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CYTHÈRE?

Fenômeno e acontecimento de corpo na clínica


da estabilização psicótica
FÁBIO PAES BARRETO*

Recibido: 20·06·2018 | Aceptado: 25·06·2018

ResumO

O artigo examina a suposição teórica acerca da relevância da participação de determinadas manifestações corporais
na estabilização psicótica. Na busca de uma delimitação dos estatutos do corpo conforme a psicose esteja estabilizada
ou desencadeada, o autor revisita importantes noções desenvolvidas durante o último ensino de Jacques Lacan, como
as de corpo falante, parlêtre, lalíngua e sinthoma, com especial ênfase para as distinções empreendidas por Jacques-
Alain Miller entre as noções de fenômeno de corpo e acontecimento de corpo. A partir da ilustração desse campo
problemático por meio de um fragmento de caso clínico de psicose ordinária, o autor tece, ao final, considerações
sobre a inscrição da anorexia, em sua condição de sinthoma, na estrutura topológica do parlêtre.

Palavras-chave

Acontecimento de corpo | Sinthoma | Psicose ordinária | Anorexia | Estabilização | Topologia

RESUMEN

El artículo examina la suposición teórica acerca de la relevancia de la participación de determinadas manifestaciones


corporales en la estabilización psicótica. En la búsqueda de una delimitación de los estatutos del cuerpo conforme
la psicosis esté estabilizada o desencadenada, el autor revisita importantes nociones desarrolladas durante la última
enseñanza de Jacques Lacan, como las de cuerpo hablante, parlêtre, sínthoma, lalengua, con especial énfasis en las
distinciones emprendidas por Jacques-Alain Miller entre las nociones de fenómeno de cuerpo y acontecimiento de
cuerpo. A partir de la ilustración de ese campo problemático por medio de un fragmento de caso clínico de psicosis
ordinaria, el autor teje, al final, consideraciones sobre la inscripción de la anorexia, en su condición de sinthoma, en la
estructura topológica del parlêtre.

PALABRAS CLAVE

Acontecimiento de cuerpo | Sínthoma | Psicosis ordinaria | Anorexia | Estabilización | Topología

abstract

The article examines the hypothesis about the relevance of the participation of certain body manifestations in
psychotic stabilization. In the search for a delimitation of the body’s statutes as the psychosis is stabilized or unchained,
the author revisits important notions developed during the last teaching of Jacques Lacan, such as those of Speaking
Body, parlêtre, sinthome, lalangue, with special emphasis on the distinctions made by Jacques-Alain Miller between
the notions of body phenomenon and body event. From the illustration of this problematic field by means of fragment
of a clinical case of ordinary psychosis, the author weaves, in the end, considerations on the inscription of anorexia, in
its condition of sinthome, in the topological structure of the parlêtre.

KEY WORDS

Body event | Sinthome | Ordinary psychosis | Anorexia | Stabilization | Topology

* Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul


fpbarreto@uol.com.br

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Introdução Desde os primórdios da psicanálise, o fenômeno


conversivo veio sendo amplamente estudado e
A clínica psicanalítica tem testemunhado, no dia- podemos afirmar que dele adveio a clássica noção
a-dia de sua prática, o surgimento, cada vez maior, do sintoma analítico. Assim, a conversão histérica
de manifestações que incidem, eminentemente, confirma a participação do corpo na formação do
no corpo dos analisantes (Barreto & Besset, 2012). sintoma, na condição deste último como solução de
Essas manifestações, não raramente, emergem compromisso, que aporta uma mensagem cifrada e
não somente no âmbito da própria análise, mas que está embutida no mecanismo de recalcamento
estão inseridas em uma diversidade de contextos das estruturas neuróticas, assim considerado por
da cultura de nossa contemporaneidade. Assim, Freud (1901-1905 [2010]) em Fragmento de análisis
buscam os consultórios dos analistas tanto indivíduos de un caso de histeria (1905 [1901]).
que produzem marcas e imagens nos seus corpos –
em sua maioria, habitués dos ateliers de tatuagens De outra parte, podemos verificar a transformação
– quanto aqueles que também se auto-infringem nos modos como as manifestações corporais
experiências mais radicais – com destaque para as incidem no sujeito contemporâneo. Na atualidade,
relacionadas às body transformations e body arts essas manifestações, muitas vezes, não se alinhavam
a uma estrutura significante (Besset & Zanotti,
Do mesmo modo, na prática psicanalítica com 2005). Nessas condições clínicas e ao contrário
adolescentes, verificamos, desde o início do século de muitos casos de histeria, as manifestações
XXI, um aumento progressivo do fenômeno do contemporâneas podem não querer dizer nada e
cutting – as automutilações. De maneira não não fazer laço social ou apelo ao Outro.
menos contumaz, são encaminhados para os
consultórios de psicanálise pacientes oriundos do Os novos modos como as manifestações no corpo
campo da medicina – muitos já se encontrando em passam a se configurar são essenciais para as
tratamento multidisciplinar - e que aportam consigo transformações também da clínica psicanalítica
significantes advindos do discurso da ciência, tais que, a partir da década de 1970, passa a dar maior
como bulimia, anorexia, dismorfismo corporal, acento ao Real embutido no sintoma do que ao
síndrome de borderline, dores crônicas, fibromialgia deciframento do seu sentido. Essa consideração é
e somatizações, dentre outros (Barreto & Besset, bastante relevante, por exemplo, quando se tem em
2012). causa a direção do tratamento da psicose.

Em nossa abordagem, temos especial interesse na A priori, não encontramos constatações, na clínica
maneira como tais manifestações podem ter suas ou na literatura psicanalítica, de que algumas
incidências distribuídas em conformidade à noção das manifestações corporais que elencamos
das estruturas subjetivas, propostas por Jacques acima tenham certa predileção para incidir
Lacan (1901-1981) durante o período que Miller nesta ou naquela estrutura, conforme seja ela
(2003a) nomeou de seu primeiro ensino. Outra neurótica, psicótica ou perversa. Neste aspecto,
consideração importante para nosso estudo, é o acreditamos ser um interessante norteador da
fato de tomarmos, propositadamente, a expressão direção do tratamento psicanalítico a ideia de o
manifestações corporais à guisa da devida prudência analista considerar, em linhas gerais, as variadas
que a abordagem preliminar do problema requer. manifestações corporais como transestruturais, ou
seja, poderem incidir, indistintamente, em qualquer
Nesse aspecto, calculamos o uso da expressão uma das três estruturas subjetivas.
como reservado para uma menção inicial e indistinta
às variadas modalidades de incidências no corpo. Dessa proposição, entretanto, não podemos
Em um segundo tempo, cabe ao analista a tarefa deduzir que, por exemplo, um quadro de anorexia
de defletir os significantes provenientes do Outro e dismorfismo em uma estrutura neurótica
da ciência em direção a termos que, por estarem tenha a mesma expressão clínica ou o mesmo
investidos de uma delimitação conceitual mais comportamento sintomático – ou, ainda, a mesma
precisa, podem assumir um sentido mais operativo patoplastia, termo advindo da psicopatologia – que
para o tratamento, a saber: sintoma analítico, sintoma aqueles ao incidir em um sujeito psicótico (Cosenza,
médico, fenômeno psicossomático, conversão, 2009). Além da preocupação com a importância
sinthoma, fenômeno de corpo e acontecimento de de uma distinção dessa natureza, debruçamo-nos,
corpo. no presente estudo, sobre a questão particular da

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construção de um corpo pulsional na psicose. O termo borderline, proposto por Stern (1945), não
tem, a priori, uso clínico algum na psicanálise de
Nessa direção, verificamos que o imperativo de orientação lacaniana. O significante foi bastante
se forjar um corpo que lhe seja habitável é algo difundido durante a década de 1960, por efeito do
posto de saída para um sujeito psicótico. Trata- pós-kleinismo, em especial na clínica americana
se, portanto, de um problema bastante distinto e anglo-saxã da Psicologia do Ego. Na psicanálise
daquilo que ocorre na estrutura neurótica, para francesa da International Psychoanalytical
a qual o corpo pode prover uma ancoragem do Association, teve seu equivalente nos chamados
sintoma. Dessa maneira, podemos delimitar um états limits. Também foi incorporado pela psiquiatria
campo problemático relacionado ao papel das e, a partir da Classificação Estatística Internacional
manifestações corporais no desencadeamento ou, de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde
ao contrário, na estabilização das psicoses. – CID-10 e do Manual Diagnóstico e Estatística dos
Transtornos Mentais 3ª edição – DSM-III, passa a
Por meio da apresentação do fragmento de um fazer parte de todas as edições que se sucedem
caso de anorexia, examinaremos, a seguir, como um desses manuais nosográficos (American Psychiatric
sujeito psicótico, a partir dos embaraços com o corpo, Association, 2014; Organização Mundial de Saúde,
logra fazer deles um sinthoma. Dedicaremos, ainda, 1998). A ampla difusão desse diagnóstico deveu-se,
uma terceira sessão para discorrer sobre as noções principalmente, pelo paradoxo de sua imprecisão
de fenômeno de corpo, acontecimento de corpo conceitual: via regra, o termo é utilizado nos casos
e sinthoma. Desse modo, procuramos oferecer inclassificáveis. Em linhas gerais, a definição de
um lastro argumentativo acerca da participação borderline está apoiada na vaga ideia de uma suposta
da anorexia e seu cortejo sintomatológico na fronteira entre a neurose e a psicose. Entretanto, tal
construção de um aparelhamento de gozo, de um limbo clínico é inexistente ao longo de todo o ensino
corpo possível e da suplência da foraclusão do de Jacques Lacan. O DSM-5 considera o Transtorno
Nome-do-Pai. de Personalidade Borderline – 301.83 (F60.3)
– como um “padrão difuso de instabilidade das
relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos
Da síndrome de borderline à ordinarização via e de impulsividade acentuada que surge no início
anorexia da vida adulta e está presente em vários contextos”
(American Psychiatric Association, 2014, p. 663).
Lucille: Eu sou borderline? Lucille, 38 anos,
apresenta essa questão na sua análise. Também já a Diante do retorno da angústia, o analista intervém e
havia formulado para seu psiquiatra. Diante da forte pontua que a insistência naquele tipo de enquadre
angústia que lhe assola, vai à procura de respostas e não resolvia o problema de Lucille. Ela, então,
as encontra na Internet. bascula sua fala em direção à história de sua vida.
Relata lembrar que veio encaminhada à análise por
De fato, ela tem muitas das manifestações típicas seu endocrinologista com o diagnóstico de anorexia.
daquilo que a psicopatologia contemporânea Descreve que as manifestações começaram na
chama de transtorno de personalidade do tipo puberdade e, desde esse período, veio alternando
borderline: automutilações, tentativas de suicídio, dismorfismo corporal, bulimia e anorexia. A
instabilidades emocionais, condutas impulsivas. A perspectiva de ir trabalhar, morar sozinha e separar-
resposta do analista vem à guisa de interpretação: se dos pais lhe é apavorante. Além disso, a errância
Se é, o é para a psiquiatria. Aqui nos interessam do laço social é pungente, passeando entre o
outras coisas, o nome podemos deixar para depois. nomadismo amoroso e a fugacidade das amizades
Desconfiada, ela contesta: Parece a resposta de líquidas. Na perspectiva de seu tratamento
Jesus para Pilatos: ‘Meu reino não é deste mundo’. analítico, Lucille não formula questão alguma sobre
sua condição anoréxica. O único incômodo é o
Ela insiste no diagnóstico de borderline. Enfim, imperativo do Outro em comer para ganhar peso:
a ideia de forjar um nome se apresenta como a possibilidade de empanturrar-se e ficar cheia
um imperativo para Lucille. Ao se apropriar de lhe angustia muito e, nessas ocasiões, ela provoca
um significante do discurso do Outro da ciência, automutilações em braços e pernas.
ela obtém um apaziguamento da angústia que,
entretanto, não é duradouro. Para Lucille, o diagnóstico da estrutura foi

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estabelecido pelo analista a partir da noção de no tênue limite entre vida e morte, ela pôde esboçar
psicose ordinária. Miller (2012) utiliza a expressão uma amarração entre os registros do simbólico,
para se referir à psicose estabilizada ou não- do real e do imaginário, sob o fundo do encontro
desencadeada, sem uma exuberância de fenômenos contingente com a psicanálise. Durante essas
elementares. Delírios e alucinações verbais, por visitas, foi fundamental o analista consentir com o
exemplo, não estão presentes nessa condição da flerte de Lucille com a morte: o empuxo-à-mulher
clínica. Por também se tratar da não-inscrição do típico da psicose, na anorexia – condição feminina
Nome-do-Pai, a psicose ordinária não se constitui em essência – se deflete em tendência à morte e à
em uma quarta categoria estrutural. Não obstante a devastação.
foraclusão do Nome-do-Pai, nela pode ocorrer um
laço social operante e se estabelecer em um modo Ao mesmo tempo em que faz um acolhimento
possível do sujeito psicótico estar no mundo. calculado dos riscos de tal flerte, o analista implica
Lucille em uma estrutura linguageira, possibilitando
Dentre outros aspectos, podemos considerar que um bordejamento e limitação do gozo. Após a alta,
a ideia de psicose ordinária também foi forjada ela torna-se mais responsiva ao tratamento médico-
como uma resposta à difusão indiscriminada do endocrinológico que vinha fazendo e consegue
diagnóstico de borderline. Constatamos que a bricolar com seu médico um corpo possível e
noção de psicose ordinária é bem mais operacional habitável para si, logrando atingir um peso corporal
para o psicanalista que o de borderline, ao nos próximo do razoável, um pouco acima do limite
orientar em direção a uma clínica de sutilezas, de tolerável de seu índice de massa corporal – medida
enlaces e desenlaces, conforme propõe Maleval utilizada como balizador do tratamento conduzido
(2010). O autor aponta, ainda, que o diagnóstico da pelos médicos intensivistas e endocrinologistas.
psicose ordinária tem um aspecto bífido: ao mesmo
tempo em que o analista deve procurar os sinais Por outro lado, Lucille, conhecedora da língua
mínimos da falha do nó nos interstícios da estrutura inglesa, começou a desenvolver uma exploração das
topológica, ele deve buscar identificar quais os variedades semânticas em torno do diagnóstico que
meios o paciente lança mão para tentar compensar trazia do seu psiquiatra. Dessa forma, o significante
– ou suprir – a falha do nó. border-lines (ou as linhas-limítrofes) torna-se uma
questão analítica para ela, gravitando em torno
Em Lucille, a fenomenologia pouco diz da estrutura; da problemática construção de bordas para um
o traço cromático subjetivo específico para o corpo, até então invadido pelo gozo do Outro.
diagnóstico vem sob transferência e evidencia-se Na sequência de seu tratamento analítico, ela vai
na parceria com o nada, no não-apelo ao Outro, na concluindo que a anorexia tratada em um contexto
não-relação dialética ao desejo do Outro, para situar multidisciplinar – conforme seu ponto de vista, a
a jovem do lado da psicose. O sintoma anoréxico psicanálise tendo nele um papel de protagonista –
é mudo; a recusa alimentar e de palavras não tem passou a lhe oferecer os devidos contornos para seu
função de demanda e de apelo ao desejo do Outro, corpo; em suas palavras: Corpo que agora já não
como na histeria. vejo como gordo; que é magro, mas não puro osso
feito um cadáver.
A recusa incide e devasta o campo da palavra:
o manejo que permite o tratamento é o sim do Pouco tempo depois, ela conclui um curso de
analista, que faz ato e encarna no dispositivo um estética feminina e vai trabalhar nessa área. Também
Outro habitável para o sujeito (Cosenza, 2009). É consegue sair de casa e ir morar com o namorado. Ela
nesse âmbito que se instaura a transferência e não passa os cinco anos que se sucedem reinventando a
no da suposição de saber. Lucille buscava provocar enunciação sobre seu percurso: Eu passei de uma
no Outro uma resposta rechaçante; tal resposta anoréxica louca para uma anoréxica lúcida.
especular à sua recusa foi sempre evitada, para
descolá-la de sua condição de gozo em ser o dejeto É a partir da repetição em análise dessa enunciação,
do Outro. que ela explora exaustivamente a assonância entre
o nome próprio e o significante lúcida, bem como
Foi com o estatuto de resto intratável da medicina seus sentidos principais – luz; iluminada. Dessa
que Lucille foi internada em uma unidade de terapia maneira, tomamos, para o caso de Lucille, a anorexia
intensiva, desnutrida e com graves complicações como um acontecimento de corpo duradouro
metabólicas. No paradoxo do cenário hospitalar e que, sob transferência, torna-se suplência pelo

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sinthoma, produzindo os efeitos de estabilização falante como corolários do fato de que o ser é
para os três registros: no real, a localização do gozo; sobrederminado não por um mero organismo
no simbólico, a função de nomeação oferecida biológico e anatomofuncional – e que, na
pelo sintagma anoréxica lúcida; e, no imaginário, perspectiva darwinista, teria o benefício do salto
a construção de um corpo possível e habitável evolucionista advindo da aquisição da linguagem –,
(Barreto & Besset, 2016). mas por um corpo que padece de um parasitismo,
ao ser afetado por lalíngua (Barreto, 2016).

Corpo falante e parlêtre: dos fenômenos de Lalangue, no francês original, foi outro neologismo
corpo ao sinthoma introduzido por Lacan (1971-1972 [2012]). Para
o nosso estudo, adotaremos lalíngua, tradução
Para aprofundarmos nossos estudos acerca do proposta por Campos (2001), considerando que
papel da anorexia – como manifestação corporal em alíngua – termo utilizado nos primeiros textos
que pode aceder condição de sinthoma – exerce no Brasil – “a” funcionaria como prefixo de negação.
na clínica da estabilização, forçosamente temos que Estamos em concordância a Campos, uma vez que
nos indagar a respeito dos estatutos do corpo na sua tradução faz jus à intenção de Lacan em criar
psicose. Os avanços na concepção psicanalítica do um neologismo que remetesse à ideia da lalação
corpo, ocorridos a partir do O seminário, livro 19:... do bebê e que também tivesse uma proximidade
ou pior, apresentado por Lacan (1971-1972 [2012]), fonética com esse último termo.
dão pistas reveladores, que balizam nosso caminho
em busca de respostas. Desde a Conversation sur Nesse momento do ensino de Lacan não é mais o
les Embrouilles du Corps, Miller (2003b) também gozo que é secundário ao significante; a linguagem
veio desenvolvendo contribuições sobre o assunto, e sua estrutura surgem como um dado derivado
e estabelecendo, ao longo de seus cursos de e disso advém a invenção lacaniana de lalíngua.
orientação lacaniana, relevantes distinções entre as Esta última é a palavra disjunta da estrutura de
noções de fenômeno de corpo e de acontecimento linguagem, separada da comunicação e concebida
de corpo. doravante como gozo, ou seja, a fala muito antes
de seu ordenamento gramatical, lexicográfico,
A delimitação de termos cernidos ao longo do último sintático e semântico (Lacan, 1971-1972 [2012];
ensino de Lacan nos fornece auxílio importante para Miller, 2000).
nosso breve exercício de aggiornamento da noção
psicanalítica de corpo. Nessa direção teceremos Lacan (1971-1972 [2012]) propõe uma aliança
algumas considerações acerca dos sintagmas corpo originária entre gozo, palavra e lalíngua, ao modo do
falante, parlêtre e lalíngua. gozo do bláblábá. Trata-se de uma aliança balizada
na não-relação e na disjunção entre pares de
Parlêtre é um neologismo obtido por meio da termos essenciais de seu ensino, como significante
conjunção, em francês, do verbo parler e do e significado, gozo e Outro, homem e mulher – esta
substantivo être, respectivamente, em português, última disjunção assentada na célebre assertiva: a
falar e ser. O termo foi introduzido por Lacan (1966- relação sexual não existe (Lacan, 1975-1976 [2007]).
1973 [2003]), no texto Joyce, o Sintoma (1975), nos Ao nos perguntarmos sobre o papel que a anorexia
esforços de reformular a noção de inconsciente, pode desempenhar na estabilização psicótica,
ao final de seu ensino; no Brasil, é frequentemente temos que considerar que a função de sinthoma
traduzido como falasser. não é dada de saída a partir de uma manifestação
corporal e envolve uma passagem da condição de
Para este estudo, optamos por conservar a palavra fenômeno de corpo em direção à de acontecimento
no francês original, em concordância com Miller de corpo. A expressão fenômenos de corpo é
(2016, p. 23), em O Inconsciente e o Corpo Falante, utilizada de um modo amplo, fazendo menções a
quando afirma que “Não se pode traduzi-la”. No variadas manifestações nas psicoses, e também
mesmo texto, o autor recupera de Lacan, em O aos fenômenos psicossomáticos, às dores, às
seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973), a conversões histéricas, entre outros. Assim, ela
expressão “corpo falante” para, também, aproximá- carece de uma maior precisão conceitual. Neste
la às noções de parlêtre e inconsciente. aspecto, poderíamos situá-los mais do lado do
desencadeamento psicótico, em sua condição de
Propomos, assim, tomar parlêtre e corpo fenômenos transitórios e na vertente do fora-de-

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sentido, sem mensagem codificada. passa à condição de acontecimento de corpo,


podendo, desse modo, equivaler-se ao sinthoma.
A partir de O seminário, livro 20: mais, ainda, Ao longo dos seus cursos de orientação lacaniana,
uma nova articulação entre corpo e gozo vai se as aproximações entre as noções de acontecimento
estabelecendo e a noção de acontecimento de de corpo e sinthoma vão se tornando cada vez
corpo, no último ensino de Lacan (1972-1973 mais estreitas. No curso Pièces Détachées, aula de
[1985]), gradualmente vai ganhando um lugar 15 de dezembro de 2004, o autor apresenta uma
privilegiado. Miller (2015b) destaca que é nessa equivalência entre elas:
época que o significante deixa de ter efeitos de
mortificação, para produzir fundamentalmente O que Lacan chama de sinthoma é a consistência
dessas marcas e é por isso que ele reduz o sinthoma
gozo. Por consequência, o corpo vivo passa a ser
a ser um acontecimento de corpo. Lalíngua produziu
a pré-condição para o gozo, que não é mais um algo no corpo. Essa referência ao corpo é ineliminável
gozo dado de saída ou natural. Para Lacan (1972- do inconsciente [...]2 (Miller, 2013, p. 75, tradução
1973 [1985], p. 35), “aquilo de que se goza” passa a nossa).
ser esse corpo, que não é mais aquele do estágio
do espelho, mas que agora é determinado pela Miller (2015b) prossegue no seu desenvolvimento
incidência do significante: sobre o tema e, no congresso da New Lacanian
School, em Londres, em intervenção em 3 de abril
Não é lá que se supõe propriamente a experiência de 2011, afirma que o acontecimento de corpo é a
psicanalítica?  a substância do corpo, com a percussão de lalíngua no corpo, o próprio encontro
condição de que ela se defina apenas como aquilo de material, para o parlêtre, do significante com o
que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida,
mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas
corpo. A um só tempo, o acontecimento de corpo – o
isto, que um corpo, isso se goza. choque puro da linguagem sobre o corpo – seria um
fato inaugural e constituinte do parlêtre e também
Durante a Conversation sur les Embrouilles du algo a se reiterar sem cessar ao longo da existência,
Corps, Miller (2003b) desenvolve uma importante um acontecimento permanente.
distinção entre as expressões fenômeno de corpo
e acontecimento de corpo, quando menciona que Durante o curso de orientação lacaniana L’être et
Lacan, em Joyce, o Sintoma (1975), utilizava essa l’un, na aula de 30 de março de 2011, Miller (2011)
última para se referir ao sinthoma, tomado de uma propõe que “existe um ‘Um de gozo’ que sempre
maneira geral, como um acontecimento de corpo. retorna ao mesmo lugar”. Na ocasião, o autor
Miller propôs a maioria dos fenômenos de corpo recupera a referência freudiana da fixação da libido
descritos naquela conversação como fugazes, na raiz do recalque, para situar o acontecimento de
transitórios. Porém, o autor destacou a importância corpo do lado dessa noção:
do fato de alguns fenômenos de corpo tornarem-se
De fato, para conhecer o que ele chama de
permanentes:
desenvolvimento, a libido migra, desloca-se e, em
relação a esses deslocamentos, Freud acredita poder
Primeira distinção a fazer: os fenômenos transitórios isolar, destacar e indicar esta referência – a saber,
e os permanentes. A famosa dor “sem-sentido aquilo que ele chama de um ponto de fixação. Bom,
encarnado” é permanente e tivemos na Convenção eu digo que é precisamente isso que Freud delimitou
de Antibes vários fenômenos anormais, paradoxais, que nós formulamos como a conjunção do Um e do
insensatos, cuja persistência fez com que fossem Gozo. Uma conjunção que faz com que a libido não se
classificados como suplências à foraclusão do Nome- deixe ir ao avatar, à transformação, ao deslocamento.
do-Pai. (p. 235, tradução nossa)1. O que eu quero dizer com esse ponto de fixação é que
existe um Um de gozo que retorna sempre ao mesmo
De maneira assertiva, Miller (2003b) conclui que, lugar. E é por essa razão que nós o qualificamos de
ao se estabelecer de um modo definitivo e assim Real 3 (tradução nossa).
ordenar a vida do parlêtre, o fenômeno de corpo
2
Texto original: “Lo que Lacan denomina sinthome es la
1
Texto original: “Première distinction à faire: les consistencia de esas marcas, y por eso él reduce el sin-
phénomènes à eclipse et les phénomènes permanents. thome a ser un acontecimiento de cuerpo. Algo ocurrió
La fameuse douleur ‘non-sens incarné’ est permanente, al cuerpo debido a lalengua. Esta referencia al cuerpo es
et nous avions eu à la Convention d’Antibes de nombreux ineliminable del inconsciente.”
phénomènes anormaux, paradoxaux, insensés, dont
la permanence faisait qu’on les classait comme des 3
Texto original: “[...] De fait, pour connaître ce qu’il appelle
suppléances à la forclusion du Nom-du-Père.” développement, la libido migre, elle se déplace, et par

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Ao diferenciar o sintoma neurótico do sinthoma, Na trajetória que percorremos, as respostas que


Miller (2013) também traz novas e relevantes encontramos sobre os estatutos do corpo na psicose
contribuições para a dialetização entre fenômeno são esclarecedoras. Com Marret-Maleval (2009)
e acontecimento de corpo. O autor põe em jogo as e Miller (2013), concebemos, de início, o corpo na
vertentes do sentido e do fora-de-sentido em relação psicose com o estatuto de um amontoado de peças
às manifestações corporais, salienta que o sintoma soltas. Por meio da leitura que Santiago (1999,
neurótico quer dizer alguma coisa e destaca a função p. 38) faz do texto de Lacan, Radiofonia (1970),
da crença, para o neurótico, de que há saber e há consideramos o corpo invadido pelo gozo, na psicose
sentido no Real. No dispositivo analítico, a histérica se desencadeada, como um “território ocupado,
oferece à construção de uma linguagem articulada sitiado”, nas palavras daquele autor.
ao deciframento, constituindo-se, conforme salienta
Miller, no próprio avesso do artista. As conversões
histéricas ilustrariam, assim, a vertente transitória e Uma topologia para o sinthoma-anorexia
com sentido codificado do fenômeno de corpo.
Para o fragmento clínico que apresentamos,
Por outro lado, no viés do fora-de-sentido operante procuramos demonstrar que a anorexia desempenha
no cerne do acontecimento de corpo, Miller (2013) o papel do sinthoma que faz suplência à foraclusão
nos lembra que Joyce renuncia às articulações de do Nome-do-Pai, uma vez que, além de prover um
sentido, ao lograr fazer do seu sintoma um sinthoma. ordenamento da vida da paciente, tem um caráter
Miller (2015a) propõe que a visada da análise deva duradouro. Buscaremos, nesta seção, desenvolver
ser a materialidade fora-de-sentido do real embutido considerações sobre a inscrição da anorexia, em sua
na letra. O analista deve operar no mais além dos condição de sinthoma, na estrutura topológica do
desfiladeiros do desejo e do sentido. Na premissa da parlêtre.
existência de uma afinidade entre o acontecimento
de corpo e a letra, os esforços na análise devem estar Para cernirmos essa proposição, consideraremos
na busca em reduzir o primeiro à fórmula original do determinados aspectos, que podemos tomar como
traumatismo do significante no corpo. critérios para atribuir à anorexia a função de sinthoma.
Podemos, assim, extrair da vinheta apresentada
Miller (2013, p. 75, tradução nossa) destaca que a elementos que nos servem como parâmetro para
histérica é o contrário do artista; “o sujeito histérico verificarmos essa função: a amarração que localiza
se presta a que o analista construa uma linguagem o gozo; a função de nomeação; a oferta de uma
destinada ao deciframento”4. Joyce abandona o jogo consistência para o corpo.
significante da vertente do sentido, ao passo que o
neurótico quer se ver livre do seu sintoma exatamente Destacamos, assim três aspectos do sinthoma que
por não conseguir fazer dele um sinthoma. É nesse produzem efeitos nos registros correspondentes: no
ponto que nos interessa a vertente do fora-de-sentido Real, a localização do gozo; no Simbólico, a função de
e que opera no seio do acontecimento de corpo, uma nomeação e a capitonagem da cadeia significante; e,
vez que ora nos ocupamos, propriamente, do papel no Imaginário, a constituição de um corpo possível.
que a anorexia pode desempenhar na estabilização
da psicose. Quando levamos em conta uma clínica do
enodamento e do desenodamento para a psicose
ordinária, vamos ao encontro de vários autores,
rapport à ça, par rapport à ces déplacements, Freud croit como Ménard (1994), Maleval (2000, 2010), Besset e
pouvoir isoler, marquer, indiquer cette référence – à savoir, Brandão Júnior (2012), que enfatizam que o aspecto
ce qu’il appelle un point de fixation. Bien, je dis que c’est mais fundamental que entra em jogo é a localização
précisément ce que Freud a ici repéré que nous formulons do gozo, por intermédio do nó. Podemos constatar
comme la conjonction du Un et de la Jouissance. Une
clinicamente que a amarração que localiza, regula e
conjonction qui fait précisément que la libido ne se laisse
limita o gozo, traz poderosos efeitos nos três registros.
pas aller à l’avatar, à la métamorphose, au déplacement.
Ce que veut dire point de fixation, c’est qu’il y a un Un de A invenção e o savoir y faire também exercem
jouissance qui revient toujours à la même place. Et c’est um papel importante no sinthoma, conforme
à ce titre que nous le qualifions de Réel.” (grifo do autor). discorremos anteriormente. Quanto ao laço social,
consideramos que ele possa emergir por acréscimo
4
Texto original: “La histérica es lo contrario del artista, el e não é um fator obrigatório para os casos da
sujeto histérico se presta a que el analista construya un estabilização com a anorexia.
lenguage destinado al desciframiento”.

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No entanto, constatamos que, em muitos pacientes registros. Quando o nó se desfaz e o Imaginário se


incluídos em todo um circuito terapêutico solta, esse campo se desarranja e o corpo fica à mercê
multidisciplinar desse diagnóstico, estabelece-se da invasão de um gozo ilimitado e toda a sorte de
um laço social que opera também para favorecer a fenômenos corporais da psicose.
estabilização. Por exemplo, a assertiva “sou anoréxica
lúcida” pode oferecer um nome e, assim, uma Para situar topologicamente a anorexia em seu
articulação possível entre a função de nomeação e o estatuto de sinthoma, buscamos fundamentos em
laço social (Besset, Gaspard, Doucet, Veras, & Cohen, autores psicanalíticos contemporâneos. O sinthoma
2010; Miller, 2010). Se dessa forma o laço social vem para suprir uma falha do nó e o enlaçamento
não é constitutivo da suplência, ao menos ele pode entre o real, o simbólico e o imaginário que é obtido
contribuir com a estabilização psicótica, ao operar com ele não restitui ou confere a propriedade
nas adjacências do sinthoma. borromeana para a cadeia (Lacan, 1975-1976 [2007]);
Mazzuca, Schejtman, & Zlotnik, 2000).
Miller (2013) assinala que o sinthoma, em seu uso
lógico, é autista, não visa o laço social, a comunicação. Esse modo de amarração delimita, na perspectiva
Miller (2010) destaca que muitos psicóticos borromeana, uma diferença importante entre as
conseguem se ordinarizar forjando um laço social duas estruturas: na neurose, tem-se um enodamento
identificatório; já outros, só se estabilizam quando há borromeano; na psicose, a suplência da falha do
uma ruptura no laço social. nó confere uma amarração final não-borromeana.
Maleval (2000) extraí outra consequência dessa
Se por um lado, buscamos certo rigor clínico diferença entre os nós das estruturas, ao nos lembrar
para caracterizar para as condições nas quais um que a suplência não se equivale à castração e não
fenômeno de corpo pode aceder ao estatuto de obtém os mesmos efeitos que essa última. Também
sinthoma, por outro, corremos o risco de adotar podemos estender essas diferenças para a clínica,
uma perspectiva muito idealizada, a propósito da nos distintos modos de significação nas estruturas,
estabilização na psicose, conforme nos adverte Vieira por exemplo. Assim, temos, para a neurose, o nó
(2011). O problema emerge, especialmente, em borromeano conferindo uma significação móvel,
relação à invenção, ao savoir y faire, ao laço social, maleável; o enodamento não-borromeano, por outro
que devem operar no cerne do sinthoma. lado, confere para a significação um caráter fixo,
rígido, chegando mesmo, em algumas situações, a
Se a escrita de Joyce foi genial, não significa que a ser indialetizável e inquebrantável (como ocorre nos
genialidade tornou-se uma condição imprescindível delírios estruturados e sistematizados), conforme
para a invenção do sinthoma, conforme nos esclarecem Mazzuca, Schejtman e Zlotnik (2000).
esclarece Ménard (1994). Miller (2015b) nos adverte
que as invenções para as amarrações do corpo Acompanhando, então, o esquema dos enodamentos
ocorrem de acordo com as ferramentas das quais e desenodamentos proposto por Ménard (1994),
o parlêtre em questão dispõe para a empreitada. consideraremos, para este estudo, que é o anel do
Com esses autores, concluímos que, mais do que Imaginário que se solta. Em consequência da falha,
atos de genialidade ou quaisquer outras espécies de o Imaginário desliza e fica solto. Essa desarticulação
idealizações, o que o psicanalista deve considerar, na compromete a consistência corporal, que somente
psicose, é a possibilidade, a originalidade e a eficácia pode ser oferecida por meio de um campo que se
da invenção. inaugura no Imaginário, na medida em que esse se
enoda com os outros dois registros.
No caso que descrevemos de anorexia incidindo na
estrutura psicótica, o que entra em jogo é a invenção Propomos, então, que a anorexia tratada sob
de uma prótese corporal. A própria anorexia, em sua transferência, para Lucille, advém como a suplência
condição de manifestação corporal, testemunha que para a falha do nó, ao fazer o remendo precisamente no
a falha do nó repercute principalmente no anel do topos onde a falha ocorreu. O sinthoma-anorexia traz
Imaginário. de volta o Imaginário para o enodamento, na medida
em que o prende aos registros do Real e do Simbólico.
Quando esse registro fica solto, torna-se bastante Esta operação de suplência delimita, no Imaginário,
comprometida a consistência imaginária do corpo, o campo que corresponde ao corpo, oferecendo ao
cujo campo deveria permanecer delimitado no parlêtre uma consistência corporal, além dos efeitos
interior do Imaginário, pelas bordas dos outros dois nos outros dois registros, que já consideramos.

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Conclusão envolvidos no problema, como a inclusão do


tratamento psicanalítico, para que a a manifestação
Ao finalizar este artigo, confirmamos, por meio do corporal possa ser abordada também na perspectiva
estudo de um caso clínico, a suposição teórica de do sinthoma.
que uma manifestação corporal como a anorexia
pode desempenhar, em determinadas condições, Este estudo retifica as noções que trazíamos
um papel importante na estabilização da estrutura anteriormente sobre as relações entre a psicose
psicótica, ao ponto de aceder à condição de ordinária e o laço social. Concebíamos essa
sinthoma. Consideramos que, quando a questão articulação tomando a psicose ordinária como uma
do parlêtre se situa mais do lado das amarrações condição clínica na qual, não obstante a carência
corporais e da circulação pelo corpo de um gozo do significante do Nome-do-Pai na estrutura,
desregulado e ilimitado, a solução deve corrigir estabelece-se um laço social possível. De fato,
a falha do nó no ponto em que ela ocorreu. Por podemos confirmar essa assertiva tanto na literatura
intermédio de O seminário, livro 23: o sinthoma quanto no cotidiano da clínica psicanalítica. No
(1975-1976), pensamos o corpo na estabilização entanto, existem relatos de casos de psicose que só
como apresentando um aparelhamento protético obtêm alguma estabilização à guisa de uma ruptura
para o gozo, por intermédio do sinthoma; trata-se de do laço social.
uma modalidade de regulação e localização do gozo
que se aproxima daquela oferecida pela função fálica Sustentamos a ideia que a psicose ordinária continua
sem, no entanto, equivaler-se à castração. sendo um modo possível do parlêtre estar no
mundo. Se, para algumas situações, essa presença
Dessa maneira, a anorexia, na estrutura psicótica, pode envolver o paradoxo de uma ruptura do laço
deve produzir um enlaçamento do registro que social, então é importante reconsiderarmos o que
estava solto – o imaginário – para oferecer ou restituir entendemos como estabilização psicótica. Este
uma consistência para o corpo. O enodamento estudo contribui para essa reflexão, na medida
determina, assim, a regulação e a localização do gozo. em que muitos autores advertem que a oferta
Também verificamos efeitos no simbólico, na da psicanálise para a estrutura psicótica exclui,
medida em que o enodamento cumpre a funções de forçosamente, quaisquer ideais de estabilização,
nomeação e de significação na cadeia significante. O conforme referenciais utilitaristas, aspirações de
sinthoma confere um sistema de significação possível nível funcional ótimo ou coisas do gênero.
para a estrutura psicótica, de maneira diferente da
significação fálica. Tomamos essas diferenças à luz do Não conhecemos precisamente as razões pelas
arranjo não-borromeano da cadeia, proporcionado quais um dado paciente logra, a partir dos recursos
pela suplência via sinthoma e, assim, estabelecendo disponíveis, bricolar um sinthoma, para estabilizar sua
uma significação que funciona de um modo mais psicose, via suplência da foraclusão do Nome-do-Pai.
rígido que a significação fálica da neurose. No E porque outros não vão além de uma compensação
exemplo clínico, observamos que a paciente gravita apoiada em identificações imaginárias, para obter
em torno de significantes que lhes oferecem um uma estabilização menos sólida. E, finalmente,
nome (anoréxica lúcida), e um caráter estabilizador porque determinadas estruturas – ao contrário da
para sua vida. psicose ordinária, que pode passar despercebida
e camuflada na paisagem – parecem viver um
Sintetizamos que, quando a anorexia funciona desencadeamento perene, infindável.
como um ordenador duradouro na vida do parlêtre,
ela deve ser considerada sinthoma, cujos efeitos Mas, na clínica da anorexia, acreditamos que a
em cada um dos três registros constatamos abordagem multidisciplinar pode oferecer um
clinicamente. No real, a localização do gozo, com contexto facilitador para a estabilização psicótica.
consequente melhora ou desaparecimento dos Entendemos que isso é algo distinto do conceito
demais fenômenos de corpo. No simbólico, as lacaniano de sinthoma, que deve ser forjado a
funções de nomeação, encadeamento e significação, partir da originalidade e inventividade de cada
mitigando as perturbações da linguagem; no parlêtre. Entretanto, o âmbito de um tratamento
imaginário, a consistência para a constituição de oferecido por muitos pode ser solidário à ideia da
um corpo possível e que seja habitável. O contexto anorexia como sinthoma, para o parlêtre servir-se
para que essa estabilização ocorra, de modo eficaz de ferramentas e matérias-primas para ele próprio
e duradouro, envolve tanto os demais profissionais bricolar sua prótese corporal.

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O lugar do analista na direção do tratamento da ser interpretada ou entendida, mas que cumpre uma
psicose é o lugar do secretário. Esse aspecto pode função importante. O psicanalista não deve poupar
ter outras declinações para a abordagem da anorexia argumentos em defesa dessa ideia e, nessa lógica, até
estender-se aos familiares e demais integrantes da interdição do furor sanandi das equipes de saúde
da equipe multidisciplinar, ao modo da função de – entendido aqui como um ímpeto para se eliminar
secretário, devidamente adequada às especificidades as manifestações corporais a qualquer custo, de altas
de cada contexto. doses de medicação até à radicalidade por meios
cirúrgicos. Dessa maneira, oferecemos uma síntese que
Assim, a participação do psicanalista em uma equipe é pode contribuir para o campo da psicanálise aplicada
a partir de uma posição de extimidade, incluído desde à prise-en-charge da anorexia e também franquear
fora. Somente a partir daí ele pode introduzir uma novas discussões acerca do que, provisoriamente,
questão que, à primeira vista, revela-se tão paradoxal propomos como uma clínica psicanalítica possível para
à equipe: uma manifestação corporal, que não pode as manifestações corporais na psicose.

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