÁN, J. G. Educar e conviver na culturaglobal: as exigências da cidadania.


Traduzido por Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SAKUMA, K. Tabunka ni hirakareta kyouiku ni mukete. MIYAJI, T; OOTA, H.


Gaikokujin no kodomo to Nihon no kyouiku: fushuugaku mondai to tabunka
kyousei kadai. Tokyo, Japão: Tokyo Daigaku Shuppankai, 2005, p. 217-238.

SALIM, M. Panorama ruim puxa queda nas principais bolsas da Ásia. Gazeta
Mercantil, de 30 de janeiro de 2009. Disponível em: <http://investnews.net/
GZM_News.aspx?Parms=2316302,1,20,2>. Acesso em: 5 fevereiro 2009.

SASAKI,M.Nikkeiburajirujinno bairingarizumu. In:ISHII, E. (Org.) Bilingualism


of Japanese Brazilian. The Seventh International Symposium. Anais. Tokyo,
Japão: Bonjinsha, 2000.

SAYAD, A. A imigração: ou os paradoxos da alteridade. Traduzido por Cristina


Murachco. São Paulo: Edusp, 1998.

SHIMIZU, H. (Org.) Newcomer jidou seito no shuugaku-gakuryoku-shinro


no jittai haaku to kankyou kaizen ni kansuru kenkyuu. Relatório de pesquisa.
Japão, 2006. Tomo I.

SHIMIZU, M. Newcomer no kodomotachi: gakkou to kazoku no nichijou sekai.


Tokyo, Japão: Keisou, 2006.

TAJIMA, H. A evolução do movimento migratório decassegui brasileiro no


Japão: uma retrospectiva dos últimos 20 anos. Iberoamericana, v. XXVII, n° 2,
p. 13-14, 2005.

TANADA, Y. Osaka no newcomer koukousei: Seitou deeta kara. In: SHIMIZU,


H. Newcomerjidou no shuugaku-gakuryoku-shinro no jittai haaku to kankyou
kaizen ni kansuru kenkyuu. Relatório de pesquisa, 2006, p. 98-123. Tomo I.

9 junqueira&marin editores 9 73
CAPÍTULO II PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
WATANABE, M. (Org.) Decassegui nikkei burajirujin: shuurou to seikatsu.
Tokyo, Japão: Meiseki, 1995. Tomo I.

74 9 junqueira&marin editores 9
U PARTE
POLÍTICAS I
E PRÁTICAS V
EDUCACIONAIS

i CAPÍTULO III j
A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO PÓS-REFORMA:
INSTITUCIONALIZAÇÃO E REGULAÇÃO NO BRASIL E
NA ARGENTINA

Roselane Fatima Campos¹⁷

Introdução

Os
educacional dos anos
aqueles
debates
1990,
que
têm
sobre
analisam
apontado
a educação,
os para
efeitos
aemdaespecial
emergência
reforma

de novos marcos regulatórios que reorientam dimensões


importantes da política educacional, tais como financiamento,
currículos, gestão e trabalho docente.
Esses efeitos são também observados no âmbito
da Educação Infantil e sua inclusão na Educação Básica, cujo
processo de institucionalização tem sido marcado por um
amplo leque de iniciativas locais. Esse processo expressa tanto
a adequação dos sistemas de ensino às novas regras, leis e
normativas federais, como também revela a multiplicidade de
estratégias colocadas em ação pelos diversos agentes dos vários
sistemas municipais para levar a efeito a tarefa que lhes cabe,
qual seja, a garantia do direito à educação das crianças pequenas.

9 junqueira&marin editores 9 75
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Nesse sentido, a regulação da Educação Infantil não
é apenas objeto do conjunto de regulamentações e orientações
advindas do poder central, mas é também resultante dos
contextoslocais, cujasdeterminações históricas, sociais, políticas
e econômicasmodulamaçõeseiniciativaspolíticas, configurando
arranjos institucionais variados com repercussões em aspectos
como cobertura de atendimento, formação docente, organização
do trabalho do professor, recursos financeiros, propostas
curriculares, focalização de populações a serem atendidas,
para citar alguns. Dessa perspectiva, podemos compreender
que um aspecto como “ampliação de vagas” pode ser objeto
de estratégias diferenciadas e/ou combinadas utilizadas pelas
redes municipais de educação: por exemplo, ampliação do
quadro de profissionais que atuam diretamente com as crianças,
privilegiando a contratação dos chamados “auxiliares de sala”;
ou ampliação dos convênios com organizações sociais, podendo,
ainda, ser resultante da combinação dessas duas estratégias
(CAMPOS, 2008).
Com o intuito de contribuir com os estudos sobre as
novas regulações no campo da Educação Infantil, este trabalho
tem como objetivo apresentar os primeiros resultados de uma
pesquisa que trata de conhecer os novos marcos regulatórios
que orientam a Educação Infantil em quatro países do Mercosul
(Brasil, Argentina, Chile e Uruguai). De modo específico,
apresentamos dados que explicitam as estratégias políticas
adotadas pelos governos brasileiro e argentino, no que tange ao
atendimento das crianças de 0 a 3 anos, destacando as novas
configurações que orientam as relações entre o Estado e a esfera
privada constituída, em especial, pelas chamadas instituições
sem fins lucrativos.
Para análise da política educacional implementada
nesses países, recorremos à abordagem do “ciclo de políticas”,
tal como proposto por S. Ball (SHIROMA, CAMPOS; GARCIA,
2005; MAINARDES, 2007). Recorremos também ao conceito
de regulação, conforme proposição de Maroy e Dupriez (2000),

76 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
para bem compreender as relações entre as esferas públicas e
privadas e, de modo especial, a ação do Estado e as ações dos
sujeitos locais.
Este trabalho apresenta, inicialmente, uma breve
análise dos principais marcos legais que orientam as políticas
para a Educação Infantil no Brasil e na Argentina para, em
seguida, analisar os efeitos desses marcos nas políticas adotadas
pelos governos de ambos os países.

O contexto da produção da política – uma breve


análise da regulamentação que orienta as políticas de
Educação Infantil

As reformas educacionais da década de 1990,


tanto no Brasil como na Argentina, tiveram seus fundamentos
redefinidos em função das diretrizes que orientam a reforma
dos Estados, em especial pelos preceitos do new gerencialism.
Em ambos os países, os novos marcos regulatórios decorrentes
da reforma estatal orientaram as novas configurações dos
sistemas educacionais, marcadamente pela articulação entre
as esferas público-estatal e privada, esta última representada
pelas chamadas organizações sociais. Sem dúvida, conforme
indicam estudos (CENOC, 2004; PIERO, 2005; ABONG, 2005),
o campo educacional tem sido espaço privilegiado de ação
das organizações sociais, que passam a assumir a execução de
programas ou serviços financiados por recursos públicos.
Esse processo de transferência de serviços do
Estado para organizações sociais pode ser observado na própria
regulamentação produzida pelas leis gerais de educação de
ambos os países e, de modo particular, naquelas que orientam
as políticas de Educação Infantil¹⁸. No caso brasileiro,
encontramos já no artigo 18 da LDB 9.394/96, que trata da
composição dos sistemas municipais de ensino, a indicação

9 junqueira&marin editores 9 77
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
que autoriza a incorporação das instituições privadas nas
redes públicas de Educação Infantil. Note-se que isso não se
aplica ao Ensino Fundamental e Médio, caracterizado apenas
pelas instituições mantidas pelo poder público¹⁹. No artigo
20, a lei esclarece os tipos institucionais compreendidos como
privados, incorporando-se nestes as categorias: privadas com
fins lucrativos e aquelas sem fins lucrativos, do tipo comunitário,
confessional e filantrópico. Posteriormente, na seção II, que
trata especificamente da organização da Educação Infantil, o
artigo 30 prevê sua oferta nas duas modalidades: creches para
crianças entre 0 e 3 anos e pré-escola para aquelas entre 4 e 6
anos. Observe-se, no entanto, que, apenas para a “modalidade
creche”, admite-se a oferta em “entidades equivalentes”.
Embora a LDB 9.394/96 crie essa categoria
“entidades equivalentes”, não especifica quais seriam estas,
possibilitando interpretações variadas sobre esse termo. Três
fontes de motivação parecem se conjugar nesse termo: a) a
presença significativa de crianças atendidas em entidades
cofinanciadas com recursos da assistência social e aincapacidade
de os sistemas municipais absorverem essas matrículas de modo
imediato; b) as pressões dos movimentos sociais de creches que
almejavam manter suas identidades e formas organizativas,
embora integradas aos sistemas; c) a incorporação dos novos
marcosregulatórios advindos da reforma do Estado e as pressões
do chamado “ajuste neoliberal”, que pressupunha a transferência
da execução dos serviços educacionais para “organizações da
sociedade civil”, reservando-se ao Estado apenas o papel de
regulador.
Passados mais de uma década da promulgação da
LDB 9.394/96, evidencia-se com mais clareza o que a letra da
lei continha em estado embrionário: a crescente segmentação
entre creches e pré-escolas, materializada pela predominância
de instituições públicas nesta última, ao passo que na primeira
encontramos presença significativa de instituições privadas sem

78 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
fins lucrativos. Essa “divisão de tarefas”, na gestão da Educação
Infantil, é ratificada pela política de financiamento implantada
com a aprovação da Lei 11.424/2007, que regulamenta a criação
do Fundeb.
Examinando a legislação que orienta o sistema de
educação nacional na Argentina, constatamos que também lá
a Lei da Educação Nacional (Lei 26.206/2006) prevê apenas
para a Educação Inicial seu provimento por instituições de
“gestão estatal” e de “gestão privada”, estando compreendidas
nesta última categoria, além dos estabelecimentos privados no
sentido estrito, também “[...] as organizações sem fins lucrativos,
sociedade civil, grêmios, sindicatos, cooperativas, organizações
não governamentais, organizações de bairros, comunitárias e
outros” (artigo 23).
Especificamente no que tange à educação das
crianças de 45 dias a 2 anos, determina-se, de acordo com as
“particularidades locais ou comunitárias”, a adoção de outras
estratégias voltadas ao atendimento infantil, em programas
articulados de desenvolvimento social, saúde e educação,
oferecidos no âmbito da educação não formal dirigidos às
crianças e suas famílias (artigo 22).
Analisando a situação da Argentina, Lassalle
destaca:

Vencendo resistências e dificuldades, avançamos na inclusão


de mudanças na formação dos educadores infantis, na criação
de jardins maternais (para crianças de 0 – 3 anos) e escolas
infantis (para crianças de 0 – anos) dentro do âmbito educativo,
assim como na definição de alguns documentos curriculares.
No entanto, este crescimento não esteve conduzido pela gestão
do Estado e das autoridades educativas através do planejamento
e exercício de políticas públicas claras em prol do direito a
educação desde o nascimento, mas sim pelo setor privado e o
terceiro setor (LASSALLE, 2005, s/p, grifos meu).

9 junqueira&marin editores 9 79
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Para mais bem compreendermos as dimensões
envolvidas na normatização da Educação Infantil em ambos
os países, é importante relembrar que ambas as leis foram
aprovadas e implementadas como peças importantes da
reforma educacional dos anos 1990; na medida em que criaram
as bases jurídicas necessárias à descentralização da gestão dos
serviços educativos da esfera nacional para Estados, províncias
e municípios, flexibilizando também os marcos regulatórios
que normatizavam a oferta desses serviços pelas instituições
públicas.
Coadunados a estes princípios, os dois países
têm ampliado a oferta de atendimento às crianças pequenas,
em especial daquelas entre 0 e 3 anos, “alargando” as redes
públicas de ensino pela inclusão das chamadas “instituições
sociais sem fins lucrativos” na execução destes serviços. Parece
não haver novidade nesse cenário, uma vez que a Educação
Infantil, historicamente, tanto no Brasil como na Argentina,
foi objeto de ações assistenciais. No entanto, essas redes de
instituições cofinanciadas pela assistência social conviviam de
modo paralelo, sem articulações entre si, apartadas tanto pelas
origens de classe de seus destinatários como pelas concepções
e pressupostos metodológicos que orientavam sua atuação.
Extrapolando o que diz Faria (2005, p.1025) para a realidade da
Argentina, concordamos quando se refere que

A grande novidade e o grande desafio que aparece com a LDB


é a junção, na primeira etapa da Educação Básica, das crianças
de 0-3 anos com as de 4-6 anos: duas redes diferentes, duas
carreiras diferentes, dois diplomas diferentes, duas secretarias
diferentes, junção também dos direitos de usuários distintos: os
adultos trabalhadores (mulheres e homens, rurais e urbanos) e
as crianças de 0 a 6 anos.

Essa nova composição das redes tem produzido


também a emergência de novas problemáticas. Consideradas

80 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
por muitos como compondo um “terceiro setor” – o “público
não estatal”, essas instituições vêm se tornando, cada vez
mais, objeto de regulações produzidas nos diversos níveis dos
sistemas (federal e municipal, no caso da Educação Infantil).
Sua integração aos sistemas de ensino vem também mudando a
natureza destes, que deixam de ser públicos, no sentido estrito,
para assumir uma composição híbrida, dada por esta nova
articulação entre as esferas públicas e privadas²⁰.
No entanto, esse processo – de conjugação de
instituições públicas e privadas em um sistema público de
educação – é eivado de contradições, pois se, por um lado, as
creches são a modalidade educativa mais sujeita à presença de
variados tipos de instituição privada; por outro, sua integração
aos sistemas municipais de educação pode significar também
maior fiscalização e controle, por parte do poder público,
sobre elas. Relembramos que os municípios dispõem de
autonomia para estabelecer critérios e efetivar processos
de credenciamento, acompanhamento e fiscalização das
instituições de Educação Infantil. Enfim, se considerarmos
ainda que é tarefa dos municípios a definição dos termos para
a realização de ações de transferência de recursos públicos, na
forma dos convênios para execução de serviços, podemos inferir
que a Educação Infantil, no atual contexto, é também a etapa da
Educação Básica mais sujeita às regulações locais.
Com essa breve incursão pelas leis nacionais
que reorientaram a educação no Brasil e Argentina na última
década, pretendemos evidenciar alguns elementos produzidos
no campo da política que repercutiram diretamente nas formas
de organização e de regulação dos sistemas de ensino e, de
modo particular, na educação das crianças pequenas. Se não há
dúvida que a inclusão da Educação Infantil como uma unidade
pedagógica, integrada ao âmbito da Educação Básica em ambos
os países, representou um avanço importante em termos da
garantia dos direitos das crianças pequenas à educação; por

9 junqueira&marin editores 9 81
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
outro lado, constata-se que o processo vem sendo caracterizado
pela frágil presença e determinação do Estado.
Colabora, para essa situação, o processo de
descentralização administrativa implementada pelos dois países
no bojo de suas reformaseducacionais. O efeito mais visível desse
processo foi a fragmentação e segmentação do sistema educativo,
na medida em que passaram a conviver estruturas educativas
diferentes, sob a responsabilidade jurídica dos diferentes entes
da federação. Nesse sentido, a Educação Infantil tem sido uma
das mais prejudicadas, pois sua efetivação depende basicamente
da capacidade gestionária dos municípios, de sua orientação
política e dos recursos orçamentários de que dispõe para
essa etapa da Educação Básica (SAVIANI, 2008; PONCE, 2006;
CERISARA, 2002). Na seção seguinte, apresentaremos alguns
elementos de análise focalizando em especial o atendimento das
crianças de 0 a 3 anos.

Da visibilidade das crianças à invisibilidade das


estatísticas: quantas são? Onde estão?

Como muitos autores já o mencionaram, vivemos


o “século das crianças”, apesar dos paradoxos que cercam essa
nova visibilidade da infância (SARMENTO, 2007). A educação
das crianças pequenas tem se tornado objeto crescente dos
discursos oficiais, das ações dos organismos multilaterais, da
nova filantropia empresarial e das ações locais que, ressentidas
dos longos períodos de ausência do Estado, criaram seus
próprios mecanismos de provimento desse direito básico.
Como já mencionamos anteriormente, observamos,
tanto na política educativa brasileira como na Argentina, uma
forte tendência a incorporar, nos sistemas formais de ensino,
as etapas da Educação Infantil mais próximas da escolarização
obrigatória, quais sejam, aquelascompreendidas pela faixa etária
entre 4 e 5 anos. Os dados de cobertura (taxas de matrículas)
nos dois países tendem a confirmar essa tendência.

82 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
No caso da Argentina, o Estado tem fortemente
induzido, por força de lei e pela política de financiamento,
a obrigatoriedade e a universalização para os anos finais da
Educação Inicial. Desde 1993, a classe de cinco anos foi instituída
como obrigatória, resultando que educação desta faixa etária
está, praticamente, universalizada.
De acordo com o documento “El nível inicial en la
última década: desafíos para la universalización” (DINIECE,
2007, p. 9), mais de 90% das crianças com idade de cinco anos
cumprem a obrigatoriedade estabelecida por lei; esse percentual
diminui quando se trata das salas de 3 e 4 anos, constatando-se,
em 2005, uma cobertura de 30% e 60%, respectivamente. Ainda
de acordo com o mesmo documento, a oferta educativa para as
classes de três e quatro anos, em especial para a última, está em
crescente processo de expansão.
Apesar dos avanços, o acesso à Educação Infantil
na Argentina é também fortemente constrangido pela origem de
classe social. De acordo com dados coletados junto ao Diniece,
o acesso à educação continua sendo um privilégio das classes
sociais mais favorecidas economicamente: os 40% mais ricos
da população têm taxas mais elevadas de frequência à Educação
Infantil do que os 40% mais pobres. Respectivamente, na classe
de três anos, essas taxas são de 47,2% para os mais ricos contra
24,7% mais pobres; na classe de quatro anos, 76,6% e 56,4%
respectivamente; por fim, na classe de 5 anos, 96,9% e 88,2%
(Fonte: DINIECE, 2007, p. 17). De acordo com Malajovich (2006),
apesar dos esforços e depois de doze anos de promulgada a Lei
Federal de Educação, que estabeleceu a obrigatoriedade para a
última seção da educação inicial, a classe de cinco anos,

[...] Segundo as estatísticas oficiais cursa a última seção do nível


inicial 91,8% das crianças, porém esta porcentagem não é igual
para todos os setores sociais. Assim, frequentam as salas de
cinco anos apenas 87,1% das crianças que pertencem ao setor
mais pobre de nossa sociedade, 94,8% dos setores médios e

9 junqueira&marin editores 9 83
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
95,2% dos que pertencem aos 20% mais ricos” (MALAJOVICH,
2006, p. 106).

Ainda de acordo com a autora, a atenção às


crianças menores de três anos é inexistente, até mesmo para
as estatísticas oficiais do Ministério da Educação, “[...] que não
tem registro acerca da quantidade de crianças que frequentam
estabelecimentos sob sua dependência” (MALAJOVICH, 2006, p.
104).
No Brasil, também temos problemas com a captação
de dados, pois o censo escolar realizado pelo INEP registra
somente informações das instituições cadastradas, ficando
excluídas desse processo grande número de instituições que
atendem, em nível educativo, crianças pequenas. Valemo-nos
para este estudo também dos dados proporcionados pelo IBGE
(2008). De acordo com dados desse último, a taxa de frequência
às creches por crianças de 0 a 3 anos é de apenas 17,1%. Já na
pré-escola, essa taxa é mais expressiva: 77,6%. Os dados de
crescimento de matrículas em creche (2004 – 13,4%, 2005 –
15,5% e 2007 – 17,1%) mostram-nos um crescimento pouco
significativo nessa modalidade, especialmente se considerarmos
a demanda social existente. O Relatório do Censo Escolar/2007,
divulgado pelo INEP, também registrou um crescimento das
matrículas na creche, sendo essa “[...] a única etapa da Educação
Básica que registra aumento de matrículas em 2007 quando
comparada com 2006, na ordem de 10,6%, passando de 1,4
milhões para mais de 1,5 milhões de matrículas” (INEP, 2007).
Esse crescimento é associado ao Fundeb e à extensão do
financiamento público para as instituições sem fins lucrativos,
desde 2007.
Em situação similar àquela observada na Argentina,
no Brasil, também o acesso à Educação Infantil revela severos
processos de segmentação social. A origem de classe social é
um fator determinante tanto na frequência à creche como na

84 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
pré-escola. Conforme os dados do IBGE, constantes na Tabela
1, podemos verificar o apartheid social existente, por exemplo,
entre os segmentos mais pobres e mais ricos quando se trata da
creche.

Tabela 1 – Matrículas na Educação Infantil,


considerando o fator classe social.
Renda per capita Creche Pré‐escola

Até ½ salário mínimo (SM) 10,8% 71,4%

Mais de ½ até 1 SM 18,7% 79,7%

Mais de 1 SM a 2 SM 26,7% 86,3%

Mais de 2 SM a 3 SM 32,0% 91,8%

Mais de 3 SM 43,6% 94,7%

Fonte: IBGE (2008).

Por estes dados, constatamos que, seja no Brasil, seja


na Argentina, as políticas de Educação Infantil não têm atingido
seus objetivos de “equidade” ou justiça social. Como nos alerta
Malajovich (2006, p. 104), essas questões põem no “[...] centro
do debate o tema do nível inicial como primeiro escalão de um
projeto de exclusão ou de inclusão educativa”.
Para complementar essa análise, recorremos
também aos dados relacionados à dependência administrativa
das instituições que têm sido frequentadas pelas crianças²¹.
De acordo com informações oficiais do governo
argentino, no ano de 2005, “[...] sete de cada dez crianças que
cursavam o nível inicial, o faziam no setor estatal” (DINIECE,
2007). Todavia, se considerarmos de forma desagregada os
percentuais por faixas etárias atendidas, constatamos que

9 junqueira&marin editores 9 85
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
41,62% das crianças de três anos frequentam alguma instituição
privada; esse percentual decresce na medida em que cresce a
idade: 33,7% de quatro anos, reduzindo-se significativamente
para 13,19% na idade de cinco anos.
No Brasil, encontramos dados semelhantes. De
acordo com o IBGE (2006), em 2006, 57,7% das crianças em
idade entre 0 e 3 anos frequentavam alguma instituição pública,
ao passo que 42,3% o faziam em instituições privadas; esse
percentual se inverte quando se trata da pré-escola: 73,5%
vão a estabelecimentos públicos, enquanto que 26,5% o fazem
em instituições privadas. Esses indicadores não sofreram
alterações significativas quando confrontados com os dados do
Censo Escolar de 2007 (CINEP, 2008), 42,53% das creches que
oferecem atendimento às crianças de 0 a 3 anos são de natureza
privada; já na pré-escola – de 4 a 5 anos, esse percentual decresce
substancialmente, ficando em 22,3%.
Os dados que rapidamente apresentamos ilustram
a situação da Educação Infantil nos dois países estudados,
em especial, a desvantagem observada sempre que tratamos
do atendimento às crianças com idades inferiores a três anos.
Sua análise nos permite identificar que as ações e políticas
adotadas pelos dois governos têm pontos convergentes,
embora os processos regulatórios e estratégias utilizadas sejam
diferentes. A focalização nas classes de idade mais próximas da
escolarização do Ensino Fundamental tem sido comum aos dois
países; embora observemos também estratégias e mecanismos
reguladores diferenciados, especialmente no que tange ao
financiamento e aos modos com que cada local organiza os
processos de provimento da Educação Infantil. Assim, se, no
Brasil, o financiamento abrange as creches e pré-escolas, na
Argentina, os recursos são preferencialmente destinados às
classes de cinco anos e, apenas se atendida as matrículas desse
grupo, recomenda-se o atendimento da classe de quatro anos.
Os jardins maternais, correspondentes às nossas creches, são

86 9 junqueira&marin editores 9
sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
fundamentalmente financiados com recursos da assistência
social, das comunidades, de doações de empresas e/ou
organizações internacionais.
No entanto, aqui no Brasil, o financiamento da
Educação Infantil, via Fundeb, tende a induzir fortemente a
escolarização nas redes públicas das crianças de 4 a 5 anos,
na medida em que estabelece critérios diferenciados para a
inclusão de matriculas de creches e pré-escolas no censo escolar
e no prazo estipulado para a incorporação das matrículas das
instituições conveniadas pelas redes públicas de educação²².
Nesse sentido, tanto o Brasil como a Argentina tendem a adotar
políticas que podem aprofundar a dualidade já existente na
Educação Infantil entre a creche e a pré-escola não apenas em
termos de concepção e orientação pedagógica, mas também em
termos de provimento de direitos e gestão de sistemas públicos
de educação.
Em ambos os países, acreditamos, as ações políticas
em curso tendem a institucionalizar, nos sistemas formais de
ensino, a educação pré-escolar, induzindo-se políticas no âmbito
não formal para as crianças em idades inferiores a três anos.
Porém, como veremos a seguir, ambos os países estabelecem
critérios para a formalização de convênios que tendem, cada
vez mais, a “formalizar” estas instituições, desafiando-nos a
compreender, do ponto de vista teórico e prático, essas novas
relações entre a esfera público-estatal e o setor privado.

A educação das crianças de 0 a 3 anos:


ainda objeto das iniciativas não formais?

No campo educacional, a educação das crianças


pequenas ganhou destaque com os debates sobre os direitos,
movimentos sociais em prol da educação pública e, mais
recentemente, pelos estudos e relatórios que associam percurso
escolar exitoso (rendimento e permanência sem reprovações)

9 junqueira&marin editores 9 87
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
com inserção das crianças na Educação Infantil. Isso pode nos
ajudar a compreender, entre outros fatores, o impulso dado
pelos governos da região, a obrigatoriedade dos anos finais da
Educação Infantil, aqui entre nós denominada pré-escola. Como
já mencionamos acima, essa focalização tende a repor o debate
sobre a especificidade da Educação Infantil, as funções que lhes
são atribuídas e suas articulações com o Ensino Fundamental.
Do ponto de vista da gestão das políticas educacionais, leva
nos a questionar os futuros resultados dessa opção política,
pois pode aprofundar a dualidade estrutural já existente entre
creches e pré-escolas (ou das crianças de 0 a 3anos e aquelas das
idades subsequentes).
Análises de documentos produzidos pelos governos
dos países estudados e por organismos multilaterais atuantes
na região nos mostram que, desde a década de 1990, encontram
se em ascensão, na América Latina, projetos, programas ou
ações destinados à educação das crianças pequenas e de suas
famílias. Esses programas podem ter fontes de financiamento
diversas, desde organismos multilaterais, empresas, instituições
filantrópicas a própria comunidade e também recursos públicos
(PIERO, 2005). No que tange à Educação Infantil, os acordos,
programas e metas, pactuados pelos governantes da região
latino-americana nas mais diversas “reuniões de cúpula”, têm
priorizado o atendimento socioeducativo das crianças com
idades entre 0 e 3 anos, de suas famílias, em programas do tipo
não formal (CAMPOS, 2007). Apesar das críticas já feitas por
inúmeros estudiosos sobre a efetividade social deste tipo de
atendimento (ROSEMBERG, 2002; FRANCO, 1989), conforme
mostramos anteriormente, a própria legislação educacional
resguarda a possibilidade de os Estados nacionais adotarem/
implementarem ações dessa natureza.
Não obstante a visibilidade discursiva sobre a
criança e sua educação, dispomos de poucos dados sobre o
atendimento prestado pelas instituições privadas às crianças

88 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
entre 0 e 3 anos. No Brasil, já dispomos de dados produzidos
pelo Censo Escolar com relação a indicadores de matrícula e
características do atendimento para crianças de 0 a 3 anos, de
instituições cadastradas no censo escolar. No entanto, essas
informações são parciais na medida em que não incorporam
todas as instituições privadas sem fins lucrativos que prestam
esse atendimento. Além desse problema, a categoria “privada”,
conforme consta no censo, não nos permite diferenciar as
instituições sem fins lucrativos daquelas com fins lucrativos.
Dados apresentados pelo Ministério do
DesenvolvimentoSocial(MDS,2008),nodocumento“Orientações
sobre a transição da rede de Educação Infantil financiada com
recursos da assistência social para a educação”, resultantes de
um pareamento entre os indicadores do MDS – instituições que
prestavam serviços de Educação Infantil cofinanciadas com
recursos daquele ministério, trazem informações importantes.
Das 13.627 instituições que recebiam recursos do Fundo
Nacional da Assistência Social (FNAS) em 2005, 8.859 (65%)
também constam no censo escolar do INEP, identificadas,
portanto, como instituições de Educação Infantil. Destas 8.859
instituições de Educação Infantil, 80,3% constavam no censo
como “instituições públicas”, e apenas 19,7% constavam como
“instituições privadas”. Considerando o total de matrículas
(instituições declaradas como públicas e privadas), registrou
se o número de 892.981 e, dessas, predominantemente, eram
na pré-escola, 73%, e apenas 27% de crianças frequentavam a
creche.
Os dados apresentados pelo MDS ratificam nossa
análise de que a focalização das políticas governamentais na
pré-escola (4 a 5 anos) tem sido feita à custa da exclusão ou
do “constrangimento” da oferta pública de matrículas para as
crianças de 0 a 3 anos. Observemos também que os recursos
vindos da assistência social priorizavam o grupo etário de 4 a
5 anos, corroborando, nesse sentido, os dados apresentados

9 junqueira&marin editores 9 89
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
pelo IBGE (2008) – apenas 17% das crianças em idade de 0 a 3
anos frequentam creches. Conforme o próprio relatório do MDS,
os dados surpreenderam na medida em que “[...] demonstram
que a maior parte do público de Educação Infantil, financiado
pela assistência social, freqüenta pré-escola, e não creche, como
comumente se acreditou” (DOLAGARAY, s/d, p. 1).
Vale relembrar que, aqui, no Brasil, a rede de creches
que ofereciam serviços de Educação Infantil, cofinanciadas
pela assistência social, com a aprovação do Fundeb, deixou de
receber esses recursos, passando a ser financiadas com recursos
da educação. Isso não ocorre na Argentina, uma vez que os
jardins maternais privados, embora integrantes do sistema
nacional de educação, estão vinculados predominantemente aos
programas socioeducativos do Ministério de Desenvolvimento
Social, observando-se uma diversidade de formatos e formas de
organização deste atendimento. De acordo com Dolagaray (s/d,
s/p.):

Embora a Lei Federal promova iniciativas para reforçar as


instituições privadas ou da sociedade civil para as salas de
quatro e três anos, há opacidade nos serviços do Estado para
uma parte importante da população destinatária, já que, para
muitas crianças compreendidas entre um e três anos, nada lhes
é oferecido no [âmbito] especificamente educativo, isolando
se também os serviços oferecidos pelos ministérios da saúde
daquelas oferecidos na educação.

Como mencionamos anteriormente, a inclusão das


instituiçõesprivadas semfinslucrativos, nossistemasmunicipais
de educação ou em órgão jurisdicional correspondente, tem
produzido um movimento contraditório, por um lado, marcado
pelo “alargamento” e ressignificação da esfera pública e,
por outro, por uma maior regulação do Estado sobre essas
instituições. Isso nos apresenta novas questões sobre o estatuto
de “não formal”, frequentemente atribuído a estas instituições.

90 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
De fato, se tomarmos como referência dois documentos – a Lei
26.233, que regulamenta os Centros de Desenvolvimento Infantil
na Argentina, e a Lei 11.424/2007, que regulamenta o Fundeb no
Brasil – observamos que as condicionalidades estipuladas para a
obtenção dos recursos públicos pode funcionar como indutores
de processos de adequação dessas instituições aos “modelos”
das creches públicas. Além dos documentos legais, produzidos
na esfera central do governo, os modos de funcionamento
dessas instituições também podem ser modelados pelos termos
dos convênios de prestação de serviços estabelecidos por
cada municipalidade ou jurisdição com as instituições; pelos
processos de acompanhamento e supervisão das equipes de
técnicos locais, vinculados às secretarias de educação e, por fim,
as leis e normativas que regulam a Educação Infantil em cada
município ou Estado.

Considerações finais
Essas novas configurações do campo da Educação
Infantil tornam cada vez mais tênues os limites entre público e
privado; entre formal e não formal. Na educação das crianças
pequenas, as famílias são chamadas a executarem o seu
“protagonismo”, colaborando com as instituições ou sendo alvo
também de programas educativos. Novas funções têm sido
atribuídas a estas, dilatando sua função socializadora básica.
Poderíamos nos arriscar a dizer que tendem, cada vez mais,
a se tornar unidades educadoras e executoras de políticas e
programas voltados para à educação das crianças. Essa nova
dinâmica é apresentada, mormente, como uma celebração do
protagonismo da sociedade civil, contemplando-se, desse modo,
um dos princípios basilares das reformas dos aparelhos de
Estado na América Latina: a emergência de um setor público
não estatal, a definição da educação como políticas educativas.
A quase-ausência de informações sobre os
atendimentos das crianças entre 0 e 3 anos parece nos revelar

9 junqueira&marin editores 9 91
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
também a fragilidade nos processos de regulação por parte
das diferentes esferas de governo, uma vez que a execução de
serviços por instituições privadas mediante a transferência de
recursos públicos é orientada por contratos conveniados entre
as partes. Em países como Brasil e Argentina, em que o Estado
tem assumido apenas o papel de indutor e de suplência na
execução das políticas, essa situação se agrava mais, uma vez que
a ampla autonomia dos chamados “entes federados” para criar
e gerir seus sistemas educacionais pode resultar em profundo
processo de fragmentação, impossibilitando o fortalecimento de
sistemas nacionais de educação.
A incorporação da Educação Infantil à Educação
Básica nos dois países estudados tem produzido impactos
importantes, dentre os quais, gostaríamos de destacar alguns
aspectos que, do nosso ponto de vista, estão presentes na
composição de um novo cenário: a) nas leis dos dois países, a
Educação Infantil tem sido tratada, apenas em tese, como uma
unidade pedagógica, pois na prática se intensificam processos
de segmentação entre creches e pré-escolas; b) esses processos
de segmentação criam status diferenciados e diferenciadores
em várias dimensões, dentre os quais vale destacar aqueles
relacionados a formação e trabalho docente, além de revitalizar,
no nível pedagógico, a dicotomia entre cuidar e educar; c) os
indicadores relacionados à pré-escola evidenciam a crescente
oferta pública para as classes de idade entre 4 e 5 anos, ao passo
que, para as crianças entre 0 e 3 anos, a oferta educativa faz
se de modo significativo, também por instituições não públicas;
d) observa-se, de fato, que caminhamos em ambos os países
para a articulação de redes distintas – no âmbito das creches –
caracterizadas pela presença de instituições públicas no sentido
lato, e instituições privadas financiadas com recursos públicos.
Enfim, como alerta Faria (2005, p. 1025), esperamos que o
convívio entre “vias formais” e “não formais” signifiquem “a
mais e não em vez de”. 3

92 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
Referências

ARGENTINA. Lei 26.206, de 27/12/2006. Ley Nacional de Educación. Buenos


Aires, 2006. Disponível em <www.me.gov.ar>.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS -


ABONG. ONGs no Brasil: perfil das associadas à Abong. 2005. Disponível em:
<www.abong.org.br> [acessado em 10 de março de 2009].

BARROSO, J. et al. Systèmes éducatifs, modes de régulation et d’évaluation


scolaires et politiques de lutte contre les inégalités en Angleterre, Belgique,
France, Hongrie et au Portugal: synthèse des études de cas nationales. Setembro
de 2002. [Relatório de pesquisa].

BRASIL/PR. Lei 9.394/96, de 20/12/1996. Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília: Gráfica do Senado, ano
CXXXIV, n. 248, 23/12/1996.

BRASIL/PR. Lei 11.424, de 20/6/2007. Regulamenta o Fundo de Manutenção


e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação – Fundeb. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2007-2010/2007/Lei/L11494.htm>.

BRASIL. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS/


INEP. Sinopse estatística da educação básica (2007). Brasília, 2008. Disponível
em: <http://www.inep.gov.br/basica/censo/Escolar/Sinopse/sinopse.asp>.
Acesso em: 10/04/2010.

CAMPOS, R. F. Institucionalização e regulação da Educação Infantil: um estudo


sobre as dez cidades mais populosas de Santa Catarina. Florianópolis, 2008
[Relatório preliminar de pesquisa].

CAMPOS, R. Educação Infantil e Organismos Internacionais: uma análise dos


projetos em curso na América Latina e suas repercussões no contexto nacional.
Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade
Federal de Santa Catarina. Centro de Educação. Florianópolis, 2008.

9 junqueira&marin editores 9 93
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
CENTRO NACIONAL DE ORGANIZACIONES DE LA COMUNIDAD (CENOC).
Organizaciones de la Sociedad Civil y Desarrollo Local: Un análisis de las
Organizaciones de la Sociedad Civil registradas en la Base de Datos del CENOC.
Vl Seminario Nacional de la Red de Centros Académicos para el Estudio de
Gobiernos locales. Córdoba, 2004.

CERISARA, A. B. O Referencial curricular nacional para a Educação Infantil no


contexto das reformas. Educ. Soc., v. 23, n. 80, p. 326-345, 2002.

DOLAGARAY, N. I. Tensiones en las intenciones de Universalizar la Educación


Inicial. Seminario de Educación Temprana de 0 a 3 años. Escuela de Ciencias de
la Educación-FFyH-UNC. s/d. Disponível em: <http://debate-educacion.educ.
ar/ley/Dolagaray.pdf>. Acesso em: 15/02/2010.

FARIA, A. L. G. de. Políticas de regulação, pesquisa e pedagogia na Educação


Infantil, primeira etapa da Educação Básica. Educ. Soc., v. 26, n. 92, p. 1013
1038, 2005.

FRANCO, M.A.C. Lidando pobremente com a pobreza: análise de uma tendência


no atendimento a crianças “carentes” de 0 – 6 anos de idade – 1984. In :
ROSEMBERG, F. (Org.). Creche. São Paulo: Cortez, 1989.

IBGE. Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da


população brasileira. Estudos & Pesquisas, v. 23, 2008.

IBGE. Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da


população brasileira. Estudos & Pesquisas, v. 19, 2007.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS/INEP.


Sinopse estatística da Educação Básica (2007). Brasília, 2007. Disponível em:
<www.inep.gov.br/basica/censo/Escolar/Sinopse/sinopse.asp>. Acesso em:
10/04/2010.

LASSALE, M. M. Las políticas públicas ¿alientan una educación infantil de


calidad? Dilemas, octubre de 2005, Buenos Aires. Disponível em: <http://
www.educared.org.ar/infanciaenred/dilema/>. Acesso em: 17/03/2010.

94 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO III
MAINARDES, J. Reinterpretando os ciclos de aprendizagem. São Paulo: Cortez,
2007.

MALAJOVICH, A. El nível inicial: contradicciones y polémicas. In: MALAJOVICH,


A. Experiencias y reflexiones sobre la educación inicial: una mirada
latinoamericana. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2006.

MAROY, C.; DUPRIEZ, V. La regulation das lês systèmes scolaires: proposition


theéorique et analyse du cadre en Belgique francophone. Revue Française de
Pedagogie, Paris, n. 130, p. 73-87, janvier–mars, 2000.

MINISTÉRIO DE EDUCACIÓN, CIENCIAYTECNOLOGÍA. DIRECCIÓN NACIONAL


DE INFORMACIÓN YEVALUACIÓN DE LA CALIDAD EDUCATIVA (DINIECE).
Temas de educación. El nivel inicial en la última década: desafíos para la
universalización. Año 2, n. 2, mayo/junio, 2007.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL (MDS). Secretaria Nacional de


Assistência Social. Departamento de Proteção Social Básica. Orientações sobre
a transição da rede de Educação Infantil financiada com recursos da assistência
social para a educação. Brasília, 2008.

PIERO, S. de. Organizaciones de la sociedad civil: tensiones de una agenda en


construcción. Buenos Aires: Paidós, 2005.

PONCE, R. Los debates de la educación inicial en la Argentina: persistencias,


tranformaciones y resignificaciones a lo largo de la historia. In: MALAJOVICH,
A. Experiencias y reflexiones sobre la educación inicial: una mirada
latinoamericana. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2006.

ROSEMBERG, F. Organizações multilaterais, Estado e políticas de Educação


Infantil. Cadernos de Pesquisa n° 115, p. 25-63, São Paulo, mar. 2002.

SARMENTO, M. J. Visibilidade social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS,


V. M. R.; SARMENTO, J. M. (Org.). Infância (in)visível. Araraquara, SP:
Junqueira&Marin Editores, 2007.

9 junqueira&marin editores 9 95
CAPÍTULO III PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
SAVIANI, D. Sistema nacional de educação: conceito, papel histórico e
obstáculos para sua construção no Brasil. Trabalho apresentado na REUNIÃO
ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM
EDUCAÇÃO, 31ª. Caxambu, Minas Gerais, outubro de 2008. Disponível em:
<www.anped.org.br>. Acesso em: 18/03/2009.

SHIROMA, E. O.; CAMPOS, R. F; GARCIA, R. M.C. Decifrar textos para


compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de
documentos. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 427-446, jul/dez,
2005.

96 9 junqueira&marin editores 9
U PARTE
POLÍTICAS I
E PRÁTICAS V
EDUCACIONAIS

i CAPÍTULO IV j
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL PARTICIPATIVA:
UMA DAS ALTERNATIVAS DE (RE)CONSTRUÇÃO DA
EMANCIPAÇÃO NOS ESPAÇOS EDUCACIONAIS

Elizeth Gonzaga dos Santos Lima

Introdução

As
a redefinição do papel do de
Políticas
preocupações
Estado.
Avaliação
Nas
comno
palavras
a Brasil
implantação
de Morosini
surgem das
com

(2004, p. 146), o “Estado Regulador caracteriza hoje o cenário


da produção nacional”. Esse Estado se corporifica em “Estado
Avaliador”, em todos os aspectos da realidade educacional e em
todos os níveis do sistema. É na educação superior que o impacto
dessa Política começou a ser observado, com maior ênfase na
década de 90, repercutindo nos dias atuais em todos os níveis de
ensino. Essa preocupação com a implantação de mecanismos de
avaliação foi estimulada por organismos internacionais. Segundo
Peroni (2003, p. 110), “quase todos os últimos acordos assinados
entre o Brasil e o Banco Mundial tiveram um componente de
avaliação educacional, visando verificar a efetividade das ações
geradas nos Projetos”.

9 junqueira&marin editores 9 97
CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Para Dias Sobrinho (2002, p. 35), as políticas
empreendidaspela União Europeia de ajuda financeira aospaíses
mais pobres, aqueles que sofrem atrasos em seus processos
de desenvolvimento, como exemplo, o Brasil, produziram a
necessidade de avaliações sistemáticas com o propósito de
apreciar a eficácia das intervenções e seu impacto. Destaca a
interferência técnica, política e financeira de dois Organismos:
a OCDE e o Banco Mundial. Esses organismos internacionais
não se limitam em financiar e cobrar avaliações e, também,
intervêm na imposição ideológica e na criação de competências
segundo seus interesses. A ideia de avaliação que se deriva é a
da medida, da eficiência e da produtividade educativa através de
indicadores econômicos e financeiros.
A definição de Estado Avaliador está sustentado no
modelo de controle estatal. “Estado Avaliador é uma nova forma
de coordenação e regulação dos sistemas de educação superior
e da relação entre Estado e universidade” (SANTOS FILHO, 2000,
p. 161). Com esse viés mercadológico emergem as Políticas
de Avaliação Institucional para a educação, que, em grande
parte, surgem em função de acordos firmados com organismos
internacionais, levando-se em consideração os indicadores
da educação no Brasil, que comparados com outros países em
desenvolvimento, precisavam melhorar.
Este texto discute a possibilidade de instaurar, nos
espaços educacionais, um processo de avaliação na contramão
dessalógica queestá posta. Discutimosainstauração da avaliação
institucional participativa, construída pelas universidades e
pelas escolas a partir do seu projeto pedagógico como uma das
alternativas de (re)construção da emancipação nos espaços
educacionais.
Discutir avaliação institucional, na perspectiva da
participação, implica ressignificar os princípios de participação
e de democracia; princípios que devem sustentar a avaliação
institucional. Ressignificar a democracia abre possibilidade

98 9 junqueira&marin editores 9
s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
para lidar com a complexidade cultural, social e econômica. Para
instaurar a democracia participativa, é necessário “querer se
libertar” dos conceitos que a nova ordem econômica impõe à
sociedade como a competição, o individualismo, a classificação, o
ranking e outros princípios fundamentados na ética do mercado.
A discussão dessas questõesperpassa pela discussão
dos paradigmas de regulação e emancipação construídos na
modernidade, sendo que o primeiro “tomou conta” da sociedade.
Entender esses conceitos como sustentadores dos enfoques
de avaliação é fundamental para compreensão da avaliação
institucional participativa como alternativa de reconstrução da
emancipação nos espaços educacionais.
Defendemos a avaliação institucional participativa
como uma estratégia para produção de espaços sociais
emancipatórios, que contribui para a construção de novas
subjetividades/intersubjetividades, o que possibilita mudanças
de concepções, de atitudes, das práticas e constrói sujeitos
capazes de contribuir com a transformação social. Nesse
sentido, para definir a avaliação institucional participativa, será
necessário discutir o conceito de espaço social entendido como
local de lutas entre posições diferentes o que gera conflitos
necessários para que haja mudanças de atitudes, questão que
analisaremos neste texto. Ainda discutiremos o conceito de
emancipação como construto da modernidade e que foi se
perdendo no decorrer da história à medida que os princípios
da regulação dominaram a sociedade e, portanto, é necessário
reinventar a emancipação. O terceiro conceito necessário para
compreendermos a avaliação participativa é o conceito de
participação como resultante da democracia participativa e não
da democracia representativa. A partir desses pressupostos
teóricos, discutiremos a avaliação institucional participativa
como caminho para a reconstrução da emancipação nos espaços
universitários.

9 junqueira&marin editores 9 99
CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Espaço Social na perspectiva de Bourdieu como um
campo de relações complexas necessário ao processo de
avaliação participativa

Tomamos o conceito de espaço social de


Bourdieu(2004b) para entendermos o campo da avaliação.
Esse conceito representa contribuições importantes desse
autor para o campo da avaliação na medida em que concebe o
sujeito em movimento. Entendemos esse movimento a partir
do habitus, que são estruturas adquiridas desde os primeiros
contatos familiares que vão modificando-se nas relações sociais.
O sujeito é considerado um ser ativo no espaço social e está
constantemente interagindo com o outro. Dessa forma, o espaço
social é o local da discussão e, portanto, de lutas, com forças
diferentes interagindo. Essas forças que se interagem geram
conflitos que possibilitam a reflexão. Acreditamos ser esse o
caminho para a construção de mudanças significativas. Nesse
contexto, a avaliação participativa será analisada como um
campo tensionante de lutas e disputas.
Para Bourdieu, o espaço social é o local onde as
relações entre os sujeitos se dão a partir de propriedades e
posições diferentes. Nas palavras de Bourdieu, espaço social
apresenta-se:

[...] sob a forma de agentes dotados de propriedades diferentes


e sistematicamente ligadas entre si: quem bebe champanha
opõe-se a quem bebe uísque, mas estes também se opõem,
diferentemente, a quem bebe vinho tinto; mas quem bebe
champanha tem muito mais chances do que quem bebe uísque, e
infinitamente mais do que quem bebe vinho tinto, de ter móveis
antigos, praticar golfe [...]. Tais propriedades [...] é “coisa” de
grande burguês tradicional – funcionam na própria realidade da
vida social como signos: as diferenças funcionam como signos
distintivos. [...] Em outros termos, através da distribuição das
propriedades, o mundo social apresenta-se, objetivamente,

100 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
como um sistema simbólico que é organizado segundo a lógica
da diferença, do desvio diferencial. O espaço social tende
a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de
estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizados por
diferentes estilos de vida. (grifo nosso). (BOURDIEU, 2004b,
p. 160).

Essas posições e propriedades diferentes são


definidas de acordo com o capital cultural que cada um detém
e que foi sendo construído histórica e culturalmente. Bourdieu
define capital, sustentado nas ideias de Marx, como poder e para
ele poder é dominação, portanto, quanto mais capital maior
será a capacidade de dominação. Nesse caso, no espaço social,
estão presentes vários capitais simbólicos o que leva à relação
de dominação e conflitos. Bourdieu define o campo social como:

Espaço multidimensional de posições tal que qualquer


posição atual pode ser definida em função de um sistema
multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem
aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes
distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segundo o
volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão,
segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o
peso relativo das diferentes espécies no conjunto das suas
posses. (BOURDIEU, 2004a, p. 135).

O espaço social é organizado segundo a distribuição


dos sujeitos em posições diferentes, e essas posições são
definidas de acordo com a quantidade de capital. O capital pode
estar distribuído em capital econômico, cultural e simbólico. O
espaço social traduz essas relações que se estabelecem entre
as pessoas que detêm diferentes capitais, e essas relações são
permeadas por confrontos e tensões.
A ideia de espaço social foi fundamental quando
Bourdieu(2004b) estudou o conceito de campo. Vamos explicar

9 junqueira&marin editores 9 101


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
o conceito de campo para entendermos melhor a dinâmica que
se estabelece nos espaços sociais.
Para definirmos campo, vamos tomar
metaforicamente a ideia do campo de futebol. Nesse caso,
teremos um espaço físico com sujeitos em posições diferentes,
com funções específicas, mas com regras e normas definidas,
que correm atrás de um objeto (a bola) em busca de um objetivo
comum (fazer gol). A metáfora explica com objetividade a
definição de campo proposta por Bourdieu como um conjunto
de agentes com posições definidas pela sua inserção no espaço
social, através de uma composição específica de capital. O
campo surge como uma configuração de relações socialmente
distribuídas. Os sujeitos que fazem parte do campo são dotados
das diversas formas de capital (capital cultural, econômico e
simbólico) com capacidades adequadas ao desempenho de suas
funções e estão preparados para enfrentar as lutas, conforme
afirma Bourdieu:

[...] Esses poderes sociais fundamentais são, de acordo com


minhas pesquisas empíricas, o capital econômico, em suas
diferentes formas, e o capital cultural, além do capital simbólico,
forma de que se revestem as diferentes espécies de capital
quando percebidas e reconhecidas como legítimas. Assim, os
agentes estão distribuídos no espaço social global, na primeira
dimensão de acordo com o volume global de capital que eles
possuem sob diferentes espécies e, na segunda dimensão de
acordo com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o
peso relativo das diferentes espécies de capital, econômico e
cultural no volume total de seu capital (BOURDIEU, 2004b, p.
154).

É interessante ressaltar que as relações existentes


no interior de cada campo definem-se naturalmente,
independentemente da consciência humana. O mundo social,
portanto, apresenta-se como um sistema simbólico que é

102 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
organizado pela lógica da diferença, do desvio diferencial. O
espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um
espaço de estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizado
por diferentes estilos de vida. Essas forças diferentes interagem
no espaço social travando lutas, que, para Bourdieu, são lutas
simbólicas, que podem ter duas formas diferentes, por meio
de ações de representação individuais ou coletivas. As lutas
individuais são da existência cotidiana, já as coletivas são
organizadas pela vida política. O que vemos são forças diferentes
interagindo num espaço buscando a construção do mundo real.
Segundo Bourdieu, nessas lutas, sempre existem conflitos entre
poderes simbólicos que visam impor a visão dos grupos. É a
partir desses conflitos que se organiza o próprio mundo. Assim,
podemos afirmar que os conflitos estão presentes nas relações
intersubjetivas e são necessários para provocar reflexões que
geram mudanças.
Podemos dizer que o campo é uma reunião de
agentes que seguem leis próprias com certa autonomia em
relação aos outros campos, e as relações estabelecidas entre os
campos operam como sistema de forças baseado nas relações
de dominação e conflito. As relações estabelecidas no mesmo
campo são de conquista por posições e lugares. O campo não é
constituído pelos agentes, e sim, por posições e lugares e que vão
constituir o sistema de forças. No campo de futebol, por exemplo,
trocam-se os agentes (jogadores), mas as posições continuam as
mesmas. O campo tem regras, normas e leis que legitimam as
posições em disputa, assim, os conflitos devem ser legítimos, e
os ocupantes devem obedecer as regras constituídas.
O conceito de espaço social, utilizado conforme
Bourdieu, concebe o sujeito como ocupante de uma posição
no campo em constante movimento, esse sujeito faz escolhas e
toma posições. É um ser social que tem projeto e luta por ele.
A partir do conceito de habitus, podemos pensar o sujeito em
ação. Bourdieu (2004b) diz que o habitus é um conjunto de

9 junqueira&marin editores 9 103


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
esquemas implantados desde a primeira educação familiar e
funciona como uma força conservadora no interior da ordem
social, mas que constantemente é reposto e re-atualizado ao
longo da trajetória social. Portanto, os sujeitos estão expostos a
constantes mudanças. O habitus não é algo que faz do indivíduo
simplesmente um reprodutor da sua disposição, essa disposição
pode ser mudada nas relações sociais. Essa mudança se dá a
partir da mudança de posição no espaço social. Assim, podemos
pensar a mudança a partir dos conceitos de Bourdieu e, como
vimos, ela só pode acontecer no espaço social nas lutas travadas
entre posições diferentes no campo em meio aos conflitos e,
podemos afirmar que esses conflitos são necessários para que
haja reflexão e mudanças.
No campo, ao se perceber o objeto parado, não
significa que ele esteja necessariamente em repouso, mas que
esteja em um equilíbrio dinâmico, ou seja, sobre este objeto
estejam agindo inúmeras forças que se anulam, fazendo com
que ele esteja parado. Em contrapartida, algo se movimentando
nesse campo, não significa que alguma força esteja agindo mais
que outras, massim, que não existe resistência ao movimento. No
campo de futebol, uma bola parada pode ser o instante em que
dois jogadores a disputam. No campo da avaliação, diferentes
concepções podem provocar a mesma inércia. O silêncio (a
inércia) pode indicar uma posição de disputa entre forças
diferentes ou resistência em relação ao processo avaliativo. É
preciso desencadear o conflito, colocar o jogo em ação, colocaras
diferentes posições no ataque. A tensão vai ser gerada, o conflito
será desencadeado, o que possibilita a mudança de habitus,
a reconceitualização das forças conservadoras. A avaliação
institucional, quando desenvolvida participativamente, pode ser
o caminho para essa reconceitualização.
Estudando o conceito de emancipação para
compreendera avaliação participativa
Foi só o sentido atribuído a emancipação sob condições
passadas e não mais presentes que ficou obsoleto – não a tarefa

104 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
da emancipação em si. Outra coisa está agora em jogo. Há uma
nova agenda pública de emancipação ainda à espera de ser
ocupada pela teoria crítica [...]. A guerra pela emancipação
não acabou (grifo nosso). (BAUMAN, 2001, p. 59 a 62).

As características da sociedade atual são marcadas


por grandes transformações sociais, econômicas e culturais
provocadas pelo avanço técnico-informacional e que interferem
no cotidiano das pessoas, construindo novas formas de ser e de
viver, e produz novas formas de pensar, moldando as concepções
e visões de mundo.
Quando analisamos a sociedade apenas na
perspectiva do desenvolvimento tecnológico, podemos dizer
que o projeto da modernidade atingiu seu objetivo; mas, quando
analisamos na perspectiva da libertação do ser humano, da
emancipação, podemos dizer que o projeto da modernidade não
está concluído, pois não conseguiu desenvolver plenamente a
liberdade, igualdade, autonomia e a emancipação dos sujeitos,
princípios construídos pela modernidade, que, na sua origem,
tinha como prioridade a valorização dos sujeitos a partir da
razão.
No projeto da modernidade, a emancipação ficou
esquecida. Freitas (2005a, p. 36) diz que: “A modernidade
da libertação foi, na prática, subordinada à modernidade
tecnológica”, e Santos (2000, p. 35) afirma que, se a pós
modernidade de oposição significa alguma coisa, é justamente
esse desequilíbrio dinâmico ou assimetria a favor da emancipação.
Nossa perspectiva aqui é retomar o conceito de emancipação/
libertação, construído na modernidade e esquecido nos últimos
duzentos anos, e mostrar a ascensão da regulação tecnológica.
Nesse sentido, com fundamentação em teóricos, propomos
a instauração dos princípios de emancipação. Finalmente,
sustentaremos a avaliação institucional participativa como
uma prática que pode instaurar a emancipação nos espaços da
educação.

9 junqueira&marin editores 9 105


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Regulação e Emancipação – A Lógica da Modernidade

O que escolher, então? O peso ou a leveza?


Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século
VI a. C. Segundo ele, o universo está dividido em pares de
contrários: a luz/a escuridão; o grosso/ o fino; o ser/o não ser.
Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o
claro, o quente, o fino, o ser), o outro negativo. Esta contradição
pode se aplicar à grande maioria dos conceitos, menos em um
dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza? (KUNDERA,
1999, p. 11).

Seriam a regulação e a emancipação mais uma


dupla de contrários construídos na modernidade? Então, o que
escolher? É interessante observar que, a partir dos contrários,
vão surgindo as transformações sociais, políticas, econômicas,
científicas, tecnológicas e culturais, que provocam profundas
mudanças nas relações homem/sociedade.
Analisando a história, observamos que os antigos
enveredavam pelo caminho racional a fim de responder a
pergunta “o que é a realidade?”. Buscavam, em contraposição
ao mito e as aparências, encontrar a verdade, o essencialmente
real. E chegaram a responder que o real é o ser. A pergunta dos
modernos é outra. Ao invés de indagarem sobre o real, querem
saber “como é possível o conhecimento?”, caracterizando suas
preocupações com as questões do conhecer como possibilidade
de produzir uma nova ciência, uma nova forma de sociedade,
a fim de atender às novas exigências econômicas, políticas e
sociais.
Na modernidade, o paradigma da religião é
desconsiderado em detrimento do paradigma da subjetivação
do mundo. A modernidade pretendia a emancipação do homem
como sujeito autônomo, livre e construtor de sua própria
história. Para a modernidade, conhecer é produzir verdades
indubitáveis, que libertassem o homem do apenas sagrado e

106 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
consagrado. O pensamento na modernidade deriva-se das ideias
iluministas de sujeito, razão, totalidade e liberdade.
Os princípios de eficiência, ordem e desenvolvimento
vão sendo priorizados na sociedade, e a regulação e o
desenvolvimento tecnológico passam a ser a ordem do mundo.
Dessa forma, o conhecimento que pretendia a emancipação e a
libertação dos sujeitos vai-se tornando útil para a construção
de tecnologias. Podemos afirmar que a técnica ultrapassou os
princípios éticos de valorização do ser humano e passamos a
priorizar os princípios técnicos de valorização da invenção e da
produção.

Ascensão tecnológica/regulação:
a lógica que sobreviveu

Bauman (1999, p. 85), discutindo o cenário atual,


mostra que hoje estamos todos em movimento. Estamos em
movimento mesmo estando parados. Da poltrona de nossas
casas, acessamos canais de TV, via satélites ou a cabo, saltando
para fora e para dentro de espaços estrangeiros com uma
velocidade muito superior a dos jatos supersônicos.
Nessa sociedade tecnológica de grandes
descobertas, onde tudo muda rapidamente, não dá para ficar
parado. Nas palavras de Bauman (1999, p. 86), “não se pode
‘ficar parado’ em areia movediça”. Vivemos uma sociedade de
invenção e produção. As pessoas precisam acompanhar os
avanços e os “novos modelos de produção”. É preciso se sentir
incluído e, para isso, custe o que custar tem que comprar
produtos atualizados. O que se compra hoje, em fração de horas,
já está desatualizado. E, então, é preciso comprar de novo. E a
onda é essa, comprar, comprar e comprar. Vivemos a era do
consumismo. Somos reconhecidos pelo que temos e não pelo
que somos. Freitas (2005a, p. 53) cita Tom Peters, que é apenas
um pragmático que tem de ajudar os outros a ganhar dinheiro e

9 junqueira&marin editores 9 107


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
competir no mercado, e ele diz que “se você for rápido e mudar
constantemente na velocidade em que as coisas mudam você
sobrevive. Se não tiver velocidade, o seu vizinho terá e você vai
falir”.
A conjuntura atual é marcada por um cenário
complexo, contraditório e desafiador. O desenvolvimento
tecnológico abriu caminhos para uma sociedade competitiva
que constrói sujeitos individualistas. Estamos sendo regulados
pelo mercado. Lewis Carroll, citado por Bauman (1999, p. 64),
diz: “é preciso correr o máximo que você puder para permanecer
no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr
pelo menos duas vezes mais depressa do que isso!”. Onde está a
liberdade dos sujeitos? Se, por um lado, os avanços tecnológicos
nos surpreenderam, por outro, fomos surpreendidos por eles
com a perda ainda maior da liberdade e da privacidade.
Para Freitas (2005a, p. 24 a 27), o cenário atual
caracteriza-se pelos fragmentos de incerteza. Para os pobres, a
situaçãoédramática.Odesempregoaumentadia apósdia.Favelas
ampliam-se e ficam sob controle de grupos de proteção locais.
Para a classe média, a situação não é muito mais confortável. A
implantação de altas taxas de impostos desmobiliza pequenos
produtores e até o funcionalismo público, que com isso pagam
as contas geradas pela atenção à extrema pobreza. Os mais ricos
vivem amedrontados pela violência dos empobrecidos e, com
isso, escondem-se atrás de guaritas com seguranças, mudam-se
para condomínios fechados equipados com todos os avanços no
campo da vigilância eletrônica.
Para os pobres, a ausência de trabalho os leva
à economia informal; para a classe média, que ainda detém
algum poder de empregabilidade, está colocada total incerteza
em relação à continuidade desse trabalho. A juventude está
cada vez mais sem horizontes observando os acontecimentos
e é obrigada a formar sua identidade em meio a esse caos.
Preparar-se estudando já não é mais garantia de sucesso; tenta

108 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
fugir sublimando suas incertezas nas drogas, gangues, assaltos,
violência, etc. A corrupção passa a ser uma forma de aumentar
a renda. As penitenciárias já não conseguem abrigar todos os
infratores. Convivemos a todo instante com tráfico de crianças,
de órgãos, de mulheres, sequestros e outras barbáries que fazem
parte do nosso cotidiano.
Com essa descrição dos diasatuais, podemos afirmar
que, por um lado, estamos diante de uma crise econômica do
capital e, por outro, essa crise leva a uma crise existencial.
Os sujeitos são produzidos para conviverem e sobreviverem
em meio a esse turbilhão de catástrofes, abandonando cada
vez mais os princípios humanísticos e éticos em detrimento
dos princípios técnicos. É o mundo do “salve-se quem puder”.
Perdemos o controle pelas nossas ações. “A regra tem sido a
insegurança, o consumismo, a competição e a virtualização das
relações” (FREITAS, 2005a, p. 91).
A crise do capitalismo propõe um novo capitalismo
pela onda da globalização, que aparece como uma forma mágica
para solucionar os problemas. Para Bauman:

A globalização está na ordem do dia; uma palavra da moda que


transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica,
uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios
presentes e futuros. Para alguns a globalização é o que devemos
fazer se quisermos ser felizes; para outros é a causa da nossa
infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino
irremediável do mundo, um processo irreversível; é também
um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da
mesma maneira. Estamos sendo todos globalizados – e isso
significa basicamente o mesmo para todos. (1999, p. 7).

Bauman, ainda discutindo as consequências


humanas da globalização, mostra que, no fenômeno da
globalização, há mais coisas do que pode o olho apreender. A
complexidade da insegurança existencial se assenta sob a lei

9 junqueira&marin editores 9 109


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
e a ordem. As preocupações com a segurança do corpo e dos
bens pessoais são sobrecarregadas de ansiedades geradas por
outras dimensões cruciais da existência atual – a insegurança e a
incerteza. Freitas (2005a) afirma que a incerteza cria um campo
tão aversivo que o indivíduo sente que é melhor não pensar nele
e concentrar-se no agora, com isso abre-se mão do futuro e ele
termina sendo planejado por outros, sem obstáculos.
Somos levados pela onda da globalização como
um rolo compressor que vai passando e produzindo efeitos
destrutivos da liberdade, da segurança e da solidariedade,
gerando sujeitos silenciados, resignados e conformados. A
ordem está posta e não há como fugir. É preciso resistir. Santos
(2000, p. 35) afirma: “O que existe não tem de ser aceite por
ser bom. Bom ou mau é inevitável, e é nessa base que tem de se
aceitar”.
Nesse contexto esgarçado, podemos afirmar
que estamos no seio das contradições e pressões geradas
pelas perspectivas tecnológicas/regulatórias e a libertação/
emancipação. Dessa forma, questionamos: ainda é possível
falarmos de práticas emancipatórias? É possível a construção
de sujeitos emancipados? É possível instaurar as esperanças?
Se a emancipação foi um princípio da modernidade que
não desenvolveu, é possível falar de avaliação institucional
emancipatória? Vamos nos debruçar sobre essas questões na
tentativa de nos colocarmos frente aos desafios da avaliação
participativa.

Emancipação/libertação:
“tudo que é sólido desmancha no ar”

Ameaça mais sombria atormentava o coração dos filósofos:


que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres
e rejeitassem a perspectiva da libertação pelas dificuldades que
o exercício da liberdade pode acarretar (BAUMAN, 2001, p. 25).

110 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
Marx, no século XIX, define o ambiente moderno
como aquele em que todas as relações fixas, enrijecidas, com
seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões,
foram banidas; todas as relações se tornam antiquadas antes
que cheguem a se ossificar. E terminou implacável e genialmente
convencido de que “tudo o que é sólido desmancha no ar”. E
continua:

Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de


crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são
dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se
consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiza, tudo o
que é sagrado é profano, e os homens são finalmente obrigados
a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida,
suas relações recíprocas (MARX e ENGELS, 2007, p.48).

Não negamos que, na modernidade, houve avanços


científicos, tecnológicos, econômicos e que nos valemos deles
para facilitar a vida, como a Internet, os avanços da medicina, a
tecnologia dos eletrodomésticos, etc. O que queremos discutir é
que esses avanços não sustentaram o projeto da modernidade
de igualdade, de universalidade e de emancipação dos sujeitos.
Se pensarmos os princípios de emancipação construídos no
projeto da modernidade e observarmos os problemas sociais,
como a fome, a pobreza, o desemprego, o analfabetismo,
as péssimas condições de moradia, destruição ecológica, a
violência, tudo isso nos leva a crer que o projeto da modernidade
não sustentou o seu discurso, mas contribuiu para promover
a exclusão e as desigualdades sociais. Os sonhos de liberdade,
autonomia, democracia, universalidade, produção própria do
homem, emancipação são princípios que buscavam o ideal, mas
desencantou por não ter sido concretizado. O que ficou de tudo
isso foram as frustrações.
O conceito de emancipação surge na modernidade
como “salvação” para o homem, que estaria liberto das verdades

9 junqueira&marin editores 9 111


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
construídas a partir do sobrenatural. Se, no período medieval,
a fé garantia a salvação, na modernidade, era a razão a partir
dos princípios de emancipação do homem através da ciência
e da tecnologia. Ainda Goergen (2001), analisando a trajetória
do período Medieval para o Moderno, mostra que o processo
de secularização representou também o estreitamento do
conceito de salvação e o que se passa a chamar de emancipação
é apenas aquilo que é secular, material ao homem. Da mesma
forma, a razão sofreu um reducionismo na medida em que se
restringiu sua dimensão científica ao conhecimento matemático,
predominando a quantidade sobre a qualidade. O rigor
científico era aferido pelo rigor das medições. Conhecer significa
quantificar.
Santos (2000) analisa o paradigma da modernidade
e apresenta o determinismo mecanicista como horizonte
certo de uma forma de conhecimento que pretende utilitário e
funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender
profundamente o real pela capacidade de dominá-lo e
transformar. E continua:

Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como


pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do
mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. Segundo
a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina
cujas operações se podem determinar exatamente por meio de
leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar
num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano
torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos
que o constituem. Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo
poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal
da época moderna, o mecanicismo. [...] Mas a verdade é que
a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da
transformação tecnológica do real (SANTOS, 2000, p. 17).

112 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
As análises acima vão mostrando o desenvolvimento
da modernidade com a presença de dois conceitos chaves,
a emancipação, voltada para os princípios de liberdade, e a
regulação tecnológica, priorizando os princípios técnicos em
que o conhecimento é usado apenas para o progresso, sendo que
os princípios da emancipação foram superados pela regulação.
Essa secularização do conhecimento vai produzindo um sujeito
que assume uma nova realidade em substituição à antiga visão
mágica e metafísica. Essa nova realidade está fundamentada
numa racionalidade de controle e progresso.
A razão moderna de libertação dá lugar à razão
tecnológica. Goergen (2001) analisa essa virada epistemológica
e mostra a secularização do conhecimento que adquire sentido
plenificado no transformar. A racionalidade científica torna
se o padrão do conhecimento que, associada à dimensão da
utilidade, agrega poder ao conhecimento. Com a centralidade
da razão, o esforço da emancipação tem como fundamento o
indivíduo e seus direitos, tornando-se a subjetividade o preceito
fundamental da modernidade, o que vai engendrar sujeitos que
assumem poder instituinte de uma nova realidade.
Não dá para negar as conquistas da modernidade no
campo da ciência e da tecnologia com consideráveis vantagens
para o homem; por outro lado, esse desenvolvimento técnico
informacional exigiu do homem muito sacrifício que no limite
implicou a submissão total do ser humano aos princípios de
progresso e desenvolvimento. As ideias de liberdade ficaram
subordinadas ao progresso científico e tecnológico.
Freitas (2005a), fazendo uma análise das ideologias
predominantes na modernidade, aponta a presença de dois
conceitos: a tecnologia e a libertação e termina afirmando
que “a modernidade da libertação foi, na prática, subordinada
à modernidade tecnológica” (2005a, p. 35-36). É preciso
reconstruir a emancipação e a liberdade dos sujeitos que se
perderam na história.

9 junqueira&marin editores 9 113


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Reconstruindo a emancipação/libertação

As mudanças atuais abrem possibilidades para


questionamentos sobre as formas atuais de vida; se, por um
lado, essas mudanças nos transmitem sensações de melhorias
que apaixonam e seduzem, por outro, nos causam medo, temor
e insegurança. É preciso, como diz Freitas, “reconstruir as
esperanças” pela via da modernidade da libertação. “Se algo
permanece forte no pensamento de Marx é exatamente sua
crítica da modernidade tecnológica, abrindo possibilidades para
antevermos uma nova ordem social pela via da modernidade da
libertação, interrompida” (FREITAS, 2005a, p.104). E continua:

Só devemos compreender o período atual como um “período


pós-moderno” se entendermos por pós-moderno o processo
pelo qual iremos, efetivamente, gerar uma nova ordem social
que retome as bandeiras da modernidade da libertação, na qual
o ser humano deixa de ser uma mercadoria.

Retomando Bauman (1999), reafirmamos que “a


luta pela emancipação não acabou”. Para instaurarmos práticas
emancipatórias, como a avaliação institucional participativa,
faz-se necessário recuperar valores universais de libertação,
emancipação, solidariedade e construção coletiva. Novamente é
Freitas que nos auxilia nessa análise:
Estamos precisando de acolhimento, de solidariedade, de
coletivo, de consenso negociado, provisório, mas como
construção histórica permanente. Temos de reverter esse
quadro de aposta no dissenso, no individualismo e na
competição em que o capital nos jogou com objetivo de
intensificar a exploração e maximizar lucros, motivada por
uma crise profunda do capitalismo histórico (FREITAS, 2005,
p. 107).

É necessário reconstruir os princípios de


emancipação para reconstruir as práticas de avaliação

114 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
emancipatória. Para isso, é necessário construir alternativas que
levem à reconstrução de subjetividades que saiam do silêncio,
do comodismo e estejam dispostas a lutar por uma nova ordem
social, em que a emancipação sobreponha a regulação. Freitas
(2005a) aponta como alternativas possíveis a recolocação
de duas questões. A primeira é buscar novos entendimentos
sobre a esfera da subjetividade/intersubjetividade, e a segunda
é a importância das metanarrativas como reconstrução das
esperanças e afirma que sem uma “utopística”²³, que nos
permita examinar seriamente os caminhos históricos trilhados e
projetar alternativas, não conseguiremos gerar esse mínimo de
esperança necessário para reunirmos forças suficientes (p.115).
A busca por novos entendimentos sobre a esfera
da subjetividade/intersubjetividade propõe um sujeito que
concilie o individual com o coletivo. Freitas aponta essa questão
como um desafio. Para ele, o capitalismo libera o lado individual
e competitivo (p. 113). Querendo ou não somos engendrados
por esses princípios, o desafio é como conciliar a realidade
individual e a realidade coletiva.
Santos (2000, p. 15), discutindo a reconstrução da
emancipação, afirma que a modernidade ocidental emergiu
como um ambicioso e revolucionário paradigma sociocultural,
sustentado numa tensão entre regulação e emancipação. Para ele,
os conhecimentos da modernidade ainda são dominantes, mas
devem ser substituídos por um novo conhecimento e apresenta
como alternativa o paradigma emergente desenvolvido a partir
do pilar da emancipação.
Segundo Santos (2000), o pilar da regulação, que
passou a dominar na modernidade, é constituído por três
princípios: Estado, mercado e comunidade. Para o projeto
da modernidade, esses princípios deveriam desenvolver-se
harmonicamente. Essa foi uma das promessas não cumpridas
na modernidade. Assistimos geralmente ao desenvolvimento
excessivo do princípio do mercado em detrimento do princípio

9 junqueira&marin editores 9 115


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
do Estado e da comunidade, sendo os princípios da comunidade
os mais negligenciados. Assim, esse autor destaca o princípio
da comunidade como o mais viável para promover um novo
desequilíbrio entre o pilar da regulação e da emancipação, em
favor da emancipação.
O princípio da comunidade foi, nos últimos duzentos
anos, o mais negligenciado e acabou sendo quase totalmente
absorvido pelos princípios do Estado e do mercado. O fato de
o princípio da comunidade se manter afastado, esquecido e
negligenciado fez com que este permanecesse diferente, aberto
a novos contextos em que a sua diferença pode ter importância.
É por isso que Santos (2000) apresenta esse princípio como o
instaurador de uma dialética entre regulação e emancipação, na
qual o desequilíbrio deve ser a favor da emancipação.
O contexto histórico e epistemológico que estamos
analisando mostra que, se queremos implantar práticas
emancipatórias, como a avaliação institucional participativa,
precisamos nos libertar, isto é, emancipar-nos. A grande questão
que questionamos é: queremos nos libertar? A sociedade
quer libertar-se? Essa não é uma preocupação apenas nossa.
Bauman (2001, p.23), discutindo o conceito de emancipação,
demonstra essa preocupação quando afirma: “poucas pessoas
desejavam ser libertadas, menos ainda estavam dispostas a
agir para isso, e virtualmente ninguém tinha certeza de como
a ‘libertação da sociedade’ poderia distinguir-se do Estado em
que se encontrava”. E continua apontando as causas que levam
as pessoas a não quererem se libertar:

Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente


como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas
poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o
que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório;
que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não
experimentem a necessidade de se libertar, e assim, percam
a chance de se tornar genuinamente livres. O corolário dessa

116 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes
incompetentes de sua própria situação, e devem ser forçadas
ou seduzidas, mas, em todo caso guiadas, para experimentar a
necessidade de ser “objetivamente” livres e para reunir coragem
e a determinação para lutar por isso (BAUMAN, 2001, p. 24, 25).
Reconstruir a emancipação implica a construção
de subjetividades/intersubjetividades que estejam dispostas a
usar a liberdade correndo riscos. É preciso sair do comodismo
e estar disposto a ir contra a ordem estabelecida, o que não é
fácil. A lógica da regulação, do mercado, constitui a forma de
organização da sociedade e essa lógica atravessa as instituições
educacionais. Freitas (2003, p.35) afirma que “contrariar essa
lógica é, no âmbito de nossa sociedade atual um processo possível
apenas com resistência. Isso não diminui sua importância como
possibilidade, mas alerta para seus limites”. O que não podemos
esquecer é que nossas escolhas geram consequências.
Defendemos a avaliação institucional participativa
como instrumento que produz espaços sociais emancipatórios
e pode ser uma das vias para construir novas subjetividades/
intersubjetividades, uma vez que possibilita um pensar coletivo
sobre as instituições educacionais a partir do confronto de
ideias. Como vimos com Bourdieu, esses conflitos e tensões, que
emergem nos processos de avaliação participativa, engendram
novos sujeitos com capacidade de buscar a liberdade e construir
a emancipação. Nesse sentido, a avaliação participativa está
sendo analisada como alternativa para reconstrução da
emancipação nos espaços da educação.
Avaliação Institucional Participativa:
alternativa de reconstrução das práticas
emancipatórias nos espaços educacionais
A Avaliação Participativa seria uma inovação, uma forma
de conhecimento e ação antiautoritária, à medida que, para
existir, entra em tensão com as estruturas nas quais se integra
(SANTOS 2005, p. 11).

9 junqueira&marin editores 9 117


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
A avaliação institucional participativa que estamos
analisando, se insere em um formato de avaliação que não
favorece o desenvolvimento do capitalismo global e, por isso,
não sustenta as Políticas de Avaliação, que estão apropriadas
pela nova ordem capitalista – a globalização. A avaliação
institucional participativa deve fazer parte da cultura de
avaliação das universidades e das escolas. O design e o seu
formato deve ser uma construção coletiva. Leite (2005, p. 109),
vincula a avaliação participativa diretamente à democracia forte,
discutida por Barber (1997). Para esse autor, a democracia forte
é entendida como regime de governo que se caracteriza pela
formação de uma comunidade capaz de resolver suas questões e
conflitos através de uma política de participação, de autocrítica
e de autolegislação. Uma comunidade capaz de transformar
indivíduos privados em cidadãos livres e interesses privados em
bens públicos ou comuns por meio da participação.
Ao estudar os regimes democráticos, Leite
(2005, p. 73) inicia dizendo que: “espaços de participação são
sempre espaços de conflitos e jogos de interesse e poder”. Essa
concepção corrobora com nossos estudos quando mostramos
com Bourdieu que as mudanças significativas acontecem nos
espaços sociais, locais de lutas, conflitos e tensões. Por isso,
torna-se difícil caracterizar plenamente uma democracia
participativa, princípio fundamental para o sucesso da avaliação
institucional participativa.
A democracia participativa ou forte seria o
instrumento epistemológico de um pensamento e de uma ação
política no espaço social. Analisando os estudos de Leite (2005,
p. 74) afirmamos que a avaliação institucional participativa
insere-se na perspectiva da democracia forte ou democracia
participativa. Nesse sentido, faz-se necessário criar um clima de
participação tanto individual como coletiva nos espaços sociais
para pensar alternativas de libertação. A avaliação institucional
participativa pode ser uma alternativa para pensar a libertação
e/ou emancipação nos espaços educacionais.

118 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
A avaliação institucional participativa está
fundamentada na abordagem de um enfoque de avaliação
sustentado na democracia participativa em que há participação
direta dos sujeitos nas tomadas de decisão.
O debate sobre a participação e a democracia não
é novo, desde a antiguidade tem-se discutido as formas de
participação do povo nas decisões sociais, o que consideramos
como novo é o debate sobre a avaliação institucional
participativa como um instrumento que produz espaços sociais
democráticos e constrói a emancipação. Esses espaços, como
vimos com Bourdieu, é um campo de lutas e conflitos necessário
ao processo de mudanças significativas e engendramento de
novas subjetividades, sujeitos capazes de sair do silenciamento
e ir para o enfrentamento. Esse processo constrói a libertação e/
ou emancipação. Leite nos ajuda a definir de qual participação
estamos falando:

Não estamos falando, aqui, de participação em movimentos


sociais, ou nas esferas da democracia representativa, e sim, da
prática da democracia direta em uma agência educativa central
do Estado moderno – na universidade, especialmente na
universidade pública, participação propiciada pela prática da
avaliação institucional. Sabe-se que se tem uma universidade
democrática em uma sociedade que não é suficientemente
democrática. Porém, assume-se que a participação política
não é uma inclinação natural do homem, mas um processo
pedagógico em permanente construção através de sucessivas
aprendizagens (LEITE, 2005, p. 77).

A avaliação institucional participativa que estamos


defendendo não está sustentada pela teoria liberal e, portanto,
não se sustenta na democracia representativa, e sim, na
democracia forte ou participativa. Leite (2005) afirma que:

É a democracia forte que qualifica o processo de avaliação, seus


méritos, instrumentos e os próprios participantes. Isto é, a AP,

9 junqueira&marin editores 9 119


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
propositadamente, está desconectada dos modelos de avaliação
apoiados em teoria liberal. Com certeza em seu espectro
amplo a AP tem muito em comum com modelos de avaliação
que também denominam participativos, ou emancipatórios,
ou qualitativos, como aqueles centrados em estudos de casos.
Diferencia-se destes modelos porque, intencionalmente,
aprofunda a vivência da democracia forte, direta, com todas as
limitações que lhe são inerentes e muitos dos ganhos políticos
que lhe são devidos. A avaliação do tipo AP, no entanto, não
constitui um modelo pronto, ela é avaliação em processo
(LEITE, 2005, p. 110).

Dessa forma, a avaliação institucional participativa


não é um modelo pronto, mas está em processo, em construção.
É um processo que precisa ser construído pelos sujeitos,
individualmente, e pelas instituições.
Não defendemos a perspectiva da avaliação
participativa com ufanismo e nem pretendemos cair no
democratismo. Como afirma Freitas (texto digitado, p. 9), “A
qualidade não é optativa no serviço público. É uma obrigação”.
A diferença do enfoque da Avaliação Institucional Participativa
(AIP) também está na implantação da qualidade negociada
como princípio que deve sustentar o processo avaliativo. Todo
o processo deve ser negociado, inclusive, qual a qualidade
se busca, sem cair no falso conceito de que tudo que se faz é
qualidade. O padrão de qualidade precisa ser construído e
negociado coletivamente.
O design da AIP prevê que a discussão sobre a
qualidade seja desenvolvida coletivamente no momento de
negociação e elaboração da proposta de avaliação. Assim,
qualidade é o que de melhor a escola pode fazer nas condições
existentes: “Não é um dado de fato, não é um valor absoluto, não
é adequação a um padrão ou a normas estabelecidas a priori e
do alto. Qualidade é transação, isto é, debate entre indivíduos
e grupos que têm interesse em relação à rede educativa”

120 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
(BONDIOLI, 2004, p. 14). O padrão de qualidade deve ser
definido pelo conjunto da escola. Deve partir de uma reflexão
local e seus compromissos têm que ser vistos como ponto de
partida e não de chegada.
Nesse sentido, o olharlançado durante o processo de
avaliação institucional participativo é sobre o projeto pedagógico
da instituição que é a peça-chave para a avaliação e deve ter os
mesmos princípios de construção coletiva. As metas traçadas
pela instituição serão o parâmetro para orientar a avaliação.
Metaforicamente, o projeto pedagógico é o caminho que está
ou será percorrido, a avaliação é o olhar continuado para essa
caminhada, buscando a melhoria. Os resultados da avaliação
institucional devem iluminar a caminhada, avançando nos
pontos fortes e redimensionando os fracos com as proposições
de todos os sujeitos envolvidos no processo.
Por isso, Leite (2005, p. 111) afirma que “no enfoque
da AP não existem peritos (experts) em avaliação que conduzem
o processo. Os principais destinatários ou grupos de referência
serão os próprios atores do processo de avaliação institucional”.
A metodologia deve ser ativa, retórica e dialógica,
expressada em diferentes maneiras, com diferentes tempos
de realização. Envolve discussão e reflexão sobre o que fazer,
como agir e como fiscalizar a ação. Desenvolve atividades de
sensibilização de toda comunidade acadêmica refletindo os
princípios de coparticipação num processo auto-educativo, por
meio de encontros, reuniões, etc, proporcionando espaços de
discussão e reflexão da prática. Segundo Leite (2005, p. 112),
um dos elementos essenciais da metodologia da AP constitui
o processo da cogestão formal (quando estabelecida nos
regimentos e estatutos da instituição) de diferentes segmentos
de atores da comunidade acadêmica ou de atores que não
pertencem diretamente a ela. O produto resultante desse
enfoque de avaliação é a autonomia da instituição.

9 junqueira&marin editores 9 121


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
O mais interessante é que esse processo produz
aprendizagens políticas, conhecimento social, sensibilização
pelos processos de mudanças sociais, a partir do momento em
que as pessoas participam do processo de avaliação, por meio
do contato, das discórdias, da solução de conflitos, da interação
política propiciada nos diferentes espaços de participação. Nesse
processo, os resultados e/ou produtos demoram a aparecer;
são resultados qualitativos, que engendram mudanças de
atitudes, de princípios, de concepções e, por isso, produz novas
subjetividades/intersubjetividades.
As características da avaliação participativa nos
alertam para um processo de avaliação que vai contra os
interesses do mercado, contra a ordem econômica e social
que está estabelecida. Por isso, é preciso compreender as
dificuldades de operacionalização de uma proposta sustentada
nesses princípios. As críticas e os limites devem consistir formas
de fortalecimento da prática avaliativa.
Leite (2005, p. 120), apresenta como limites da
AIP a sua fragilidade e o seu alcance. O processo depende da
autovigilância e autointeresse da comunidade formada.
O tempo que a AP necessita para desenvolver consiste
outro limite no processo de avaliação participativa. O processo
de sensibilização, de discussão e a retórica dialógica envolvem
muito tempo, o que pode dificultar a sua continuidade. Porém,
sem eles, a AP não se sustenta. O tempo da gestão universitária
ou dos colegiados eleitos não pode definir o tempo da avaliação.
A avaliação participativa não pode ficar presa a uma gestão ou a
um colegiado. Somos imediatistas, princípios herdados de uma
política econômica consumista, individualista e competitiva. A
ética do mercado é “produzir mais em menos tempo e menos
custo”. Essa política serve aos sujeitos que precisam desenvolver
carreiras pessoais. A avaliação participativa não serve para esse
fim.
A partir do momento em que as pessoas começarem
a discutir em conjunto as suas dificuldades, seus problemas

122 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
e as dificuldades e problemas institucionais, as mudanças
significativas emergirão como mudanças de atitudes e das
práticas. Dessa forma, o tempo da avaliação participativa não
é determinado, mas podem ocorrer mudanças mais rápidas e
mais significativas.
As pesquisas sobre o processo de avaliação
institucional que nos levam à defesa da avaliação participativa
estão sustentadas nos estudos desenvolvidos a partir da
experiência de avaliação institucional da Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT) que, desde 1997, vem
desenvolvendo o processo avaliativo sustentado pelos princípios
da participação. Escolhemos analisar um processo de avaliação
institucional em que os seuspressupostosteórico-metodológicos
estão sustentados na participação, para analisarmos, na prática,
os avanços e os entraves encontrados para, enfim, buscarmos
formas de superação dos entraves que dificultam o processo de
avaliação participativa. Os resultados na íntegra dessa pesquisa
estão apresentados em Lima (2008).
Os resultados apontaram que a avaliação institucional
participativa está entravada pela cultura da regulação instalada
nos espaços da universidade. Detectamos alguns entraves, como:
resistência institucional (silenciamento frente aos resultados),
avaliação comoatendimento legal,curto circuito entreavaliação e
tomadas de decisão, relatórios construídos para reconhecimento
e renovação de reconhecimento dos Cursos e da Instituição,
presença dos princípios de competição e individualismos entre
os sujeitos, interesses pessoais sobrepondo os institucionais,
clima de disputa entre os sujeitos, clima institucional com
pouco espaço de discussão, não aceitação do outro como capaz
de avaliar, medo de punição, dificuldades em receber críticas,
resquícios históricos da avaliação como medição, classificação e
punição, dentre outros.
Esses entraves dificultam o processo de avaliação
sustentado na participação e são movimentos presentes na

9 junqueira&marin editores 9 123


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
instituição que estão girando ao contrário dos princípios da
avaliação participativa. Esses movimentos são consequências
da cultura da regulação, que, ainda hoje, permanecem como
resquícios nas ações dos sujeitos que fazem a universidade.

Considerações finais

A avaliação institucional participativa com todos os


seus entraves, muitos desses, consequências da cultura escolar,
ainda se apresenta como uma forma de resistência ao que está
instituído como determinação autoritária do mercado e, por
isso, precisa ser fortalecida nos espaços universitários. É preciso
compreender que os entraves são limites que precisam ser
superados, o que não descaracteriza a avaliação institucional
participativa como um dos instrumentos de reconstrução da
emancipação nos espaços universitários.
As tensões são inerentes ao processo de mudanças,
no entanto, é necessário buscar o enfretamento dos entraves
ao invés do silenciamento. Nesse sentido, os resultados da
avaliação institucional devem ser usados como estratégias
de (re)organização de espaços de discussão que promovam
o diálogo, a discussão, a reflexão e as mudanças individuais,
coletivas e institucionais. A avaliação institucional pode ser uma
das alternativas que possibilita desenvolver a emancipação nos
espaços da universidade, na medida em que possibilita, a partir
dos seus resultados, a (re)organização de espaços de discussão,
diálogo e debates. Nesse sentido, os princípios da participação
devem fundamentar todos os momentos da proposta. Esses
espaços de discussão colocam os sujeitos “frente a frente”
para discutirem os sucessos e os fracassos e buscar formas de
superação. Assim, a avaliação institucional participativa ganha
sentido e concreticidade. 3

124 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
Referências

BARBER, B. Démocratie forte. Paris, Desclée de Brouwer, 1997.

BAUMAN, Zygmunt (1925). Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Jorge


Zahar Ed, Rio de Janeiro, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as Consequências Humanas. Trad. Marcos


Penchel. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1999.

BONDIOLI, Ana (Org). O Projeto Pedagógico da Creche e a Sua Avaliação: a


qualidade negociada. Coleção Educação Contemporânea, Autores Associados
– Campinas-SP, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 7 ed. Bertrand


Brasil, Rio de Janeiro, 2004a.

BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno


Pegorim; Editora Brasiliense, São Paulo, 2004b.

DIAS SOBRINHO, José. Campo e Caminhos da Avaliação: a avaliação de


educação superior no Brasil. In: FREITAS, Luiz Carlos de (Org). Avaliação:
construindo o Campo e a Crítica. Insular, Florianópolis, 2002.

FREITAS, Luiz Carlos de. Uma Pós-modernidade de Libertação: reconstruindo


as esperanças. Autores Associados, Campinas – SP, 2005a. (Coleção polêmicas
do nosso tempo).

FREITAS, Luiz Carlos de. Qualidade negociada: Avaliação e contra-regulação na


escola pública. Revista Educação e Sociedade, v. 26, n.92, p. 911 – 933, especial
– Campinas, out. 2005b.

FREITAS, Luiz Carlos de (Org). Dialética da inclusão e da exclusão: por uma


qualidade negociada e emancipadora nas escolas. Texto digitado.

9 junqueira&marin editores 9 125


CAPÍTULO IV PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
FREITAS, Luiz Carlos de. Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas.
Moderna, São Paulo, 2003.

GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. Campinas, SP, Autores


Associados, 2001 (Coleção polêmicas do nosso tempo, 79).

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. Trad. Tereza Bulhões Carvalho


da Fonseca. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.

LEITE, Denise B. C. Reformas Universitárias: avaliação institucional


participativa. Vozes, Petrópolis - RJ, 2005.

LIMA, Elizeth Gonzaga dos Santos. Avaliação Institucional: entrelaçando as


vozes e tecendo os fios do silêncio. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós
graduação em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS,
2002.

______. Avaliação Institucional: o uso dos resultados como estratégia de (re)


organização dos espaços de discussão na universidade. Tese de Doutorado,
Universidade Estadual de Campinas – Faculdade de Educação, Campinas, SP,
2008.

MARX, Karl (1852). O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann/Karl Marx. Trad: de


Leandro Konder e Renato Guimarães. 5 ed, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978.

MARX, Karl e ENGELS, Friederich (1848). Manifesto do Partido Comunista.


Trad: Pietro Nassetti, Editora Martin Claret, São Paulo – 2007.

MOROSINI, Marília Costa. Educação Superior e transnacionalização: avaliação/


qualidade/acreditação. In: MANCEBO, Deise e FÁVERO, Maria de Lourdes de
Albuquerque (Orgs). Universidade: Políticas, avaliação e trabalho docente.
Cortez, São Paulo, 2004.

PERONI, Vera. Política educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos 1990.
Xamã, São Paulo, 2003.

126 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO IV
SANTOS, Boaventura de Sousa. Prefácio LEITE, Denise B. C. Reformas
Universitárias: avaliação institucional participativa. Vozes, Petrópolis, 2005.

______. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. Cortez,


São Paulo, 2000.

SANTOS FILHO, José Camilo dos. Análise Teórico-Política do Exame Nacional de


Cursos. In: DIAS SOBRINHO, José e RISTOFF, Dilvo I. Universidade Desconstruída:
avaliação institucional e resistência. Insular, Florianópolis, 2000, p. 149-179.

9 junqueira&marin editores 9 127


L
PARTE II
CURRÍCULO E FORMAÇÃO
NO ENSINO SUPERIOR
U PARTE
CURRÍCULO II
E FORMAÇÃO V
NO ENSINO SUPERIOR

i CAPÍTULO V j
INTERDISCIPLINARIDADE NO CURSO DE PEDAGOGIA:
UMA PRÁTICA DE DIFÍCIL CONSTRUÇÃO

Ilma Ferreira Machado


Irton Milanesi

Introdução

Este
a artigo traz uma reflexão sobre
interdisciplinaridade a partir da
reestruturação do Curso de Pedagogia da Universidade do
Estado de Mato Grosso, Campus Jane Vanini, Cáceres-MT. O novo
projeto político-pedagógico do Curso teve início no segundo
semestre do ano de 2007 e apontou a interdisciplinaridade
como um dos elementos estruturantes de seu currículo, o qual
foi organizado em torno de oito eixos temáticos, sendo um para
cada semestre. Os eixos tratados interdisciplinarmente têm o
campo de atuação dos futurospedagogos como meta, apontando,
assim, para as múltiplas relações que a escola (por meio da
elaboração e execução do seu currículo) e o docente (por meio
do desenvolvimento de sua prática pedagógica) estabelecem
com a sociedade de uma maneira mais ampla.

9 junqueira&marin editores 9 131


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Embora a forma de organização do trabalho
pedagógico, aqui descrita, seja relativamente nova, a cada
semestreletivo, busca-se aprimorar essa experiência de trabalho
interdisciplinar na perspectiva de que ela reflita da melhor
maneira possível a teoria que a sustenta e, fundamentalmente,
que ajude a imprimir maior qualidade à formação dos futuros
docentes, apontando, assim, para a dialeticidade dessa
proposta. Nesse sentido, refletir sobre a prática que vimos
empreendendo parece-nos essencial para melhor qualificar
nosso projeto formativo; é uma maneira de registrar dúvidas e
questionamentos, conquistas e avanços obtidos e, dessa forma,
contribuir para o fortalecimento das ações interdisciplinares.
Possivelmente, este texto reflete não apenas o olhar
de seus autores, mas traduz, em grande medida, a tônica das
conversas formais e informais efetivadas nos diversos momentos
de convívio pedagógico, no curso de Pedagogia.

Entender o conceito é importante para se avançar


rumo à prática da interdisciplinaridade
na formação de professores

A busca pela efetivação de um trabalho


interdisciplinarnointeriordoscursosdeformaçãodeprofessores
não é algo novo, porém é, nas últimas décadas, que vem sendo
colocada com mais ênfase, influenciada, em grande medida,
pelas políticas educacionais brasileiras, as quais apontam a
interdisciplinaridade como um princípio básico da organização
pedagógica. Contudo, não é apenas nas universidades e escolas
que essa temática é discutida. Diversos setores da sociedade,
inclusive, o empresarial, argumentam sobre a importância da
interdisciplinaridade, mas é preciso que estejamos atentos aos
interesses e a lógica que sustentam esses argumentos.
É importante esclarecer que a maneira como
concebemos a interdisciplinaridade na formação docente,
difere, substancialmente, da lógica empresarial. Enquanto

132 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
as empresas estão focadas na organização coletiva como
estratégia de maior competitividade e aumento do lucro, as
escolas e universidades centram seus esforços na construção
do paradigma do conhecimento-emancipação²⁴ para alicerçar
a formação humana – uma formação livre de qualquer tipo
de alienação ou dominação. Bianchetti (2006) esclarece
bem essa diferença quando diz que, para as empresas,
interdisciplinaridade é uma estratégia de articulação de diversas
ações e assuntos com vistas à racionalização do tempo, à
redução do quadro de trabalhadores – uma vez que um mesmo
trabalhador passa a assumir funções articuladas, dispensando
se outros trabalhadores – e ao aumento da produtividade; para
escolas e universidades, interdisciplinaridade é um princípio
pedagógico que se vincula à própria concepção de mundo e de
conhecimento – significa conceber o mundo e o conhecimento
como algo dinâmico e contraditório, sendo o conhecimento uma
expressão do processo de objetivação da realidade pelo sujeito
que, ao transformá-la, transforma-se a si mesmo e as suas
condições de vida e de trabalho.
Interdisciplinaridade é um conceito típico do século
XX, porém a humanidade sempre aspirou, em maior ou menor
medida, certa unidade do saber como, por exemplo, Platão,
que defendeu a ideia de ciência unificada, atribuindo à Filosofia
o status de ciência-macro, unificadora. Surge ligada à ideia de
superação da fragmentação do conhecimento. Essa temática
ganhou importância e tratamento epistemológico, sobretudo, a
partir da segunda guerra mundial, tendo Georges Gusdorf como
um dos pioneiros a tratá-la como objeto epistemológico, buscando
elementos conceituais e metodológicos “para uma tomada de
consciência sobre o lugar real da posição e do tratamento dos
principais problemas epistemológicos colocados pelas ciências
humanas, do ponto de vista de suas relações interdisciplinares”
(GUSDORF apud JAPIASSU, 1976, p. 29). Segundo esse autor, a
interdisciplinaridade é uma tentativa no sentido de integração
de conhecimentos para a formulação de uma interpretação

9 junqueira&marin editores 9 133


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
global da existência humana. Essa é uma questão necessária, até
porque, vale lembrar que as bombas atômicas que destruíram
as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, também foram
fruto de empreendimentos interdisciplinares, o que levou os
cientistas a pensar que a interdisciplinaridade por si só não
resolve os problemas da humanidade, precisando haver uma
ética para com o uso da ciência no processo de integração dos
saberes.
Dentre os esforços de compreensão da
interdisciplinaridade, no campo da educação, encontramos
pelo menos duas formas distintas de conceituá-la, não
necessariamente excludentes entre si.
A primeira perspectiva teórica está centrada na
filosofia do sujeito do conhecimento:

[...] aquele que por sua vontade busca a integração dos


conhecimentos necessários para a compreensão da existência
humana no mundo como um todo, numa visão um tanto
holística da realidade, tendo em vista a busca de uma certa
ordem no progresso científico (MILANESI, 2008, p. 39).

Nessa linha teórica, encontramos autores, como


Japiassu (1976), Fazenda (1995, 1996), Zobóli (1992), Ferreira
(1996), Garcia (2000), dentre outros. Autores para os quais
a parceria se constitui em categoria central, e a prática da
interdisciplinaridade depende, acima de tudo, de uma ação
volitiva e de atitude dos interessados em desenvolvê-la. Nessa
perspectiva, é preciso também compreender que não basta
estar junto em um determinado empreendimento coletivo para
que a interdisciplinaridade ocorra de maneira satisfatória. A
integração é importante, mas é preciso que haja interação, ou
seja, compartilhamento de conteúdos, métodose técnicasde ensino
ao se estabelecer relações entre os sujeitos e os objetos de cada
disciplina no desenvolvimento de um determinado currículo, o
que implica em uma mudança de atitude, individual e coletiva

134 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
e, acima de tudo, em uma mudança na forma de organização do
trabalho pedagógico.
Na segunda abordagem teórica desse campo,
aparecem pensadores como Jantsch e Bianchetti (2000),
e Frigotto (2000), os quais se encontram mais alinhados à
perspectiva da interdisciplinaridade para além da filosofia do
sujeito, ou seja, elucidam a importância da parceria e da volição,
mas ao mesmo tempo fazem uma crítica aos teóricos da primeira
corrente filosófica, principalmente ao denotarem os males da
ciência à fragmentação do conhecimento e ao não considerarem
que a própria fragmentação/disciplinaridade tenha feito parte
do avanço científico num dado momento histórico. Assim,

[...] essa concepção de interdisciplinaridade a partir do objeto,


de sua historicidade, não nega a importância e a própria história
de construção da interdisciplinaridade a partir do sujeito,
mas procura fazer uma crítica oferecendo-lhe uma adequada
utilização da concepção histórica da realidade (MILANESI,
2008, p.56).

Na ótica desses autores, a interdisciplinaridade


tem a totalidade como categoria central na análise de um dado
objeto, que é visto não isoladamente, mas em estreita relação
com o sujeito, em uma perspectiva histórica e dialética. Nessa
acepção, podemos constatar que “o interdisciplinar está se
estabelecendo hoje, não porque os homens decidiram, mas sim
pela pressão, pelas necessidades colocadas pela materialidade
do momento histórico” (JANTSCH; BIANCHETTI, 2000, p. 198).
Nessa mesma linha de pensamento, valemo-nos
também do pensamento de Frigotto (2000), o qual enfatiza
que os homens estabelecem relações sociais frente às suas
necessidades que são múltiplas: biológica, intelectual, cultural,
afetiva e estética. Nesse sentido, é nas relações e práticas que
a produção e a socialização do conhecimento encontram sua
efetiva materialidade histórica, que é marcadamente coletiva

9 junqueira&marin editores 9 135


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
e não individualizada, portanto, interdisciplinar, embora o
conhecimento, muitas vezes, apareça aos olhos das pessoas
como se fosse apenas o produto de uma área ou de uma ação
específica e unidimensional.
Dessa forma, aparecem duas grandes categorias
fundamentais para se compreender a interdisciplinaridade.
A primeira é a da sua defesa a partir dos pressupostos do
materialismo histórico-dialético e, a segunda, a dos limites dos
sujeitos que investigam os limites do objeto:

[...] a necessidade de interdisciplinaridade na produção do


conhecimento funda-se no caráter dialético da realidade social
que é, ao mesmo tempo, una e diversa na natureza intersubjetiva
de sua apreensão (FRIGOTTO, 2000, p. 27 – grifo nosso).

O caráter uno e diverso da realidade social nos impõe distinguir


os limites reais dos sujeitos que investigam os limites do objeto
investigado. Delimitar um objeto para a investigação não é
fragmentá-lo [...] se o processo de conhecimento nos impõe
a delimitação de determinado problema, isso não significa
que tenhamos que abandonar as múltiplas relações que o
constituem (FRIGOTTO, 2000, p. 27 – grifo nosso).

A interdisciplinaridade na produção do
conhecimento é vista, por um lado, como necessária, mas,
por outro, em virtude do processo de produção da existência
humana, que é capitalista e carregado dos mais variados
interesses, torna-se um problema que, para Frigotto (2000, p.
31), explicita-se em dois níveis: “[...] pelos limites do sujeito que
busca construir o conhecimento de uma determinada realidade
e, de outro lado, pela complexidade desta realidade e seu caráter
histórico”.
Em busca de uma acepção de interdisciplinaridade
que possa orientar nossas ações, concordamos também com
Freitas (2000) quando salienta que, fora do contexto do

136 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
materialismo histórico-dialético, a interdisciplinaridade perde
seu poder revelador.

[...] a interdisciplinaridade não é mais do que a intenção de


pesquisara realidade, em todas as suas relações e interconexões,
por meio de um método integral de investigação (como propõe
Kedrov 1981) na base do qual encontra-se o materialismo
dialético, núcleo da filosofia marxista (FREITAS, 2000, p. 109).

Parece óbvio, mas não custa enfatizar que o


entendimento do conceitodeinterdisciplinaridadeéfundamental
para o desencadeamento de nossas ações pedagógicas, sob pena
de não se atingir os objetivos almejados e de se banalizar tão
importante constructo. Fazenda (1995, 1996), Japiassú (1976),
Jantsch e Biachetti (2000), Frigotto (2000), Freitas (2000),
dentre outros, procuram em seus estudos evidenciar os avanços
e os limites das práticas interdisciplinares. Para os primeiros, a
parceria e a vontade dos sujeitos são critérios indispensáveis
à realização de um trabalho de cunho interdisciplinar, o qual
encontra barreiras e resistências, tanto na estrutura quanto
na cultura organizacional de nossas instituições educativas,
as quais são refratárias a mudanças dessa natureza. Para
os segundos, o critério básico é a busca da totalidade do
conhecimento no estudo de um dado objeto, dentro de uma
concepção materialista-dialética de mundo, que não dispensa
os critérios anteriores, porém, extrapola-os. Isso significa que
a interdisciplinaridade implica mudança de postura no trato
com o conhecimento, com o processo ensino-aprendizagem
e, essencialmente, nas relações de trabalho, apontando para a
prática do trabalho coletivo, que, segundo Pistrak (2002), não se
confunde com simples agrupamento de pessoas ou constituição
de grupos com fins efêmeros e aleatórios. Depreendemos daí a
necessidade de um planejamento coletivo bem articulado, com
conteúdos, objetivos e métodos consensuados entre os sujeitos/
disciplinas envolvidos/as. Sob esse prisma a

9 junqueira&marin editores 9 137


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Interdisciplinaridade é entendida como interpenetração
de métodos e conteúdo entre disciplinas que se dispõem a
trabalhar conjuntamente um determinado objeto de estudo.
Para facilitar a conceituação de interdisciplinaridade pode
se contrapô-la à noção de multidisciplinaridade. Neste último
caso, os profissionais são justapostos, cada um fazendo o que
sabe. Não há interação em nível de método e nem de conteúdo.
Contrariamente, na interdisciplinaridade tal integração ocorre
durante a construção do conhecimento, de forma conjunta,
desde o início da colocação do problema. O conhecimento é
gerado em nível qualitativo diferente do existente em cada
disciplina auxiliar (FREITAS, 1995, p. 91).

Uma confusão a ser evitada diz respeito ao papel de


cada disciplina nesse contexto. A primeira ideia que nos vem à
cabeça é que a disciplinaridade é um mal que precisa ser banido
a todo custo, se quisermos efetivamente mudar a configuração
curricular de um curso de formação de professores. Contudo, há
que ficar claro que a interdisciplinaridade não pode prescindir
da disciplinaridade. A disciplina é entendida como

[...] uma maneira de organizar e delimitar um território de


trabalho, de concentrar a pesquisa e as experiências dentro de
um determinado ângulo de visão. Daí que cada disciplina nos
oferece uma imagem particular da realidade, isto é, daquela
parte que entra no ângulo de seu objetivo (SANTOMÉ, 1998, p.
55).

Além dessa característica de especialidade, outro


aspecto importante a ser considerado na disciplina é a sua
mobilidade. As disciplinas não são eternas e imutáveis, mas
fruto do processo de transformação social, que demanda
a organização de novos campos de conhecimento e, por
conseguinte, a reestruturação curricular periódica dos cursos de
formação profissional. Do ponto de vista do trabalho pedagógico,
a definição de disciplinas significa uma maneira didática de

138 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
se organizar e selecionar o conhecimento científico, que é tão
vasto e abrangente, em campos ou áreas representativas dessa
multidimensionalidade. Porém, a organização curricular por
áreas de conhecimentos é uma prática que vem ganhando maior
corpo no meio educacional e que precisa ser valorizada, uma
vez que favorece, sobremaneira, a realização de um trabalho
interdisciplinar.
Percebemos, portanto, que a interdisciplinaridade
é um princípio pedagógico defendido e uma prática almejada
por uma infinidade de educadores que vislumbram, apesar
da incerteza e das dificuldades, a possibilidade de um fazer
educativo mais significativo do ponto de vista da formação dos
sujeitos.

Práticas interdisciplinares no curso de Pedagogia

Muito embora a discussão da interdisciplinaridade


no curso de Pedagogia tenha se colocado de forma mais
sistemática a partir do segundo semestre de 2007, cabe observar
que, antes desse período, alguns “ensaios” foram feitos nessa
direção. A antiga matriz curricular apresentava a disciplina
Prática Pedagógica como sendo aquela capaz de promover a
interlocução dos alunos do curso com a realidade do mundo
do trabalho escolar, indicando que essa interlocução deveria
ocorrer por meio da cooperação entre as diversas disciplinas.
Embora, na prática, nem sempre tenha se materializado
dessa forma, algumas “marcas” foram deixadas pelo caminho,
conforme relatamos a seguir.

As experiências anteriores à reestruturação do Curso


No primeiro semestre de 2005, articulados em
torno da disciplina Prática Pedagógica, os professores das
disciplinas de Didática, Educação Física e Prática Pedagógica,
desenvolveram um trabalho de caráter interdisciplinar,

9 junqueira&marin editores 9 139


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
constituído por pesquisa-campo e seminário. Essa atividade
teve como tema Relações sociais e pedagógicas na escola. A
turma foi dividida em sete grupos que, acompanhados pela
professora de Prática Pedagógica, desenvolveram pesquisa em
algumas escolas públicas de Cáceres-MT, envolvendo os mesmos
conteúdos e objetivos estabelecidos para o conjunto da turma.
No segundo semestre de 2005, os professores
das disciplinas citadas anteriormente desenvolveram outro
trabalho interdisciplinar sob o título de A prática pedagógica
e suas manifestações na escola, o qual surgiu das indagações e
angústias evidenciadas pelos acadêmicos quanto ao “como era
a prática pedagógica na escola” e “que cenários, possivelmente,
encontrariam em sua futura carreira profissional”.
A avaliação desse trabalho foi muito positiva, uma
vez que permitiu uma análise mais globalizada da realidade da
escola no tocante à temática definida, possibilitando, também, a
racionalização das atividades realizadas no semestre, no sentido
de se evitar desperdício de tempo com inúmeras visitas às
escolas para fins semelhantes. O principal ganho observado foi
em relação à integração entre as disciplinas envolvidas, as quais,
enfocando suas especificidades, contribuíram para uma visão
ampliada da temática estudada – o conhecimento ali produzido
fez-se em um patamar diferente e mais rico. Esse trabalho
teve contornos interdisciplinares, ultrapassando a associação
de “primeiro nível” entre disciplinas, compreendendo, nesses
termos, a interdisciplinaridade como “segundo nível de
associação entre disciplinas, em que a cooperação entre várias
disciplinas provoca intercâmbios reais [...]” (PIAGET apud
SANTOMÉ, 1998, p. 70).
Todo esse trabalho foi encaminhado de forma
sistemática, exigindo, além das orientações verbais, a
elaboração de um documento orientativo. A discussão da
proposta de trabalho com os alunos, na medida do possível, foi
realizada conjuntamente pelos três professores das disciplinas

140 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
mencionadas anteriormente, como forma de assegurar uma
linguagem comum e de se evitar desencontros e conflitos no
encaminhamento das atividades. Contudo, em alguns momentos,
o trabalho ocorreu isoladamente, devido à dificuldade de
compatibilização de agenda, haja vista que alguns professores
atuam, também, em outros departamentos e cursos. Nessa
experiência, foram apontadas algumas dificuldades, tais como: a
falta de “afinação”inicial da linguagementreprofessoresealunos,
no sentido de se obter clareza sobre os objetivos e metodologia;
a falta de habilidade para fazer análise crítica das situações
observadas, superando a mera constatação – esse problema foi
parcialmente superado pela correção preliminar dos relatórios,
ocasião em que os professores apontaram os pontos frágeis
–; após o seminário integrado, alguns grupos ainda tiveram a
possibilidade de fazer novas correções no relatório.
Em 2006/1, esses mesmos professores
desenvolveram um trabalho semelhante, dessa vez, elegendo
outra temática: O papel da escola e dos educadores no processo de
aquisição de conhecimento por parte da criança, tomando como
referência autores como Wallon, Vigotski, Veiga, Freitas e Paro.
Os procedimentos adotados foram semelhantes àqueles usados
em 2005. Na avaliação dos grupos participantes, o trabalho,
apesar de demandar esforços redobrados, foi significativo, pois
propiciou “maior integração entre as disciplinas”, “compreender
a realidade da escola de forma mais ampla”, assim como “o
exercício de elaboração de trabalho acadêmico nas normas
científicas e técnicas”. Cabe destacar que, nos seminários
de socialização dos trabalhos, resguardou-se espaço para
discussões e análises complementares, principalmente da parte
dos professores. Essa é uma questão imprescindível, pois é o
momento em que os participantes podem identificar com mais
clareza as ligações entre uma situação e outra, entre elementos
teóricos de uma disciplina e outra.
Em 2008 e 2009/1, os professores do 5º semestre de
Pedagogia (Prática Pedagógica IV, Didática, Leitura e Escrita nas

9 junqueira&marin editores 9 141


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Séries Iniciais, Metodologia de Ciências e Matemática e Pesquisa
Educacional) mesmo não sendo ainda envolvidos pela mudança
de matriz curricular (já que estavam ministrando aulas pela
matrizantiga), também realizaram atividades interdisciplinares,
enfocando o Projeto Político-Pedagógico. As propostas foram
elaboradas pelo grupo de professores e discutidas com os
acadêmicos, os quais puderam alterá-las e complementá-las.
Jamais foram impostas.
Nos trabalhos efetivados em 2008, constatamos
que alguns grupos de acadêmicos tiveram certa dificuldade
de análise globalizada das questões colocadas para estudo. Os
acadêmicos questionaram sobre a diversidade de subtemas com
os quais tiveram que lidar. Tal dificuldade se refletiu na produção
dos relatórios e nas análises verbalizadas durante os seminários
integradores.
Essas questões foram levadas em consideração no
momento de se pensar o trabalho interdisciplinar de 2009/1,
que articulou melhor a proposta em torno da temática central.
Mesmo assim, os acadêmicos avaliaram que “sobrecarregou
muito os grupos, pois todos trabalham durante o dia”, “o trabalho
é muito complexo, há muita coisa para ser comentada”, “houve
dificuldade de relacionar a teoria com a realidade pesquisada”,
“todas as disciplinas, e não apenas Prática Pedagógica, deveriam
abrir espaço para orientar os grupos” (cf. anotações contidas no
caderno de campo da professora de Didática). Alguns grupos
consideraram a experiência “muito significativa, principalmente
na forma de avaliar, pois ninguém levava nota nas costas dos
outros” – nesse item referiram-se a um quesito da avaliação que
tinha peso dois e incidia sobre cada aluno, individualmente; as
notas do seminário e do relatório, respectivamente com peso
quatro, eram atribuídas igualmente a todos os membros do
grupo. Outros grupos destacaram como aspectos relevantes
a possibilidade de maior articulação teoria-prática e de
problematização da realidade da escola, como podemosperceber
nas falas a seguir:

142 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
“[...] afirmamos a importância de termos estudado as teorias
colocadas para nós, através das disciplinas do curso de Pedagogia
e a possibilidade que a Unemat nos oferece, por meio de seus
professores e professoras, de interação com as escolas, fazendo
com isso que nossa práxis seja fundamentada em algo concreto
e sólido.” (Relatório de trabalho integrado das disciplinas do
5º semestre, 2008/2. Grupo: Edivaldo, Eliséia, Janice, Luciane e
Maria).

“Através da observação realizada em nossa pesquisa percebemos


o quanto o conhecimento teórico que adquirimos sobre
letramento, alfabetização, práticas pedagógicas, processo de
construção do PPP, dentre outros, nos auxiliaram na elaboração
deste trabalho e também nos trouxeram conhecimentos
enriquecedores para nossa formação profissional [...] foram
detectados vários problemas, os quais resultarão em ‘possíveis’
temas de monografia.” (Relatório de trabalho integrado do 5º
semestre, 2009/1. Grupo: Alícia, Eva, Juliene, Lucimara, Milene e
Walnice).

Em relação a essas experiências, podemos afirmar


que ficou bem demarcado o espaço das possibilidades e
da autonomia pedagógica, pois, independente de a matriz
curricular ter definido essa forma de trabalho, os professores
e alunos foram ensaiando suas práticas interdisciplinares, que
redimensionaram o modo de ver a realidade escolar, ao fazê
lo em uma perspectiva de totalidade, que é muito mais rica. A
crítica que sobrou é quanto à necessidade de orientação mais
sistemática aos grupos, ainda que a professora da disciplina de
Prática Pedagógica fosse a principal responsável por fazer tal
orientação. Diante disso, parece pertinente que os professores
estabeleçam espaços de avaliação coletiva durante e não apenas
ao final do trabalho interdisciplinar, a fim de corrigir possíveis
distorções e de aprimorar esse processo pedagógico.
Nas experiências relatadas até aqui, percebemos
uma aproximação com a concepção de interdisciplinaridade
expressa por Jantsch e Bianchetti (2000), Frigotto (2000), os

9 junqueira&marin editores 9 143


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
quais têm a totalidade como categoria central na análise de um
dado objeto, que é visto de forma multidimensional e complexa,
e em estreita relação com o sujeito do conhecimento. Porém,
percebemos, também, traços da visão de interdisciplinaridade
na concepção da filosofia do sujeito do conhecimento, cuja
categoria central é a parceria, estando a realização da prática
interdisciplinar condicionada à atitude voluntária dos sujeitos,
sem um direcionamento mais explícito da instituição escolar no
tocante a essa questão.

A interdisciplinaridade a partir da
implantação da nova matriz curricular

No segundo semestre de 2007, tomando como


parâmetro a Resolução CNE/CP 01/2006, deu-se início a uma
nova configuração curricular para o Curso de Pedagogia da
UNEMAT, Campus Jane Vanini. A partir desse momento, o Curso
assume, oficialmente, a interdisciplinaridade como forma de
Organização do Trabalho Pedagógico.

Para darcondições de implementação de um currículo conforme


a natureza aqui explicitada, a OTP deverá ser repensada
no sentido de superar a fragmentação do conhecimento e
o isolamento dos profissionais responsáveis pelas diversas
áreas de saber. Nesse sentido, as disciplinas serão trabalhadas
interdisciplinarmente por semestre/turma [...], tendo como
ápice os seminários integrados, ao final de cada semestre
(UNEMAT, 2007 p. 10 – grifo nosso).

A interdisciplinaridade foi pensada a partir dos


eixos temáticos, que devem ser utilizados como instrumento
de articulação das diversas disciplinas e da formação realizada
em cada turma/semestre. Em outras palavras, os eixos são os
elementos estruturantes da formação inicial do docente e, ao
mesmo tempo, são potencializadores da interdisciplinaridade,

144 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
assumida no Projeto Político Pedagógico do Curso como
princípio orientativo do trabalho dos docentes e discentes,
tendo como ápice o seminário interdisciplinar.
Nessa perspectiva, foram definidos oito eixos
temáticos para a formação no curso de Pedagogia:

1) O processo de formação e desenvolvimento do


ser humano e da sociedade por meio do trabalho
e das relações sociais (produção e reprodução da
existência humana);
2) A organização social e a produção do conhecimento
como movimento dinâmico e contraditório;
3) O desenvolvimento do processo educacional nos
diferentes contextos históricos da sociedade e suas
relações com a configuração da escola ao longo dos
tempos;
4) As teorias educacionais e suas relações com o
trabalho docente;
5) A organização e gestão do ensino e sua articulação
com as políticas públicas;
6) Os saberes disciplinares e os procedimentos de
ensino empregados no contexto da escola atual;
7) Diversidades e currículo escolar;
8) A organização do trabalho pedagógico em espaço
escolar e não escolar.

Conforme se pode perceber, as temáticas que


norteiam a formação partem de questões mais gerais, como o
processo de formação e desenvolvimento do ser humano e da
sociedade pelo trabalho, passando pelo processo educacional
nos diferentes contextos históricos, pelas teorias educacionais,
pelos saberes disciplinares e procedimentos de ensino, pela
diversidade cultural presente no campo do currículo até chegar
à organização do trabalho pedagógico em espaço escolar e não
escolar.

9 junqueira&marin editores 9 145


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Para atender essa amplitude de questões, os
procedimentos de trabalho adotados a partir desses eixos
temáticos têm sido empregados de duas formas. Na primeira,
os estudantes de uma turma, distribuídos em pequenos grupos,
são orientados pelos professores a pesquisarem o tema geral
proposto para aquele semestre e apresentam o resultado, ao
final, no seminário interdisciplinar. Na segunda, a turma é
dividida em grupos, conforme o número de disciplinas, cada
professor fica responsável pela orientação e acompanhamento a
um grupo de estudantes, e o resultado desse trabalho, também,
é apresentado por ocasião do seminário interdisciplinar.
Ao longo dos trabalhos interdisciplinares, alguns
questionamentos têm sido feitos. Em relação à primeira forma
de trabalho, questionamos se a discussão de uma temática geral
não ficaria repetitiva, já que o tema seria o mesmo para toda a
turma. No segundo caso, indagamos se a visão interdisciplinar
estaria assegurada, uma vez que cada grupo parece ocupar-se
mais de uma parte do problema investigado, pois, cada turma
se subdivide em grupos menores, conforme o número de
disciplinas e professores, ocupando-se de subtemas variados.
No ano de 2009/2, todos os cinco semestres (que estavam na
matriz nova) optaram por essa segunda forma de organização
do interdisciplinar, porém ainda pairam dúvidas sobre qual
seria a melhor forma, o que evidencia a complexidade de uma
mudança dessa natureza, quando encontramos mais incertezas
do que certezas à nossa frente. Nossas decisões vão sendo
tomadas considerando-se tanto o aspecto operacional (fluidez
do trabalho) quanto o aspecto intencional (concepções e
finalidades).
Vale ressaltar que, apesar dessas diferentes
posições, o que garante o exercício da interdisciplinaridade não
é a primeira ou a segunda forma apresentada anteriormente,
mas a capacidade de organização dos professores e estudantes
para que as conexões entre os diversos conhecimentos que

146 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarCAPÍTULO V
permeiam a temática sejam garantidas – essa questão já foi
apontada no Projeto Político Pedagógico do Curso:

Logicamente, essa forma de trabalho (interdisciplinar)


dependerá da capacidade inventiva dos professores e implicará
numa permanente articulação entre professores/professores,
professores/alunos, alunos/alunos, compartilhando suas
ações para que, de fato, a investigação aconteça no decorrer
do semestre e os resultados sejam comunicados através dos
seminários (UNEMAT, 2007, p. 10).

O grande desafio que se coloca no curso de


Pedagogia hoje é a capacidade inventiva para se realizar a
interdisciplinaridade. Praticar a interdisciplinaridade não
tem sido tarefa fácil, porque toda a nossa formação está
alicerçada nos princípios da fragmentação do conhecimento;
ninguém precisa fazer algo para fragmentar, a fragmentação
aparece implícita desde a estrutura da Universidade, contrato
de trabalho dos professores, chegando até a organização do
trabalho pedagógico e às práticas desenvolvidas pelos docentes.
Dessa forma, quando se ousa integrar conhecimentos, percebe
se aí um esforço enorme e que nem sempre há, por parte dos
sujeitos envolvidos, boa vontade e compromisso com a busca de
superação dos conflitos que surgem.
Diante de tantos desafios postos no curso de
Pedagogia, é preciso rever nossas ações e acreditar no
aprendizado que a prática interdisciplinar traz, por que:

[...] o avanço em direção a construção da metodologia da


interdisciplinaridade se dará dentro de um processo de ganhos
parciais e gradativos, um movimento simultâneo de rupturas
(ainda que pequenas) e continuidade (de muitos obstáculos
que estão impregnados em nossa formação e que precisam ser
superados) (MILANESI, 2008, p.151).

9 junqueira&marin editores 9 147


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Talvez seja importante nos perguntar: como
podemos aprofundar as relações interdisciplinares nos
seminários temáticos e para além deles? Já encaramos um
primeiro nível de desafio: o “seminário interdisciplinar” de
cada semestre/turma, que, apesar dos conflitos e contradições,
começa a produzir bons resultados, principalmente em termos
das produções escritas dos estudantes de Pedagogia, que têm se
apresentado de forma mais consistente, crítica e contextualizada.
Contudo, a formação interdisciplinar perpassa por outras ações
e outros espaços pedagógicos. A grande questão é: em que e
como se constituem esses espaços e como potencializá-los?

Considerações finais

Apesar de concebermos a interdisciplinaridade


na linha anunciada no início desse texto, ou seja, para além da
filosofiado sujeito,não épossível esperarquetodos os educadores
de uma unidade educativa comunguem de uma mesma visão de
conhecimento e mundo. Assim, é necessário iniciar as atividades
interdisciplinares contando com as possibilidades reais de se
efetivá-las. E isso, de certa forma, complexifica ainda mais o
trabalho de formação, pois, observamos (conforme relatos feitos
nas reuniões pedagógicas do curso): a não assumência coletiva
da proposta; a sobrecarga de orientação de grupos sobre
alguns professores; o desencontro de informações, que provoca
confusão e desestímulo nos estudantes; além de descrédito
em relação à proposta. Esses são alguns dos limites que estão
colocados na realização de um trabalho tão importante como
esse, que vemsendo realizado no curso de Pedagogia. Todasessas
questões precisam ser sistematicamente discutidas e avaliadas,
de modo a permitir os ajustes e as mudanças necessárias para
que possamos solidificar a vivência interdisciplinar em nosso
curso.
Queremos registrar que o que está em discussão
não é apenas uma forma de trabalho, mas toda uma concepção

148 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO V
de formação de educadores. A retórica da “formação crítica e
interdisciplinar” precisa ser suplantada pelo efetivo exercício
da prática interdisciplinar; e essa não é apenas uma questão
de “querer ou não” do professor ou dos estudantes, mas de um
compromisso profissional e institucional assumido. Por isso
mesmo, já foram estabelecidas na matriz curricular 2007/02 do
curso de Pedagogia, além das sessenta horas/aulas de atividades
teóricas de cada disciplina, quinze de trabalho de prática/
campo/pesquisa para cada professor estruturar a integração
dos saberes, a partir do confronto teórico-prático que pode ser
feito por meio dos temas norteadores.
Embora a responsabilidade maior recaia sobre
os professores do curso, salientamos que a concretização da
interdisciplinaridade está condicionada, fundamentalmente,
a três fatores: profissionalidade docente, forma de organização
do trabalho pedagógico e gestão escolar. Aos acadêmicos, cabe,
também, a tarefa de pensar e efetivar uma formação norteada
por princípios interdisciplinares, pois trazem em si uma dupla
dimensão: ao mesmo tempo em que estão se formando são,
também, formadores em potencial – quiçá, carreguem os germes
da mudança da organização do trabalho pedagógico na escola,
postulando o fim da fragmentação do conhecimento. 3

Referências

BIANCHETTI, L. Formação de pesquisadores em educação e


interdisciplinaridade: entre a necessidade, a indução e o desejo. In: SILVA, A.M.
(Org.). Novas subjetividades, currículo, docência e questões pedagógicas na
perspectiva da inclusão social. Anais do Encontro Nacional de Didática e Prática
de Ensino. Recife-PE, ENDIPE, 2006.

FAZENDA, I. C. A. Interdisciplinaridade - Um projeto em parceria. São Paulo:


Loyola, 3. ed., 1995.

Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: efetividade ou ideologia.


São Paulo: Loyola, 4. ed., 1996.

9 junqueira&marin editores 9 149


CAPÍTULO V PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
FERREIRA, M. E. M. P. Interdisciplinaridade como Poíesis. São Paulo: PUC,
1996. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 1996.

FREITAS, L. C. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da Didática.


Campinas-SP: Papirus, 3. ed., 2000.

FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema


nas Ciências Sociais. In: JANTESCH, Ari P. e BIANCHETTI, Lucídio (Orgs.).
Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis-RJ: Vozes, 4
ed., 2000.

GARCIA, J. de A. Interdisciplinaridade, Tempo e Currículo. São Paulo: PUC,


2000. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2000.

JANTESCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (Orgs.). Interdisciplinaridade: para além da


filosofia do sujeito. Petrópolis-RJ: Vozes, 4 ed., 2000.

JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Rio de Janeiro: Imago,


1976.

MILANESI, I. Interdisciplinaridade no cotidiano dos professores: avaliação de


uma proposta curricular de estágio. Cáceres-MT: Unemat Editora, 2008.

PISTRAK. M. M. Fundamentos da escola do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Expressão


Popular, 2002.

SANTOMÉ, J. T. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado.


Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

SANTOS, B. S. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência.


São Paulo: Cortez, 2000.

UNEMAT. Projeto Político Pedagógico de Pedagogia. Cáceres-MT: 2007.

ZOBÓLI, G. B. Um Projeto de Integração à Luz da Interdisciplinaridade. São


Paulo: PUC, 1992. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de
Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1992.

150 9 junqueira&marin editores 9


U PARTE
CURRÍCULO II
E FORMAÇÃO V
NO ENSINO SUPERIOR

i CAPÍTULO VI j
EDUCAÇÃO DA PEQUENA INFÂNCIA: UM OLHAR
SOBRE A FORMAÇÃO INICIAL DOS PROFESSORES DE
EDUCAÇÃO INFANTIL²⁵

Moema Helena Koche de Albuquerque Kiehn²⁶

Introdução

O em
currículo para o curso
núcleo
de
torno
Pedagogia
do dos
presente
elementos
e suastrabalho
possíveis
constitutivos
implicações
é o debate
do

educativas, especialmente no que diz respeito à formação de


professores para trabalhar com crianças pequenas (zero a seis
anos). Embora saibamos que esse profissional tem uma história
de formação assentada em cursos de nível médio (antigo 2°
grau²⁷), as discussões sempre apontaram para a importância de
essa formação ser assumida pelo ensino superior.
Tal preocupação tornou-se pauta de discussão da
agenda política e da área acadêmica pelo final dos anos 1990,
em grande parte em consequência do texto apresentado pela lei
9394/96 (BRASIL, 1996) que propunha em seu artigo 87, inciso
4º: “Até o final da Década da Educação²⁸ somente serão admitidos
professores habilitados em nível superior ou formados por
treinamento em serviço” (p. 49).

9 junqueira&marin editores 9 151


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Ao mesmo tempo em que a lei estabelecia a
formação em nível superior, engendrava também mecanismos
para aligeirar ou até mesmo simplificar a realização dessa
formação. Um deles foi a criação de uma nova modalidade de
curso, paralelo ao curso de Pedagogia, denominada Curso
Normal Superior que passaria a ter como função a formação
dos professores para a Educação Infantil. Essa disposição
legal desencadeou uma série de debates calorosos na área da
educação, uma vez que apontava na direção contrária às críticas
gestadas no campo da Educação Infantil que defendiam a
necessidade da formação do respectivo professor no âmbito das
universidades, com currículos que não atuassem em detrimento
do espaço de reflexão social, da política e da epistemologia e
nem da necessária inserção prático-pedagógica. Acrescia-se a
essas expectativas dos profissionais da educação da infância a
expectativa do aprimoramento de políticas de profissionalização
que propiciassem uma formação continuada alimentadora de
ganhos na direção de uma intervenção educativa de qualidade,
socialmente referendada.
Ao resgatar as informações a respeito da instauração
do espaço da Educação Infantil na sociedade brasileira, é
fundamental observar que, no âmago de tal questão, distingue
se a ocorrência de uma dupla função proposta e exercida
pelas instituições infantis: por um lado, destaca-se a função de
assistência (cuidado), orientada para o atendimento às crianças
pobres; por outro, destaca-se a função educativa (ensino),
orientada para as crianças das classes economicamente mais
abastadas²⁹. No rastro dessa história, a ampliação gradativa da
relevância dada à Educação Infantil passou a exigir o crescimento
de pesquisas que dessem visibilidade às especificidades
das instituições responsáveis pelas crianças, assim como a
preocupação com a formação dos professores que exerceriam
seu trabalho com crianças menores de sete anos.
O crescimento da produção científica na área tem
cumprido um papel imprescindível, uma vez que suscitou

152 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
análises, reflexões e debates que propiciaram destacar meios
de atuação significativos para a Educação Infantil e indicaram
a importância de rever e analisar os currículos dos cursos de
pedagogia que constituem a base formadora dos professores
desse nível de ensino.
O ponto principal desse movimento de reflexão
sobre a ação docente parece-nos ser a importância da
indissociabilidade entre teoria e prática como fonte de
conhecimento e de transformação da ação pedagógica. Kramer
(1994) já advogava essa linha de pensamento ao afirmar: “[...]
cabe enfatizar que a teoria é prenhe de prática, gerada por
ela e voltando-se para ela de forma crítica” (1994, p.17). Caso
contrário, incidiríamos na dicotomia entre teoria e prática
e, consequentemente, no empobrecimento da capacidade de
reflexão sobre os elementos advindos da prática pedagógica em
consonância com as orientações teóricas.
Nessa perspectiva, tomamos como ponto de partida
o reconhecimento de que toda e qualquer instituição educativa
se constitui de espaços estruturados por meio de programas
ou matrizes curriculares, nos quais são estabelecidos traços
específicos e contingentes de organização do sistema cultural de
uma determinada sociedade historicamente situada.
Partindo desse pressuposto, podemos afirmar que
o currículo não é um conjunto de conhecimentos neutros, ou
uma mera organização burocrática do ensino, pelo contrário, é
um meio pelo qual se explicitam mecanismos essenciais de um
propósito educativo alicerçado numa trama ideológica, política,
social e institucional:

[...] O currículo não é um elemento inocente e neutro de


transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo
está implicado em relação de poder, o currículo transmite
visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz
identidades individuais e sociais particulares (MOREIRA;
SILVA, 2002, p.08).

9 junqueira&marin editores 9 153


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Por outro lado, quando organizado com a
participação do grupo social ao qual se destina, o currículo
pode constituir-se de elementos culturais e conhecimentos
construídos historicamente pela humanidade, considerados
preferenciais ou prioritários no intuito de responder às
demandas de um determinado contexto social, histórico e
cultural.
Sendo assim, o conhecimento sobre quais
elementos culturais devam ser considerados e que mereçam
ser preservados e perpetuados para as novas gerações permite
identificar a intencionalidade hegemônica, explícita ou implícita,
na seleção definida como objeto de ensino.
Dessa maneira, interessa saber de que modo
essa formação ocorre nos cursos de Pedagogia, uma vez que
os currículos estão elaborados com base em determinadas
orientações teóricas e metodológicas que correspondem a
interesses hegemônicos, vindo a culminar com a seleção de
conteúdos intelectuais a serem aprendidos. Parafraseando
Popkewitz (1997), um currículo é uma prática socialmente
construída e politicamente determinada. E, ainda, afirma que as
orientações presentes no currículo de alguma forma
[...] privilegiam certos tipos de interpretação do mundo a partir
de diferentes possibilidades. As regras do currículo também
fornecem uma tecnologia de auto-regulação e autocontrolo),
uma forma de poder que tem implicações no modo como os
indivíduos se gerem a si próprios, representam as regras,
padrões e estilos de raciocínio, construindo assim fronteiras e
possibilidades quotidiana (POPKEWITZ (1997, p. 47).

Nessa mesma linha, Sacristán (2000) levanta


contundentes questões sobre o currículo e sua inter-relação
com as discussões sobre o caráter político, social e balizador
das ações pedagógicas, afirmando:
Os currículos recaem em validações que, dentro de uma
sociedade na qual o conhecimento é componente essencial

154 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
a qualquer setor produtivo e profissional, têm uma forte
incidência no mercado do trabalho [...] Ordenar a distribuição
do conhecimento através do sistema educativo é um modo não
só de influir na cultura, mas também em toda a ordenação social
e econômica da sociedade (SACRISTÁN, 2000, p. 108).

É interessante perceber que vivemos um período


de consequências do processo de mudança na estruturação
curricular dos cursos de Pedagogia desde a aprovação, em 13 de
dezembro de 2005, das Novas Diretrizes Curriculares Nacionais,
que têm como principal orientação a docência para o Ensino
Fundamental e para a Educação Infantil.
Num esforço de síntese, é possível perceber que
essas diretrizes trazem como eixo central de orientação para os
cursos de Pedagogia a formação de professores circunscrita às
funções do magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais
do Ensino Fundamental. Da mesma forma, nos cursos de Ensino
Médio, na modalidade Normal e de Educação Profissional, na
área de serviços e apoio escolar e em outras nas quais sejam
previstos conhecimentos pedagógicos. Nesse documento, consta
que a organização do curso de Pedagogia se dará conforme a
seguinte indicação: “O curso de Pedagogia oferecerá formação
para o exercício integrado e indissociável da docência, da gestão
dos processos educativos escolares e não-escolares, da produção
e difusão do conhecimento científico e tecnológico do campo
educacional” (BRASIL, 2005).
Vale destacar que o processo de elaboração e
de aprovação dessa lei representou um marco político de
negociações entre os órgãos governamentais que representavam
o Estado e a sociedade civil por intermédio de suas associações³⁰.
Portanto, os avanços e as permanências presentes nesse
documento expressam os resultados da luta de forças e de
interesses somado aos limites inerentes às negociações no
campo da política.
Entendo, contudo, que essa lei simboliza uma
conquista no campo educacional, uma vez que assegura a

9 junqueira&marin editores 9 155


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
formação dos professores de Educação Infantil bem como dos
professores do Ensino Fundamental nas Universidades e, ao
mesmo tempo, institucionaliza uma prática que já vinha se
desenvolvendo em algumas unidades federais referente à oferta
conjunta, qual seja: a formação para o Ensino Fundamental
e para a Educação Infantil. Agora nos interessa saber de que
forma esses cursos serão planejados e desenvolvidos, será que
neles veremos contempladas as especificidades das crianças e
de sua educação independente do nível de ensino que possam
frequentar, prevalecendo uma educação para a infância? Ou
teremos a formação para a Educação Infantil secundarizada em
benefício do Ensino Fundamental, quando não, a ocorrência de
um ajustamento equivocado do currículo do Ensino Fundamental
para a Educação Infantil, uma vez que o primeiro já consolidou
uma trajetória de formação?
Com base nas questões supracitadas, consideramos
imprescindível conhecer como os cursos de Pedagogia das
Universidades Federais no Brasil se constituem como espaço
de formação de professores de Educação Infantil. Cremos que
possa partir daí uma discussão aprofundada teoricamente sobre
os elementos balizadores que tratam das funções educativas na
Educação Infantil em consonância coma formação de professores
de crianças pequenas. Esta é a parte considerável das motivações
para a realização da pesquisa que ora apresentamos.
A presente pesquisa parte do levantamento dos
currículos das universidades federais do país que ofereceram
cursos de Pedagogia com formação de Professores de Educação
Infantil no ano de 2005³¹, nos endereços eletrônicos do
Ministério da Educação (MEC) e do Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (INEP) e das próprias universidades. Com isso,
objetiva identificar as orientações e pressupostos teóricos que
permeiam as configurações de criança e infância e sua educação,
enunciadas nesses documentos.
Com base nas informações disponíveis em meio
eletrônico das universidades federais, foi possível identificar e

156 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
selecionar dados significativos que possibilitaram a elaboração
de um mapeamento detalhado da estrutura curricular
encontrada nos cursos de pedagogia, na tentativa de desvelar
o espaço reservado, no corpo curricular, ao estudo e (re)
conhecimento da criança, da infância e de sua educação. E, ainda,
buscar perceber as áreas de estudo privilegiadas, as orientações
teóricas e as possibilidades de interlocução disciplinar.
A intenção instaurada nesta trajetória é de que
os resultados advindos do trabalho de investigação sirvam de
indicadores para o longo processo de busca da consolidação
de uma pedagogia da infância, campo de conhecimento que
considero em construção, cujo eixo central das discussões
procura tomar tanto a inserção do adulto como a cultura já
instituída, e também “[...] a própria criança, seus processos
de constituição como seres humanos em diferentes contextos
sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas,
estéticas, expressivas e emocionais” (ROCHA, 1999, p. 62).
Este estudo aliou-se, portanto, a um esforço que
decorre fundamentalmente da necessidade de sistematização e
de produção de conhecimento, oriundas da realidade empírica
e dos estudos e debates travados na área. Nessa medida,
procuramos desenvolver estratégias que identificassem
estruturas e mecanismos de composição nos currículos
de formação, na expectativa de alimentar o debate sobre a
construção de uma Pedagogia da Infância e seus possíveis
indicadores.
A ideia central que advogamos pressupunha que
a análise da matriz curricular, realizada por meio do conjunto
disciplinar, das ementas, da seleção de alguns conteúdos e da
identificação das especificidades que tornam a formação para
professores de Educação Infantil diferente dos demais cursos,
permitisse conhecer os fundamentos que balizam os cursos
de Pedagogia para a formação de professores de Educação
Infantil no país. A técnica considerada mais apropriada para
conseguir atingir o objetivo supra proposto foi a de análise de

9 junqueira&marin editores 9 157


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
conteúdo. A escolha cautelosa dessa técnica metodológica deu
se por estarmos lidando com documentos legais produzidos em
uma sociedade dividida em classes e que, portanto, sinalizam
interesses específicos de grupos e de classes dessa sociedade,
os quais, possivelmente, demarcam em suas entrelinhas as
condições contextuais de sua produção.
Considerando as variantes que surgiram durante a
recolhados dados nosendereços eletrônicos das universidades³²
e os encaminhamentos decorrentes da técnica metodológica
escolhida, foram selecionadas, para compor o corpus de análise
desta pesquisa, as Universidades que disponibilizaram sua matriz
curricular com a apresentação do conjunto de disciplinas e suas
respectivas ementas quando apresentadas ou disponibilizadas,
bem como as horas destinadas a cada disciplina. Ainda, as
Universidades que informavam apenas a matriz curricular com
as devidas disciplinas e horas, mas cujas ementas³³ não foram
apresentadas ou encontradas. Vejamos abaixo a relação das
Universidades Federais selecionadas para compor o corpus de
análise desta pesquisa:

1. RELAÇÃO DAS UNIVERSIDADES


SELECIONADAS PARA ANÁLISE

REGIÃO INSTITUIÇÃO FEDERAL SIGLA

Norte ‐ Universidade Federal do Pará UFPA

Nordeste ‐ Universidade Federal de Alagoas


Sergipe UFAL

UFS

Centro‐

Oeste

Sudeste ‐Universidade Federal do Espírito Santo UFES

158 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICASOeste PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
Sudeste ‐Universidade Federal do Espírito Santo UFES

‐ Universidade Federal Fluminense UFF

‐ Universidade Federal de Minas Gerais UFMG

‐ Universidade Federal de Uberlândia UFU

‐ Universidade Federal de Viçosa UFV

‐ Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro UNIRIO

‐ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ

‐ Universidade Federal de São João del‐Rei UFSF

Sul ‐ Fundação
Universidade
UniversidadedeFederal
Federal do Santa
Rio
Paraná
Grande
Catarina
Maria
do Rio
doGrande
Sul do Sul FURG

UFRGS

UFSC

UFPR

UFSM

É importante registrar que, do total de dezenove


Universidades previamente selecionadas, três delas não
disponibilizaram, até a data³⁴ em que foi realizada a pesquisa,
as matrizes curriculares com suas respectivas disciplinas e
ementa e, por isso, não aparecem na constituição do quadro
supracitado. Podem ainda não terem sido encontradas por
mim, pesquisadora. São elas: Universidade Federal do Acre
(UFAC), Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) na
região Norte, e a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS) na região Centro-Oeste. Temos em mãos efetivamente
a matriz curricular de dezesseis Universidades, treze das quais
apresentaram as ementas, e apenas quatro, suas bibliografias.
Foi registrada cada disciplina com sua respectiva
carga horária e ementa, quando apresentada, e fizemos um
cruzamento entre os cursos, a fim de perceber a presença e a

9 junqueira&marin editores 9 159


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
ausência de similaridades e discordâncias em sua estrutura
curricular. Com respeito às especificidades e autonomia de cada
curso na constituição de seu currículo, foi registrado fielmente
o nome de cada disciplina subjacente à determinada área de
conhecimento.
Essa medida propiciou a apresentação de um
panorama extremamente diversificado e complexo do ponto
de vista da organização curricular, uma vez que a estrutura
curricular de base, que orienta os cursos de Pedagogia, está
delineada em torno de três eixos, quais sejam: Fundamentos
Teóricos, Metodologias e Prática³⁵. Entendemos que não seria
possível seguir essa indicação estrutural em razão do universo
de áreas de conhecimentos e disciplinas expressa nos currículos
analisados. Foi necessário, então, redefinir os eixos orientadores
com base nas disciplinas presentes no material estudado.
Essa iniciativa surgiu com a intenção de contemplar a grande
maioria das disciplinas, respeitando as especificidades de cada
instituição. Dessa maneira, os três eixos orientadores assumem
a seguinte configuração: Fundamentos Gerais, Formação
Pedagógica e Formação Pedagógica Específica para a Educação
Infantil.
Definiram-se como Fundamentos Gerais as diversas
áreas de conhecimento que historicamente vêm contribuindo
e exercendo influência na constituição da Educação, bem
como as novas áreas em ocorrência que, pela importância de
seus saberes, têm enriquecido efetivamente as discussões no
campo educacional. Entendemos por Formação Pedagógica
a composição disciplinar instituída para tratar diretamente
do processo pedagógico e suas implicações no âmbito das
instituições educacionais.
Como terceiro eixo orientador dos currículos,
temos a Formação Específica para a Educação Infantil, que diz
respeito às disciplinas que tratam, de algum modo, da educação
de crianças de zero a seis anos de idade que frequentam creches

160 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
e pré-escolas. Nesse campo disciplinar, estão os fundamentos
teóricos, a organização dos processos educativos e as
metodologias específicas desse nível de ensino.
É importante lembrar que o critério utilizado
para a formação desse terceiro eixo que trata da Formação
Específica para a Educação Infantil foi a seleção de disciplinas
que apresentavam explicitamente a especificidade da docência
com crianças pequenas por sua denominação semântica ou por
intermédio do conteúdo expresso nas ementas, às quais tivemos
acesso.
Com a intenção de permitir maior elucidação sobre
as questões levantadas até o momento, apresentarei um quadro
comparativo que possibilita a visualização quantitativa, dados
os valores percentuais das áreas de conhecimento encontradas
nos currículos de formação para professores de Educação
Infantil que constituem os três grandes eixos orientadores dos
currículos analisados.

2. QUADRO COMPARATIVO

9 junqueira&marin editores 9 161


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s

Área de Formação Específica da Educação 77,78%

Educação Física 55,56%

Português Instrumental/ Produção de Texto 55,56%

Arte 55,56%

Avaliação 50,00%

Organização e Planejamento Pedagógico 38,89%

Trabalho Conclusão de Curso/Monografia 38,89%

Seminário Especial 33,33%

162 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI

2.2 FORMAÇÃO PEDAGÓGICA ESPECÍFICA PARA EDUCAÇÃO INFANTIL

Fundamentos da Educação Infantil 55,56%

Organização dos Processos Educativos na Educação Infantil 33,33%

Organização Metodológica Específica na Educação Infantil 33,33%

Tecendo Algumas Considerações

A iniciativa de construir um mapeamento a partir


da identificação dos programas disciplinares que compõem os
currículos dos cursos de formação para professores de educação
infantil, no ano de 2005, possibilitou identificar de que maneira
as crianças e a infância aparecem tomadascomo objeto de estudo,
bem como de percebera quais áreas de estudo é dada prioridade
e quais orientações teóricas prevalecem como matrizes na
interlocução disciplinar expressa nesses documentos.
De acordo com as informações anotadas neste
quadro comparativo, chama a atenção, à primeira vista,
a predominância quantitativa de áreas de conhecimento
na constituição dos Fundamentos Gerais e da Formação
Pedagógica em comparação com o acervo de áreas ou campos de
conhecimento que integram a Formação Pedagógica Específica
para Educação Infantil.
Este é um dado no mínimo instigante, uma vez que
essas informações foram extraídas dos currículos de formação
para professores de Educação Infantil, ainda que saibamos que
a formação para Educação Infantil não é objeto formativo do
curso de Pedagogia, já que essa formação ocorre em caráter de
habilitação dentro das condições que lhe cabe fazê-la, ou seja,
num espaço de tempo reduzido com disciplinas e conteúdos
restritos. Entretanto, pressupõe-se essencialmente que se faça

9 junqueira&marin editores 9 163


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
uma incursão teórica a fim de possibilitar, ao egresso, acesso
aos conhecimentos que circundam a constituição da Educação
Infantil, bem como apresentar embates e debates oriundos da
tentativa de delimitações de papéis, funções, espaços, políticas,
somados à defesa da especificidade desse nível de educação.
Assim, podemos afirmar que a formação para
professores de Educação Infantil permanece numa posição de
segunda ordem, considerando que a prioridade está na formação
para professores das séries iniciais do Ensino Fundamental. Esta
colocação secundarizada representa, de modo geral e dentro do
universo acadêmico, o entendimento e o lugar de importância
concebida à formação de professores que vão exercer a função
no quadro da educação das crianças pequenas.
Com base nas informações obtidas ante o
levantamento das áreas de conhecimentos e das disciplinas
subjacentes a esses saberes, foi possível identificar, na
totalidade dos currículos de Pedagogia que oferecem a formação
em Educação Infantil, a prioridade da formação pautada nos
fundamentos teóricos, os quais estabelecem como áreas de
conhecimento protagonistas nesse processo a Psicologia, a
Filosofia, a Sociologia e a História.
Dessa forma, a tônica, de certo modo corrente no
meio educacional, do esvaziamento da função teórica nesses
cursos não é verdadeira no âmbito dos documentos analisados,
uma vez que tomamos conhecimento da permanência de uma
trajetória de afirmação da importância do caráter teórico na
formação dos professores, ainda que a ênfase esteja localizada
no aspecto macro da organização e constituição da sociedade.
Diante deste cenário de indefinições, ou melhor,
de redefinições de papéis, sobretudo, de enfrentamento acerca
das questões epistemológicas e pragmáticas que versam sobre
orientações pedagógicas para crianças entre 0 e 6 anos de idade,
encontramos, nesses mesmos documentos, uma perspectiva
teórica que busca outras possibilidades de aprofundar a

164 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
compreensão sobre os elementos constitutivos da infância,
das crianças e da sua educação, através da incursão em outros
campos disciplinares, especialmente com as ciências sociais,
tendo em vista a complexidade expressa na contemporaneidade.
Esse fato torna-se evidente à medida que
nos deparamos com disciplinas subjacentes às áreas de
conhecimentos que integram os fundamentos teóricos e
metodológicos da educação e as práticas pedagógicas, as quais
apresentam determinações semânticas que referendavam
muitas vezes as categorias criança, infância, educação infantil
e pré-escolar. E, ainda, quando as disciplinas não demarcavam
expressamente a Educação Infantil na sua nomenclatura, a
estratégia utilizada por muitos dos cursos era incorporar,
nas ementas das disciplinas existentes, os fundamentos da
Educação Infantil, a partir do estudo das crianças, da infância e
das implicações pedagógicas para a sua educação.
Essa perspectiva é defendida por Rocha (1999) ao
chamara atenção para o fato de que o trabalho a ser desenvolvido
com crianças de zero a seis anos de idade implica redimensionar
posições teórico-metodológicas com vistas a orientar a “[...] ação
pedagógica por olhares que contemplem sujeitos múltiplos e
diversos, reconhecendo sobretudo a infância como ‘tempo de
direitos’, um tempo, como diria Larrosa, enigmático” (ROCHA,
1999, p. 52). Esse processo de mudança de paradigma torna
se perceptível quando encontramos áreas de conhecimento
tradicionais na constituição da educação em interlocução com
a Pedagogia, como Psicologia, Sociologia, Filosofia, Biologia e
História e, ao mesmo tempo, atentas ao surgimento de outros
saberes. Como mostra o quadro acima, um movimento de
inserção no campo disciplinar de conteúdos que contemplam
a discussão sobre o processo de constituição da criança, da
infância e de sua educação, sobretudo sobre as implicações
pedagógicas que decorrem dessas reflexões para a formação dos
professores.

9 junqueira&marin editores 9 165


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Os documentos analisados revelaram algumas
regularidades e avanços no que diz respeito à formação docente
dos professores para a Educação Infantil. Num esforço de
síntese, podemos afirmar que percebemos duas perspectivas
distintas de formação para professores de Educação Infantil.
Primeiramente, podemos citar a influência do modelo escolar
expresso pelos objetivos educacionais peculiares ao Ensino
Fundamental que, tradicionalmente, concedem prioridade aos
domínios elementares e à construção de conceitos de forma
sistemática por meio de processos de ensino–aprendizagem
de conteúdos das mais diferentes áreas do conhecimento.
Consoante a esse direcionamento, pudemos notar que algumas
ementas expressam a preocupação com temas subjacentes à
alfabetização, aos domínios de conceitos das mais diversas áreas
de conhecimento, bem como apresentam de forma didatizada os
elementos lúdicos, como a brincadeira, o jogo e a arte.
Em outra medida, encontramos uma tendência
anunciada por Rocha (1999) quanto à construção e à
consolidação de uma Pedagogia da Infância que tem como
fundamento o reconhecimento das especificidades da Educação
Infantil, tomando como objeto de estudo a criança e seus
processos de constituição como seres humanos em diferentes
contextos sociais, culturais, intelectuais, criativos, estéticos,
expressivos e emocionais.
Acredito que essa tendência reflete a preocupação
de tratar das dimensões relativas ao trabalho pedagógico com
as crianças pequenas, à medida que se busca a intencionalidade
educativa por meio da sistematização, diversificação e
ampliação das experiências e do conhecimento, considerando
as particularidades do processo nesses seres humanos de pouca
idade e a importância das interações sociais, das linguagens e da
brincadeira.
Nessa direção, vemos diversas iniciativas de
articulação entre os segmentos da política, pesquisa e pedagogia
que têm contribuído incansavelmente para a construção e

166 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
consolidação de uma Pedagogia da infância, com objetivo de
delimitar a especificidade da ação educativa junto às crianças
de 0 a 6 anos em instituições de Educação Infantil, cujas práticas
de cuidado e educação se diferem das práticas realizadas em
âmbito doméstico, hospitalar e escolar.
Sobre essas questões, já nos anos 90, encontramos
uma significativa produção incentivada pela COEDI/MEC³⁶ que
resultou nos documentos comumente conhecidos “das carinhas”.
Trazemos, a exemplo, o caderno intitulado Critérios para o
atendimento em creches e pré-escolas que respeitem os direitos
fundamentais da criança, elaborado por Fúlvia Rosemberg e
Maria Malta Campos, o qual, faz indicações para se pensar uma
pedagogia que esteja atenta às singularidades e necessidades
das crianças pequenas. Nesse sentido, a referida produção
desafia-nos a redirecionar o olhar, até então centrado no adulto,
de forma a ampliar o debate para o encontro e reconhecimento
também das crianças e de suas competências, das quais, ainda
hoje pouco se sabe ou se dá legitimidade.
Embora essa não seja uma tendência predominante
nos cursos analisados, entendo que a incidência de disciplinas
específicas para a Educação Infantil indica um reconhecimento
das dimensões humanas peculiares às crianças e às
singularidades e simultaneidades da infância, ainda que vividas
e compartilhadas em espaços institucionais de educação coletiva
como creches e pré-escolas.
Diante dessas considerações, é possível perceber
que, se alguma coisa foi feita neste trabalho investigativo,
muito ainda há por fazer, uma vez que o objeto de investigação
revelou-se infinito de possibilidades de análises e de eloquência.
Este estudo permitiu anunciar, pela estratégia do levantamento
dos currículos, a construção de novas orientações teóricas e as
indicações pedagógicas que estão sendo gestadas nos cursos
de formação de professores de Educação Infantil no âmbito das
universidades.

9 junqueira&marin editores 9 167


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
Gostaríamos de concluir as discussões em torno
desta pesquisa sem a intenção de encerrar as inúmeras
possibilidades de estudo e investigação, mas com a expectativa
de que sua realização possibilite enriquecer e fazer avançar os
debates oriundos da área da educação, principalmente no que
se refere à formação dos professores de Educação Infantil, num
esforço na direção de constituirmos uma educação de qualidade
para a infância brasileira. 3

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Brasília. Centro


Gráfico do Senado Federal, 1988.

BRASIL: MEC/COEDI. Critérios para um atendimento em creches que respeite os


direitos fundamentais das crianças. Brasília: MEC/COEDI, 1995.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira nº 9.493/1996, p. 49.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação.


Novas diretrizes curriculares para o curso de Pedagogia. 2005. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pcp05_05.pdf>.

CAMPOS, Maria Malta. A formação de professores para crianças de zero a dez


anos: modelos em debate. Educação Sociedade [on line], v. 20, n. 68, p. 126-142.
1999. ISSN 0101-7330.

CAMPOS, Roselane Fátima. O cenário de formação de professores no Brasil:


analisando os impactos da reforma da formação dos professores (versão
preliminar). Trabalho para a XII Reunião Nacional da ANFOPE. Brasília, agosto
de 2004.

KIEHN, Moema Helena Koche de Albuquerque. A Educação Infantil nos


Currículos de Formação dos Professores no Brasil. 2007, 153f. Dissertação
(Mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

168 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VI
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Política de formação profissional para a
educação infantil: Pedagogia e Normal Superior. Educação e Sociedade [online],
v. 20, n. 68, p. 61-79.1999. ISSN 0101-7330.

KRAMER, Sonia. Currículo de Educação Infantil e a Formação dos Profissionais


de Creche e Pré-escola: questões Teóricas e Polêmicas. In: BRASIL. Por uma
política de formação do profissional de Educação Infantil. MEC/SEF/COEDI.
Brasília: MEC/SEF/DPE/COEDI, 1994.

KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Infância e Educação Infantil: uma abordagem


histórica / Moysés Kuhlmann Jr. Porto Alegre: Mediação, 1988.

Educando a infância brasileira. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira, FARIA FILHO,
Luciano Mendes de e VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.).500 anos de educação no
Brasil. (Org). 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

MOREIRA, Antonio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu (orgs.). Currículo, cultura e


sociedade. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2002.

PIMENTA, Selma Garrido. Aspectos Gerais da Formação de Professores para


a Educação Infantil nos Programas de Magistério – 2º Grau. In: BRASIL.
Ministério da Educação e Cultura. Por uma política de formação do profissional
de Educação Infantil. MEC/SEF/COEDI. Brasília: MEC/SEF/DPE/COEDI, 1994.

POPKEWITZ. Thomas S. Profissionalização e formação de professores:


algumas notas sobre a sua história, ideologia e potencial. In: NOVOA, Antônio.
Os professores e sua formação. 3 ed., Portugal: Dom Quixote, 1997, p. 35-50.

ROCHA,EloísaAcires Candal.ApesquisaemeducaçãoinfantilnoBrasil:trajetória
recente e perspectiva de consolidação de uma pedagogia. Florianópolis: UFSC,
Centro de Ciências da Educação, Núcleo de Publicações, 1999, 290 p.

SACRISTÁN, José Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3 ed. Porto
Alegre: Artmed, 2000.

9 junqueira&marin editores 9 169


CAPÍTULO VI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
SACRISTÁN, José Gimeno. O aluno como invenção. Trad. Daizy Vaz de Moraes.
Porto Alegre: Artmed, 2005.

_________. O currículo uma reflexão sobre a prática. Trad. Ernani F. da F. Rosa. 3.


ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

SCHEIBE, Leda e AGUIAR, Márcia Ângela. Formação de profissionais da


educação no Brasil: o curso de pedagogia em questão. Educação e Sociedade,
Campinas, v. 20, n. 68, 220-238, dez. 1999.

SILVA, Carmem Silvia Bissolli da. Curso de pedagogia no Brasil: história e


identidade. 2º edição revista e atualizada. Campinas, SP: Autores Associados,
2003.

VALA, Jorge. A análise de conteúdo. In SILVA, Augusto, Santos e PINTO, José


Madureira (Orgs.). Metodologia das Ciências Sociais. Porto, Portugal: Edições
Afrontamento, 1986, p.101-128.

VIEIRA, Lívia Maria Fraga. A formação profissional da educação infantil no


Brasil no contexto da legislação, das políticas e da realidade do atendimento.
Pro-Posições, v.10, n. 1, p. 28-39, mar. 1999.

170 9 junqueira&marin editores 9


U PARTE
CURRÍCULO II
E FORMAÇÃO V
NO ENSINO SUPERIOR

iCAPÍTULO VIIj
EXPERIÊNCIAS DE ESTAGIÁRIOS DE LICENCIATURAS:
AS RELAÇÕES ENTRE A UNIVERSIDADE ESCOLA

Heloisa Salles Gentil

Introdução

Esta
universidade e escola,
projeto
análise
desenvolvido
de pesquisa
é parte dos resultados do
Formação de professores
no campus universitário
“Jane Vanini”, UNEMAT/ Cáceres, junto aos cursos de
licenciatura. Os dados aqui apresentados se referem ao grupo
de alunos em fase de estágio, sujeitos desta pesquisa até o
momento, e sua visão sobre o estágio, especialmente sobre a
relação entre a universidade e a escola. A pesquisa se pautou
em estudos bibliográficos sobre o tema, análise de documentos
e entrevistas com alunos dos cursos de licenciatura (cuja
referência neste trabalho será feita por letras), sendo 9 (nove)
de História, 7 (sete) de Matemática, 4 (quatro) de Computação.
A variedade na quantidade se explica pela anuência à pesquisa
e/ou pelo número de estagiários disponíveis no período em que
se realizou a coleta de informações.

9 junqueira&marin editores 9 171


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Partimos do pressuposto de que a universidade e a
escola devem manter relações estreitas tendo em vista serem
instituições sociais com o mesmo objetivo de desenvolvimento
e formação humana, respeitando-se as diferenças no que diz
respeito aos níveis de ensino e à função também profissionalizante
da universidade. Além disso, escola e universidade compõem
um círculo de formação no sentido de que a universidade forma
os profissionais que, na escola, serão os “formadores” dos
próximos alunos da universidade. Este é um dos fatores pelos
quais as críticas à qualidade da educação recaem sobre ambas
as instituições, escola e universidade, sendo responsabilizadas
tanto uma como a outra.
O objetivo deste trabalho é analisar, face ao que
poderia ser, como os alunos estagiários veem as relações entre a
universidadee aescolaapartir de suaexperiênciano momento do
estágio - espaço para que o professor em formação experimente,
vivencie seu campo de trabalho, relacione sua aprendizagem
a questões práticas, inicie a construção de bases no campo
profissional. Pode ser um momento de inovação ou repetição
de práticas docentes, transformação ou reprodução de relações
entre os sujeitos envolvidos no processo de conhecimento nas
instituições.
O estágio tem sido considerado momento
privilegiado da relação teoria/prática, relação que pode ser
vista sob a ótica dicotômica ou dialética. Quando encarado como
espaço de aplicação prática de teorias previamente aprendidas,
sustenta-se na lógica de uma formação pautada na racionalidade
técnica, considerando a profissão professor centrada em seu
“fazer”.
Pimenta (2004) afirma que a visão do estágio
como aplicação prática da teoria é reducionista, baseia-se na
perspectiva da prática instrumental, afirma uma compreensão
equivocada de estágio como teoria ou prática e não teoria e
prática, o que empobrece as experiências e provoca problemas
na formação.

172 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
O reducionismo dos estágios às perspectivas da prática
instrumental e do criticismo expõe os problemas na formação
profissional docente. A dissociação entre teoria e prática aí
presente resulta em um empobrecimento das práticas nas
escolas, o que evidencia a necessidade de explicitar por que o
estágio é teoria e pratica (e não teoria ou prática) (PIMENTA,
2004, p.41).

Por outro lado, tomado como atividade teórico


prática, o estágio fundamenta-se na racionalidade prática e
tende a promover investigações e reflexões sobre a atividade
desenvolvida e/ou em desenvolvimento, buscando referenciais
que permitam análises consistentes e possam gerar, inclusive,
reposicionamentos e novos conhecimentos, consolidando a
práxis.

Possibilidades de relação entre universidade e escola

Há muito se vem discutindo a relação entre a


universidade e a escola, ora apenas como níveis sequenciais de
escolarização, ora como instituições cuja ação integrada poderia
promover a transformação social ou se responsabilizar pelo
desenvolvimento nacional, ou, ainda, como possíveis parceiras,
porque espaços de formação e de produção de conhecimento.
No caso em questão, voltamos nossos olhares sobre
os cursos de formação de professores e, portanto, ao falarmos
de relação universidade escola, direcionamos nosso foco ao
estágio, momento dessa formação em que obrigatoriamente a
universidade estabelece uma “parceria” com a escola.
As discussões sobre formação de professores têm
enfatizado a relação entre universidade e escola, apontando
para uma necessária articulação entre essas instituições e as
demandas sociais. Há ênfase na necessidade de a formação em
nível superior não perder de vista, em seus processos, o que
será exigido dos “professores formados” pelas comunidades

9 junqueira&marin editores 9 173


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
escolares. Há um chamamento para que as instituições de
ensino superior voltem seus olhares ao campo de atuação do
profissional professor: as escolas de ensino fundamental e
médio.

Se a abertura das escolas à participação da comunidade é


fundamental, da mesma forma, as instituições formadoras
precisam penetrar nas novas dinâmicas culturais e satisfazer
às demandas sociais apresentadas à educação escolar (BRASIL,
2002, p.18).

Do mesmo modo, as discussões atuais sobre a


formação de professores também têm sido direcionadas a
conteúdos escolares, especialmente no que diz respeito ao curso
de Pedagogia tem-se privilegiado, por vezes, a relação entre o
conteúdo previsto para o ensino fundamental e o conteúdo a
ser desenvolvido na educação superior. Nesse caso, corre-se o
risco de subestimar a função da educação superior, enfatizando
as técnicas de “aplicação” ou “repasse” de conteúdos e deixar
de lado a característica mais ampla deste nível de ensino, a
produção de conhecimento.
Indagamo-nos: qual seria então a relação ideal entre
a universidade e a escola? Não temos uma resposta previamente
elaborada, mas o contexto histórico mais amplo pode nos ajudar
a compreender caminhos possíveis para essa relação. É como
afirma Noronha:

Faz-se necessário estabelecer articulações entre as políticas


educacionais e as relações objetivas que as produzem ao longo
da história, acompanhando os lentos processos civilizatórios
onde a educação formal tem um papel preponderante na
formação dos sujeitos históricos. (2006, p. 67).

Marcondes (2001, p. 67), em estudo sobre os


estágios de prática de ensino, afirma que “a relação entre a

174 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
universidade e as escolas da comunidade são dependentes da
visão teórica dominante em determinado momento histórico”
(p. 1a) e essa, por sua vez, é determinada pelo contexto sócio
político, direcionando a prática de ensino nos cursos de
licenciatura. A autora apresenta essas tendências teóricas por
década, ressaltando que a presença de novas perspectivas a cada
período não elimina automaticamente a anterior.
Fazemos, a seguir, uma síntese de sua exposição.
A década de 70 é marcada pela Teoria do Capital Humano;
a formação de professores se pauta, predominantemente,
em treinamento de habilidades técnicas e instrumentais,
objetivando “o aprender a aprender”, ou seja, enfatiza as
metodologias. As escolas são consideradas locais onde a prática
tem lugar e espaço para experimentação (surgem as Escolas de
Aplicação) e, em sentido mais amplo, a educação é vista como
capaz de transformar a sociedade. A partir da década de 80, sob
influência da sociologia e antropologia, privilegia-se a discussão
sobre a função social da escola e o desenvolvimento do cidadão
crítico. As teorias reprodutivistas levam à ideia da limitação da
educação frente às questões sociais e políticas e trazem como
consequência a pouca importância dada às práticas de ensino,
considerada a limitação do papel da escola. Mas, na mesma década,
constitui-se também a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos,
visando uma articulação entre o caráter político e social da
educação, propondo a formação de professores competentes e
que pudessem democratizar o ensino, favorecendo as camadas
populares. Essa visão valorizou novamente as práticas de ensino
e a atuação nas escolas públicas. E, ainda nessa década, também
ganha espaço a perspectiva da Educação Popular, orientada
pela ideia do diálogo (Paulo Freire) entre professor e estudante
e pela ampliação do papel do professor na escola, cuja ação
deveria estender-se a experiências extracurriculares e a espaços
não-escolares, espraiando-se em ações educativas junto às
comunidades.

9 junqueira&marin editores 9 175


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Na década de 90, ainda segundo Marcondes (2001),
a educação se viu pressionada pela globalização e passou
por inúmeras reformas que, no fundo, visam à preparação do
indivíduo para as novas condições do mercado de trabalho. A
formação, mais uma vez, enfatiza correntes de pensamento da
psicologia e, nessa lógica, o trabalho docente se orienta por
“planejar, transmitir e avaliar conteúdos curriculares”(p. 4b).
Há uma valorização das práticas de ensino, que devem ocorrer
durante todo o período de formação e em espaços variados, não
só as salas de aula da escola; essas proposições se sustentam
no referencial teórico que conceitua o professor reflexivo e a
prática reflexiva, e que subsidia, inclusive, documentos oficiais
de políticas educacionais. A essa perspectiva some-se também o
conceito de professor pesquisador e o reconhecimento da escola
e seus profissionais como espaço e sujeitos de produção de
conhecimento, aspecto que ainda clama por muitas discussões.
De uma outra maneira, Veiga (2002) discorre,
resumidamente, sobre duas perspectivas em que se
fundamentam as propostas de formação de professores
na atualidade e que representam a contraposição entre a
lógica presente nas normas e diretrizes oficiais, nas políticas
educacionais de governo e a lógica advinda de mobilização e lutas
de entidades da categoria docente e da sociedade civil. Segundo
a autora, seriam: a formação de professores como tecnólogos
do ensino e como agentes sociais, sendo a primeira baseada na
lógica instrumental, de racionalidade técnica, privilegiando a
formação de competências, do saber fazer, aplicar. E a segunda
estaria fundamentada na ideia de que a educação é “uma prática
social e um processo lógico de emancipação” (VEIGA, 2002, p.
82), portanto uma ação política orientada pelos conceitos de
práxis, coletividade, autonomia, contexto histórico...
Com base no exposto, à medida que assumimos uma
posição a respeito da formação que se pretende, podemos pensar,
sem a pretensão de esgotar as discussões, nas possibilidades de
relação entre escolas e universidades nas práticas de estágio.
Partimos da ideia de não tomá-las como local de aplicação de

176 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
teorias aprendidas, visto que tal posicionamento se sustenta
pela disjunção entre teoria e prática; nem como “quintal” da
universidade, ou seja, espaço de menor importância, dependente
em vários aspectos da instituição de ensino superior, posto
que tal perspectiva supõe não reconhecê-la como lócus de
conhecimento, nem aos seus atores como sujeitos.
Compreendemos que as relações entre escola e
universidade podem ser frutos de parceria real, isto é, de ações
conjuntas que partem de análises e elaboração de diagnósticos,
passam pelo planejamento e efetivação de ações coletivas,
em permanente processo de avaliação, todas relacionadas ao
contexto social, histórico, político, cultural e econômico em
que a formação ocorre. Mas isso pode ser apenas um conjunto
de palavras, muitas vezes, já presentes em documentos ou
discursos, inclusive, com tendências neoliberais, caso os atores
do espaço escolar e universitário não estejam dispostos, não se
sintam participantes e sujeitos, no sentido de quem decide e se
responsabiliza pelo que faz conjuntamente. Ou seja, o coletivo
de professores (da escola, da universidade e os “em formação”)
tem que ser mais que a soma de indivíduos, tem que ser sujeitos
da práxis. Isso exige reconhecimento e respeito entre eles, exige
concepções de conhecimento, de educação, da função da escola
e da universidade diferentes da que têm orientado as propostas
de formação até aqui, exige o reconhecimento de diversos tipos
de saberes, da pesquisa como eixo de produção do conhecimento
e do diálogo solidário como procedimento básico para formação
e desenvolvimento humano.

O estágio como um ponto de relação entre


universidade e escola nos cursos de licenciatura:
aspectos legais e atividade prática

O estágio curricular é atividade prevista para todos


os cursos de formação, com função de aproximar o estudante de

9 junqueira&marin editores 9 177


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
seu campo de trabalho, possibilitando o exercício experimental
da profissão sob a orientação e supervisão de profissionais já
experientes na área. Está previsto no artigo 82 da LDB 9394/96
de forma geral e para todos os cursos e normatizado por meio de
resoluções e pareceres específicos para cada área.
No que diz respeito à formação de professores, após
a aprovação da LDB 9394/96, o Conselho Nacional de Educação
(CNE) definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior,
em curso delicenciatura, de graduação plena (resolução do CNE/
CP01, de 18 de fevereirode2002).Conformeeste documento,elas
se constituem “[...] de um conjunto de princípios, fundamentos e
procedimentos a serem observados na organização institucional
e curricular de cada estabelecimento de ensino e aplicam-se a
todas as etapas e modalidades da educação básica”.
Entre seus objetivos, encontramos: “dar relevo à
docência como base da formação, relacionando teoria e prática”,
tema de discussão permanente nos cursos de formação para
professores e mais especificamente nas propostas de estágio,
encarado muitas vezes como espaço de aplicação prática de
teorias previamente estudadas. Podemos verificar a importância
atribuída à prática no processo de formação:

Art. 12 - Os cursos de formação de professores


em nível superior terão a sua duração
definida pelo Conselho Pleno, em parecer
e resolução específica sobre sua carga
horária.
§1º - A prática, na matriz curricular, não
poderá ficar reduzida a um espaço
isolado, que a restrinja ao estágio,
desarticulado do restante do curso.
§2° - A prática deverá estar presente desde
o início do curso e permear toda a
formação do professor.

178 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
§3° - No interior das áreas ou das disciplinas
que constituírem componentes
curriculares de formação, e não apenas
nas disciplinas pedagógicas, todas terão
a sua dimensão prática (grifo nosso).

Dessa maneira, afirma-se que o exercício da docência


(a prática) não pode ser deixado somente para o momento do
estágio, ele tem que permear todo o processo de formação. O
artigo 13 complementa essa afirmação ao orientar sobre o
desenvolvimento da atividade prática e do estágio na formação
de professores:

§1°- A prática será desenvolvida com ênfase


nos procedimentos de observação e
reflexão, visando à atuação em situações
contextualizadas, com o registro dessas
observações realizadas e a resolução de
situações-problema.
§2°- A presença da prática profissional na
formação do professor, que não prescinde
da observação e ação direta, poderá ser
enriquecida com tecnologias da informação,
incluídos o computador e o vídeo, narrativas
orais e escritas de professores, produções de
alunos, situações simuladoras e estudos de
casos.
§3º - O estágio curricular supervisionado, definido
por lei, a ser realizado em escola de
educação básica, e, respeitado o regime
de colaboração entre os sistemas de ensino,
deve ser desenvolvido a partir do início da
segunda metade do curso e ser avaliado
conjuntamente pela escola formadora e a
escola campo de estágio. (grifo nosso).

Chamamos atenção para o terceiro parágrafo, no


qual está exposta a necessidade de estabelecer cooperação

9 junqueira&marin editores 9 179


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
entre a universidade e a escola, tendo em vista que o estágio dos
universitários das licenciaturas é desenvolvido nessa última; e,
além disso, nele se afirma a participação da escola, inclusive,
na avaliação das atividades desenvolvidas. Encontramos, nessa
proposição, reconhecimento e valorização do profissional em
exercício como parceiro efetivo no processo formativo de novos
professores.
Nesse sentido, o Parecer CNE/CP 09/2001, de
18/01/2002 reforça e esclarece a relação universidade escola
no momento do estágio:

O estágio obrigatório deve ser vivenciado ao longo de todo o


curso de formação e com tempo suficiente para abordar as
diferentes dimensões da atuação profissional. Deve acontecer
desde o primeiro ano, reservando um período final para a
docência compartilhada, sob a supervisão da escola de
formação, preferencialmente na condição de assistente de
professores experientes. Para tanto, é preciso que exista
um projeto de estágio planejado e avaliado conjuntamente
pela escola de formação e as escolas campos de estágio,
com objetivos e tarefas claras e que as duas instituições
assumam responsabilidades e se auxiliem mutuamente,
o que pressupõe relações formais entre instituições de
ensino e unidades dos sistemas de ensino. Esses “tempos
na escola” devem ser diferentes segundo os objetivos de cada
momento da formação. Sendo assim, o estágio não pode ficar
sob a responsabilidade de um único professor da escola de
formação, mas envolve necessariamente uma atuação coletiva
dos formadores. p. 58. BRASIL, Parecer CNE/CP 9/2001
– HOMOLOGADO. Despacho do Ministro em 17/1/2002,
publicado no Diário Oficial da União de 18/1/2002, Seção 1, p.
31. (grifo nosso).

A ideia presente no Parecer é a de colaboração


formal e institucional entre escola e universidade para a
realização do estágio na formação de professores, propondo uma
docência compartilhada entre estagiários e professores com

180 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
maior experiência por meio de um projeto comum elaborado,
executado e avaliado por componentes de ambas as
instituições. Nesse sentido, a responsabilidade pela formação
é dividida entre as instituições no momento do estágio. Há que
se contar com a efetiva participação do professor regente no
processo formativo do estudante.
Para tanto, a relação entre as instituições
universitária e escolar precisam ser de colaboração e definidas
coletivamente, em parceria, a fim de evitar problemas. Pimenta
ressalta:

No trânsito entre instituições de diferentes níveis de ensino, com


características, objetivos, estruturas e funcionamento diverso, é
preciso que se compreendam suas culturas específicas e que as
aproxima a fim de não incorrer em mútuas acusações [...]. Se
considerarmos o campo de poder, tanto da universidade como
da escola, podemos perceber a complexidade que envolve o
estágio e as práticas executadas no seu interior. (2008, p. 106).

Alguns dados desta pesquisa demonstram receio,


por parte dos professores regentes e das escolas, de receber
estagiários e virem a ser alvo de avaliação e críticas por parte
de professores da Universidade. Esse é um aspecto importante,
que merece análise mais aprofundada e específica a ser feita
posteriormente, mas que já demonstra uma percepção não de
parceria, mas de hierarquia nessa relação. Além disso, é possível
identificar também a não percepção do professor regente da
possibilidade de fazer das relações universidade escola no
momento do estágio, um período de formação continuada, visto
que proporciona diálogos entre os saberes da prática e saberes
acadêmicos.
Na mesma direção do Parecer do CNE, estão as
normas e resoluções internas da Universidade. A resolução nº
134/2005 do CONEPE/UNEMAT (Conselho de Ensino, Pesquisa
e Extensão da Universidade do Estado de Mato Grosso), sobre

9 junqueira&marin editores 9 181


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
como realizar o estágio no Campus Universitário de Cáceres,
em seu Titulo I, art. 2º estabelece o seguinte: “O Estágio
Supervisionado é o momento de aprimorar, sob a orientação
do professor o processo de ensino-aprendizagem e possibilitar
ao licenciando vivenciar as atividades escolares, atuando em
sala de aula, preparando-o para vida profissional”(grifo nosso).
Essa Resolução é explicativa sobre como deve
ocorrer o processo de estágio e ressalta que o aluno deve ter
o acompanhamento do professor universitário, pois, nesse
processo, ele ainda é um aprendiz, está se preparando para a
atuação profissional. Entretanto, não se refere ao professor
regente.
Os dados obtidos por meio das entrevistas nos
permitem afirmar que a atuação do professor de estágio é
primordial, vinculando-se a ela, inclusive, a avaliação que o
estagiário faz do próprio estágio. Dizendo de outro modo, os
estagiários que contam com seu professor desde a orientação, o
planejamento até a realização in loco das atividades de estágio,
o relatam de forma positiva, mesmo afirmando que neste
momento o professor não interfere.

“Ele ajudou bastante, ele orienta nas nossas dificuldades, ele não
deixa de fazer a parte dele, ele ajuda bastante mesmo e nunca nos
deixou na mão” (AFH).

“Foi muito bom. No sétimo semestre ele fez com que a gente
se aproximasse mais das escolas e não só observasse mais,
fizéssemos uma análise bem feita não só das escolas, mas dos
alunos e também dos professores ele nos orientou muito bem
mesmo” (ADH).

“(...) verificou perfeitamente o meu plano me dando dicas de como


estar melhorando eles, nessa parte ela foi extremante atenciosa,
me supervisionou mais de uma vez, me auxiliou dentro da sala de
aula nas horas que eu mais precisava” (AAM).

182 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
“(...) eu tive um pouco mais de dificuldade de passar aquilo que eu
queria transmitir pra eles e a professora viu, estava presente, aí
ela pegou e me explicou certinho o que eu deveria estar fazendo
como é que era, onde estava o meu erro...” (ACM).

“(...) como a gente tá aprendendo é sempre bom ter uma pessoa


mais velha na área, mais experiente, pra tá nos auxiliando e
mostrando: ‘Ó, não é por esse caminho, é por outro caminho’”
(ACC).

Ao contrário, os que não foram devidamente


acompanhados, ficam inseguros, não tiram proveito da
experiência.

“(...) na maioria dos estágios, os projetos, a gente entrega no


final... E na maioria das vezes aqui pelo menos de todos os que eu
fiz, é... você chegava em sala e não tinha nada pronto, você não
tinha um caminho certo a seguir. O projeto geralmente entregava
no final. Então, pra mim, não tinha sentido nenhum” (ABC,
grifo nosso).

Verificamos que nas leis e normas, que regem a


prática do estágio, há determinações, indicações e abertura para
a construção de uma relação diferenciada entre universidade e
escola, em que ambas as instituições sejam respeitadas em seus
conhecimentos e partícipes do processo de formação de novos
professores.

Professores em formação e as relações com a escola no


estágio de licenciaturas da UNEMAT/Cáceres

O estágio nos cursos de licenciatura da UNEMAT, do


campus universitário Jane Vanini, em Cáceres, é realizado nos
últimos semestres da formação inicial, entre o 6º e o 8º, conforme
o curso, sendo constituído de atividades de observação, análise,
preparação e regência.

9 junqueira&marin editores 9 183


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Os professores responsáveis pela disciplina vão até
as escolas combinar a realização dos estágios, que pode não ser
aceita por todas as escolas. Uma vez mapeados os colégios que
aceitam estagiários, em alguns cursos, é entregue uma lista aos
alunos e eles escolhem aonde vão, devendo apresentar à escola
uma carta de encaminhamento assinada pelo responsável da
instituição universitária. Em outros, os professores de estágio é
que vão às escolas e combinam a ida dos estudantes pelos quais
são responsáveis. Em geral, os estagiários fazem observação e
regência na mesma escola, o que propicia continuidade entre os
trabalhos desenvolvidos nos semestres previstos para o estágio.
Nos documentos analisados, tanto nos PPPs (planos
políticos pedagógicos) dos cursos como na proposta do Projeto
Coletivo de Estágio Interdisciplinar (projeto em funcionamento
até 2009/1 para os cursos de Pedagogia, Geografia, Matemática
e Biologia), não há menção a nenhum convênio a ser assinado
ou outro documento legal deste tipo, apenas um acordo verbal
entre escola e universidade.
Os estudantes realizam suas atividades nas escolas
devendo ser acompanhados pelos professores regentes e pelos
de estágio, o que não ocorre durante todo o período devido
ao número de estagiários que cada professor tem sob sua
responsabilidade, mas sim, algumas vezes na sala de cada um.
Eles apresentam relatório final ao término das atividades e são
avaliados em todas as ações do estágio.
Dados obtidos por meio de entrevistas com
estudantesestagiáriosdaslicenciaturasemHistória,Matemática,
Computação e Pedagogia indicam uma relação pouco consistente
entre a escola e a universidade na hora do estágio. Além da
ausência de vínculo legal para a realização do estágio, suas
respostas indicam que a realização e o resultado estão muitas
vezes dependentes da atuação do sujeito professor de estágio.
Não queremos com isso responsabilizá-lo individualmente pelo
sucesso ou fracasso do estagiário, mas ressaltar que seu papel é

184 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
essencial e depende de um compromisso profissional pessoal,
não apenas da definição de políticas da instituição.
Também, conforme relato desses estudantes, nem
sempre há uma participação efetiva do professor regente na
preparação, condução ou avaliação das aulas realizadas pelos
estagiários, ponto relevante que pede maiores discussões. Cabe
ressaltar a dificuldade específica do curso de Licenciatura em
Computação para a realização do estágio, pois ainda não havia
nas escolas, no momento desta pesquisa, “professor” dessa área
ou disciplina; não havia, portanto, regente com quem contar na
hora do estágio, o que também exige análise mais específica a ser
realizada em outro momento.
Apesar de os estagiários realizarem as atividades
de docência quase sempre na mesma escola em que fizeram a
observação, geralmente no semestre anterior, as respostas sobre
sua preparação para o estágio raramente incluem algo a respeito
daquele período, o que deveria ser importante, tal como afirma
o relato que se segue:

“[o papel do professor de estágio] foi muito bom. No sétimo


semestre ele fez com que a gente se aproximasse mais das escolas
e não só observasse, mas fizéssemos uma análise bem feita, não
só das escolas, mas dos alunos e também dos professores. Ele nos
orientou muito bem mesmo” (ADH).

As ações citadas restringem-se ao preparo de aulas,


estudo de conteúdos e busca de metodologias adequadas. Os
estagiários também quase não se referem ao papel do professor
regente nessa preparação, a não ser na indicação do conteúdo a
ser desenvolvido. Apenas dois deles enfatizaram a importância
dessa colaboração:
“Pedi orientação para a própria professora da turma que eu iria
pegar, como ela direcionava as aulas dela, porque assim, quando
vamos para o estágio a gente não pode mudar muito, a gente
tem que ir mesmo no ritmo que o professor vai, então me orientei

9 junqueira&marin editores 9 185


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
com ela com os materiais dela também, levando para casa e
estudando, preparando o plano de aula” (AEM).
“me informei com o professor qual era o comportamento geral
da sala de aula na qual eu estagiei, ela me passou inúmeras
orientações e isso facilitou bastante o estágio” (ABM).

Sintetizando, pudemos identificar dois tipos de


relação quanto à participação do professor regente no estágio
ao analisar o dizer dos estagiários: uma relação de cooperação,
na qual o professor regente apresenta o estagiário aos alunos,
oferece sugestões para o trabalho a ser realizado e acompanha,
alguns, inclusive, avaliando cada aula dada; e outra de
permissão, na qual o professor regente “cede” a sala, ora não
acompanha, fica em outro ambiente da escola mesmo se dizendo
à disposição “caso se faça necessário”, ora apenas observa, sem
comentar, corrigir ou ajudar; não interfere.
Em pesquisa realizada por Milanesi, Aguiar, Manzini
e Rocha (MILANESI et al., 2008, p. 84) verificou-se que, nos
primeiros contatos, o estagiário percebe o espaço das escolas
com estranhamento, sentindo medos, incertezas e, ao mesmo
tempo, cheio de expectativas; especialmente inseguro com
relação à opinião do professor regente - considerado experiente
- sobre sua atuação. Muitas vezes o estagiário espera que aquele
professor lhe “mostre o caminho”. Os dados da mesma pesquisa
demonstram que, por sua vez, o professor regente também
sente insegurança ao entrar em contato com universitários, pois
podem chegar “cheios de novidades” e colocar em cheque sua
atuação cotidiana, às vezes rotineira, questionar suas “certezas”,
conforme afirmamos anteriormente.
Analisando o que dizem os estagiários a respeito
do acompanhamento da regência pelo professor de estágio
e pelo regente, verificamos sua satisfação quando tiveram o
acompanhamento e participação de ambos. Porém, em nenhum
momento das entrevistas, afirmou-se a existência de um trabalho
realizado em conjunto pelos dois professores.

186 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
Oestágiotemsidoumdospoucosespaçosgarantidos,
porque exigência legal e de realização semestral, de relação
entre a universidade e a escola. Quando inquiridos a respeito
dessa relação universidade escola, um número significativo dos
estagiários entrevistados afirma que as escolas criam expectativas
de que a universidade vá retribuir a “cedência desse espaço”
com alguma outra ação (formação continuada, seminários,
palestras, grupos de estudo, apresentação de resultados das
pesquisas realizadas...), mas isso só ocorre de forma esporádica.
Há estagiários que afirmam ainda ter percebido o receio de
críticas à escola, feitas de modo “destrutivo”. Além disso, há que
se considerar a quantidade de cursos de licenciatura oferecidos
pela UNEMAT e, consequentemente, o grande número de
estagiários que as escolas recebem a cada semestre. Acrescente
se a isso o problema já diagnosticado por Milanesi et al. (2008,
p. 96-97): algumas escolas têm organizado seu currículo para
funcionamento em sistema de blocos ou módulos, o que implica
em menor quantidade de dias para o desenvolvimento da carga
horária de cada disciplina, acarretando, no estágio, problemas
em relação ao acompanhamento, avaliação e, para o estagiário,
diminuição do tempo que pode “vivenciar” sua experiência na
escola campo.
Consideramos importante destacar que um, entre
os estagiários entrevistados, demonstrou uma preocupação
no que diz respeito à relação universidade/escola, mais
especificamente em relação à visão que se tem da universidade.
Ele percebe a necessidade de socialização dos conhecimentos
por ela produzidos, bem como a possibilidade da instituição
de ensino superior se apresentar como viabilidade para a
continuação do processo educacional, como uma perspectiva
possível de melhoria de vida para a população, porque propicia
acesso ao conhecimento. Diz ele:
“A universidade tem que ir mais para a escola também expor o
que ela faz, os trabalhos que ela desenvolve, levar mais para a

9 junqueira&marin editores 9 187


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
escola, para as crianças conhecerem mais a universidade, porque
têm escolas públicas que você fala em universidade, têm crianças
que não tá nem aí. Mostrar para elas que elas podem vir pra cá
também e instigar elas, e mostrar que essa universidade tem que
estar mais próxima da escolas, sim” (EIH).

Outros entrevistados demonstram pouca atenção


à relação entre a universidade e a escola, fazendo dessa última
apenas um espaço para cumprimento da tarefa de estágio,
não manifestando, em suas respostas, preocupação alguma,
nem mesmo propondo sugestões quando solicitados. O CNE
(Conselho Nacional de Educação) já havia apontado esse aspecto
como um dos problemas da formação.

A formação de professores fica, geralmente, restrita à sua


preparação para a regência de classe, não tratando das demais
dimensões da atuação profissional como sua participação no
projeto educativo da escola, seu relacionamento com alunos
e com a comunidade. (BRASIL, PARECER CNE/CP 9/2001 –
p. 22. HOMOLOGADO. Despacho do Ministro em 17/1/2002,
publicado no Diário Oficial da União de 18/1/2002, Seção 1, p.
31).

Muitos estagiários chegam ao final do curso tendo


como único contato com as escolas o estágio, além, é claro, de
sua própria experiência como alunos. E, muitas vezes, eles se
espantam com o que encontram, também porque estar no papel
do professor implica outro olhar sobre a realidade escolar. Após
essa experiência surgem reflexões:

“(...) acho que a universidade deveria se aproximar mais da


realidade escolar que assusta os estagiários. Quando você me
pergunta de que realidade eu estou falando é da realidade
estrutural das escolas e até mesmo da realidade intelectual das
pessoas que vivem nas escolas e também da realidade social das
crianças. Mas isso não e só aqui, ouvimos todos os dias relatos de

188 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
pessoas que se deparam com crianças que se encontra vivendo
realidade cruel e muito diferente das vivenciadas por nós e
dessas realidades que assustamos quando nos encontramos na
qualidade de professor” (ABH).

“(...) eu lido com crianças carentes, eu achava que eles só que eram
assim e certas coisas acontecia somente no Peti mas me enganei
direitinho, tem alunos que falam palavrões, não param sentados,
se agridem dentro das salas de aulas e o professor não pode fazer
muita coisa. Você tem que amar muito sua profissão mesmo para
continuar. A sociedade tem mudado muito e as mudanças são a
todo o momento, as cabeças não é mais o homem... a mulher tem
assumido esse papel, as crianças ficam a maior parte do tempo
sozinhas ou com parentes, pois os pais precisam trabalhar muito
e não tem muito tempo para dedicar o seu tempo para os filhos.
Isso reflete muito nas escolas, por isso é que a escola hoje tem que
estar mais preparada para trabalhar o psicológico das crianças
e dos jovens...” (ADH).

A partir daí ocorre, por parte dos estagiários, a


valorização do profissional em exercício e a constatação das
dificuldades reais, desde a relação com os alunos até a questão
material, estrutural, necessária para a qualidade do trabalho.

“(...) houve alguns probleminhas básicos que foram contornados,


foi em relação a alunos que estavam com a idade um pouco
avançada para as séries em que estavam e também um pouco da
questão da bagunça” (AEH).

“(...) você tem que ter outra opção para dar aula, até porque
as escolas não tem todo estes aparatos de mídia... aqui na
universidade tudo que a gente vai fazer a gente diz “pega o data
show, pega o retro” e nas escolas não tem isso” (AHI).

“(...) os professores [atualmente] estão mais preocupados com


a formação destes alunos, esta formação é importante para (...)
estes alunos, [os professores] precisam ter mais embasamento

9 junqueira&marin editores 9 189


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
e notarem que eles têm que ter um bom profissionalismo (...) a
sociedade tá pedindo isso” (AHH).

O estágio é momento essencial na formação de


professores, no entanto as informações obtidas mostram
que há aspectos constituintes da formação que poderiam ser
enfatizados nesse período e que se fazem pouco visíveis aos
participantes desse processo, entre os quais, destacamos a
relação entre universidade escola.

Considerações finais

Ao propormos essa análise, tivemos como objetivo


compreender a relação universidade escola sob a ótica dos
estudantes de licenciatura em período de estágio. Verificamos,
por meio de análise de suas falas e de documentos que orientam
essa prática curricular, que a experiência do estágio, apesar
de ser fundamental para a formação do professor em sentido
amplo, tende a privilegiar, quase restringir, o enfoque às ações
de regência (conteúdos e métodos de ensino).
Essa investigação levou-nos a considerar vários
aspectos relacionados ao estágio, sobre os quais tecemos
algumas considerações:

A) A relação entre os sujeitos participantes (professor


universitário, professor regente e professor em
formação). Quanto à relação entre professor
de estágio e estagiário, evidenciou-se o caráter
subjetivo dessa relação no que diz respeito ao
compromisso pessoal, participação ou não junto ao
estudante em suas atividades e as consequências
para o estágio. No que diz respeito à relação entre
estagiário e professor regente, configuram-se
duas situações: de cooperação ou de permissão,
conforme explicitado anteriormente e que também
têm consequências distintas para a realização do
estágio e da própria formação. E, situação que

190 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VII
merece maior atenção, a relação entre professor
universitário e professor regente, não mencionada
pelos estagiários. Este é o tipo de silenciamento
prenhe de significados, a serem investigados na
continuidade dessa pesquisa.
B)As políticas de formação de professores, em aspectos
manifestos nos documentos analisados, apresentam
diretrizes para uma relação de cooperação entre
universidade e escola, que chamaríamos de
“mais qualificada”. Os relatos dos acadêmicos
entrevistados indicam uma relação de “empréstimo
de espaço para cumprimento de tarefas”, pouco
diálogo entre as instituições e participação mínima
dos atores do espaço escolar no processo de
formação dos estagiários, o que, por vezes, leva a
certo desconforto e pode gerar problemas mais
sérios.
C)Cabe-nos, então, questionar: como deveria ou
poderia ser o papel da universidade nessa relação,
não somente no que diz respeito a possibilitar
a realização do estágio, mas a qualificar essa
experiência? Qual a tarefa do professor universitário
no sentido de aproximar os sujeitos envolvidos
e amenizar as angústias e incertezas de cada
um, promovendo um diálogo entre os diversos
conhecimentos e saberes, entre os participantes,
inclusive, ele mesmo? Entre os princípios que
regem a universidade estão a responsabilidade
e compromisso social, não deveriam eles se
materializar em ações conjuntas que manifestassem
claramente o respeito aos saberes e conhecimentos
dos sujeitos e instituições, dos quais inclusive
depende para cumprimento de suas atividades? O
estágio não seria também um espaço privilegiado
para essa concretização?

9 junqueira&marin editores 9 191


CAPÍTULO VII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Em síntese, mas não de maneira conclusiva, a
relação entre a universidade e a escola merece maior atenção
por parte de ambas as instituições, podendo contribuir, de forma
expressiva, com a qualidade da formação de professores. 3

Referências

BRASIL. Parecer CNE/CP 9/2001. – Homologado. Despacho do Ministro em


17/1/2002, publicado no Diário Oficial da União de 18/1/2002, Seção 1, p. 31.
Disponível em: <www.http//mec.gov.br>. Acesso em: 20 jun 2009.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº. 9.394, 20 de


dezembro de 1996. Disponível em <www.http//mec.gov.br>. Acesso em: 18
jun 2009.

MARCONDES, Maria Inês. Formação de professores e estágios da prática de


ensino: contribuições para uma discussão. Revista de Educação AEC, Brasília:
AEC do Brasil, v. 30, n. 121, p. 95-110, out./dez. 2001.

MILANESI, Irton et al. O estágio interdisciplinar no processo de formação


docente. Cáceres, MT: UNEMAT, 2008.

NORONHA, Olinda Maria. Políticas neoliberais, conhecimento e educação.


Campinas, SP: Alínea, 2006.

PIMENTA, Selma Garrido e LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e Docência.


São Paulo: Cortez, 2004.

UNEMAT. Resolução nº 134/2005/CONEPE (Conselho de Ensino, Pesquisa e


Extensão da Universidade do Estado de Mato Grosso). Cáceres: UNEMAT, 2005.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Professor: tecnólogo do ensino ou agente


social? In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro e AMARAL, Ana Lúcia (Orgs.).
Formação de professores: políticas e debates. 3 ed. Campinas: Papirus, 2002.

192 9 junqueira&marin editores 9


L
PARTE III
ESCOLAS E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS
U PARTE
ESCOLAS III V
E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS

i CAPÍTULO VIII j
ESCOLA E FORMAÇÃO ESCOLAR:
REFLEXÕES A PARTIR DA PRODUÇÃO DO GRUPO
DE TRABALHO EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL DA ANPEd³⁷
(2000-2005)

Solange Aparecida da Rosa


Maria Isabel Batista Serrão

Introdução

Opresente
análises realizadas
texto parte
em dos
umaresultados
dissertaçãodas
de
mestrado em Educação (ROSA, 2008), que buscou apreender
como as categorias “escola”, “ensino”, “conhecimento escolar”
e “formação escolar” são concebidas e tratadas em artigos
apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).
Considerando os limites postos para este artigo,
optou-se por enfocar principalmente aspectos relacionados às
categorias “escola” e “formação escolar”, na produção do GT
13, mencionada acima. Contudo, alguns aspectos referentes às
demais categorias estudadas, como o “ensino” e o “conhecimento
escolar” também serão abordados, pois estão direta ou
indiretamente conectados.

9 junqueira&marin editores 9 195


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Definiu-se o tema da pesquisa realizada a partir
das constatações feitas em estudos governamentais que têm
evidenciado uma precária qualidade da formação escolar nas
escolas públicas brasileiras, num momento histórico em que
a educação se torna, de forma cada vez mais evidente, uma
mercadoria.
A instituição escola, ao longo de sua história,
passou por diversas transformações; e, na modernidade,
assumiu a função de ensinar a ler, escrever e contar e também
de possibilitar aos estudantes a apropriação do “conhecimento
científico”, uma forma de conhecimento que possibilita superar
o conhecimento direto e imediato da realidade e a superação
do pensamento empírico, por um novo tipo de pensamento, o
“pensamento teórico” ou “conceitual” (DAVÍDOV, 1988).
Entretanto, nesse final do século XX e início do século
XXI, a ciência moderna e o conhecimento por ela produzido
passaram a ser alvo de intensas críticas, as quais suscitaram
algumas indagações: o “conhecimento científico” deve continuar
sendo o principal substrato do conhecimento escolar? O
conhecimento escolar vai além do conhecimento empírico e
da lógica formal? A escola tem possibilitado aos estudantes o
desenvolvimento do “pensamento teórico” ou “conceitual”?
Concomitantemente a essa “crise da ciência”, outra
crise é aventada: a “crise da escola”. Crise que, segundo Canário
(2005), é constituída por paradoxos, dentre os quais, a crescente
“corrida à escola” versus a também crescente insatisfação
escolar. Insatisfação que, segundo o autor, é decorrente da crise
das crenças modernas na razão, no conhecimento/ciência e no
progresso e da desilusão diante da falência das promessas da
escola no que se refere ao desenvolvimento, mobilidade social
e igualdade.
Em tal contexto surgem ainda outros
questionamentos em relação à escola e à formação escolar,
o que nos levou a pensar o papel social da escola no contexto

196 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
histórico-cultural das sociedades capitalistas: que sujeitos essa
instituição tem possibilitado que se constituam no processo
de escolarização? Há outras instituições promovendo o acesso
ao conhecimento? Se sim, qual é a especificidade da formação
escolar?

Sobre os procedimentos da pesquisa

Partindo dessa problemática definiu-se como


campo empírico o universo dos artigos decorrentes de
pesquisas realizadas em Educação e apresentados, na
modalidade “comunicações”, nas reuniões anuais da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),
especificamente nos Grupos de Trabalho “Psicologia da
Educação” (GT 20) e “Educação Fundamental” (GT 13), no
período entre 2000 e 2005.
Foram escolhidos esses estudos pelo fato de
os artigos apresentados na ANPEd serem criteriosamente
selecionados por consultores de reconhecido saber e de essa
associação ter legitimidade reconhecida pelos pesquisadores da
área. A ANPEd é responsável pela difusão científica de parcela
expressiva do que se tem produzido no âmbito da pós-graduação
e da pesquisa em Educação no país. E os Grupos de Trabalho
“Psicologia da Educação” (GT 20) e “Educação Fundamental”
(GT13), pelo fato de terem a educação escolar e sua relação com
a formação humana como objeto de interesse e pesquisa.
Também se avaliou que a análise dos referidos
artigos poderia indicar se as categorias “escola”, “ensino”,
“conhecimento” e “formação humana” estão presentes nessas
produções e de que forma estão sendo abordadas. O que poderia
mostrar-se relevante, uma vez que os pesquisadores da área
de Educação têm contribuído, direta ou indiretamente, tanto
para a formação dos profissionais diretamente responsáveis
pelos processos educativos formais no Brasil quanto para

9 junqueira&marin editores 9 197


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
fundamentar e indicar diretrizes para a elaboração de políticas
públicas de educação.
A partir de tais definições, partiu-se para a realização
de um levantamento quantitativo dos artigos apresentados nos
GTs “Psicologia da Educação” e “Educação Fundamental” no
período de 2000 a 2005, os quais se encontravam disponíveis,
no segundo semestre de 2006, na página virtual da ANPEd.
Pela análise dos artigos selecionados, processou
se a classificação dos mesmos em eixos temáticos. Processo
realizado não sem dificuldades, pois de acordo com Schlindwein
et al. (2006, p. 153) “toda tentativa de categorização, apresenta
riscos e envolve opções de várias ordens” e constitui-se em uma
das estratégias possíveis “de exposição do conjunto da riqueza
e da diversidade presentes”, neste caso, nos artigos analisados.
No que se refere especificamente ao GT 13, após
a leitura dos 88 artigos apresentados, no período selecionado
para análise, esses foram agrupados em 8 eixos temáticos.
O primeiro processo de classificação dos artigos por
temática foi feito com base nos seus títulos. Contudo, a leitura
dos artigos indicou que nem sempre os títulos explicitavam a
temática principal abordada, o que gerou a necessidade de se
elaborar uma planilha na qual se apresenta, além do título, um
pequeno resumo da temática principal abordada em cada artigo.
A partir desses resumos, os artigos passaram por um processo
de reclassificação. Do último processo de classificação dos
artigos, resultou a seguinte tabela:

Tabela 1: GT 13

Eixo Temática Nº. %

1 Universalização/organização do ensino e fracasso escolar 22 24

2 Ensino/Alfabetização/Aprendizagem (práticas pedagógicas) 16 18

3 Subjetividade/Identidade (processos de disciplinarização) 12 14

4 Escola, conhecimento escolar e ideologia 07 8

198 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS3 Subjetividade/Identidade (processos
PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaçode CAPÍTULO
disciplinarização)
escolar 12 14 VIII

4 Escola, conhecimento escolar e ideologia 07 8

5 Políticas educacionais 06 7

6 Escola, democracia e participação 06 7

7 Formação de professores 06 7

8 Outros 13 15

Total 88 100

Pode-se resumidamente apontar que a análise


quantitativa dos artigos apresentados no GT 13 evidencia: uma
preocupação crescente, no período analisado, em relação ao
“fracasso escolar”; que a organização do ensino por ciclos foi
a temática específica mais estudada neste GT, havendo uma
intensificação no interesse por este objeto de estudo no período
analisado; a matriz sociológica de conhecimento se destaca na
grande maioria dos estudos; poucos estudos (somente 07 dos
88 artigos) versam sobre o conhecimento escolar e o papel da
escola. As maiores polêmicas teórico-epistemológicas giram
em torno de dois eixos: 1. a função disciplinar da escola e as
possibilidades de organização do ensino escolar na perspectiva
da democratização, participação e emancipação, 2. escola,
conhecimento escolar e ideologia. Destaque-se que, no campo
desse último, poucos estudos foram encontrados. Fato intrigante
diante da atual situação de “crise da ciência moderna” e “crise da
escola”.
Num segundo momento, buscando apreender como
são abordadas e concebidas as categorias “escola”, “ensino”,
“conhecimento” e “formação escolar”, nos artigos apresentados,
fez-se uma análise qualitativa, que abrangeu 34 artigos
apresentados no GT13, parte da qual é apresentada neste artigo.
Destaque-se que, nesse segundo momento, não se pretendeu
abordar os artigos como um todo, o que constituiria uma análise
exaustiva da produção dos GTs, o que extrapolaria os limites e as
possibilidades de um trabalho acadêmico em nível de mestrado.

9 junqueira&marin editores 9 199


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Aspectos da realidade da educação pública
no Brasil e a formação escolar

A formação para a educação brasileira definida na


Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei 9394/96, prevê:
a “formação para a cidadania”, a “preparação para o trabalho” e
o “pleno desenvolvimento do educando”. Entretanto, os dados
levantados nas avaliações do Ministério da Educação, como
destacado por Carvalho (2005), em um dos artigos analisados,
apontam que a grande maioria dos estudantes que frequentam
a 4a e a 8a séries da escola pública de Ensino Fundamental, no
Brasil, do início do novo milênio não apresenta desempenho
considerado adequado pelo Ministério nem no exame de Língua
Portuguesa, nem no teste de Matemática. Resultados que,
de acordo com os artigos de Jacomini (2004), Araújo e Pérez
(2004), Souza, Silva e Silva (2004), Dias (2005), entre outros,
dizem respeito tanto ao ensino organizado por séries como o
por ciclos de formação.
Dias (2005), por exemplo, questiona o educar para
a cidadania sem considerar também a formação do “aluno” em
termos de desenvolvimento intelectual, no sentido apontado por
Bergamaschi (2000, p. 1) em outro dos artigos analisados: “[...]
está bastante difundida a idéia de que a escola deve atuar para a
produção das identidades sócio-culturais dos alunos e alunas na
perspectiva da cidadania. Mas para constituírem-se cidadãos/ãs
é necessário o domínio de categorias e conceitos que permitam
compreender e intervir no mundo”.
Contudo, os resultados das análises realizadas, a
partir dos artigos apresentados no GT 13, apontam que não são
possibilitados ao professor os conhecimentos e instrumentos
necessários sobre os processos necessários à formação
de um sujeito crítico e reflexivo. O que explica, em parte, o
fato constatado por Sforni (2003) de que as ações docentes
acarretam a realização de inúmeras tarefas sem valor formativo.

200 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
Os dados do universo dos artigos analisados parecem indicar
que a escola não está conseguindo formar para a cidadania. O
que é compreensível, já que se exige que a escola forme pessoas
éticas, solidárias, que saibam respeitar o outro e as diferenças,
e conviver socialmente, em meio a uma sociedade violenta,
corrupta, injusta e discriminatória. A formação para a cidadania
constitui-se, assim, num engodo de efeitos limitados³⁸, embora
seja inegável a importância dos direitos sociais e humanos, um
legado histórico incontestável.
Para Fernandes (2005), apesar dos avanços
reconhecidos da educação brasileira, temos uma escola
que continua não cumprindo com sua função social no que
tange à formação intelectual de seus “alunos”. Como afirma
Ravagnani (2003), em um dos artigos analisados, a substituição
da pedagogia da repetência, da exclusão, pela pedagogia da
promoção, da “inclusão” não está sendo adequadamente
acompanhada do conjunto de medidas pedagógicas necessárias
à formação proposta.
Processo de fragilização da formação intelectual
dos estudantes, que parece estar em acordo com as
necessidades do processo produtivo e de expansão do capital.
Pois, se há um processo de “intelectualização do processo
produtivo” decorrente das mudanças geradas pelo processo
de recomposição do capitalismo mundial, mudanças essas
que geraram a necessidade de se qualificar o trabalhador, este
processo diz respeito somente a uma pequena parcela dos
trabalhadores. O “fracasso escolar” de parte dos estudantes
que acessam a escola de Ensino Fundamental é condição
necessária à reprodução da sociabilidade capitalista, fundada
na desigualdade social, econômica e cultural. Pois é também por
meio do “fracasso escolar” que se reproduz a segmentação e a
diversificação dos trabalhadores.
As frequentes denúncias da existência desse
fenômeno parecem ter gerado, nas últimas décadas do século XX

9 junqueira&marin editores 9 201


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
e início do século XXI, um consenso entre governos, organismos
internacionais e educadores de que o maior problema da
educação públicano Brasil é o “fracasso escolar”, entendido como
evasão, repetência ou defasagem idade/série. Entendimento
a partir do qual se aponta a necessidade de mudanças no que
se refere tanto à organização do ensino quanto às práticas
pedagógicas.
Entretanto, as análises permitiram constatar que as
mudanças implementadas e a universalização do acesso à escola
não garantiram a possibilidade de acesso ao conhecimento até,
então, reservado à classe dominante; ao contrário, uma nova
forma de “fracasso escolar” emergiu. O processo de estratificação
continua,agora, porém,deformainvisível:pormeio da aprovação
e da “diplomação do não saber”, uma prática denunciada por
Oliveira (2003), em um dos artigos analisados. Já não há exclusão
escolar, todos são incluídos e diplomados, entretanto, as crianças
têm sofrido grandes perdas em seu processo de alfabetização e
formação intelectual. Constatam-se profundas desigualdades,
inclusive, entre as crianças formadas em uma mesma escola.
Desigualdades em termos de formação que não são, para os pais
e comunidade, imediatamente perceptíveis, não podendo ser
constatadas diretamente, dificultando-se, assim, que as pessoas
percebam que estão sendo aviltadas em sua formação.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei
n. 9394/96, contribui para tal situação ao não dispor elementos
que considerem as relações entre as especificidades locais e
o estabelecimento de critérios de organização do ensino que
atendam às necessidades formativas na dimensão do gênero
humano. Abre, assim, um enorme campo de possibilidades
para a existência de modos difusos de organização do ensino
e critérios diferentes de avaliação para a educação básica, sem
criar condições nem para a apropriação de conhecimentos pelos
estudantes tampouco para o trabalho coletivo dos professores.
Desta forma, ainda que o “currículo mínimo” proposto para a

202 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
“educação básica comum” seja aparentemente igual para todos,
isso se dá apenas formalmente, o que em alguns casos geram
práticas pautadas pelo espontaneísmo e pelo autoritarismo.
Tais resultados ainda apontam que a “educação
laica, gratuita e para todos”, defendida pela Revolução Francesa
de 1789, permanece um ideal não atingido, pois, quando o
direito à educação é estendido a todos, a educação oferecida
não é igualitária. O “fracasso escolar” não só é um fenômeno
historicamente recente, como é um multifacetado fenômeno
característico da sociedade burguesa: surge, concomitantemente,
à instauração da “escolaridade obrigatória”; e, ainda que as
aparências digam o contrário, a erradicação do “fracasso escolar”
não ultrapassa o nível das aparências.
Disto se pode inferir que as novas políticas
educacionais não estão oferecendo elementos e/ou criando
condições para a efetivação das aprendizagens mais básicas,
indispensáveis tanto ao “exercício da cidadania” quanto à
continuidade e ao aprofundamento dos estudos: “ler”, “escrever”
e “contar”. Ou seja, por trás das aparências, a continuidade do
fracasso se mostra como a real manifestação de que as políticas
de reorganização do ensino e de promoção têm se mostrado
insuficientes em termos de aprendizagem e formação.
Dados que confirmam a tese de Dias (2005) e de
Nozaki e Pichitelli (2005), da existência de uma situação velada
de fracasso nas escolas públicas brasileiras. Se antes de 1990
a exclusão educacional se dava pelo não acesso e permanência
na escola, agora a exclusão se efetiva pela não aprendizagem,
pela não apropriação efetiva dos conteúdos escolares. Processo
que pode estar vinculado a dificuldades e problemas de ensino,
já que categorias como finalidade formativa, método, ensino e
didática parecem ter sido excluídas do discurso escolar, como
aponta Sommer (2005), em um dos artigos analisados.
Consequentemente, a luta por educação da melhor
qualidade para todos permanece atual, por se entender que a

9 junqueira&marin editores 9 203


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
escola pode vir a contribuir para a formação de sujeitos que, ao
se apropriarem de conhecimentos, instrumentos intelectuais e
valores, tornam-se potencialmente críticos. Além disso, a escola
poderá oferecer possibilidades de acesso ao legado cultural da
humanidade a cada indivíduo, que, ao se apropriar desse acervo
produzido historicamente, poderá desenvolver suas dimensões
humanas e perceber-se como ser genérico.

A “escola” nos artigos apresentados

A categoria “escola” é compreendida no universo


de artigos apresentados a partir de diferentes perspectivas e
de diferentes formas: para alguns, a escola é uma “instituição
disciplinar” em crise diante da transformação das “sociedades
disciplinares” em “sociedades de controle”, e, apesar de estar em
crise, ainda mantém sua função de domesticar mentes e corpos,
assim como de produzir diferenças, distinções e desigualdades;
para outros, a escola se apresenta distanciada do presente
e sem “funcionalidade” para o futuro; para outros, ainda, a
escola constitui-se num meio relevante no processo de formar
pessoas dotadas de autonomia e discernimento crítico. Nesse
sentido, a escola se constituiria em um lócus privilegiado de
desenvolvimento e socialização, em um espaço de construção
de valores, da afetividade, da racionalidade e da identidade dos
sujeitos.
Percebe-se a escola, por um lado, como reprodutora
das relações de poder e dominação; por outro, a escola é
percebida como instrumento e parte na luta social pela
emancipação. Porém, na grande maioria dos artigos, estes dois
entendimentos são produzidos por sujeitos/pesquisadores
diferentes, consequentemente, não resultam em uma síntese
que apreenda a complexidade do papel da escola nas sociedades
capitalistas. Ao que parece, parcela dos pesquisadores, apesar
de apresentar uma posição crítica, encontra dificuldades em

204 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
compreender a escola em sua historicidade – a escola não é uma
instituição burguesa, ainda que cumpra um papel específico
nessa sociedade – e em sua dialeticidade – a escola, ao mesmo
tempo em que reproduz a sociabilidade burguesa, reproduz as
contradições dessa forma de organização social; contribui com
elementos necessários, ainda que não suficientes, à negação e à
superação dessa mesma sociedade.
As análises presentes na maioria dos artigos
estudados relacionam diretamente escola e sociedade burguesa
e apresentam a classe atualmente dominante como desde
sempre conservadora. Equívocos analíticos que podem estar
dificultando que profissionais da educação possam pensar
e propor ações consistentes para superar os problemas da
formação escolar, buscando criar condições para que a escola
possa vir a contribuir para a emancipação.
Estudos históricos³⁹ demonstram que a escola
não é uma instituição específica da sociedade burguesa, ainda
que cumpra, nessa sociedade, um papel fundamental; que a
educação, historicamente, tem se caracterizado por ser uma
educação de cunho classista, dividindo-se em uma educação
para os dominantes, para o “dizer” intelectual, e uma educação
para os dominados, para o “fazer” produtivo. A divisão da
educação entre os que pensam e governam, por um lado, e os que
produzem, por outro, é anterior ao capitalismo, ainda que nesse
sistema social tenha se aprofundado e adquirido complexidade.

Escola e “modos” de pensara escola

De forma geral, os pesquisadores e estudiosos da


educação têm criticado a instituição escolar por seu caráter
reprodutor, por, na sociedade burguesa, legitimar e reforçar
as desigualdades sociais, assim como por exercer o papel de
controle ideológico. Tais críticas se estendem ao “conhecimento
científico”, o qual é entendido como um instrumento de

9 junqueira&marin editores 9 205


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
dominação a serviço do capital, usado para o desenvolvimento
deste e não para atender demandas sociais⁴⁰. Nesse contexto,
de acordo com esta perspectiva, a criança é educada para uma
participação submetida aos ditames do capital e não para a
emancipação.
As referidas críticas à escola, também constadas dos
artigos analisados, já foram sintetizadas por Canário (2005).
Para esse autor, a instituição escola é marcada por paradoxos
característicos da expansão da escolarização na segunda metade
do século XX: o fato de a escolarização ser caracterizada como
progresso ao mesmo tempo em que se vivencia uma “crise” de
desenvolvimento instalada desde os anos 70; a existência de
críticas sistemáticas à educação escolar ao mesmo tempo em que
esse modelo se torna hegemônico; e a crescente escolarização
das sociedades, a “corrida à escola”, ao mesmo tempo em que há
uma crescente insatisfação em relação a essa.
O autor afirma a falência das “promessas da escola”:
desenvolvimento social, ascensão/mobilidade social e igualdade;
e aponta que o agravamento dos problemas de natureza social,
ao mesmo tempo em que há uma massificação da escolarização,
indica a falência e o equívoco das promessas iluministas do
triunfo da razão. Situação que, de acordo com o autor, levou
os pesquisadores e estudiosos da educação a fazerem severas
críticas à educação escolar.
A análise realizada por Canário (2005) é pertinente,
pois ainda que tenha como referência a realidade portuguesa,
as semelhanças com a realidade escolar brasileira permitem
que se recorra a esse autor para se analisar essa última. Em
contraposição, também é possível questionar algumas de suas
afirmações.
A escola brasileira, embora as aparências indiquem
o contrário, está passando por um momento histórico em que
prevalecem os ideais do liberalismo e em quese efetiva o processo
de globalização da economia e de desmonte das estruturas

206 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
estatais. Contexto em que a tendência é não se investir de fato
nas escolas e nos profissionais da educação. Tal tendência⁴¹
aparece como um “descaso em relação à educação”, mas, se
analisado mais detidamente, indica ser um período histórico de
realização de um conjunto de ações deliberadas e integradas a
projetos político-sociais com diversas consequências.
Logo, se há uma “crise da escola”, esta resulta tanto
da implantação de projetos políticos específicos de vários
governos e de diferentes âmbitos administrativos e institucionais
vinculados à educação quanto das contradições geradas pelo
capitalismo, que se espraiam e afetam todas as dimensões
sociais, as instituições, a ciência, o pensamento filosófico, a
subjetividade, etc. Tal “crise da escola” é uma das manifestações
de uma crise mais ampla e profunda caracterizada, dentre outros
aspectos, pelo surgimento de crises cíclicas de superprodução de
capital e suas perversas consequências, e está relacionada à forte
presença da ideologia dominante, que busca insistentemente
mistificar a realidade social diante do “colapso” social em
desenvolvimento, expresso pelo aumento do desemprego e
da pobreza, guerras, acirramento de comportamentos sociais
fundamentalistas de modo geral, sucessivas ações de agressão a
diferentes grupos humanos e ao meio ambiente, etc.
Consequentemente, afirmar simplesmente a
“crise da escola” sem relacioná-la às contradições do sistema
capitalista é, tenha-se consciência ou não do fato, contribuir para
a manutenção do sistema social vigente. O discurso da “crise da
escola”, da forma como está colocado, é duplamente funcional ao
capital; além de não denunciar as contradições do sistema social
e econômico, que está na base de tal crise, ainda fragiliza a escola
na sua luta por um ensino de melhor qualidade ou na elaboração
de um projeto educativo na perspectiva dos trabalhadores.
Destaque-se que, no entanto, o sucateamento das
escolas públicas brasileiras e o aparente descaso por parte
dos governos em relação à educação pública são movimentos

9 junqueira&marin editores 9 207


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
contraditórios, pois ao mesmo tempo em que pode ser observado
o baixo investimento do Estado em educação, a baixa qualidade
da formação de professores e os baixos salários dessa categoria
profissional, etc., governos e organismos internacionais
afirmam, publicamente, haver interesse e preocupação com
a educação pública. Expressam tal interesse, por exemplo, na
realização, em 1990, de uma Conferência Mundial de Educação
para Todos, convocada pela UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco
Mundial, assim como na pressão internacional para que o Brasil
reduza seus índices de analfabetismo e melhore seus índices de
escolarização.
Assim, para se compreendera realidade educacional
brasileira é necessário, no atual contexto de globalização do
capital, que se compreenda, concomitantemente, o movimento
do capital e sua doutrina: o (neo)liberalismo.

[...] O liberalismo surgiu como expressão historicamente


necessária do modo de produção capitalista, não só na sua
fase de estruturação e consolidação – na qual o liberalismo
foi imposto como visão de mundo, através da qual a
burguesia dirigiu o processo de luta contra a antiga ordem e
de construção da nova – como também nas fases seguintes,
de crescente expansionismo, nas quais a burguesia precisou
da disponibilidade subjetiva para que o capitalismo fosse
aceito como natural e necessário, identificado a progresso,
desenvolvimento,democracia, liberdade, etc. (WARDE,1984,P.26).

A autora, ao analisar o movimento histórico do


liberalismo, caracteriza-o em três fases distintas (liberalismo
clássico, liberalismo de transição e liberalismo multifacetado) e
afirma que nesse movimento a burguesia muda de posição:

Enquanto a burguesia dos séculos XVII e XVIII era


revolucionária, a burguesia do século XIX estava politicamente
satisfeita e saciada com o status quo. Ela não mais desejava
transformá-lo [...]. Na medida em que a burguesia passou de

208 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
classe revolucionária para classe no poder, os conceitos liberais
integrais foram gradualmente formalizados (WARDE,1984,p.46).

Naquele século, segundo a autora, ao mesmo tempo


em que a burguesiase confrontava com asvelhasforças,precisava
enfrentar uma nova força política que surgia: o proletariado.
Visando a manutenção de sua hegemonia, a burguesia adotou o
“modelo de democracia desenvolvimentista”, o qual se assentava
naideia de queapauperização progressiva da classetrabalhadora
a fazia perigosa e que, como consequência, era preciso pensar um
mecanismo de participação e de melhoria das condições de vida
que “suavizasse” sua periculosidade⁴², em decorrência do que se
investiu na educação dos indivíduos como meio de correção das
distorções sociais e melhoria da sociedade.
As análises realizadas permitiram perceber que
a realidade social, analisada por Warde (1984), é semelhante
– semelhança não entendida como igualdade – à vivenciada
no Brasil, neste início de século: “pauperização crescente das
condições de vida e trabalho da classe trabalhadora e o aumento
de sua “periculosidade” (p. 61). Desigualdades econômica,
social e educacional que podem ser amplamente constatadas
nos artigos apresentados no GT13.
Ao que parece, a burguesia reage a essa situação,
utilizando sua velha fórmula: propõe investir no modelo
de democracia e na educação dos indivíduos como meio de
correção das distorções sociais e melhoria da sociedade. Ocorre
em relação à educação um processo semelhante ao que Warde
(1984) constatou em relação à extensão dos direitos políticos, ou
seja, a extensão dos direitos à educação tem duplo significado:
é resultante da pressão política dos setores avançados da
sociedade, mas aparece como concessão da burguesia, aqui
representada pelo Estado, a qual interessa educar politicamente
as forças insurgentes.
A educação continua cumprindo, ao menos, dois
papéis específicos: por um lado, e enquanto for possível, para

9 junqueira&marin editores 9 209


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
a classe dominante, é necessário manter a ilusão, manter a
ideologiadaigualdade, do desenvolvimento,damobilidadesocial,
via educação; por outro lado, o capital continua a necessitar que
uma parcela de sua “mão-de-obra” seja qualificada. O que explica,
parcialmente, o fato de o Estado continuar investindo, ainda que
de maneira precária, em educação e a existência de um consenso
entre governos, organismos internacionais e educadores em
torno da importância da educação; consenso que se reflete na
efetivação de um projeto de escola ideal: a “Escola Cidadã”.
Contudo, verificou-se uma tendência de abordagem
centrada em aspectos específicos em relação à escola e ao
processo de formação escolar, em detrimento das relações entre
as partes estudadas e o todo contraditório e complexo que é a
escola. Forma fragmentada de “olhar” a realidade, que parece
levara uma compreensão equivocada sobre a escola e sua função
social. Assim, pode-se concordar com Canário (2005) que existe
uma “crise no modo de pensar a escola”, consequentemente,
pode-se afirmar que a tal “crise da escola”, também indicada
pelo autor, precisa ser repensada e redimensionada.

Considerações finais

Da pesquisa realizada, vários aspectos merecem


destaque, dentre eles, asrelaçõesentre aformação deprofessores
e o que se produz academicamente sobre tal tema. Existe um
campo vasto de mediações entre essas duas esferas; no entanto,
pôde-se evidenciar a necessidade de que pesquisas sejam
realizadas na direção de compreender as relações entre escola e
formação humana em seu movimento histórico e dialético.
Os artigos indicaram que os processos de
escolarização apresentam uma dinâmica contraditória: a
escola, ao mesmo tempo em que reproduz a sociabilidade
burguesa, também oferece elementos necessários, ainda
que não suficientes, à formação da individualidade, quando

210 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
considerados os elementos teórico-metodológicos da relação
entre indivíduo e gênero humano. Elementos fundamentais para
que os sujeitos possam, ao participarem de um ensino voltado
ao desenvolvimento de suas funções psíquicas superiores,
conforme indica Davídov (1988), ter acesso aos necessários
instrumentos teóricos e políticos para a criação coletiva de
condições para a realização de um projeto social e educacional
que supere as contradições históricas apresentadas.
Também foram constatadas dificuldades em se
compreender essa dinâmica, que decorrem, possivelmente, das
relações da Educação com os conhecimentos produzidos pelas
ciências que a fundamentam. Os conhecimentos produzidos pela
Psicologia, Sociologia, História, Filosofia, Política, Antropologia,
enfim pelas Ciências Humanas, estão perdendo espaço nos
cursos de formação de professores. Fato que exige reflexão, pois,
se algumas abordagens psicológicas produzem conhecimentos
alinhados com a ideologia dominante e reduzem a complexidade
dos fenômenos psicológicos aos aspectos intrapsíquicos, os
conhecimentos produzidos por determinadas apropriações de
parcela das contribuições do campo da Sociologia da Educação
se polarizam num outro extremo: tendem a se caracterizar pela
denúncia do aspecto reprodutor da escola, sem considerar as
importantes e necessárias contribuições da educação escolar
para a formação dos seres humanos, na perspectiva indicada
pela Psicologia Histórico-Cultural. O que não justifica a redução
da presença das referidas ciências na formação do professor, ao
contrário, indica a necessidade de superação de um movimento
pendular nas abordagens teóricas e nas suas consequentes
implicações na prática educacional.
Os resultados das análises permitiram também a
elaboração de alguns entendimentos sobre a formação escolar
vigente. Embora o currículo formal seja considerado como
critério para justificar a não aprovação dos estudantes, como
constatado por Sampaio (1998), esse não tem se constituído em

9 junqueira&marin editores 9 211


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
critério para a aprovação dos mesmos. A LDB, Lei n. 9394/96,
como citada anteriormente, permite e estimula a coexistência
de modos difusos de organização do ensino ao propor que a
organização do ensino nas escolas e a concretização do currículo
escolar em sala de aula ocorram de forma flexível, sem que os
governos ofereçam as condições para o trabalho coletivo dos
professores, para o atendimento das necessidades formativas
das novas gerações na dimensão do ser genérico, salários mais
elevados para os trabalhadores da educação. Uma lógica de
segmentação e diversificação que resulta no acirramento de
profundas disparidades entre as pessoas em termos de formação
e desenvolvimento humano – uma prática social de violência que,
por ser institucionalizada e não ser imediatamente evidente,
precisa ser problematizada e desvelada.
Ainda que aparentemente o “fracasso escolar”
esteja em vias de ser superado, as análises indicam, ao contrário,
que a tendência é de continuidade. Tal fenômeno permanece
ocorrendo no início do século XXI por meio da “diplomação do
não saber”, de práticas marcadas por estigmas e pré-conceitos e
por um cotidiano escolar esvaziado de sentido, como plasmaram
as recentes imagens do filme francês “Entre les murs”⁴³, dirigido
por Laurent Cantet.
Atuar politicamente visando à superação dessa e
das demais formas de produção de desigualdades necessárias
à reprodução da sociabilidade capitalista é uma forma de se
colocar na direção de criar historicamente condições para a
emancipação.
Nessa perspectiva, dois grandes desafios se colocam
para a escola e os profissionais a ela relacionados: propor
objetivos e finalidades para a formação escolar que contribuam
para a merecida valorização social da mesma e que possibilitem
a criação de sentido pelos sujeitos envolvidos em tal formação,
definindo métodos e condições, por meio dos quais seja possível
concretizar tais propostas; e possibilitar a formação de um

212 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
sujeito crítico e sensível, entendido como um sujeito que dispõe
dos conhecimentos, valores e instrumentos intelectuais e
afetivos necessários à compreensão de sua existência e à crítica
social. Processo para o qual o conhecimento produzido e a
atuação dos profissionais vinculados à Educação têm muito que
oferecer, tanto no âmbito da pesquisa educacional como no da
prática político-pedagógica. 3

Referências

ARAÚJO, M.S.; PÉREZ, C. L.V. (2004). Um jogo de luz e sombras: lógicas de ação
no cotidiano escolar. Anais. 27ª Reunião da ANPEd.

BERGAMASCHI, M. A. (2000). O tempo histórico nas primeiras séries do Ensino


Fundamental. Anais. 23ª Reunião da ANPEd.

BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394 de 20 de


Dezembro de 1996.

CANÁRIO, R. O que é a escola? Um “olhar” sociológico. Porto: Porto Editora,


2005.

CARVALHO, M. S. (2005). A escola pública de ensino fundamental nos projetos e


relatórios de pesquisa do CNPq. Anais. 28ª Reunião da ANPEd.

DAVÍDOV, V. La enseñanza escolary el desarrollo psíquico. La Habana: Editorial


Progreso, 1988.

DIAS, V. E. M. (2005). Ciclos e progressão continuada no estado de São Paulo:


faces de uma mesma “moeda”. Anais. 28ª Reunião da ANPEd.

FERNANDES, C. de O. (2005). Fracasso escolar e escola em ciclos: tecendo


relações históricas, políticas e sociais. Anais. 28ª Reunião da ANPEd.

JACOMINI, M. A. (2004). Os educadores e a organização do ensino em ciclos na


rede municipal de São Paulo (1992-2001). Anais. 27ª Reunião da ANPEd.

9 junqueira&marin editores 9 213


CAPÍTULO VIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de
Marx. São Paulo, SP: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

MANACORDA, M. A. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. 6.


ed. São Paulo: Cortez, 1997.

NOZAKI, I.; PICHITELLI, E. (2005). O trabalho prescrito e o trabalho real: as


competências do professor do ensino fundamental. Anais. 28ª Reunião da
ANPEd.

OLIVEIRA, T. F. M. (2003). Fracasso Escolar: “cultura do ideal” e “cultura do


amoldamento”. Anais. 26ª Reunião ANPEd.

PONCE, A. Educação e Luta de Classes. São Paulo: Cortez, 1989.

RAVAGNANI, M. C. A. N. (2003). Progressão continuada: discurso de professores


de ciências. Anais. 26ª Reunião da ANPEd.

ROSA, S. A. Escola, ensino, conhecimento escolar e formação escolar: estudo


introdutório a partir da produção dos Grupos de Trabalho Educação
Fundamental e Psicologia da Educação da ANPEd (200-2005). Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis, 2008.

SAMPAIO. M. das M. F. Um gosto amargo de escola: Relações entre ensino e


fracasso escolar. São Paulo: Educ, FAPESP, 1998.

SCHLINDWEIN, L. M. et al. Grupo de Trabalho Psicologia da Educação: uma


análise da produção acadêmica (1998-2004). Psicologia da Educação, São
Paulo, 22, p. 141-160, 1º sem. de 2006.

SFORNI, M. S. F. (2003). Aprendizagem conceitual e organização do ensino:


contribuições da teoria da atividade. Anais. 26ª Reunião da ANPEd.

SOMMER, L. H. (2005). A ordem do discurso escolar. Anais. 28ª Reunião da


ANPEd.

214 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO VIII
SOUZA, G. M. A.; SILVA, M. M.; SILVA, L. M. S. (2004). A língua portuguesa no
ensino fundamental: impasses, desconstruções e perspectivas. Anais. 27ª
Reunião da ANPEd.

TONET, I. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Ed.Unijuí, 2005.


(Coleção Fronteiras da Educação).

_________. A educação numa encruzilhada. Educação. Ano 11, n. 19, p. 33-53, dez.
2003.

WARDE, M. J. Liberalismo e Educação. Tese de Doutorado. Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo – São Paulo, 1984.

9 junqueira&marin editores 9 215


U PARTE
ESCOLAS III V
E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS

i CAPÍTULO IX j
ELEMENTOS POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS EM
CARTILHAS ESCOLARES ITALIANAS⁴⁴

Claricia Otto

Cara menina, você é toscana? – Meu caro Senhor, sou italiana. –


Mas então você é ligure, ou é romana, lombarda ou sícula? – Sou
italiana. – Você não me entende, menina querida, pergunto pela
terra onde você é nascida. Eu sei que italiana você é chamada.
Porém, desejo entender onde você é nascida. – Mas da sua frase
não se distancia, e a menininha: – Sou italiana. – Na península,
sei que nasceste; mas em qual província não me disseste. – E eu
respondo: que seja toscana, que seja parmense, napolitana, ou
sarda, ou vêneta, ou piemontesa, Itália se chama, o meu país
(CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p.55).

Introdução

Ofragmento
La bambinaacima
italiana
étranscrito
alla scuolada(Acartilha
menina
italiana na escola), a qual tem por autores os professores Siro

9 junqueira&marin editores 9 217


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Corti e Pietro Cavazzuti. O exemplar é de 1905, oitava edição –
corrigida, melhorada e em algumas partes aumentada – o editor
é Antônio Vallardi. Merece destaque a informação contida na
contra capa: edição especial para as escolas italianas no exterior.
Essa cartilha é um complemento do sillabari ou, ainda, de um
curso completo de leituras – composta por seis cartilhas para
os meninos e seis para as meninas. Esse fragmento exemplifica
parte dos discursos contidos nessa e em outras cartilhas de
leitura para crianças ítalo-brasileiras. Demonstra que havia
discursos instituidores de determinada identidade, de criar um
imaginário social, de constituir sujeitos e de conferir significados
à realidade, de conscientizar acerca da etnicidade italiana, de
sua preservação e pertença a ela.
Nesse sentido, procura-se compreender a cultura
escolar de determinada época, analisar os discursos e modelos
educativos; divulgar a importância desse corpus documental
a ser investigado nas pesquisas em História da Educação;
compreender que esse material é portador de valores que se
modificam ao longo dos tempos; identificar que esses manuais
trazem em seu conteúdo a ideia de construção de identidades
por meio da escolarização; motivar para pensar nas concepções
de educação que permeiam a formação do público escolar;
verificar que, por meio desse tipo de fonte, é possível identificar,
nos diferentes tempos históricos, quais projetos de formação de
sociedade a escola procurava desencadear.
A periodização, ou seja, o recorte temporal engloba
o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX.
Em termos de recorte espacial, abrange áreas ocupadas por
imigrantes italianos nos três estados do Sul do Brasil, a saber:
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Metodologicamente,
além de revisão bibliográfica, pesquisa em arquivos e
utilização de fontes orais, além da fonte principal – a cartilha
La bambina italiana alla scuola –, as cartilhas La giovinetta
studiosa (MORANDI, 1804), Elementi di Geografia (1905), Lo

218 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
scolaretto ítalo-brasiliano (1895), e Sillabário ítalo-portoghese
(CORTI; CAVAZZUTI, 1890-1905) balizaram as considerações
elencadas neste artigo. Vislumbrou-se compreender parte dos
propósitos contidos nessas cartilhas, os discursos, as práticas e
as representações em relação à escola, ao estudo, ao gênero, à
família, ao professor, ao trabalho e à pátria italiana.
É importante salientar que a reflexão apresentada
aqui não significa a totalidade, nem mesmo a alternativa única
de interpretação. Assim, entende-se que é uma perspectiva
parcial sim, mas que apresenta uma faceta da vida escolar dos
imigrantes italianos no Sul do Brasil e investiga as relações
entre educação, sociedade e cultura mediadas pelo ensino. De
igual modo, as questões centrais estão no rol de “verdades” e
de valores que perpassaram os sujeitos, os quais implantaram
uma forma de educação que, por certo período, foi vencedora,
embora não a única.
As cartilhas mencionadas fugiram ao destino que
tiveram tantas outras, destruídas no período da nacionalização
forçada (1937 – 1945), no governo de Getúlio Vargas. Assim,
permitem um reencontro com a memória e um reavivamento da
história por meio das marcas do tempo. Além dessas questões,
esse material apresenta, em várias páginas, uma série de
argumentos e de bons conselhos e de regras de bem viver para
“fazer ver uma construção social naturalizada (os ‘gêneros’ como
habitus sexuados), como o fundamento in natura da arbitrária
divisão que está no princípio não só da realidade como também
da representação da realidade” (BOURDIEU, 2002). Além disso,
no processo de inculcação de modos de pensar, há a aquisição de
saberes, de hábitos mentais, enfim, a influência na produção de
um conjunto de valores e de um consenso cultural.
As referidas cartilhas permitem compreender a
atenção dada e discutir sobre elas não somente no que diz
respeito à aprendizagem, mas às intenções e práticas educativas,
às metodologias de ensino, às representações de imagens e

9 junqueira&marin editores 9 219


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
personagens-modelo, aos valores familiares e à história da
infância, dentre muitos outros aspectos.

Representações nas cartilhas escolares

Escolas, cartilhas escolares e livros didáticos,


dentre outros materiais, têm se constituído em objetos de
pesquisas nos campos da historiografia, da educação e da
cultura escolar. Segundo Frago (2000, p. 100), “a cultura escolar
pode ser definida como um conjunto de ideias, princípios,
critérios, normas e práticas sedimentadas ao longo do tempo
das instituições educativas”. Forquin (1993) chama de “cultura
da escola” o conjunto de características do cotidiano escolar, ou
seja, normas, comportamentos, valores em torno dos quais a
escola se estrutura: “mundo humanamente construído, mundo
das instituições e dos signos no qual, desde a origem, se banha o
indivíduo humano, tão somente por ser humano, e que constitui
como que sua segunda matriz”. O autor caracteriza a “cultura
escolar” como seletiva no sentido de que a educação não
transmite fielmente a cultura (patrimônio simbólico e unitário),
nem mesmo uma cultura ou culturas. Afirma que a relação entre
educação e cultura pode ser melhor compreendida pela metáfora
da bricolagem, ou seja, a reutilização para fins pragmáticos,
momentâneos, de elementos tomados de empréstimo de
sistemas heterogêneos (FORQUIN, 1993, p. 15).
Essa metáfora pode ser aplicada neste estudo,
haja vista o conteúdo das cartilhas italianas apresentar uma
espécie de bricolagem, isto é, reutilizar elementos dispersos
e heterogêneos da história da Itália, antes e pós-unificação.
Objetiva, com isso, proporcionar um país uníssono e homogêneo.
Nesse aspecto, o foco de análise do corpus documental empírico
centra-se também no conceito de representação. Dentre os
vários sentidos, pode-se compreender,

220 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
Por um lado, a representação como dando a ver uma coisa
ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo
que representa e aquilo que é representado; por outro,
a representação como exibição de uma presença, como
apresentação pública de algo ou de alguém. No primeiro sentido,
a representação é instrumento de um conhecimento mediato
que faz ver um objeto ausente através de sua substituição por
uma ‘imagem’ capaz de o reconstituir em memória e de o figurar
tal como ele é (CHARTIER, 1990, p. 20).

Para Ginzburg (2001, p. 86), o conceito de


representação é ambíguo e apresenta dois significados: “por um
lado, a ‘representação’ faz as vezes da realidade apresentada e,
portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade
representada e, portanto, sugere a presença”.
É possível inferir que a escola e a religião procuraram
inculcar nas crianças ítalo-brasileiras as representações que
contribuiriam para gerar atitudes e comportamentos a serem
mantidos no percurso da existência. No sumário da cartilha
La bambina italiana alla scuola, constam diversos temas; e, ao
final de cada um deles, há uma lista de perguntas e observações
possíveis de se compreender, como sugestões didáticas para a
professora. Os temas abordados nessa cartilha são os seguintes:
Na Escola; A Carta; O Crucifixo e o Retrato do Rei; Amor Filial; A
Mosca; O Aniversário da Mamãe; À Mamãe (poesia); Uma Brava
Menina; O Presente do Tio; Os Passarinhos; Fiel e Papa-rato; O
Corpo Humano; A Raposa e a Máscara; O Tronco; Amor Fraterno;
Os Membros; Desobediência Punida; Canto do Amolador
Ambulante (poesia); Dias e Horas; A Resposta; Uma Disputa
entre os Dedos; Amizade; Roma; O Brasão de Roma; Quirinal; O
Templo de Agrippa - O Panteão; A Pobre Maria (poesia); Animais
Domésticos; A Obstinação; As Cores; A Itália; A Menininha
Italiana (poesia); Itália (poesia); Animais do terreiro; A Raposa
e os Patinhos; Os Meses do Ano; As Estações; A Preguiçosa; A
Colmeia; A Feira; Coragem; A Soberba; O Sorriso da Mamãe
(CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 2).

9 junqueira&marin editores 9 221


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
O primeiro item dessa lista, intitulado “Na escola”,
indica a utilidade e as finalidades da instituição escolar,
introduzindo aos primeiros deveres das alunas:

Venho para a escola com muito gosto, porque aqui se aprende


a ler, a escrever, a contar, como se comportar bem. Aqui estou
na companhia de muitas outras meninas, que amo como
irmãzinhas. Guiadas pela nossa amorosa professora, nós
formamos uma só família. Como nos sentimos bem na escola,
e quantas coisas aprendemos! No início do ano eu não sabia
ler, mas agora não só leio meu livro, como também os nomes
das ruas, os cartazes da escola e as cartas que papai escreve
quando está longe. Quero ser sempre boa e atenta na escola
para aprender tudo o que a professora me ensina e para fazer
feliz minha querida mamãe (CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 3-4).

Esse texto permite observarque havia a preocupação


em despertar os bons sentimentos. Permite ainda uma alusão
relativamente aosseus estudos acerca das “tradições inventadas”
no século XIX, expressão cunhada por Eric Hobsbawm e Terence
Ranger (1997). Dentre as tradições concebidas com objetivos de
inculcarvalores e normas de comportamento, os autoresincluem
a instituição escolar moderna, pois a escolarização passou a ser
uma forma de estabelecer padrões comuns de comportamentos
e valores.

A escolarização fornecia [...] uma forma de estabelecer padrões


comuns de comportamentos e valores [...]. Além disso, permitia,
dentro de certos limites, a possibilidade de expansão para
uma elite da classe média alta, socializada de alguma maneira
devidamente aceitável. Aliás, a educação do século XIX tornou
se o mais conveniente e universal critério para determinar a
estratificação social, embora não se possa definir com precisão
quando isto aconteceu. A simples educação primária fatalmente
classificava uma pessoa como membro das classes inferiores.
O critério mínimo para que alguém pudesse ter status de

222 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
classe média reconhecido era educação secundária a partir de,
aproximadamente, 14 a 16 anos. A educação superior, exceto
por certas formas de instrução estritamente vocacional, era
sem dúvida um passaporte para a alta classe média e outras
elites (HOBSBAWN; RANGER, 1997, p. 301).

Nessa compreensão, a função social da escola


passa a ser a difusão de determinada cultura, a qual legitima
a transmissão de certos valores. Ou seja, o texto “Na escola” é
representativo de certos valores cultivados e apreciados em
fins do século XIX e início do século XX, no Brasil. A função da
escolarização é transmitir e preservar a experiência humana,
podendo ser compreendida como cultura.

A cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte e


sua justificação última: a educação não é nada fora da cultura e
sem ela; dir-se-á que é pela e na educação, através do trabalho
paciente e continuamente recomeçado de uma tradição docente,
que a cultura se transmite e se perpetua: a educação realiza a
cultura como memória viva, reativação incessante e sempre
ameaçada, fio precário e promessa necessária da continuidade
humana (FONSECA, 2005, p. 30).

Objetivando exemplificar ainda mais essas


questões, alguns fragmentos do Sumário são agrupados em dois
subtítulos: a Itália e o rei; o trabalho e a invenção do gênero.
Ambos sinalizam para uma série de representações relativas à
cultura, ou seja, sobre as tentativas de criar e recriar um passado
e adequá-lo às situações e às supostas necessidades do presente.

A Itália e o Rei

Diversas pesquisas sobre as escolas italianas no


Sul do Brasil sinalizam que: (a) a fundação de escolas italianas
no exterior era um meio de o governo italiano difundir a ideia
de italianidade; (b) a escola contribuía para (re)inventar a

9 junqueira&marin editores 9 223


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
cultura, participava dos significados que os porta-vozes de
uma época pretendiam impor; (c) para os porta-vozes da
italianidade (cônsules e agentes consulares), a instrução seria
um recurso indispensável para os emigrados manterem os
vínculos com a Itália e também a identidade italiana no exterior,
mesmo que, no período da emigração, ainda não houvesse uma
nacionalidade constituída; (d) a escola seria o local no qual se
faria a conscientização sobre a etnicidade italiana, ou seja, local
de incutir questões referentes à Itália.
Nesse sentido, muitos são os textos com referências
à geografia e à história da Itália, ao rei, à religião católica e a
personagens italianos, como Vitório Emanuel, Garibaldi, Mazzini,
Cavour, entre outros.
A Itália é uma grande península, que se prolonga em meio ao Mar
Mediterrâneo e tem a forma de uma bota gigantesca. A Itália foi,
no passado, uma nação grande e poderosa, mestra de todos os
outros povos nos caminhos da civilização. Depois foi oprimida
por estrangeiros por longos séculos. Agora ela renasceu para
nova vida, especialmente por obra do grande Rei Vittorio
Emanuele II, de Giuseppe Garibaldi, de Giuseppe Mazzini e de
Camillo Cavour. E sob o reinado de Vittorio Emanuele III, se
encaminha para a reconquista de um dos primeiros lugares
dentre as nacões modernas. Viva a Itália! (CORTI; CAVAZZUTI,
1905, p. 54).
O retrato do Rei está ali para nos recordar a nossa querida
pátria, a Itália, que ele rege e governa. [...] O nosso Rei se
chama Vittorio Emanuelle III, e é filho de Umberto I, “O Bom”,
de Casa de Savóia. Ao Rei devemos devoção e respeito, porque
representa a nossa pátria, a terra onde nasceram nossos pais,
onde se fala a nossa língua. [...] Vittorio Emanuelle III é amado
pelos italianos por ser bom e generoso [...]. Portanto, amemos
a Deus e ao Rei, honremo-los com nossas boas obras (CORTI;
CAVAZZUTI, 1905, p. 5-7).

Roma é a capital da Itália. Em Roma também mora o Papa, que


é o líder da Igreja Católica (CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 34-36).

224 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
Esses são alguns exemplos da ênfase ao rei
aproximando-o da figura do herói. Além disso, ele é modelo
exemplar para que a menina ítalo-brasileira desenvolvesse,
desde a infância, o amor ao trabalho.

O trabalho e a invenção do gênero

Além de a cartilha (re)apresentar fatos e nomes de


personagens da história da Itália que deveriam ser cultuados,
dentre os valores a serem apreendidos e vividos, o tema sobre o
trabalho e a importância de se trabalhar ocupam lugar central.
Inclusive, também Vittorio Emanuelle III deve ser amado, porque
ele “dá todo o seu tempo, o seu coração, seu inteligente trabalho
à pátria, que ama acima de qualquer coisa” (CORTI; CAVAZZUTI,
1905, p. 7). Então, seguindo o seu exemplo e tendo-o como
modelo, desde pequenas, as meninas devem amar o trabalho e
imitar a personagem Mariuccia:

É uma menininha gorducha de apenas 6 anos; e como ela trabalha!


– Mariuccia –, lhe diz a mamãe antes de sair –, eu estarei fora por
uma hora; não perca tempo, mas use-o para reparar as roupinhas da
boneca. Já preparei e alinhavei. E Mariuccia, toda contente, logo se
senta e começa seu trabalho. Veja como trabalha com atenção! Não
diria que faz os pontos todos bonitos e iguais. Pobrezinha! É tão
pequenina, que nem mesmo sabe com qual mão segura a agulha.
No entanto, tem vontade de trabalhar! E quando a mamãe voltar, ela
terá terminado de consertar a roupinha e a mãe a recompensará com
um beijo. Que brava menina é Mariuccia! Imitem-na, e vocês vão
se sentir contentes (CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 13-15).

As sugestões didáticas desse excerto consistem em


fazer perguntas e observações a respeito da costura, do alfaiate,
de profissões diversas, de nomes de vestimentas, do enxoval
da boneca, de roupas masculinas e femininas e de máquinas de
costura.

9 junqueira&marin editores 9 225


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Interessante observar que as perguntas e
observações sinalizam para a profissão do alfaiate e não da
costureira, já que se trata de uma cartilha para as meninas. Os
gêneros também vão constituindo-se a partir da indicação de
que há roupas específicas para homens e para mulheres. E as
meninas são educadas para cuidar dos filhos, pois começam a
treinar para isso, cuidando e ocupando-se do enxoval da boneca.
Há que se lembrar que tanto o editor quanto
os autores são homens: Antônio Vallardi, Siro Corti e Pietro
Cavazzuti. Nesse aspecto, convém notar que “na maior parte
das vezes, os compêndios de comportamento feminino foram
redigidos pelos homens e resumem as imagens ideais que estes
possuíam sobre as mulheres” (ALGRANTI, 1993, p. 9). Vale
ressaltar também que o exemplo citado reforça a transmissão
de um conteúdo nem sempre explícito, isto é, são valores
essencialmente moralistas que definem o trabalho. A criança
de seis anos, mesmo em meio a atividades lúdicas, deve estar
se preparando para ser um adulto trabalhador e desenvolver o
amor ao trabalho.
No fragmento a seguir, Alberto, por motivos de
trabalho, distante da filha Vincenzina e da esposa, envia notícias:

Minhas queridas, no fim do mês, mandarei para vocês o vale


postal de costume, no entanto escrevo para assegurar a vocês
que estou bem de saúde, como espero que vocês também
estejam. Os negócios seguem caminhando bem. Trabalho não
falta e, se não estivesse tão longe de vocês, diria que estou feliz.
Você, minha boa esposa, não canse de recomendar à nossa
querida filhinha que seja sempre boa e estudiosa. E você, minha
dileta Vincenzina, obedeça sempre à mamãe, e a ame com
todo coração. Espero uma cartinha sua, agora que sei dos seus
progressos na escola (CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 4-5).

Pode-se inferir que as meninas aprendiam a


conceber o trabalho como instrumento de sobrevivência e

226 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
algo que enobrece. Afinal, o pai de Vincenzina sacrifica-se para
prover o sustento da família. Aparecem também, nessa carta, os
papéis atribuídos ao homem e à mulher. O papel da atividade
masculina é a de prover o sustento da família; a mulher dedica
se ao trabalho doméstico e à educação dos filhos. Cada membro
da família tem uma função definida; contudo, a ênfase dada ao
pai é maior, ele é o chefe da família, mesmo estando distante.
Além disso, o conteúdo da cartilha indica a situação
econômica da população, uma vez que fala da necessidade de
emigrar. Emigrar para quê? Nas sugestões didáticas desse
trecho, a ideia central é que se emigra em busca do trabalho.
A carta procura transmitir a ideia de que toda criança está
na escola e é obediente. Tem-se também a resposta ao pai.
Vincenzina, com o auxílio da mãe, escreve: “Querido papai. Aqui
estou eu, atendendo ao seu pedido. Escrevo em resposta a sua
amável carta; porém, com a ajuda da mamãe. Estamos contentes
de saber que você está bem, que não falta trabalho [...] Prometo
ser sempre obediente e estudiosa e de querer bem a você e à
mamãe” (CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 30).
O excerto a seguir, em seu conteúdo, parece em nada
se relacionar com o tema “trabalho”. No entanto, nas perguntas e
observações, ou seja, nas sugestões didáticas, uma questão fala
alto: “o que uma brava menina pode fazer na cozinha?”

Meu querido tio Vittorio me presenteou, no dia do meu


onomástico, com uma grande caixa, onde estão todos os
utensílios da cozinha da boneca. Como é gentil meu tio Vittorio!
Ali estão uma graciosa dispensa, uma pequena mesa de cozinha
com gaveta, um escorredor de louças, os talheres, o saleiro, uma
pimenteira muito graciosa e o rolo de macarrão. Estes objetos
são de madeira. Alguns são de cobre, como o caldeirão, a panela,
as caçarolas, a frigideira; de ferro envernizado, como o balde, a
escumadeira, a concha; de lata, como a peneira, as forminhas
para doces e pastéis, e tantos outros utensílios que não mais
me recordo. A coisa de que mais gosto na minha cozinha é uma

9 junqueira&marin editores 9 227


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
chaminé com lareira, e uma corrente com gancho, que pende da
chaminé. Também não faltam o suporte para a madeira, o fole, a
pazinha, a pinça. Há também um fogãozinho de ferro, com tripé
e abano. Como é linda a minha cozinha! (CORTI; CAVAZZUTI,
1905, p. 15 – 16).

Assim como esse trecho da cartilha, são diversas as


leituras entremeadas de valores morais e que direcionam para
o trabalho, com o qual a menina deve se ocupar: “ser uma brava
mãe de família”. Dessa forma, na leitura em que se ensinam
os marcadores temporais, como o dia, as horas, a semana, nas
sugestões didáticas, há uma recomendação que, de certo modo,
está ligada ao trabalho: “fazer bom uso do tempo”. Tudo gira em
torno de empregar bem o tempo e quem não o faz é considerada
uma menina preguiçosa, tal como Enrichetta que, em vez “de
ler seu livrinho, como pediu a professora, está sem fazer nada,
toda mal-humorada e entediada. E assim as horas passam,
e Enrichetta não aprende nada! Quando crescer, vai chorar
inutilmente o tempo perdido” (CORTI; CAVAZZUTI, 1905, p. 65).

Considerações Finais

As cartilhas de leitura para crianças ítalo-brasileiras


objetivaram atender a um público específico, tendo como tarefa
principal a constituição de sujeitos no contexto de final do século
XIX e início do século XX. Relativamente a La bambina italiana
alla scuola, os autores procuraram aglutinar numa única cartilha
uma série de valores que julgavam imprescindíveis à educação
das meninas. Também se preocuparam em orientar a professora
na utilização do referido livro de leitura, já que cabia a ela a
responsabilidade pela formação das crianças.
Por intermédio desse material, é possível identificar
um conjunto de habilidades a ser desenvolvido, atendendo
assim às necessidades dos professores e dando-lhes como tarefa
a transmissão de conhecimentos e valores pré-estabelecidos.

228 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
À escola cabia a responsabilidade de transmitir
conhecimentos e formar para um conjunto de valores morais
e de ideais em torno da educação de uma época. As cartilhas
são portadoras de vestígios das marcas da escolarização
entranhadas nas pessoas. Esses artefatos de um tempo vivido
permitem examinar princípios morais que marcaram as práticas
educativas e as marcas de um tempo.
Destaca-se que esses manuais de leitura serviam
como veiculadores de ideias, de incorporação de certos
comportamentos, de valores morais, éticos e patrióticos além
de possuírem uma forte conotação religiosa. Os conteúdos
remetem às representações e valores viabilizados por meio de
práticas educativas. Esses livros contribuíram para instituir
o que seria uma criança bem-educada, isto é, uma noção de
moral que, a partir de histórias exemplares, desenvolveria os
bons sentimentos de amor ao trabalho. Os porta-vozes da Itália
recém-unificada almejaram expandir além-mar a ideia de nação,
direcionando os conteúdos didáticos a fim de que o imigrante
cultivasse o amor pela terra que havia deixado.
Dessa maneira, pode-se inferir que esse material
é formador de identidades, na medida em que procura
evidenciar saberes e memórias, tidos como representativos
dessa sociedade. Desse modo, investigar manuais escolares é,
de certa forma, realizar um trabalho arqueológico das práticas
educacionais. Vale destacar, ainda, que esta pesquisa é um
convite, para os envolvidos com a história da educação, para que
incentivem não somente a prática de guardar, mas também para
que se lembrem de folhear, cada vez mais, documentos escolares
já existentes, talvez deixados de lado porque a eles se atribui
menor importância.
Ademais, vislumbrou-se a importância de
preservação daquilo que se produz e se utiliza no espaço escolar.
As práticas educativas que marcaram um período poderão ser
mais facilmente conhecidas por meio de escritos guardados, os
quais são portadores de uma memória, cultura e representações

9 junqueira&marin editores 9 229


CAPÍTULO IX PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
escolares. É somente dessa forma que se amplia o caminho
em busca de estratégias de preservação de material escolar,
resguardando, assim, a memória escrita. Além disso, apesar
das complexas situações envolvidas nesta decisão, quer-se
sensibilizar a população para que, em vez de destruir, encaminhe
documentos familiares às instituições públicas.
Enfim, além das intenções políticas e estratégias
pedagógicas, as cartilhas apresentam vestígios de um tempo,
dos modos de aprender e ensinar, conviver, pensar e sentir.
Apresentam a constituição dos gêneros e de uma cultura escolar
que prescrevia regras de bom comportamento. 3

Referências

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia: condição


feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750 – 1822. Rio
de Janeiro:J. Olympio; Brasília: UnB, 1993.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2002.

__________. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa:


Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.

__________. A ordem dos livros. Brasília: UnB, 1994.

FONSECA, Selva G. Didática e prática de ensino de história: experiências,


reflexões e aprendizados. 4. ed. São Paulo: Papirus, 2005.

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do


conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

230 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO IX
FRAGO, Antonio Viñao (2000). Historia de la Educación y Historia Cultural:
posibilidades, problemas, cuestiones. In: Revista Brasileira de Educação, São
Paulo: Anped, n. 0, set./dez./1995.

GINSBURG, Carlo. Olhos de madeira. Novas reflexões sobre a distância. São


Paulo: Cia das Letras, 2001.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997.

Cartilhas

CORTI, Siro; CAVAZZUTI, Pietro.Sillabario ítalo-portoghese. Milano: A. Vallardi,


[entre 1890 e 1905].

CORTI, Siro; CAVAZZUTI, Pietro. La bambina italiana alla scuola. 8. ed. Roma:
A. Vallardi, 1905, p.55.

ELEMENTI di geografia. Palermo: S. Biondo, 1905.

LO SCOLARETTO ítalo-brasiliano. São Paulo: Andrizi, 1895.

MORANDI, Felicita; SALVI, Edvige. La giovinetta studiosa. Milano: G. Agnelli,


1804.

9 junqueira&marin editores 9 231


U PARTE
ESCOLAS III V
E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS

i CAPÍTULO X j
A SOMBRA DA VIOLÊNCIA NA RELAÇÃO PEDAGÓGICA:
UM ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES DE
DIRIGENTES E PROFESSORES DE ESCOLAS
DE ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO
Emília Darci de Souza Cuyabano

Introdução

Este
do medo na escola”
máscaras da é parte
trabalho
desenvolvida no Núcleo de Pesquisa
da pesquisa “As
violência e o imaginário

em Educação/NUPE e no Grupo de Estudos do Imaginário,


Cotidiano e Educação/GEICE, do Programa de Mestrado em
Educação da UNIC, Cuiabá-MT. Seu objetivo era realizar um
estudo das manifestações da violência na escola e seu entorno
e do imaginário do medo que elas despertam. Nesse sentido, a
intenção neste texto é a de focalizar as maneiras possíveis como
gestores e professores das escolas alvo da pesquisa lidam com a
violência e como isso pode se manifestar ― ou não ― na relação
pedagógica. Em outras palavras, é uma análise com o fito de
compreender como, a partir de uma cultura e um imaginário
escolar, os sujeitos ouvidos enxergam a violência, na vida

9 junqueira&marin editores 9 233


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
cotidiana, de dentro e de fora do espaço escolar, bem como sua
relação com os jovens considerados violentos.
O interesse por esta temática responde às demandas
de novas problematizações e abordagens da questão da violência
no mundo moderno. A insegurança está cada vez mais ligada
à ascensão da violência que, por sua vez, promove a base e o
fortalecimento de um imaginário do medo, o qual, incorporado
ao imaginário social, transforma as relações sociais, fazendo
de cada indivíduo uma vítima atual ou potencial, ou, então, um
suspeito permanente, colocando uns contra os outros. A escola,
por sua vez, que se julgava “espaço sagrado”, não está imune
aos seus efeitos, pois uma “cultura da violência” parece ter se
instalado de forma permanente no cotidiano escolar (TEIXEIRA,
2000).
Partindo de uma perspectiva socioantropológica,
balizada, principalmente por uma Antropologia do Imaginário,
com Gilbert Durand (1997), uma Sociologia do Cotidiano, com
Michel Maffesoli (1985) e, uma Antropologia das Organizações e
Educação, com J. C. Paula Carvalho (1990), este estudo considera
a violência em suas matrizes imaginárias e socioculturais. Parte
do pressuposto de que a violência está presente na vivência de
todo e qualquer grupo social, tendo uma função estruturante
essencialnasuaconstituição.Asfigurasdaviolência,desdobradas
em diferentes mitos de origem das mais diversas culturas, têm
valor arquetípico e funcionam como modelos de referência que se
inscrevem na alma humana e no inconsciente coletivo.
Para Gilbert Durand (1997), o imaginário é
dinamismo equilibrador que se apresenta como a tensão entre
as “forças de coesão” de dois “regimes” de imagens ― o diurno
e o noturno. No regime diurno, a representação permanece em
estado de vigília, com as armas prontas para o combate. Tal
atitude corresponde à estrutura heróica na qual os monstros,
hiperbolizados, são combatidospormeio de símbolosantitéticos.
As trevas são combatidas pela luz e a queda, pela ascensão. No
regime noturno, a imaginação combate a angústia existencial

234 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
de duas maneiras. Na estrutura mística, minimiza a face trágica
do tempo pela negação ou pela inversão do valor afetivo a ele
atribuído, ou seja, a noite não é mais treva nefasta, mas promessa
de aurora. Na estrutura sintética, desarma o drama temporal
de seus poderes maléficos pela harmonização de imagens
antagonistas ― heróica e mística ―, que são integradas numa
ação, pondo em jogo alternadamente as valorizações positivas e
negativas do tempo, a sua face trágica e triunfante.
Tais atitudes imaginativas têm uma ancoragem
corporal, pois há uma estreita concomitância entre as
representações simbólicas e a corporeidade, em que estão
as fontes sensório-motoras dos símbolos, enquanto que o
meio oferece as fontes culturais. São produzidas no “trajeto
antropológico”⁴⁵, que põe em relação uma representação ou
atitude humana, aquilo que vem do psicofisiológico, e o que vem
da sua história. É nessa troca incessante entre o biopsíquico e
o sociocultural que se manifesta o imaginário como dinamismo
organizador da experiência e ação humana, colocando o homem
em relação de significado com o mundo, com o Outro e consigo
mesmo.
Nesse sentido, pode-se considerar que a relação
pedagógica é mediada sempre pelo imaginário, ou seja, há uma
dinâmica sócio-psíquico-organizacional que permeia a realidade
dos grupos envolvidos na ação pedagógica. Também se pode
entender, com Paula Carvalho (1991), a noção de educação como
prática simbólica, cuja função é organizar a socialidade dos
grupos, na medida em que cria redes de significados e vínculos
de solidariedade e de contato. Considerada como manifestação
de um universo imaginário numa práxis, pode-se dizer também
que toda prática simbólica é organizacional e educativa.

Sobre os etnocentrismos que organizam a escola

Compreender como educadores e alunos lidam com


aviolêncianaescolaenoseuentornoimplicaidentificarasformas

9 junqueira&marin editores 9 235


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
manifestas e latentes com que ela se apresenta na realidade dos
grupos e o imaginário do medo que elas despertam. Também
implica identificar as atitudes e representações etnocêntricas
que permeiam a relação pedagógica. Para Paula Carvalho (1997),
a escola assume uma postura etnocêntrica em relação à cultura
dos diferentes grupos que a frequentam. Tudo fazendo para
eliminar a diferença. Segundo o autor, “o etnocentrismo consiste
em privilegiar um universo de representações propondo-o
como modelo e reduzindo à insignificância os demais universos
e culturas diferentes” (p. 181). O etnocentrismo tem origem na
heterofobia, que consiste na rejeição do outro em nome de não
importa qual diferença. É o Outro em suas diversas formas ―
primitivo, louco, criança, homossexual, negro, judeu, pobre ―
e constitui o perigo que deve ser eliminado. O etnocentrismo
consiste em projetar “fora” como “outro” e como “sombra”
tudo o que é incompatível, que é perigoso reconhecer como
pertencente ao universo da cultura padrão escolhida.
Num estudo sobre o racismo, referido por Paula
Carvalho (1997), Taguieff identifica duas atitudes básicas
decorrentes da heterofobia: a atitude antropofágica, que visa
absorver o outro para neutralizá-lo, e a atitude antropoêmica (do
grego emein ― vomitar), que visa expulsar o outro, considerado
perigoso, mantendo-o temporária ou definitivamente isolado.
A atitude antropofágica se desdobra, por sua vez, em
duas estratégias. Por meio de uma antropofagia dialógica, tenta
se envolver o outro no e pelo discurso persuasivo. É a forma
predominante em educação, na academia e na mídia política.
Por meio de uma antropofagia digestiva, tenta-se assimilar o
outro a si mesmo. É como se manifesta em todas as formas de
aculturação.
A atitude antropoêmica também se desdobra em
duas estratégias. Numa antropoemia genocida, quer-se chegar
pelo terror à destruição do outro. Manifesta-se nos movimentos
de perseguições de qualquer natureza ― étnica, religiosa,

236 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
política. Numa antropoemia da tolerância, quer-se separar
e isolar o diferente. É forma específica do desenvolvimento
em separado, típica de todas as ideologias do relativismo, que
respeitam o divergente na aparência, mas, na realidade, não o
aceitam.
Para Teixeira (2000), numa análise com G. Durand,
a antropofagia funda-se numa lógica dialógica ou dialética,
portanto, no regime noturno de imagens, com esquemas
corporaiscorrespondentesaassimilar,ingerir,absorver,envolver.
Já a antropoemia se funda numa lógica identitária, portanto, no
regime diurno de imagens, cujos esquemas verbais são separar,
rejeitar, isolar, destruir. Ambas as estratégias, conforme a autora,
visam eliminar a diferença, a primeira pela inclusão e a segunda
pela exclusão. A busca do equilíbrio será sempre o desafio que se
coloca ao homem em seu mundo de relações.
Nas sociedades atuais, a violência se atiça e faz
acompanhar de uma potencialidade irracional que, negada ―
imaginário da exclusão ― ou reprimida ― imaginário da inclusão
―, acaba por explodir de forma incontrolável (BALANDIER,
1997); tomando a forma de uma desordem contagiosa como uma
doença da sociedade, que aprisiona o indivíduo e, por extensão,
a coletividade num estado de insegurança e medo. Uma cultura
de assombro e um imaginário do medo inscrevem-se no corpo,
em movimento da cultura atual.
Na escola, tal como na sociedade, as situações
geradoras de violência são permanentes e não apenas
conjunturais. Para Balandier (1997), o meio social, em seus
movimentos e configurações, deixa passar a ação violenta,
aumentando e fortalecendo o temor pela incerteza e provocando
o medo.
A partir desse referencial, procedemos à análise dos
temas recorrentes e das imagens que se insinuaram no discurso
dos educadores, apresentando os seguintes resultados que,
aqui, são apresentados.

9 junqueira&marin editores 9 237


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Os dados aqui analisados foram coletados junto
a 18 educadores, entre os quais, encontram-se diretores,
coordenadores pedagógicos e professores da rede pública
e privada de ensino que exercem suas funções em escolas
localizadas no centro e na periferia urbana de Cuiabá. Os sujeitos
da pesquisa, em entrevistas semidirigidas, foram indagados sobre
o fenômeno da violência ― como veem e sentem a violência que
se manifesta na escola, suas causas, o medo que provoca, seus
agentes e seus efeitos. Foram indagados, sobretudo, sobre as
atitudes tomadas frente ao fenômeno e aos alunos considerados
agentes ou vítimas de violência.

A violência de fora e de dentro da escola

Em suas diferentes modulações e ambiguidades, a


violência manifesta-se sob diferentes formas no cotidiano da
escola. Ela é interna eexterna ao espaço escolar, é explícita, velada
ou simbólica, causando uma certa perplexidade e desconforto
aos educadores. Segundo os entrevistados, no espaço intramuros
escolares, a violência manifesta-se na forma de assaltos, roubos,
vandalismos, depredações, agressões físicas, comportamentos
desviantes dos alunos. São atos que deixam suas marcas nas
salas de aula, muros, banheiros, pátios, corredores e portões.
Nada e ninguém parece imune a ela:

“Sim, aqui na escola mesmo, [...] ocorreu agora há poucos dias,


nas Olimpíadas da escola, jogando um jogo de futsal, que eu acho
que é um jogo muito agressivo, muito assim... de heróis, né? que
ele quer dar uma de herói. Um aluno brigou com outro, uma
questão de bola e tal. Um goleiro foi brigar com o outro e foi
expulso um dos goleiros. Chegando lá de fora da quadra, o primo
do outro goleiro foi tentar pegar o outro menino e saiu uma briga
e tal. E ele falou que ia bater mesmo... E no período da tarde, um
outro aluno, também junto com o colega, que os dois já tinham
brigado no dia anterior, o outro veio com um soco inglês e deu

238 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
na cara dele. Eu tentei conversar com ele, com o que bateu. E ele
falou assim: Bati e bato, que ele já me bateu no dia anterior e eu
tenho que descontar” (CNE2).

“A questão do vandalismo é séria. A violência tá presente nas


paredes, no banheiro, nas carteiras, no quadro, né? Na quadra,
quando eles destrói, é como se eles dissessem: não tem isso lá,
então aqui eu vou tentar destruir. Então, eu acho que é uma
violência que não está aparente, mas está presente” (DFE4).

“Recentemente fui ameaçado. Não é a primeira vez. Desde o início


do ano já fui ameaçado três vezes por elementos... porque tirei
alunos... de dentro da escola” (CNE1).

“Nós temos aqui dentro da escola fatos recentes, vou até citar
porque nós tamos vivendo isso, então é importante citar é...
Nós temos uma aluna aqui, né, que tava na sala de aula e o
coleguinha derrubou um lápis pra cima, e caiu dentro do olho
dela, e machucou o olho. Eles jogam, jogam bolsas e quando dá
um pouquinho o aluno zanga e joga lápis, ele joga caderno, joga
bolsa, ele vira a cadeira... São atos de violência, que se vê que às
vezes grita... Esses dias [...], meu aluno virou a cadeira, me xingou,
e eu fiquei muito triste, [...] na minha época a gente tinha que
respeitar o professor, respeitar mãe, respeitar pai. Hoje, eu tô aqui
dentro da sala de aula e não sinto... Sabe se faz tanto, se luta tanto
[...] e não consegue pelo menos respeito, questão de dignidade
[...] Tenho um fato recente que aconteceu comigo, meu aluno me
xingou e derrubou a carteira, derrubou a mesa, jogou material
no chão, me xingou de vagabunda, e não xingou só mais a sua
avó. Gente, o que tá acontecendo? Um momento, eu nem cheguei
a falar com as crianças, porque se fosse um filho meu jamais na
minha vida eu ia ter uma filha, eu nunca ouvi essa palavra de
ninguém eu ouvi de uma criança de seis anos” (DFE12).

“A maneira que o jovem se expressa com o professor, intimida


o professor. Teve um caso e foi no mês de agosto, né? O aluno,
o aluno, um baita dum homão, um grandão, aí, ele ameaçou o

9 junqueira&marin editores 9 239


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
professor. Aí, eu tentei conversar com ele, conversar nós dois
juntos. Falei que ele sentasse, sentei do outro lado, ele disse que
ia bater no professor, matar o professor... O professor ficou com
medo, né? Falei: ‘Não, você não pode ser assim com o professor.
Você não veio à aula, você não participou, você quer ter a mesma
nota que seus colegas que tá aqui desde às 7:00 da noite até às
22:00 horas? Você quase não participa das aulas, você vem na
aula 3 vezes por semana, uma vez por semana’. Então ele disse
que ia bater, ia matar o professor. Aí eu chamei o professor
também, sentamos nós três, conversamos, ele continuou com a
mesma agressividade” (DCE5).

“O próprio diretor foi vítima de violência, sendo agredido por um


aluno ou mais alunos, aqui na escola” (CNE14).

Configura-se um quadro de violência a que


Maffesoli (1987), chama de violência banal, que a coletividade
utiliza para fazer frente às formas de dominação. Ela expressa às
vezes uma passividade, que não se integra ao instituído, mas se
opõe a ele, subvertendo o poder, embora sem integrar qualquer
contestação ou ação política. Relativamente à violência na escola
e seu entorno, muitas são as situações de risco vivenciadas no
dia-a-dia, seja por agressões externas perpetradas por bandidos,
traficantes, ladrões, ou ações de violência praticadas dentro dos
lares, seja por violência que adentra o espaço escolar, espalhando
o imaginário do medo entre os educadores:
“Nessa comunidade eu tenho um contato quase todos os dias com
pessoas que foram vítimas de violência... que praticam... que são
vítimas, desde... quando levantam, no coletivo, à noite... Sempre
amanhecem pessoas mortas, aí... Estupros, é pessoas com marcas
de faca, de bala... Então, isso é constante, é quase comum... Tanto
no bairro, quanto nas outras escolas que eu já trabalhei. Inclusive
já... perdi vários alunos assassinados” (DC E4).

“Em alguns casos, teve alunos nossos que foram nas imediações,
não na porta, mas nas imediações [...] foram assaltados. Então os

240 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
assaltantes chegaram, assim... nervosos, e a gente obviamente que
se preocupou. Então chamou os pais e as providências cabíveis
aqui dentro da escola. Não foram fatos que ocorreram aqui, mas
trouxeram... Às vezes há consequências aqui pra dentro” (SGE3).

“Tenho conhecimento também a respeito de um grupo de


meninos que vinha até a escola encontrar com outro grupo de
meninos que parecia uma espécie de briga eletrônica. Iniciou
na verdade [...] pela Internet [...] com bate papo. Aí, começou as
agressões [...], eles marcaram encontro num shopping, então no
shopping [...] Com certeza não foi um encontro muito agradável
e, aí, obviamente eles descobriram que um grupo estudava aqui,
outro estudava em outra escola [...] e os outros que estudavam
em outra escola começaram a vir aqui no portão aguardar pelos
informantes [...] o grupo dos renegados e o grupo dos herdeiros.
Os renegados eram os de pobres, [...] vieram por duas vezes.
Numa das oportunidades, eu presenciei. Eu chegava e presenciei
[...] fui até a grade, lá, e conversei [...] o que eles desejavam, se
eles estavam esperando alguma coisa. Mas bem que, no fundo,
eu percebi que eles estavam querendo era briga. Aí, tava aí os
nossos [...] todos assim bem dispostos, aqui dentro. Quando eles
me viram, ficaram bem valente, né? com o outro grupo. Eles
demonstraram bem que era uma rixa que acontecia com os dois
e aí a preocupação nossa, até que ponto leva [...] Os fatos que a
gente sabe, conforme os grupos rivais, acontece até morte” (SG
E3).

“Qual o procedimento que a escola deve tomar quando, por


exemplo, entra alguém na escola, pula o muro e agride, né? Um
aluno foi violentado aqui na escola” (DCE5).

“Meus alunos são vítimas de violência. Têm em casa com os


pais [...] Alguns dizem que vê o pai espancando a mãe, né?[...] E
às vezes é porque o irmão que fica em casa cuidando do irmão
menor e costuma bater muito, no irmãozinho que é menor. Então
eles falam pra mim assim: ‘meu pai espancou minha mãe e foi
embora de casa’” (DFE12).

9 junqueira&marin editores 9 241


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
“Com alunos de fora daqui, tem uma rixa entre outros grupos de
adolescente e que acaba refletindo aqui dentro da escola. Então,
o meu contato é mais indireto, não é propriamente, assim...
diretamente com o aluno... Assim, na época de olimpíadas, aqui
na escola, a gente fica sabendo que um ou dois alunos nossos que
a gente trabalha tá envolvido com grupos de adolescentes que
acaba tendo problema de violência dentro da escola” (SGE17).

“Os adolescentes que acabaram se tornando vítimas, né? [...]


em função das drogas, e as famílias que não se preocuparam.
Crianças que tiveram no nosso meio e que roubaram a escola,
chegaram a fazer roubos na escola. Então, eu acho que esse é
um exemplo concreto. Crianças de 14, 15 anos, que sentaram
comigo nessa mesa aqui, eu conversei com eles: ‘vocês roubaram
a escola?’ Roubamos. ‘Vocês não sabem que a escola é do bairro?’
Então, eu acho essa também né? Eles são vítimas da violência
e provocam a violência roubando a escola. Então, as famílias
tiveram que mudar do bairro. Concretamente, foram presos,
apanharam...” (SGE8).

Constata-se, nesses depoimentos, de quem vivencia


a violência na escola e seu entorno, que o meio social, em seu
movimento e configurações, deixa passar a ação violenta
(BALANDIER, 1997), colocando as instituições escolares no que
Figueiredo (1996) chama de “estado” ou “condição de violência”,
algo que passa a constituir um ingrediente permanente da
cultura, de modo que é possível falar de uma “cultura da
violência” muito bem expressa no depoimento dessa educadora:

“Os problemas que você vivencia no dia a dia com as crianças, com
as famílias, com os problemas do bairro, eles são semelhantes, eles
só mudam de endereço, os problemas são os mesmos” (DFE7).

Ou seja, tratam-se de situações geradoras


de violência que, tanto na escola como na sociedade, são
permanentes e não apenas conjunturais. É preciso compreendê

242 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
la para além dos sistemas de controle e dominação próprios
da ação do Estado. A violência se ancora numa dinâmica
sócio-psíquico-organizacional, que percorre de ponta a ponta
os sistemas sociais. Não surge só de fora, nem só de dentro
da escola, mas também da própria organização do sistema
de ensino, do anacronismo de suas ações, da incapacidade
atual de propor estruturas para formar pessoas para as novas
configurações socioculturais. Essa violência não-explícita dos
poderes instituídos é assinalada nestes depoimentos:

“Eu acho que... não só a violência física... com o professor. Eu


sinto a violência das... das instalações do colégio, que é uma...
que causa violência... algumas salas, os quadros são horríveis,
não têm ventilador, não há pintura, não tem piso. Os alunos
não têm cadeira, muitos não têm cadeiras. Nós, professores, não
temos material didático adequado para trabalhar. Nós só temos
o giz, o apagador, um retro-projetor... e agora foi recentemente
inaugurada a sala de vídeo... nós não temos material pedagógico
nenhum. Isso também é uma violência!” (CNE14).

“Nós não somos ouvidos, não! É a questão do salário. Aí, a gente


chega a entrar em outras coisas que é um tipo de violência
também, né? Às vezes, por exemplo, eu fui contratada, né? Não
posso nem citar meu nome aqui, mas quando fui contratada,
fiquei dois meses e meio sem receber. Minhas contas de dois meses
e meio ficaram atrasadas. Se eu tratar meus alunos com toda essa
violência que eu fui tratada... Isso também é um tipo de violência,
né?[...] É aquela questão, não leve problema pro seu serviço, mas
como se você tem telefone cortado, luz cortada, não tem o que
comer em casa, é um profissional, estuda, batalha pra, hoje, estar
aqui... Então, também é um tipo de violência...” (DFE12).

“Eu acho que a violência aqui não é expressa... Essa sala de aula,
por exemplo: você pode olhar pra ela, mas não tem condições
de trabalhar numa sala dessas, suja, as paredes estão aí, olha
lá, palavrões na parede, o quadro tem um buraco no meio, né?

9 junqueira&marin editores 9 243


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Os ventiladores são inadequados, a ventilação, a iluminação. É
uma forma de agressão que não está expressa e que se você pega
os adolescentes que vem de casa com problemas de casa, sem
estrutura familiar, entra num ambiente [...] são vários jovens, que
apresentam problemas e a sala vai contribuir pra violência...” (CN
E14).

“A violência é sutil, muito sutil, mesmo. Não aparece. Agora, o que


eu acho que é uma violência... que ela não tem quem domine, e o
educador tem que engolir, é a qualidade do ambiente de trabalho,
as condições que é dada ao aluno. E acho que é uma violência
muito grande. Porque, às vezes falta material, às vezes o telhado...
a maioria das salas estão com o telhado estragado, chovendo...
Então os alunos pedem, a gente é obrigado a pedir calma pros
alunos [...]. Então, essas questões não são resolvidas. A gente tem
que levar na força de vontade. Então, eu acho que é uma forma
de violência” (DCE4).

Outra forma de manifestação da violência diz


respeito à falta de atenção com a criança, falta de respeito
para com o aluno, intimidações sutis, que traduzem em uma
espécie de violência simbólica, que deixa marcas profundas no
inconsciente:

“Ocasionalmente uma violência contra a criança é a nota. O


professor por uma correção ou por uma forma de poder comete
uma violência com aquela criança... A forma de responder à
criança [...] ao adolescente [...] Alguns momentos que a turma às
vezes instiga [...], o professor pode ser até também violento com as
palavras... Não interpreto a violência só como massacre corporal,
mas também como palavras, também com atitudes, também com
gestos...” (DC E3).

“A gente às vezes acha que [...] classe média alta não existe
violência [...]. Ela também é violência [...]. Falta de atenção, [...]
falta de carinho, da presença dos pais, né? [...] Eu já vi casos

244 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
de alunos, alunas principalmente, que pensam que violência é
contra si mesmo [...]. Fazer sexo, cometer suicídio [...]. Um tipo
de violência que, no caso, é consequência de uma outra violência,
né? Da maneira como ela enxerga a vida, às vezes da falta de...
participação dos pais na vida dessa criança” (E16).

“Quando a gente fala em violência, é mais a violência física, né?


Mas não existe só essa violência [...]. Não consigo visualizar, né?
É mais, assim... a violência verbal, a agressão... Eu acho que a
violência seria a falta de respeito. Quando acaba mesmo o respeito
por uma pessoa [...] já está gerando uma violência.”(SGE17).

“A pressão psicológica [...] é uma das piores violências que existe


e que ninguém diz. Quando a gente trabalha com as questões
sociais... Outro dia a gente estava trabalhando com aquele filme,
o “Carandiru”, (...) a questão psicológica, né? O massacre...
Essas questões têm que ser trabalhadas, porque elas passam em
branco” (CNE15).

Nos depoimentos dessas últimas professoras, fica


evidenciado um certo “mal estar” em caracterizar “o que é
violência”, que fuja aos padrões socialmente instituídos. Nesse
sentido, vários outros questionamentos encontram eco entre os
educadores:

“Agente tem contato com a violência porque, a partir do momento


que a gente trabalha com a escola, a gente trabalha com a
sociedade que está lá fora [...] tanto as pessoas que violentam
quanto os violentados. Eu acho que ser responsável pela violência
é você andar dentro dos padrões que a sociedade exige. E ser
vítima de violência é a partir do momento em que você sofre
qualquer tipo de pressão que foge a essas regras é chamado de
violência” (CNE15).

“É um contato direto mas [...] ao mesmo tempo [...] é um pouco


velado [...]. O aluno que transgride, que viola [...] a gente tem que

9 junqueira&marin editores 9 245


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
partir do pressuposto do que é violar, né? Pra alguns, violar é
de um jeito, pra outros, não. Na nossa frente, esse aluno às vezes
ele tá violando. Pra ele, não. É uma brincadeira, é uma farra,
é um agito. Praticar um ato de violar é... transgredir regras.
Regras das quais, eu fui criada. Por exemplo: nunca fui criada
falando palavrão [...]. Pra eles, aquilo não é uma violência, é algo
extremamente normal. Pra mim, é uma violência” (JVE18).

Na verdade, sob várias formas e modulações, o


fenômeno da violência causa não só desconforto e medo como
perplexidade aos educadores ao manifestar-se tanto no plano
físico, em que a visibilidade é maior, quanto no plano simbólico,
em que se esconde sob várias máscaras. Assassinatos, assaltos,
agressões se juntam a uma violência velada nos lares e nos
mais diferentes ambientes sociais, onde acontecem cenas de
estupro, gritos de socorro, chantagens, intimidações e pressão
psicológica, conforme os depoimentos:

“Às vezes têm pais, que a gente tem contato, que são super
agressivos [...]. Obviamente, essa agressão acontece em casa
também [...]. A criança, se... criada num ambiente desses [...] ela
também vai ser violenta com as palavras e com as atitudes” (SG
E3).

“Se eu for enumerar aqui, são dezenas de fatos violentos... Esses


dias, a gente tava aqui na aula, de repente chega alguém correndo
e fala: ‘Olha, mataram agora mesmo, dois guardas ali em cima,
na outra escola. Tá lá: fulminaram os caras, metralharam [...]
um rapaz novo, daqui da rua’ [...], o Lucio, ele ia lá pra cima [...].
Estudava naquela escola. Arrumou encrenca com os vigilantes,
foi lá e matou os dois. Antes, ele já havia matado um rapaz aqui
[...] da oitava série” (DCE4).

“Por exemplo, fica ali em cima... Daqui a pouco, onze horas, você
costuma ouvir grito de socorro de mulher: ‘socorro... socorro...’
aquela gritaria, cachorro latindo... Então é um tipo de violência

246 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
velada... que a mulher às vezes não vai dar queixa, né?... Às vezes
é marido bêbado, às vezes é estupro, arrombamento de casa
mesmo. Eu morei na rua Trinta e Cinco, então a minha casa foi
roubada oito vezes. Porfim, tive que abandonar a casa” (DC E4).

“O jovem de hoje ele não tem... ele não pensa não, ele age
instintivamente e sabemos disso” (CNE1).

“Em algumas situações, o aluno coloca que não conseguia


dormir porque os pais, usuários de drogas, os privam de um sono
tranquilo. Não tinha condições psicológicas para assistir aula.
Angustiados, chorosos, sem condição de concentração. Eles se
sentem impotentes” (SGE8).

“Mataram o menino, o menino que vendia picolé, mataram e


tiraram o órgão dele. Ele não era aluno aqui da escola, aqui no
bairro. Ele vendia picolé...”(DC E10).

Dentre os fatores externos, que, sem dúvida,


contribuem para aumentar os níveis de violência na escola, os
entrevistados foram unânimes em se referir a “desigualdade
social”, a “precárias condições socioeconômicas da população”,
ao “desemprego”, ao descompromisso do governo, aos níveis
cada vez mais absurdos de pobreza e miséria que assolam
o país, a “desestruturação familiar”, à violência doméstica, à
“permissividade e à falta de limites na educação tanto na família
como na escola”, à disseminação do uso das drogas na sociedade
(incluindo os pais de alunos), à impunidade, à falta de princípios
religiosos, à lei que impede o trabalho infantil, à falta de
condições, de estrutura e de equipamentos de esporte, cultura
e lazer na escola, nos bairros e na cidade, com programações
voltadas às crianças e adolescentes. Nesse contexto, a violência
é entendida como consequência de uma sociedade geradora de
exclusões e rejeições. Independente da forma com que se manifesta,
através de imagens simbólicas e/ou fenômeno sociocultural, é
preciso atentar para sua complexidade no real social.

9 junqueira&marin editores 9 247


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Como unidade complexa auto-eco-organizadora,
a sociedade comporta ordem e desordem, polaridades que, ao
interagirem, garantem a sua (re) organização permanente e a
sobrevivência dos grupos humanos (MORIN, 1980). Nenhuma
sociedade pode ser purgada de toda desordem, sendo uma de
suas manifestações a violência, cuja onipresença vem sendo
testemunhada pela história, através dos tempos.
Analisando a violência do ponto de vista do seu
dinamismo interno, Maffesoli (1978, 1981, 1987) mostra
como ela constitui-se em força e potência, motor principal do
dinamismo social, que remete ao confronto e ao conflito. A
luta é o fundamento de toda relação social e se manifesta em
instabilidade, espontaneidade, multiplicidade, desacordos e
recusas.
Fora, dentro e no entorno da escola, da sociedade e
de nós mesmos, parece mais fácil classificá-la sob a rubrica de um
retorno à barbárie, esquecendo-se de que essa não é senão uma
expressão da violência da natureza humana, conforme Maffesoli
(1998, p. 176): “O humano também é húmus”, diz o autor, e
quem tenta passar por anjo traz à tona o animal. A vida, em sua
polissemia e pluralidade, parece rejeitar uma visão racionalista
das coisas, a qual leva aos limites extremos suas faculdades
organizacionais. Nesse sentido, enxergando com Maffesoli,
é preciso levar em conta que as explosões não-racionais de
que a atualidade é pródiga, podem ser compreendidas como
outros tantos sintomas ou indícios da união ou conciliação de
contrários, isto é, do fato de que cada elemento da vida social
afeta o seu contrário.
Autores como G. Durand (1997) e Lupasco (1941)
já insistiram sobre essa lógica “contraditorial”, isto é, uma
lógica que mantém juntos todos os elementos heterogêneos
da existência. Em suas matrizes imaginárias e socioculturais,
a violência manifesta-se nesse vai-vém, nessa troca incessante
entre o que vem do psicofisiológico (natureza) e o que vem da

248 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
sociedade e da sua história (cultura). Nessa perspectiva, como diz
Fétizon (2002), o agir do homem é sempre marcado por vetores
opostos: como ser natural está inserido na harmonia universal,
obedecendo à ordem determinada de coisas, buscando, por meio
do modo místico, diluir-se na natureza de forma dionísica, mas,
como ser cultural viola a natureza para poder se diferenciar,
pois é essa separação apolínea, marcada pelo heróico, que traz
a possibilidade da autoconsciência. A busca do equilíbrio entre
eles, presente na estrutura sintética, será sempre o seu desafio.
Marcado irremediavelmente por essas dimensões conflitantes, o
homem transmite aos agrupamentos e à sociedade o seu destino
trágico: a busca da conciliação do contraditório no humano.
Da mesma forma que os entrevistados confirmam
as manifestações da violência na escola, consideram também
que, às vezes, o aluno está mais protegido dentro dela do que
lá fora ou, como afirma um dos professores entrevistados: “―...
A impressão é que o aluno prefere ficar aqui do que ir para casa”
(DCE11).
No interior da escola, uma ética de grupo parece
cimentar as relações grupais à medida que criam vínculos de
solidariedade e de contato (MAFFESOLI, 1998). Desafiando as
normas instituídas, rompem com a lógica do dever-ser, e uma
“lógica outra” parece agregá-los, conforme os depoimentos a
seguir:

“Falam à hora que eles querem. Eles gritam na hora que eles
querem, levantam à hora que eles querem, esmurram, né? Fazem
o que eles querem. As convenções são outras, né? Eu não sei qual
é” (JVE18).

“Muitos são adolescentes que não têm nem profissão. Não têm
de onde tirar esses recursos. Então, além de roubar, às vezes
da própria casa, ainda acabam cometendo pequenos furtos pra
tá adquirindo as drogas. Já trabalhei em bairros periféricos
assim, aonde a questão do roubo é uma alternativa aceita, é

9 junqueira&marin editores 9 249


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
uma alternativa, vamos dizer assim... Que não é imoral, que é
válida. Pra gente, a questão do roubo é... é absurdo, é uma coisa
extrema. Pra eles, não. Pra eles, muitas vezes é uma alternativa
válida. Quer dizer, se puder ser de uma maneira legal, tudo
bem, mas se não puder ser, essa alternativa também é possível
[...]. Se eles entram pra vida da bandidagem [...] eles conseguem
um pouco mais de dignidade, um pouco mais de respeito entre
eles [...]. Se eles ficarem mendigando assim, ficarem explorando
e não conseguirem nada e ter que catar latinha [...], é mais
humilhante do que [...] participarem de um grupo de traficantes
ou participarem de assalto, coisas que vão ser mais respeitadas
entre eles” (SGE16).

Tais atitudes subversivas expressam, segundo


Maffesoli (1985), um “imoralismo ético” das massas, que
permite a partilha do sentimento, o querer-viver social, o
“estar-junto”, o aqui e agora, o presenteísmo, que se contrapõe
à moral do “dever-ser”, imposta pela sociedade, numa visão
prospectiva. Aponta o autor, para a noção de socialidade como
um “estar-junto” fundamental ao lado dos elementos mecânicos
e racionais, que estão na base do contrato social, integrando
todos os aspectos passionais, não racionais, senão francamente
ilógicos, que estão, também, em ação na natureza humana.
Nessa perspectiva, é preciso reconhecer em cada
ação violenta a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz
entremeadas assim como o corpo e o espírito se interpenetram
numa organicidade profunda (MAFFESOLI, 1998).

O imaginário da inclusão e da exclusão


No momento em que se assiste a explosão da
violência na escola e seu entorno, dando a impressão de que tudo
parece estar “fora do controle”, torna-se necessário um estudo
sobre como a escola trabalha com a diversidade sociocultural
de seus alunos, mais precisamente com aqueles considerados
“violentos”.

250 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
Criada para realizar o projeto de modernidade,
a escola cumpre uma função de preservação, criação e
divulgação de um saber universal, único e verdadeiro. Sob o
viés da racionalidade e eficiência e à semelhança da sociedade
que a criou, a escola constrói uma identidade racional a qual
contrapõe, como alteridade, o que considera como “resíduos
irracionais”, ou seja, tudo que não pode ser explicado sob a
lógica da razão. Segundo Roger Dadoun (s/d), para se construir
um “ser da razão”, a sociedade ocidental desprende de si mesma
partes irracionais, com as quais compõe imagens de alteridade
e, no mesmo movimento, cria a sua imagem de identidade,
essencialidade e normalidade. Nesse movimento, a sociedade
exige “uma forma de identidade que ela mesma determina,
identidade social montada de diversas peças: origem, ofício,
aparência, cidadania, cultura, raízes, etc, e na qual se imprime,
nunca de forma sucinta, a alteridade pesada na coletividade”
(DADOUN, 1998, p. 68). Seu desafio é transformar a alteridade
em identidade. Daí o “furor pedagógico” com o qual se lança na
educação de suas crianças e jovens, exercendo um “totalitarismo
pedagógico”.
Para Dadoun (s/d), o Ocidente desenvolve, ao
mesmo tempo, a pedagogia como totalitarismo e o totalitarismo
como pedagogia. De um lado, disciplina escolar, repressão e
canalização e de outro, o catecismo, a reeducação e a redução de
todo pensamento ao mesmo campo de estereótipos. Respaldada
por sua função homogeneizadora, a escola assume uma
educação de caráter instrumental, objetivando neutralizar os
conflitos sociais, pregar o consenso, ou seja, eliminar a diferença.
Dessa forma, o processo de socialização visa prioritariamente à
anulação da diferença e o condicionamento do aluno às normas.
É esse totalitarismo que gera o etnocentrismo pedagógico como
disfarce para a discriminação e preconceito. Consequentemente,
na escola, aqueles que, em razão de suas condições psico-socio
culturais, não se enquadram nos padrões e normas vigentes, são
estigmatizados e excluídos.

9 junqueira&marin editores 9 251


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Face ao etnocentrismo pedagógico, de modo geral,
a escola adota duas atitudes. Uma, antropofágica, para absorver
os indivíduos que ameaçam o grupo e neutralizar sua ação, e
outra, antropoêmica, para expulsar para fora do convívio escolar,
temporária ou definitivamente, os indivíduostemidos. Essasduas
formas de lidar com o “diferente” foram encontradas na prática
pedagógica de 75% dos dirigentes e professores entrevistados
nesta pesquisa, revelando uma certa homogeneidade nas
representações. De um lado, há tentativas de integrá-los, incluí
los, persuadindo-os à prática de solidariedade, por meio de
admoestações, palestras e orações, o que pode se configurar
numa antropofagia dialógica, ancorada num imaginário da
inclusão. De outro, há tentativas de separar, de isolar a diferença,
o que pode ser considerado como antropoemia da tolerância,
matriciada por um imaginário da exclusão.
No primeiro grupo, embora a intenção dos
educadores possa ser considerada positiva, as atitudes não
deixam de ser etnocêntricas, pois não oferecem condições para
o diálogo com a diferença. Ou se adota o discurso persuasivo,
de buscar o envolvimento do aluno com a “ordem” estabelecida,
reprimindo-a, ou se procura eufemizar a violência, negando-a.
Vários são os depoimentos em que se destacam as atitudes aqui
referidas. Por exemplo, no fato relatado sobre o envolvimento
de alunos da escola com um outro grupo de adolescentes de
fora dela, são feitas alusões à condição econômica e social, ou
seja, a dos “os herdeiros” ― os da escola particular ― e à dos
“renegados” ― os de um bairro periférico:

“Agente fez aquilo que eu falei há pouco: parceria escola e família.


Descobrimos, através de alguns que estavam ali, fomos chamando,
fomos, assim, conversando amigavelmente, até descobrimos
todos os que pertenciam a este grupo. Fizemos uma reunião
(HERDEIROS E RENEGADOS?) Não! Só com os herdeiros, com
os nossos meninos, aqui. E aí, fizemos uma reunião com os pais.
Foi uma reunião, assim, muito interessante, porque nós achamos

252 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
inicialmente que os pais poderiam não gostar. Geralmente o pai,
até por uma forma de proteção [...] sempre negam, não é assim
vocês não entenderam... Mas eles aceitaram, de uma forma muito
serena e as atitudes que eles tomaram, não houve necessidade
da escola interferir, da escola insistir. (ELES QUE RESOLVERAM
O PROBLEMA?) Eles resolveram o problema. Eles estipularam
os castigos [...]. Eles pousavam, um na casa do outro, dois, três...
Nessa reunião, eles estavam na Internet respondendo essa forma
de agressão de um grupo pro outro e, aí, os pais se combinaram
de ninguém deixar mais. Nenhum pai permitiria que eles
pousassem um na casa do outro. Dois meses eles não iriam mais
para o shopping. Sessenta dias eles não poderiam mais passear
no shopping. Insistiram pra escola, pro diretor, no momento de
informação, levá-los às palestras fora da escola. Nós organizamos
um grupo, eles ficaram em Chapada dos Guimarães, sábado o
dia todo, domingo, e foi assim. Inicialmente o diretor teve muito
trabalho porque [...] eles são um pouco rebeldes [...], foi feito
um momento forte de oração, de reflexão, de palestra mesmo, e
eles voltaram de lá que eu não escutei mais falar de renegados
e foi uma tranquilidade na escola. O outro grupo não veio mais
procurar, porque quando um não quer, dois não brigam, quer
dizer, os daqui não provocaram, e os de lá também não...” (SG E3).

O encaminhamento ao Serviço de Pastoral é uma


prática constante na proposta pedagógica da escola em questão,
que alicerça suas ações no discurso persuasivo:

“No caso da Pastoral, tem outro trabalho. Essa criança participa


de jornadas... A pastoral é um setor nosso, que a nossa escola é
pedagógica e a pastoral seria, no caso, a diversão, né? O diretor
que tem essa responsabilidade, o que acompanha através de
jornadas os alunos vão pra um lugar. Lá eles têm palestras com
pessoas formadas (...) pra dar esclarecimentos a essas crianças, e
os pais ficam sabendo. E a atitude da criança também muda em
sala, em casa, quando ela participa de uma jornada dessa. Por
que? Porque se mexe com o espiritual dela, então quando chega
em casa, ela tem uma outra postura, isso chama a atenção dos
pais, muda um pouco os hábitos dela” (SGE8).

9 junqueira&marin editores 9 253


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
A atitude de absorver o “outro” para neutralizá-lo
tem suas bases numa antropofagia dialógica, próprio ao regime
noturno de imagens: assimilar, ingerir, absorver e envolver. E os
depoimentos se sucedem nessa direção:

“O aluno, ele tá todo dia na escola, né? Eu digo que ele é excelente,
pra mim poder não me comprometer. Essa é aquela forma mais
simples de lidar com a violência. Porque eu passo a mão na
cabeça dele dizendo que ele é ótimo? Essa é uma forma, porque
eu prefiro dizer que ele está excelente, pra eu não ter que falar
com o pai, com a mãe...” (DFE7).

“Uma estratégia que eu uso é a questão da oração, que eu oro


dentro da minha sala... O que eu fiz? Falei com todos os meus
alunos, colocou a mãozinha e vamos orar pro papai do céu.
Nós começamos a orar, orar, orar, comecei a orar com eles e
eles ficaram assim... abismados. Ele rodeou a mesa, sentou na
cadeira... colocou a mãozinha na cabeça e chorou, até a hora que
a mãe dele chegou” (DFE12).

No segundo grupo, as atitudes caracterizam uma


outra forma de etnocentrismo pedagógico. Por não se dar ao
trabalho de enfrentar as diferenças, isola o aluno, acentuando
ainda mais a diferença, num sentido negativo. Ou então, tenta
afastá-lo, encaminhando-o a outras instâncias. Tratam de
atitudes antropoêmicas, próprias, a um imaginário da exclusão:

“Não tenho contato com pessoas responsáveis ou vítimas de


violência. Conhecer, eu conheço, só que, assim... eu não tenho,
assim, um contato...” (DCE9).

“Muitos profissionais de educação observam... algumas coisas


estranhas e não encaminham por medo de se comprometer, com
medo de se envolver... É melhor ficar longe...”(SGE16).

Além de uma aparente indiferença que caracteriza a


antropoemia da tolerância, é sempre mais conveniente enxergar

254 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
no “outro” ― no de “fora” ― a ameaça à escola. É o que acontece
na maioria das escolas do centro, que atribuem aos alunos que
chegam dos “bairros periféricos” as situações geradoras de
violência:

“A escola sempre tem uma questão de [...] ser vítima. [...] É uma
escola central, na qual recebe todos os bairros, né? Da Capital.
Então, a gente tem essa condição de uma gangue, de repente,
querer interferir, na outra, na escola, mostrar quem é o bom,
quem que é o ruim...” (CN E2).

“99% de alunos... não nos dão problema. Só 1% de alunos que


nos dão problemas. Por exemplo, essa escola é central [...]. Os
alunos que estão aqui, na sua grande maioria, estão fugindo da
violência dos seus bairros. [...] nós temos muitos alunos do Pedra
90, do Pascoal Ramos, Tijucal, do Osmar Cabral, Santa Laura [...]
da Coophamil, Cidade Alta, Novo Terceiro [...]. Com o passe livre,
os pais tiraram essas crianças das escolas violentas do bairro e
trouxeram pra cá. Mas têm também aqueles alunos que foram
expulsos, né? Que foram convidados a se retirar por violência dos
bairros e acabaram vindo parar aqui também. E aqui eles causam
problemas. Não tanto o que eles causam no bairro porque, aqui
eles ficam meio fora do seu mundo, né? Ele é meio sozinho pra
fazer a sua bagunça aqui. Mas ele ainda é um aluno violento...”
(CNE14).

“Na sala de aula tem, assim... um tem diferença do outro. Então


acho que isso acaba gerando violência. Ontem mesmo aconteceu.
Tem um aluno que os pais são separados. Então, ele é mesmo,
assim, estourado...” (SGE17).

“Constantemente encaminhamos ofícios até mesmo à Secretaria


de Educação solicitando agilidade na questão de... recursos para
levantar o muro de uma parte da escola, que é baixo... É uma
escola centralizada [...] tem um fluxo de pessoas circulando nas
proximidades muito grande, até porque ela está a 300 metros da
Praça Bispo, e porque nós temos elementos de bairros próximos.

9 junqueira&marin editores 9 255


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Não podemos fazer uma discriminação total, mas nós temos
jovens tanto do bairro Poção quanto do bairro Areão, [...] Lixeira
[...] Dom Aquino, que vêm adentrar a escola e que não são bem
vistos. São elementos que nos leva a ter insegurança” (CNE1).

Para Dadoun (1998, p. 63), a violência é sempre


uma resposta a outra violência ― é assim que normalmente as
coisas são percebidas. A vida cotidiana desenvolve-se sob uma
metralhadora que espalha grande quantidade de pequenas
alteridades violentas numa nuvem sombria em torno de um
“eu” que se sente totalmente atacado, vitimado. É a partir do
outro que ameaças, agressões, hostilidades e duros golpes nos
atingem, fundamentando-se em nós. O controle, a vigilância, e a
expulsão do “outro” sempre se caracterizam como atitudes que
só reforçam a violência, acentuando sua força e potência, dado
que, uma vez reprimida, traz como inevitável sua explosão:

“Outra coisa: nós temos, no pátio também, essa presença. Os


educadores de apoio, os educadores de pátio, são mais de 20
pessoas que ficam presentes permanentemente com eles no pátio,
e nos banheiros. Nenhum banheiro nosso você vai encontrar um
banheiro nosso só. Sempre tem um funcionário no banheiro. Se
você se encontrar nas varandas, no pátio, na entrada, na saída,
sempre tem uma pessoa ali de braços, de mão pra trás, ali
caminhando junto com eles conversando, orientando. É o sistema
preventivo. É prevenir, é estar junto. A presença inibe muito a
violência” (SGE3).

“Na minha opinião, deveria se fazer uma campanha em massa


da sociedade [...]. Todas as instituições governamentais [...],
organizações não governamentais... na questão da violência.
Isso é uma questão social [...] todos têm que estar engajados e
que as leis sejam mais rigorosas. Muita gente me critica porque
eu sou umas das pessoas que, hoje, repensando a questão da
violência, sou a favor de retornarmos ao militarismo. Pelo
menos nós tínhamos ordem e respeito. [...] Constantemente,

256 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
pelo uma vez por mês, enquanto Direção, encaminhamos ofício
solicitando segurança, policiamento, tanto ao Comando Central
da Capital (CPC), em nome do Coronel Campos Filho, quanto pelo
1º batalhão da Polícia Militar do Porto, o setor responsável pela
nossa região” (CNE1).

Essas medidas parecem mostrar a existência, nas


escolas, de um etnocentrismo pedagógico, estabelecendo uma
gestão que, embora não pareça, é autoritária e impositiva, com o
fim de nivelaras diferenças individuais e grupais. Nesse processo
de nivelamento e homogeneização, os grupos e indivíduos que
não partilham dos padrões de comportamento considerados
“normais” são reduzidos às suas especificidades e diferenças,
tornando-se, então, mais diferentes do que realmente são.
No entanto, alguns sinais de enfrentamento e negociação da
violência, na escola, já se descortinam no horizonte de 25% dos
entrevistados:

“Precisamos de um ônibus para levar os alunos ao SESC Arsenal


para visitar, para assistir a uma exposição de arte, um evento
cultural. É preciso que eles tenham acesso a isso”(JVE18).

“O pouco que tenho buscado é através de música... trabalhos


artesanais que eles gostam muito, e brincadeiras mesmo, né? Com
eles, desenho, manifestações artística” (DCE9).

“Nós temos projetos como a capoeira, o caratê... Então, a gente


procura várias atividades”(DFE7).

Não deixam de se configurar como atitudes pró


ativas, alternativas que podemdesenvolver e fortalecer o cimento
grupal que une os diferentes grupos na escola. São formas outras
que se podem juntar às demais para explorar potencialidades
em favor de uma ordem/desordem. São pequenas ações
que, talvez, contribuam para o favorecimento de uma “ética”

9 junqueira&marin editores 9 257


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
grupal (MAFFESOLI, 1985), ou seja, para o reconhecimento da
instituição em sua cultura e imaginário.

Considerações finais

Ao identificar as matrizes imaginárias das práticas e


representações sobre a violência, a pesquisa mostra que, em sua
maioria, os professores e dirigentes pesquisados partilham tanto
um imaginário heróico como um imaginário místico, presentes
nos regimes diurno e noturno de imagens (DURAND, 1997).
O regime diurno põe em ação imagens e temas de
corte, separação, distinção, e o segundo, imagens assimiladoras
e confusionais de absorção e negação. Ao regime diurno
corresponde um imaginário da exclusão, do qual se originam
práticas e atitudes antropoêmicas de segregação dos grupos
sociais considerados violentos; enquanto que ao regime
noturno corresponde um imaginário da inclusão, cuja atitude
antropofágica de absorver e diluir a diferença num todo
indiferenciado, só a acentua.
A partir da teoria geral do imaginário aqui utilizada
e considerando que toda nossa relação com o mundo e com
outro é mediada pelo imaginário, podemos sugerir que a
aceitação da diferença requer a harmonização de contrários, ou
seja, sua aceitação e não apenas sua assimilação ou redução. Em
outras palavras, a aceitação do “outro” decorre de um processo
de elaboração e não de projeção e confrontação. Como bem
lembra Paula Carvalho (1997, p.183), “jamais os indivíduos
e as organizações educativas conseguirão atingir suas metas
racionalmente propostas em suas culturas patentes, se não
levarem em consideração o latente, que é o Outro que está
dentro delas mesmas”.
Segundo Maffesoli (1998), o bárbaro está dentro
de nós mesmos e, sendo assim, é melhor compreendê-lo no
dinamismo de que é portador. É preciso buscar um saber capaz

258 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO X
de integrar o caos ou que, pelo menos, conceda a este o lugar que
lhe é próprio. Que seja um saber que, por mais paradoxal que seja,
possa estabelecer a topografia da incerteza e do imprevisível, da
desordem e da efervescência, do trágico e do não-racional. São
coisas incontroláveis, às vezes, mas não menos humanas.
Nesse movimento entre ordem e desordem,
identidade e alteridade, é possível construir novas relações
pedagógicas, capazes de preencher, segundo Fétizon (2002),
“constante e indefinidamente, o abismo que separa o eu do
outro”. Só com essa ponte pode ser pensada uma educação do
homem em sua inteireza. 3

Referências

BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1997.

DADOUN, Roger. Mais quels Occidents? Quels autres? Coloquio de Roma: En


marge: l´Occident et ses “autres”, p. 11-21, s/d.

DADOUN, Roger. A violência: ensaio acerca do homo violens. Rio de Janeiro:


DIFEL, 1998.

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo:


Martins Fontes, 1997.

FÉTIZON, Beatriz Alexandrina. Sombra e luz, o tempo habitado. São Paulo:


Zouk, 2002.

FIGUEIREDO, Luis Cláudio. A adolescência e a violência: considerações sobre


o caso brasileiro. Comunicação apresentada no II Encontro “Adolescência e
violência: conseqüências da realidade brasileira”. São Paulo: 1996 (dig.).

LUPASCO, S. L’experiéncie microphisique et la péense humaine. Paris, Presses


Universitaires de France, 1941.

9 junqueira&marin editores 9 259


CAPÍTULO X PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
MAFFESOLI, Michel. Lógica da dominação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária, ensaio de antropologia política. Rio


de Janeiro: Zahar, 1981.

MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da


orgia. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

MAFFESOLI, Michel. A dinâmica da violência. São Paulo: Ed. Revista dos


Tribunais, 1987.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.

MORIN, Edgard. La méthode 2. La vie de la vie. Paris: Seuil, 1980.


PAULA CARVALHO, José Carlos. A Culturanálise de Grupos: posições teóricas e
heurísticas em educação e ação cultural. São Paulo: FEUSP, Ensaio de Titulação,
1991.

PAULA CARVALHO, José Carlos. Etnocentrismo, inconsciente, imaginário e


preconceito no universo das organizações educativas. Revista Interface –
Comunicação, Saúde e Educação, v. 1, n. 1, p. 181-185, 1997.

TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. O imaginário da superdotação: um estudo


das representações de professores da escola fundamental e média. Relatório
de Pesquisa. São Paulo: UNIP, 2000.

TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez e PORTO, Maria do Rosário S. Imaginário do


medo e cultura da violência na escola. Niterói: Intertexto, 2004.

260 9 junqueira&marin editores 9


U PARTE
ESCOLAS III V
E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS

i CAPÍTULO XI j
FAZERES NA PRÉ-ESCOLA: UMA PRÁTICA
CONSISTENTE?

Maria Izete de Oliveira


Rinalda Bezerra Carlos

Introdução

Pesquisas
e os movimentos populares em
da infânciaque
para
prol
comprovam
o desenvolvimento
da Educaçãoa importância
humano
Infantil têm
propiciado mudanças na educação oferecida às crianças de 0 a
6⁴⁶ anos de idade. Graças a esses dois fatores, a Educação Infantil
tem passado por um processo histórico marcado por grandes
avanços, tanto no que se refere à política para Educação Infantil
quanto à prática pedagógica corrente nessas instituições.
Podemos perceber um sinal desse avanço no texto
da Política Nacional de Educação Infantil. Dentre as metas
expressas nesse documento, ressaltamos dois aspectos em
especial: fortalecer a concepção de Educação Infantil nas
instâncias competentes e promover a melhoria da qualidade
do atendimento em creches e pré-escolas (BRASIL, 2005, grifos
nossos).

9 junqueira&marin editores 9 261


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Em relação à primeira meta, entendemos que,
quando falamos em “fortalecera concepção de Educação Infantil”,
falamos no avanço ocorrido, ao longo dos tempos, sobre o modo
como os adultos veem a infância. A concepção de criança, que
vigorava antigamente, como sendo um adulto em miniatura,
desprovido de criatividade, de opinião própria, de raciocínio
lógico, etc. tem dado lugar, atualmente, a outro modo de ver a
criança. A Resolução n. 276, do Conselho Estadual de Educação
de Mato Grosso, ressalta que: “a proposta pedagógica deve estar
fundamentada numa concepção de criança como cidadã, como
pessoa em processo de desenvolvimento, como sujeito ativo da
construção do conhecimento, como sujeito social e histórico
[...]” (MATO GROSSO, 2000, art. 6º).
Esse avanço na concepção de infância nos remete,
consequentemente, a uma nova concepção de Educação Infantil.
Essas instituições, atualmente, não são (ou não poderiam ser)
entendidas apenas como um local onde as mães deixam seus
filhos para irem trabalhar enquanto as “tias” cuidam deles. De
acordo com a Resolução n.1 da Câmara de Educação Básica:

As Instituições de Educação Infantil devem promover, em suas


propostas pedagógicas, práticas de educação e cuidados que
possibilitem a integração entre os aspectos físicos, emocionais,
afetivos, cognitivo/lingüísticos e sociais da criança, entendendo
que ela é um ser completo, total e indivisível (BRASIL,1999,art.3º).

É, então, papel das instituições de Educação Infantil


e do educador se preocupar com o desenvolvimento global
da criança havendo, portanto, a necessidade de uma perfeita
integração entre o cuidar e o educar.
Sendo assim, ao nos referirmos à segunda
meta mencionada anteriormente “melhoria da qualidade
de atendimento”, entendemos estar implícita a melhoria da
prática pedagógica nas instituições de Educação Infantil; e, por
conseguinte, a necessidade de se pensar sobre a forma como os

262 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
profissionais dessas instituições lidam com as crianças de zero
a cinco anos de idade.
Neste sentido, Oliveira (2004, p. 181) ressalta
“a importância do papel do profissional consciente das
finalidades da Educação Infantil, um profissional que reflita
sobre como garantir a qualidade desse nível de ensino”. Uma
escola de qualidade precisa, então, contar com profissionais
preparados para lidar com as questões relativas à aprendizagem
e ao desenvolvimento infantil. A autora afirma que “o mais
interessante é que o educador nem sempre se dá conta do quão
importante é o seu papel, a sua atuação para a vida dos alunos e,
não tendo essa clareza, desempenha sua função, ano após ano,
de forma alienada e acrítica” (p.180).
O exposto demonstra quão importante é refletir
sobre a atuação do educador infantil com vistas a trazer novas
contribuições para a área. Ressaltamos que, durante participação
em eventos científicos nacionais e internacionais, percebemos
que grande parte dos trabalhos sobre a Educação Infantil tem
como foco a criança, seja em relação ao comportamento, à
interação, ao aprendizado, ao desenvolvimento, dentre outros.
Esses trabalhos, sem dúvida, trazem grandes contribuições a
respeito dos temas abordados, entretanto, são poucos os estudos
acerca da atuação do educador infantil.
Assim, é importante que se desenvolvam pesquisas
sobre a prática pedagógica desses educadores de forma a
fomentar reflexões com vistas a promover uma atuação de
qualidade, contando com profissionais competentes que
atendam as especificidades das crianças dessa faixa etária.
Nesse sentido, o Grupo de Estudos em Educação Infantil⁴⁷ da
UNEMAT vem desenvolvendo pesquisas na área da formação
e atuação dos professores dessa etapa da Educação Básica
buscando contribuir para a reflexão em torno da área. Portanto,
neste texto, apresentamos um estudo⁴⁸ realizado entre os anos
de 2008 e 2009, sobre a prática de professoras que atuam na
pré-escola.

9 junqueira&marin editores 9 263


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Dentre as temáticas propostas pelo Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil - RCNEI (BRASIL,
2001) - para se trabalhar com crianças dessa faixa etária,
destacamos dois aspectos que consideramos importantes para
o desenvolvimento da criança: o movimento e a linguagem oral
e escrita. A escolha dessas temáticas para a pesquisa se deu
em função de acreditarmos que o movimento e a apropriação
da linguagem são características próprias das crianças na faixa
etária da Educação Infantil.
No que se refere ao movimento, é fato que, por meio
de brincadeiras livres ou dirigidas, jogos e outras atividades que
exigem movimentos, a criança exerce sua capacidade de criar,
de imaginar, de expressar seus sentimentos, de interagir, de
apropriar da cultura de seu grupo social, etc. Ao brincar, a criança
apropria-se de elementos da realidade e lhes atribui novos
significados,assimobrincartransforma-se em umaoportunidade
singular de constituição infantil. No ato de brincar, as crianças
desenvolvem diversas habilidades, como o movimento, a
socialização, a compreensão de mundo, o desenvolvimento da
linguagem, de hábitos e atitudes, dentre outros. Como ressalta
Vygotsky (1994, p. 136), ao falar da brincadeira de “faz de conta”,
“sob o ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma
situação imaginária pode ser considerada como um meio para
desenvolver o pensamento abstrato”.
Em relação à linguagem oral e escrita, sabemos que
desde o nascimento a criança convive com essas linguagens,
primeiro com a oral (por meio de conversas dos adultos com o
bebê) e, posteriormente, com a escrita (quando a criança passa
a visualizar mensagens nos diversos meios de comunicação). É
nessa etapa da vida que a criança assimila os elementos culturais
da sociedade em que vive, dentre eles, alinguagem, para interagir
como ser cognoscente. Entretanto, o aperfeiçoamento dessas
linguagens só ocorrerá por meio do contato social da criança
com seus pares principalmente por intermédio dos adultos,
mais especificamente, pais e professores. Por isso, defendemos

264 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
que é papel do educador infantil aprimorar a linguagem oral da
criança para que ela amplie o seu vocabulário e aprenda a se
comunicar formalmente e, ao mesmo tempo, introduza a criança
no mundo da escrita.
Logo, é essencial propiciar, nessas instituições, um
ambiente letrado onde as crianças possam ter contato com os
mais diversos gêneros discursivos, incentivando-as a interagir
com os diferentes tipos de textos que circulam na sociedade
levando-as a compreender a função social de cada um deles.
Para Condemarín, Galdames e Medina (1997), uma sala letrada
traz importantes benefícios nos primeiros anos de escolaridade.
Os autores afirmam que

O bom uso da sala letrada abre espaços de comunicação entre


as crianças, dentro dos quais podem estar presentes o afeto,
o humor e a curiosidade. Isso constitui uma oportunidade
de desenvolvimento das competências relacionadas com a
linguagem oral e escrita, como também com a auto-estima, as
habilidades sociais, o pensamento e a criatividade (p.56).

Um fator importante a ser considerado na prática


da professora de Educação Infantil é a forma como ela propõe
as atividades para as crianças; a professora deve ter claro o
objetivo, a finalidade de cada atividade, ou seja, saber para que
está propondo a ação. Nesse sentido, Arce e Martins (2007)
afirmam que a instituição de Educação Infantil não pode furtar
se ao trabalho intencional que leva ao desenvolvimento da
criança. Para as autoras, a professora deve planejar antes de
entrar em sala e saber que o desenvolvimento de suas crianças
será marcado pelo seu trabalho intencional.
Assim, no estudo ora apresentado, nossa intenção
foi verificar como (ou se) as professoras observadas trabalham
as temáticas movimento e linguagem oral e escrita, e se há
intencionalidade em proporcionar o desenvolvimento das
crianças em relação a essas áreas do conhecimento.

9 junqueira&marin editores 9 265


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
O estudo

Por desenvolvermos uma pesquisa qualitativa,


definimos nosso campo de observação segundo o critério
de amostragem em que “a pesquisa é efetuada dentro de
um pequeno número de unidades (pessoas ou outras) que é
estatisticamente representativo do conjunto da população”
(THIOLLENT, 1985, p. 61). Portanto, para atender a esse quesito,
dentre as 20 instituições que atendem a pré-escola na cidade de
Cáceres, selecionamos duas que contam com maior número de
professoras que atuam nessa etapa da educação.
De acordo com os dados da Secretaria de Educação,
em 2008 o Município atendeu 1.595 crianças de 4 a 5 anos,
distribuídas em 20 escolas localizadas na zona urbana. Assim, as
duas escolas selecionadas comportam um total de 477 crianças
representando, aproximadamente, um terço das atendidas
pelo Município. Essas unidades estão situadas em um bairro
periférico de baixo poder aquisitivo.
A pesquisa compreende a observação da prática
pedagógica de 05 professoras que atuam com crianças de 5 anos,
em duas escolas diferentes, as quais denominamos de E1 e E2
(Escola 1 e Escola 2). As observações ocorreram duas vezes por
semana, uma vez em cada escola, no período da manhã, durante
o segundo semestre de 2008 e o primeiro de 2009, totalizando
72 dias de observação. Foi utilizado um roteiro de observação
e um diário de campo para registrar os pontos que julgamos
positivos e negativos da prática pedagógica das professoras, de
acordo com a literatura da área, conforme será esclarecido no
decorrer deste artigo.
Como mencionado anteriormente, as observações
foram direcionadas para duas temáticas específicas: o
movimento que envolve a música, os jogos e as brincadeiras; e
o desenvolvimento da linguagem oral e escrita no que tange à
apropriação da forma culta da língua e a construção de leitores.

266 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
No que se refere ao tema movimento, as observações
ocorreram em uma turma da E1 e outra da E2, ou seja, duas
professoras que foram denominadas de PA (da E1) e PB (da E2).
As observações em relação à temática linguagem oral e escrita,
também ocorreram com duas turmas, uma de cada escola. As
professoras também foram denominadas de PA (da E1) e PB
(da E2). Porém, por motivo de saída da PB da E2 no primeiro
semestre de 2009, observamos a prática da nova professora que
denominamos de PC (da E2).
Antes de apresentarmos os resultados da pesquisa, é
interessante relatar como ocorreu a receptividade por parte das
educadoras das referidas escolas, já que esse foi um momento
inicial importante para nossa pesquisa.

A receptividade

Em uma primeira visita às escolas, reunimo-nos


com a equipe pedagógica a fim de apresentar nossa pesquisa,
conhecer expectativas e sugestões das professoras; levantar
dados que pudessem nos orientar no prosseguimento do
trabalho; constatar possíveis dificuldades e problemas que,
porventura, viéssemos a enfrentar. Explicamos que poderíamos
contribuir com as escolas de diversas formas: com a colaboração
das bolsistas em sala de aula, com discussões sobre a prática
na Educação Infantil, realização de palestras, oficinas e demais
necessidades pedagógicas das escolas.
Após nossa exposição, houve ótima acolhida por
partedascoordenadoraspedagógicasedasdiretorasexplicitando
que essa colaboração seria de grande valia para as escolas,
porque poderia contribuir com a prática das professoras e com a
instituição de modo geral. Entretanto, em ambas as instituições,
enquanto algumas professoras se mostraram receptivas à
nossa presença, outras apresentaram resistência mostrando-se
receosas pelo fato de serem observadas. Entendemos que essa é

9 junqueira&marin editores 9 267


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
uma reação normal, pois a prática das professoras seria avaliada
por pessoas, até o momento, estranhas ao ambiente.
Diante desse impasse, propusemos que as equipes
de cada escola se reunissem em outro momento para decidirem
com mais liberdade e tranquilidade se aceitariam fazer parte da
pesquisa. Também deixamos claro que, caso não se sentissem
à vontade com este trabalho, poderíamos realizar o estudo em
outras escolas municipais.
Posteriormente, em reunião com as coordenadoras
em cada unidade, elas expressaram que seríamos bem-vindas.
Explicaram que as resistências se davam pelo fato de algumas
professoras serem novatas na profissão e outras por serem
resistentes a mudanças, e que a pesquisa seria interessante
para motivar as professoras a mudarem seus comportamentos
na escola. Assim, iniciamos nossas visitas para observar e
contribuir com a prática das professoras, porém, para nossa
surpresa, vivenciamos atitudes inesperadas de algumas delas.
Exemplo disso ocorreu em uma das salas
observadas, a professora chamou as crianças para se sentarem
em círculo no chão para contar história, e a pesquisadora
também se posicionou de forma a participar da roda. Qual foi
nossa surpresa quando a professora se sentou dando as costas
para a pesquisadora de forma a excluí-la do círculo.
Outra mostra de resistência foi quando uma
professora falou para outra pesquisadora: “Para assistir às
minhas aulas você deve entrar as 07h00min horas junto comigo,
sair às 11h00min e vir todos os dias”. Como esta professora
já estava ciente da proposta da pesquisa (que não seria todos
os dias nem todo o tempo de aula), ficou evidente que ela não
queria a presença da pesquisadora em sua sala.
Em outra situação, uma criança apresentou
dificuldade na realização de uma atividade escrita, e a professora
estava ocupada atendendo outras crianças não podendo dar
atenção a ela. Apesquisadora, percebendo a situação, aproximou

268 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
se daquela criança para ajudá-la, então, a professora interveio
chamando a criança até sua mesa dizendo que iria orientá-la
impedindo, assim, que a pesquisadora participasse de sua aula.
Essas situações constrangedoras nos levaram a
questionar a razão das professoras para tomarem essas atitudes;
será que é apenas pelo receio de serem observadas? Será que não
querem compartilhar suas experiências? Têm medo de se expor?
Não acreditam no seu trabalho? Por outro lado, as crianças se
mostraram atenciosas e muito carinhosas com a nossa presença,
o que nos leva a outro questionamento: será que as professoras
têm receio de que as crianças se apeguem mais à pesquisadora
do que a elas?
Diante disso, tentando evitar outras situações
constrangedoras, decidimos parar a observação nessas salas
e passamos a realizar a pesquisa nas salas das professoras
que se mostraram mais abertas e receptivas. Assim, nosso
estudo pode prosseguir conforme planejado e com harmonia e
compartilhamento entre as professoras e nossa equipe.

Resultados: ocorrência de atividades


relacionadas ao movimento e à linguagem oral
e escrita e na prática das professoras

Antes de iniciar as discussões sobre a ocorrência das


atividades, é preciso esclarecer que entendemos que alinguagem
oral e escrita e o movimento, assim como outras habilidades não
são indissociáveis e que as características do desenvolvimento
infantil não ocorrem isoladamente, mas estão imbricadas em
cada ação das crianças. Entretanto, para efeito didático e melhor
compreensão do leitor, relatamos a ocorrência dessas duas
temáticas na prática das professoras de forma separada.

1. Em relação ao movimento

A PA da E1, geralmente, propõe trabalhos em que


as crianças fiquem quietas, evitando atividades ao ar livre

9 junqueira&marin editores 9 269


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
que, segundo ela, deixam as crianças agitadas. Na prática
dessa professora, as brincadeiras que envolvem movimentos
corporais ocorrem apenas na hora do parque e do recreio, mas
não há um planejamento de atividades, as crianças brincam
livres, sem direcionamento. Na hora do recreio e do parque, a
PA, juntamente com as outras professoras da escola, fica sentada
no pátio e, entre as conversas, cuida dos pequenos apenas com o
intuito de prevenir acidentes.
Na E2, assim como na E1, o recreio também não
é dirigido e, ainda, apresenta um agravante: as professoras
aproveitam esse intervalo para conversar em outro ambiente
da escola, deixando as crianças sozinhas no pátio e no parque.
Além do perigo em se machucar, o fato de ficarem sozinhas gera
conflito entre as crianças, pois geralmente os desentendimentos
iniciados nas salas de aula se agravam no recreio. Segundo
Nicolau (2003, p. 78), “muitas habilidades sociais são reforçadas
pelo brinquedo, cooperação e comunicação eficiente, reduzindo
assim a agressão”. Entretanto, notamos que não há preocupação
por parte das professoras em desenvolver atividades dirigidas
durante o recreio.
A PB da E2, assim como suas colegas de trabalho,
parece não perceber a importância de se manter próxima às
crianças, não só porque poderia evitar acidentes e conflitos como,
também, porque é por meio da observação do comportamento
de seus alunos e da relação entre eles que ela passará a conhecê
los mais profundamente. Parece-nos que essa professora
não tem clareza de que é seu papel garantir em sua prática a
indissociabilidade entre o cuidar e o educar. De acordo com o
RCNEI, cuidar da criança pequena é, sobretudo,

[...] dar atenção a ela como pessoa que está num contínuo
crescimento e desenvolvimento, compreendendo sua
singularidade, identificando e respondendo às suas
necessidades. Isto inclui interessar-se sobre o que a criança
sente, pensa, o que ela sabe sobre si e sobre o mundo visando

270 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
à ampliação deste conhecimento e de suas habilidades, que
aos poucos a tornarão mais independente e mais autônoma
(BRASIL, 2001, v. 1, p. 25).

Além disso, se as escolas mantivessem um rodízio


entre as salas no recreio e aproveitassem esse tempo para
desenvolver atividades que envolvessem a música, a dança e
brincadeiras, estariam estimulando a cooperação, socialização e
a competição saudável. Mas, essa não é a prática das professoras,
uma vez que não foi constatada a proposição de brincadeiras pela
PA; e, na prática da PB, observamos apenas uma vez as crianças
brincarem de dança das cadeiras com música, orientadas pela
professora. Isso mostra que as professoras não utilizam a
brincadeira como subsídio para construção do conhecimento a
fim de possibilitar uma aprendizagem prazerosa e significativa.
De acordo com Vygotsky (1994), a brincadeira é
fundamental, também, porque o maior autocontrole da criança
ocorre nessas situações. A cada passo, a criança vê-se frente a
um conflito entre as regras do jogo e o que ela faria se pudesse
agir espontaneamente. Ela mostra o máximo de força de vontade
quando renuncia a uma atração imediata do jogo. Assim, a
criança age de maneira contrária a que gostaria de agir.
Notamos ainda que tanto a PA quanto a PB
trabalham com pouca frequência atividades que envolvem a
música; elas não a utilizam como atividade cotidiana para
desenvolver habilidades nas crianças. A PB, com rara frequência,
utiliza a música para trabalhar a leitura e a escrita. Entretanto,
de acordo com o RCNEI (BRASIL, 2001), a música é linguagem e
forma de conhecimento presente no cotidiano de modo intenso,
e a linguagem musical tem estrutura e características próprias
criando momentos significativos no desenvolvimento afetivo,
cognitivo e motor, responsáveis pela criação de vínculos tanto
com os adultos quanto com a própria música. Cabe, então, às
professoras que trabalham na Educação Infantil criar momentos
musicais, sendo que, em todas as culturas, as crianças brincam
com a música.

9 junqueira&marin editores 9 271


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Ainda em relação à música, percebemos claramente
que a PA e a PB só cantam com as crianças no início das aulas e em
datas comemorativas. Nesses momentos, são cantadas sempre
as mesmas músicas acompanhadas de gestos e movimentos
que, pela repetição, tornam-se mecânicos. Para Brito (2003),
antigamente a música utilizada dessa forma era apenas um meio
para atingir objetivos considerados adequados à instrução e à
formação infantis, ou seja, a formação de hábitos e atitudes.
Percebemos, também, que, em ambas as escolas, no
período de final de ano, há uma grande preocupação por parte
das professoras com o ensaio para a formatura das crianças.
Esses ensaios ocorriam todos os dias de forma cansativa para
os alunos e tomava o tempo que poderia ser aproveitado com
atividades mais interessantes para as crianças. De acordo com
Faria e Salles Dias (2007), esse tipo de atividade, como os
ensaios para as diversas datas comemorativas, artificializam
e padronizam as possibilidades de expressão corporal e
imaginativa das crianças.
As autoras esclarecem, ainda, que algumas formas
significativas de favorecer esse processo de expressão corporal
são, por exemplo, possibilitar que as crianças vivenciem
jogos e brincadeiras, principalmente nos espaços externos
da instituição, onde possam explorar as possibilidades do seu
próprio corpo, tocar o corpo dos colegas, podendo expandir
seus movimentos correndo, pulando, subindo, rolando, etc. “É
preciso que as professoras compreendam que a construção da
corporeidade se realiza na interação com o outro em vivências
significativas do corpo no espaço” (FARIA; SALLES DIAS, 2007,
p. 68).
É interessante notar que, em conversa individual
com as professoras, elas relataram que a música ajuda no
desenvolvimento e na aprendizagem, estimula a compreensão,
a socialização, a cooperação e a participação. É antagônico
perceber que elas demonstram reconhecer a importância da

272 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
música para o desenvolvimento da criança, mas não a utilizar
em suas práticas pedagógicas. De acordo com Chiarelli e Barreto
(2005), incluir a música no cotidiano escolar, certamente, trará
benefícios tanto para professores quanto para alunos, posto que
a música ajuda a equilibraras energias, desenvolve a criatividade,
a memória, a concentração, autodisciplina, socialização, além
de contribuir para a higiene mental, reduzindo a ansiedade e
promovendo vínculos.
O espontaneismo na prática da PB pode ser notado,
também, na atividade na sala de vídeo. Esse momento, que
poderia ser utilizado para desenvolver diversas habilidades nas
crianças, é proposto sem nenhum significado. Essa atividade foi
um recurso utilizado pela professora apenas para passar o tempo
e distrair as crianças, já que elas permaneceram sentadas por 45
minutos! Contrapondo a essa prática, Faria e Salles Dias (2007,
p. 69) defendem que, nas instituições de Educação Infantil, é
importante que as professoras criem “situações significativas
que estimulem o desenvolvimento e o domínio progressivo das
possibilidades motoras das crianças”.
Constatamos na E1 e na E2 que, de modo geral, as
atividades trabalhadas pelas duas professoras dessas escolas são
basicamente voltadas para a leitura e a escrita. Essas atividades
não exigem movimentação por parte das crianças já que são
realizadas de forma individualizada, e as crianças permanecem
sentadas em suas carteiras por longos períodos. Porém, de
acordo com o RCNEI, trabalhar o movimento é importante
porque
[...] contempla a multiplicidade de funções e manifestações
do ato motor, propiciando um amplo desenvolvimento de
aspectos específicos da motricidade das crianças, abrangendo
uma reflexão acerca das posturas corporais implicadas nas
atividades cotidianas, bem como atividades voltadas para a
ampliação da cultura corporal de cada criança. (BRASIL, 2001,
p. 15).

9 junqueira&marin editores 9 273


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Mas, na prática dessas professoras, as atividades
lúdicas que envolvem movimento corporal são trabalhadas
eventualmente quando existe alguma programação da escola
como, por exemplo, dia dos pais, dia das mães, festa junina,
dentre outros. Segundo Brito (2003, p. 53) infelizmente, ainda
hoje, existem escolas de Educação Infantil que realizam ensaios
para festas “esquecendo de desenvolver projetos de pesquisa, de
criação e integração com outras áreas do conhecimento: cada
classe limita-se a ensaiar - exaustivamente - o canto e a dança
que irá representar”. Com isso, a autora nos leva a refletir sobre
a mecanicidade do trabalho desenvolvido com o movimento nas
salas de pré-escola. Incluímos, nesse contexto, as professoras
observadas que demonstraram não reconhecer o movimento,
o gesto, o canto, a dança e o faz-de-conta como legítimas
expressões da infância que se constituem em maneiras pelas
quais a criança estabelece contato com o outro e se sente parte
de um grupo.

2. Em relação ao desenvolvimento
da linguagem oral e escrita

Constatamos que a PA, da E1, orientava os alunos


para o uso das margens do caderno, a importância das linhas e o
tamanho das letras. As atividades eram mimeografadas e coladas
no caderno de cada criança, tratavam-se de atividades diversas,
desde desenhos, numerais, colagem como também atividades
que exigiam do aluno o domínio da escrita, a identificação das
letras, entre outras.
Essa professora comentou que vem trabalhando o
alfabeto durante todo o ano letivo, que primeiro ensinou cada
letra isoladamente e atualmente estava trabalhando todo o
alfabeto, palavras e, principalmente, o nome das crianças. Ela
fazia no quadro a mesma atividade que as crianças tinham no
caderno, a fim de que elas visualizem melhor e, dessa forma,
conseguisse a atenção de todos.

274 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
A princípio nos pareceu que a PA trabalha na
contramão do letramento, mas, no decorrer das observações,
pudemos constatar que ela realiza um trabalho bastante
interessante que instiga o aprendizado das crianças. A PA utiliza,
em sua prática, recursos como crachás para ajudar as crianças
a identificarem seus nomes, ensina letras do alfabeto por meio
de músicas, paródias, parlendas e histórias, trabalha o alfabeto
e os numerais na mesma atividade e ainda apresenta desafios
durante as atividades.
Uma das atividades propostas foi pintar o desenho
dos três porquinhos, personagens da história que havia sido
contada pela professora em sala. Antes disso, a professora
propôs que recordassem a história e perguntou quem poderia
contá-la para todos na sala. Muitos se manifestaram, e um dos
alunos foi convidado a ir à frente da sala para contar a história.
As crianças prestavam atenção no que o colega dizia e, quando
percebiam que ele deixava de comentar algum fato importante
no decorrer da história, levantavam-se e se dirigiam à frente
para complementar a fala do colega. Foi um momento rico de
informações e prazeroso para as crianças, todas puderam expor
ideias e opiniões demonstrando desenvoltura na linguagem
oral. A professora soube aproveitar esse momento instigando os
alunos a expor o que pensavam, dando oportunidade para todos,
apresentando perguntas de forma que as crianças fizessem
relações com outros fatos.
De acordo com Abramovich (1995, p. 140), “[...] é
importante para formação de qualquer criança ouvir muitas,
muitas histórias... Escutá-las é o início da aprendizagem para ser
um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito
de descoberta e de compreensão do mundo...”. Nesse sentido, o
RCNEI destaca a importância da participação das crianças “nas
situações em que os adultos lêem textos de diferentes gêneros,
como contos, poemas, notícias de jornal [...]” como, também, é
importante a “observação e manuseio de materiais impressos,
como livros, revistas, histórias [...]” (BRASIL, 2001, p. 140).

9 junqueira&marin editores 9 275


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Ao término da etapa de recordar a história, a PA
contou-a novamente dando sequência correta aos fatos. Durante
o conto, a professora fez entonação de voz, mudando de acordo
com os personagens, fazia gestos e mostrava para as crianças
alguns objetos e figuras que faziam parte da história, como
casas, chaminés, árvores, dentre outros comuns no cotidiano dos
alunos. Não restam dúvidas de que contar histórias na Educação
Infantil contribui com a formação global da criança: “Tal prática,
além de favorecer a relação afetiva da criança com o livro, desde
a mais tenra idade, proporciona momentos de prazer, desperta
a curiosidade, criatividade, fantasia e a imaginação” (COSTA;
VALDEZ, 2007, p. 172).
Por fim, os alunos pintaram o desenho dos três
porquinhos e escreveram seus nomes no desenho. Como eram
poucos os que não reconheciam as letras de seus nomes, a
professora utilizava uma estratégia interessante, ela deixava na
mesa daqueles que ainda tinham dificuldades um crachá com o
nome deles para reconhecerem as letras e copiarem. De acordo
com a professora, esse recurso facilita que o aluno reconheça as
letras do seu nome mais rapidamente, sem ter que encontrá-las
de forma isolada no alfabeto fixado na parede.
No dia seguinte, a PA utilizou o jogo de montar,
enquanto as crianças iam formando objetos, a professora
chamava um de cada vez até a sua mesa e, com cartaz, trabalhava
o alfabeto e os numerais. Ela utilizou também o alfabeto e
os numerais móveis, fazendo com que cada um, na sua vez,
identificasse as letras e os números.
Nessa atividade, foram utilizadas várias estratégias.
Conforme as crianças iam identificando as letras, a professora
traçavanovosdesafios,poisagrandemaioriadelastinhadecorado
a sequência do alfabeto, mas quando as letras eram apresentadas
aleatoriamente, muitas crianças não conseguiam identificá-las.
Diante da dificuldade de alguns alunos, a professora perguntou
a todos quais as letras que eles tinham mais dificuldades para

276 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
identificar. Para minimizar as dificuldades, colocou no quadro
o nome de todas as crianças e foi mostrando as diferenças e
semelhanças no nome de cada uma delas. A professora instigou
as crianças a contarem as letras para descobrirem o nome
mais curto e o mais comprido e quais os nomes que possuíam
mais e menos letras. Assim, a professora trabalhou o alfabeto
e quantidades ao mesmo tempo. Durante a atividade, a PA foi
mostrando que alguns nomes eram muito semelhantes, que
mudava apenas uma letra, outros eram idênticos, mas mudava o
sobrenome e alguns eram diferentes de todos os demais.
Em outra atividade, a professora utilizou músicas do
elefantinho e do índio para ajudar as crianças a identificarem os
numerais. Durante a música, a professora mostrava os números
expostosnaparede,e osalunossimbolizavam os numeraiscom os
dedos. A todo o momento, ela chamava atenção das crianças para
que percebessem as diferentes maneiras pelas quais os números
podem ser representados como, por exemplo, a quantidade de
objetos encontrados na própria sala de aula. Assim, utilizando
situações reais, todos participaram da atividade demonstrando
bastante interesse. Com isso, a professora apresentava novos
fatos e novos objetos para que as crianças pudessem ter uma
melhor compreensão daquilo que estava sendo ensinado. As
crianças demonstravam motivação e a aula tornou-se bastante
produtiva para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita
das crianças de forma prazerosa.
No final do ano letivo, a PA desenvolveu atividades
sobre o Natal enfocando questões, como as representações,
o que se comemora nessa data e a importância dela. Durante
a socialização dessas questões, a professora desenhava na
lousa alguns símbolos relacionados ao assunto para facilitar
a compreensão dos alunos, levando-os a participarem, dando
opinião e falando de suas experiências natalinas. Em seguida,
sugeriu que as crianças cantassem uma música natalina,
relacionando os símbolos desenhados na lousa com a letra

9 junqueira&marin editores 9 277


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
da música. Após esse momento, a PA solicitou que as crianças
pintassem um desenho natalino respeitando as margens da
figura e, ao final, que cada um colocasse o seu nome no trabalho.
Nessa atividade, a professora explorou bastante a linguagem
oral, pois a todo o momento os alunos contavam histórias
relacionadas ao Menino Jesus.
Vale ressaltar que a PA buscava constantemente
conversar com seus alunos antes mesmo de começar as
atividades, instigando-os a falarem, por exemplo, sobre uma
data festiva, o dia das crianças, Natal, Páscoa, festa junina,
entre outras. Perguntava também se as crianças sabiam o que
se estava comemorando naquele mês; se elas conheciam algum
símbolo que relacionasse ao dia festivo; por que se usava aquele
símbolo; quais os tipos de comida e roupas que eram próprias
de cada data. Presenciamos muitas situações em que a PA,
também nos momentos de leituras das histórias, abria espaço
para as crianças falarem, trocarem ideias, contarem um pouco
sobre suas experiências.
A PA procurava sempre ouvir os alunos para, a partir
do conhecimento deles, lançar novas atividades e desafios.
Nicolau (2003, p. 155) ressalta que a pré-escola tem a função
pedagógica de desenvolver um trabalho que toma a realidade da
criança e os conhecimentos infantis “como ponto de partida e os
amplia, através de atividades que tem um significado concreto
para a vida das crianças e que, simultaneamente, asseguram a
aquisição de novos conhecimentos”.
A prática dessa professora nos mostra que é possível
desenvolver um trabalho motivador e rico na Educação Infantil
sem cairmos no espontaneismo, no deixar acontecer. Temos que
explorar ao máximo as capacidades das crianças nessa fase da
educação porque, como esclarece Faria e Salles Dias (2007, p.
46), “esse é o período fundamental de aquisição da capacidade
de ação simbólica da criança sobre o mundo, desenvolvendo
múltiplas linguagens e estruturando seu pensamento nas suas
interações [...]”.

278 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
No que se refere a PB da E2, ela estabelecia uma
rotina em sala de aula registrando cotidianamente a data, o
nome da cidade, o dia da semana e o nome das crianças. Ela
propunha momentos em que as crianças pudessem manusear
livros, trocar informações e criar histórias por meio de leitura
visual de figuras, mas não coordenava bem essas atividades.
Isto foi observado no conto de histórias que eram de difícil
compreensão para as crianças, pois elas não conseguiam
distinguir o personagem que estava falando e para quem estava
se falando, mesmo com a ajuda de figuras.
Isso acontecia porque a PB não explorava esse
momento adequadamente. Durante a leitura, ela não dava
expressividade às histórias; não trabalhava a entonação de voz
dos personagens e não fazia relações entre os personagens.
Neste sentido, Costa e Valdez (2007) chamam a atenção para
a importância do momento de se contar história. Quando o
contador socializa uma história oralmente, deve oferecer ao
ouvinte a oportunidade de penetrar na história.

Ao escolher a leitura é preciso pensar na forma de contá-la. [...]


Mesmo que a história seja contada pela milésima vez. Além de
usar o livro, mostrando ou não as imagens, de contar a história
decorada, de usar fantoches, de usar o avental e de apresentar
as histórias, é possível recorrer a outras formas interessantes
e atrativas. Isso inclui a preparação da história e do ambiente
(COSTA; VALDEZ, 2007, p. 174).

Além dos momentos de contos, foi observado na


prática da PB o uso de filmes, no entanto a apresentação de
vídeos também não era produtiva, as crianças conversavam
muito e os filmes não eram explorados. Na prática da PB, ao
contrário da PA, não foi observado nenhum momento em que as
crianças fossem instigadas a pensar, trocar ideias, contar fatos
vivenciados, apenas dar respostas rápidas e lógicas.
A PC, que assumiu a turma da PB da E2, também
tinha como proposta estabelecer uma rotina em sala de aula,

9 junqueira&marin editores 9 279


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
registrando cotidianamente a data, o nome da cidade, o dia
da semana, o clima e o nome das crianças. Foi observado que
essa professora trabalhava quase sempre com atividades
mimeografadas coladas no caderno dos alunos, priorizando
atividades de recortes e colagens. Essas atividades na maioria
das vezes eram trabalhadas de forma muito artificial, sem
objetividade.
Algumas atividades propostas pela PB e PC
não apresentavam significado principalmente quando elas
solicitavam às crianças que fizessem desenhos sem nenhum
objetivo concreto. Esse tipo de prática leva-nos a crer que há
desconhecimento por parte dessas professoras de que a arte
visual é uma forma delinguagem pela qual as crianças expressam
sentimentos, emoções e desejos, elas parecem desconsiderar
a arte como objeto de conhecimento. Entretanto, para Faria e
Salles Dias, “[...] interagindo com sujeitos de uma cultura que
utiliza o desenho, a ilustração, a pintura, a escultura, a fotografia
[...], as crianças vão ter possibilidade de utilizar e desenvolver
essa linguagem simbólica” (2007, p.76).
A PC também utiliza em sua prática, recursos como
crachás para ajudar as crianças a identificarem seus nomes.
Porém, ela não demonstrou a mesma habilidade da PA (E1),
que buscava trabalhar a linguagem oral escrita em diferentes
momentos. Quase todos os dias, a PC fazia leitura do alfabeto
e dos numerais junto com as crianças. Depois, apontando
com o dedo, tomava a lição e as crianças tinham que repetir o
alfabeto e os numerais de forma mecânica, sem que a professora
explorasse as atividades propostas.
Em uma determinada atividade, a PC tentou abrir
espaço para as crianças falarem sobre o que elas pensavam e
contar experiências. Porém, na única vez em que ela propôs essa
interação, as crianças ficaram muito eufóricas e conversavam
muito. Nervosa com a situação, a professora interrompeu
bruscamente a atividade e deu início a outra mais tranquila.

280 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
Constatamos, então, que a linguagem oral e escrita
além de ser pouco trabalhada na E2, as atividades propostas
para esse fim são muito mecânicas. Essa constatação parece
mostrar que a PB e a PC não estão cientes da importância de se
trabalhar essas linguagens com crianças dessa faixa etária. Elas
não se reconhecem como interlocutoras que têm importante
papel de ampliar e enriquecer as falas das crianças, criando e
potencializando situações em que possam ouvir e construir
narrativas.APBeaPCnãooportunizavam às criançasperceberem
as diferenças e semelhanças existentes entre a linguagem oral
e a escrita para que pudessem criar hipóteses, compreender a
lógica da linguagem e, dessa forma, apropriarem-se dela.
Em suma, percebemos que a PA utilizava diferentes
maneiras e recursos para desenvolver a linguagem oral e escrita
com as crianças, dentre eles, podemos citar os crachás, o alfabeto
móvel, figuras diversas, numerais, embalagens, livros infantis,
revistas e cartazes com os nomes dos alunos que ficavam
expostos na parede. Entretanto, a PB e a PC, apesar de também
terem esses recursos, elas pouco utilizavam.
Um fato positivo observado na prática das três
professoras refere-se à relação pessoal delas com as crianças;
elas são atenciosas e calmas no trato com os alunos. A PA da E1 se
destaca no quesito afetividade demonstrando preocupação em
relação às atitudes das crianças como, por exemplo, quando elas
apresentam dificuldades de aprendizagem ou de convivência
com os colegas. Em conversa informal, essa professora explicou
que procura dar atenção individual aos alunos porque reconhece
a fragilidade deles e os problemas que vivenciam no âmbito
familiar. A PA demonstra, assim, sensibilidade em relação às
crianças e ao seu trabalho o que é uma qualidade fundamental
para se atuar como educadora, principalmente, com crianças da
Educação Infantil. Faria e Salles Dias (2007, p. 47) alertam para o
fato de que quanto maior a afetividade que permeia as crianças,
“mais possibilidades essas relações terão de se enriquecer e

9 junqueira&marin editores 9 281


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
de contribuir na construção da autonomia, na autoconfiança
e na capacidade de cooperar desses sujeitos”. Entretanto,
sabemos que, atualmente, possuir apenas essa qualidade não
é suficiente para um profissional da Educação Infantil, manter
uma boa relação afetiva com as crianças é apenas um dos muitos
requisitos necessários para esse educador.

Considerações finais

O desenvolvimento das crianças na pré-escola


depende diretamente da prática pedagógica do professor; por
essa razão, trabalhar o movimento e a linguagem oral e escrita
nessa etapa infantil é considerar que a criança encontra-se em
uma faixa etária cuja expressão é uma característica essencial
para o seu desenvolvimento. Entretanto, o que constatamos
na prática das professoras, com exceção da PA que foi
observada quanto ao trabalho com as linguagens, é que elas
não desenvolvem atividades com finalidade de proporcionar às
crianças o movimento e a aprimoramento da linguagem oral e
escrita.
Não há intencionalidade em trabalhar essas
temáticas de forma a propiciar momentosricos de aprendizagens
necessárias a essa faixa etária. Quando ocorrem atividades
que poderiam ter essas finalidades, elas são propostas pelas
professoras sem definição de objetivos a serem alcançados com
as crianças. As atividades são trabalhadas mais como forma
de ocupar o tempo das crianças do que como um momento de
proporcionar o desenvolvimento de diversas habilidades.
A forma como as professoras desenvolvem as
atividades deixa-nos entender que elas ainda preservam uma
concepção de pré-escola ora como um momento de passa tempo,
ora como preparação da criança para o Ensino Fundamental.
Porém, ambas as concepções estão ultrapassadas. Atualmente a
pré-escola e a Educação Infantil de modo geral são consideradas

282 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
momentos importantíssimos na vida das crianças, não só para
a aquisição de novos conhecimentos como também para a
formação da pessoa. Nesse sentido, para Sampaio (2000, p. 76),
a função básica da pré-escola é garantir “espaços onde a criança
construa e se aproprie de novos conhecimentos, aqui e agora; ao
contrário de uma pré-escola que visa apenas preparar a criança
para um aprendizado que se dará num futuro [...]” (grifo da
autora).
Em função da importância de se desenvolver
diversas habilidades na criança, o professor da Educação Infantil
não pode agir no espontaneismo, as atividades propostas devem
ter uma intencionalidade. Arce e Martins (2007) alertam que é
pelo trabalho educativo que as professoras assumem um papel
decisivo no desenvolvimento infantil, e da qualidade dessa
interferência dependerá a qualidade do desenvolvimento da
criança.
Concordamos com as autoras quando afirmam,
também, que otimizar o potencial afetivo-cognitivo da criança
é tarefa central da Educação Infantil e, no âmbito da Educação
Infantil pública, além de tarefa central é também uma questão
de responsabilidade e justiça social. Assim, deixar as crianças
reféns de sua própria espontaneidade é, ao mesmo tempo,
permitir que se aprisionem nos seus próprios limites (ARCE;
MARTINS, 2007).
Em suma, os resultados indicam, com raras
exceções, que a prática pedagógica das professoras não atende o
que é preconizado pelos documentos oficiais sobre a Educação
Infantil e pela literatura da área.
Considerando que as professoras de Educação
Infantil do Município pesquisado possuem formação em nível
superior; considerando que elas participam de programas de
formação continuada oferecidos pelo Município e considerando
os resultados da nossa pesquisa, questionamos: em que medida
esses cursos oferecem suporte teórico-prático para atuação

9 junqueira&marin editores 9 283


CAPÍTULO XI PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
dos futuros professores nessa etapa da Educação Básica? Os
cursos oferecidos consideram as necessidades das educadoras
e condições objetivas de trabalho nas instituições de forma a
promover mudanças qualitativas na prática pedagógica? Nos
cursos de formação continuada, é abordada a importância de
se desenvolver diversas habilidades nessa faixa etária? Qual a
razão da(s) resistência(s) para promover mudanças na prática
pedagógica de forma a contemplar o que é preconizado pela
literatura da área?
Esses questionamentos nos remetem à proposição
de novas pesquisas, compreendendo-se a complexidade do
ato educativo e suas implicações na construção da cidadania,
sobretudo ressaltando o papel do educador na tarefa de
promover mudanças significativas na qualidade da educação
oferecida às crianças da primeira etapa da Educação Básica e
nas etapas seguintes. 3

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 4 ed. 1995. São


Paulo: Scipione, 4 ed. 1995.

ARCE, Alessandra; MARTINS, Ligia Márcia (Orgs.). Quem tem medo de ensinar
na Educação Infantil? São Paulo: Alínea, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de


Educação Básica. Resolução CEB n. 1. Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil. 1999.

Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Referencial Curricular


Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC, 2001.

Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Política Nacional de


Educação Infantil. Brasília: MEC, 2005.

284 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XI
BRITO, Teca Alencarde. Música na Educação Infantil: propostas para a formação
integral da criança. São Paulo: Petrópolis, 2003.

CHIARELLI, Ligia K. Meneghetti; BARRETO, Sidirley de Jesus. A música como


meio de desenvolver a inteligência do ser. Revista Recre@rte. n. 3, jun.2005.
Acesso em: 23/09/2009. Disponível em: <http://www.iacat.com/revista/
recrearte/recrearte03/musicoterapia.htm>.

CONDEMARÍN, Mabel; GALDAMES, Viviana; MEDINA, Alejandra. Oficina de


linguagem: módulos para desenvolver a linguagem oral e escrita. São Paulo:
Moderna. 1997.

COSTA, Patrícia Lapot; VALDEZ, Diane. Ouvir e viver história na Educação


Infantil: um direito da criança. São Paulo: Alínea, 2007.

FARIA, Vitória; SALLES DIAS, Fátima Regina T. de. Currículo na Educação


Infantil. São Paulo: Scipione, 2007.

MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Educação. Resolução nº 276-CCE/MT.


Normas para a Oferta da Educação Infantil no Sistema Estadual de Ensino.
2000.

NICOLAU, Marieta L. N. A educação pré-escolar: Fundamentos e Didáticas. São


Paulo: Ática, 2003.

OLIVEIRA, Maria Izete. Polêmicas da Educação Infantil. Série-Estudos. Mato


Grosso do Sul: UCDB, n.17, p. 189-183, jan/jun. 2004.

SAMPAIO, Carmem. S. Alfabetização na pré-escola. In: GARCIA, Regina. L. (Org.).


Revisitando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 2000.

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1985.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes,
1994.

9 junqueira&marin editores 9 285


U PARTE
ESCOLAS III V
E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS

iCAPÍTULO XIIj
MEDIAÇÃO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA DE
PROFESSORES DOS CICLOS INICIAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Tatiane Lebre Dias
Sônia Regina Fiorim Enumo
Mirian da Silva Marinho Moreira
Fabiana Muniz Mello Félix

Introdução

Aavaliação
estudantesbrasileiros
do desempenho
do EnsinoFundamental
escolar de

nos últimos anos tem mostrado uma prevalência de resultados


abaixo da média (INEP, 2003). Em estudo realizado em uma
capital da Região Sudeste do país, Dias, Enumo e Turini (2006)
avaliaram o desempenho escolar de alunos da 1ª à 4ª série do
Ensino Fundamental e verificaram a prevalência da classificação
“inferior”. Não foram encontradas diferenças de desenho
entre as séries contínuas, sendo necessários de dois a três
anos de diferença entre as séries para se observar diferenças
significativas no desempenho dos alunos. Assim, os alunos da
3ª série não se diferenciavam dos alunos da 2ª série em termos
de desempenho na leitura, escrita e na aritmética. A mudança de
desempenho ocorria somente na 4ª série.

9 junqueira&marin editores 9 287


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Esse contexto tem gerado investigações voltadas
para a proposição de diferentes condições de avaliação e
intervenção, de forma a promoveras condições de aprendizagem
dos alunos. Desse modo, surgiram, na década de 70 do século
passado, novas formas de avaliação de processos cognitivos,
os quais passam a enfatizar os processos de aprendizagem das
crianças e o papel da instrução na facilitação da aprendizagem
e da sua transferência (FONSECA, 1998; LIDZ, 1987; TZURIEL,
2001; HAYWOOD & TZURIEL, 2002).
Um exemplo dessa nova abordagem surge com as
contribuições da avaliação assistida, também denominada de
dinâmica ou interativa. Um diferencial da avaliação assistida
consiste na intervenção por parte do examinador durante a
avaliação, com a finalidade de fornecer indicadores do potencial
de aprendizagem (LINHARES; ESCOLANO; ENUMO, 2006).
A área da avaliação assistida recebeu grande
contribuição do psicólogo nascido na Romênia, Reuven
Feuerstein, que propôs um novo postulado baseado no
pressuposto da modificabilidade cognitiva (cognitive
modifiability). Na base desse postulado, está a premissa de que
todo o ser humano é modificável, sendo esse o ponto de partida
para a compreensão da teoria, da avaliação e da intervenção
na Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural - MCE
(FEUERSTEIN; FEUERSTEIN, 1991).
De acordo com Haywood e Tzuriel (2002), os
enunciados da Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural
são profundamente influenciados pela obra de Lev Seminovich
Vygotsky (1896-1934) e Jean Piaget (1896-1980). Na área da
Educação, como sugerem Fonseca e Cunha (2003), essa teoria
se apresenta como um alicerce imprescindível na construção de
uma nova forma de educar, pois orienta para a capacitação da
criança e desenvolvimento de novos instrumentos e habilidades
de pensamento. Tal fato ocorre à medida que incorpora regras e
princípios da experiência, na qual a aprendizagem ocorrerá por

288 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
meio de um processo de mediação, que, por sua vez, poderá ser
transferida para novos e diferentes contextos.
A concepção de modificabilidade cognitiva ilustra
uma nova abordagem sobre os processos cognitivos, analisando a
forma como o indivíduo elabora e comunica informações para se
adaptar, além de possibilitar mudanças visíveis, principalmente
em pessoas com deficiências, dificuldades ou desvantagens
cognitivas (HAYWOOD; TZURIEL, 2002).
Apartir de observaçõesde sua própria interação com
crianças classificadas com retardo mental ou atraso cognitivo,
Feuerstein observou alterações no padrão de raciocínio das
crianças que apresentaram melhora em relação ao padrão usual
e mostraram potenciais não detectados nos testes anteriores.
Com base nesses resultados, Feuerstein concebeu e desenvolveu
o conceito de Mediate Learning Experience - MLE ou Experiência
de Aprendizagem Mediada – EAM-(GOMES, 2002).
De acordo com Mentis (1997), a abordagem mediada
baseia-se na fórmula:

S-H-O-H-R
(S= estímulo, O= organismo, R= resposta e H= humano)

O mediador se interpõe entre o organismo que


aprende e o mundo dos estímulos, de modo a interpretar e dar
significado a esses, tornando intencional a aprendizagem. Em
outras palavras, essa abordagem se refere ao processo interativo
no qual os adultos (pais, professores) se interpõem entre a
criança e o mundo e modificam uma série de estímulos em
termos de frequência, ordem, intensidade e contexto (TZURIEL;
HAYWOOD, 1992).
Para Feuerstein (2001), a Experiência de
Aprendizagem Mediada assume dois distintos papéis na teoria
da Modificabilidade Cognitiva Estrutural. O primeiro deles
reside no fato de que a abordagem mediada como uma qualidade

9 junqueira&marin editores 9 289


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
de interação é particular da espécie humana. O segundo papel
deriva-se do primeiro e se refere à qualidade da experiência
mediadaserentendidae analisada em certoscomponentes. Esses
componentes, quando isolados e aplicados sistematicamente,
podem tornar-se uma modalidade de interação educacional e,
assim, aumentar a modificabilidade cognitiva do indivíduo.
Haywood e Tzuriel (2002), ao analisarem
pesquisas empíricas envolvendo a assistência no processo
de aprendizagem, chegaram às seguintes conclusões: (a) há
melhora no desempenho após a mediação, dependendo do tipo
e intensidade do ensino, da natureza das barreiras cognitivas
do indivíduo e da distância psicológica entre o conteúdo de
ensino e o conteúdo de desempenho dos testes; (b) um maior
ganho no desempenho é decorrente da mediação de estratégias
lógicas, diferentemente do simples ensino de conteúdo;
(c) há transferência das estratégias mediadas para novos
contextos de resolução de problemas, sendo apresentada mais
frequentemente na transferência próxima do que na distante;
(d) é possível obter uma medida do potencial de aprendizagem;
(e) a concepção de potencial é muito importante no contexto da
habilitação ou reabilitação, mesmo em casos de dano cerebral
ou desordem psiquiátrica; (f) a avaliação assistida trabalha com
previsões mais otimistas do que aquelas produzidas por meio
dos testes estáticos (psicométricos tradicionais), especialmente
em programas de educação cognitiva ou qualquer outro
voltado para melhorar as estratégias educacionais de crianças
e adolescentes.
Jensen e Feuerstein (1987) caracterizam a
Experiência de Aprendizagem Mediada a partir da presença de
dez critérios: intencionalidade e reciprocidade, transcendência,
mediação de significado, competência, autorregulação,
compartilhamento, individuação, planejamento de objetivos,
desafio e automodificação.
A partir desses critérios, Lidz (1991) elaborou uma
escala para avaliação da Experiência de Aprendizagem Mediada

290 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
denominada Mediated Learning Experience (MLE) Rate Scale
(Escala de Avaliação da Experiência de Aprendizagem Mediada).
Além de incluir os componentes originais, essa escala acrescenta
modificações e inovações, totalizando 12 componentes do
comportamento do mediador, que são analisados em termos de
potenciais atitudes de mediação de aprendizagem e mais um
componente que avalia o comportamento do mediado. Cada um
dos 12 componentes da escala é avaliado em quatro níveis, com
um escore total máximo de 27 pontos, que variam do nível zero
(ausência de mediação) ao nível três (ótima mediação).
No Brasil, Cunha, Enumo e Canal (2006) propuseram
uma operacionalização da (MLE) Rate Scale para análise do
padrão de mediação materna, em um estudo com díades de mãe
criança com deficiência visual. Essa operacionalização resultou
em um sistema com 36 categorias de análise, organizadas em
quatro níveis de mediação para cada um dos 12 critérios de
mediação da EAM.
A aplicação dessa escala é realizada por observação
direta da situação de interação entre o mediador e a criança, quer
seja na sala de aula ou em outra atividade de ensino (FONSECA;
CUNHA, 2003). E, devido à sua confiabilidade com relação à
consistência interna, permite uma ampla análise qualitativa
de vários aspectos da mediação presentes na interação adulto
criança. A escala já foi traduzida para o alemão e o espanhol
e tem sido modificada em diferentes versões para a aplicação
específica em intervenções com pais, professores e trabalhos de
desenvolvimento de habilidades de leitura (CUNHA; ENUMO;
CANAL, 2006).
Considerando que a interação adulto-criança
favorece o desenvolvimento cognitivo, foi estudado o contexto
de sala de aula, visto como um ambiente planejado para o
desenvolvimento cognitivo, social e afetivo do aluno e pautado
no processo ensino-aprendizagem, em pesquisa relatada a
seguir⁴⁹.

9 junqueira&marin editores 9 291


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Adaptação da escala de mediação (MLE) Rate Scale
para o contexto de sala de aula

O estudo foi desenvolvido com quatro professoras


da 2ª fase do Ciclo I à 2ª fase do Ciclo II do Ensino Fundamental
de uma escola pública de município de Cáceres, MT. A faixa
etária das professoras variou de 32 a 54 anos de idade, sendo
que todas possuíam graduação em Pedagogia. Duas professoras
atuavam na docência há mais de 25 anos (professoras A e C),
e as outras duas atuavam há 6 e 2 anos (professoras B e D,
respectivamente).
As quatro salas de aula totalizaram 90 alunos assim
distribuídos: Ciclo I (2ª fase = 23; 3ª fase = 17 alunos) e Ciclo II
(1ª fase = 27; 2ª fase = 23) alunos cada.
Para a análise da mediação pedagógica, tomou-se,
inicialmente, como referência a operacionalização da (MLE)
Rate Scale realizada por Cunha, Enumo e Canal (2006); mas,
adaptando-a agora para o contexto da sala de aula. Para isso,
considerou-se somente os critérios de mediação mais presentes
no contexto de sala de aula. Assim, a essa nova adaptação
resultou em cinco critérios de mediação e dez categorias
comportamentais, descritos a seguir.
Os critérios de mediação e seus respectivos
comportamentos mediacionais dessa nova adaptação da
(MLE) Rate Scale, para uso com professores, ficaram assim
estabelecidos:

1- Intencionalidade: uma atitude consciente do


professor de influenciar o comportamento do
aluno. Inclui comunicar para o aluno a proposta
da interação, assim como tentativas de mantê-lo
envolvido nesse processo.
• Darfeedbackinformativo (FEI): comportamento
verbal do professor que descreve atributos dos
elementos envolvidos na tarefa.

292 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
2- Transcendência: atitude do professor de
estabelecer uma ponte cognitiva entre a tarefa
ou atividade e as experiências relacionadas, mas
não atuais, do aluno, referindo-se ao passado ou
antecipando o futuro. O professor promove imagens
visuais para ajudar o aluno a mudar de uma resposta
perceptual para uma conceitual.
• Fazer Ponte Cognitiva Temporal (PCT): o
professor estabelece uma ponte cognitiva entre a
atividade presente do aluno com o passado ou o
futuro.
• Fazer Ponte Cognitiva Conceitual (PCC):
professor apresenta comportamentos verbais que
objetivam auxiliar o aluno a identificar aspectos
conceituais da atividade.

3- Competência/Regulação na tarefa: uma atitude


do professor de manipular a tarefa para facilitar a
realização da mesma pelo aluno.
• Apresentar Questões sobre a Tarefa (QTC):
professor solicita uma resposta (verbal ou não
verbal) do aluno relacionada à tarefa.
• Solicitar atenção (SOA): professor apresenta
comportamentos verbais e/ou não-verbais para
solicitar que o aluno se mantenha concentrado na
tarefa.
• Solicitar autorregulação (SAR): professor
apresenta comportamentos verbais e/ou não
verbais para que o aluno retorne à atividade e/ou
contenha sua impulsividade.
• Dar feedback corretivo (FEC): verbalização
do professor que se segue a uma emissão (oral
ou simbólica) inadequada do aluno, com o intuito
de corrigir e substituí-la por uma resposta mais
apropriada.

9 junqueira&marin editores 9 293


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
4- Competência/Elogiar-encorajar: uma
atitude do professor de comunicar, através de
comportamentos verbais e/ou não-verbais, ao
aluno, que ele está fazendo um bom trabalho.
• Dar feedback positivo (FEP): comportamento
verbal do professor que indica reconhecimento e/
ou aprovação da resposta da criança.

5- Responsividade contingente: uma atitude


do professor que demonstre sua habilidade em
interpretar as dicas e sinais do aluno relacionados
à aprendizagem, à afetividade, às necessidades
motivacionais e, então, respondê-las em tempo e de
maneira apropriada.
• Responderà questão (REQ): professorapresenta
comportamento verbal subsequente à pergunta do
aluno, que tem como foco aspectos da tarefa.
• Responder à solicitação do aluno (RSO):
professor apresenta comportamento verbal ou não
verbal que atende a um pedido do aluno, que pode
ter ou não a tarefa como foco.

Essa escala foi aplicada nos dados obtidos por


gravações em vídeos semanais feitas nas quatro salas de aula, em
diferenteshoráriosedias,semcomunicaçãopréviaàsprofessoras,
no período de setembro a dezembro de 2007. No total, foram
gravadas 46 aulas, com um tempo médio de 30 minutos cada, com
a média de 11,5 gravações por professora. Posteriormente, essas
gravações foram transcritas, as verbalizações das professoras
foram enumeradas, identificando assim os comportamentos
de mediação. Para garantir a fidedignidade dessa identificação
dos comportamentos de mediação, o processo foi feito por dois
alunos de Pedagogia e pela pesquisadora. Assim, considerou-se
o comportamento identificado por dois juízes (dois alunos de
graduação ou um aluno de graduação e a pesquisadora).

294 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
A mediação docente

Com base nessa adaptação da (MLE) Rate Scale,


observou-se as categorias mais frequentes em relação à média
de comportamentos mediadores das professoras (Tabela 1).

Tabela 1 – Média de comportamentos


mediadores das professoras
Critérios de Categoria Média por professor

Mediação Comportamental

A B C D

Intencionalidade Dar feedback

informativo 7,75 3 7,8 0,5

Transcendência Fazer ponte cognitiva

Fazer ponte cognitiva


temporal 0,41 0,2 0 0

Conceitual 0 0 0 0

Apresentar questões sobre 16,2 4,7 18 2,3

Solicitar
a tarefa atenção 1,91 0,9 0

Regulação na tarefa
Competência/ 0,5

Solicitar
Dar feedback
autorregulação
corretivo 6 3,2 7,0 5,6

0,1 0 1 0,1

Elogiar‐
Competência/ Dar feedback positivo 0,8 0 0,8 0,0

Encorajar

Responsividade Responder à questão 1,5 1,4 1,0 0,3


9 junqueira&marin editores 9 295
CAPÍTULO XII 0,1 currículo e espaço escolar
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política,
0 1 0,1
s
Elogiar‐
Competência/ Dar feedback positivo 0,8 0 0,8 0,0

Encorajar

contingente
Responsividade Responder à questão 1,5 1,4 1,0 0,3

Responder à solicitação do

aluno 0,8 0,2 0,2 0

Com base nos dados da Tabela 1, tem-se um perfil


de cada professora.

Professora A – 25 anos de docência, formada em


Pedagogia há 13 anos; lecionava na 2ª fase série do Ciclo I, com
23 alunos - apresentou maior frequência de comportamentos
mediadoresnascategoriasApresentarquestõessobrea tarefa(M=
16,2) e Dar feedback informativo (M = 7,75). A presença desses
dois comportamentos sugere haver interesse da professora em
influenciar o comportamento do aluno para que esse seja capaz
de realizar a atividade proposta por ela, ao realizar constantes
questões sobre a tarefa e oferecer informações sobre conteúdos
da aula.
O trecho a seguir mostra um exemplo do
comportamentodeDarfeedbackinformativo, em queaProfessora
A apresenta comportamentos mediacionais relacionados ao
desenvolvimento do conteúdo pelos alunos:

Professora A: “[...] Vamos agradecer a Deus pela família que nós


temos, por Deus ter dado esse dia tão maravilhoso prá nós. Ontem
deu uma chuva gostosa à noite, né? Deu prá refrescar. Então,
hoje, vamos aprender a agradecer a Deus por essa maravilha
que ele mandou prá nós, que é a chuva, né? Hoje pode ver que os
passarinhos tão todos felizes, né?”

296 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
A Professora A também emitiu uma alta frequência
de comportamentos de Solicitar autorregulação (M = 6) por meio
de solicitações verbais para conter possíveis comportamentos
impulsivos dos alunos, conforme ilustrado a seguir:

“Psiu! Oh, Talita, será que você poderia falar baixo, Talita?”

A Professora A teve dificuldade de fazer a


Transcendência, ou seja, em apresentar comportamentos
verbais sob a forma de dicas e/ou estratégias de resolução
de tarefa, que auxiliem o aluno na identificação de aspectos
conceituais da atividade. Também apresentou baixa frequência
de comportamentos relacionados ao critério de mediação
Competência/Elogiar-encorajar, por meio de comportamentos
que mostrem ao aluno que ele está fazendo um bom trabalho.
Da mesma forma, foi menos frequente o critério Responsividade
Contingente, que demonstra habilidade em interpretar as
demandas relacionadas à aprendizagem do aluno (Tabela 1).

Professora B: 6 anos de docência, formada em


Pedagogia há 6 anos; lecionava na 3ª fase do Ciclo I, com 17
alunos - seu perfil na mediação da aprendizagem foi semelhante
ao da Professora A, ou seja, maior frequência de comportamentos
mediadores no critério Competência/Regulação na tarefa,
especialmente nos comportamentos Apresentar questões sobre
a tarefa (M = 4,7) e Solicitar autorregulação (M = 3,2). Outra
categoria também frequente foi Dar feedback informativo (M
= 3). A ilustração a seguir evidencia a presença das categorias
Apresentar questões sobre a tarefa e Darfeedback informativo:

AD (aluno desconhecido): Professora, hoje é 20?


PB: É.
(...)
PB: Olha só, se hoje é 20 de setembro, amanhã é que dia?
AD: 21.

9 junqueira&marin editores 9 297


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
PB: Dia 21 de setembro! Alguém sabe o que é comemorado
amanhã?
AD: Dia da árvore!
PB: Hã, Hã... Mas, é só amanhã que a árvore precisa de cuidado?
É só no dia 21 que a árvore precisa de cuidado?

A Professora B tinha uma rotina: passava o conteúdo


no quadro-negro, explicava em seguida e, posteriormente,
orientava os alunos a realizarem a atividade e, havendo dúvidas,
esses se dirigiam a ela. Dessa forma, a explicação da atividade era
feita para todososalunos. Outroscomportamentosmediacionais,
que poderiam ser dirigidos a todos, ocorriam na interação
individual quando o aluno se dirigia à mesa da professora. Esse
aspecto possivelmente explica a baixa frequência ou até mesmo
ausência de comportamentos mediadores nos demais critérios
de mediação, como Transcendência, Competência/Elogiar
encorajar e Responsividade contingente. Nesses critérios, a
Professora Bapresentou frequência bem menor que a Professora
A (Tabela 1).

Professora C: 34 anos de docência, formada em


Pedagogia há 25 anos; lecionava na 2ª fase do Ciclo II, com 23
alunos-apresentou frequência de comportamentos mediacionais
próximos aos da professora A para aquelas categorias com
maior frequência, ou seja, questões para a tarefa (M = 18), Dar
feedback informativo (M = 7,8) e Solicitar autorregulação (M =
7). O trecho abaixo ilustra uma sequência de comportamentos
mediacionais, que incluem Apresentar questões sobre a tarefa e
Darfeedback informativo:

PC: Vamos corrigir a tarefa. Qual é a conta?


AD: 126/20.
PC: Como é que eu faço, pego o 16?
AD: Não.
PC: Por quê?

298 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
AD: Porque 16 é menor que 20.
PC: Porque é menor que 20, não podemos pegar. Tem que pegar o
maior, então pegar o 160. Qual será o número que vai ficar aqui?

Nos outros critérios de mediação, como


Transcendência,Competência/Elogiar-encorajareResponsividade
contingente, a Professora C apresentou frequências muito baixas
ou nulas, assim como as Professoras A e B (Tabela 1).

Professora D: 2 anos de docência, formada em


Pedagogia há 4 anos; lecionando atualmente na 1ª fase do
Ciclo II, com 27 alunos - apresentou menor frequência de
comportamentos mediadores entre todas as professoras
analisadas; entretanto, assemelhou-se às demais na maior
frequência dos comportamentos de Solicitar autorregulação
(M = 5,6) e Apresentar questões sobre a tarefa (M = 2,3)(Tabela
1). Cabe ressaltar, que a Professora D tinha o menor tempo de
formação, sendo essa sua primeira experiência profissional.
A baixa frequência de categorias mediacionais pode
ser explicada possivelmente pelo pouco tempo de formação da
Professora D. Há de se considerar também que a professora
constantemente utilizava-se da prática de reunir os alunos para
que esses desenvolvessem as atividades em grupo, porém com
pouca supervisão da mesma.

Mediação pedagógica: algumas considerações

A compreensão da prática pedagógica do professor


a partir do referencial teórico da mediação, tendo como suporte
metodológico a proposição da escala de Lidz (1991), como aqui
apresentado, permite algumas reflexões.
Em relação às observações dos comportamentos
mediadores das quatro professoras, de modo geral, notou-se
semelhanças quanto à presença e frequência de categorias
mediacionais, com destaque para: (a) maior frequência de

9 junqueira&marin editores 9 299


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
comportamentos de Dar feedback informativo, Apresentar
questões sobre a tarefa e Solicitar autorregulação; (b) baixa ou
nula frequência para os critérios Transcendência, Competência/
Elogiar-encorajar, Responsividade contingente e, no critério
Competência/Regulação na tarefa, para os comportamentos de
Solicitar atenção e Darfeedback corretivo; (c) comparativamente,
as Professoras A e C apresentaram maior frequência de
comportamentos mediacionais que as Professoras B e D.
Em relação a este emparelhamento, os dados
sugerem que as Professoras A e C eram mais recíprocas no
processo de aprendizagem dos alunos, o que pode revelar uma
forma um pouco diferenciada de ensino quando comparadas às
Professoras B e D em relação a uma prática mais mediacional.
Quanto a essa forma de ensino, Rand e Reichenberg (2001)
consideram-na “ensino como uma interação”, isto é, atividade
na qual os professores e estudantes estão envolvidos em um
processo de aprendizagem baseado, sobretudo, na reciprocidade
e cooperação mútua.
Outra variável a ser considerada nessa diferença
favorável às Professoras A e C refere-se ao tempo de formação,
uma vez que as Professoras B e D tinham menor tempo de
formação e apresentaram menor frequência de comportamentos
mediadores.
No critério Transcendência (categorias: Fazer ponte
cognitiva temporal e ponte cognitiva conceitual), as Professoras
A e B apresentaram baixa frequência de comportamentos, e as
Professoras C e D não apresentaram esses comportamentos.
De modo geral, esses resultados podem indicar dificuldades
das professoras em vincular o conteúdo da aula para além dos
contextos da sala de aula.
Quanto ao critério Competência/Elogiar-encorajar,
as Professoras A e C apresentaram médias semelhantes (M=
0,8), enquanto as Professoras B e D tiveram frequência nula.
Esses dados sugerem que, no dia-a-dia do contexto da sala de
aula, essas professoras pouco reconhecem, aprovam ou elogiam
os trabalhos desenvolvidos pelos alunos.

300 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
A respeito da presença dessa dimensão afetiva
no contexto da sala de aula Duarte (2004), salienta que é
importante considerar a visão global que o professor tem do
aluno, as emoções, os sentimentos, valorizando o componente
afetivo, de modo a enriquecer o relacionamento interpessoal e,
consequentemente, otimizar a relação de interação professor
aluno no processo de ensino-aprendizagem.
Para o critério Responsividade Contingente, de modo
geral, as quatro professoras apresentaram baixa frequência, o
que pode indicar dificuldades das professoras em interpretar
as dicas ou sinais dos alunos relacionados à aprendizagem, no
sentido de responder prontamente as demandas dos mesmos.
Em relação ao critério Regulação na Tarefa, os
comportamentos mais frequentes foram Apresentar questões
sobre a tarefa e Solicitar autorregulação. A maior frequência de
comportamentos que questionem o aluno em relação à tarefa
sugereumaboaqualidade de mediaçãoporpartedasprofessoras.
Como salientam Rand e Reichenberg (2001), dentro do contexto
da Experiência de Aprendizagem Mediada, as questões são, na
maioria das vezes, formuladas e transmitidas para ajudar o
indivíduo a elucidar e elaborar seu processo de pensamento.
Nessamesmaperspectiva,a maiorfrequência docomportamento
de Solicitar autorregulação demonstra uma preocupação por
parte das professoras em conter comportamentos dos alunos
considerados impulsivos, de modo que esses se concentrem na
tarefa. A esse respeito, Boruchovitch (2004) propõe o ensino de
estratégias que possibilitem o uso consciente e voluntário para
o controle do comportamento dos alunos.
A presente adaptação da operacionalização feita
por Cunha, Enumo e Canal (2006) da Escala de Avaliação da
Experiência de Aprendizagem Mediada - (MLE) Rate Scale
(Lidz, 1991) permitiu observar comportamentos mediadores
presentes na interação professor-aluno, além de ajudar a
operacionalizar as definições das categorias da Experiência de
Aprendizagem Mediada.

9 junqueira&marin editores 9 301


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Os resultados permitiram produzir um checklist de
possíveis comportamentos mediadores para professores em
sala de aula. Desse modo, podem-se fornecer subsídios para
avaliar o papel e a eficácia do professor/mediador no processo
de modificabilidade cognitiva. A identificação e descrição de
comportamentos eficazes do professor poderão subsidiar a
prática de mediadores potencialmente significativos, como
outros profissionais da escola, para que possam estimular o
processo de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos.
A análise da prática pedagógica do professor com
base em observação direta também foi realizada por Maimone
e Tomás (2005). Usando a Escala de Empenho do Adulto
baseado em Oliveira-Formosinho e Formosinho (2002), esses
autores constataram a necessidade de uma melhor formação
que possibilite o próprio desenvolvimento profissional das
educadoras, principalmente quanto ao critério Autonomia da
criança. Verificaram também ser essencial que as professoras
tomem consciência de sua prática pedagógica a fim de modificá
la e modificar-se para, assim, contribuir com uma educação de
qualidade que proporcione a interação adulto-criança.
É importante considerar que a qualidade da
educação depende principalmente da qualidade da interação
oferecida pelo mediador/professor, a qual determinará em
grande parte o desenvolvimento cognitivo do mediado/aluno,
pois uma mediação adequada auxilia consideravelmente no
desenvolvimento afetivo, social e cognitivo (FONSECA; CUNHA,
2003).
Esta adaptação da (MLE) Rate Scale para uso com
professores fica como proposta de um instrumento que pode
contribuir para mudanças na própria prática pedagógica do
professor, considerando que o processo de formação de um
professor não acontece da noite para o dia. Assim, a prática
pedagógica além de considerar a formação revela também as
escolhas, o comprometimento social e os valores do professor. 3

302 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XII
Referências

BORUCHOVITCH, E. A auto-regulação da aprendizagem e a escolarização


inicial. In: E.BORUCHOVITCH; J. A. BZUNECK (Orgs.).Aprendizagem: processos
psicológicos e o contexto social na escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 55-88.

CUNHA, A. C. B.; ENUMO, S. R. F.; CANAL, C. P. P. Operacionalização de escala


para análise de mediação materna: um estudo com díades mãe-criança com
deficiência visual. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 12, n. 3,
p. 393-412, 2006.

DIAS, T. L.; ENUMO, S. R. F.; TURINI, F. A. Avaliação do desempenho acadêmico


de alunos do Ensino Fundamental em Vitória, Espírito Santo. Estudos de
Psicologia, Campinas, v. 23, n.4, p. 381-390, 2006.

DUARTE, V. C. Relações interpessoais: professor e aluno em cena. Psicologia da


Educação, v. 19, p. 119-142, dez. 2004.

FEUERSTEIN, R. F. In: FEUERSTEIN, R.; FEUERSTEIN, R.; KOZULIN, A. (Eds).


Mediate learning experience in teaching and counseling. ICELP: Jerusalém,
2001. p. 1-6.

FEUERSTEIN, R.; FEUERSTEIN, S. (1991). Mediated learning experience: a


theoretical review. In: FEUERSTEIN, R.; KLEIN, P.; TANNENBAUM, A.J. (Eds.),
Mediated learning experience (MLE): theoretical, psychosocial and learning
implications. London: Freund Publishing House, 1991. p. 3-52.

FONSECA, V. Aprender a aprender: a educabilidade cognitiva. Porto Alegre:


Artes Médicas, 1998.

FONSECA,V.;CUNHA,A.C.B.TeoriadaExperiênciadeAprendizagemMediatizada
e interacção familiar: prevenção das perturbações de desenvolvimento e de
aprendizagem. Lisboa: FMH Edições, 2003.

GOMES, C. M. A. Feuerstein e a construção mediada do conhecimento. Porto


Alegre: Artmed, 2002.

HAYWOOD, H. C.; TZURIEL, D. Applications and challenges in dinamic


assessment. Peabody Journal of Education, v. 77, n.2, p. 40-63, 2002.

JENSEN, M.R.; FEUERSTEIN, R. The learning potential assessment device: from


plilosophyto practice. In: LIDZ, C.S. (Ed.). Dynamic Assessment: an interactional
approach to evaluating jearning potential. New York: Guilford Press, 1987. p.
379-402.

9 junqueira&marin editores 9 303


CAPÍTULO XII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
LIDZ, C. Historical perspectives. In: Dynamic assessment: an interactional
approach to evaluating learning potential. New York: Guilford Press, 1987. p.
3-32.

LIDZ, C. S. Practitioner’s guide to dynamic assessment. New York: The Guilford


Press, 1991.

LINHARES, M. B. M.; ESCOLANO, A. C. M.; ENUMO, S. R. F. Avaliação assistida:


fundamentos teórico-conceituais e contribuições. In: LINHARES, M. B. M.;
ESCOLANO, A. C. M.; ENUMO, S. R. F. (Orgs). Avaliação Assistida: fundamentos,
procedimento e aplicabilidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. p. 15-32.

MAIMONE, E. H.; TOMAS, D.N. Observação do educador infantil pela escala de


empenho do adulto. Psicologia Escolar e Educacional, Campinas, v. 9, n. 2, p.
269-278, 2005.

MENTIS, M. Aprendizagem mediada dentro e fora da sala de aula. Programa de


Pesquisa Cognitiva. Traduzido por José Francisco Azevedo. São Paulo: Instituto
Pieron de Psicologia Aplicada, 1997.

OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; FORMOSINHO, J. Associação criança: um contexto


de formação em contexto. Braga: Livraria Minho, 2002.

RAND, Y.; REICHENBERG, R. Reflective teaching: theoretical aspects & practical


implications. In:FEUERSTEIN, R.; FEUERSTEIN, R. R.; KOZULIN, A. (Eds).
Mediate learning experience in teaching and counseling. ICELP: Jerusalém,
2001. p. 37-46.

BRASIL - INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS


– INEP (2003). Resultados do SAEB 2003. Disponível em: <www.inep.gov.br/
download/saeb/2004/resultados/mato-grosso.pdf>.Acesso em: 02/05/2005.

TZURIEL, D. Dynamic assessment of young children. Kluwer Academic/Plenum


Publishers: New York, 2001.

TZURIEL, D.; HAYWOOD, H. C. The development of interactive-dynamic


approaches to assessmentoflearning potential. In: HAYWOOD, H. C.; TZURIEL,
D. (Eds.). Interactive assessment. New York: Springer-Verlag, 1992. p. 3-37.

VECTORE, C.; ALVARENGA, V. C.; JÚNIOR, S. G. Construção e validação de


uma escala de comportamentos de educadores infantis. Psicologia Escolar e
Educacional, Campinas, v. 10, n. 1, p. 53-68, 2006.

304 9 junqueira&marin editores 9


U PARTE
ESCOLAS III V
E RELAÇÕES
PEDAGÓGICAS

i CAPÍTULO XIII j
ESCOLA, MULTIPLICIDADE E DESEJO:
AGENCIAMENTOS NECESSÁRIOS⁵⁰

Maritza Maciel Castrillon Maldonado

Introdução

Acordar,
passarear, quebrantar,
pantalear,
benzer,
solear,
saranzar,
grunir,
verdejar,
cevar,
assobiar,
nadar,
brincar,
brejear,
rezar,riolar,
pescar,
sorrir,
gritar, pular, andar, ir, escolear, silenciar, escutar, obedecer,
comer, tentar, falar, contar, voltar, trepar, laranjear, arear, zumbir,
escurecer, dormir... ações cotidianas de Ana, uma menina de 9 anos
que movimenta esta pesquisa. Ana, que mora na Campina, região
labiríntica do Pantanal mato-grossense, espaço que se faz a todo
instante e que, num piscar de olhos, transforma-se em outro.
Ana, que dá mais respeito às coisas que vivem de barriga no
chão, que entende o sotaque das águas, que valoriza as coisas e
os seres desimportantes, que preza mais os insetos que os aviões,
mais a velocidade das tartarugas que a dos mísseis; que gosta
de passarinhos e, apanhando desperdícios em seu quintal, que

9 junqueira&marin editores 9 305


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
é o seu mundo, vive a alegria de ser feliz sendo, simplesmente,
Ana.⁵¹
Emprestando de Ana a sua experiência coletiva⁵²,
que enquanto tal poderia ser, também, a de seus irmãos e primos,
Alex, Jaqueline, Duda, Catarino, Odair, Michel, Alaor, Sibele,
Sinara, ou a de seus pais e avós, todos moradores tradicionais
da Campina, apresentamos, neste texto, uma pequena porção da
intensa experiência ali vivida. Elegemos a parte da pesquisa que
se refere ao espaço escolar, mais especificamente, à concepção
disciplinar de currículo selecionada pelo professor de Ciências
de uma escola pública do município de Cáceres-MT, que atende
à multiplicidade das crianças ribeirinhas. Por meio dessa
experiência, questionamos a possibilidade de se conciliar escola,
multiplicidade e desejo.

Educação Escolar: mapa ou decalque?


Estrada ou trajeto?

Em uma segunda-feira, cheguei à porteira da fazenda


Campina⁵³ logo cedo e esperei as crianças para pegarmos o
ônibus que nos levaria à escola. Pouco tempo depois as avistei,
correndo em minha direção. Recebi beijos, abraços e um buquê
de flores do mato. Vieram com uma sacola plástica nas mãos
que continha, além do material escolar, o uniforme. Perguntei ao
Alaor por que não vinham vestidos de uniforme, e ele respondeu:

“nós vem correno, aí soua [sua] na ropa da escola e aí as


professora num gosta. Agora, que tá tudo cheio é pió ainda. Nós
passa na vazante e móia tudo”.

Dirigiram-se às moitas espalhadas em volta da


porteira e trocaram as roupas molhadas pelos uniformes branco
amarelos, cores do governo municipal.
Assim que o ônibus chegou, o grupo se dividiu.
Os que iam em direção à Cáceres (estudam em uma escola da

306 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
cidade) ficaram na estrada a espera de outra condução, e os
outros (que estudam em escola da zona rural) entraram no
ônibus comigo. No caminho – um percurso de aproximadamente
50 quilômetros – cantamos, conversamos, brincamos. Passada a
euforia, ocasionada, talvez, pela minha presença no ônibus, todos
se aquietaram nas poltronas. Silenciaram, quando perguntei à
Duda se gostava de estudar nessa escola. Ela respondeu:

“ah, tia, até que é bom porque os professorsão bom, a escola é boa
e a merenda tamém. Mas eu num gosto é de tê que i de ônibus.
Nóis anda todo dia um caminho bem bom prá pegá o ônibus, nóis
brinca de pega-pega, nóis sobe nas árvore, nóis esconde do otro,
aí eles fica preocupado e, quando nós volta da escola, dá até pra
tomá banho na vazante”.

Interrompi, perguntando:

“mas, por que, não gosta do ônibus?”

E ela respondeu:

“num tá veno tia, aqui é meio triste, tem que ficá meia hora sem
fazê nada, veno o tempo passá. Mas, quando estraga o ônibus e
nóis tem que descê, aí é legal”.

Essa fala de Duda me levou a reportar à ideia que


Manoel de Barros (BARROS, 2003, XII) traz de sua experiência
com a estrada:

[...] Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e


bichos. [...] Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu
também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem
cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se
deve comportar na solidão. Eu falo: deixe, deixe meu amor, tudo
vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando
Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe
meu amor.

9 junqueira&marin editores 9 307


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
A estrada que Duda percorre no ônibus que corre
sobre o asfalto em direção à escola é lisa, cinza e reta. Trata-se da
rodovia (BR070), que liga o município de Cáceres a San Matias,
na Bolívia. A escola localiza-se no meio do caminho. Manoel de
Barros também saía do Pantanal em direção ao internato. Talvez
a estrada do poema seja a estrada que o menino Manoel percorria
ao sair de casa e, Carlitos seja a linha que liga dois mundos: o
pantaneiro e o escolar. Mas Carlitos ia desaparecendo no fim da
estrada carente de pessoas e bichos. Duda ia aquietando-se na
estrada e torcendo para que algum acontecimento a desviasse
de seu fim. No entanto, o ônibus não quebrava todos os dias e o
fim, ao certo, chegava. Duda ia à escola.
A estrada de Duda e de Manoel de Barros, carente de
pessoas e bichos, difere dos trajetos que as crianças traçam em
seu cotidiano. As crianças da Campina, em particular, exploram
o meio de maneira intensa e traçam os mapas correspondentes
a esse percurso todos os dias. Segundo Deleuze (1997, p. 73),
“os mapas dos trajetos são essenciais à atividade psíquica”.
No meio onde o trajeto é percorrido estão as qualidades,
substâncias, potências e acontecimentos. Podemos citar, como
exemplo, a realidade das crianças da Campina⁵⁴: o bugiu que
urra no amanhecer e cede espaço para as brincadeiras nos
cipós, a figueira caída onde se constrói casinhas de brinquedo,
o sol pela metade que mede o tempo de Ana, o mastro da santa
da reza de Nossa Senhora Aparecida. Os trajetos percorridos
cotidianamente pelas crianças se confundem com elas e são, ao
mesmo tempo, alterados a todo instante. Deleuze (1997, p. 73)
prossegue:

O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que


percorrem um meio mas com a subjetividade do próprio meio,
uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa
exprime a identidade entre o percurso e o percorrido.

Duda traçou o mapa do trajeto que percorre para


chegar ao ponto onde pega o ônibus para ir à escola. Repetindo:

308 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
“[...] nóis brinca de pega-pega, nóis sobe nas árvore, nóis esconde
do oitro, aí eles fica preocupado e, quando nós volta da escola, dá
até pra tomá banho na vazante”.

No entanto, quando pegam o ônibus, dá a impressão


de que o trajeto dá lugar à estrada, e o mapa dá lugar ao
decalque. Vale parar. Mapa ou decalque? Estrada ou trajeto?
Essas questões são fundamentais para compreender a “alma” da
criança da Campina que vai à escola. As crianças da Campina
fazem rizoma com o seu mundo, aumentam seus territórios por
desterritorializações constantes, criam linhas de fuga, alongam
nas, esticam até quebrar e, desse rompimento, criam novos
rizomas. Em seus trajetos na Campina correm, caem, levantam,
nadam, brigam, trepam, constituem-se, montam seus mapas
e asseguram a desterritorialização do Pantanal. Asseguram a
desterritorialização do Pantanal? É isso mesmo. No momento
em que o Pantanal entra na alma daquelas crianças, ele é
desterritorializado. Assim, o real e o imaginário passam a ser
vistos como duas partes de uma mesma trajetória, duas faces
que não param de se intercambiar. Segundo Deleuze (1997, p.
75), “o imaginário é uma imagem virtual que se cola ao objeto
real, e inversamente, para constituir um cristal de inconsciente”.
Como dissemos acima, o mapa, entendido aqui como o cristal
do inconsciente, opõe-se ao decalque. O mapa “acontecimento
pantanal” é o cristal de inconsciente das crianças da Campina. O
rizoma é mapa e não decalque. Se o mapa se opõe ao decalque
é porque, segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 22), está
inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no
real.

O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele


mesmo, ele o constrói [...] ele faz parte do rizoma. O mapa é
aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável,
reversível, suscetível de receber modificações constantemente.

9 junqueira&marin editores 9 309


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
O mais importante no mapa, ou no rizoma, é que ele
tem múltiplas entradas, assim como o labirinto em que vivem
as crianças, o Pantanal, a Campina. O trajeto do retorno da
escola, com a possibilidade de tomar banho na vazante, de subir
na árvore e até de cair e se machucar, com a possibilidade de
encontrar uma onça pintada – esse é o maior desejo das crianças
–, de cutucar um jacaré ou de puxar o rabo da sucuri que passeia
pelas vazantes do pantanal, múltiplas entradas no mapa, no
rizoma, no inconsciente da criança da Campina.
O contrário do mapa, do rizoma, é o decalque. O
decalque, assim como a estrada de Manoel de Barros e de Duda,
volta sempre “ao mesmo”. A multiplicidade inexiste aí. Entrar
no ônibus para ir à escola requeria das crianças uma mudança
de roupa no corpo e na alma. Colocar o uniforme, esperar a sua
vez de entrar no ônibus, sentar-se em seus lugares, conversar
com o colega e, às vezes, fazer a tarefa que não havia, por falta
de tempo, terminado; às vezes, ainda, dormir até chegar à
escola. Tudo volta “ao mesmo” todos os dias no ônibus. Deleuze
e Guattari relacionam o decalque à tarefa da psicanálise “que
achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma
estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos
decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes
nesta estrutura” (1995, p. 22). Os franceses relacionam essa
análise à tarefa, também, da linguística. Podemos relacioná-la à
Educação, à Escola? Decalque ou mapa? Estrada ou trajeto? Aonde
chegar através do ônibus que conduz à escola? Aonde chegar através
da escola?

Escola, Multiplicidade, Desejo: uma relação possível?

Durante o acompanhamento das crianças da


Campina na escola, vivenciei um momento em que o professor
de ciências da terceira série do Ensino Fundamental disse que
daria continuidade ao conteúdo trabalhado na aula anterior,

310 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
sobre “Árvores e o Meio Ambiente”. Solicitou às crianças que
desenhassem a árvore da sua vida e escrevessem um texto sobre
ela. No final da aula, o professor recebeu as atividades, avaliou,
selecionou e me disse:

“olha professora, meus alunos até que estão bem de Ciências. A


maioria foi bem. Separei aqui para você ver. A maioria soube
escrever tudo sobre a árvore além de desenhar suas partes e
os efeitos da fotossíntese. Só alguns não entenderam a nossa
proposta e não conseguiram alcançar o nosso objetivo, aliás,
acho que não entenderam o conteúdo da aula passada”.

Com o material em mãos, em um primeiro contato,


percebi que o professor valorizou os decalques, os saberes
disciplinares que foram representados pelos alunos, em
detrimento aos mapas. Valorizou as cópias dos livros didáticos
que trazem as partes da árvore – em forma de “pom-pom” – em
detrimento às árvores da vida, que algumas crianças criaram.
Selecionei duas imagens criadas pelas crianças para prosseguir
a análise.

Imagem 1⁵⁵:

9 junqueira&marin editores 9 311


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
Imagem 2⁵⁶:

A imagem 1, pertencente ao grupo que o professor


selecionou como sendo boa, coerente com o conteúdo
de Ciências estudado em momentos anteriores, pode ser
relacionada à concepção disciplinar de currículo, que Deleuze
chama de decalque. Nessa concepção, considerada por Deleuze
como arqueológica, o inconsciente é profundamente vinculado
à memória – subjetividade cartesiana; “é uma concepção
memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre
pessoas e objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de
conservá-los, identificá-los, autentificá-los” (DELEUZE, 1997,
p.75). O objeto real (no caso, a árvore) evocou uma imagem
semelhante à guardada na memória. A árvore desenhada, com
suasestratificações, perde a força de se verificar no real. A árvore
decalque sucumbe o mapa a uma imagem no inconsciente.
Organiza, estabiliza, neutraliza as multiplicidades segundo eixos
de significância e de subjetivação que são seus (DELEUZE, 1995).
Quebra o rizoma, “limpa” o mapa e o coloca em um “bom lugar”.
Um lugar que bloqueia qualquer saída que não seja a volta ao
mesmo. Deleuze (1995, p. 23) prossegue: “deixarão que vocês
vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída”.

312 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
Vale, aqui, um destaque para compreender como
a maneira hegemônica de conceber a criança e a infância foi
sendo constituída no decorrer da história, enfatizando o papel
da disciplinaralização dos saberes e do corpo como mecanismo
imprescindível para que a alma infantil alcançasse a plenitude
da dominação. Reportamo-nos ao pensamento de Rousseau,
no século XVIII, que recomenda ao mestre: “A pobre criança
que não sabe nada, que não pode nada, que não conhece nada,
não está à vossa mercê?”, e prossegue, “sem dúvida não deve
fazer senão o que quer; mas não deve querer senão o que
quiserdes que ela faça; não deve dar um passo que não tenhais
previsto; não deve abrir a boca sem que saibais o que vai dizer”
(1995, p. 114). A árvore-decalque, representada na Imagem 1,
permitiu à criança falar. Falar que língua? A língua universal, a
língua disciplinada, esquadrinhada, ordenada. Falar a língua da
experiência individual (Erlebnis). Falar a língua do livro didático.
Falar a língua que o professor e Rousseau gostariam de ouvir.
O desenho trazido na imagem 2 foi selecionado
dentre aqueles que estavam caracterizados como não corretos
pelo professor. Deveria ser refeito para alcançar o objetivo da
aula. Não é por acaso que o trouxemos aqui. Trata-se do pé de
laranjinha e seu entorno desenhado por Alaor, uma das crianças
da Campina. O desenho e o texto feitos por Alaor apresentam-se,
a meu ver, como mapa, aquele que se opõe ao decalque na visão
de Deleuze. A essa concepção risomática, o filósofo dá o nome de
cartográfica, que se opõe à concepção arqueológica, disciplinar
de que falamos anteriormente. Na imagem 2, o imaginário pode
ser comparado à imagem virtual do real que se desprendeu, que
se desterritorializou em Alaor. Ele desenhou aquilo que sentia
como a árvore da sua vida. A visão trazida por Alaor se traduz
na duplicação, no desdobramento, na coalescência do real e do
imaginário.

Não basta que o objeto real, que a paisagem real evoque


imagens semelhantes ou vizinhas; é preciso que ele desprenda

9 junqueira&marin editores 9 313


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
sua própria imagem virtual ao mesmo tempo que esta, como
paisagem imaginária, se introduza no real segundo um circuito
em que cada um dos dois termos persegue o outro, intercambie
se com o outro (DELEUZE, 1997, p.75).

Percebemos, na Imagem 2, que Alaor perseguiu


a árvore da sua vida. Essa se desterritorializou nele. A árvore,
que está em um ambiente ensolarado, é sombra para as crianças
brincarem, é a casa dos pássaros que comem seu fruto, é
produtora de isca para pegar peraputanga, apresenta entradas
e saídas por todos os lados. Um mapa se cruza com outro. Da
árvore ao areal, ao rio, às casas das crianças, ao pássaro em seu
galho, ao peixe. Deleuze e Guattari (1995, p. 22) prosseguem,
dizendo: “O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre
ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos
campos [...]”.
A pergunta que Deleuze e Guattari (1995, p. 22)
fazem é fundamental para o propósito deste texto: “Entretanto
será que nós não restauramos um simples dualismo opondo os
mapas aos decalques, como um bom e um mau lado?”. Peguei
me, muitas vezes, refletindo essa questão antes de ter acesso
a esse texto. E esses filósofos me ajudaram a compreender tal
impasse. A questão, na realidade, que devemos analisar é outra.
Nada de certo ou errado. O importante é que educadoras e
educadores percebam que as crianças chegam à escola com seus
trajetos traçados, com experiência, multiplicidade, ancoradas
no mundo real. O conhecimento disciplinar, que trouxemos aqui
como decalque, já traduziu o mapa em imagem, já o organizou,
estabilizou, neutralizou as multiplicidades. Por isso, segundo os
autores (1995, p. 23), ele é tão perigoso. “Ele injeta redundâncias
e as propaga”. Se voltarmos novamente à imagem 1 desenhada
na escola, veremos que o que sobressai são as classificações que,
talvez, não façam sentido na vida cotidiana daquela criança. E o
desejo?
Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo
nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo
se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore

314 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
acontecem quedas internas que o fazem declinar e o conduzem
à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões
exteriores e produtivas (1995, p. 23).

O professor avaliou as atividades da aula de Ciências


segundo a perspectiva disciplinar. Quebrou o rizoma da criança
da Campina. Não permitiu ao desejo a possibilidade de se
expressar. Que quedas pode ter produzido naquela criança?

Considerações Finais

Percebemos, assim, que as forças do Pantanal,


dobradas na alma das crianças da Campina convivem com
outras forças que querem transformá-las, discipliná-las, inseri
las no mundo e no modo de produção capitalístico. As crianças
que vivem esse mundo bruto do desejo, que vivem o mundo de
energia, pulsão, instinto, são puxadas pelas forças que querem
ordenar essa “desordem”. Guattari (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p. 259), compondo a Cartografia do desejo, diz que voltamos
sempre à mesma ideia: “opor, necessariamente, a esse mundo
bruto do desejo um universo de ordem social, um universo
de razão, de julgamento, de ego, etc”. O desejo, esse algo meio
nebuloso, que nada tem a ver com falta, mas sim, com produção,
com algo que provoca movimento, que produz, precisa passar
pelas malhas de algum tipo de organização para ser disciplinado.
Segundo Guattari (2005), uma concepção dominante sobre
desejo bastante nefasta impera em nossa sociedade. Nela, o
desejo é concebido como um “fluxo que terá de ser disciplinado”.
Vimos, anteriormente, o conhecimento disciplinar afetando os
corpos e as mentes no sentido de discipliná-los. Mas, disciplinar
o quê? Na concepção de Guattari, disciplinar os desejos. E ele
prossegue:
Uma criança, por menor que seja, vive sua relação com o
mundo e sua relação com os outros de um modo extremamente
produtor e criativo. É a modelização de suas semióticas
através da escola que a conduz a uma espécie de processo de
indiferenciação (2005, p. 162).

9 junqueira&marin editores 9 315


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Por meio da escola, a criança é inserida em um
mecanismo de economia desejante, a criança é inserida na
máquina de produção da individualidade, da identidade. A
identidade “é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes
maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência
identificável” (id., p. 80); “a individualidade é o efeito da
alienação dos processos de singularização” (id., p. 165). A escola
é entendida por ele como um equipamento coletivo que exerce
a função de operária na máquina de formação da subjetividade
capitalística. Essa subjetividade capitalística produz uma nova
conduta, um novo modo para as relações humanas. Dita as
normas de como trabalhar, como ser ensinado, como amar, como
brincar, como mover, como falar...

Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os


fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com
o presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica
a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos
tudo isso porque partimos do pressuposto de que esta é “a”
ordem do mundo, ordem que não pode ser trocada sem que
se comprometa a própria idéia de vida social organizada
(GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 51).

O conhecimento, aqui, é esvaziado de singularidade.


A produção de subjetividade capitalística tem como propósito
eliminar os processos de singularização. A árvore da vida
valorizada pelo professor foi aquela esquadrinhada pela
disciplina saber. “Tudo o que surpreende, ainda que levemente,
deve ser classificável em alguma zona de enquadramento, de
referenciação” (id., p. 52). E Guattari prossegue dizendo que
os professores (não somente eles, mas também os meios de
comunicação de massa) são muito dotados para esse tipo de
prática. A escola trabalha incansavelmente para assegurar esse
processo de subjetivação capitalístico.
Não temos como viver fora dessas amarras da
relação saber/poder, das amarras da disciplinaridade, das

316 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
amarras do processo de subjetivação capitalístico? Esta pesquisa
teve o propósito de mostrar que sim. As crianças, em geral, e
as crianças da Campina, em particular, são a prova de que não
estamos mergulhados em uma espécie de fatalidade. No entanto,
nós, educadoras e educadores, precisamos nos dar conta de que
estamos trabalhando nessa maquinaria que tem por intenção
produzir a subjetividade capitalística, mas que também pode
produzir algo novo, que quebre, que rompa com o decalque que
nos constitui. Podemos deixar a máscara cair, desviar, arriscar,
tentar, “criar condições para a produção de um novo tipo de
subjetividade, que se singulariza e que encontra as vias de
sua especificação” (id, p. 58). Nós, educadoras e educadores,
trabalhamos para o bom funcionamento dessa maquinaria que
aniquila com a singularização. Que continuemos trabalhando
nela, sabendo que somos produtores de subjetividades.
Que produzamos um outro tipo de abordagem no processo
educacional, capaz de preservar “toda a riqueza de sensibilidade
e de expressão própria da criança” (id., p. 64).
Propomos, então, que tentemos um processo
de singularização no contexto educacional. Pensamos que
um grande exemplo desse processo de singularização, nesta
pesquisa, seja a poesia de Manoel de Barros. Animando as
pedras do seu quintal, o poeta desencadeia uma nova e dinâmica
maneira de ouvir. Segundo Guattari (2005, p. 65),

Um processo de singularização da subjetividade pode


ganhar imensa importância, exatamente como um grande
poeta, um grande músico, um grande pintor, que, com suas
visões singulares da escrita, da música ou da pintura, podem
desencadear uma mutação nos sistemas coletivos de escuta e
de visão.

O poeta desencadeiaaquilo que requerGuattari: uma


nova cartografia do desejo. Manoel de Barros, com sua poesia,
apresenta o seu devir-criança, os seus atravessamentos. E mais,

9 junqueira&marin editores 9 317


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
sua poesia apresenta seu devir-impessoal, seu acontecimento,
seu agenciamento, sua imanência com a vida, mesmo depois de
passar pelo processo de subjetivação capitalístico. Vale citar o
próprio Manoel de Barros (2003, s/p) para compreender o que
é fazer essa cartografia do desejo.

[...] Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para


catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu
fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata
era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido igual a um
filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas.
De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais
comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente
fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho
e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua
árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão
comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o
escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu
falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter
sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da
natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era
o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.

Nós, enquanto educadoras e educadores, podemos


iniciar um processo de desencadeamento dessa cartografia,
desse mundo de comunhão, sem comparamentos, ou nos
contentar em podar os desejos, reproduzir decalques, atribuir
identidades. Nossa função, enquanto produtores de cartografias,
deve permitir

captar todos os impulsos de desejo, todas as inteligências, não


para fazê-las convergir num mesmo ponto central arborescente,
mas para dispô-las num imenso rizoma, que atravessará todas
as problemáticas sociais, tanto em nível local, regional, quanto
em nível nacional e internacional (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p. 203).

318 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar CAPÍTULO XIII
Assim, a subjetividade singular da criança da
Campina, atravessada pelo Pantanal, terá eco em todos os
lugares por onde passar, inclusive na escola. 3

Referências

BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. 12 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

____________. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Planeta do


Brasil, 2006a.

____________. Concerto a céu aberto: para solos de ave. 4 ed. Rio de janeiro:
Record, 2004.

____________. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.

____________. O livro das pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no


Pantanal. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

____________.Compêndio para uso dos pássaros. 3 ed. Rio de janeiro: Record, 1999.

____________. Arranjos para assobio. 2 ed. Rio de Janeiro, Record, 1998.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. 6 ed. São
Paulo: Brasiliense, 1993.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense,
1994.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Ed.
34, 1992.

____________. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado.


Rio de Janeiro: Graal, 2006.

9 junqueira&marin editores 9 319


CAPÍTULO XIII PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
____________. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Ed. 34,
1997.

DELEUZE, Gilles. & PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo


Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

O Abecedário Gilles Deleuze. Entrevista concedida por Deleuze a Parnet em


1988. Disponível em: <www.oestrangeiro.net>. Acesso em: 20 de julho de
2007.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v.


1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995.

____________. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Tradução de Aurélio


Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São
Paulo: Ed.34, 1996.

____________. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Tradução de Suely


Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.

GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 7 ed.


Petrópolis: Vozes, 2005.

MALDONADO, Maritza Maciel Castrillon. Espaço Pantaneiro: cenário de


subjetivação da criança ribeirinha. Tese de Doutorado. Universidade Federal
Fluminense, Niterói-RJ, 2009.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1995.

320 9 junqueira&marin editores 9


U NOTAS V

¹ Professora do Departamento de Estudos Especializados em


Educação do Centro de Ciências da Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutora em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
2 Professora do Departamento de Estudos Especializados em
Educação do Centro de Ciências da Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutora em Educação
pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Pós
doutoramento na Universidade de Nottingham.

3 Professora do Departamento de Estudos Especializados em


Educação do Centro de Ciências da Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutora em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
4Tese desenvolvida no projeto de pesquisa Profissionalização e
gerencialismo na educação, realizado de 2004 a 2007, com apoio
do CNPq.

9 junqueira&marin editores 9 321


NOTAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
5Segundo as autoras, o Relatório EFA 2000, publicado pelo INEP
(1999), determinou que, na década seguinte à de 1990, pelo
menos 50% dos diretores deveria receber formação em gestão.

6Tese desenvolvida no projeto A linguagem da reforma:


metodologia para análise conceitual de documentos, realizado
de 2002 a 2004, com apoio do CNPq.

7 Convém destacar que entidades representativas dos


educadores lutaram por uma formação universitária para
todos os professores, indicando a necessária solidez do preparo
docente em que teoria e prática estão articuladas.

8Nesse artigo, Shiroma (2003) analisa a política educacional de


outros países corroborando sua hipótese da desintelectualização
docente.

9 Tese desenvolvida no âmbito do projeto integrado Do global


ao local: redes sociais, reforma educativa e gestão do trabalho
docente, coordenado por Eneida Oto Shiroma no período de
2007 a 2010 e verticalizada na dissertação de Mara Cristina
Schneider intitulada Certificação de professores: contradições de
uma política, defendida em 2009, no PPGE/UFSC, com apoio do
CNPq.

10Tese desenvolvida no projeto Almas em disputa: reconversão


do docente pela ressignificação da educação realizado de 2007
a 2010, com apoio do CNPq. Alguns autores, como Esteves
(2002), Aguerróndo (2002) e Bolívar, Gallego, León e Pérez
(2005), desenvolvem análises sobre a reconversão do trabalho
docente em outros países, ressalvando-se as diferenças entre
suas abordagens.

11Segundo a autora (CAMPOS, 2008, p. 15), “Professores de


pré-escola tendem a ter salários e formação mais elevados do
que aqueles das creches, o mesmo ocorrendo com relação ao
trabalho pedagógico – valoriza-se aquele mais próximo do
modelo escolar, ao passo que o trabalho com os “pequenos”, mais
próximos das funções familiares de cuidado e higiene, tendem a
ser menos valorizados.”

322 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar NOTAS
12 “Por não pertencerem aos quadros do magistério, as
auxiliares de classe não se beneficiam dos direitos atribuídos
aos professores – os salários são inferiores ainda que tenham o
mesmo nível de formação, não gozam dos direitos da carreira do
magistério, têm carga horária mais elevada do que os mesmos
e, embora partilhem as atividades pedagógicas, não dispõem de
hora/atividade para planejamento ou avaliação das atividades
que desenvolvem. Também não aparecem nas estatísticas
oficiais, posto que estas registram apenas as funções docentes
declaradas.” (CAMPOS, 2008, p. 16).

13 Levantamento feito nos sites das universidades federais.

14Trata-se da pesquisa A reorganização de redes municipais de


ensino na perspectiva da educação inclusiva em Santa Catarina:
formas organizativas do trabalho pedagógico e formação de
professores, desenvolvida juntamente coma Profa. Dra. Rosalba
Maria Cardoso Garcia, entre os anos de 2006 – 2008 e que contou
com financiamento da FAPESC.

15As publicações do GEPETO versam sobre Educação Infantil,


Educação Especial, Educação Indígena e multiculturalismo,
Educação profissional, Formação de professores a distância,
gestão, avaliação, certificação, redes de políticas públicas,
parceria público-privado na educação, entre outros temas e
podem ser acessados na página <www.gepeto.ced.ufsc.br>.

16Baseando-se em dados apresentados em 1997 pela


OECD, Feijó e Carvalho (1999) esclarecem que, no Japão, a taxa
de desemprego entre 1990 a 1992 era de 2,1%, a qual aumentou
gradativamente para 2,5% em 1993, 2,9% em 1994, 3,1% em
1995 e 3,3% em 1996. O crescimento prosseguiu ao longo dos
anos seguintes e, em 1998, segundo Demazière et al (2000), a
taxa de desemprego no Japão já havia chegado a 4,5%. É a este
período que o presente trabalho se refere, dando a entender que
o movimento de fixação dos trabalhadores brasileiros no Japão
inicia quando os índices de desemprego começam a subir. A

9 junqueira&marin editores 9 323


NOTAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
partir de 2003, quando a taxa de desemprego havia alcançado o
patamar de 5,4%, conforme dados da CIA World Factbook (2008)
publicados pela IndexMundi, esta começou a decair chegando a
5,3% em 2004, 4,7% em 2005, 4,4% em 2006, 4,1% em 2007,
estacionando em torno de 4% no mês de maio de 2008. Nesta
fase, verifica-se no país certa estabilidade econômica e, por
conseguinte, no mercado de trabalho. Porém, com a crise dos
Estados Unidos em meados de 2008, os índices começaram a
se elevar novamente chegando a 4,4% em dezembro (cf. Gazeta
Mercantil, de 30 de janeiro de 2009), e a um total de 2,7 milhões
de pessoas desempregadas (cf. Último Segundo, de 30 de janeiro
de 2009), dando início a um novo movimento migratório de
retorno em massa de trabalhadores brasileiros e de suas famílias
ao Brasil.

17CED/UFSC. Agência financiadora: CNPq

18 Não nos é possível, no âmbito deste trabalho, discutirmos as

motivações políticas que levam os governos nacionais a priorizar


o atendimento não formal na Educação Infantil, podemos
destacar aspectos relacionados com a própria constituição
histórica do atendimento às crianças pequenas e sua relação
com a filantropia, o baixo custo desses programas, entre outros.

19De acordo com a Lei 9.394/96, art. 18. Os sistemas municipais


de ensino compreendem:

I – as instituições do Ensino Fundamental, Médio e


de Educação Infantil mantidas pelo Poder Público
municipal;
II – as instituições de Educação Infantil criadas e mantidas
pela iniciativa privada;
III – os órgãos municipais de educação.

20Para compreendermos estes processos de regulação


constituídos por uma multiplicidade de estratégias convergentes
e divergentes entre os diversos atores de um sistema, valemo
nos do conceito de hibridação proposto por Barroso (2002).

324 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar NOTAS
21 Manteremos apenas as duas grandes classificações –
instituições públicas e privadas, mesmo sabendo que essa última
categoria agrega uma multiplicidade de tipos institucionais.

22De acordo com a Lei 11.424, de 20/6/2007, que regulamenta


o Fundeb, somente poderão se beneficiar do financiamento
público as pré-escolas cadastradas no censo escolar até 2006,
e poderão receber recursos por um período de até quatro anos
após a implementação da Lei, findo o qual, os municípios deverão
incorporar essas matrículas em seu sistema. Já com relação às
matrículas das creches, não há limite temporal para a inclusão
de novas instituições conveniadas no censo escolar, do mesmo
modo que as matrículas passam a ser contabilizadas ao longo
dos 14 anos de existência previstos para o Fundo.

23Utopística é o exame sério de alternativas históricas em


termos de um juízo sobre a racionalidade material dos possíveis
sistemas históricos alternativos (Freitas, 2005a, p.41).

²⁴ Conforme Boaventura de Souza Santos em A crítica da razão


indolente, 2000.

25 O presente artigo constitui versão modificada de trabalho

apresentado na 32ª Reunião Anual, ANPED, 2009.

26 Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena


Infância. Agência financiadora: CNPq.

27Ver Pimenta (1994).

28 A Década da Educação, citada no artigo 87, diz respeito ao

período marcado entre 1997 e 2007, durante o qual políticas


de formação profissional para educação básica deveriam prever
a formação dos professores em nível superior (KISHIMOTO,
1999).

9 junqueira&marin editores 9 325


NOTAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
29Sobre este aspecto ver Kulhmann (1998), Kramer (1994),
Campos (1999).

30ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais


da Educação); FORUMDIR (Fórum de Diretores das Faculdades
de Educação das Universidades das Universidades Públicas do
País), entre outras associações.

31Foi estabelecido esse recorte temporal (2005) por estarmos


vivendo um processo de mudança das Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Pedagogia, aprovado em 13/12/2005
e que deve prevalecer nos próximos anos.

32Valea pena dizer que as informações que utilizamos nesta


pesquisa são restritas àquelas que se encontravam nas referidas
páginas eletrônicas.
33As ementas foram utilizadas como componente auxiliar para
a compreensão e categorização do conjunto disciplinar que
constituem os currículos analisados.

34 O período de coleta de dados foi de julho a dezembro de 2005.


35 Ver Scheibe e Aguiar (1999).

36A Coordenação de Educação Infantil (COEDI/MEC) publicou,


entre 1994/1996, uma série de 5 fascículos a que denominou de
“Política Nacional de Educação Infantil”, sob a coordenação geral
de Ângela Maria Rabelo F. Barreto.

37Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em


Educação.
38 Sobre esse tema, veja Tonet (2005).

39 Confira Manacorda (1997); Ponce (1989).

40Há tambémcríticassobrealegitimidadedoqueseconvencionou
chamar de “conhecimento científico”. Apesar de instigantes, não
será possível abordar tais críticas nesse artigo.

326 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar NOTAS
41 Tendência entendida no sentido enfatizado por Lukács
(1979, p. 64): “[...] tendencialidade enquanto forma fenomênica
necessária de uma lei na totalidade concreta do ser social, é
diante de complexos
conseqüência inevitávelreais
do que de que nosdeencontramos
fatointeragem modo complexo,
aqui
frequentemente passando por amplas mediações, com outros
complexos reais; a leitem caráter tendencial porque sua própria
essência, é resultado desse movimento dinâmico-contraditório
entre complexos”. Logo, entende-se que, se no “governo Lula”
realmente um
e dos profissionais
houvesse da movimento
educação, este seria um da
de valorização movimento
educação
contra-hegemônico em relação à tendência geral decorrente do
acirramento das contradições do capital. Contudo, constituir-se
ia num movimento específico e datado no tempo histórico que
não superaria as leis complexas e contraditórias do capital, não
invalidando a tendência constatada.

42A classe trabalhadora, segundo Warde (1984), é vista como


perigosa pela classe dominante sua adversária, a qual teme
perder o poder político e econômico.

Esse filme foi exibido no Brasil com o título: “Entre muros da


escola”.
43

44 Este artigo foi originalmente apresentado na 32ª Reunião


Anual da Anped em Caxambu (MG), em 2009, sob o título:
Cultura escolar: prescrevendo regras de bom comportamento.

45 De acordo com Durand (1997), o “trajeto antropológico” é


a troca incessante que existe, ao nível do imaginário, entre as
pulsões subjetivas do indivíduo e as intimações do meio cósmico
e social.

46 Consideramos 6 anos pelo fato de que, até a promulgação da


etária,de
Lei 11.274
faixa somente
2005, aaEducação
partir desta
Infantil
Lei atendia criançasdedessa
é que crianças
seis
anos são inclusas no Ensino Fundamental.

47 Este estudo contou com a participação de Keili Cristina da


S. Pereira, Danielli dos Santos Carvalho e Raquel de Araujo
Pedagogia
Silva, da UNEMAT/Cáceres.
bolsistas de iniciação científica e acadêmicas do Curso de

9 junqueira&marin editores 9 327


NOTAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
48Esta pesquisa foi realizada com financiamento da FAPEMAT,
com contrapartida da UNEMAT.

49 Agradecimentos ao CNPq pelo auxílio à pesquisa (Proc. n.


473591/2006-5) e à direção da escola assim como às professoras
participantes.

50Texto apresentado no IV Colóquio Internacional de Políticas


e Práticas Curriculares: Diferença nas Políticas de Currículo.
Universidade Federal da Paraíba, Nov. 2009.
51 Trocadilho com a Poesia de Manoel de Barros O apanhador
de desperdícios: “Uso as palavras para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras, fatigadas de informar. Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo
bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo
a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em
mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de
passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal
é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz
tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus
silêncios” (Barros, 2003: IX).

52 A experiência coletiva, neste texto, é concebida como


Erfahrung, alegoria (ou categoria) estudada por Walter Benjamin
(1993;1994) que traz como princípio a narrativa enquanto
tradição compartilhada, marcada pela continuidade de uma
palavra transmitida de pai para filho, típicas das sociedades
artesanais, que se contrapõe às experiências individuais,
Erlebinis, típicas das sociedades modernas.

53 É possível chegar à Campina pelo rio e pela Rodovia. Pela


BR 070 – que liga o Brasil à Bolívia – partindo de Cáceres-MT,
atravessa-se a ponte Marechal Rondon, que cruza as margens
do rio Paraguai, percorre-se 5 km e, à margem direita da
rodovia, encontra-se a fazenda Campina. Passando pela porteira
principal, a aproximadamente 500 m de distância, andando por
um pasto de humidícula plantado de maneira regular e plana,
sem árvores ou arbustos, chega-se à sede. Passando por ela,
sempre à frente, em direção ao rio, há um corredor em meio a

328 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar NOTAS
uma cordilheira, aberto com máquina de esteira, onde o pasto
é também plantado. Em seguida, avista-se uma vazante que, na
época da cheia, impossibilita o acesso de carro. Após a vazante,
deuma
a trilha, em
umadistância de 1
uma
km,mata
aproximadamente,
que dá acessoadentra-se,
à localidade
através
onde
vive aquela comunidade. Em seguida, um clarão torna visíveis as
casas das famílias que ali vivem, bem como aquela cobra de vidro
– o rio Paraguai – que acompanha o grande quintal, cenário das
meninices, criancices, infantilices que faz com que as crianças
significantes instituídos
ultrapassem as marcas,eoscriem
sinais, os signos, às
metamorfoses osmetáforas os
símbolos,dos
conceitos dominantes, como os de Manoel de Barros: “ver com
o ouvido”, “escutar com a boca”, “escrever com o corpo”. A outra
maneira de chegar à Campina é pelo rio Paraguai – “empeixado
e cor de chumbo, o rio Paraguai flui entre árvores com sono...”
(Barros, 2002, p. 15). O porto localiza-se rio Paraguai acima,
partindo da cidade de Cáceres, aproximadamente a 30 minutos
de barco, motor 15 HP. No sentido Cáceres-Campina, localiza-se à
margem direita do rio, o lado por onde o leito passa. Da barranca
da
período
Campina,
da seca,
avista-se,
estava margeada
na outrapor praia deuma
margem, areiailha
finaque,
e clara.
no
Contrasta essa paisagem com o verde da vegetação pantaneira,
com os roxos, amarelos-ouro e rosas dos Ipês que florescem na
primavera. É possível enxergar da barranca da Campina até a
curva onde o rio se esconde, com águas profundas, abundantes
e vagarosas.

54 Os exemplos citados são motivos de outros textos


apresentados em Maldonado (2009) que explicitam o processo
de desterritorialização do pantanal na alma das crianças
ribeirinhas.

aquela
55Transcrição dá frutos
que me do até vida 1:
texto -eImagem aliais
“A árvore
todas me
dadão
minha
vidavida
maisé
não é todas que me dá frutos como a: mangueira, bananeira,
morangueira, mamoeiro, coqueiro, cajueiro, jabuticabeira, ateira,
etc. bom e tem a quelas que dão só flores como a: roseira e etc. eu
acho que todo mundo gosta dela só que nós não tamo sabendo
cuidar dela como ela cuida da gente. Como todo mundo sabe a
árvore tem: tronco, raiz, galhos, flores, frutos, calles e etc. Como
eu amo as plantas as plantas elas respiram o gás carbono e soltam

9 junqueira&marin editores 9 329


NOTAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
o oxigênio. Nós todo mundo chamamos elas de pulmão do mundo
viu poriso eu digo eu adoro as plantas as plantas presinsam muito
da gente e sem elas aquelas lindas maravilhosas plantas agente
morre e não é só elas que precisam da gente mais o resto do
meio ambiente bom em tão eu acho que não é só eu que gosto da
natureza das arvores não so eu como todo mundo”.

56Transcrição do Texto – Imagem 2: “Otro dia eu ia pescá daí


eu xamei meu colega e nós peguemo umas um moite [monte] de
laranjinha daí nos peguemo uma pêra [peixe Peraputanga] e nós
comemo ela poriso eu acho que a arvou da minha vida é o pé di
laranjinha que tem lá em casa”.

330 9 junqueira&marin editores 9


U Sobre os autores V

Claricia Otto – Doutora em História pela Universidade Federal


de Santa Catarina. Professora do Departamento de Metodologia
de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
da Universidade Federal de Santa Catarina. Atua na área de
teoria e metodologia da História, História da Educação, campo
religioso e educação, memória e patrimônio, a História ensinada
nos primeiros anos de escolarização.

Elizeth Gonzaga dos Santos Lima – Doutora em Educação


pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Professora
da Universidade do Estado de Mato Grosso. Vem atuando e
pesquisando na área de Educação, com ênfase em Avaliação de
Sistemas, Instituições, Planos e Programas Educacionais.

Emília Darci de Souza Cuyabano – Doutora em Educação pela


Universidade de São Paulo (2005). Professora da Universidade
do Estado de Mato Grosso. Tem experiência na área de Educação,

9 junqueira&marin editores 9 331


AUTORES PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar s
com ênfase em Fundamentos da Educação e atua com temas
como: imaginário, cultura, educação.

Eneida Oto Shiroma – Doutora em Educação pela Unicamp e


realizou estudos pós-doutorais na Universidade de Nottingham.
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina. É
pesquisadora do CNPq e tem voltado seus estudos para
Política Educacional, especificamente aquelas referentes à
profissionalização, reforma educacional, gestão, educação
profissional e trabalho e educação.

Fabiana Muniz Mello Félix – Graduada em Pedagogia pela


Universidade do Estado de Mato Grosso; Cursa Pós-Graduação
Lato Sensu em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela
Faculdade de Tecnologia Equipe Darwin. Atua no ensino público
estadual do Município de Reserva do Cabaçal em Mato Grosso.

HeloisaSallesGentil–DoutoraemEducaçãopelaUniversidade
Federal do Rio Grande do Sul (2005). Professora da Universidade
do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Tem atualmente voltado
seus estudos para formação de professores, políticas públicas,
movimentos sociais e escola.

Ilma Ferreira Machado – Doutora em Educação pela


Universidade Estadual de Campinas (2003). Professor da
Universidade do Estado de Mato Grosso. Tem experiência na
área de Educação Básica e Superior, com ênfase em Didática
e Planejamento Educacional, atuando principalmente nos
seguintes temas: avaliação-ensino, avaliação processual -
organização escolar, educação do campo, educação coletiva e
educação dos trabalhadores rurais.

Irton Milanesi – Doutor em Educação pela Universidade


Estadual de Campinas (2004). Professor da Universidade do

332 9 junqueira&marin editores 9


s PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarAUTORES

Estado de Mato Grosso. A área de Planejamento e Avaliação


Educacional tem sido seu foco de estudos e pesquisas.

IzumiNozaki – Doutora pela Tsukuba Gakuin University, Japão


(2008). Professora da Universidade Federal de Mato Grosso e
coordenadora do Grupo de Pesquisa Sociologia da Linguagem e
Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em
Sociologia da Educação, principalmente em temas que envolvam
fracasso escolar, linguagem, migração e trabalho.

Maria Helena Michels – Doutora em Educação: História,


Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (2004). Professora da Universidade Federal de Santa
Catarina. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em
Política Educacional, atuando principalmente nos seguintes
temas: educação especial, formação de professores, inclusão,
educação e política educacional.

Maria Isabel Batista Serrão – Doutora em Educação pela


Universidade de São Paulo (2004) e desenvolveu estudos pós
doutorais na Universitat de Barcelona (2009). Professora da
Universidade Federal de Santa Catarina. Suas pesquisas versam
sobre Formação de Professores, Prática de Ensino, Atividade de
Aprendizagem, Estudantes de Pedagogia, Teoria da Atividade e
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Maria Izete de Oliveira – Doutora em Educação (Psicologia da


Educação- 2002) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso
e coordenadora do grupo de pesquisa em Educação Infantil
vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação
(NEPE/UNEMAT). Sua experiência de pesquisa tem enfatizado
a Educação Infantil, principalmente nos seguintes temas:
Educação Infantil, criança, aluno, professor, indisciplina, escola.

9 junqueira&marin editores 9 333


AUTORES PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolar
s
Mirian da Silva Marinho Moreira – Graduada em Pedagogia
pela Universidade do Estado de Mato Grosso; Especialista em
Educação Infantil e Séries Iniciais com ênfase em Alfabetização
pela Faculdade da Amazônia. Atua no ensino estadual na
educação de jovens e adultos no Município de Cáceres, em Mato
Grosso.

Maritza Maciel Castrillon Maldonado – Doutora em


Educação pela Universidade Federal Fluminense (2009).
Concluiu estágio sanduíche na Universidade Complutense de
Madrid, Espanha. Professora da Universidade do Estado de
Mato Grosso- UNEMAT. Seus estudos têm privilegiado a área de
Educação, com ênfase em Didática e Prática de Ensino, atuando
principalmente nos seguintes temas: interdisciplinaridade,
Educação Infantil, subjetivação, sujeito ribeirinho, educação
ambiental e currículo.

Moema Helena Koche de Albuquerque Kiehn – Doutoranda


em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina e Mestrado em Educação
nesta mesma universidade (2007). Suas pesquisas versam
sobre: infância, criança, Educação Infantil, educação e infância,
currículos, formação para professores de Educação Infantil.

Olinda Evangelista – Doutora em Educação: História, Política,


Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1997). Realizou Estudos Pós-doutorais na Universidade do
Minho, Portugal (2004). Professora da Universidade Federal
de Santa Catarina. Tem experiência na área de Educação, com
ênfase em Política da Educação, atuando principalmente nos
seguintes temas: política educacional, Curso de Pedagogia e
formação docente.

Rinalda Bezerra Carlos – Mestre em Educação pela


Universidade do Estado de Mato Grosso (UFMT). Possui

334 9 junqueira&marin editores 9


sPRÁTICAS PEDAGÓGICAS: política, currículo e espaço escolarAUTORES

experiência na área de Educação, com ênfase em Métodos e


Técnicas de Ensino, atuando principalmente nos seguintes
temas: representações sociais e cultura organizacional.

Roselane Fatima Campos – Doutora em Educação pela


Universidade Federal de Santa Catarina (2002). Professor
da Universidade Federal de Santa Catarina com pesquisas
principalmente sobre Política educacional, atuando
principalmente nos seguintes temas: políticas para a Educação
Infantil, reformas educacionais e formação de professores.

Solange Aparecida da Rosa – Mestre em Educação pela


Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Tem experiência
na área de Educação, com ênfase em Ensino Superior. Temas
de interesse: escola, ensino; aprendizagem e desenvolvimento
humano; formação escolar; psicologia da educação.

Sônia Regina Fiorim Enumo – Doutora em Psicologia


Experimental pelo Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo. Docente do Departamento de Psicologia Social
e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo; bolsista
de produtividade em pesquisa do CNPq.

Tatiane Lebre Dias – Doutora em Psicologia pela Universidade


Federal do Espírito Santo. Docente do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso. Professora
colaboradorano cursodeMestradoemEducação da Universidade
do Estado de Mato Grosso.

9 junqueira&marin editores 9 335

Você também pode gostar