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A Escravidão Brasileira À Época Da Independência (2022), José Flávio Motta
A Escravidão Brasileira À Época Da Independência (2022), José Flávio Motta
à época da Independência
José Flávio Motta
tabela 1
Observação: os “índios não domesticados”, estimados em 800 mil, não estão computados nesta distribuição
Fonte: Silva (1986, p. 163)
eventos como a independência dos Estados “As linhas gerais do renascimento agrícola
Unidos da América e a Revolução Haitiana8, do Brasil são hoje relativamente bem conhe-
a crise do antigo sistema colonial teve impac- cidas. O crescimento do Brasil neste período
tos diretos sobre o comércio da mercadoria assentou claramente no seu setor de expor-
humana, a exemplo da proibição daquele trá- tação, o que, por seu turno, só foi possível
fico em todo o Império Britânico verificada graças à intensificação e à expansão da
no segundo lustro do Oitocentos, influindo principal forma de trabalho da colônia. De
nas próprias dimensões de seu direciona- fato, a escravatura tornou-se uma instituição
mento para o Brasil. em expansão em fins do período colonial.
As repercussões mais evidentes, na colô- A importação de escravos para os merca-
nia brasileira, daquele panorama interna- dos tradicionais da Bahia, Rio de Janeiro e
cional foram, de um lado, aquilo que ficou Recife ganhou novas dimensões, e regiões
conhecido na historiografia como o renas- como o Maranhão, São Paulo, Paraná e Rio
cimento agrícola9. A crise do colonialismo Grande do Sul, que não tinham anterior-
mercantilista acarretou a desorganização dos mente sido caracterizadas por economias de
mercados de vários produtos coloniais, e exportação e pelo predomínio do trabalho
foi possível à produção brasileira ocupar escravo, foram arrastadas pelo comércio de
espaços importantes; esse o caso de gêne- exportação em crescimento”.
ros como o açúcar, o algodão, o arroz e o
café. De outro lado, no bojo das guerras Sobretudo, naquele período colonial tar-
napoleônicas, evento também vinculado dio, essa expansão das atividades econômicas
à aludida crise, teve lugar a invasão da fundadas no trabalho escravo evidenciou as
metrópole portuguesa por tropas francesas complexas imbricações entre o setor expor-
comandadas pelo general Junot, obrigando tador e as atividades direcionadas em espe-
a transferência da corte portuguesa para o cial para o mercado interno. Com o foco
Brasil, com a chegada aqui, em 1808, de d. dirigido para essas relações, desenvolveu-se,
João, então príncipe regente, acompanhado no decurso dos últimos decênios, um novo
da família real. olhar compartilhado por muitos dos estu-
Acerca da primeira dessas repercussões, diosos de nosso passado. É ainda Schwartz
escreveu Stuart Schwartz (2003, p. 103): o autor de quem nos valemos para ilustrar
essa perspectiva:
8 “In August 1791, after two years of the French Revolution “Por trás da expansão da economia de expor-
and its repercussions in San Domingo, the slaves revolted. tação do Brasil em finais do período colonial
The struggle lasted for twelve years. The slaves defeated
in turn the local whites and the soldiers of the French mo- encontra-se a complexa e menos conhecida
narchy, a Spanish invasion, a British expedition of some
60,000 men, and a French expedition of similar size under história do crescimento de uma economia
Bonaparte’s brother-in-law. The defeat of Bonaparte’s interna e, por via do desenvolvimento e da
expedition in 1803 resulted in the establishment of the
Negro state of Haiti, which has lasted to this day” (James, integração regionais, do arranque de um mer-
2001, preface).
cado nacional. [...] Em suma, dois desenvol-
9 Sobre o renascimento da agricultura entre fins do
século XVIII e inícios do XIX ver, por exemplo, Prado
vimentos paralelos – a expansão de uma
Júnior (2008, pp. 79-93). agricultura de exportação de base escrava e o
Stuart Schwartz (2003, p. 112): “O que é um outro exemplo para corroborar essa
notório no fim da era colonial é, por seu afirmativa, desta feita um estudo baseado
turno, a progressiva capitalização da agri- em levantamentos censitários, fontes muito
cultura de subsistência, evidenciada pela mais abrangentes do que os inventários no
presença crescente da escravatura no campo tocante à cobertura populacional. Trata-se de
da produção de alimentos”. tese elaborada por Iraci del Nero da Costa
Convém assentarmos essa ideia da dis- (1992) e dedicada à análise dos indivíduos
seminação da propriedade de cativos. Para não proprietários de cativos. Contemplando
tanto, tomemos como exemplo um estudo várias localidades em distintas capitanias,
realizado por Manolo Florentino e José depois províncias brasileiras, e abrangendo
Roberto Góes. Analisando pouco menos de não apenas, mas em especial o período que
quatro centenas de processos de inventários aqui nos interessa, o autor verificou, inva-
post mortem originários de diversas loca- riavelmente, que os não proprietários de
lidades da capitania do Rio de Janeiro, os cativos compunham a grande maioria na
autores verificaram esse “[...] alto nível de população livre11.
disseminação da propriedade cativa. Entre Em outras palavras, eram muitos (a maio-
1790 e 1830, nunca menos de 88% de todos ria) aqueles que não possuíam escravos. E
os inventariados eram donos de escravos” os escravistas, por seu turno, distribuíam-se
(Florentino & Góes, 1997, p. 52). Em outras entre todas as distintas possibilidades em
palavras, à época da Independência, deter a termos de tamanho de suas escravarias: a
posse de pessoas escravizadas era um atri- maior parte deles detinha um, dois, três,
buto relativamente bastante difundido, não enfim um pequeno número de escraviza-
se reduzindo a um pequeno grupo de pro- dos; outros eram proprietários de escrava-
prietários de elevadas quantidades de cativos. rias de porte médio, outros ainda de grande
Cabem aqui duas ressalvas, devida- número de cativos (às vezes muitas dezenas;
mente apontadas pelos estudiosos referidos: eventualmente centenas). Todos, pequenos e
a primeira diz respeito à sua fonte docu- grandes escravistas, puderam se beneficiar
mental, uma vez que os inventários “[...] do vigoroso fluxo de desembarque de novos
não contemplam a totalidade dos agentes escravizados. Não obstante, e aqui perfilha-
econômicos, pois nem todos os falecidos mos uma vez mais o entendimento de Stuart
tinham bens a inventariar” (Florentino & Schwartz, uma das características que mais
Góes, 1997, p. 54); a segunda refere-se ao
fato de que a difusão da propriedade escrava
não implicou a negação de que sua distri-
buição estivesse altamente concentrada. 11 O autor em questão obteve, ademais, os seguintes
resultados: “Pode-se concluir, por fim, que os não
Dessa forma, ainda que o aumentado fluxo proprietários [de escravos-JFM] eram partícipes ativos
do mundo produtivo. Faziam-se presentes em todas
de entrada no Brasil de indivíduos escravi- as culturas, mesmo nas de exportação, vinculavam-se
zados tenha propiciado uma correspondente às lidas criatórias, ao fabrico e/ou beneficiamento de
bens de origem agrícola e compareciam com relevo
intensidade ampliada na disseminação de nas atividades artesanais. Suas apoucadas posses, é
sua posse, a distribuição daquela mercado- evidente, limitavam e condicionavam sua presença,
a qual, não obstante, não pode ser negada nem deve
ria humana nunca foi equitativa. Tomemos ser subestimada” (Costa, 1992, p. 111).
por 2,3 nos 12 anos entre 1817 e 1829. Tal Um contexto, portanto, de intensa entrada
acréscimo acompanhou a rápida e avassa- de novos escravos, conformando um dina-
ladora penetração da cafeicultura na região: mismo vinculado ademais ao avanço da
lavoura cafeeira. Desse avanço partici-
“Assim, em 1801 não havia escravos resi- param muitos agricultores que não eram
dentes em domicílios voltados à produção proprietários de escravos. E, entre os que
da rubiácea; em 1817, 645 (63,9%) dos 1.010 eram escravistas, participaram da dissemi-
cativos existentes em Bananal viviam em nação da cafeicultura tanto os detentores de
domicílios onde se produzia café; em 1829, menores como os de maiores escravarias.
esse porcentual era ainda maior, atingindo Evidenciou-se em Bananal, assim, o mesmo
a marca dos 88,9% (correspondentes a um processo referido na seção anterior deste
contingente de 2.030 escravos em uma popu- artigo, no qual se identifica a disseminação
lação cativa formada por 2.282 indivíduos). da propriedade escrava aliada à possibi-
Tais porcentuais, cabe frisar, apresentam- lidade de capitalização de “camponeses”
-se, pois, crescentes em uma população que que se tornam escravistas. Uma indicação
também aumenta de maneira pronunciada bastante ilustrativa é dada ao observarmos
em termos absolutos” (Motta, 1999, p. 126). os valores da razão de sexo no conjunto
das escravarias unitárias, compostas de um
Adicionalmente, esse vigoroso aumento único cativo: 50,0 em 1801, 166,7 em 1817
na quantidade de pessoas escravizadas em e 344,4 em 1829.
Bananal, por um lado, refletiu a compra de Para acompanharmos o impacto nas
cativos da África: os africanos, que já eram famílias escravas desse aumento no número
a maioria absoluta dos escravos em Bananal de pessoas escravizadas em Bananal,
em 1801 (57,1%), tornaram-se ainda mais caracterizado pelo grande predomínio de
predominantes em 1817 (61,7%) e em 1829 homens africanos, tomemos separadamente
(81,7%). Por outro lado, tal aumento acar- os dois intervalos temporais considerados.
retou um crescente desequilíbrio entre os Primeiro, de 1801 a 1817. Em 1801, as
sexos na população cativa13. Dessa forma, a relações familiares entre os cativos da
razão de sexo, calculada para a escravaria localidade faziam-se presentes de forma
da localidade, já revelava esse desequilí- marcante. O conjunto formado pelas pes-
brio em 1801, quando se igualou a 138,7. soas casadas, viúvas, mães ou pais solteiros
Esse indicador, que aponta o número de e pelos filhos legítimos ou naturais (filhos
homens para cada grupo de 100 mulheres, estes solteiros, sem prole e vivendo junto
elevou-se a 179,8 em 1817 e, mais ainda, a pelo menos um de seus pais) abrangia
para 218,7, em 1829. 52,1% do total da escravaria. Todavia, esse
porcentual reduziu-se para 33,1% em 1817.
De mais da metade para cerca de um
13 Como sabido, o largo predomínio de homens foi uma terço das pessoas escravizadas, essa a
característica do tráfico transatlântico de escravos, e
essa supremacia masculina também marcou o comér- dimensão do decréscimo da presença de
cio interno de cativos no período em que ele assumiu relações familiares identificadas entre 1801
maior importância, após a extinção do comércio ne-
greiro intercontinental. e 1817 no contingente de cativos em Bana-
cá tabaco, ora tomais do meu, como fez um fosse necessário recorrer à rebelião popular”
cativo do Brederodes ao Ouvidor Afonso’. (Costa, 1981, p. 99).
Felizmente, concluía satisfeito, o cabra rece-
bera o justo castigo: ‘Já se regalara com 500 Se a forma pela qual se processou nossa
açoites’” (Costa, 1981, p. 96). emancipação política nos afastou da expe-
riência haitiana, isto não significa negar a
A revolta contra a metrópole portuguesa, participação dos escravizados. Assim, por
que aglutinava interesses das elites radica- exemplo, no caso da Bahia, onde a luta con-
das na colônia, era vivenciada à sua pró- tra os portugueses estendeu-se até inícios de
pria maneira por indivíduos livres pobres, julho de 1823, essa participação é eviden-
libertos e, sobretudo, pelos escravos. O que ciada por João José Reis:
não era uma novidade. Na virada do século
XVIII para o XIX, a Revolução Haitiana “Com efeito, os escravos, sobretudo os criou-
evidenciara essa mesma característica17. A los e os pardos nascidos no Brasil, mas tam-
novidade, digamos assim, no caso brasi- bém os africanos, não testemunharam passi-
leiro, decerto condicionada seja pelo prévio vamente o drama da Independência. Muitos
levante dos escravos na colônia francesa, chegaram a acreditar, às vezes de maneira
seja por eventos tais como o ilustrado pelo organizada, que lhes cabia um melhor papel
comportamento do “cativo do Brederodes” no palco político em via de ser montado
na cidade do Recife, em 1817, acima des- com a vitória baiana. Os sinais desse projeto
crito, foi o encaminhamento da emancipa- dos negros são claros” (Reis, 1989, p. 92).
ção mediante o protagonismo do príncipe
herdeiro do trono português. É, uma vez Um exemplo desses sinais, fornecido por
mais, preciso o comentário feito por Emília Reis, é outra carta, esta datada aos 13 de
Viotti da Costa: abril de 1823. Quem a escreveu foi dona
Maria Bárbara Garcez Pinto, senhora do
“O temor da população culta e ilustrada engenho Aramaré. O destinatário era seu
diante da perspectiva de agitação das massas marido, então em Portugal. Maria Bár-
explica por que a ideia de realizar a Inde- bara comentou: “A crioulada da Cachoeira
pendência com o apoio do príncipe pareceria fez requerimentos para serem livres”. Em
tão sedutora: permitiria emancipar a nação seguida, expressou-se de modo a deixar bem
do jugo metropolitano sem que para isso claro o que a classe senhorial baiana pen-
sava desses projetos dos negros, bem como
qual a receita a ser empregada para reagir
a eles: “Estão tolos, mas a chicote tratam-
17 Assim, por exemplo, em uma rica coleção de docu- -se!” (Reis, 1989, p. 92-3).
mentos sobre a Revolução Haitiana, os organizadores
observaram: “The key to understanding the Haitian Em sua análise acerca da participação
Revolution’s complicated narrative is to think of it as the dos escravizados na guerra pela independên-
pursuit of three political goals (freedom, equality, Inde-
pendence), by three social groups (slaves, free coloreds, cia na Bahia, João Reis discute a existência
whites), in a colony whose North, West, and South pro-
vinces produced three regional variants of the revolution”
de um Partido Negro. Em parte, o autor
(Geggus, 2014). reconhece que tal “partido” se tratava de
Se se continua a falar dos direitos dos homens, dade. Vale dizer, compondo esse mais, havia
de igualdade, terminar-se-á por pronunciar o “Partido Negro”.
a palavra fatal: liberdade, palavra terrível e Diferentemente do caso haitiano, contudo,
que tem muito mais força num país de escra- esse último componente não teve participa-
vos do que em qualquer outra parte. Então, ção comparável no processo da Independên-
toda a revolução acabará no Brasil com o cia brasileira, o que não significa ter sido
levante dos escravos, que, quebrando suas irrelevante e por conseguinte negligenciável.
algemas, incendiarão as cidades, os campos Vale dizer, ainda que seja impossível não
e as plantações, massacrando os brancos, e percebermos a similaridade entre os desti-
fazendo deste magnífico império do Brasil nos declarados do “cativo do Brederodes”,
uma deplorável réplica da brilhante colônia de na Revolução Pernambucana de 1817, e da
São Domingos” (apud Mott, 1986, p. 482)20. “crioulada da Cachoeira”, no engenho baiano
de Aramaré em 1823, sua ação não pode ser
Em suma, no contexto da emancipa- relegada ao esquecimento22.
ção política expressavam-se, lado a lado,
vários e muito distintos interesses. Havia CONSIDERAÇÕES FINAIS
o desejo de manter os avanços contrários
à política mercantilista possibilitados com
Caio Prado Júnior, em sua História eco-
a vinda da corte portuguesa para o Brasil,
nômica do Brasil, ao tratar da abolição do
configurando um posicionamento anticolo-
tráfico de escravos, afirmou que, à época
nialista por excelência, eventualmente refor-
que nos interessa, “[...] a escravidão vai
çado por interesses ingleses comprometidos
aceleradamente perdendo sua base moral,
com o liberalismo econômico. E havia, é
não somente na opinião comum, mas até
claro, o interesse propriamente português, as
em círculos conservadores. Logo depois da
demandas mercantilistas emanadas da velha
Independência já a vemos alvo da crítica
metrópole. Mas havia mais21. Nesse mais
geral” (Prado Júnior, 2008, p. 143). Mas terá
figuravam os interesses de “vários grupos
sido menos por conta dessa perda de base
negro-mestiços”, na expressão de João José
moral da escravidão e mais por força da
Reis, e entre eles os interesses dos escravos,
pressão inglesa que, em fins de 1831, já no
afinal também protagonistas naquela socie-
período regencial, foi promulgada lei tor-
nando ilegal o comércio transatlântico da
mercadoria humana. Conhecida como Lei
Feijó, ela dispunha em seu artigo 1º: “Todos
20 “A razão deste ‘Aperçu’ é mostrar ao rei D. João VI a
importância e os meios de unir de novo (‘rattacher’
– ‘attacher de nouveau’) o Brasil à Metrópole, depois
que D. Pedro chefiara a ‘Revolução’ (Independência)”
(Mott, 1986, p. 468).
22 Afinal, como bem nos lembrou João José Reis (1989,
21 Por exemplo, poderíamos tornar esse contexto muito p. 98): “A Independência havia liberado energias co-
mais adensado se considerássemos a discussão acer- letivas de difícil controle e o ‘partido negro’, embora
ca do projeto federalista para a construção da nova dividido, ainda voltaria à cena muitas vezes. Em 1835
nação brasileira, algo que foge aos nossos objetivos foi quando ele se apresentou mais ousado e radical”.
neste artigo. Sobre esse tema ver, entre outros, Mello Para uma história do levante dos escravos malês em
(2004) e Coser (2008). 1835, na Bahia, ver: Reis (2003).
a concentração então havida dos cativos no Júnior (2008, p. 179), para quem a Lei do
sudeste cafeeiro, será inevitável o recurso a Ventre Livre “[...] não resultou assim, em
formas de trabalho que não a compulsória última análise, senão numa diversão, uma
para a continuidade daquela expansão. E a manobra em grande estilo que bloqueou
cafeicultura vivenciará, assim como as demais muito mais que favoreceu a evolução do
atividades econômicas, a transição para a uti- problema escravista no Brasil” 28. Revela-
lização de trabalhadores livres, fossem eles -se, aqui, o outro lado do campo de bata-
nacionais ou imigrantes estrangeiros. lha entre escravos e senhores, qual seja, a
Como sabido, a abolição da escravatura resistência dos escravocratas e seu apego
teve lugar apenas em 1888, com a promul- a um processo controlado de término
gação da Lei n. 3.353, de 13 de maio. Foi da escravidão, gradual e garantidor da
longo o caminho trilhado, passando por “ordem” imperial.
momentos marcantes, a exemplo da libertação Essa desejada garantia da ordem, nos lus-
dos nascituros, em setembro de 1871. Nesse tros finais de vigência da escravidão, trazia
caminho, por um lado, revelou-se a ação em si a mesma vontade de evitar mudan-
dos próprios escravos, engajados numa luta ças mais profundas que havia norteado a
cotidiana através da qual ajudaram também a emancipação política, cerca de meio século
construir os traços definidores da sociedade antes. E, para isso, tratou-se diligentemente
escravista em que viviam. Uma ilustração de tolher à população de egressos da escra-
dessa luta está na aludida lei de 1871, na sua vidão maior participação política, de impedir
interpretação sugerida por Sidney Chalhoub aquelas pessoas de ter sua voz ouvida na
(1990, pp. 26-7): conformação dos desígnios da nação.
Exemplo contundente desse esforço de
“[...] em algumas de suas disposições mais manutenção da excludência pode ser encon-
importantes, como em relação ao pecúlio trado na reforma eleitoral de 1881. No que
dos escravos e ao direito à alforria por ficou conhecido como a Lei Saraiva, a
indenização de preço, a lei do ventre livre reforma que introduziu as eleições diretas no
representou o reconhecimento legal de uma processo político-eleitoral do império acar-
série de direitos que os escravos vinham retou diminuição significativa daqueles que
adquirindo pelo costume, e a aceitação de poderiam participar desse processo29. Por
alguns objetivos das lutas dos negros. [...] um lado, foram aumentadas as exigências
Na realidade, é possível interpretar a lei de
28 de setembro, entre outras coisas, como
exemplo de uma lei cujas disposições mais
28 Registremos uma terceira interpretação acerca da Lei
essenciais foram ‘arrancadas’ pelos escravos do Ventre Livre. Para Beiguelman (2005, p. 45-59), em
às classes proprietárias” (grifos nossos).
que pese a ausência de efeitos da lei sobre o volume
de mão de obra no curto prazo, ela acarretou efetivo
abalo nas bases do sistema escravista, em especial por
estimular fortemente o setor mais novo da lavoura
Contudo, como se infere das palavras cafeeira paulista no sentido da utilização dos traba-
de Chalhoub, a lei de 1871 não foi apenas lhadores imigrantes.
isso. Temos de ter em mente, outrossim, o 29 Para uma análise acerca das características do proces-
so eleitoral no Brasil e de sua evolução no tempo, ver,
entendimento, por exemplo, de Caio Prado entre outros, Nicolau (2012) e Porto (2004).
referências
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VIANNA, F. J. de O. Resumo histórico dos inquéritos censitários realizados no Brasil. Edição
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