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Ano 5 Nº 8 1º Semestre / 98

COMUNICAÇÃO & UNIVERSIDADE


ISSN 0104-9933

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL


FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
UERJ
LOGOS
LOGOS - Ano 5 Nº 8 1º Semestre / 1998

Sumário
EDITORIAL
Ricardo Ferreira Freitas .............................................................................................................................................................3

APRESENTAÇÃO
Desvelamento iccional: da antinomia da comunicação
Héris Arnt.......................................................................................................................................................................................4

ARTIGOS
Identidade cultural: semelhança ou diferença; ritual ou comunicação?
Lamartine P. DaCosta ................................................................................................................................................................6
O conceito de identidade
Luiz Felipe Baêta Neves ......................................................................................................................................................... 11
Literatura e singularidade: topos de delírio, fantasia e inspiração
para a contemporaneidade
Fátima Regis ..............................................................................................................................................................................14
Do mutismo atual do sujeito: notas sobre uma tentativa de
ressuscitar a subjetividade
Erick Felinto ...............................................................................................................................................................................18
Identidade e rede de relações iccionais
Sérgio Arruda de Moura........................................................................................................................................................ 23
Falando de mestiçagem: o des-índio de Darcy e o índio vestido de Carlos Gomes
Ângela Maria Dias ...................................................................................................................................................................28
Macunaíma: uma releitura no momento global
Nízia Villaça ................................................................................................................................................................................32
Portugal, Espanha e as nossas razões
Hugo Lovisolo ...........................................................................................................................................................................36

PESQUISA
Casa e sociedade: representações em Senhora
Carmen da Matta ................................................................................................................................... 42
Considerações sobre duas ou três coisas úteis ao jornalismo
João de Deus Corrêa ..............................................................................................................................................................47

CRÍTICA
Trois Couleurs: Kieslowski e a ética dos possíveis
Fernando do Nascimento Gonçalves ............................................................................................................................... 50
LOGOS

Editorial
As narrativas literárias permitem identiicar os vínculos sociais carac-
terísticos de cada época. Ao mesmo tempo, as prosas e os versos sem-
pre possibilitaram a transgressão de regras, representando alentada
nascente de inspiração. Nesse contexto, a relação identidade/literatura
é uma via de mão-dupla, em que a sociedade e a narrativa poética se
confundem como fontes criadoras. Este número da Logos traz artigos
sobre esta temática, reunindo abordagens antropológicas, semioló-
gicas e históricas, entre outras. Os autores, na sua maioria, lançaram
um olhar sobre as teorias literárias contemporâneas, apresentando,
com isso, um material precioso para os estudiosos de comunicação
e de literatura.
Com esta edição, o Conselho Editorial da Revista Logos mantém sua
proposta interdisciplinar de mapear as pesquisas das diversas áreas
que permeiam a comunicação social. Desta vez, a literatura é o campo
de discussão, tendo como viés de análise as diversas manifestações de
identidade cultural e social. Este número da Logos contribui, portanto,
para a relexão do nosso mundo globalizado e midiático, no qual ic-
ção e realidade se emaranham cada vez mais, levando o estatuto da
verdade a se fragmentar num universo de signos, símbolos e imagens.
Aos leitores, ica formulado o convite para se deliciarem nas páginas
seguintes com direito a vôos a campos mais distantes e diferentes.

Ricardo Ferreira Freitas


LOGOS

Apresentação
Desvelamento iccional:
da antinomia da comunicação
Héris Arnt*

A discussão sobre icções e iden-


tidades tem uma dupla articu-
lação: primeiro, a problemática
da identidade reaparece com força neste
momento de ideologia da globalização,
sem reconhecer o outro, seria impossível
a construção da identidade cultural. “A
existência da alteridade é necessária
para constituir a identidade cultural”. Na
literatura, a identidade explode, num
da autonomia, que tornam impossível
a formação de uma identidade individual. A
identidade, como uma exercício de liber-
dade, de reconhecimento do outro, de que
fala o artigo de Lamartine DaCosta, não
de um mundo sem fronteiras; segundo, processo de destruição de fronteiras. A só é improvável, mas não pode ser sequer
e mais importante, ela se forma pelo identiicação ica para os cancioneiros, pensada nos dias de hoje. Sem referências,
discurso, enquanto ato de pensar a si cuja leitura exige conhecimento de có- o sujeito não perde somente a identidade,
mesmo, em relação ao outro, por meio digos, pertencimento à comunidade. E é mas o discurso, como mostra o artigo de
da narrativa. A retórica e a poética são justamente isto que permite à literatura Erick Felinto: “A dessubstanciação da fala
formas, ao mesmo tempo, de desvela- reverter a ordem, ao reverter a ordem da o leva a imergir num universo de signos,
mento e invenção. O conjunto de artigos linguagem. O que a literatura revela - e símbolos e imagens, numa proliferação
deste número de Logos abre múltiplos temos o vasto percurso da historiograia incessante de sentido que nunca encontra
caminhos para a discussão sobre narrativas literária mostrando isso -, é que o univer- repouso”.
de identidade. sal não representa o im do pessoal, do A contemporaneidade vive este aparen-
Lamartine DaCosta mostra a tensão mais íntimo, do complexo, do especíico, te paradoxo: a comunicação globalizada e a
que envolve a questão: “A identidade da identidade. impossibilidade de construção de novas
não é somente um estado típico de uma É na singularidade dos maiores escritores narrativas globais face à falência do dis-
determinada cultura, mas sobretudo uma regionais, aqueles que aprofundam, no curso da verdade. A verdade devendo ser
dramatização de seus relacionamentos limite do possível, o local, o especíico, o entendida como a conformidade entre a
com o mundo.” A dicotomia entre global particular, que encontramos a reversão palavra e a coisa, entre o fato e o enuncia-
e local, entre universal e singular, própria da ordem, que provoca a destruição das do, o ideal do cogito cartesiano. “Não que
da comunicação/incomunicabilidade, é fronteiras. Estou escrevendo esta frase tenha se tornado inviável contar estórias”,
desvelada no texto literário. É neste sen- pensando no mais regionalista dos escri- mas quando o discurso perde o estatuto
tido que a identidade está no centro da tores americanos, Faulkner, em Requiem de verdade, o que resta é o fragmento, a
comunicação, não deste inal do século, for a nun, tema retomado por Camus, com proliferação de signos, todos reivindican-
mas desde as inquietações do homem da o globalismo existencialista – que confere do a condição de produção de sentido.
pólis grega, como demonstra o artigo. Por a todo o homem de qualquer momento e Diante da proliferação de signos, Erick Fe-
trás do discurso da globalização, o que está lugar o mal de ter que levar a existência. linto visualiza duas posições para o sujeito:
em jogo é a capacidade de se relacionar, Ou, passando pelo Brasil, em Vidas secas “aceitar alegremente a fragmentação de
não com uma substância ou com objetos de Graciliano Ramos. Isto sem falar no mais seu discurso e propor um modelo de exis-
mediados, mas com outros homens, com es- universal dos escritores do século XX, James tência como puro jogo de possibilidades”
ses outros produtores de discursos, capazes Joyce, que, errante numa Europa sem fron- - mostrando indisfarçadamente, seguindo
de estabelecer identidades e diferenças - de teira, trazia “sua Irlanda na alma”. os passos de Umberto Eco, o prazer de seguir
se comunicarem, em última instância. Essas questões nos remetem diretamen- esta via; ou, fora dela, resta ao sujeito “revol-
A irredutibilidade da literatura a ver- te à globalização na contemporaneidade e tar-se contra a desvalorização do sentido e
dades unívocas coloca, melhor do que nos permitem ver que ela não é o mal radical procurar sua recuperação”.
qualquer outra coisa, o oximoro da por ser global ou universal, mas por ser unifor- As tentativas dos novos gnósticos, de
contemporaneidade: o universal do sin- mizadora – o que a comunicação está a dizer recuperação do sujeito, parecem pobres
gular, o redutor do global. No artigo de é: uniformiza-te ou te cala. A comparação criações diante da proliferação rizomática
Fátima Regis, entramos na discussão da com 1984, de George Orwell, no artigo de construções de signos. Para Felinto, “a
singularidade literária, que não exclui a de Erik Felinto é exemplar. super-interpretação é uma das doenças
universalidade: ao contrário, se a socieda- Sérgio Arruda nos mostra pelo viés que mais seriamente nos acometem
de permanecesse voltada para si mesmo, da literatura a morte do sujeito e o im
LOGOS

neste im de milênio”. e ao desenraizamento transcendental”. nessas relações culturais a fatia latinizada


Reinando-se o pensamento semiótico Ao aproximar as duas obras, a autora tem dos Estados Unidos. A identidade de Por-
de Eco, para quem os bens culturais não pas- o objetivo manifesto de estabelecer uma tugal e Espanha passa por essas questões,
sam de conjuntos de signos, que reletem correlação com a época atual: “Hoje, no tanto como para a América Latina. Neste
as ideologias e os códigos dominantes da luxo mundializado da mídia, só circulam momento, em que Portugal se integra
época em que foram elaborados, incita-nos os signos nacionais sob a chancela do exó- à comunidade européia, ele reivindica
a pensar que a globalização é um código tico, pagando o pedágio da estereotipia e não somente a identidade, mas ser o
dominante, ideológico, discurso totalizante da pauperização semântica”. depositário da memória do Velho Conti-
da não totalidade, da não utopia. Nízia Villaça procura entender o assunto nente: “somos parte pequena da Europa,
Luiz Felipe Baêta Neves propõe leitura neste período de grandes interrogações entretanto temos conservado um estilo
crítica de Sérgio Rouanet, que apresenta sobre transnacionalização, globalização e que foi europeu, somos terra de memória
uma nova visão sobre o tema nesta época situações de interculturalidade. “Quando e os europeus devem encontrar-nos para
de cultura globalizada – a da identidade a circulação cada vez mais intensa de se encontrarem”.
universal. Discordando parcialmente pessoas, capitais e mensagens nos põe Hugo Loviso mostra de maneira enfá-
do pensamento dicotômico de Roua- em contato simultaneamente com várias tica e poética que uma relexão sobre a
net, que vê uma oposição entre cultura culturas, nossa identidade já não pode ser globalização passa necessariamente pela
“global” e cultura “universal”, reivindica a deinida pela associação exclusiva à co- compreensão do hibridismo cultural do
singularidade do olhar, “da complexidade, munidade nacional ou apenas na ótica da que ele chama de iberismo. A globalização
do observar lento, especíico e diferencial diferença”. O que a autora quer mostrar é cultural leva a um constante processo de
como necessária contraposição social, e a atualidade do pensamento latino-ame- redefinição do que somos em relação
mesmo política, cultural e moral ao aplas- ricano na discussão sobre globalização. aos outros. Não é essa a inquietação
tante universo do universal, do global, do A identidade pressupõe uma discussão permanente do pensamento latino-
planetário”. Eliminando os esquematismos “cultural e processual, supondo uma ativi- americano?
da oposição entre universalidade e singula- dade constante na metabolização do par Fica assim fechado o conjunto dos
ridade, ele vai além de Rouanet e mostra global/local.” Coerente com o pensamen- artigos publicados neste número da re-
a ligação necessária e indispensável entre to de Canclini, para a autora, o hibridismo vista Logos, sobre icção e identidades.
o particular e o universal, em face da qual cultural é a resposta da América Latina à Identidade, narrativas literárias e discurso
a globalização seria um pobre pastiche. problemática da assimilação e inluência sobre identidade se confundem, uma
Relegando a globalização à dimensão européia - o que implica rejeição do que vez que é impossível separar identidade
de uma ideologia da totalidade - “o que deve ser recusado e airmação de seguir das narrativas fundadoras. O que passa
o globalismo reclama é, de fato, uma su- seus próprios caminhos. O risco a ser por todos os artigos escritos para Logos
bordinação de diferenças à idéia de um evitado, para Nízia Villaça, é “a tentativa é que identidade não é exclusão, é o
bem único total” -, Baêta Neves relança a de transformação da empiria híbrida discurso, é o diálogo consigo mesmo e
questão, invertendo a ordem dos dados: latino-americana com conceitos e prin- com o outro.
“agora, no jogo das identidades, surge cípios niveladores e universalizantes.
uma poderosa força saudavelmente com- Revisitando Macunaíma, de Mário de
plicadora, a da identidade universal”. Andrade, e o movimento antropofágico,
A problemática construção da identi- Nízia Villaça mostra como na América La-
dade brasileira no artigo de Ângela Dias tina o processo de identidade não exclui
é pensada a partir da literatura. Para a a alteridade, mas cria sentidos, a partir do
autora, o processo de gestão do Brasil tem “agenciamento de diferenças”. Sempre é
“a literatura como promotora”. A mesma bom lembrar que o hibridismo cultural
temática, ampliada para o contexto foi capaz de produzir o gênio barroco em
latino-americano, aparece no artigo de toda a América Latina.
Nízia Villaça a partir de uma perspectiva Hugo Lovisolo, seguindo o mesmo
da hibridização cultural. Hugo Lovisolo caminho do hibridismo cultural, pen-
vai encontrar num espectro geográico sado pelo mexicano Canclini, encontra
e histórico mais amplo, que inclui Espa- no mundo luso-espanhol - da época das
nha-Portugal, apoiando-se numa tradição navegações ao colonialismo, passando
da latinidade já presente nas obras de pelo domínio e inluência cultural - o vi-
juventude de Gilberto Freyre, o germe gor da globalização. Espanha e Portugal
da globalização. impõem um processo de padronização
Ângela Dias, viajando pela constru- à AL, mas não icam imunes à inluência,
ção da identidade nacional, lança mão pois se “globalizar é padronizar, a etapa
da metáfora de O selvagem da ópera de básica parece ser a de embaralhar as
Rubem Fonseca, comparando-o a O povo ordens locais; heterogeneizar o singu-
brasileiro de Darcy Ribeiro. O romance, lar, em relação a si mesmo, para poder
“ao apresentar, ironicamente, a história do homogeneizar o global”. As relações
povo brasileiro como melodrama lacrimoso luso-espanholas com as Américas são * Héris Arnt é editora da Logos e
e farsesco fatalismo da macaqueação, não caracterizadas pela ambigüidade, ora “as- Doutora em Sociologia.
foge à tradição intelectualista, à razão cética similadas”, ora “rejeitadas”. O autor inclui
LOGOS

Identidade cultural:
semelhança ou diferença;
ritual ou comunicação?
Lamartine P. DaCosta*

RESUMO
A questão da identidade surge na antiga Grécia,
nas relações e conflitos entre as cidades-
A identidade não é somente um
estado típico de uma determi-
nada cultura, mas é sobretudo
uma dramatização de seus relacionamen-
tos com o mundo. Esta postulação con-
mais importante da cosmogonia grega
antiga (DaCosta, 1994). Isto aconteceu
porque a região em foco, o Monte Kro-
nos, morada mítica de Zeus, Gaia e seus
ilhos também deuses, situa-se nas mar-
Estado. Na cidade de Olímpia, centro de
cruzamento cultural, local da paz negociada, ceitual foi progressivamente elaborada gens do Alfeios, rio que cruza o vale de Elis
onde se realizavam os jogos olímpicos, nasce pelo autor do presente ensaio no lidar de oeste para leste (das montanhas centrais
a identidade grega como construção coletiva. cotidiano com o fenômeno da identidade do Peloponnesos ao Mar Mediterrâneo)
A identidade aparece, então, não somente cultural, em prática e em teoria. Atuando como via natural de acesso, no interior, às
como o estado típico de uma determinada como professor da Academia Olímpica ilhas e às colônias da Grécia Antiga (Yalouris,
cultura, mas, sobretudo, como dramatização Internacional, na Grécia, desde 1991, tive 1996). Olímpia, no caso, loresceu e se desen-
de seus relacionamentos com o mundo.
Palavras-chave: identidade; Grécia Antiga;
que assumir como princípio ordenador volveu numa convergência do Alfeios com
Roma Antiga. a compreensão da identidade, em suas as encostas ocidentais do Monte Kronos.
manifestações peculiares por naciona- O resultado da fusão dos mitos funda-
SUMMARY lidade, etnia e costumes, de alunos e dores de Gaia e Zeus com uma disposição
The question of identity comes out in the professores de origens diferenciadas e geográfica de abrigo e acesso não foi
Ancient Greece, in the relations and con- contrastantes. numa cidade-estado ao estilo da Grécia
licts between the cities-states. In the city of Tal entidade acadêmica de índole Antiga, mas a geração em genius loci (lu-
Olympia, the center of intertwined cultures, multicultural e internacionalista situa-se gares de referência carismática) de culto
local of the negotiated peace, where it was
em Olímpia, na região de Elis-Pelopon- e peregrinação, como se observa hoje em
played Olympic games, it emerges the Greek
identity as a collective construction. The
nesos, onde se pressupõe ter surgido Jerusalém e Santiago de Compostela. Mas
identity arises, in this way, not only as the conscientemente a identidade cultural o que distinguiu Olímpia destas cidades
typical condition of a determined culture, but como construção coletiva, pelo menos sacrossantas foi o caráter performático e
also as the dramatization of its relationships em termos da cultura ocidental. Uma im- antropomórico do culto: competições de
with the world. pregnação histórica revela-se, portanto, atividades físicas na feição dos esportes
Keywords: identity; Ancient Greece; Ancient como inevitável em Olímpia ao se exercer de hoje, de oratória reunindo ilósofos e
Rome. vivências intelectuais. Estas, as mais das soistas, de poesia, além da exibição de
vezes, invocam o passado da cidade como pintura e estatuária. Coroando este típico
RESUMEN
uma produção cultural, uma consagração festival de consagração, ocorriam os Jo-
La cuestión de la identidad surge en la Grecia
Antigua, en las relaciones y conlictos entre
étnica do próprio homem, por si mesmo gos Olímpicos, mantendo o ritmo agrário
las ciudades-Estado. En la ciudad de Olim- revelado. a cada quatro anos (daí a denominação
pia, centro del cruce cultural, local de la paz Há, então, uma inspiração humana de “olimpíadas” para este ciclo).
negociada, donde se realizaban los juegos em Olímpia, que lhe dá um signiicado Olímpia, em suma, constituiu uma
olímpicos, nace la identidad griega como universal concreto nos dias presentes, mediação sincrética e uniicadora em que
construcción colectiva. La identidad aparece, mas que no passado - cerca de 1000–1200 a religião confundia-se primeiramente
en esa ocasión, no sólo como el estado típico a.C. - prendeu-se a um mito primevo: com o culto à natureza e depois aos fazeres
de una determinada cultura, sino, sobre todo, Gaia, a densa mãe da natureza. Nesta humanos em excelência corporal e artes,
como dramatización de sus relaciones con
primeira conformação de Olímpia como que caracterizaram a civilização grega
el mundo.
Palabras-llave: identidad; Grecia Antigua; santuário, veneravam-se as dádivas da (DaCosta, 1997). Mais do que isso, Olímpia
Roma Antigua. natureza e os seus ciclos regeneradores. representou por mais de dez séculos (VIII
A mitiicação da natureza local acabou a.C. ao III d.C.) uma referência concreta e
por se associar ao culto de Zeus, o deus amplamente visível da cultura helênica.
Note-se que as cidades-estado somente
LOGOS

tinham de comum a língua, a religião, a Yalouris, chegou aos dias presentes sob unidade. Esta, por sua vez, construiu-se
etnia e certas tradições orais, como as de forma inequívoca: um acordo escrito por auto-imagem dado a que não havia
Homero. Daí a Grécia Antiga não ter sido entre os reis da Eleia e de Esparta sobre o simbolismo uniicador de um estado,
propriamente uma nação ou uma federa- as rotinas de propagação e manutenção reino ou república, como os demais povos
ção de cidades, já que as cidades-estado da trégua. do Mediterrâneo, sobretudo os romanos.
jamais deixaram de promover guerras Em resumo, o legado histórico de Daí a importância de um ritual voltado
fraticidas, exceto nos casos de invasão Olímpia concerne à identidade cultural para a representação e de uma forma
por inimigos externos. “produzida” um nexo que somente se de comunicação que ixasse a imagem
Na essência, Olímpia foi produto resgataria no inal do século XVIII, com a construída deste procedimento simbólico
da ekeicheria, isto é, da trégua, da paz vaga do romantismo na Europa. Claro está e comunal. Uma comparação com Roma
negociada. Tendo como justificativa a que esta produção associava o ritual a um do mesmo período pode iluminar o jogo
realização dos Jogos Olímpicos, as cida- processo de organização e comunicação de semelhanças e diferenças que desde
des-estado obedeciam um pacto de não que passou por sucessivos aperfeiçoa- então tem marcado o fenômeno de iden-
agressão. Com efeito, nas Olimpíadas mentos. Esta interpretação pertence a tidade cultural como forma mentis, isto é,
construiu-se a identidade cultural grega. E Stephen Miller (1974), ao transcrever frag- por uma forma elaborada de pensar.
esta acabou sendo um resultado da cren- mentos de textos que discorriam sobre os De fato, os romanos tornaram-se, na
ça sacralizada e narrada (mûthos), da lei Jogos Olímpicos, nos quais se discerniam Antigüidade, eméritos niveladores de
(nomos) e da excelência humana (aretê) funções tais como a de agonothetes (pa- diferenças entre etnias e nações por eles
que eram divulgadas pelos spondopho- trocinador, condutor e inanciador dos dominadas. Foram eles que introduziram
roi, mensageiros de Elis que operavam jogos), gymnastes (treinador proissional a unidade entre diferentes (1996). Em
em rede cobrindo todas as regiões da de atletas nas cidades que se represen- oposição ao isolamento étnico grego,
Grécia arcaica. tavam nos jogos) ou theoria (delegação Roma, ao ocupar quase toda a Europa e
Nikos Yalouris1 prefere entender o de uma cidade para representação nos partes da Ásia e da África, instituiu uma
fenômeno da identidade nascido no Altis festivais de Olímpia). identidade por diferença, cuja expressão
(área sagrada dos Jogos) como uma ex- A identidade produzida, nesse caso, mais conhecida é a pax romana. Ainda
pressão do cosmopolitismo que a Grécia deve ser focalizada condignamente no se distinguindo dos gregos, os romanos
experimentou ao consolidar sua cultura, passado helênico, mas pretendo aqui assumiram um padrão de conduta que
com auge no século V a.C (Yalouris, 1997). desenvolver a hipótese de que seus pretensamente substituiu o ritual da se-
Ao se expandirem do continente para as elementos essenciais continuam hoje melhança por um código de convivência
ilhas e depois para as colônias, que alcan- presentes e se manifestam em condições entre diferentes.
çaram a Espanha e as costas africanas, os idênticas àquelas geradas em Olímpia. Ao se fazer conviver as diferenças ét-
gregos encerraram-se em sua cultura, por Este pressuposto ganha validade diante nicas e culturais com a norma igualitária
eles julgada superior - os demais povos da revisão que está passando o conceito - a lei romana -, também se construiu
eram os “bárbaros”, aqueles que falavam uma identidade que Darcy Ribeiro (1995)
uma língua estranha -, mas aperfeiço- recentemente vinculou à noção de “povos
aram o modo de ver e de se relacionar germinais”: os romanos, tanto quanto aos
com o mundo exterior. A argumentação Em última instância, a identi- iberos, ingleses e russos no mundo mo-
de Yalouris desenvolve-se em torno de dade cultural da Grécia Antiga foi derno, destacaram-se na colonização de
Prometeu e Hércules, deuses cultuados típico exemplo de uma mentali- outros povos por aceitar misturas étnicas
no Altis e mitos fundadores da cultura e culturais em lugares diferenciados, mas
ocidental pelo lado da instrumentalização
dade que sobreviveu e se repetiu impondo padrões centrais de referência
da vida. Ambos eram viajantes e cum- entre românticos dos setecentos para todos os subjugados. Este processo
priam epopéias que faziam os homens sob o rótulo de ens est ens, toda ecumênico de convivência social explica-
se aproximarem dos deuses, o primeiro coisa é igual a ela mesmo. ria inclusive - ainda acompanhando Darcy
doando ao homem “o fogo sagrado” e o Ribeiro - o Brasil quanto à sua formação
segundo, com seus trabalhos, tornando nacional.
o homem “vizinho de Zeus”. Em contas finais, há conveniência
A lição de Olímpia, partindo da de identidade cultural quando inserido numa tipologia de identidade cultural
interpretação de Yalouris, seria então no processo corrente de mundialização sob forma de um continuum: num extre-
aquela de uma auto-elaboração coletiva, da vida, como examinarei posteriormen- mo, temos a construção grega, seletiva e
tanto funcional como derivada de um te. Em última instância, a identidade cul- excludente, e em outro, a elaboração ro-
propósito. Ainal, mais de dez séculos de tural da Grécia Antiga foi típico exemplo mana sustentada pela inclusão e pelo seu
obediência social a um procedimento de uma mentalidade que sobreviveu e se respectivo controle. Não haveria nestas
complexo, envolvendo todo um grupo repetiu entre românticos dos setecentos opções de identidade uma contradição,
étnico espalhado em vasta área, relete sob o rótulo de ens est ens, toda coisa é em termos, mas sobretudo um processo
em princípio uma necessidade e uma igual a ela mesmo. de airmação no interior da cultura ou no
ordenação consciente. A evidência da O mundo grego ao se expandir exterior a ela. Por outro lado, o jogo da
relação direta dos governantes gregos valorizou seus semelhantes e excluiu semelhanças e diferenças está presente
com o ritual das Olimpíadas, segundo os diferentes, criando um sentido de em todo o continuum, como também
LOGOS

a comunicação que culmina no ritual na vertente da consciência, inaugurada e tem como contraste, no outro extremo,
entre os gregos e na instrumentalização pelos gregos, chegaremos certamente versões cientíicas, mormente geradas
dos romanos. à identidade de indivíduos e de grupos pela sociologia e antropologia.
Ainda hoje ao se explorar a região de restritos à feição dos escritores român- Portanto, a herança “romana” abrigou-se
Olímpia, torna-se perceptível a distinção ticos brasileiros do século XIX. Mas se na variedade de tipiicações que qualquer
entre as mentalidades grega e romana; adotarmos o ponto de vista funcionalista cultura admite ao se relacionar com as
a primeira mantendo-se iel ao princípio da necessidade social, aqui vinculado ao demais e que as ciências sociais estão mais
básico de isolamento e a segunda que evo- pragmatismo exacerbado dos romanos, aptas a mapeá-las. Sendo considerado
luiu até os dias presentes reproduzindo-se podemos penetrar no âmbito das teorias este argumento, o passo seguinte é o de
com seu sentido operacional e normativo, que explicam a criação das identidades atualizar as manifestações que envolvem
cujo resultado inal e característico é a nacionais, surgidas a partir do século semelhantes e diferentes, como também
tecnologia de ponta. A observação dire- verificar o papel da comunicação, antes
ta da vida cotidiana grega, seguindo as um pressuposto essencial na construção
interpretações de Nicholas Cage (1993), Há conveniência numa tipo- da identidade coletiva. Em tese, estes três
mostra que ainda sobrevive a mentalidade objetos de observação constituem a base
do topos, tal como acontece com visões logia de identidade cultural sob do continuum por estarem presentes em
do mundo por meio de locus, entre os a forma de um continuum: num toda a sua extensão.
usuários da metodologia cientíica. extremo, temos a construção O jogo de exclusão-inclusão entre
Topos, efetivamente, é o modo tradi- grega, seletiva e excludente, e semelhantes e diferentes tornou-se,
cional de se referenciar diante do mundo desde o século XIX, um tema ideológico
por pontos objetivados em dimensões
em outro, a elaboração romana afeto ao etnocentrismo europeu. Hou-
temporais, espaciais e até mesmo por sustentada pela inclusão e pelo ve, naturalmente, expressões prelimina-
idéias e conceitos. Por locus entende- res sobre a descoberta do “outro”, como
se uma ordem de relacionamento que no início da colonização da América no
liga vários pontos entre si, deinindo-os passado. A minha preferência para delimi- século XVI, mas a rejeição dos não-eu-
primeiramente por uma localização. Em tação deste estudo incidiu sobre a iden- ropeus tornou-se generalizada no auge
outras palavras, a mentalidade grega tidade coletiva de postulação cultural, do nacionalismo e da colonização. Esta
antiga cultivava o singular, ao passo que menos sujeita a desvios contingenciais contextualização fez-se mais funda-
os romanos de mentalidade imperial produzidos por indivíduos, grupos e mentada recentemente nas décadas de
coniavam nas relações entre partes de tramas político-nacionalistas. 70 e 80, por intérpretes da perquirição
um todo. Pretensamente, a especiicidade Voltando à origem grega da identi- do “outro”: Edward Said, focalizando o
de cada forma mentis delineou o tipo de dade cultural produzida, cujo impacto orientalismo como uma invenção do
identidade cultural adotado por cada ainda se faz sentir no Ocidente e de Ocidente, e Tzvetan Todorov, que reela-
povo em sua história. certa forma caracteriza seu processo de borou o etnocentrismo europeu como
No caso grego, se especialmente re- civilização, cabe retomar a interpretação um sistema de valores construídos por
metido à Olímpia, a identidade cultural de Werner Jaeger, em sua obra clássica intelectuais.
seria uma expressão de vontade popular, Paidéia. Para este historiador alemão de A vertente explorada por Said, escre-
o que não se torna igualmente claro nas cunho helenista, a formação do povo vendo em língua inglesa, é mais sintomá-
circunstâncias de Roma Antiga, produto grego na Antigüidade tornou-se possível tica e de fundo histórico. Sintetizando, diz
de uma elite jurídica, administrativa e mi- pela conjugação, num todo integrado e ele ao deinir o orientalismo como um
litar de maior comprometimento prático coerente, da política, religião e educação. imaginário social construído deliberada-
e secular do que a civilização grega. Re- Jaeger creditou a esta convergência de mente pelas elites dirigente e pensante da
sulta desta distinção que, no continuum expressões singulares do mundo grego Europa, que esta versão preconceituosa e
da identidade cultural, o extremo ora o surgimento do conceito de identidade mítica “foi submetida ao imperialismo, ao
denominado de “romano” tem predomi- cultural no século passado na Europa. positivismo, ao utopismo, ao historicismo,
nância funcionalista, seguindo-se uma Da concepção étnica, nacional e ter- ao darwinismo, ao racismo, ao freudismo,
abordagem sociológica antes aqui ritorial européia, a identidade cultural foi ao marxismo e ao spenglerismo” (Said,
admitida. Já no extremo “grego” seria sendo apropriada pelas ciências humanas 1990). Todorov (1993), a seu turno e em
dominante um sentido de consciência, no atual século, mas em contraponto textos produzidos em francês, analisa
o que se entende pelos pensamentos e com uma abordagem emancipatória, por categorias o etnocentrismo e o cien-
sentimentos do homem, permitindo-o após a Segunda Guerra Mundial, quando tiicismo, atribuindo a estas tendências
absorver estímulos de seu entorno e do movimento desenvolvimentista do ideologizadas um fundo racista de extra-
lhes dar uma resposta, como deiniu Terceiro Mundo. Estas diferentes abor- ção universalista, vindo das elaborações
Soares Pinto (1983). dagens não se excluíram desde então, intelectuais libertárias do século XVIII e
O desdobramento de evidências reforçando a idéia do continuum, antes até mesmo de épocas anteriores.
históricas e suas interpretações adotado aqui proposta. Em geral, hoje pode-se Em ambos autores, contudo, há uma
pelo presente estudo aproxima-se então admitir que a emancipação - deinida em convergência sobre a origem da iden-
das teorias recorrentes sobre identida- termos políticos, religiosos e educacionais tidade construída entre semelhantes: a
de cultural. Note-se que se evoluirmos - reside no extremo “grego” do continuum rejeição opera como uma forma de legi-
LOGOS

timação da auto-defesa contra o outro. A por qualquer cultura em particular e deve gurança para o risco ou das virtudes para
meu ver, teríamos então uma “identidade surgir da experiência de todos os povos as preferências. A identidade cultural em
por confronto”, em que os semelhantes do mundo, cada um dos quais airma sua meio a esta profunda vaga de mudanças
não se isolam dos diferentes, como pra- identidade. Identidade cultural e diversi- também estaria sendo atingida, pelo
ticaram os gregos, nem os diferentes são dade cultural são indissociáveis”. julgamento de John Thompson, que
dominados e incorporados ao grupo dos Coerentemente, as definições pas- compartilha dos mesmos referenciais
semelhantes, como izeram os romanos. sam a progredir na dimensão cultural do teóricos de Heelas. Eis como Thomp-
Paradoxalmente, os semelhantes necessi- desenvolvimento; e, após, nas relações son contextualiza a identidade cultural:
tam dos diferentes a im de se autoconhe- entre cultura e democracia, incluindo o “Com o desenvolvimento das sociedades
cerem e se legitimarem por comparações sentido patrimonial, artístico, educacio- modernas, há um declínio gradual nos
e exclusões. nal e cientíico, chegando inalmente à fundamentos da ação e no papel da au-
Violências à parte, como aconteceu toridade tradicional, isto é, no aspecto de
com o genocídio racial na Segunda Gran- legitimação e normativo da tradição. Em
de Guerra, o jogo entre nós e os outros “O universal não se pode outras abordagens, contudo, a tradição
- usando-se expressões caras a Said e retém seu signiicado, particularmente
Todorov - é o que estaria presente no in- postular em abstrato por qual- como meio de dar sentido ao mundo
terior do atual fenômeno da globalização quer cultura em particular e (aspecto hermenêutico) e como via de
econômica e simultânea mundialização deve surgir da experiência de criação do sentido de pertencimento
de certos traços culturais. Esta hipótese todos os povos do mundo (...). (aspecto de identidade)”. (1996, p.89)
permite completar o delineamento do Thompson prefere ainda focalizar
continuum, uma vez que semelhantes e
Identidade cultural e diversidade a identidade por pertencimento na
diferentes nele se situam em três arranjos cultural são indissociáveis.” história da coletividade que a postula,
elementares: isolados (gregos), juntos à vista de concepções, crenças e pa-
por dominação (romanos) e juntos em drões de comportamento retirados do
confronto (mundo atual). Esta teorização, comunicação (parágrafo 37): “Os meios passado e transformados em símbolos
entretanto, não explica a dinâmica da modernos de comunicação devem (Idem, p.93). Este mesmo analista fa-
identidade cultural de modo suiciente, facilitar informação objetiva sobre as vorece a comunicação de massa como
embora aborde sua necessária pers- tendências culturais nos diversos países, coletora e reforçadora destes símbolos,
pectiva geral. Importa, então, testar o sem comprometer a liberdade criadora e usando exemplos da tradição que
continuum da identidade cultural em a identidade cultural das nações”. não se dissolveram na avassaladora
termos de proposições quanto ao papel Isto posto, conirma-se o papel funda- expansão da mídia eletrônica. E estes
assumido pela comunicação. mental da comunicação na construção e exemplos estão entre as principais
Em primeiro lugar, consideremos preservação da identidade cultural nos mudanças sociais de inal do século:
a própria definição contemporânea dias atuais, porém há um impasse entre a ressurgência do Islã e os movimentos
de identidade cultural promovida por a recomendação citada e o confronto religiosos e esotéricos das décadas de 70
entidades internacionais. Diz a Unesco cogitado no continuum. Como os meios e 80. (Idem, p.94)
(1983), por exemplo, nos dois primeiros de comunicação estão basicamente As explanações de Thompson se
parágrafos da “Declaração do México controlados pelas culturas mais econo- estendem pelo efeito da mídia sobre a
sobre Políticas Culturais”: “Cada cultura micamente desenvolvidas, sucede-se que interação social que estaria sendo refor-
representa um conjunto de valores úni- o padrão codiicado romano do passado çada, embora se reduzindo à condição
cos e insubstituíveis, já que as tradições já teria hoje uma versão equivalente, na de aproximação entre pessoas e grupos.
e formas de expressões de cada povo chamada “comunicação global”, disposta Em outras palavras, a comunicação ele-
constituem seu modo mais hábil de estar por um sentido tecnológico unificado trônica teria mudado a interação social
presente no mundo.” E seguiu: “ A airma- que minimiza a produção local. Ou seja: como forma e não como conteúdo: “O
ção da identidade cultural contribui, por o ecumenismo pela força dos romanos declínio de alguns aspectos ritualiza-
isto, na liberação dos povos. Ocorrendo o teria como sucessor um ecumenismo dos da tradição (como na freqüência às
contrário, qualquer forma de dominação pelo conhecimento técnico e poder igrejas) não deve ser necessariamente
nega ou deteriora a identidade.” econômico, já instalado em todos os interpretado como declínio da tradição
Nestes dois parágrafos de abertura, é quadrantes da terra. enquanto tal. Isto porque eles expressam
nítida a inspiração “grega” de airmação Sendo dominante a comunicação simplesmente o fato de que a manuten-
cultural, mas logo delimitada pelo caráter global, há que se examinar o conteúdo ção da tradição tem se tornado menos
emancipador, que se dirige mais à domi- pós-moderno da cultura atual que lhe dependente da ritualização. A tradição,
nação vinda do exterior à cultura do que corresponde. Neste âmbito teórico há com efeito, está crescentemente se desri-
ao seu isolamento. Após deslocar o foco uma convergência sobre o fenômeno da tualizando”. (Idem, p.98)
para o signiicado patrimonial da identi- “destradicionalização”, como descreve Enim, o jogo entre a comunicação
dade (parágrafos 3 e 4), diz a Declaração, Paul Heelas (1996), ao enfatizar o deslo- e o ritual tem uma reflexão cabível
remetendo para um signiicado “romano” camento nas diferentes culturas de suas que se volta para Olímpia, não como
de tom apaziguador (parágrafo 5): “O uni- condições de necessidade para a contin- o eterno retorno de Nietzsche, mas
versal não se pode postular em abstrato gência, da certeza para a incerteza, da se- como ponto de encontro. Esta circuns-
tância de mediação explicaria porque
LOGOS

a comunicação é reforçada pelo ritual, Nota


porém não vice-versa. Ainal, Olímpia
emergiu ritualizando-se como topos e
1
Arqueólogo grego e meu colega de trabalhos
acadêmicos em Olímpia.
cresceu à feição de locus, resultante da co-
municação entre pontos distantes entre Bibliograia
si. Em conseqüência, foi em Olímpia que
CAGE, N. “Hellas – A portrait of Greece”, Efsta-
a semelhança consagrou-se e iluminou thiadis Group S.A. Athens: American Heritage
a existência dos diferentes, antecipando Press, 1993, p.17-20.
um confronto hoje evidente. DaCOSTA, L.P. “Environment and Sport – An
A idéia do ponto de encontro, aliás, International Overview”. Porto/Lausanne:
contribui para a sustentação da tese do Universidade do Porto/International Olympic
continuum, que seria enim uma traje- Committe, 1997, p. 39-56.
tória de auto-conhecimento humano. E, _____. “Pesquisando o mito de Gaia em Elis
nesta vertente de interpretação, vale ape- Peloponneso”. III Simpósio Internacional sobre
Mitos. Rio de Janeiro: Sociedade Psicanalítica,
lar para a arte como foco de observação
1994.
por sempre enriquecer signiicados. Eis _____. “O reencontro do desporto com a cultu-
que, aos peregrinos das ciências sociais ra”. Esporte com Identidade Cultural – Coletâ-
que hoje penetram na área sagrada do nea. Brasília: INDESP, 1996, p. 39-55.
Altis, uma constatação aparece de modo HEELAS, P. (ed.). Detraditionalization. Oxford:
contundente: as oicinas dos escultores Blackwell Publishers,1996.
Fídias e Praxíteles, que marcam o ponto JAEGER, W. Paidéia – A formação do homem
culminante da arte grega entre os séculos grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
IV e III a.C., localizavam-se ao lado do tem- MILLLER, S. “Arete - Ancient Writers, Papyri and
Inscriptions on the History an Ideals of Greek
plo de Zeus, sendo as únicas instalações
Athletics and Games”. Chicago: Ares Publishers,
seculares de um conjunto de lugares 1974, p. 104-114.
dedicados ao culto. RIBEIRO, D. O povo brasileiro – A formação e o
Tal proximidade tem diversas expli- sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
cações, mas apenas uma propriedade: Letras, 1995.
a estatuária produzida em Olímpia deu SAID, E.W. Orientalismo: o Oriente como inven-
lugar ao uso das medidas canônicas ção do Ocidente. São Paulo: Companhia das
referidas ao homem. Assim, Olímpia era Letras, 1990.
uma teatralização em que os homens SOARES PINTO, R.F. “Desarrollo moderno y
expression cultural: dos modelos”. Culturas.
gregos se observavam mutuamente por
Diálogo entre os povos do mundo, n.1, vol.IX,
comparações físicas e intelectuais, com os UNESCO, 1983.
escultores buscando medidas justas que THOMPSON, J.B. “Tradition and self in a mediated
representassem seus corpos num sentido world”. In: HEELAS, P. (Ed.) Op.cit., p. 89-108.
universal. Não seria este ambiente eivado TODOROV, T. Nós e os outros. Rio de Janeiro:
de símbolos, mas ao mesmo tempo inter- Zahar, 1993.
rogador e objetivo, o ponto ideal para se UNESCO. “Declaração do México sobre Políticas
dar início à longa jornada da identidade Culturais”. Culturas. Diálogo entre los pueblos
del mundo, n.1, vol.IX, 1983.
cultural na história da humanidade? Não
YALOURIS, N. “Ancient Elis – Cradle of the Olympic
seria a identidade, inalmente, a dramatis Games”. Athens: Adam Editors, 1996.
personae de qualquer cultura? _____. “Ancient Elis - Cradle of the Olympic Ga-
mes”, 37th Session of the International Olympic
Academy, Ancient Olympia, 7-22 July, 1997.

* Lamartine P. DaCosta é Doutor


em Filosofia, Professor do Mes­
trado e Doutorado em Educação
Física da UGF/RJ e Professor Con­
vidado da Universidade do Porto,
Portugal.
LOGOS

O conceito de identidade 1

Luiz Felipe Baêta Neves*

RESUMO
A partir da visão crítica do pensamento do
escritor e diplomata Sérgio Paulo Rouanet,
E m recente artigo publicado no
Jornal do Brasil, intitulado “Da
cultura global à universal”2, o es-
critor e diplomata Sérgio Paulo Rouanet
consegue uma façanha: apresentar, com
A citação, extensa, justifica-se por
algumas razões. A primeira seria a de
saudar a relembrança de um texto – o
Manifesto Comunista – que parece muito
pouco lembrado hoje em dia e, muitas
faz-se uma articulação entre cultura global
a erudição e clareza de escrita comuns em vezes, quando a lembrança se dá, é
e cultura universal para mostrar que, se uma
tal dicotomia existe, isso não elimina a identi-
seus trabalhos, uma interpretação esti- apenas para apontá-lo como irracional,
dade e a singularidade culturais como formas mulante e singular de temas que parecem peça de um universo suposto arcaico e
de contraposição à uniformidade global. A beirar a saturação e provocar não mais superado. Outra razão seria a derivada
globalização acrescenta um dado novo: a que tédio e sensação de déja-vu entre de um estranho sentimento de que um
identidade universal. os leitores. Minha intenção, aqui, é a de texto há tanto tempo escrito – e tão longe
Palavras-chave: cultura global; cultura univer- fazer algumas observações sobre certas de nós elaborado – parece tão próximo
sal; identidade universal. propostas de Rouanet. e familiar a todos nós, hoje. Uma terceira
O artigo tem início por um pastiche razão seria a bizarra sensação de que tudo
SUMMARY (apontado pelo próprio Rouanet) do que ele aponta é hoje repetido não como
From the critical point of view from the wri- começo do Manifesto Comunista: “Um uma descrição ou uma crítica da evolução
ter and diplomat Sérgio Paulo Rouanet, it is
espectro assombra o mundo – o espec- do capitalismo, mas, sim, repetido como
made an articulation between global culture
and universal culture to show that, if such tro da globalização”. Este pastiche seria uma fria “veriicação dos fatos tais como
dichotomy exists, it can not eliminate the pertinente porque, diz nosso autor, foi inexoravelmente são” ou, mesmo, como
identity and cultural singularities as ways of Marx quem melhor deiniu o que em nos- um elogio desta situação.
the counterpart to the global uniformity. The sos dias passamos, desenvoltamente, a Rouanet, em seguida, leva adiante
globalization adds a new data: the universal chamar de “globalização”. Nas palavras de seu trabalho de reapropriação de objetos
identity. Marx, neste Manifesto tão bem lembrado tão esquecidos de um texto que nosso
Keywords: global culture; universal culture; por Rouanet, está dito: “A necessidade de inconsciente cultural tende a considerar
universal identity. escoar seus produtos num espaço cada como consabido. Assim, chama a atenção
vez maior leva a burguesia a espalhar-se para o fato de que Marx previu não apenas
RESUMEN
por todo o planeta. Ela precisa inserir-se as origens e a expansão de uma economia
Desde la visión crítica del pensamiento del
escritor y diplomático Sérgio Paulo Rouanet,
em toda parte, construir em toda parte, burguesa mundial, mas previu ou consta-
se hace una articulación entre cultura global estabelecer ligações em toda parte. Atra- tou o surgimento de fenômeno homólogo
y cultura universal para mostrar que, si una vés da exploração do mercado mundial, a quanto às questões culturais. Diz Marx: “O
dicotomía tal existe, eso no elimina la iden- burguesia organizou de modo cosmopo- que ocorre na produção material ocorre
tidad y singularidad culturales como formas lita a produção e o consumo em todos os também na produção intelectual. Os pro-
de contraposición a la uniformidad global. países (...) As velhas indústrias nacionais dutos intelectuais das diferentes nações
La globalización añade un dato nuevo a la foram aniquiladas (...) Elas são substituídas se transformam em patrimônio comum.
identidad universal. por novas indústrias, que não usam mais A unilateralidade e a estreiteza nacionais
Palabras-llave: cultura global; cultura univer- matérias-primas locais, mas matérias-pri- se tornam crescentemente impossíveis, e
sal; identidad universal. mas procedentes das zonas mais remotas uma literatura mundial se constitui a partir
e cujos produtos são consumidos não so- das várias literaturas nacionais e locais.”
mente no país, mas em todas as partes do (apud Rouanet)
mundo (...) Em lugar da auto-suiciência e Com argúcia, o escritor brasileiro mos-
do isolamento, em nível local e nacional, tra a ambivalência de Marx, na passagem
entra em cena um intercâmbio geral, uma escolhida. Se é verdade que a literatura
interdependência geral entre as nações.” corre o risco da mercantilização porque
(Marx, apud Rouanet) estaria atrelada ao processo de internacio-
LOGOS

nalização do capital, também é verdade sos de antropólogos – ao menos aqueles em que envolvem a internalização de
que a literatura pode se beneiciar do de nossa geração e das mais próximas que valores e atitudes que não escolhemos
enfraquecimento de limites nacionais, nos precederam. Contra a universalidade livremente”.
muitas vezes marcados pela unilaterali- apenas conseguimos propor o singular ou A esta dupla coação – da cultura de
dade e estreiteza. o particular, na imensa maioria dos casos. E cada um de nós e da cultura global – se
Aproximando-se do centro das ques- nós nos orgulhávamos – e nos orgulhamos oporia à cultura universal como “derra-
tões de seu artigo, Rouanet sugere que – desse tipo de reivindicação: aquela da deiro refúgio da autonomia” e a última
entendamos “literatura” como “alusão me- complexidade, do observar lento, especí- possibilidade “(...) de concretizar o ideal
tonímica” à “cultura” e propõe como tese ico e diferencial como necessária contra- kantiano da Mündigkeit, da maioridade,
uma “oposição de princípio” entre o que posição social, e mesmo política, cultural e da razão adulta e não-tutelada”. Final-
chamaria, a partir de então, de “cultura moral ao aplastante universo do universal, mente, a cultura universal permite visão
global” e de “cultura universal”. do global, do planetário. crítica tanto do globalismo quanto do
Resumindo as características assinala- Para continuar no caminho da res- nacionalismo.
das para cada uma de tais formações cul- peitosa estranheza que se abateria sobre Para uma ação “prospectiva” do uni-
turais, veríamos que a cultura global está muitos antropólogos ao lerem o texto de versalismo – aberto à expansão da racio-
“sujeita à lógica do mercado”, enquanto Sérgio Paulo Rouanet, creio que o que se nalidade humana e da utopia – é bom que
a cultura universal se constituiria “a partir segue pode suscitar deliciosos melindres não nos esqueçamos do seu “passado”,
de processos dialógicos e de interações intelectuais e políticos: “(...) é na perspec- que nos ofereceria rico observatório de
pessoais”. Os executivos transnacionais tiva da cultura universal que precisamos símbolos e memórias certamente úteis
são os agentes da cultura global; a uni- nos situar se quisermos ‘civilizar’ a cultura para a ediicação do futuro.
versal conheceria espectro mais amplo global, pois nenhuma ação puramente Proponho algumas observações re-
de agentes: intelectuais, organizações nacional poderá inluenciar um processo lativas a possíveis leituras do trabalho de
não-governamentais, parlamentos. A que se estende por todo planeta”, com o Rouanet em questão.
cultura global tende a nivelar particula- que ica reairmado o caráter ancilar do Quanto a uma visão que reduzisse
ridades, enquanto a universal é pluralista nacionalismo em uma batalha que tem a cultura universal a “processos dialó-
e supõe “o desejo e a capacidade dos dimensões que escapam aos limites do gicos” e “interações pessoais”, ressalva
sujeitos de defenderem a especiicidade nacional – e que escapam, penso, ao enriquecedora seria a que dissesse que
de suas formas de vida”. A cultura global limite de outros territórios tão menores o universalismo é também composto de
é a “união dos conglomerados”, enquanto quanto legítimos. tais formas de interação sendo possível,
a universalização cultural é a “união dos Aproximamo-nos, então do desfecho sem maior diiculdade, apresentar outras.
povos”, ou seja, dos que tentam criar da argumentação de Rouanet, quando Mas o perigo teórico e político maior seria
“espaços transnacionais de comunicação” apresenta o cenário possível dessa o de imaginar uma espécie de “democra-
nas ciências ou nas artes. Para Rouanet, portentosa guerra de estrela que tanto cia igualitária” perfeitamente equilibrada
“somos objetos da globalização cultural” nos ilumina quanto nos obscurece e em que o diálogo se daria sempre entre
e “sujeitos da universalização cultural”. amedronta. “iguais” em poder e saber. Seria igual-
Dicotomias tão nítidas não induzem Pensa Rouanet, talvez ingenuamente, mente arriscado esquecer que interações
Rouanet a uma diabolização da cultura que: “A mesma evolução tecnológica pessoais são maneiras de relacionamento
global nem o levam a desconhecer for- que viabilizou a globalização da cultura marcadas pelas diferentes formas sociais
mas de aliança entre uma e outra. Mas pode ser usada pelos que pretendem de inserção cultural, não sendo, pois, rela-
nosso autor está especialmente atento universalizá-la”. E, pois, “não há guerra de ções geradas por um “indivíduo individual”
aos riscos de globalização cultural, e morte entre globalização cultural e univer- fundador de si mesmo e absoluto.
riscos que ele aponta e quer combater. salização cultural”. Surpreendentemente, A atenção para esta marca histórico-
Assim, “o nacionalismo é uma reação para os que esperavam argumentação cultural dos indivíduos deve ser constante
possível às ameaças da cultura global”. digamos “maciça” ou ”sistêmica” ou “mas- na interpretação do texto em pauta
Porém, a arma mais poderosa desta luta siva”, o argumento proposto pelo ensaísta porque seu autor ao exempliicar o que
contra a globalização está em outro âm- se volta para... “pessoas, indivíduos”: chama, signiicativamente, de “agentes”
bito, aquele da cultura universal. Vejamos “Graças à Internet, podemos antever uma de uma cultura ou de outra, ele faz por
porque. época em que todos os homens possam uma espécie de “personiicação” de tais
Na acepção rouanetiana - de uma conversar, por mais distantes que estejam agentes: ora “executivos de transacionais”,
vigorosa linhagem racionalista –, a “glo- (...)”. A esta proposição logo voltaremos. ora “cientistas”, “artistas” etc. A mesma
balização” encontrará no “universalismo” Antes, vamos apresentar algumas conclu- “personificação” aparece em outros
adversário privilegiado. Não que haja sões do eminente ensaísta racionalista. momentos, como na passagem sobre
interesse intelectual ou político em uma “(...) sem a universalização cultural não as possibilidades de comunicação inter-
“vitória final” de um dos contedores, teríamos como realizar o sonho mais alto pessoal pela Internet.
mas porque universos de ação, digamos da modernidade: o livre uso da própria ra- Este estilo inclinado à “personiicação”
“planetários”, são aqueles que têm efe- zão, sem distorções de qualquer natureza, de atores sociais não é necessariamente
tivas condições de força e poder de se porque nossa consciência seria falsiicada pernicioso. Tem, mesmo, um caráter pra-
digladiar. por duas heteronomias, a inculcada pela zerosamente útil se visto como corajosa
Creio que não é necessário lembrar cultura global e inculcada por nossa alternativa a palavras suntuosas e sinfô-
que este tipo de confronto não é usual ou própria sociedade. Os dois condiciona- nicas, de suposta grande abrangência ou
corriqueiro nas conversas, livros e congres- mentos são infantilizantes, na medida soisticação, e palavras que os cientistas
LOGOS

sociais tanto prezam. O perigo estaria, quer dizer simplesmente ter maior poder
penso, em trivializar tais expressões, de discriminar (não valoro a palavra), de
dando-lhes um curso auto-evidente reconhecer diferenças conciliáveis ou
ou emprestando-lhes as funestas cores não, superáveis ou não.
do fundacionismo, ilosóico ou psico- Tais “novas tecnologias” ajudam,
lógico. pois, também, na formação de múlti-
Outro ponto a debater: será que a plas modalidades de “redes culturais”,
cultura global somente “nivela particulari- muitas vezes instáveis, fortuitas, virtu-
dades” – como tantas vezes ouvimos – ou ais, de duração incerta. E com isto se
ela também requer particularidades? (cf. o afasta a excessiva conotação solene,
texto do Manifesto) Como, por exemplo, formal, consciente-de-si, que poderia
ocorre na escolha de mão-de-obra mais se abater sobre a palavra “união”.
barata ou no atendimento, ainda que Finalmente, a questão da infanti-
“externo”, a demandas locais tanto eco- lização por inculcamento, por uma
nômicas quanto simbólicas, culturais. Na imposição irremediável feita aos
verdade, existe um poderoso imaginário indivíduos tanto pela cultura global
da globalização – tão obedientemente quanto pela cultura das sociedades
proclamado por seus arautos, dela sin- em que vivem tais indivíduos, é, sem
gularmente excluídos – que afirma a dúvida, central. Na realidade, tal pro-
inexorável caminhada rumo à unidade posição surge de forma muito sucinta,
mundial. A questão é bem mais complexa: provavelmente pelas limitações que o
o que o globalismo reclama é, de fato, espaço de um artigo de suplemento li-
uma subordinação de diferenças à idéia terário impõe. Se quisermos complexi-
de um Bem Único Total. icá-la, tentando afastar reducionismos
A esta ideologia da Totalidade po- excessivos, teríamos que constituir
deria se aproximar a suposição de que teoricamente as formas pelas quais
a expressão “união de conglomerados” grupos e pessoas resistem às podero-
prenunciaria a (expressão) “Conglome- sas forças infantilizadoras que há nas
rado Único Cultural”. O risco, neste caso, formações culturais designadas. Tais
seria o de sucumbirmos ao imaginário formas de resistência estão tanto no
que nos é repetido, com tanta insistência interior da cultura global quanto no
e presunção, que airma que o número das culturas locais. Se não acreditásse-
Um prevalecerá sobre todos os outro. E mos nisto, teríamos que satanizar tais
mais: que esta vitória será pacíica, porque culturas e, em seguida (ou ao mesmo
será a vitória da razão, da excelência de tempo), procurar refúgio em uma cul-
gestão, da legítima extinção dos menos tura universal angélica, Reino do Bem
aptos (pobre Darwin!). Assim, “união de e da Razão e Depósito Transcendente
conglomerados” deve ser lido como “atual da Salvação Terrena.
união de certos conglomerados em luta Penso que as propostas de Rouanet
com outros conglomerados e com outras podem ser um formidável antídoto aos
formas de articulação econômica e com territórios fetichizados da reação das
diferentes formas de oposição social e singularidades da antropologia, con-
cultural. Os resultados dessas lutas ainda trários congenitamente aos desígnios
não são conhecidos em sua totalidade da “besta-fera” da Hegemonia Cultural.
nem há nenhuma ‘teleologia imanente’ A idéia de uma cultura universal que
que indicasse para uma única e absoluta se contraporia “de igual para igual” à
vitória inal”. cultura global é fértil e não deve ser
A mencionada “união dos povos” apressadamente descartada mesmo
promovida por “contatos inter-indivi- pelos encomiastas dos “saberes sin-
duais” aponta para um recente e pode- gulares”. Notas
roso exercício possível de liberdade que Assim, a questão da identidade cultu- 1
Este texto é resultante de palestra proferida no
é aquele oferecido por redes mundiais de ral ica novamente relançada. Agora, no Congresso Ideologia e Fragmentação na América
informação que diicultam certas formas jogo das identidades, surge uma pode- Latina, promovido pela UFPE e pela FLACSO,
de tirania. Esta “união dos povos” deve rosa força saudavelmente complicadora, realizado em Recife, de 15 a 19/11/1998.
ser vista como imagem abrangente que a da identidade universal, que pode ser 2
Caderno Idéias, de 19/11/98, p.5.
conteria diferentes formas de constituição clariicadora de muitas suposições que
de contatos inter-pessoais, inter-institucio- todos fazemos – mas que, muitos de nós,
nais etc., generalizados. Mas não devemos negam –, força clariicadora que certa-
deixar de constatar que tais “novas tecno- mente não esconde sua luz, emanada do * Luiz Felipe Baêta Neves é Profes­
logias” também ajudam a separar pesso- Iluminismo. Lancemos luz sobre ela. sor na UERJ e na UFRJ.
as, grupos, instituições etc. “Separar” aqui
LOGOS

Literatura e singularidade: topos de


delírio, fantasia e inspiração
para a contemporaneidade Fátima Regis*

RESUMO
A literatura sempre teve a tendência de trans-
gredir regras e brincar com os signos, revelan-

P edimos somente um pouco
de ordem para nos proteger
do caos1. (...) Pedimos somen-
te que nossas idéias se encadeiem segun-
do um mínimo de regras constantes, e a
identidade”. (Vernant, 1991, p.31)
As culturas mitológicas contentavam-
se com a separação “nós/eles” e com suas
próprias crenças. A sociedade ocidental,
por sua vez, surge com a inquietação
do a relatividade de todo discurso e expondo
as fundações do pensamento racional e os associação de idéias jamais teve outro diante da multiplicidade de culturas e
elementos excluídos pela razão. No contexto sentido: fornecer-nos regras protetoras. com a insatisfação da separação “nós/
atual, em que a tarefa do pensamento não é Essas regras - semelhança, contigüidade, eles”.
mais buscar a ordem e a verdade absoluta, mas causalidade - permitem-nos colocar um A forma encontrada pelo Ocidente
produzir verdades singulares, compatíveis com pouco de ordem nas idéias, passar de para lidar com a diversidade de culturas
a multiplicidade da vida, a literatura pode ser uma para outra segundo uma ordem do foi a criação de uma verdade que estives-
vigorosa fonte de inspiração. espaço e do tempo, impedindo nossa se acima de todas as culturas - a verdade
Palavras-chave: literatura; singularidade; ‘fantasia’ (o delírio, a loucura) de percorrer transcendental. Para construir os funda-
ilosoia.
o universo no instante, para engendrar mentos da verdade, a sociedade ocidental
SUMMARY
nele cavalos alados e dragões de fogo.(...) optou pelo recorte racional do mundo.
Literature always had the tendency to break É tudo isso que pedimos para formar uma Apesar das mudanças substanciais dos
up rules and to play with signs, revealing the opinião, como uma espécie de guarda-sol modelos de saber do Ocidente no de-
relativity of all the discourse and exposing the que nos protege do caos.” correr dos séculos, o princípio da razão
fundaments of the rational thinking and the Deleuze e Guattari parece manter-se intacto desde a Grécia
elements excluded by reason. In the updated Clássica. Segundo esta perspectiva, o
context, in which the task of thinking is no mundo é organizado em função de uma
longer to convey the order and the absolute Uma leitura possível deste belo trecho ordem préexistente e de uma verdade
truth, but to produce singular truths, compa- transcendente. Cabe ao homem desven-
de Deleuze e Guattari remete a temas
tible with the multiplicity of life, the literature dá-las com os mecanismos da razão.
could be a vigorous source of inspiration.
caros ao pensamento ocidental: a ordem
e a verdade. De um modo geral, desde a experiên-
Keywords: literature; singularity; philosophy.
Toda cultura busca dar sentido ao cia da pólis grega2, a civilização ocidental
RESUMEN mundo a sua volta com a criação de mitos, utiliza métodos racionais para descobrir
La literatura siempre ha tenido la tendencia crenças, regras e identidades. Estes têm o que há de universal (o que vale para
a transgredir reglas y jugar con los signos, como objetivo “capturar” as idéias que todos) e eterno (o que vale em qualquer
revelando la relatividad de todo discurso y fogem, que se modiicam numa velocida- época) nas coisas, ou seja, sua verdade.
exponiendo los fundamentos del pensamien- de ininita, e organizá-las segundo uma Através destes métodos, os elementos
to racional y los elementos excluidos por la ordem do espaço e do tempo, criando que não se encaixam em seus padrões de
razón. En el contexto actual, en el cual la tarea assim o “guarda-sol que nos protege do exigência (ou o que a razão não é capaz
del pensamiento ya no es buscar el orden y de explicar) são excluídos do campo do
caos”.
la verdad absoluta, sino producir verdades
Em seus esforços para ordenar o saber ou assumem o topos de negativo
singulares, compatibles con la multiplicidad
de la vida, la literatura puede ser vigorosa mundo, uma cultura se pensa em com- na sociedade.
fuente de inspiración. paração com as outras. A existência da A crença em uma verdade transcen-
Palabras-llave: literatura; singularidad; ilo- alteridade é necessária para constituir a dente ao homem legitimou a criação de
sofía. identidade cultural. Vernant airma que se padrões morais que estabeleceram para
o mesmo permanecesse voltado para si, as relações humanas um modelo de
não conheceria o outro e não seria possível comportamento ideal, compatível com a
a construção da identidade de uma cultura. perfeição e o equilíbrio do mundo. Assim,
Nas palavras do autor, o outro é “elemento o certo e o errado, o belo e o feio, o bem e
constituinte do mesmo, condição da própria o mal, o verdadeiro e o falso, o permitido
LOGOS

e o proibido, o normal e o desviante são o relatório, o interrogatório, e também agitações e de cada um daqueles peque-
decididos a partir de suas ainidades com produziram-se alguns novos, como as nos sofrimentos. Começa a erguer-se um
os princípios da verdade. lettres de cachet4, as ordens reais e as murmúrio incessante: aquele mediante o
A busca pela verdade deu origem a resoluções policiais. qual as variações individuais da conduta,
uma ontologia e, posteriormente, a uma Foucault explica que a função dos as vergonhas e os segredos são oferecidos
epistemologia que se fundaram nos novos dispositivos é incitar uma série de pelo discurso à ação do poder. (...) Todas
princípios de perfeição, estabilidade, discursos que atravessam o cotidiano e aquelas coisas que constituem o ordiná-
permanência e unidade. se encarregam, mas de um modo com- rio, o pormenor insigniicante, a obscuri-
No entanto, como Deleuze e Guattari pletamente diferente da conissão, dos dade, os dias sem glória, a vida comum,
destacam em O que é a Filosoia?, existem pequenos pecadilhos das pessoas co- podem e devem ser ditas - mais, escritas”.
três formas do pensamento ou da criação muns. Nas palavras do pensador: “Houve (Foucault, 1992b, p.116-117)
que, por serem realidades produzidas nisto como que um imenso e onipresente Esse grande sistema de coação por meio
sobre planos que recortam o caos, que- apelo à discursiicação de todas aquelas do qual o Ocidente colocou o cotidiano em
rem que rasguemos o irmamento e que
mergulhemos no caos. Estas disciplinas
chamam-se caóides e são elas a arte, a
ilosoia e a ciência.
Segundo os autores, as caóides ultra-
passam as bem fundadas construções do
pensamento racional, trazendo à tona
não apenas os elementos excluídos pela
razão, mas outros pontos de vista, outras
possibilidades de vida e de entendimen-
to sobre a vida, que não se reduzam ao
ponto de vista racional.
O modo como a literatura e suas
diversas formas de expressão ao longo
dos tempos - fábula, tragédia ou roman-
ce - furam o guarda-sol do Ocidente,
deixando passar um pouco do “caos livre
e tempestuoso” que nos revela a diversi-
dade da vida, suas outras possibilidades
singulares, é o tema que instiga este
artigo.

Literatura: ruptura radical


com a ordem e a razão3
De acordo com Foucault, em A vida
dos homens infames (1992a), durante
muito tempo só mereciam ser ditos os fei-
tos dos grandes: o sangue, o nascimento,
a façanha. O ordinário e o infame somente
interessavam à conissão cristã. Esta se
detinha nos pecadilhos, nos desejos e nas
intenções. A conissão é um ritual no qual
alguém fala de si próprio. A coisa dita é
apagada pelo enunciado e anula a própria
conidência que permanece secreta, dei-
xando apenas o traço do arrependimento
e da penitência.
A partir do final do século XVII, o
mecanismo de confissão mudou sua
forma de atuação. O religioso tornou-se
administrativo e o perdão foi substituído
pelo registro. O objetivo era estimular a
discursiicação do cotidiano, revistar as
irregularidades e as desordens sem im-
portância. Para este esquadrinhamento,
utilizaram-se instrumentos antigos, tais
como a denúncia, a queixa, o inquérito,
LOGOS

discurso deu origem a uma nova arte da esplendor de uma revolução permanente da linguagem, o que destrói a metafísica
linguagem - a literatura. de linguagem, eu a chamo, quanto a mim: inerente a qualquer linguagem. A marca
A literatura, tal como a entendemos atu- literatura”. (Barthes, s/d, p.16) distintiva do discurso literário é ir mais
almente, nasce quando as relações entre o A literatura de que Barthes nos fala além; a literatura é como uma arma as-
discurso, o poder e a verdade se estabelecem possui três características. Primeiro, a li- sassina pela qual a linguagem realiza seu
de um outro modo. Ao contrário da fábula, teratura assume muitos saberes, sem, no suicídio”. (Todorov, 1992, p.176)
cuja tarefa é dizer o improvável, a literatura entanto, fetichizá-los, ou ixá-los; ela lhes dá Tomando como exemplo A Biblioteca
encarrega-se do que não é evidente, do um lugar indireto que é precioso, pois per- de Babel, de Jorge Luís Borges, talvez
oculto, do interdito – do mais infame. mite designar saberes possíveis - insuspeitos, ousássemos ir um pouco mais longe. Este
Foucault destaca que: “Ela ocupa aí irrealizados - e, por outro lado, o saber que conto não é apenas um exemplo de como
um lugar especial: obstinada a procurar a literatura tenta representar o real sem
o cotidiano por debaixo dele próprio, se ixar em um saber único, mas também
a ultrapassar limites, a levantar brutal como ela consegue presentiicar o irreal,
ou insidiosamente segredos, a deslocar E é exatamente por se dar pela sua capacidade de jogar com os
regras e códigos e a fazer dizer o incon- como artifício, mas compro- signos. Vejamos o conto.
fessável, ela terá a tendência a pôr-se de meter-se a produzir efeitos de A Biblioteca de Babel, que é uma
fora da lei, ou pelo menos a tomar a seu verdade, como airmou Foucault, metáfora do universo, constitui-se de
cargo o escândalo, a transgressão ou a um número indeinido, talvez ininito, de
revolta. Mais do que qualquer outra forma que na literatura reside um logro galerias repletas de estantes com livros.
de linguagem, é a ela que continua a ser ao poder. Ela fala do impossível, Para que um livro exista na Biblioteca,
o discurso da ‘infâmia’: cabe-lhe dizer o porém o reveste com efeitos de basta que ele seja possível. Os livros im-
mais indizível - o pior, o mais secreto, o possíveis, aqueles que sejam ao mesmo
mais intolerável, o vergonhoso”. (Foucault, tempo uma escada, por exemplo, não
1992b, p.127) existem na Biblioteca. No entanto, tais
Daí viria a sua dupla relação com a ela imobiliza nunca é inteiro ou derradeiro livros têm a sua existência discutida, ne-
verdade e o poder. Enquanto o fabuloso - a literatura não diz que sabe alguma coisa, gada ou demonstrada em outros livros
se utiliza das fronteiras entre o verdadeiro mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: ou, ainda, presentiicada em livros cuja
e o falso, a literatura apresenta-se como que ela sabe algo das coisas - que sabe estrutura corresponde à de uma escada.
artifício, mas busca produzir efeitos de muito sobre os homens. Isto signiica que Assim, aquilo que é impossível de existir
verdade. a literatura não endossa nenhum saber ou no universo, paradoxalmente, existe na
O aspecto genial da literatura parece ordem que se pretendam inais e únicos. literatura, seja por meio da discussão que
consistir precisamente nisto: apesar de Segundo, sua força está na representação ela promove, seja por meio de um livro
ter nascido e estar dentro do poder, ela - a literatura sempre se dedicou à tentativa que tome sua forma. Se a linguagem, pelo
utiliza uma ferramenta do próprio poder, de representar o real. No entanto, esta tarefa senso comum, tem como pressuposto
a língua (fascista, que representa a ordem), é impossível, já que o real é pluridimensional dar nome às coisas do mundo e permitir
para trapacear não apenas as normas gra- e a linguagem unidimensional. Mas é preci- que os homens se comuniquem entre si e
maticais e lógicas da língua, mas também samente a essa impossibilidade topológica com o mundo, temos aqui uma forma de
para subverter a ordem estabelecida. A que a literatura recusa render-se. Daí Barthes linguagem que se ocupa particularmente
literatura aponta para o que icou do lado airmar que a literatura acredita ser sensato em jogar com a língua, fazê-la dar lugar
de fora do campo da ordem, ou seja, o o desejo do impossível. Por último, consi- aquilo que só poderia ocorrer pelo “não-
que é do campo do caos, do paradoxo, do deramos sua força semiótica, que consiste lugar da linguagem”.
inacabamento, e que exatamente por isso em jogar, brincar com os signos, com seus Este texto, como tantos de Borges,
é também chamado de indizível, intolerá- enigmas, em vez de destruí-los, ixando-os representa o que Foucault chama de
vel, secreto, vergonhoso e inexplicável. a um signiicado. heterotopia. Ao contrário das utopias
Parece ser nesse mesmo sentido que E é exatamente por se dar como artifício, que consolam porque, ainda que não
Roland Barthes, em Aula, diz que a lingua- mas comprometer-se a produzir efeitos de tenham lugar real, desabrocham num
gem é o objeto em que se inscrevem o po- verdade, como airmou Foucault, que na espaço maravilhoso e abrem cidades
der e a língua, sua expressão obrigatória. literatura reside um logro ao poder. Ela fala com jardins perfeitos, as heterotopias
O autor considera a língua fascista, pois “o do impossível, porém o reveste com efeitos inquietam. Inquietam, diz Foucault, “sem
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar de verdade. Ao contrário dos preceitos dúvida porque solapam secretamente a
a dizer” (Barthes, s/d, p.14). Sendo a língua morais que transmitem a idéia de que o linguagem, porque impedem de nomear
um lugar fechado, só nos resta sair dela proibido é impossível, a literatura especu- isto e aquilo, porque fracionam nomes
pelo preço do impossível, que Barthes cita la sob que condições poderia o impossível comuns ou os emaranham, porque
como exemplo a singularidade mística existir. Isso já é suiciente para que se arruínam de antemão a ‘sintaxe’, e não
de Kierkegaard ou o amen nietzschiano, considere a possibilidade de existência somente aquela que constrói as frases
“mas a nós, que não somos nem cavalei- do impossível e se questionem os limites - aquela menos manifesta, que autoriza
ros de fé nem super-homens, só resta, do proibido. ‘manter juntas’ as palavras e as coisas”.
por assim dizer, trapacear com a língua, A literatura existe pelas palavras, (Foucault, 1992, p.8)
trapacear a língua. Essa trapaça salutar, mas sua vocação é dizer mais do que a Os textos de Borges nos deixam a
essa esquiva, esse logro magníico que linguagem, ir além das nomenclaturas desconfortável sensação de quem perdeu
permite ouvir a língua fora do poder, no verbais. Para Todorov, “ela é, no interior as coordenadas de tempo e espaço, a
LOGOS

solidez do chão, as identidades tão bem em apontar para as heterotopias, para o 2


O iluminismo grego tem suas raízes na Jônia
fundadas do senso comum. campo das possibilidades, das diferenças, do século VI a.C.. Pensadores como Hecateu,
Após escapar das amarras do classicis- das singularidades. Xenófanes e Heráclito contribuíram de modo
mo que a pensava segundo as teorias da Italo Calvino parecia ter isso em men- signiicativo para o questionamento das crenças
mítico-religiosas do período arcaico. Ao possi-
signiicação, na Idade Moderna, a literatu- te quando escreveu suas Seis propostas
bilitar a transição da sociedade arcaica para a
ra é o que permitirá brilhar de novo o “ser” para o próximo milênio: leveza, rapidez, sociedade clássica, o iluminismo grego junto com
da linguagem. Ela não está mais vinculada exatidão, visibilidade, multiplicidade a organização social da aristocracia guerreira e a
a um signiicado predeterminado, ela não e consistência -, que “repousam sobre reforma hoplita são considerados os pilares do
quer ‘dizer’ nada. Segundo Foucault: “A coisas que somente a literatura com seus pensamento racional grego e, conseqüentemen-
partir do século XIX, a literatura repõe à meios especíicos pode nos dar”. (Calvino, te, da constituição da pólis, jurídica e democráti-
luz a linguagem no seu ser; (...) Doravante 1994, p.16) ca. Mas é somente com Platão que o pensamento
a linguagem vai crescer sem começo, sem A leveza de Perseu, a rapidez de racional tomará forma de transcendência (Ver:
termo e sem promessa. É o percurso desse Hermes, a exatidão de Holmes, a visi- Dodds, 1988, p.194-212).
espaço vão e fundamental que traça, dia bilidade de Alice e a multiplicidade de
3
Este trecho foi extraído da dissertação de mes-
trado intitulada A literatura e o mal no Ocidente:
a dia, o texto da literatura”. (Foucault, Dionísio parecem fontes inspiradoras
implicações éticas e estéticas, de minha autoria.
1992, p.60) para a construção de novos caminhos 4
As lettres de cachet eram documentos em nome
A literatura se inscreve no mundo no século XXI. do rei emitidos pelos súditos, que conferiam a
da forma que nós, ocidentais, desa- estes o poder de sujeitar à prisão ou internamen-
prendemos. O traçado da literatura sen- to todo indivíduo cujo comportamento fosse
do um espaço vão, sem começo e sem considerado indesejável (Ver: Foucault, 1992a,
promessas, sabe querer o imprevisível, o p.104-105).
diferente, o novo, o singular. A literatura
não quer desvendar sua origem, nem pre-
ver o im de seu traçado. Sem começos e Bibliograia
sem im preestabelecido, ela é puro devir. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s/d.
Parece ser assim que a entende Deleuze: BORGES, Jorge Luis. Ficções. Porto Alegre: Globo,
“Escrever não é certamente ixar uma for- s/d.
ma (de expressão) a uma matéria vazia. A CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo
milênio. 2 ed. São Paulo: Companhia das
literatura tem antes o aspecto do amorfo
Letras, 1994.
(sem-forma), ou do inacabamento, como DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris: Mi-
Gombrowicz o disse e o fez. Escrever é nuit, 1993.
devir, sempre inacabado, sempre em _____. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva,
processo, e que transborda toda matéria 1994.
viva e vazia”. (Deleuze, 1993, p.11) _____ e GUATTARI, Félix. O que é a Filosoia? Rio
de Janeiro: 34 Letras, 1992.
*** DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. Lisboa:
As descobertas científicas de nosso Gradiva, 1988.
século - como a teoria do caos e a física dos FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
processos em não-equilíbrio - têm nos reti-
_____. A vida dos homens infames. In: O que é
rado o conforto das tão bem fundadas leis um autor? Lisboa: Vega, 1992a.
imutáveis da natureza, deixando-nos num PRIGOGINE, Ilya. O im das certezas. São Paulo:
mundo onde o que prevalece é o im das Unesp, 1996.
certezas, para citar Prigogine. REGIS, Fátima. A literatura e o mal no Ocidente:
Nossas certezas são postas à prova, implicações éticas e estéticas. Dissertação de
pois estamos vivemos um momento de Mestrado em Comunicação e Cultura. Rio de
futuro indeinido. Para alguns, o im das Janeiro: Escola de Comunicação/UFRJ, 1996.
certezas é motivo de angústia, de perda TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fan-
de sentido; para outros, é motivo de liber- tástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
dade para pensar, de abertura ao novo, VERNANT, Jean Pierre. A morte nos olhos. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
de aventura. Independente do ponto de
vista, precisaremos buscar novas teorias,
paradigmas e possibilidades de vida
que nos conduzam não a uma verdade
absoluta, mas a verdades singulares,
compatíveis com toda multiplicidade e
diversidade de nosso mundo. Notas
É neste ponto que vislumbramos a 1
Caos é aqui entendido como a velocidade ini-
importância de se pensar a literatura na nita, as variabilidades ininitas das coisas que, a * Fátima Regis de Oliveira é Mes­
atualidade. Topos de fantasia, paixão e rigor, não podem ser nomeadas, classiicadas ou tre em Comunicação pela ECO/
delírio, a literatura nunca se rendeu ao re- representadas. UFRJ e Professora da FCS/UERJ.
corte racional do mundo. Sempre insistiu
LOGOS

Do mutismo atual do sujeito:


notas sobre uma tentativa de
ressuscitar a subjetividade Erick Felinto*
1

“O sujeito persiste e marca”. e coisa, entre fato e enunciado, cujo


Lucien Sfez, Crítica da Comunicação acordo podia se dar sem problemas até

A
RESUMO o entardecer da modernidade. Até então,
Em face da de-substancialização do sujeito, o discur-
pós a travessia de um bosque o sujeito era aquela entidade capaz de
so perde o estatuto de verdade e transforma-se num
universo de signos, símbolos e imagens fragmentá-
denso e sombrio, cuja descri- associar mundo e linguagem, revelando
rios. Perturbado pela proliferação de sentidos, o su- ção evoca algo da selva selva- a verdade e superando a dúvida, tal como
jeito pode adotar duas posturas divergentes: aceitar ggia do poema de Dante, um cavaleiro se dava no ideal movimento do cogito
a fragmentação e levar a existência como puro jogo medieval encontra abrigo num castelo já cartesiano. Questionar a validade desse
de possibilidades ou se revoltar e tentar recuperar o recheado de peregrinos que o precede- sujeito e de sua verdade só se tornou
sentido. A relexão ilosóica contemporânea, quase ram na jornada pela loresta. Esse castelo, possível quando todos os fundamentos
em sua totalidade, airma a primeira atitude. curiosa mescla de santuário e estalagem capazes de produzir certeza - Deus ou
Palavras-chave: de-substancialização do sujeito; para os andarilhos exaustos, compõe o a ciência - encontraram resistência no
fragmentação do discurso. cenário no qual o escritor Italo Calvino pensamento crítico de autores como
narra uma de suas mais intrigantes estó- Freud e Nietzsche. Resistência resoluta
SUMMARY
rias. Intrigante, de fato, por seu caráter ao ponto de levar o último a airmar que
In light of the de-substantialization of the subject,
the discourse loses its character of truth and beco-
simultaneamente verbal e visual. Logo “a crença na verdade começa pela dúvida
mes a fragmentary universe of signs, symbols and no princípio da narrativa, os personagens sobre tudo o que até então se creu como
images. The subject, troubled by this proliferation of percebem que a travessia do bosque lhes verdade” (Der Glaube an die Wahrheit be-
meaning, can adopt two divergent attitudes: he will havia custado a perda da voz. Impossibi- ginnt mit dem Zweifel an allen bis dahin
either accept fragmentation and view existence as a litados de comunicar-se verbalmente, os geglaubten Wahrheiten) (1954, p.19, frag.
pure game of possibilities or rebel against it and try peregrinos se vêem forçados a lançar mão 20 [trad. minha]). Esse questionamento
to recover the meaning. Contemporary philosophical de um baralho de tarô para encenar suas da verdade chegou ao ponto de transfor-
relection commonly upholds the irst attitude. aventuras pelo bosque. Nos 22 arcanos mar toda narrativa em fábula, em mais
Keyword: de-substantialization of the subject; frag- do tarô desenham-se então séries de uma estória entre outras estórias, ou uma
mentation of the discourse. narrativas paralelas e entrecruzadas, nas interpretação entre outras, como diria o
RESUMEN
quais a escritura constitui mera tradução próprio Nietzsche.
Frente a la desubstanciación del sujeto, el discurso verbal da seqüência de imagens dispostas Em minha interpretação da fábula
pierde el estatuto de verdad y se fragmenta en un ao sabor do acaso. de Calvino, o peregrino que atravessa a
universo de signos, símbolos e imágenes. En medio Experiência de combinatória narrativa loresta é como o sujeito pós-moderno,
a la multiplicación de los sentidos, el sujeto puede tematizando os limites da linguagem, O confrontado com um mundo de per-
adoptar dos posiciones divergentes: aceptar la Castelo dos Destinos Cruzados (1991) manente incerteza e de caráter sempre
fragmentación y llevar la existencia como puro juego também funciona como fábula de certos mutável. Seu discurso perdeu o estatuto
de posibilidades o revoltarse e intentar recobrar el aspectos da chamada “condição pós-mo- de verdade e substância que lhe conferia
sentido. La relexión ilosóica contemporánea, casi derna”: o enfraquecimento da subjetivi- validade social. A dessubstancialização
en su totalidad, airma la primera actitud. dade e a impossibilidade de construir nar- da fala o leva então a imergir num univer-
Palabras-llave: desubstanciación del sujeto; frag-
rativas totalizantes. Não é que se tenha so de signos, símbolos e imagens, numa
mentación del discurso.
tornado inviável contar estórias. Muito proliferação incessante de sentido que
pelo contrário: trata-se, antes, da falência nunca encontra repouso. Se o sujeito já
da História como texto legitimador. Esta, não pode mais contar sua verdadeira
como todas as outras grandes narrativas, história, o que lhe resta então é produ-
caiu vítima da desintegração ilosóica das zir icções dessa história perdida. Não
noções de verdade e sujeito. A verdade surpreende, portanto, que os temas da
signiicava a conformidade entre palavra origem e da perda tenham-se constitu-
LOGOS

ído em obsessões do pensamento e da ca em que se encontra e aprender mesmo época em que a escritura parece perder
literatura modernos. a rir-se dela, a jogar com ela. Daí que, do todo encanto. Se a novela de Eco é uma
Em meio a essa proliferação de signos, ponto de vista de seu protagonista, Il defesa do riso e da ironia frente à serieda-
o sujeito pode, entretanto, adotar duas Nome della Rosa possa ser considerado de da ordem, o texto de Calvino é puro
posturas fundamentais e divergentes. como um romance “iniciático”. Guilherme jogo, experimento lúdico em que o acaso
Pode aceitar alegremente a fragmentação de Baskerville é um sujeito situado no intervém ativamente na intencionalidade
de seu discurso e propor um modelo intervalo entre dois mundos diversos - o do processo criativo. Mais importante
de existência como puro jogo de pos- cosmos ordenado das summae medievais ainda: Guilherme e o cavaleiro sem nome
sibilidades ou pode revoltar-se contra e o caosmos da estesia (pós)moderna. são sujeitos desprovidos de substância
a desvalorização do sentido e procurar Guilherme é, assim, não apenas uma pa- ou identidade. O protagonista de Calvino
sua recuperação. A reflexão filosófica ródia que por meio de mecanismos meto- é apenas um espectador-narrador de
contemporânea, em sua quase totalida- nímicos remete ao arquetípico Sherlock aventuras alheias, que ao inal confessa
de, airma a primeira atitude. Na esfera Holmes, de O Cão dos Baskerville, mas haver perdido sua própria estória: “O que
da teoria da comunicação, uma obra também uma encarnação ficcional de sobrou de mim foi apenas essa obstinação
como a de Umberto Eco a expressa com Joyce como herói paradigmático da es- maníaca de completar, de encerrar, de dar
clareza. Dedicar-se com o mesmo inte- tética contemporânea. Identidade que se vida aos relatos” (1991, p.67). Já Guilherme
resse à análise dos seriados de televisão estabelece facilmente por meio da leitura não passa de um composto indeinido de
hollywoodianos e dos mecanismos da que Eco dedica à obra de Joyce (1965). identidades diversas - Sherlock Holmes,
alegoria no mundo medieval é um claro No início da novela, Guilherme crê Guilherme de Ockham, o próprio Eco.
sintoma da aceitação dessa equivalência firmemente na existência de ordem e Esse sujeito fraco, esvaziado, fragmen-
de signiicados e valores na cultura pós- sentido para o mundo. Como seria de tado pela multiplicidade de discursos e
moderna. Sem a presença de nenhum se esperar, segue o tradicional tropo signos que o atravessam encontra, porém,
fundamento absoluto ou hierarquia ixa, medieval do universo como escritura de uma contraparte na segunda atitude pos-
não há por que considerar Os Caçadores Deus: a natureza é um livro, cujos ele- sível frente ao problema da subjetividade
da Arca Perdida como “obra” menos im- mentos constituem signos organizados no pós-moderno. Tal atitude representa,
portante do que a Summa Teológica de pela divindade em uma harmonia per- como dissemos anteriormente, um movi-
São Tomás de Aquino. A semiótica de Eco feita, à espera apenas de um intérprete mento de revolta e rebeldia, mas também,
funciona mesmo de modo a produzir tal ideal. “Meu bom Adso” - diz Guillermo sem dúvida, de recuo. Para recuperar uma
equivalência, já que nela os bens culturais parodiando o clássico bordão “meu caro subjetividade que na relexão ilosóica
se reduzem a conjuntos de signos rele- Watson” - “Por toda a viagem tenho te atual se esfacela, é preciso dar um salto
tindo, em última instância, a ideologia e ensinado a reconhecer os traços com no passado e buscar formas de pensa-
os códigos dominantes na época em que os quais o mundo fala como um grande mento pré-modernas. Curiosamente, a
foram elaborados. livro” (1983, p.31, [trad. minha]). Esse regressão no tempo constitui não apenas
Como seria de se esperar, essa semi- otimismo, contudo, vai sendo progres- um mecanismo aceito pelas práticas
ótica se dedica tão somente a explicar sivamente substituído por um ceticismo pós-modernas, mas uma de suas práticas
os mecanismos lingüísticos e lógicos se- radical e pela percepção de que a ordem fundamentais. Como disse muitas vezes
gundo os quais as obras se estruturam. A não é mais que uma ilusão produzida o próprio Eco, nossa época é o momento
análise semiótica revelaria, assim, aquilo pelo sujeito. Mesmo descobrindo o de aceitação de todos os passados. Esgo-
que a obra tem de espelho da cultura (ou autor dos crimes, Guilherme é derrotado tada a possibilidade de construir novas
“metáfora epistemológica”, para usar um em sua intenção de preservar o saber (a narrativas globais, o que naturalmente
termo de Eco). Na realidade, porém, não biblioteca, o livro perdido de Aristóteles). resta é revisitar o passado, mas de uma
poderia além disso sobrar nenhum outro Essa derrota o leva a concluir que por trás forma irônica e não incocente, segundo
resto, como, digamos, a noção de genia- dos signos existem apenas outros signos, advertem os propagandistas do pós-
lidade autoral. Isso implicaria extravasar mas nenhuma substância ou fundamento moderno. Não surpreende, portanto, o
os limites objetivos e quantiicáveis da último capaz de garantir a harmonia entre interesse da literatura pós-moderna por
análise para decair numa idéia por sua a realidade e o discurso: “Me comportei formas arcaicas ou desgastadas, como
vez relativa e historicamente condicio- como obstinado, seguindo um simulacro o romance policial e a novela histórica,
nada - não esqueçamos que as noções de de ordem, quando deveria saber bem que caso, não custa lembrar, do próprio texto
gênio e originalidade são antes de tudo não há ordem no universo” (1983, p.495, de Eco. Entretanto, se o sujeito esvaziado
uma invenção do romantismo alemão de [trad. minha]). do pós-moderno retorna ao passado
ins do século XVIII. A análise semiológi- Assim como o cavaleiro de Calvino para ironizá-lo ou parodiá-lo, os modelos
ca desnuda mecanismos ideológicos e perde a fala após sua travessia “iniciática” de subjetividade que se propõem como
práticas simbólicas nas quais o sujeito é pelo bosque sombrio, o herói de Eco perde alternativos o fazem de maneira absoluta-
antes coadjuvante que protagonista. Os a crença no poder dos signos ao cruzar o mente séria. Para estes, o antigo funciona
códigos e sistemas de signos não apenas confuso bosque de símbolos e imagens como ensinamento vital, esquecido pela
preexistem, como também condicionam que o cerca. Nos dois livros a linguagem história, mas cuja importância exige sua
o sujeito. visual desempenha papel fundamental: recuperação. É o caso do crítico literário
Frente à impotência que o domina, as cartas do tarô e as iluminuras, que Harold Bloom ou, de maneira ainda mais
não restaria ao sujeito mais que entregar- tanto impressionavam Adso como repre- evidente, do ilósofo Raymond Abellio,
se ao jogo, ao livre intercâmbio dos signos. sentações do mundo de ponta-cabeça, como veremos.
Trata-se de perceber a vacuidade semânti- figuram a vitalidade da imagem numa Curiosamente, também, o retorno
LOGOS

ao passado se faz acompanhar por um recuperar a unidade pré-moderna de da ideologia do consumo e circulação de
processo de remitologização do pensa- sujeito e objeto? Antropólogos e soció- mercadorias.
mento. Como adverte Hans Blumenberg, logos têm se preocupado em entender e Como é possível pensar que a Nova
a modernidade já produz uma ausência de descrever o avanço dessa espiritualidade Era possa ter algo de “novo”, quando a
historicidade ao declarar que toda história heterodoxa e anti-institucional. Ela já “ilosoia” na qual se decalcam seus prin-
anterior a ela era nula. Evidentemente, “na aparece com tal intensidade no cenário cípios básicos deriva de formas de pen-
ausência de história repousa a oportunida- cultural contemporâneo que mereceu samento nascidas nos primeiros séculos
de de cada remitologização: é mais fácil ser o tema do segundo romance de Eco, d.C. e seu instrumental retórico não faz
projetar pontos de transformação míticos Il Pendolo di Foucault (1988). Obra que mais que repetir o tradicional discurso da
em um espaço vazio” (1985, p.99, [trad. o próprio autor deiniu como “a história economia de mercado? A Brida de Paulo
minha]). No pós-moderno, esse processo de uma obsessão da suspeita que invade Coelho, especialmente em sua fracassa-
continua a efetivar-se. Não obstante o os ininitos ilões da cultura, da política, da versão televisiva, reencena o clássico
fato de o olhar pós-moderno sobre o das místicas degeneradas... É a história tema do conto de fadas da Cinderela, no
passado ser eminentemente irônico e desa- de um doença espiritual... uma psicose qual a moça inexpressiva experimenta
gregador, a ausência de história acaba por histórica da interpretação desconiada um processo de ascensão espiritual e
sujeitá-lo ao domínio periódico por formas da natureza, da sociedade, do mundo, do - mais importante ainda - social. Em seus
míticas. O sujeito pós-moderno se ri de to- desconhecido” (Eco, 1989, p.30). Essa “ob- discursos estereotipados, em sua reair-
dos os mitos, assim como da história, mas sessão da suspeita” não é outra coisa que mação de valores dominantes (sucesso,
esse riso não impede que ele seja sedu- um ininito delírio hermenêutico, uma dinheiro, poder), os esoterismos de
zido pelo poder imaginativo do mito. Na superabundância de interpretação que consumo funcionam como um curioso
verdade, nesta época de ceticismo radical surge como reação ao vazio semântico do aparelho ideológico para a promoção de
e derrota de todos os valores metafísicos mundo pós-moderno. Confrontado com um mercado de “bens espirituais”, cuja
ou transcendentes, caímos facilmente a negação do sentido, o sujeito reage pro- inalidade última, entretanto, é sempre
vítimas do mito e de seus mecanismos duzindo e multiplicando sentidos. Mas, de caráter material: a moça solitária busca
de produção de sentido. como bem demonstram as estratégias nos cristais a resolução de seus problemas
De que outra maneira explicar a midiáticas da chamada “Nova Era” e seus afetivos; o rapaz ambicioso consulta a
popularidade atual das formas de re- esoterismos banalizados, tais sentidos se vidente na esperança de conquistar o
ligiosidade “alternativa” que intentam tornam apenas veículos de reprodução emprego de seus sonhos.
LOGOS

O fabuloso mercado editorial da C.S. Lewis) e as tradições religiosas ins- sustentação, os neognósticos promovem
auto-ajuda e do esoterismo merece, sem titucionalizadas: cristianismo, judaísmo, a idéia de uma subjetividade divinizada,
dúvida alguma, o vivo interesse dos que islamismo. Essa nova gnose seria, portan- doadora de sentido ao mundo. Por isso,
estudam a teoria da comunicação. Ele to, um caminho alternativo, anti-institu- ao contrário do que pensa Velho, a res-
é sintoma de como os setores menos cional, deinido como “uma aproximação tauração do sujeito tem de estar na base
críticos da cultura se debatem para ao conhecimento do Deus interior, que do programa neognóstico.
resgatar uma subjetividade posta em foi condenada como herética pelas fés Velho, se conhecesse o pensamento
fragmentos e um sentido atravessado institucionais” (1996, p.1, [trad. minha]). de Raymond Abellio, outro importante
por paradoxos. Neste programa de releitura da gnose defensor da atualidade da gnose, pro-
Mas o que dizer daquela parcela da clássica, o que se destaca como elemento vavelmente perceberia como a idéia de
sociedade responsável pela produção do fundamental é precisamente a idéia de uma subjetividade forte é vital para as
pensamento crítico e da relexão ilosói- recuperação da subjetividade como um formulações gnósticas. Abellio, antigo
ca? É ali que encontramos os exemplos self divinizado. Trata-se, como o próprio freqüentador dos célebres cursos hege-
mais interessantes dessa segunda ati- Bloom deine, de uma religiosidade capaz lianos ministrados por Alexandre Kojève
tude possível frente à desintegração do de libertar o sujeito de todas as amarras na década de 40, toma uma curiosa mu-
sujeito. Também no meio acadêmico, as institucionais e permitir a descoberta de dança de rumo em sua trajetória ilosóica
tentativas de ressuscitar um modelo forte seu verdadeiro eu em uma ação criadora a partir da publicação, em 1965, de La
de subjetividade têm se apoiado freqüen- e transformadora. Structure Absolue: essay de Phénoméno-
temente em formas de espiritualidade Em ensaio publicado recentemente, logie Génétique (1984). Ali, partindo da
alternativa - ou, para agora usar um termo Otávio Velho (1998) produz uma eficaz fenomenologia de Husserl, Abellio pro-
mais técnico, em modelos gnósticos de síntese sobre as idéias de Bloom e a atuali- põe uma ilosoia do Ego transcendental,
religiosidade. O exemplo mais conhecido dade do pensamento gnóstico, que peca, centrada na igura de um sujeito já não
dessa prática é provavelmente a gnose de no entanto, por não entender a importância mais entendido como ente individual,
Harold Bloom. dessa recuperação da subjetividade no âm- mas sim como entidade intersubjetiva:
Nos primeiros séculos após Cristo, sur- bito da nova gnose. Velho quer defender a “um Si (no sentido vedântico), ou seja, a
ge um número de seitas e movimentos gnose como um modelo de espiritualidade presença universal de uma consciência
místicos que combinavam elementos extremamente apropriado ao caráter absoluta” (1984, p.16, [trad. minha]).
das antigas religiões de mistérios, do globalizado da cultura contemporânea. Em coletâneas de ensaios posteriores
platonismo e do cristianismo incipiente. Porém, para que ela possa funcionar como (muitos publicados apenas postuma-
Comum à maioria desses movimentos, tal necessita, antes de tudo, aceitar o fato mente), Abellio seguirá defendendo
a idéia de um Deus superior, oculto, inevitável que é o desaparecimento da sub- sua ilosoia da intersubjetividade e seu
impassível, ao qual se contrapunha o jetividade. O antropólogo percebe, ainda modelo de gnose, o que inevitavelmente
demiurgo, entidade maléica responsável que não inteiramente, o teor arcaizante do o levará a criticar violentamente todo
pela criação do mundo. Com essa noção pensamento de Bloom e o critica por isso: pensamento destruidor da consciência
da dualidade das divindades, os gnósticos se a gnose pretende de fato ser nova e e do sujeito. Desnecessário dizer que, na
aparentemente ofereciam resposta a uma atual, ela precisa inclusive acolher “a morte França dos anos 60 e 70, esse pensamento
premente questão teológica: se o mundo do sujeito, em contraste com os casos em representava quase que a totalidade da
é obra de um ser perfeito, como pode nele que se procura disfarçar um anacrônico ilosoia que então era produzida. Niet-
existir tanto mal e imperfeição? Para eles, humanismo, tal como, possivelmente, a zsche - “o grande liquidador agnóstico”
a solução era simples: o mal existe porque própria formulação de Bloom - conforme já (le grand liquidateur agnostique), nas
o cosmos não é produto do ser supremo, foi sugerido - poderia, ainda, dar margem” palavras de Abellio (1989, p.103, [trad.
mas antes de uma divindade decaída. (1998, p.47-48). minha]) - encarnava o grande inimigo,
Contudo, restava a esperança de que o O problema é que se a gnose con- acompanhado por famosos herdeiros,
homem pneumático ou espiritual - uma temporânea possui um traço uniicador, como Lacan, Derrida e Barthes. Os títulos
classe especial de iniciados - pudesse esse traço é certamente a divinização do escolhidos para as coletâneas de Abellio
retornar ao céu das origens por meio de self. Sem ele, a própria idéia da gnose se são sugestivos: Approches de la Nouvelle
práticas mágicas e da obtenção de um desfaz, desprovida de qualquer substân- Gnose (1981) e Manifeste de la Nouvelle
conhecimento secreto (gnosis). Daí o cia que possa sustentá-la. Velho sonha Gnose (1989).
termo gnosticismo, usado como desig- com uma gnose extensa ou difusa, que Nenhuma das importantes diferenças
nação genérica para uma variedade de implique a aceitação igualitária das di- que marcam os pensamentos de Bloom e
movimentos bastante diversos, mas fun- versas tradições religiosas, a tolerância Abellio (cuja análise escaparia à preten-
damentados em princípios idênticos. e o oferecimento de “salvação” a todos são destas poucas páginas) invalidaria a
As novas formas de espiritualidade, aqueles que a buscarem. Esse sonho de inclusão de ambos naquilo que podemos
tanto em sua versão popular quanto na uma democracia gnóstica, compartilhado qualiicar de um movimento intelectual
acadêmica, têm no gnosticismo da Anti- por Bloom e Velho, carrega em seu bojo o amplo e difuso. Chamá-lo de nova gnose,
güidade a sua origem e base. Em seu intri- desejo de recuperar o sentido do mundo a exemplo do que izeram alguns de seus
gante Omens of Millenium: the Gnosis of através do sujeito. Ela surge em resposta próprios representantes, parece, até o
Angels, Dreams and Resurrection (1996), ao esfacelamento ilosóico das instâncias momento, adequado. Em comum, o que
Bloom estabelece uma oposição histórica exteriores de produção de signiicado, todos os participantes de tal movimento
entre aquilo que chama de mera gnose como a idéia judaico-cristã da divindade. pregam, de uma forma ou de outra, é
(referência, claro, à mere Christianity de Desprovido de fundamentos externos de a recuperação da subjetividade e do
LOGOS

sentido num mundo que ainda anseia alternativas. Talvez o sujeito também
desesperadamente por alguma presença esteja oculto em alguma parte, apenas
ou fundamento capaz de ampará-lo. As aguardando estrategicamente a hora de
versões populares e menos críticas desse sua revanche.
movimento, os esoterismos de consumo,
podem ser desqualiicados como meras
fantasias infantis ou, para repetir a dura
ironia de Adorno, como uma “metafísica
dos mentecaptos” (1987, p.244, [trad.
minha]). Não é assim com as soisticadas
formulações de pensadores como Bloom,
Abellio ou Otávio Velho, cujas idéias po-
dem encontrar certo trânsito mesmo no
âmbito das fechadas e sisudas instituições
universitárias.
Para a teoria da comunicação, contudo,
a gnose de Bloom não deveria ser pensada
como tão distante dos desastrosos arreme- Nota
dos literário-esotéricos de Paulo Coelho. O 1
Para Priscila Kupperman.
Diário de um Mago e Omens of Millenium
satisfazem certamente a anseios de cama-
das bastante diversas da sociedade, mas Bibliograia
os anseios fundamentais parecem ser ABELLIO, Raymond. La Structure Absolue: Essay
os mesmos: lutar contra o apagamento de Phénoménologie Génétique. Paris: Galli-
do sujeito, contra a perda de sentido mard, 1984 [1965].
que faz da existência pós-moderna uma _____. Manifeste de la Nouvelle Gnose. Paris:
experiência extremamente desagradável. Gallimard, 1989.
Como os protagonistas de Il Pendolo di ADORNO, T. W. Minima Moralia. Madrid: Taurus,
Foucault, nós nos debatemos em um 1987.
vazio de sentido que, agora, só pode ser BLOOM, Harold. Omens of Millenium: the gnosis
of angels, dreams and resurrection. New York:
preenchido pelo excesso de sentido. A
Riverhead Books, 1996.
super-interpretação é uma das doenças BLUMENBERG, Hans. Work on Myth. Cambridge:
que mais seriamente nos acometem nes- The MIT Press, 1985 (trad. Robert M. Wallace).
te im de milênio. Quando o sentido já não CALVINO, Italo. O Castelo dos Destinos Cruzados.
é mais visível, tudo deve então possuir um São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
sentido secreto. O indivíduo vive assim ECO, Umberto. I’Oeuvre Ouverte. Paris: Seuil,
a satisfação de participar de uma trama 1965.
cósmica capaz de justiicá-lo. _____. Il Nome della Rosa. Milano: Bompiani,
Após a travessia pelo denso bosque 1983.
semântico da modernidade, espesso como _____. Il Pendolo di Foucault. Milano: Bompiani,
a forêt de symboles do poema de Bau- 1988.
_____.“Eco fala sobre o delírio do Pêndulo”. In Leia,
delaire, o sujeito combate seu mutismo
n.127. São Paulo: Joruês, 1989.
forçado com a autoprodução de sentidos FRIEDMAN, Richard Eliot. The Disappearance of
transcendentes. Deus parece estar au- God: a Divine Mystery. Boston: Little, Brown
sente ou então afastando-se progressiva- and Company, 1995.
mente, como sugere o fascinante livro de NIETZSCHE, Friedrich. Menschliches, Allzumens-
Richard E. Friedman, The Disappearance chliche: ein Buch für freie Geister (Zweiter Band).
of God (1995). Mas talvez esteja apenas Sttutgart: Alfred Kröner, 1954.
esperando pacientemente o momento VELHO, Otávio. “Ensaio herético sobre a atualida-
propício a seu retorno. Como em todo de da gnose”. In Horizontes Antropológicos,
im de milênio, um clima de expectativa n.8. Porto Alegre: UFRGS, 1998.
nos cerca. Não podemos ainda deinir os
contornos reais daquilo que chamamos
de pós-moderno. Não é possível sequer
airmar com segurança sua existência e
muito menos tentar prever o que se lhe
poderia seguir. Se, como crêem alguns * Erick Felinto é Jornalista, Doutor em
críticos, trata-se de um momento de Literatura Comparada pela UERJ e em
passagem, não parece prudente decretar Línguas Neo-latinas pela Universida-
desde já a morte inevitável do sujeito ou de da Califórnia.
buscar sua recuperação em tradições
LOGOS

Identidade e rede de relações iccionais


Sérgio Arruda de Moura*

RESUMO
O artigo pretende mostrar os vínculos entre
identidade e icção dentro de um quadro de
E
acerca do
studar identidade e icção com o
objetivo de estabelecer vínculos
ou relações só seria possível
dentro de um
literário quadro
ou do de éteorias
que lhe intrín-
seco - a linguagem. Se tentarmos separar
dia-a-dia. O envolvimento cotidiano com
a informação muda a isionomia cultural
do homem urbano, propondo-lhe ou-
tros saberes, outros comportamentos,
outros mores, envolvendo-o com outros
teorias acerca do literário e do social. A nar-
icção do que não é icção, enfrentaríamos agrupamentos e, portanto, moldando-lhe
rativa literária permite identiicar as relações
sociais. O sujeito na sua ação, no mundo,
já uma diiculdade, a de que os objetos outra isionomia. Antes da sociedade de
organiza a iccionalidade e a transcende em giram hoje em torno da aparência, esva- massa, no século XIX principalmente, o
direção ao não literário. O que a literatura ziam-se de sentidos, realizam-se como ambiente já vinha sofrendo mudanças
contemporânea aponta é para o im do sujeito fake, e que lutuamos nas pequenas ic- profundas que preparavam o homem
e a identiicação com grupos e redes. ções do dia-a-dia, na irrealidade mesma para a empreitada comunicativa de
Palavras-chave: subjetividade; individualida- do cotidiano. massa do século seguinte. Antes disso,
de; redes sociais. Nossa primeira diiculdade está no a esfera política controlava as formas de
próprio conceito de icção. Na Moder- saber (Modernidade) e mesmo do viver
SUMMARY nidade, não havia dúvida sobre o que (Idade Média). Hoje, o saber, o viver e o
This article aims at showing the connections este termo queria designar. Hoje, essa desejo se desincompatibilizam, não mais
between identity and fiction from a fra-
distinção perde a sua própria razão de se diferenciam, e airmam identidades
mework of theories on the literary and on the
social. The literary narrative allows to identify
ser, isto porque lidamos com institui- sem processo de controle. Airmar uma
the social relations. The subject in his action, ções, pessoas e situações que não se identidade supõe inserir-se numa relação
in the world, organizes the art of iction and apresentam com as mesmas formas de de forças que não mais transcende ao
transcends in the direction of the non-literary. visibilidade de antes. As novas tecnolo- indivíduo. Mafesoli (1995), por exemplo,
What the contemporary literature points out gias têm colaborado para a inserção ra- airma que as relações cotidianas, irma-
is to the end of the subject and to the identi- dical dos novos ambientes responsáveis das em grupos familiares ou motivadas
ication with groups and nets. por aquelas formas. por ainidades, são o verdadeiro cimento
Keywords: subjectivity; individuality; social Tentemos aclarar os conceitos na social. Portanto, estamos admitindo certo
nets. sua versão clássica, separando uma controle das relações de forças que atu-
coisa (identidade) de outra (ficção) am na sociedade hoje pelos pequenos
RESUMEN
e analisando suas possibilidades de grupos considerados à margem política
El artículo busca mostrar los vínculos entre
identidad y icción dentro de un marco de te- conexão. do poder.
orías acerca de lo literário y de lo social. El re- Primeiro: identidades, individuais Segundo: icção e icções. É preciso
lato literario permite identiicar las relaciones e/ou coletivas, são resultantes de pro- distinguir a ficção propriamente dita,
sociales. El sujeto en su acción, en el mundo, cessos históricos e culturais de máxima poesia e mito, dos relatos de legitimação,
organiza la iccionalidad y la trascende hacia expressão. Na contemporaneidade, por entre eles, o da história. Se tomarmos
lo no literario. La literatura contemporánea exemplo, estamos convencidos já de apenas a icção propriamente dita, que é
apunta para el in del sujeto y la identiicación que a identidade depende irmemente o nosso intento, teremos a nosso favor um
con grupos y redes. do modo como se absorve a informação discurso que se enuncia como tal, como
Palabras-llave: subjetividad; individualidad; que lui por uma constelação de mídias, ato de ingir que é real, sem pretensões
redes sociales.
de alguma forma, ao livre acesso de todos. ou mesmo prerrogativas de verdade. Este
Muitos autores entendem que os meios, texto se assume a priori como polifônico,
desde o advento da sociedade de mas- pois a partir da icção, a leitura tende ela
sa, mudaram radicalmente a isionomia mesma a iccionalizar. Tal estatuto - o da
cultural do homem urbano por conta da multiplicidade de vozes - municia o crítico
interpelação constante da informação no de uma variedade de modelos de análise.
LOGOS

Escolhemos, assim, o modelo que vê air- sujeito narrativo como um dado poético narrativas tanto míticas quanto iccionais,
mado no sujeito narrativo a prerrogativa indissociado da icção. o sujeito actante tem sempre pelo que
máxima da iccionalidade: o sujeito que, lutar e pelo que combater. O programa
na sua ação e visão de mundo, organiza Identidade e redes narrativo básico seria, primeiro, a disjun-
a iccionalidade, dá-lhe uma função, e ção do sujeito com o objeto, veriicada
a transcende em direção até mesmo ao
de ligação estruturais por uma falta inicial; e, segundo, a con-
Daremos um exemplo de análise
que não é literário. A primeira conexão foi junção do sujeito com o objeto, ou seja,
estruturalista para elucidar a idéia que se
então instituída: a icção só se institui com a recuperação. Os demais personagens
procura ter da subjetividade e também
o sujeito e, portanto, com identidades. assumem suas identidades na opção
para revelar um outro mérito do método:
que fazem entre um e outro. Na relação
o caráter sincrônico, isto é, o perilamento
O sujeito na rede de relações que o sujeito tem obrigatoriamente de
atemporal de identidades, independente
Sujeito que age dentro de uma rela- exercer com as instâncias delagradoras do
de seus condicionamentos culturais ou
ção de forças - aí está a fórmula possível agir, desenha-se nitidamente o peril das
históricos. O modelo actancial de Greimas
de uma análise. A relação de forças com- forças que operam no cenário iccional,
será aplicado em duas análises de obras
preendida dentro de uma rede tem um ou histórico, numa perspectiva extra-ic-
distintas: a narrativa histórico-mítica me-
nome dentro do cânon teórico-literário: cional. Associar as motivações subjetivas
dieval de El Cid e uma narrativa iccional
estruturalismo. Este modelo de análise ao contexto da narrativa é a tarefa básica
do século XX, o romance 1984, de George
conseguiu nos anos 60 e 70 uma he- da análise estruturalista. A cada ação
Orwell2. O esquema actancial é aquele
gemonia dentro dos estudos literários. é atribuído um valor, maior ou menor,
que vê o personagem como um sujeito variação justiicada pela importância que
Compreende um conjunto de teorias que que age (actante/actancial), que se deine
têm a pretensão de alinhar num padrão tem para o programa narrativo básico. Em
na relação transitiva de junção, disjunção El Cid, o programa básico é a restauração
de análise a universalidade dos sentidos ou de transformação dentro do percurso
produzidos nas ciências e nas artes. Na li- da fé cristã (perdida ou prejudicada por
narrativo. A narrativa é, portanto, na teo- uma falta inicial: a inserção dos mouros
teratura, isto quer dizer o seguinte: dentro ria estruturalista, uma rede de ligações,
dos estatutos próprios do literário, dentro entre os cristãos); em 1984, o programa
semelhante ao próprio funcionamento básico restringe-se ao restabelecimento
daquilo que lhe é especíico - a linguagem sintático da frase: o sujeito se define
-, uma obra do período clássico pode da democracia e ao direito canônico às
como função em relação ao predicado; o liberdades individuais. O valor de cada
equivaler-se a outra do período moderno.
predicado por sua vez requer um comple- uma das funções subjetivas é dado a
Consegue-se conceber, por exemplo,
mento e se estabelece em circunstâncias partir do investimento semântico. Por
identidades formais compatíveis entre
adverbiais precisas. exemplo: a máxima valoração moral
heróis medievais e modernos; entre he-
As narrativas clássicas - na ótica do para um campeador cristão e piedoso é
róis clássicos e “heróis” pós-modernos. É
estruturalismo, todas - são delagradas a semiotizada pelo saber que ele tem do
óbvio, contudo, que a distinção de herói
numa época e noutra distingue-se, ainda partir de uma relação de disjunção, isto é, sofrimento de Cristo na cruz pela huma-
que não com muita convicção formal. Em de uma falta sentida, de um bem aliendo. nidade. Competência para a tarefa ele
romances como Vidas secas, de Graciliano Ao sujeito é encarregada uma demanda: também a tem: fé, virtude, obediência a
Ramos, e Macunaíma, de Mário de An- recuperar o objeto. Aplicado o esquema Deus e ao rei. Deus e o rei são os grandes
drade, o herói tem suas virtudes heróicas actancial, vemos o sujeito imbuído de protagonistas da narrativa, na qual Cid é
suspensas e assumem estatutos outros uma tarefa delagrada por um destina- apenas um iel servidor. Em 1984, Smith
como o de anti-herói e o de herói sem dor: fazer um sujeito recuperar um bem tem implícito o saber de que a liberdade
nenhum caráter. (objeto) para ser doado a um destinatário. é um bem possível, conhecido e também
A individualidade é o primeiro dado O sujeito conta com a ajuda de forças ad- sentido por ele. A competência pode ser
formador da identificação do sujeito, juvantes, de um lado, e com obstáculos de interpretada como coragem, esperança,
processo que se completa na relação de forças oponentes, de outro. Assim temos: força, que os demais não têm. Cada
força, poder e submissão que ele vai obri- destinador/destinatário; sujeito/objeto; sujeito é instituído de um saber e uma
gatoriamente empreender no mundo. adjuvante/oponente. competência para o agir.
Como na sintaxe de uma frase, o sujeito No imaginário cristão medieval, forças A análise estruturalista da narrativa con-
vale pela rede de relações e funções ins- oponentes são sempre forças não-cristãs centra-se, portanto, na identidade do su-
tituídas pela gramática. Imbuído do estru- - no caso de El Cid, os mouros muçulma- jeito, na sua virtualidade operada dentro
turalismo lingüístico, o formalista russo nos são iniéis. No caso de 1984, forças dos contratos estabelecidos na demanda
Vladimir Propp1 observou uma centena oponentes são aquelas identiicadas com do objeto perdido e na autoridade que
de contos de fada de tradição nórdica e o embaraço da liberdade imposto por tem o destinador de investir um sujeito
deduziu uma gramática básica presente regimes totalitários da primeira metade na sua busca. Desta forma, todas as narra-
em todas as narrativas. Assim, ele desen- do século XX. Neste percurso histórico, tivas - míticas, iccionais ou históricas - se
volveu as primeiras noções de estruturas liberdade e não-liberdade são as duas identiicam e se assumem estruturalmen-
nas narrativas. A obra de Propp tem o faces da luta hegemônica de blocos po- te como um único texto, universal. Este
mérito de ter delagrado o estruturalismo líticos excludentes. modelo, no entanto, dá conta apenas das
literário. Este modelo, muito mais que o Assim, o estruturalismo trabalha as formas narrativas clássicas.
formal, tem o mérito de ter interpretado oposições fundamentais, um cedendo
o sujeito, na sua performance subjetiva signiicação ao outro por oposição. Nas Rupturas nas redes de identiicação
e coletiva, e assumido a identidade do
LOGOS

Na ruptura estabelecida pela narrativa cutir seus próprios procedimentos já tem só porque o segundo se desenvolve no
na pós-modernidade, a análise estrutura- uma considerável tradição. Em Hamlet, de espaço físico e o primeiro no espaço
lista perde um pouco a sua função prática. Shakespeare, a pretexto de denunciar o psíquico. O estudo diacrônico da intro-
Mesmo em romances datados do início assassino do pai, o príncipe fez encenar dução dos valores apanha o Ulisses de
do século XX, como Ulisses (1922), de uma peça no castelo dando todas as pis- Homero como um ser que age em nome
James Joyce, ou em outros mais recen- tas para que a verdade viesse à tona. do coletivo; portanto, não apresenta es-
tes, como Água viva (1977), de Clarice fera subjetiva, embora a tenha. O Ulisses
Lispector, a estrutura complexamente Heróis clássicos, identidade de Joyce não age em nome de ninguém
psicologizante 3 torna a demanda do que não o seu próprio, é um ser eivado
sujeito uma elaborada rede de sutilezas
e subjetividade de subjetividade. As duas identidades
Quando o estruturalismo insinuou-se
que perde suas categorizações quando na teoria literária, os seus modelos de são distintas. Numa outra concepção,
submetida a um modelo tão “matemati- abordagem e análise de textos assumiram a própria intertextualidade, que como
camente” fechado de análise. o sujeito actancial como o próprio sujeito processo justiica a identiicação dos dois
Concentremos-nos em Água viva: o narrativo e como o próprio vínculo deste heróis, desmente aquela diversidade de
que procura o sujeito em uma narrativa com a narrativa. Todo o investimento se- sujeitos e identidades. Sincronicamente,
que sequer apresenta um plot ou perso- mântico subseqüente - método próprio são heróis da mesma cepa subjetiva, iden-
nagens? A demanda é a do sujeito da pró- da análise estruturalista -, que recai em tiicados como seres de igual dimensão
pria enunciação narrativa, o que em outra grande parte sobre o ser do sujeito, é humana e subjetiva.
instância se confunde com a autoria. O revelado na sua magnitude, tornando A subjetividade é uma poética veri-
sujeito busca o próprio romance, ou o que o sujeito um ser completo na sua gran- icável na esfera do indivíduo agindo na
é enunciado. Essa busca incorre numa deza e miséria humanas. Assim, todas as narrativa. A esse respeito não precisamos
relativização da identidade subjetiva. O características que se podem supor dele necessariamente recorrer a uma lista
sujeito romanesco absoluto seria aquele na relação que mantém como os outros exaustiva que incluiria, entre outros per-
guiado por um narrador onisciente, em elementos actanciais constroem a narra- sonagens, desde mitos medievais (Parsifal
terceira pessoa. Dado como romance, o tiva. Nasce, pois, do método estruturalista na sua solitária cavalgada em busca do
próprio sujeito põe em causa e em dúvida a revelação possível da identidade e sub- cálice sagrado na lenda do Rei Arthur) e
sua busca, reexercitando um gênero de jetividade do sujeito na icção. El Cid (o campeador cristão na sua luta
já extensa tradição na história literária: o Falar, portanto, de identidade do contra os mouros) até mitos modernos
metalingüístico, narrativa que tem como sujeito na icção é falar de subjetividade. (como Don Juan na sua incessante busca
matéria o próprio literário e seus procedi- Numa esfera mais ampla, a icção cons- do amor erótico). Outros “personagens”
mentos retóricos. trói-se com o dado da subjetividade. históricos figuraram em obras monu-
A identidade do sujeito narrativo Na verdade, antes mesmo de se cons- mentais como verdadeiros heróis na
caminha do clássico ao moderno e do truir e admitir no cânon teórico o conceito icção e na poesia. Um exemplo neste
moderno ao pós-moderno da mesma de subjetividade, o subjetivo aparece, sentido seria Os Lusíadas, de Camões: o
forma como, na ficção, caminha-se da desenvolve-se e age na história com todos herói é o navegador Vasco da Gama na
construção à desconstrução do vínculo os seus desdobramentos. Não é porque sua rota para as Índias Ocidentais, que se
moral e/ou formal do sujeito narrativo o conceito de subjetividade é surgido na tornou um indicador do ideal marítimo-
com os paradigmas literários em voga. À aurora da Modernidade que não tenha ha- expansionista de Portugal às portas da
desconstrução do texto corresponde a vido jamais o subjetivo na ação humana, Era Moderna.
fragmentação do sujeito, não necessa- na história e na narrativa. Na sua trajetória A seguir, exempliicaremos a diver-
riamente numa relação de causa e efeito. desde o im da guerra de Tróia até seu sidade de atitudes do sujeito que marca
Com a demissão da tarefa heróica do retorno à Ítaca, por exemplo, revela-se sua demanda de ação, subjetividade e
sujeito narrativo desde as vanguardas um Ulisses profundamente atormenta- identidade. Na literatura clássica, o herói
literárias inisseculares, o sujeito iccional do por todos os percalços humanos - e tem uma demanda moral a ser preenchi-
do século XX apreende uma outra deman- não-humanos - que o fazem sujeito com da, satisfeita. Isto implica um profundo e
da heróica, tornando-se anti-herói, anti- uma tarefa precisa: agir para construir a radical vínculo com o coletivo. O vínculo
sujeito, havendo mesmo narrativas que narrativa. Se ele não agisse não haveria subjetivo não está, no entanto, ausente.
não apresentam aquele sujeito formal história, não haveria narrativa e não ha- Um bom exemplo continua sendo o de
incumbido de uma trajetória narrativa, veria sujeito. Homero. Epopéia em que Ulisses parte
como é o caso de Água viva, em que Há, ainda, as narrativas intimistas, que para a Guerra de Tróia incumbido de
não se tem um sujeito, mas um discurso revelam um sujeito narrativo igualmente uma tarefa: recuperar Helena, raptada
enunciativo. envolvido com uma não-ação, um sujeito por Páris, e, por extensão, recuperar a
O sujeito nas narrativas meta- com complexas elaborações psicologizan- própria nacionalidade grega usurpada
lingüísticas envolve-se com a narrativa tes. No teatro grego, podemos conjeturar pelo estrangeiro, no montante à metáfora
tão bem quanto o leitor, podendo ser a dimensão interior, o drama pessoal de que dá poeticidade ao próprio mito da
caracterizados ambos como sujeitos Antígona na sua luta para dar sepultura helenidade.
metanarrativos4. Esta “hibridização” - de ao irmão Polinice. O romance-chave neste Na tragédia Antígona, de Sófocles,
um lado, o sujeito que produz a leitura; do sentido é Ulisses, de James Joyce, tido existe uma demanda legal, coletiva, e
outro, o que a re-produz - fortalece certo como intertextualização épico-formal do outra subjetiva, guiada pelo impulso do
traço que o literário desenvolve desde o Ulisses de Homero. A ação em um e em amor fraternal. De um lado, as leis de Te-
Renascimento5. A icção que procura dis- outro não se distingue qualitativamente, bas obrigam o governante Creonte a dei-
LOGOS

xar o corpo de Polinice insepulto, uma vez demasiadamente humanos. a encarnar papéis contestadores, como
que ele passou a ser tido como traidor de Assim, a trajetória do sujeito é linear. se todos estivessem - e de fato estavam
sua pátria. De outro, o amor de Antígona Sabe-se desde os primeiros contratos - em busca de uma nova conformação
pelo irmão a obriga, por cima da lei, a dar irmados entre os actantes que conlito social. Onde deviam procurá-la se não em
sepultura ao irmão. O conlito será sempre deverá se apresentar, qual o fundo mo- si mesmos, nos seus humanos ideais de
em torno do edito coletivo, aquele que ral implícito e que reconstituição terão os justiça e solidariedade? Nos primórdios
programa e legisla a moralidade que o vínculos iniciais quebrados. Não estamos da Renascença italiana do século XII,
cidadão tem de exercer em relação ao em hipótese alguma simplificando o Francisco de Assis constestou a Igreja,
Estado. Na literatura clássica, o paradigma drama clássico com o pretexto de ver na depois de ter contestado o próprio pai.
literário haverá sempre de coincidir com imposição de leis sociais severas o único Muitos outros mitos e iguras histó-
os paradigmas sociais, questão que torna leitmotiv de sua construção. Por outro ricas enriquecem a literatura mundial,
uma obra identiicada com os mais altos lado, não se pode comparar uma icção a personiicando, enquanto personagens
anseios da pólis. Os homens virtuosos re- outra se não for pelo aval dos paradigmas ideais, emblemas, alegorias, metáforas,
ferendam o status quo; os que infringem sociais de época. Quando passarmos à enim, identidades que a cultura literá-
as regras são punidos, ainda que seus Modernidade, veremos que o herói vai se ria tem o poder de irmar. Entre esses
impulsos apresentem uma justiicativa limitar a sua esfera subjetiva muito mais personagens podemos lembrar desde
humana, subjetiva, conseqüentemen- do que aos vínculos sociais que deveria os mitos gregos, clássicos, sem indivi-
te, difícil e complexa o suiciente para irmar. No Quixote, por exemplo, o próprio dualidades marcantes, até aqueles com
igurar como virtude (Khote, 1982). Fica espírito da época induz o herói a vagar em fortes marcas pessoais.
na dramaturgia clássica admitida a mais busca da lealdade que deve a si mesmo. A Outros modelos de análise assumem
elementar das funções da literatura: a de Renascença, na Espanha como em toda a diferentemente as relações de depen-
promover a reflexão sobre problemas Europa pós-medieval, levava o iccionista
LOGOS

dência entre os elementos da narrativa. com essas narrativas que nos envolvemos
Na pós-modernidade, o sujeito errante diariamente. São elas que moldam a nos-
irradia-se num plano secundário, sem sa identidade hoje?
motivação aparente, sem um programa
básico, sem quase qualquer ligação
substancial com qualquer programa
narrativo.

As icções hoje
Reairmando nossa hipótese inicial
- a de que o sujeito, tanto na icção
quanto fora dela, move-se dentro de
redes relacionais -, mostramos ser
possível caracterizar a formação das
identidades como processos similares
na icção e fora dela. A mútua depen-
dência aí veriicada acaba gerando seg-
mentos, que na contemporaneidade Notas
dão nova feição à massa, que sempre 1
Ver Morfologia do conto (1928), em que Pro-
foi considerada amorfa (Baudrillard, pp deduz das narrativas estudadas sete tipos
1985). Com o estabelecimento das re- universais e modulares de personagens, que
lações mediáticas, as massas se classii- desempenham 31 funções.
cam em segmentos que cada vez mais 2
Ver mais detidamente: Pandolfo, Maria do Carmo
se tornam campo da atualização das Peixoto. Práticas de estruturalismo. Rio de Janeiro:
icções e irrealidades cotidianas. No Grifo, 1977; Zadig: análise da narrativa. Petrópolis:
comando de uma máquina, todos se Vozes, 1978; e Moura, Sérgio Arruda de. As uto-
tornam produtores e consumidores de pias negativas. Dissertação de Mestrado. Recife:
icção. Sentados em uma poltrona de UFPE, 1986.
3
Mesmo em narrativas simples como a do Cha-
cinema ou em em frente a uma tela de peuzinho Vermelho, a demanda do sujeito - levar
TV, absorvemos doses diárias de icção. doces para a Vovozinha - reveste-se de profundos
Quando lemos um jornal também certa signiicados psicológicos.
dosagem de icção nos invade, uma vez 4
Em nossa tese de doutorado empreendemos
que os pontos de vista assumidos nas uma análise que busca caracterizar uma poética
reportagens são sempre subjetivados da narrativa iccional brasileira dos anos 80.
por escolhas lingüísticas pessoais, 5
Criar a ilusão de profundidade, pela perspectiva,
imposições ideológicas da empresa volume e nuances do claro-escuro, e de conti-
jornalística, visões estereotipadas da nuidade do “real” com o espaço do quadro são
equipe de produção. Acrescente-se conquistas do Renascimento. A Monalisa, de Da
Vinci, encara o observador como num diálogo,
a isto nossa própria conformação e
provocando um outro espaço de relexão que
entendimento dos fatos e aí está um não apenas o pedagógico, mas o da própria
bom relato de icção - e que não se legitimidade artística.
assume como tal! A “vida real” se en-
cerra quando aprendemos a falar, isto
é, quando incorporamos a linguagem. Bibliograia
Nesse aspecto, as máquinas de produ- BAUDRILLARD, J. À sombra das maiorias silencio-
zir icção não interferem radicalmente, sas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
mas ampliam e intensiicam nosso mer- KHOTE, Flávio René. O Herói. São Paulo: Ática,
gulho diário no mundo da icção. 1982.
Heróis e não-heróis se comprazem MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo.
e revigoram suas vivências e aventuras Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
diárias. Os relatos que nos chegam
são de heróis esvaziados de sentidos
históricos, portanto, signos vazios que,
no entanto, preenchem nossa demanda
de heroísmo e catarse. Jogadores de
futebol campeões, cantores de rock com * Sérgio Arruda de Moura é Dou­
tor em Literatura Comparada
mensagens rebeldes e deinidores de ati- pela UFRJ, Professor Associado e
tudes, ídolos de cinema e TV com vida real Pesquisador nas áreas de Litera­
similar à que vivem nas telas, aventureiros tura, Comunicação e Lingüística
- heróis e bandidos - nos labirínticos espa- na UENF.
ços irreais dos jogos de computadores... É
LOGOS

Falando de mestiçagem:
o des-índio de Darcy e o
índio vestido de Carlos Gomes Ângela Maria Dias*

RESUMO
O processo de gestação do Brasil como uma
“comunidade imaginada”, para usar a suges-
O gradativo processo de ges-
tação do Brasil enquanto “co-
munidade imaginada”, para
usar a sugestiva expressão de Benedict
Anderson (1989), concluído durante o iní-
pródigas matrizes de construção relexiva
da nacionalidade, pela airmação poética
do imaginário nacional e pela criação do
romance brasileiro. A tradição empenha-
da de uma literatura em busca de um ros-
tiva expressão de Benedict Anderson, que se
airma no início do século XIX ao se tornar cio do século XIX, com a independência de to para o país novo e pleno de contrastes,
independente de Portugal, tem a literatura Portugal, manifesta o protagonismo da ao usar a técnica romanesca importada
como promotora. A identidade brasileira dian- literatura como madrinha e promotora. da burguesia européia na dicção do desa-
te da globalização é analisada a partir de duas Com efeito, durante os três séculos de juste nacional de uma sociedade agrário-
obras: O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, e O dominação colonial, a Literatura, como escravocrata, apesar das inconsistências,
selvagem da ópera, de Rubem Fonseca. reconhece Antonio Candido (1967), é vai airmar-se criativamente.
Palavras-chave: literatura; identidade; glo- o “fenômeno central da vida do espí- A sensação desconfortável da “falta
balização. rito”1, o “eixo da vida cultural brasileira” de contornos deinidos”, da inexistência
(em meio à precariedade intelectual, ao de fisionomia própria frente à solidez
SUMMARY
desequilíbrio social e à espoliação econô- sociológica da metrópole, ao explicar, de
The process of gestation in Brazil as an “ima-
gined community”, to use the suggestive
mica característicos da condição política acordo com Sérgio Buarque de Holanda,
expression by Benedict Anderson, in which it subordinada). “o longo romantismo de nossa literatu-
conirms in the beginning of the XIX century Se desde o século XVI a ativida- ra” (1996, p.327-330), gera, apesar de si
to have become independent from Portugal, de literária tem cumprido um papel mesma, uma fecunda estirpe: desde as
has the literature as a promoting tool. The Bra- relevante na imposição cultural dos mocinhas sonhadoras de Macedo e o
zilian identity facing globalization is analysed padrões colonizadores e na difusão de primeiro malandro literário de Almeida,
as from two works of art: O povo brasileiro by seus valores, a partir do século XVII, o passando pelo índio de Alencar - “vestido
Darcy Ribeiro and O selvagem da ópera by acirramento das contradições do pro- de Senador do Império, cheio de bons
Rubem Fonseca. cesso de colonização combinado aos sentimentos portugueses” (Andrade,
Keywords: literature; identity; globalization.
ecos do Iluminismo e do Liberalismo 1983, p.353-360) - e seus implausíveis
RESUMEN
transformam o nativismo da paisagem heróis urbanos, até a revolução da matu-
El proceso de concepción de Brasil como em emblema peculiar de diferença ridade com Machado de Assis, o mestre
una “comunidad imaginada”, para emplear la e autonomia. De fato, a invenção do da narrativa oblíqua do arbítrio e da
sugestiva expresión de Benedict Anderson, homem brasileiro e de toda uma tra- futilidade das elites brasileiras.
que se airma a inicios del siglo XIX al inde- dição orgânica específica apóia-se, Justamente a tradição de opressão
pendizarse de Portugal, tiene la literatura sobretudo, na “metáfora recorrente da econômica e espoliação cultural de nosso
como su promotora. La identidad brasileña paisagem com interioridade” (Bhabha, colonialismo interno, posta ironicamente
se analiza desde dos obras: O povo brasileiro, 1995, p.295) da identidade nacional. E, à mostra no romance machadiano, rever-
de Darcy Ribeiro, y O selvagem da ópera, de assim, o romantismo indianista, ao aplicar te-se, no modernismo crítico de Mário de
Rubem Fonseca. a convenção estrangeira sobre o motivo Andrade, a par do otimismo histórico do
Palabras-llave: literatura; identidad; globa-
local, dá forma, com Gonçalves Dias e momento, em descaracterização, amor-
lización.
José de Alencar, à auto-imagem do ismo e tristeza.
país e ao ícone do exotismo tropical Macunaíma, o “herói sem nenhum
para exportação. caráter”, encarna, para falar como Darcy
Sem dúvida, o Romantismo, o mo- Ribeiro, a “ninguendade” do povo brasi-
mento mais importante da nossa lite- leiro. De fato, este personagem mítico,
ratura, segundo José Veríssimo (apud concebido a partir do imenso manancial
Holanda, 1996), conforma uma das mais poético-folclórico do extremo norte da
América do Sul, antecipa, iccionalmente,
LOGOS

em 1922, os postulados da antropologia O trabalho de Darcy Ribeiro, ao dados e informações históricas, artísticas
brasileira de Darcy Ribeiro, de 1995. Em retomar o mito das três raças e trocar- e anedóticas, constitui um forte elemento
O povo brasileiro, o processo alienante da lhe o sinal - como também faz com de continuidade formal entre esta obra e
colonização gera o lento fenômeno da outros elementos do ideário nacional as produções anteriores. O mesmo tom
“transiguração étnica pela desindiani- -, pretende constituir-se numa palpitante divertido e deslizante de um exímio simu-
zação forçada dos índios e pela desafri- narrativa histórica sobre os destinos do lador, já amadurecido em outras criações,
canização do negro que, despojados de povo brasileiro. Mas, em sua essencial preside a proposta deste romance históri-
sua identidade, vêem-se condenados a postulação de uma antropologia brasi- co e/ou biograia de celebridade, que se
inventar uma nova etnicidade... Assim leira, tal narrativa se afasta totalmente da pretende argumento cinematográfico:
é que se foi fundindo uma crescente concatenação lógica inerente ao discurso “Mas não estamos escrevendo um ro-
massa humana que perdera a cara: eram cientíico, em favor de uma modulação mance, escrevemos um ilme contando
ex-índios desindianizados, e sobretudo histórica que privilegia “a livre associação, a vida de um homem que existiu. Na
mestiços, mulheres negras e índias... a repetição e a interferência direta da icção, a imaginação é mais importante
com uns pouquíssimos brancos euro- vontade do autor”(Ribeiro, 1995, p.242), que o fato. Mas, ainda que não estejamos
peus que nelas se multiplicaram prodi- bem dentro da tradição ensaística fazendo História, devemos ter o cuidado
giosamente”. (Ribeiro, 1995, p.445) nacional das grandes interpretações de não enganar os espectadores, como
O reconhecimento desta “tábula do país. fazem os romancistas com seu diminuto
rasa” tem, evidentemente, um duplo Uma outra narrativa recente, de número de leitores. Nosso ilme será visto
sentido: de um lado, o “brasileiro 1994, o romance O selvagem da ópera por milhões no mundo inteiro. Quando
genérico”, ao integrar o que o autor de Rubem Fonseca também vai tematizar mostramos a imperatriz Teresa Cristina a
denomina “uma única etnia nacional” determinadas constantes, amplamente andar coxeando, não é porque uma impe-
(Idem, p.22), cumpre uma trajetória discutidas na obra de Darcy: a figura ratriz coxa seja, como de fato o é, dramati-
oprimida pelo “processo continuado e emblemática do mestiço e a imitação camente mais atraente do que, digamos,
violento de uniicação política” e pela como a pedra de toque do complexo uma imperatriz desfrutável que sapateie
“supressão de toda identidade étnica de inferioridade nacional. como Ginger Rogers. É porque sabemos
discrepante” e “de toda tendência virtual- Este consagrado escritor, surgido também que este claudicar majestático,
mente separatista” (Idem, p.23); de outro, nos anos 60, autor de uma prosa urba- além de sua pungência catártica, é autên-
dissociado pela cunha da “estratiicação na de recorte hiper-realista e irônico, tico”. (Fonseca, 1994, p.74)
classista de nítido colorido racial” (Idem, artíice de uma galeria de personagens A i n t en s a pr eo cupação do cu -
p.24), este “povo-massa” sustenta uma típicos da cidade violenta - detetives, mental, exposta e desdobrada no já
nova narrativa da nacionalidade. Ou seja, escritores, marginais e prostitutas -, aludido empilhamento de detalhes e
na contramão do mito substancialista das elege um personagem histórico: o pri- na demonstração virtuosística da ampli-
três raças, Darcy Ribeiro repropõe - a partir meiro artista nacional a celebrizar-se tude da pesquisa, revela-se também pelo
do zero das matrizes desfeitas - a “ninguen- no cenário internacional. tratamento dado às cidades. “Em Lecco,
dade” como “um povo até hoje, em ser, Nello Vero me disse ‘la Milano di Gomes
na dura busca de seu destino”. (Idem, non esiste piú’. Existe sim, com exceção
p.447) da casa onde ele morou, na via San Pie-
Em Darcy, a sobrevivência da utopia, A persistência de temas e proce- tro all’Orto, que foi demolida, lá estão os
nestes tempos pós-modernos, não se dimentos característicos airma-se lugares que Carlos conheceu, os teatros
envergonha de um certo tom ufanista na medida em que a biograia ic- Scala e Santa Radegonda, as igrejas e
na celebração do país como “a nova cionalizada de Carlos Gomes mo- conventos medievais, castelos, canais,
Roma: uma Roma tardia e tropical ... ruas e praças inteiras sem uma casa
mas melhor, porque lavada em san-
biliza traços como o histrionismo demolida, monumentos, parques,
gue índio e sangue negro”. (Ibidem) paródico, a atração pelo imaginário palácios antigos, como o da Mafei, a
A louvação da mestiçagem cultural e folhetinesco e kitsch (...). Galeria Vittorio Emanuele. O que não
biológica como traço distintivo e pro- existe mais é o Rio de Janeiro de Carlos
missor, a par do excesso, não pode Gomes; dele sobrou pouca coisa. E
ser interpretada como o triunfalista Nello Vero precisava ver a Campinas de
reverso das teorias de inferioridade A persistência de temas e procedi- Carlos, essa acabou mesmo. (Mas em
racial do século XIX, já que se sustenta mentos característicos, nessa incursão Campinas ainda estão, e eu pude vê-
pela própria ausência de identidade, de- ao romance histórico, airma-se na me- los, os ganchos de ferro da rede onde
inida como função da violência colonial. dida em que a biograia iccionalizada Carlos morreu)”. (Idem, p.9-10)
“Não é sobre a conjunção dos povos de Carlos Gomes, músico e autor de A descritividade visual de cada
anteriores, mas sobre a terra arrasada óperas na segunda metade do século seqüência narrativa como cena a ser
do vazio identitário que o mestiço XIX, mobiliza traços como o histrionis- ilmada, além de pontuar com insis-
surge. É a partir de uma “carência essen- mo paródico, a atração pelo imaginário tência a abertura dos segmentos com
cial” e para livrar-se da ninguendade de folhetinesco e kitsch, o apego a efeitos notações precisas e plásticas, consti-
não-índios, não-europeus e não-negros, especiais e à moral do espetáculo. De tui o recurso estético de construção
que eles se vêem forçados a criar sua fato, a marcante presença de um narrador da “imaginação nacional”. Anderson
própria identidade étnica: a brasileira.” digressivo, falante, irônico, com um certo anota a respeito que a estabilidade da
(Arruti, 1995, p.239) exibicionismo no incansável desile de paisagem sociológica capaz de fundir
LOGOS

o mundo de dentro do romance com o seu apogeu, ao que, hoje, o cinema mais denso, o próprio elemento estru-
mundo de fora e com a vida cotidiana representa. Adorno, por exemplo, no turante de toda esta vasta encenação,
do leitor é característica do realismo belo ensaio de 1955, vai aproximar os consiste na reversibilidade simbólica
da técnica, no desenho do imaginário dois tipos de produção “pela tendên- entre Carlos e a história do povo bra-
nacional em pleno século XIX. Em tais cia ilusionista e massificadora, pelo sileiro. As “lentes desapiedadas” do
obras, o típico dos elementos - índios, incentivo ao star system e pelos libretos narrador, ao construírem tal corres-
negros, ruas, monastérios, aldeias etc. diluidores e de apelo sentimental” (1994). pondência histórico-existencial entre
- delimita claramente um horizonte e A intenção paródica e auto-irônica deste homem/país/época - tal homologia de
engendra a solidez sociológica de um romance, que se compreende como “o destinos -, no melhor estilo da disposi-
mundo especíico, alheio à generalidade texto de um ilme que tem como pano ção romântica de ânimo, costuram-na
alegórica. “Porto do Rio de Janeiro. Carlos de fundo a ópera” (Fonseca, 1994, p.10), com materiais humorísticos e técnica
desembarca. Se não tivesse pressa em irônico-farsesca.
chegar a seu destino e não carregasse Nesta direção, há um procedimento
uma pesada mala, passaria o dia andando constante do narrador diante das inú-
pelas ruas da cidade. Procura o número A biografia de Carlos Gomes, meras vicissitudes da vida de Carlos e
143 da rua Direita (daqui a onze anos torturado pela condição de “artista das terríveis distorções e conlitos de
esta rua passará a se chamar Primeiro selvagem” e atormentado pela “re- um país em formação, mal saído da
de Março, celebrando o dia da vitória na ação contraditória do público”, i- condição de colônia: a digressão ver-
Guerra do Paraguai), um sobrado onde bosa e reiterativa, povoada de dúvidas
reside Azarias Botelho, o pai do jovem gura, exemplarmente, a “fatalidade retóricas, na procura do sentido último,
estudante que conheceu em São Paulo. histórica” da condição colonizada e do “julgamento inal”(Fonseca, 1994,
Na rua passa um cupê puxado por dois suas insolúveis contradições. p.164). Da mesma forma que o músi-
cavalos e, apesar de a carruagem ser co, o povo brasileiro, antes “amado e
fechada, Carlos consegue divisar dentro gloriicado” pelo patriotismo militante
dela uma mulher que lhe parece muito do romantismo oicial, termina, no inal
bonita.” (Idem, p.15) é manifesta: “Os roteiristas do ilme, que do século, “esquecido e abandonado”
O recorte aiado da circunstância são uma espécie de libretistas, devem pela República, que se faz à sua revelia,
mergulha na obsessão nacional do considerar as opções possíveis e fazer a e incompreendido e humilhado pelo
Segundo Império, o complexo de melhor escolha”. (Idem, p.156) argumento da inferioridade racial
inferioridade da nação periférica e Mas tal tipo reincidente de comentá- brandido pela intelectualidade realis-
atrasada, tal como o reconhecia Silvio rio não impede a ludicidade do negaceio ta-naturalista.
Romero, na época: “É este o mal de nos- entre a cena do “filme tautológico e As duas constantes também tema-
sa habilidade ilusória e falha de mestiços piegas” (Idem, p.169) e a minudência da tizadas em Darcy Ribeiro aqui recebem
e meridionais, apaixonados, fantasistas, “história como romance”(Idem, p.215). um tratamento integralmente oposto.
capazes de imitar, porém organicamente Provavelmente, usando ambos, o ilme A mestiçagem, por exemplo, perde
impróprios para criar, para inventar, para e o romance, este narrador apaixonado inteiramente a positividade de evento
produzir coisa nossa que saia do fundo pelo kitsch quis fazer, quem sabe, o es- radical e distintivo, como na obra do
imediato ou longínquo de nossa vida e boço de uma ópera - ou um libreto com antropólogo, para tornar-se o signo
de nossa história”. (apud Schwarz, 1987, várias indicações cenográicas e visuais visível da inferioridade de “il povero
p.39) - sobre “um músico que depois de amado selvaggeto”(1995, p.63), “aturado, com
A biografia de Carlos Gomes, e gloriicado foi esquecido e abandona- condescendência, por ser um animal
torturado pela condição de “artista do” (Idem, p.10). O tonus do melodrama exótico”(Idem, p.108), “como um
selvagem” (Fonseca, 1994, p.109) e freqüentemente encenado “através das chimpanzé”(Idem, p.65). Submetido
atormentado pela “reação contradi- desapiedadas lentes da câmera”(Idem, ao “internacionalismo musical”(Idem,
tória do público”(Idem, p.142), igura, p.164) do narrador, ainal, força a sua con- p.141) da ópera, na segunda metade
exemplarmente, a “fatalidade histó- issão de afeto pelo próprio personagem e do século passado, Carlos Gomes, o
rica”(Ibidem) da condição colonizada vai conformá-la: “Não foi difícil, para mim, brasileiro simbólico, obrigado à “ads-
e suas insolúveis contradições: “Para descobrir os dons de coração de Carlos, e tringência ao modelo europeu” (Idem,
merecer as graças do imperador e hon- os dons de gênio, depois de o observar p.141), só sobrevive por intermédio da
rar o nome do Brasil, o maestro quer durante tanto tempo... Essa é, aliás, a exotização. A alusividade é clara e sua
escrever outra ópera rigorosamente regra de ouro do cinema (e da icção): correspondência com a época contem-
italiana, como o Salvator, sua obra de ame o seu personagem.” (Ibidem) porânea da globalização econômico-
maior sucesso mas também a que mais Como desdobramento desta re- cultural é marcante. Hoje, no fluxo
contribuiu para as acusações que lhe lação autor/personagem, o romance mundializado da mídia, só circulam
fazem de não ser “um artista original”. freqüenta vários núcleos narrativos de os signos nacionais sob a chancela do
(Idem, p.140) melodrama, por exemplo, os enredos exótico, pagando o pedágio da estere-
Justamente a ópera, por sua ambi- kitsch de várias óperas, mas também otipia e da pauperização semântica.
ção burguesa de obra de arte total e começa e termina com cenas passionais: Por outro lado, a imitação, ao invés
espetacular e pela vultosa exigência o assassinato da mãe de Carlos pelo seu de “fatalidade histórica”, constitui,
de altos investimentos que mobiliza, próprio pai e o suicídio do amigo André no enredo de Darcy Ribeiro, o vezo
pode ser aproximada, na época de Rebouças. Entretanto, o nódulo forte e de uma elite exploradora e apartada
LOGOS

da maioria da população, o mal-estar


decorrente da estratiicação social. O
Notas
povo brasileiro, “as imensas massas
1
A respeito desse assunto, é fundamental a leitura
do capítulo “Literatura e cultura: de 1900 a 1945”,
predominantemente escuras”(1995,
in Literatura e sociedade.
p.444) - ao contrário do “alheamento 2
Sobre esse tema, é de grande valia a leitura
ao seu verdadeiro mundo”(Idem, p.141) do belo estudo de J.M.A. Arruti sobre Darcy
inerente à trajetória de Carlos, como Ribeiro.
personagem emblemático -, reúne, na 3
Devo a referência bibliográica a Vivian Wyler.
versão do antropólogo, “a criatividade
do aventureiro, a adaptabilidade... e a
vitalidade de quem enfrenta, ousado, Bibliograia
azares e fortunas, a originalidade dos ADORNO, Theodor W. The bourgeois opera. In:
indisciplinados”(Idem, p.445). Opera through other eyes. Stanford: Stanford
Homi Bhabha assinala, em Nation University Press, 1994.
and Narration, que a nação como forma ANDERSON, Benedict. Nação e consciência na-
de elaboração cultural é a agência da cional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São
Paulo: Ática, 1989.
narração ambivalente. Quanto mais ambi-
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In:
valente, mais produtiva a interpretação TELLES, Gilberto Mendonça. (Org.) Vanguarda
bifronte da cultura: de um lado, força de européia e modernismo brasileiro. Petrópolis:
subordinação e reprodução; de outro, Vozes, 1983.
campo de produção e criação. Nesse ARRUTI, José Maurício Andion. A narrativa do
sentido, o romance de Rubem Fonseca, fazimento, ou, por uma Antropologia Brasileira.
ao apresentar, ironicamente, a história do In: Novos Estudos CEBRAP, n.43. São Paulo,
povo brasileiro como melodrama lacrimo- novembro 1995, p.235-243.
so e farsesco fatalismo da macaqueação, BHABHA, Homi.K. Nation and narration. London
não foge à tradição intelectualista, à razão and New York: Routledge, 1995.
cética e ao “desenraizamento transcen- CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
dental” inerentes à icção romanesca. Por
FONSECA, Rubem. O selvagem da ópera. São
outro lado, a peculiar antropologia de Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Darcy Ribeiro, ao buscar, pela memória HOLANDA, Sérgio Buarque. Situação do roman-
da experiência do povo brasileiro, os ce. In: O espírito e a letra. Estudos de Crítica
caminhos de seu futuro, constrói uma Literária II - 1948-1959. São Paulo: Companhia
narrativa profundamente apaixonada das Letras, 1996.
por seu personagem. Ao pensá-lo como RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o
“povo novo, em fazimento”, remitologiza sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
seu destino como epopéia e aposta na Letras, 1995.
utopia enquanto ponto de fuga solidário ROMERO, Sílvio. Machado de Assis. Rio de Ja-
e airmativo: “Nosso destino é nos unii- neiro: Laemmert & C., 1897, p.121-123. Apud
SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração.
carmos com todos os latino-americanos...
In: Que horas são? São Paulo, Companhia das
para fundarmos, tal como ocorre na Letras, 1987, p.29-55.
comunidade européia, a Nação Latino- VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira.
Americana sonhada por Bolívar. Hoje In: HOLANDA, Sérgio Buarque. O espírito e a
somos 500 milhões, amanhã seremos letra. Estudos de crítica literária I - 1920-1947.
1 bilhão. Vale dizer, um contingente São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
humano com magnitude suiciente para
encarnar a latinidade em face dos blocos
chineses, eslavos, árabes e neobritânicos
na humanidade futura.” (1995, p.448)

* Ângela Maria Dias é Professora


Aposentada da UFRJ, Doutora
em Teoria Literária, Pesquisadora
do CNPq e Professora Adjunta de
Literatura Brasileira da UFF.
LOGOS

Macunaíma: uma releitura


no momento global Nízia Villaça*

RESUMO
O artigo discute a oportunidade de retomar a
leitura de Macunaíma, de Mário de Andrade,

V eja bem: abrasileiramento
do brasileiro não quer dizer
regionalismo nem mesmo
nacionalismo. O Brasil para os brasileiros
não é isso, signiica só que o Brasil, para
Canclini (1996), a relexão atual sobre a
identidade e a cidadania precisa situar-
se em relação a vários suportes culturais,
e não só em termos de folclore, ou de
diversividade política, como ocorreu nos
levantando questões ligadas à antropofagia,
mestiçagem e hibridização para enfocar o par
ser civilizado artisticamente, entrou no nacionalismos do século XIX e início do
global/local neste inal de milênio, quando concerto das nações que hoje em dia século XX.
se corre um duplo risco: a existência de um dirigem a civilização da terra, tem de Nesse sentido, a antropologia en-
darwinismo tecnológico e o ressurgimento concorrer para esse concerto com a sua contra diiculdades hoje em ocupar-se
de movimentos fundamentalistas. parte pessoal, com o que singulariza e da transnacionalização, da globalização
Palavras-chave: global/local; hibridismo cul- individualiza, parte essa única que poderá e de situações de interculturalidade.
tural; antropofagia. enriquecer e alargar a civilização”. Quando a circulação cada vez mais in-
Mário de Andrade tensa de pessoas, capitais e mensagens
SUMMARY nos põe em contato simultaneamente
This article discusses the opportunity to rere- Em tempos de globalização, de ve- com várias culturas, nossa identidade já
ad Macunaima, by Mário de Andrade, raising
locidade crescente dos mecanismos de não pode ser deinida pela associação
questions associated with antropophagy,
the mingling of races and hybridism to focus
informação e comunicação, de autonomi- exclusiva à comunidade nacional ou à
on the pair global/local in the end of the zação dos processos inanceiros, na esteira ótica da diferença. Impõem-se a questão
millenium, when it is run a double risk: the dos grandes complexos transnacionais, da hibridização e a necessidade de uma
existence of a technologic Darwinism and the crescem os debates sobre as tendências visão transdisciplinar.
reemergence of fundamentalist movements neoliberais “democratizantes” e o papel É seguindo esta trilha que, a partir do
Keywords: global/local; cultural hybridism; a ser desempenhado pelo que tradicional- movimento antropofágico dos anos 20 e
antropophagia. mente se entendia por nação. da obra de Mário de Andrade, Macunaí-
Perguntamo-nos sobre o que possa ma, gostaríamos de retomar a discussão
RESUMEN representar hoje o conceito de cidada- sobre o nacional, marcando a diferença
El artículo discute la oportunidad de reto-
nia e o contrato de cada indivíduo com do que estamos chamando de hibridiza-
marse la lectura de Macunaíma, de Mário de
Andrade, planteando cuestiones relacionadas
seu país de origem ou adoção. O que é ção frente aos processos de mestiçagem
a la antropofagia, mestizaje e hibridismo o Brasil, o que é ser brasileiro? e sincretismo que caracterizaram diversas
para enfocar el par global/local en este in de A interrogação sobre a questão narrativas sobre nossa identidade, alter-
milenio, cuando se sufre un doble riesgo: la identitária parece comum ao imaginário nando versões negativas e paradisíacas.
existencia de un darwinismo tecnológico y latino-americano e é neste contexto que Embora Gilberto Freyre, em Casa-
el resurgimiento de movimientos fundamen- se constroem alianças e pactos, como o Grande & Senzala, utilize indistintamente
talistas. Mercosul, que funcionam no limite das os termos hibridização e mestiçagem,
Palabras-llave: global/local; hibridismo cultu- especificidades nacionais e da partici- faremos aqui uma distinção entre as duas
ral; antropofagia. pação num processo de planetarização. estratégias, revisitando Macunaíma.
Tais tratados, na defesa de interesses A mestiçagem parece estar atrelada
econômicos, na tramitação de acordos a um imaginário de um Brasil passivo,
comerciais, parecem não enfatizar a onde tudo está à espera da predisposição
questão cultural, determinante para a estrangeira, especialmente portuguesa,
manutenção do caráter de cada nação para as misturas que viriam equilibrar
quando este não é mais territorial e fun- a sensualidade negra ou a preguiça
dacional, mas construído em níveis mais indígena. O termo hibridização oferece
complexos. maior capacidade de abarcar misturas
Como bem sublinha Nestor Garcia interculturais, enquanto que mestiçagem
LOGOS

refere-se sobretudo a raças e sincretismo. com a crônica da cultura do dia-a-dia, que liglota, multiétnica, migrante, feita de
Indica geralmente fusões religiosas ou distinguia os diferentes povos e parale- mesclas de várias culturas. Se grande
movimentos simbólicos tradicionais. lamente promovia meios de adaptação parte da produção artística e de massa
A palavra hibridização, como acentua para os imigrantes. ainda circula apenas no âmbito nacional,
Canclini, é mais versátil para dar conta Nos anos 60, o cinema contribuiu consagrando a identidade regional, um
tanto destas misturas “clássicas” quanto para a estruturação do imaginário de- setor sempre mais vasto de criação da
dos entrelaçamentos contemporâneos senvolvimentista, como um agente de difusão e da recepção da arte se realiza
entre o tradicional e o moderno, o culto, inovações tecnológicas. Como os meios de modo desterritorializado, produzin-
o popular e o massivo. provinham predominantemente de ca- do as obras como citação transcultural,
O que se quer acentuar com a idéia de pitais nacionais, mesmo os atores mais individualizando eixos que atravessam
hibridização é a discussão da brasilidade internacionalizados de então – a TV e a as fronteiras.
como identidade propriamente cultural publicidade – incitavam-nos à valoriza- O momento atual da cultura latino-
e processual, supondo uma atividade ção do produto nacional. americana, “onde as tradições ainda não se
constante na metabolização do par glo- A crise identitária vai se aguçar nos foram e a modernidade não terminou de
bal/local. anos 80 com a abertura dos mercados chegar” (1997), conigura uma heteroge-
Canclini sublinha o processo de cons- e os processos de integração regionais neidade multitemporal, na qual imagens
trução da identidade como cultural e ativo, e globais que reduziram o papel das pré-colombianas são veiculadas por
fugindo às leituras naturalistas e idealiza- culturas nacionais. Passamos, assim, a artistas, misturadas às da indústria cul-
das que privilegiaram o cenário edênico depender dos grandes centros onde as tural e reelaboradas por computadores.
do “em se plantando tudo dá” (1997). decisões são tomadas. Sai-se da fanta- Um olhar sobre estes circuitos híbridos
Para o autor, a identidade é algo que se sia da identidade para a construção da de produção cultural ilumina também
narra. Inicialmente são os acontecimentos identidade. os processos políticos, com os quais nos
fundadores, relacionados geralmente à A antropologia acostumou-se a tratar deparamos, com a mistura da democra-
apropriação de um território, à conquista das questões identitárias a partir do cri- cia moderna e de estruturas arcaicas de
da independência. Tais discursos encon- tério de distinção dos grupos no contato poder, de instituições liberais e de hábitos
traram seus dispositivos de formulação cultural. Canclini acentua que a situação autoritários.
de identidade nacional nos livros escolares atual de interculturalidade implica, pela A narrativa da identidade vista por
e museus. velocidade e quantidade de informações, Lezama Lima (1988) também nos oferece
Numa etapa posterior, ao rádio e o pelas maneiras desiguais de apropriação pistas para pensar a hibridização como
cinema contribuíram para organização simbólica, não apenas a diferença, mas dinâmica oposta à visão naturalista da
dos relatos de identidade e cidadania, também a hibridização. Identidade po- mestiçagem.
LOGOS

O autor vai longe em suas especu- ço, por constituir uma síntese hispano- provérbios, anedotas, costurados numa
lações sobre identidade nacional, com indígena e hispano-negróide. linha narrativa que se conigura como
um olhar que nega a história linear de Esta visão de Lezama Lima aponta para busca, produção e perda. Aí a literatura
cunho hegeliano para apostar num uma “mestiçagem barroca, lúdica”, diferente assume plenamente o sentido que lhe
imaginário que se contrapõe a mitos, da mestiçagem idealizada ou da mestiça- atribui Rancière (1995). Lugar de combate,
folclores, começando uma nova cultura gem do naturalismo do inal do século lugar de constante apropriação que, pela
em cada espaço de análise. Sua visão não XIX e sua teoria do branqueamento. A insistência, fala do luto da Voz perdida.
privilegia a racionalidade abstrata, mas o propósito da época naturalista é oportu- Michel de Certeau (1994), referindo-se à
conhecimento erótico/sensual, o corpo, no lembrar a teoria racial de Silvio Romero economia escriturística, aponta com pro-
seus perceptos e afetos. Constrói-se uma (apud Ventura, 1991, p.66), que marcou priedade a narrativa de Robinson Crusoé
“fábula intertextual” que compendia o de- dois intérpretes do Brasil que partiram como modelo do desejo de ordenação,
vir americano como uma era imaginária de facetas distintas de sua obra: Oliveira de banimento do outro. O personagem
que soma e transforma fragmentos de Viana, em Evolução do povo brasileiro, Sexta-feira representa a alteridade que
outros imaginários. Registra a forma deste 1923 (visão arianista), e Gilberto Freyre, insiste em criar estranhamento com o
devir produzido pelo diálogo entre os em Casa-Grande & Senzala, 1933 (valori- rastro de suas pegadas e que deverá ser
textos americanos e os de outras culturas, zação da miscigenação como mitologia eliminada através da nomeação.
atribuindo ao trabalho crítico o papel de da identidade nacional). Os movimentos de busca de identi-
assinalar as semelhanças e diferenças entre O que gostaríamos de marcar com dade nacional sempre se caracterizaram
eles. Surge a história como icção. O autor Macunaíma, de Mário de Andrade, é jus- pelo desejo de uniicação, de banimento
retira dos mitos cosmogônicos, crônicas, tamente a fuga à idealização romântica do outro, seja por um exotismo paradisí-
ritos sociais, literatura, lendas biográicas, ou à crítica racista do inal do século ou aco, encenado por exemplo no romantis-
artes ou política, uma constelação de mesmo ao pensamento de mestiçagem mo, seja por um exotismo mestiço que, no
personagens exemplares da expressão identitária de um Gilberto Freyre. Macu- limite, perdia a abertura das diferenças
americana: heróis cosmogônicos, o Senhor naíma inaugura uma postura ativa do para encarnar um mito.
Barroco, o Rebelde Romântico, o homem brasileiro em confronto com a inluência Bem diversa é a estratégia de Macuna-
dos começos. estrangeira, apelando, mais que para íma, em que, mais que antropofagia como
O sintagma se constitui circularmente. uma realidade natural dada, para um de- exclusão de alteridade, tem-se agencia-
O epílogo reproduz o começo, que é se- monismo mágico, fábrica de mutações. mentos de diferenças, trabalhando o
melhante sendo diferente, de acordo com Daí a obra de Mário poder alinhar-se no espaço do entre, num jogo onde o risco
variantes epocais, regionais ou sociais que Lezama chama de “mestiçagem bar- é sentido que vai se instalando.
do universo cultural americano. A tônica roca” e poder ser reutilizada no momento É sintomático o uso sistemático da
destas dramatis personae é a poiesis atual para pensar o produto híbrido . O paródia. Logo na abertura da rapsódia,
demoníaca, patente no vocabulário- “tupi or not tupi” do Manifesto Antropo- o estilo, de sabor primitivo, ao mesmo
faústico, sulfúreo, plutônico luceferino, fágico de Oswald a rigor não é a tônica tempo religioso e épico, brinca com
tendo a imagem do homem americano do discurso de Mário que, não sendo um os primeiros parágrafos do segundo
com “uma rede de imagens que recortam manifesto, é mais plástico nas diversas capítulo de Iracema. Enquanto a índia
a astúcia e a magia, a curiosidade e o pra- negociações. tabajara se distingue por sua beleza
zer, a apetência e a devoração, a rebeldia O livro de Mário de Andrade possui solar, Macunaíma é o feio, escuro.
e a liberdade, a malícia e o engenho”. diferenças e semelhanças com o pensa- À leveza e à rapidez da mítica in-
Este dado demoníaco estrutura um pen- mento de Lezama Lima. Semelhanças no dígena contropõe-se a preguiça do
samento crítico na fuga da dominação momento em que a viagem do herói não herói andradino. Na atitude paródica, a
teórica dos grandes centros. se limita ao Brasil, estendendo-se a outros identidade se dá como intertextualidade.
A imagem americana de Lezama países da América Latina, abrindo para uma Hipertexto.
difere das imagens etéreas com que realidade americana, o que é interessante A “Carta às Icamiabas” também se
Rodó identificou a América Latina ou para a época. Semelhanças também inicia com uma paródia camoniana e
que Otávio Paz detectou em sua visão pelo fato de colocar como contraponto estabelece em seguida a identidade
da fundação do México. Seu americano é culturas européias, como a francesa ou das índias no diálogo com as france-
uma espécie de Caliban, que poderíamos a italiana. No entanto, enquanto Lezama sas. O mesmo sucede em Macunaíma
aproximar do Macunaíma de Mário de vê a cultura européia como a matriz com a tradução da cidade de São Paulo
Andrade. paradigmática de nossa cultura, Mário a partir das referências da selva: o per-
O pensamento de Lezama mesmo no trabalha com a quebra das continuidades sonagem pensa que um elevador é um
que toca aos Heróis cosmogônicos, nunca e com uma tática de tradução da cultura macaquinho (sagüi), que as buzinas dos
é puro: não há indigenismo nostálgico. estrangeira. carros eram piados ou berros de bichos
O personagem “Senhor Barroco” con- Construído no cruzamento de di- e não máquinas, que os carros fordes
igura o grande eixo do pensamento de versos significantes, textos e culturas, eram onças pardas ou os caminhões,
Lezama, o qual subverte a historiograia de Macunaíma escapa das classificações tamanduás.
corte nacionalista, que ixava no romantis- na sua forma rapsódica. Contribuíram Macunaíma traria os germes do que
mo e nos movimentos de independência para sua arquitetura textos clássicos das poderíamos chamar com Lezama de
da Espanha ou de Portugal o nascimento literaturas portuguesa e brasileira, relatos “mestiçagem barroca”, que aproxima-
literário ou artístico latino-americano. O etnográficos, mitos indígenas, contos mos do movimento de hibridização,
barroco será, assim, um autêntico come- da literatura folclórica, cantigas de reza, ou seja, identidade como construção
LOGOS

que se narra sempre diferentemente, subalternidade, enquanto descontínuos


identidade como seqüência de iden- e com graus variáveis de negociação,
tiicações. com os discursos hegemônicos. Os con-
Para Otávio de Souza (1994), a busca ceitos de multiculturalismo e diferença
da identidade brasileira é constante. passariam a integrar o pastiche da pós-
Ingênua, em períodos como o roman- modernidade.
tismo, torna-se cientiicista no inal do Segundo Mike Featherstone, por
século XIX. Retorna culturalista com os outro lado, mais que a emergência de
modernos e ganha teor revolucionário a uma cultura global uniicada, existe uma
partir da década de 50. Mantém-se hoje vigorosa tendência a que o processo de
como tema, embora o sentido de busca globalização propicie um estágio para as
se torne mais complexo pelos motivos diferenças, abrindo uma vitrine mundial
já apontados. de culturas na qual os exemplos do exó-
O discurso de Macunaíma parece tico distante sejam trazidos diretamente
ocupar um lugar estratégico para a dis- para o lar provocando um entrechoque
cussão contemporânea, quando procura discordante de culturas (1997).
não cair em radicalismos regionalistas, Portanto, cientes desses debates nos
imagens idealizadas, nem nos deixar perguntamos sobre a produção de uma
aprisionar no exotismo da diferença. A cultura que transite com estilo próprio,
icção de Mário aposta nas aclimatações sem se tornar mediadora de um exotismo Bibliograia
que podemos e devemos fazer dos tropical. Cultura com seu imaginário de ANDRADE, Mário de. Macunaíma - O herói sem
aportes estrangeiros na construção do constelação, celeste (Macunaíma/Ursa nenhum caráter. São Paulo: Livraria Martins,
nacional enquanto barganha, troca. Em Maior), cultura também da saúva e da 1976.
inúmeros livros de literatura dos anos 80 pobreza. Identidade brasileira como pro- CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cida-
e 90, o que se vê é, ao contrário, um abrir jeto que inclui a falta e escapa assim de dãos - Conlitos multiculturais da globalização.
mão da subjetividade individual, social e se tornar uma utopia européia. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 1996.
nacional para mergulhar numa espécie _____. “El debate sobre la hibridacion”. In: Revista
de minimalismo escriturístico, no qual de crítica cultural, n.15. Santiago: Imprenta
se liquidam todos os níveis identitários, Andros, 1998, p. 42-47.
ou num mimetismo que se perde entre _____. Culturas híbridas - Estratégias para entrar e
sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997.
simulacros.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do quotidiano
A confrontação entre hibridização e - Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
mestiçagem, possibilitada pela revisita FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura
do herói andradino metamórico, teve - Globalização, pós-modernismo e identidade.
como objetivo trazer elementos para a São Paulo: Nobel, 1997.
discussão que hoje se impõe em tempos LIMA, José Lezama. A expressão americana. Ed.
de globalização. Brasiliense, 1988. p. 31.
Debatendo as idéias de Canclini sobre MORAÑA, Mabel. “El boom del subalterno”. In:
hibridização, Mabel Moraña (1998) chama Revista de crítica cultural, n.15. Santiago: Im-
a atenção para o perigo da banalização prenta Andros, 1998, p. 48-53.
do conceito, que acabaria sinônimo de RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.
um neo-exotismo latino-americano, um SOUZA, Otávio. Fantasia de Brasil - As identii-
boom da subalternidade uniformizada cações na busca da identidade nacional. São
nas redes transnacionais. Paulo: Escuta, 1994.
Para a autora, enquanto os setores VENTURA, Roberto. Estilo tropical. São Paulo:
marginalizados e explorados perdem Companhia das Letras, 1991.
voz pelo enfraquecimento do modelo
marxista em nível histórico e teórico,
alui o rosto multifacetado do índio, da
mulher, do campesino, do lúmpen, em
música, vídeos, novelas etc. O perigo é
a tentativa de transformação da empiria *Nízia Villaça é Professora da
híbrida latino-americana em conceitos e ECO/UFRJ, Pesquisadora do
princípios niveladores e universalizantes. CNPq, Coordenadora do Grupo
A hibridização converte-se, então, em de Pesquisa “ETHOS: comu­
nicação, comportamento e
um dos estratagemas do pensamento
estratégias corporais” e autora
pós-colonial, que desta forma reinscreve dos livros Cemitério de mitos
a América Latina num movimento de - Uma leitura de Dalton Trevisan
recentralização epistemológica. Desvirtu- e Paradoxos do pós-moderno
am-se o conceito de hibridização e o de - Sujeito & Ficção.
LOGOS

Portugal, Espanha e as nossas razões Hugo Lovisolo*

RESUMO
Passando pelas complexas relações mantidas
ao longo dos séculos entre Espanha/Portugal
H á mais de quinhentos anos
um pequeno país decidiu que
era um barco. “Pequeno” não
é um mero adjetivo relacional, mais que
isso, é uma marca central de uma consci-
cientíica. Barroca no valor concedido à
metáfora, em pensar que a vida é sonho,
no entendimento do diálogo como agon
e jogo entre Quixote e Sancho. Eduardo
Lourenço (1994) apontou-nos brilhante-
e América Latina e Espanha/Portugal e Euro- ência nacional que chega a nossos dias. mente os percursos e sentidos das duas
pa, percebe-se que a globalização signiica
Tanto no passado quanto no presente, razões.
muito mais do que fazer política de modo
ampliado. A globalização exige um constante
a categoria pequeno participa plena e Castela, a poderosa, expandiu-se a
processo de redeinição do que somos e do cotidianamente quando se constrói ou partir de um ser, nomeado por Ortega
que não somos. A hibridização cultural da imagina o Portugal. de invertebrado, e lutou durante séculos
América Latina é resultado dessas múltiplas Feita a bagagem, a nação-navio para construir a espinha de uma iden-
e mútuas inluências. expandiu-se pelo mundo conhecido e tidade nacional espanhola. Portugal,
Palavras-chave: iberismo; identidade; hibri- desconhecido. Contribuiu, com o traçado o pequeno, o fez sob o chão de uma
dização cultural. de rotas e intercâmbios, para embaralhar identidade nunca questionada, antiga
as cartas da ecologia, das raças, dos cos- e sólida, de uma hiperidentidade que
SUMMARY tumes e dos negócios. Catalisou contatos poderia ser confundida com a falta de
Passing through the complex relations along naturais e culturais. Fez, por exemplo, que identidade. Para ambos, Europa, espe-
centuries between Spain/Portugal and Latin
o futuro Brasil pensasse como próprias as cialmente Inglaterra, França e Alemanha,
America and Spain/Portugal and Europe, it is
felt that globalization signiies more than to
paisagens dos coqueiros, das amendoei- tornaram-se, a partir de algum momento,
make policy in a broader way. The globaliza- ras e das mangueiras trazidas de outras uma alteridade dominante para se pen-
tion requires an ongoing process of redeini- latitudes. Nos meandros da memória, sarem.2 Até chegarem lá, ou seja, antes
tion on what we are and what we are not. The fez navegar e plantou essa árvore que se de a razão cientíica marcar a escolha, a
cultural hybridism in Latin America is a result tornaria símbolo do carnaval, da tradição organização e o pensamento, participa-
of these multiple and mutual inluences. e da nação brasileira: a verde-rosa Man- ram ativamente do diálogo continental,
Keywords: iberism; identity; cultural hybri- gueira. Contribuiu ativamente para criar talvez ainda não europeu. Admiração e
dism. as condições para que uma nova raça, a ressentimento, mais tarde, foram modos
morena, izesse sua entrada no catálogo e emoções para pensar os vínculos e as
RESUMEN dos fenótipos, sob a forma do desejo de quebras com a Europa, dos quais somos
Pasando por las complejas relaciones sosteni-
identiicação positiva e, ainda mais, do herdeiros em nossas relações com a civi-
das al largo de los siglos entre España/Portu-
gal y Latinoamérica y entre España/Portugal y futuro esperado.1 Moreno, termo que vem lização norocidental.3 Os novos mundos
Europa, se nota que la globalización signiica do espanhol na raiz de mouro. também integrar-se-iam à dialética da
mucho más que hacer política de modo am- Não menos importante foi seu vizinho alteridade, não apenas como espelho
pliado. La globalización exige un constante ibérico e hispânico no efeito de embara- dos prósperos.
proceso de redeinición de lo que somos y lhar a ordem do mundo. Se globalizar é Ambos países reencontraram ou
lo que no somos. El hibridismo cultural de padronizar, a etapa básica parece ser a de redeiniram sua vocação européia nos
Latinoamérica resulta de esos múltiplos y embaralhar as ordens locais; heterogenei- últimos anos. A Espanha tornou-se um
mutuos inlujos. zar o singular, em relação a si mesmo, para ator central da comunidade européia a
Palabras-llave: iberismo; identidad; hibridismo poder homogeneizar o global. Globalizar partir de um ressurgimento que, para-
cultural.
foi, assim, parte espontânea e derivada doxalmente, tem uma de suas balizas na
de suas tarefas. Eles o izeram a seu feitio comemoração do quinto centenário das
e ritmo, a partir de uma opção que hoje descobertas. Apesar das jovens nações
se reconhece como barroca e que par- hispano-americanas enfrentarem a pátria-
tilha a bifurcação com a opção da razão mãe nas guerras de independência, no
LOGOS

século passado, o Rei da Espanha anda modernidade.4 Porém, também Portugal José Saramago inicia seu livro, Viagem
hoje pela América Hispânica, incluindo pareceria sofrer do sintoma reativo ao a Portugal, de forma estranha. Inicial-
dimensões dos Estado Unidos, como se corte. Políticos e intelectuais portugueses mente, já que se trata de viajar, por que
estivesse em casa. Abusando da imagem reivindicam uma ativa vinculação com as um nativo viaja por seu país e não viaja
paternalista, diria que, como o pai ou o ex-colônias dos três continentes, embora a seu país? Podemos pensar que a troca
avô que visita ilhos e netos, diz-nos: sua sua perda não pareça haver deixado de preposições é um mero efeito literário.
casa é também minha casa por direito profundas marcas no campo intelectual, Provável alusão ao cânone dos grandes
de prolongamento, mera inversão tem- e postulam o papel mediador em relação viajantes escritores ou escritores viajantes.
poral do direito ao legado. E nós, leitores à América, Oriente e África.5 Contudo, aqui Portanto, podemos dispensar o título e
latino-americanos, sentimos Cervantes também a integração avança e, para o entrar na obra, não nos detendo nessa
e Machado como próprios. Os ilhos ou viajante das ex-colônias, os portugueses parte da paisagem da capa. Quando avan-
netos, pelo nosso lado, airmam então: seu estão cada dia mais ingleses, alemães ou çamos o estranhamento ganha densidade.
patrimônio cultural é nosso. franceses. Talvez o “português” de nosso Saramago inicia sua viagem a Portugal
A história, entretanto, deu razão a imaginário devesse ser procurado em vindo da Espanha, como os rios, talvez
Ortega no confronto de opções com Brasil, Angola ou Macau, e cada vez menos como o passado, a memória e o luxo por
Unamuno: a Espanha se europeizou e, na Ribeira, no Algarve, Trás-os-Montes vezes quebrado das identidades. Com o
talvez assim, iniciou um lento corte nas ou no Alentejo. No entanto, também em tanque de gasolina, com a reserva, do
iliações, embora parcialmente suturado Portugal, o papel de mediador é auto- lado espanhol, e o motor no português,
pela política pública para a América Lati- atribuído, procurado e se investe na sua Saramago pára o carro, desce e pronuncia
na e pelos meios de comunicação. Corte construção. seu sermão aos peixes, interrogando-os
lento, pois vinte e cinco ou trinta anos A entrada dos dois parentes, parado- sobre as aduanas, as fronteiras e as lín-
atrás, para muitos latinos falar com um xalmente, processa-se quando a Europa já guas que por baixo das águas poderiam
madrileño ou com um gallego signiicava não é o centro, quando ela foi englobada ou não existir. Interroga-os sobre essas
a obrigatoriedade de mencionar seus pela civilização norocidental. Tudo ocorre instituições de controle e identidade em
parentes na América. Hoje, esse diálogo como se o englobamento facilitasse a decadência, aduanas e fronteiras, que se
é de baixa freqüência, talvez por haverem integração, a aproximação crescente das tornam meros símbolos e testemunham
falado em demasia; talvez, porque estão duas vertentes separadas há quinhentos os saudosos depoimentos dos contraban-
dispostos a esquecer os vínculos. Temos anos entre um lado e outro dos Pirineus. distas pelos seus modos de vida paciica-
de considerar, então, que a ativa política Ao mesmo tempo, esse englobamento mente extintos pela integração. Em resu-
cultural espanhola em relação à América pareceria aproximar e mostrar melhor as mo, anuncia que por baixo, isto é, onde
Hispânica poderia constituir parte do semelhanças entre Espanha e Portugal as coisas importam e não na superfície, as
sintoma reativo ao lento processo de cor- hoje, e não somente as existentes quan- diferenças podem ser inexistentes.
te nas mentalidades e nos sentimentos. do a escolha pela razão barroca fez sua Inicia sua viagem por Miranda do
Reativo ao distanciamento, ao desprendi- entrada. Englobar signiica diluir limites Ouro, cunha portuguesa no território
mento, produzido pela forte integração à interiores, fronteiras tracejadas ao calor espanhol, separada pelo Douro-Duero.
Europa e, desta, na cultura norocidental. ambíguo das relações de vizinhança, ao Inicia por um local que tem seu próprio
O que dizemos com norocidental é que mesmo tempo em que se airmam as fron- dialeto, sua própria língua segundo
a Europa deixou de ser o centro, foi en- teiras alargadas. Englobar signiica não outros, sua própria raça de gado e de
globada numa unidade maior. O novo apenas fazer política de modo ampliado ovelhas e sua gastronomia própria, o bife
papel da Espanha, talvez mais desejado para alcançar interesses. Signiica deinir mirandês. Em Miranda, os agricultores
que real, torna-se o de mediadora entre a o que somos redeinindo o que não so- portugueses possuem terras do lado
cultura norocidental e o resto da latinida- mos e, por vezes, contra quem estamos espanhol e a recíproca também ocorre.
de. Mais especiicamente, entre a Europa (Huntington, 1995). Não necessariamente Logo, depara-se com o rio Fresno, que
e o resto da latinidade e entre a cultura o englobamento deve ser visto como pro- o romancista reconhece que deveria ser
norte-americana e a subcultura hispânica, dutor e produto da hierarquia. Assim, há Freixo em português. Assim, Miranda do
que cresce em seu interior morenizando, fronteiras tradicionais que desaparecem Douro é Portugal, Espanha ou apenas
catolizando, espanholando. e emerge a possibilidade de novas e alar- uma cunha entre ambos? Miranda, esse
Portugal, por sua vez, integra-se à gadas fronteiras constituírem-se. local de embaralhamento, de confusão,
comunidade européia com menos brilho, Ficam densos problemas: o das re- no entanto, é um lugar milagroso, pois
representação e pujança. Apresenta sua lações entre Espanha e Portugal; o das é ali onde o Menino Jesus da Cartolinha,
identidade forte como cartão de visitas relações entre nós, seus descendentes, conta o mito, incita e comanda com êxito
no qual se lê: somos parte pequena da mediados por eles, em tempos de hibri- a resistência dos mirandeses diante dos
Europa, entretanto temos conservado dização, mistura e entrecruzamento dos espanhóis. Ou seja, inicia sua viagem
um estilo que foi europeu, somos terra de legados. Problemas interdependentes pelo extremo confuso da identidade na-
memória e os europeus devem encontrar- dos quais pretendo recortar apenas cional que é, ao mesmo tempo, o locus
nos para se encontrarem. Podemos ter o sugestões, neste ensaio, que poderão de um mito de airmação nacional, de
tesouro de ser uma reserva de memória, tornar-se hipóteses para investimentos continuidade e quebra, que as estórias
de passado e de identidade. Mais ainda, futuros. e a estátua de dois palmos do Menino
a pré-modernidade portuguesa poderá Jesus se encarregam de reconirmar para
ser entendida como vantagem, entre os o viajante.
Viagem a Portugal Os milagres entretanto são dois. O
intelectuais, para a construção da pós-
LOGOS

primeiro é o da solidez da identidade nholíssimo Don, para igualá-lo a Don Or- as respostas. Contudo, o que destaco é
portuguesa. Enquanto o vizinho espanhol tega ou Don Ramóm y Cajal. Percebe-se que sob uma matriz tradicional monta-se
interroga-se e discute dolorosa e prolon- então que um dos principais intelectuais uma identidade nacional que tanto pode
gadamente sobre sua identidade, e como portugueses, para pensar seu Portugal, fechar-se sobre si mesma na direção do
em tantos outros países emaranha-se na recorre aos instrumentos espanhóis, a organicismo ou do coletivismo, como
doença e na terapêutica da pergunta seus literatos e ensaístas. Considera que durante a constelação do salazarismo,
sobre o que somos, o português, em eles foram os que expressaram as chaves quanto se abrir, como no presente, na
contraste, parece ter uma sólida evidência do entendimento da razão de Portugal. direção da democracia sem que esses
da qual ninguém duvida.6 Ou por ter uma Tudo indica que Portugal está na Ibéria movimentos signiiquem pôr em questão
hiperindentidade cujo perigo é confundir porque a Espanha expressou as razões, os a identidade nacional. Ora podendo ser
sua particularidade com a universalidade, valores e o espírito do lado dos Pirineus fortaleza, ora recipiente. O que qualiicaria
como afirmou Eduardo Lourenço, ou que nos tocou em herança. Espírito esse como estranho, contraditório e paradoxal
como expressou Pessoa, porque “um que a Europa num dado momento deixou é essa capacidade de adaptação tanto à
português que é só português não é de reconhecer como fazendo parte do abertura quanto ao fechamento de uma
português”, isto indica uma espécie de mesmo complexo cultural. cultura que poderíamos qualiicar como
sublime vocação de identidade da não- A presença de Espanha, contudo, organicista, tradicional e talvez pouco
identidade; aptos a serem tudo e todos, não parece afetar a hiperidentidade dos individualista no sentido moderno. Ainda
talvez não sendo ninguém. portugueses, e os sinais de ressentimento parcialmente numa pré-modernidade
O segundo milagre, além do mito, e revolta, ou as reivindicações de contra- que poderia ser atualizada na fragmen-
seria o de Espanha ter deixado Por- partida, não chegam a constituir a voz do tação da pós-modernidade, como parece
tugal politicamente independente. protesto - pareceria ser aceita pelo povo, pretender Souza Santos. Mais um sinal de
Visto do presente, essa independência pragmaticamente, como acontecimentos que a identidade portuguesa se caracte-
pareceria possuir resíduos inexplicáveis naturais que não interferem com a sóli- rizaria por sua plasticidade?
de diversos pontos de vista. Os grandes da identidade portuguesa. Sobretudo, A cultura de Portugal parece encon-
rios portugueses nascem e atravessam quando as conversas entabulam-se nos trar sua metáfora material, para o viajante,
Espanha antes de serem renomeados ou supermercados espanhóis em Portugal. nas roupas interiores expostas para a rua
repronunciados em Portugal. Assim, o Outros matizes aparecem, por certo, nas janelas e jardins. Calcinhas, cuecas,
uso das águas pela Espanha tutela o uso quando o local é a academia. Entendo, ceroulas e sutiãs parecem dizer: estamos
de Portugal. Além da geograia das águas no entanto, que é como se Portugal nos tão seguros que não temos nada que
está o bacalhau, o polvo, a sardinha, o estivesse dizendo que se preocupar com ocultar. Ao mesmo tempo, uma poderosa
tomate, as oliveiras, o presunto e tantos essas coisas é uma mera falta de coniança proteção da intimidade psicológica, um
outros produtos centrais da tradição e do em si mesmo ou de segurança ontológica, resguardo permanente de sentimentos e
mercado ibérico. Espanha está sempre um sintoma da menoridade. Além de sensibilidades na interação interpessoal,
presente nos meios de comunicação de tudo, haveria tantas identidades dentro talvez pré-moderna, caracteriza as rela-
Portugal. Mais ainda, está presente com da Espanha! ções. As metáforas, entretanto, não po-
seu futebol de garra transmitido em todo Portugal parece abrir para o pa- dem, ou não deveriam, ser traduzidas.
Portugal, no Juego de la Oca, principal radoxo de uma identidade tradicional
programa popular dos domingos na que tanto pode expandir sua inluência Freyre, Espanha e as identidades
televisão portuguesa, com locução em como aceitar ser inluenciado. Um na- Acredito que seja particularmente im-
espanhol e comentários em português. vio-nação que é, ao mesmo tempo, um portante pensarmos as relações de nossa
Estando em Portugal se está em Espa- navio-fortaleza e um recipiente. A origem intelectualidade com as heranças lusitana
nha e os ins de semana em Salamanca dessa autoconiança nacional poderia e hispânica. Farei, com esse objetivo, al-
ou na Coruña são programas populares ser procurada no duplo milagre de um gumas considerações a partir de Gilberto
corriqueiros. Também está presente nos pequeno país haver resistido à Espanha Freyre. É evidente que um problema
investimentos na agricultura, na pesca, na e haver colonizado terras em continentes central foi para ele o da construção da
indústria, no comércio e nas inanças. conhecidos e desconhecidos. Ou será identidade brasileira na escrita, nas ves-
A Espanha está presente, sobretudo, que ela é anterior? Os feitos do passado timentas, nas comidas, nos jogos e no
nas construções desse grande intelectu- constituiriam a base da autoconiança cotidiano das relações. A identidade, para
al que é Don Eduardo Lourenço, quando do presente? Em contrapartida, o Brasil, Freyre, parece ser e residir no encontro
pensa Portugal por meio de Cervantes, esse descendente gigantesco, pareceria de uma estética coletiva e individual, no
Gracián, Feijóo, Calderón e outros signi- ter herdado a metade restante, no lugar gosto comum, na emoção compartilhada.
icativos autores espanhóis. Seu enten- comum e sempre ironizado de ser “o Construção e expressão, portanto, de
dimento de Portugal é marcado forte e país do futuro”. Contudo, a explicação gostos partilhados pelos brasileiros e por
abertamente pela presença da relexão, sobre Portugal não diz porque remete cada indivíduo em particular.7 Construção
do ensaio e da literatura espanhola. En- para trás ou para a circularidade. Como e expressão do comum, porém também
im, é o barroco português que realiza, explicar ambos feitos de um pequeno construção e expressão da personalida-
para Lourenço, la vida es un sueño de Cal- país sem uma tremenda autoconiança? de singular, que pelo seu gênio ou arte
derón. A Espanha está presente também Como uma cultura nacional, que não se pode transmitir valores a outros tempos.
no pequeno fato de que minha reverência destaca intelectual nem artisticamente, Escreve em 1924, “A grande revolução a
a essa inteligência, de leitura obrigatória, foi capaz de construir tremenda autocon- fazer-se quanto antes no Brasil... (é) mu-
consiste em preceder seu nome com o espa- iança, tão sólida identidade? Não tenho
LOGOS

dar o estilo de vestuário” (p.149). Estas lece suas relações com a língua e literatura mais de meio século de novas produções
preocupações manifestam-se desde jo- hispânica sob o pano de fundo de crenças e de distanciamentos.
vem e aparecem ao longo das memórias e representações que, talvez, não sejam Mais importante é registrar que se
freyrianas de juventude, publicadas com especificamente literárias. Excederia o regozija em ter duas línguas maternas,
o nome de Tempos mortos e outros tem- quadro destas páginas descrever suas português e espanhol, pois acredita que
pos - 1915-1930. Freyre, já adulto, revisa emoções e reações intelectuais diante todo brasileiro culto as possui. Destaca
e publica os manuscritos de seu diário dos escritores portugueses e espanhóis que o espanhol lhe possibilita o acesso
de adolescência e primeira mocidade que lê, avalia e comenta. É necessário, à literatura mística mais rica da Europa.
sem, segundo ele mesmo, introduzir mo- porém, registrar que sua lista continua Assim, a mística espanhola, ainda admi-
diicações produzidas pelo distanciamento sendo atual, superpõe-se com bastante rada em 1975, é posta como fonte de sa-
dos tempos vividos. O Freyre adulto, quase idelidade à de nossos cursos de letras tisfação e ascensão em 1918. Os místicos
velho, não renuncia ao legado intelectual espanholas e luso-brasileiras. Não difere espanhóis colocam Freyre num mundo
do jovem Freyre nem, há muitos sinais signiicativamente dos exercícios de indi- de valores que apenas os mais do que
nesse sentido, ao fantasma persecutório cação de leituras de Harold Bloom, além, poetas alcançam. Se os poetas formulam
da mediocridade que aparece ao longo evidentemente, das incorporações que as metáforas, a admiração pelos mais que
das páginas do diário. deveriam ser realizadas como produto de poetas é quase inimaginável.
O projeto pessoal de Freyre desde a
juventude é o de ser ele mesmo, o de
deixar sua marca no mundo. Deverá,
conseqüentemente, criar sua própria lin-
guagem, inventar as metáforas que mar-
carão sua presença diferencial no mundo.
Propõe-se como tarefa a construção de
uma língua ou estilo brasileiro. Seu diário
memoriza as proximidades, as distâncias,
as opções, enim, a mescla particular de
aceitações e rejeições, de combinações
e originalidades, que determinaram seu
peril, aliadas a uma tremenda vontade
aristocrática de ser diferente, superior e,
assim, por gênio ou arte, prolongar-se
no tempo.
Importa destacar aqui, do conjunto
de atrações e inluências narradas por
Freyre, aquelas que remetem ao espanhol
e ao português. Ao longo dos escritos,
Introdução de 1975 e diário propriamente
dito, Freyre associa o português espe-
cialmente ao sentimento de saudade.8
Sentimento deiciente de aventuras de
introspecção mais profunda, fonte de
místicos, dramaturgos e ensaístas espa-
nhóis e nórdicos. Comove-se Freyre, o
adulto, nas páginas introdutórias, diante
da coragem, cada dia mais rara, de ad-
mirar num indivíduo valores que nem
sempre são consagrados pelas academias
nem pelo grande público. Admira, então,
o individualismo que denomina de ibé-
rico ou hispânico. Admira e se deleita, o
jovem Freyre, com esse individualismo.
Reconhece, do lado português, a herança
da saudade freqüentemente aliada da
aceitação resignada da infelicidade, que
inclui a saudade do instante que não
podemos reter. Do lado espanhol, resgata
a mística e o individualismo e o valor da
vontade de hacer lo que le dá la gana, de
ir na atração da própria vontade.
Ao longo de seu diário, Freyre estabe-
LOGOS

Os encontro e as viagens, os contatos tura, a grandeza que a hispânica possui...” Ao mesmo tempo em que tratamos
com as representações de Espanha e Por- (1924, p.55). Há, assim, um encontro, das relações entre o luso, o afro e o brasi-
tugal valorizam a relação de Freyre com a passados setenta anos, entre Freyre e leiro, em outros momentos procuramos
herança espanhola. Em 1922, em Oxford, Lourenço. entender as relações entre o hispano, o
reforça o orgulho de suas ascendências Apesar de sua identiicação hispânica, latino-americano e o brasileiro. O regional
lembrando que, em 1523, Vives, ilho de com a arte e o gênio espanhol, Freyre não entra logo com força nessas relexões.
uma Espanha tão forte quanto a Inglaterra ignorou, nem poderia ignorar, o efeito socio- Érico Veríssimo conta, em suas memó-
da mesma época, inaugurou dois cursos lógico do afro e do ameríndio no Brasil e na rias, que havia três livros na casa de sua
memoráveis. Páginas adiante, e ainda em América Latina. São, esses efeitos, matérias infância: a Bíblia, um livro de medicina
Oxford, registra que os ingleses ignoram a de seus estudos e relexão. Contudo, eles e o Martin Fierro, de José Hernández,
literatura portuguesa que não se compara origem e símbolo da literatura criollista
à espanhola e que respeitam as artes es- argentina e rioplatense. Assim, o regional
panholas, enquanto consideram os por- complexiica o panorama.10
tugueses como gente simpaticamente Ao mesmo tempo em que O problema de construção ou inven-
pitoresca. Ou pouco mais que isto. tratamos das relações entre o ção de identidades é o da escolha das he-
A aproximação à literatura, ensaio e luso, o afro e o brasileiro, em ranças, das combinações e hibridizações
mística espanhola, valorizada ao longo de outros momentos procuramos que pretendemos produzir. Portanto,
suas memórias, encontra seu momento poderíamos escolher a construção da
de catalisação e condensação em 1921, entender as relações entre o diferença - em princípio, do que não so-
quando Freyre declara: “vem se apuran- hispano, o latino-americano e mos -, baseados na invenção da tradição
do em mim a consciência de pertencer, o brasileiro. luso-afro-brasileira, ou inclinarmo-nos
como brasileiro, ao mundo hispânico, pela elaboração de um englobamento
tanto quanto pertencem a esse mundo os do hispânico, no sentido de Freyre, em
meus amigos de Andaluzia ou de Navarra, seus cruzamentos aleatórios, porém não
de Catalunha ou de Peru” (1924, p.47- ocupam um estatuto particular. Não são, menos importante, com o afro.
48). Espanha e América Latina parecem como a identidade hispânica e latina, produ- Fica claro que, pessoalmente, acom-
formar parte da Hispânia para Freyre. tos da escolha intelectual. São resultado do panho Freyre na segunda das opções.
Sente-se, por extensão de sua qualidade embaralhamento do mundo que Espanha Fique também claro que no mundo das
de hispano, neolatino, em contraste com e Portugal promoveram tão ativamente. iliações não há somente herança mecâ-
os anglo-saxãos, os eslavos, os germâ- Enquanto a relação com o ibérico e o hispâ- nica, há, sobretudo, escolha voluntária
nicos ou os orientais. A neolatinidade nico coloca a questão da descendência, do ou, se se prefere, invenção das tradições,
o vincula ao mundo francês e italiano. pertencimento e do englobamento, usados das identidades, das culturas. Na escolha,
Assim, na dinâmica de inclusão-exclu- dominantemente na linguagem da norma a emoção desempenha um papel fun-
são segmentária das identidades, Freyre ou dos valores, a relação com o “afro”, por sua damental. Deveríamos perguntar-nos,
é brasileiro, hispano e latino. A imagem vez, expressa-se e solicita uma linguagem entretanto, se não haveria um lugar para
da árvore comum se impõe. Apesar de estética ou do gosto e se formula em mar- a responsabilidade. Temos, então, que
suas bifurcações ou trifurcações, o tronco cos diferentes: miscigenação, integração, caminhar na elaboração de nossas razões,
leva às mesmas raízes. Hispânia, quando incorporação e incidências, entre outras atentos aos constrangimentos que, não
pouco, é um braço tão poderoso que se signiicações semelhantes.9 raro, colocam as razões dos outros.
confunde com um tronco.
Discute por aquelas épocas sua his-
panidade com o professor De Onis, que
Sobre o luso, o afro e o brasileiro Notas
se espanta de ele aceitar e desenvolver Minha experiência emotiva e in- 1
As pesquisas de campo realizadas no Brasil
uma concepção de civilização que põe o telectual com a América Latina, o indicam que a autoidentidade de “moreno”
Brasil, a Espanha e Portugal leva-me ou “morena” é dominante e tem duas proprie-
Brasil do mesmo modo que Portugal no dades: é espontaneamente mencionada pelos
conjunto hispânico das nações. De Onis, o a concordar com Freyre em termos de entrevistados e vista como positiva.
interlocutor, acredita que os portugueses construção de identidade e também de 2
Observe-se que, para Bloom (1995), a Ibéria
reagem com excessivo furor emocional valorização dos legados. Aproxima-me não necessitou acompanhar o cânone ocidental
contra a concepção hispânica de civiliza- das escolhas de Lourenço para explicar de Shakespeare. Sua literatura autoabasteceu
ção. Embora Freyre pense e declare que o ibérico com fundamento no hispânico. e gerou seu próprio cânone. Houve, portanto,
existe um imperialismo hispânico, acredita Leva-me a acompanhar a viagem de uma independência cultural signiicativa sob um
que isto não deve impedir brasileiros e Saramago, que foi a Portugal desde a ponto de vista altamente distanciado.
portugueses de se sentirem “parte de Espanha e, de alguma forma, chegou
3
Entendo por cultura norocidental a “civilização”
um conjunto de cultura que nos forta- ao Brasil. A árvore das iliações e identi- formada, basicamente, pelos países europeus,
Canadá e Estados Unidos.
lece, enquanto separados inteiramente dades, entretanto, pode complexiicar- 4
Este tipo de argumentação é bem conhecida e
dele nos amesquinhamos... Os grandes se não somente por fractalizações ou pode, talvez, ser apenas um sonho. Lembremos
valores hispânicos são evidentemente desenvolvimentos nos quais interagem que os populistas russos, por exemplo, pensaram
os espanhóis... Porque deixamos de ser acasos e escolhas. Pode também ser feita que podiam passar da comunidade camponesa
hispânicos para nos julgarmos completos por cruzamentos, conluências e fusões russa, mais inventada que real, diretamente para
e suicientes... que não bastam de modo inesperadas, marcadas dominantemente o comunismo. Ou seja, o atraso tornando-se vir-
algum para darem, sozinhos, a uma cul- pelos acasos.
LOGOS

tude para o salto que queima “etapas”. BLOOM, H. O cânone ocidental. Rio de Janeiro:
5
Lourenço (1994, p.13) entende que para Es- Objetiva, 1995.
panha a perda de suas colônias provocou uma FREYRE, G. Tempos mortos e outros tempos. Rio
interrogação sistemática dos seus mitos, da sua de Janeiro: José Olympio, 1924.
imagem, da sua valia, do seu projeto histórico. HUNTINGTON, S.P. O choque das civilizações. Rio
Em contrapartida, para Portugal, os territórios de Janeiro: Objetiva, 1997.
ultramarinos teriam sido apenas colônias. Desde KANT, I. Observaciones acerca del sentimiento
meados do século XIX, grandes espíritos haviam de lo bello y de lo sublime. Madrid: Alianza
pensado que as colônias podiam ser “perdidas ou Editorial, 1990
vendidas sem que a nossa identidade portuguesa LOURENÇO, E. Nós e a Europa ou as duas razões.
sofresse com isso. Por essência eram o outro”. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
6
O Brasil parece ter herdado dimensões da 1994.
coniança portuguesa. Assim, quando com re- LOVISOLO, H. Estética, esporte e educação física.
lativa facilidade aceita-se a identidade estética Rio de Janeiro: Sprint, 1997.
da cultura do samba, do futebol e do carnaval, PRIETO, A. El discurso criollista en la Argentina.
tem-se a impressão de uma deinição pouco con- Buenos Aires: Sudamericana, 1989.
litiva do que somos. Em contrapartida, embora SARAMAGO, J. Viagem ao Portugal. São Paulo:
a Argentina conte com uma poderosa literatura Companhia das Letras, 1998.
criollista desde o século passado (Prieto, 1989),
uma música internacionalmente é reconhecida,
o tango, a partir das primeiras décadas do século,
e há um futebol que também se deine como de
estilo próprio (ver os diferentes trabalhos sobre
o tema de Eduardo Archetti), sua “segurança
ontológica” de identidade (ver Laing e Giddens
sobre a expressão “segurança ontológica”) parece
ser bem menor, mais questionável, em processo
constante de redefinição. Paradoxalmente, o
Brasil, pelo menos suas grandes cidades e seus
meios de comunicação, aparecem como tendo
uma capacidade de assimilação não conlitiva
do estilo americano de vida.
7
Parece ser bem diferente construir a identidade
a partir de uma estética do que a partir de uma
ética ou de um conjunto de crenças imperativas
sobre o ser ou identidade. Uma coisa é procurar
a identidade nos valores orientadores da relação
com os outros e consigo mesmo, campo da mo-
ral, outra bem diferente nos gostos alimentares,
corporais e musicais, entre outros.
8
A insistência sobre a “saudade”, uma emoção,
um sentimento, é clássica na construção da
identidade portuguesa. Signiica voltar atrás na
saudade do lugar, do instante que foi. Movimen-
ta-se na superfície da memória e depende de
fortes mecanismos de idealização do passado.
Não há saudade do futuro nem do presente,
apenas do passado. Portanto, é uma construção
emocional da memória. A “saudade não tem im”,
pois apenas depende da capacidade individual
de sentir saudade na própria memória emotiva. A
“felicidade, sim”, pois, de praxe, depende também
dos outros.
9
Realizo algumas aproximações sobre o poder e
implicações sociais das linguagens da norma, da
utilidade e do gosto com Lovisolo, 1997.
10
O movimento “separatista” ou “autonomista”
gaucho parece melhor ser entendido no conjunto
das escolhas realizadas para inventar a tradição.
Um observador tem que ser muito fino para
distinguir uma cena campestre gaúcha de uma
semelhante no pampa argentino ou nos campos
uruguaios.
* Hugo Lovisolo é Professor do
Departamento de Ciências
Bibliograia Sociais da UERJ.
LOGOS

Casa e sociedade:
representações em Senhora

Carmen da Matta*

RESUMO
A casa norteia a releitura de Senhora, de José de
Alencar, neste trabalho. Pelas redes da intimidade,
busca-se detectar imagens iccionais que possam
C omo Senhora representou a
sociedade preconizada por
José de Alencar é a questão
que nos move. Como as vinculações de
âmbito privado, a família e o casamento
dade objetiva, porque estamos falando
primordialmente de literatura. Por outro
lado, para relativizar o efeito enigmático
causado pelos sentidos metafóricos, a
casa é tomada como mônada, de acordo
representar algumas questões da sociedade transformaram-se em núcleos dramatiza- com o conceito benjaminiano. Neste
brasileira presentes nessa icção ambientada na dos pelo referido romance, estruturando caso, a casa é vista como fragmento de
cidade do Rio de Janeiro, durante o Segundo
e dando coerência aos enredos, conigura uma totalidade e, para o nosso interesse,
Reinado. A casa funciona como elemento de
estruturação do enredo e propicia a elucidação
o cerne de nossa curiosidade. como particularidade essencial do espaço
de uma relevante visão de ideário nacional enun- Nessa ficção de Alencar, as casas público, para que sejam feitas relações de
ciada pelo romancista. apresentam-se como cenários privile- semelhanças, isto é, de possibilidades, en-
Palavras-chave: casa; romance; privado/público. giados das relações entre os indivíduos tre o mundo interno e o mundo externo
de uma cultura, num dado tempo e literariamente igurados.
SUMMARY lugar: a segunda metade do século XIX
The house on this paper orients the rereading of e a sociedade luminense. Dentro desses Casa e romance
the novel Senhora, by José de Alencar. By the ne- cenários, tem-se a vida cotidiana gerida O interesse pela casa como instru-
tworks of intimacy, it searches to detect ictional pela política do eu. Nesse espaço privado,
images which could represent some questions of
mento de compreensão das questões
o indivíduo refugia-se, volta-se para seus sócio-culturais brasileiras não é novo: na
the Brazilian society present in this iction which
particularismos, para os entes próximos década de 1930, Gilberto Freyre constrói
occur in the city of Rio de Janeiro, in the reign of
Dom Pedro II. The house functions as an element
que o protegem da exposição mundana sobre o tema uma das mais importantes
of the plot structuring and favors the elucidation e orientam suas ações públicas. Os atores alegorias do Brasil, que é Casa-Grande
of a relevant vision of the national set of ideas as principais são os membros do núcleo fa- & Senzala. A história social da família
proposed by the novelist. miliar e a parentela com laços de sangue, colonial brasileira chega aos estudos so-
Keywords: house; novel; public/private. e os secundários, os amigos, os agregados ciológicos pelo olhar sobre o privado.
e os escravos, conforme as terminologias Resultante da “civilização patriarcal”,
RESUMEN de Roberto Schwarz. a casa-grande é condicionada por um
La casa orienta en este ensayo una nueva lectura Por meio das representações da sistema econômico baseado na mono-
de la novela Senhora, de José de Alencar. Por vida privada podem ser evidenciadas cultura latifundiária implantada pelos
las redes de la intimidad, se busca dar a conocer relações que se passam dentro do
imágenes iccionales que puedan representar
portugueses. Tem-se o predomínio do
algunas cuestiones de la sociedad brasileña
espaço micro e que trazem indicadores patriarcado rural, marcado pela pequena
presentes en este relato, pasado en la ciudad abrangentes, levando ao conhecimento presença da mulher branca, o que levou
de Río de Janeiro en el reino del emperador de aspectos sócio-culturais determinan- a uma miscigenação problemática entre
Don Pedro II. La casa actúa como elemento de tes no processo de desenvolvimento da os europeus e as raças indígenas que
estructuración de las tramas y propicia la puesta sociedade brasileira e que deram susten- aqui se encontravam e, posteriormente,
en claro de una signiicativa visión del ideario tação ao discurso literário. com as africanas escravizadas - a força
nacional, enunciada por el novelista. A casa, por ser o lugar mais signii- de trabalho que garantiu o sucesso do
Palabras-llave: casa; novela; privado/público. cativo da privacidade, recebe, de um modelo. Segundo Freyre, esse sistema
lado, o sentido metafórico aristotélico: as sobreviveu por mais de três séculos por
vinculações entre a casa literária e a rea- ter conseguido promover uma “acomo-
lidade social são feitas por analogia. Ela é dação de antagonismos” de raça, classe
desviada de sua noção palpável, assumin- e religião, pela ação dominadora da
do um papel igurativo no qual a imitação igura do senhor de engenho: “A força
se impõe; é metaforizada para exercer o concentrou-se nas mãos dos senhores
efeito de estranhamento sobre a reali-
LOGOS

rurais. Donos das terras. Donos dos ho- e imagens esteticamente emolduradas alguns sinalizadores delimitam o públi-
mens. Donos das mulheres. Suas casas e inspiradas.” (1997, p.15) A literatura co. Em concorrência simultânea, há o
representam esse imenso poderio feudal.” brasileira com certeza absorveu muitas privado: a família, de valor moral elevado,
(Freyre, 1996, p.lvii) molduras de casa com imagens da nossa impõe a ordem e a autoridade, assumindo
O sistema da casa-grande começa a nacionalidade, no que ela tem de mais um estatuto superior. São duas forças em
declinar em ins do século XVIII e ao longo singular. jogo: a pública, que regula e contradito-
do século XIX, como observa Freyre em Além dos estudos citados, a produção riamente viola a moral; que iscaliza e
Sobrados e mucambos. O patriarcalismo mais recente sobre a vida privada favo- rompe com as leis de respeitabilidade; e
rural prolonga-se para um patriarcado rece uma revisita ao gênero romanesco. a privada, que serve de refúgio para a in-
menos severo, exercido, agora, nos sobra- A História da vida privada européia, dividualidade, que cria um “sistema de re-
dos urbanos, nas cidades que esboçam organizada por Michelle Perrot (1990), e presentação pessoal” para o exercício no
sinais de industrialização. O sistema an- a sua correlata no Brasil, organizada por público, que educa os homens para viver
terior se quebra, trazendo novas formas Fernando Novaes (1997), fornecem dados em sociedade, estabelecendo uma ética
de subordinação, novos antagonismos importantes sobre os grupos fechados, sólida, que não seja superada facilmente
sociais entre ricos e pobres, brancos e ne- a ideologia que os alicerçou, já que, se- pelas contradições da moralidade.
gros, sobrados e mucambos, conseqüên- gundo os ensaístas dessas coletâneas, o A ética, que atua individualmente,
cias dos desajustes econômicos de uma século XIX foi a idade de ouro do privado. e a moral, que age coletivamente, dei-
sociedade que continuava dominada por As fontes dessas historiograias são pa- xam o homem moderno diante de uma
senhores, homens e brancos. péis cartoriais, documentos institucionais, ambigüidade: se, de um lado, o público
Para Freyre, a mesma arrogância da escritas de diários e também o romance aparece como moralmente inferior,
casa-grande é trazida para os sobrados, oitocentista. como desprazer, por outro, a intimidade,
que agora estendem seu poder também O romance é, desse modo, uma fon- que traria o prazer, provoca um estran-
para as ruas, jardins e praças; os lugares te de conhecimento da intimidade das gulamento emocional devido a seus
públicos, além dos escravos da senzala, sociedades. Conhecimento que pode rigores, a sua coerção, levando a uma
também passaram a ser “servos” dos no máximo indicar algumas formas de compensação que se exercia por meio
senhores dos sobrados. Houve, então, comportamento e a percepção de alguns de uma mundanidade efêmera, afetada,
necessidade de intervenção dos governos valores, mas que não alcança revelar nas cidades em polvorosa, praticada,
para limitar os abusos do particular e da toda a grandeza da vida íntima, repleta majoritariamente, pela igura masculina.
casa sobre o público, visando democra- de lacunas, presa a um jogo que mostra O quadro se agrava porque se esperava
tizar as áreas coletivas. Com isso, a rua ao mesmo tempo que esconde, porque que o público, principalmente o Estado,
vai gradativamente triunfar sobre a casa. é regulada pela subjetividade - cindida, desse conta dos problemas sociais e das
Porém, “mesmo desprestigiada pela rua ambivalente, plural. demandas coletivas, o que não ocorreu,
e diminuída nas funções patriarcais (...) A intimidade das sociedades é pes- e o discurso em defesa do público, não
a casa do século XIX continuou a inluir, quisada pelos historiadores para que se mais convincente, foi sofrendo inluência
como nenhuma dessas forças, sobre a encontrem novos indícios sobre o passado. do discurso psicológico, de ordem priva-
formação social do brasileiro e da cidade”, As visadas historiográficas das últimas da. No século XX, o homem público teria
um brasileiro que “gosta da rua, mas a décadas rompem com a perpetuação declinado, conclui Sennett, e o imaginário
sombra da casa o acompanha”. (Freyre, de procedimentos que não fornecem privado teria se sobreposto ao público,
1990, p.xlv-xlvi) mais explicações para as radicais trans- gerando o personalismo, a prevalência
O romance nacional surge juntamente formações que ocorrem no presente do eu – características estas da chamada
com os sobrados, na primeira metade do globalizado e procuram nas brechas da pós-modernidade. No século XIX, porém,
século XIX. É a via estética que representa- história teleológica, factual e causal uma as categorias privado e público convivem
rá melhor nosso solo social, depois de um desconstrução da episteme dessa histó- dialeticamente.
longo domínio da poesia, que amainou ria totalizante - e totalitária. O romance As sínteses sociológicas trazem indica-
excessivamente nossas contradições. oitocentista, insistem os historiadores, dores relevantes para os estudos literários.
Assim, a ambientação histórico-social contribui para essa revisão. Entretanto, sabemos que a literatura não
de Senhora ajusta-se ao panorama de trabalha com uma lógica condicionada e
Sobrados e mucambos. pode parecer que em certos momentos for-
Roberto DaMatta em A casa e a rua
O público e o privado
As noções de público e privado fun- çamos a tinta ao tentar elucidar pontos que
dá continuidade a este prisma do pensa- poderiam ser tradutores da realidade social.
damentam-se em O declínio do homem
mento de Freyre. Tanto a casa quanto a Literatura e sociedade são sistemas distin-
público, de Richard Sennett, e Raízes do
rua são consideradas categorias socioló- tos. A singularidade que os une está no
gicas deinidoras da identidade brasileira. Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
Adota-se o sentido moderno das categorias fato de que o mesmo homem que constrói
Estão praticamente despojadas de sua o primeiro integra o segundo, resultando
designação geográica ou de coisa física, proposto por Sennett, mais recentemente, e
por Holanda, na década de 1930. Secularis- disso uma mescla interpretativa que pode
airma o autor, por serem “acima de tudo parecer às vezes radical para um lado, ou
entidades morais, esferas de ação social, mo, Estado nacional, burguesia cosmo-
polita, burocracia, capitalismo industrial, radical para o outro, já que a neutralidade é
províncias éticas dotadas de positividade, quase inatingível. A literatura expressa a sua
domínios culturais institucionalizados e, lucro, produção em massa, cientiicismo,
etnocentrismo, historismo, urbanidade, realidade promovendo um jogo de repre-
por causa disso, capazes de despertar sentação de outras realidades. Através dos
emoções, reações, leis, orações, música grupos sociais complexos, só para citar
LOGOS

textos iccionais podem ser apreendidas fantasmas existenciais, de uma memória aparece como pretexto para apresentar o
algumas prováveis dinâmicas dos proces- fragmentada e de um ceticismo que im- protagonista Seixas em sua privacidade,
sos sociais, porque a literatura é um sistema pede qualquer ação mais ampla, qualquer no sobrado da rua do Hospício. Homem
que leva o leitor a conviver com realidades compartilhamento mais profundo com o de poucos recursos, pertence a um
lexíveis e mesmo inexatas. Como analisa outro. É o caso de Dom Casmurro, cujos núcleo familiar modesto, composto por
Watier, “a literatura é, sem dúvida, uma boa protagonistas Bento e Capitu invertem mãe viúva e duas irmãs. Apesar de não
ilustração de um território de tipiicações e o percurso feito pelos personagens de terem muitos recursos, os Seixas são pro-
de ações possíveis entre personagens. Ela Senhora: saem da redenção, do amor prietários de dois escravos. As mulheres
diz o que se passou e, assim, nos oferece apaixonado e do sonho de união, para da casa dedicam-se exclusivamente ao
quadros a partir dos quais poderemos de- uma degradação do casamento, marcado único homem do lar, cuidando de seus
cifrar ou agir em outras situações”. (1997, por suspeita de traição e separação. A trajes, alimentação, conforto doméstico e
p.29) Se a literatura promove um saber temática, o momento histórico e o enredo guiando-se por suas opiniões e decisões.
sobre uma dada realidade por meio dos - que sustenta as ações dos personagens Com a responsabilidade de ser o chefe da
mecanismos iccionais, torna-se plausível em três casas principais, determinando família, sua situação relete bem o modelo
então a inversão do processo: que a litera- três momentos da narrativa - demons- patriarcal próprio da sociedade brasileira.
tura e a crítica ampliem suas interpretações tram que há uma similaridade entre os Os escassos vencimentos oriundos de
apropriando-se de instrumentos oferecidos dois romances, contudo para trazer resul- cargo inexpressivo em uma repartição
pela realidade social. tados estéticos e suscitar interpretações pública não conseguem propiciar a Sei-
Portanto, em Senhora podem ser bem distintas. Antonio Candido (1981), xas o padrão de vida que se esperava de
encontradas diversas passagens em que em paradigmático estudo sobre Alencar, um homem branco e livre nem mesmo a
o romance tensiona e lexibiliza a expe- airma que “Aurélia pressagia Capitu”, o liderança de uma família estruturada em
riência histórico-social e ser percebido que abre para a percepção de níveis de torno de sua igura. Ambicioso, amante
como se conigurou o sistema intencional aproximação e de diferenças entre os dois da vida noturna, freqüentador assíduo
do autor, sem torná-lo rígido, na recons- autores no que tange à produção literária dos bailes da Corte, endivida-se todo
trução de motivos e ações representados e à maneira de conceber a sociedade para manter uma fachada de homem
pelos personagens. sobre a qual iccionalizaram.1 rico, contando com a cumplicidade da
Indivíduos maus, sociedade ruim Em Senhora, as casas são o lugar pri- mãe e irmãs, que vêem na ascensão do
Senhora tem seu enredo atravessado mordial para que as relações de âmbito rapaz a saída para elas também. O servi-
por três casas principais e cada uma delas privado se estabeleçam. Elas são uma ço público, o dinheiro extra que recebe
expressa uma motivação iccional. A his- via pela qual o enredo irá desenrolar-se como escritor de folhetins e a poupança
tória se passa na capital sede do Governo e sobre a qual a realidade iccional irá se deixada pelo pai não conseguem susten-
Imperial de D.Pedro II em momento de sustentar. São três casas principais: a da tar o padrão burguês pelo qual optou, e
intensiicação dos movimentos abolicio- rua do Hospício, a de Laranjeiras e a de a solução foi buscar uma mulher perten-
nistas e republicanos. Santa Teresa. O presente da narrativa se cente à elite para se integrar a um setor
O tema central da narrativa é o casa- passa nas duas primeiras; em lash-back, social mais favorecido. Consegue, assim,
mento. A abordagem alencariana sobre o narrador se remete à última, onde são um casamento em condições vantajo-
o assunto sofre uma curiosa evolução no encontradas as causas das ações dos sas, abandonando a mulher que de fato
romance: a relação dos dois protagonistas, protagonistas. O mundo dos persona- amava - Aurélia - por outra mais rica, que
Seixas e Aurélia, sai de um processo de gens de Senhora é autêntico, pois tanto oferecia um bom dote.
degradação para uma redenção. a espacialidade quanto os costumes têm O dote foi um dos mecanismos cria-
Com esse procedimento literário, importância e são descritos minucio- dos pelas elites para a manutenção do
Alencar faz uma crítica contundente ao samente e, por isso mesmo, podem ser modelo patriarcal. Este modelo baseia-se na
mercado matrimonial, prática comum entre identiicadas as ações dos personagens família, que se fundamenta no casamento,
as famílias oitocentistas para a manutenção socialmente. de preferência “arranjado”, com combina-
de privilégios e como forma de ascensão A casa é motivação para Alencar ções inanceiras entre as partes, visando
social. A sua crítica vem no sentido de salvar contrastar presente-passado, masculino- a ampliação do poder econômico das
o casamento, segundo ele, a instituição feminino, pobreza-riqueza, interioridade- famílias envolvidas. Hegel, nos Princípios
com inluência deinitiva na formação do exterioridade, bem-mal, privado-público, da ilosoia do direito [1821], justiica ra-
indivíduo. Este, bem instruído pela família, indivíduo-sociedade, realidade-ficção, cionalmente e moralmente o “casamento
com uma ética irme, complementada pela entre outras antíteses. O autor operacio- arranjado”, o que atendia aos interesses
moral da Igreja e do Estado, seria o agente naliza uma lógica dualista, em que uma das classes burguesas européias. Havia
fundamental para a consolidação de um parte se debate com a outra, apontando, também um outro tipo de acordo: mulheres
sentimento patriótico e para o fortaleci- contudo, para uma conciliação favorável de famílias abonadas ofereciam a homens
mento da nação recém-inaugurada. ao homem e ao meio em que vive. O livres, e em geral de poucos recursos e sem
O posicionamento de Alencar no que tensionamento dos opostos serve para propriedades, uma quantia razoável de di-
diz respeito a essa temática nos remete a extravasar o lado naturalmente ruim do nheiro aos pretendentes, proporcionando
Machado de Assis que, ao contrário de seu indivíduo, que depois disso estaria pronto a integração dos mesmos a uma classe mais
antecessor, invalida o casamento e a família, para atuar como chefe de família e mem- privilegiada.
desconia das instituições e não aposta no bro da pátria, dois valores essenciais no Alencar, todavia, reage a esse tipo
indivíduo, deixando este à mercê de seus imaginário social do século XIX. de arranjo, porque, como romântico,
A primeira menção à casa no romance defende o amor como motor das famílias
LOGOS

bem constituídas. O narrador constrói um Aurélia, em seus aposentos no palácio de e promovendo a infraestrutura necessária
personagem de caráter duvidoso, que Laranjeiras, convive com as lembranças à representação exigida pelos grupos de
tem sua individualidade corrompida pela de seu passado sofrido e pobre na casa maior poder econômico, para que se inte-
sociedade por almejar integrar-se a um de Santa Teresa. Devido à pobreza e falta grem a estes. Pode-se perceber o contraste
setor burguês ascendente por meio de de recursos de sua mãe viúva, foi obrigada entre a vida cotidiana dos lares, formadora
casamento negociado. Um dos valores da pela mãe a expor a sua beleza à janela para e redentora, e a vida pública, corruptora do
modernidade burguesa, além dos ideais de encontrar um pretendente. A saída econô- indivíduo. O narrador não quer ser isento
liberdade, igualdade e fraternidade, está mica e social para esse núcleo familiar sem nem conformista: o poder do dinheiro é
sendo também colocado em questão: o uma igura masculina no comando seria decisivo, interfere no comportamento das
trabalho. A subida na escala social deveria que a jovem buscasse no casamento a pessoas, o que gera um mal social à base
se dar por um grande esforço individual e manutenção do modelo patriarcal. Como formadora da família.
por meio de relações lícitas. Aurélia não tinha dote a oferecer, espera- O casamento move a história. Aurélia
A cisão de Seixas - entre a opção de va-se que um homem de alma generosa integra um setor social pobre e almeja o
seguir um caminho mais árduo e inseguro se apaixonasse por ela. De fato, Seixas se enlace e a constituição de uma família,
e a de dar uma guinada em sua vida - é interessou pela moça, mas o futuro que articulando estratégias para realizar esse
demonstrada esteticamente pela descri- visualizou ao lado dela causou-lhe pânico: projeto. A trajetória de Seixas demonstra
ção minuciosa do interior da casa: um lar um estilo de vida modesto inanceiramen- como a sociedade investia na igura mascu-
simples, cercado de móveis velhos, com te, sem a chance de freqüentar saraus, lina para a manutenção da tradição familiar
paredes amareladas, cortinas poídas, em jantares e espetáculos promovidos pelas e da ordem pública. Casar e ter uma família
contraste com os objetos caros importados elites. Diante disso, ele retira a proposta de sob o comando de um homem signiica-
da Europa (“iníssimo chapéu claque do casamento feita a Aurélia. vam status social.
melhor fabricante de Paris; luvas de Jouvin Entretanto, a literatura romântica Entretanto, esse movimento crítico
cor de palha”, além dos charutos de Havana brasileira, especialmente a alencariana, empreendido em Senhora e sua vincula-
sobre a “mesquinha banca de escrever”). costuma fazer inversões abruptas para ção à forma causam uma variação de tom
Sobre isto, o narrador airma: “Um obser- defender o que pensa. Aurélia enriquece no romance que pode ser detectada no
vador reconheceria nesse disparate a prova repentinamente e, anonimamente, oferece tratamento dado aos personagens peri-
material de completa divergência entre a um dote irrecusável a Seixas que, movido féricos. Estes, que traduziriam o local, o
vida exterior e a vida doméstica da pessoa pela ambição, rompe o compromisso nacional, não problematizam o mundo,
que ocupava esta parte da casa”. (Alencar, assumido com outra para obter um dote aceitam-no como ele é. Essa aceitação,
1996, p.36) mais promissor ainda. A jovem milionária como airma Schwarz (1977), destoa do
Seixas tinha uma postura nos espaços acaba comprando o rapaz para se vingar e romance realista de Balzac, do qual Alen-
públicos e outra na privacidade. O lar transforma o relacionamento dos dois em car importa o modelo. Os personagens
servia de termômetro moral para evitar uma guerra conjugal. Todavia, o casamen- centrais Aurélia e Seixas, especialmente a
que sua individualidade fosse totalmente to, como quer Alencar, redime o homem, e primeira, apresentam um “dilaceramento
contaminada pelas condutas comprome- Seixas gradativamente promove uma mu- existencial” típico do romance oitocen-
tedoras exercidas na mundanidade, daí a dança de caráter, restaurando a dignidade tista, que aspira à universalidade das
necessidade de ser santiicado, um templo ameaçada e salvando a relação. questões humanas e dos ideais burgue-
para a proteção dos horrores externos: “Foi ses. Porém, é o tom universalizante que
assim que Seixas insensivelmente afez-se à se choca com a falta de interferência
dupla existência, que de dia em dia mais se
Considerações inais no enredo dos personagens periféricos
Em Senhora, a espacialidade é indi-
destacava. Homem de família no interior que marcam a localidade, deixando-os
da casa, partilhando com a mãe e irmãs cadora de verossimilhança. Na casa da à margem da trama. Por conseguinte, o
a pobreza herdada, tinha na sociedade, rua do Hospício, a pobreza do ambiente tom eloqüente do romance esbarra no
onde aparecia sobre si, a representação assemelha-se à pobreza de espírito do pro- quadro local, impondo um descompasso
de um moço rico.” (Idem, p.41) O termo tagonista. Na casa de Santa Teresa, vê-se o entre o peso formal e o social.
em destaque indica que na privacidade passado sofrido da heroína que, ao se exibir Tal desacordo não existe no modelo
o indivíduo é verdadeiro, despoja-se de na janela em busca de marido, percebe europeu, que procura representar global-
supericialidades; porém, no público, ele a malícia humana, o preconceito com os mente a sociedade do século XIX, funcio-
dissimula o que é para integrar-se à “boa menos favorecidos, o poder do dinheiro. nando como uma máquina realista que
sociedade”. Os raros momentos em que E, no palacete de Laranjeiras, em meio a destrói ilusões. A prosa de Alencar não
o personagem reconhece a contradição festas requintadas, acontece um embate mantém essa dicção única porque reveza
de seu estilo soisticado com as condições entre o casal levado às últimas conseqü- os pressupostos: de um lado, a eloqüência
humildes da família são dissipados pelo ências, mas que acaba em inal feliz, já que do narrador que se quer crítica; de outro,
espetáculo social do qual é um integrante os heróis pagam pelos seus erros e fazem a representação de uma estrutura social,
e no qual cumpre um papel, representando novas opções. familiar e localista que não se deixa afetar
o que não é para alcançar o que deseja ser. Atravessando as três casas, há o dinhei- pelos preceitos morais preconizados pelo
O narrador classiica esse tipo de postura ro e sua “mediação maldita”, ou pela au- romancista. Portanto, a prosa realista do
de Seixas de “vegetação social”, segundo sência, ou pela presença, ou pelo excesso, romancista adota uma postura que des-
ele, muito comum na época. ou pela falta. As famílias com menor poder toa das circunstâncias locais.
Em duas outras casas, concorrem o pas- aquisitivo são mostradas compactuando A proposta de Alencar parece ser a
sado e o presente da narrativa. A milionária com a mercantilização de seus membros
LOGOS

de criticar para transformar, para que as tória. In: Obras escolhidas: magia e técnica,
relações sociais de seu país sejam inca- arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985,
das em laços sentimentais sólidos, que p.222-232.
promovam uma tranqüilidade social que CANDIDO, Antonio. Os três Alencares. Forma-
dilua as diferenças. A igualdade social ção da literatura brasileira: momentos decisi-
passa pelo investimento no amor e nos vos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
elos familiares, dois fortes componentes DaMATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Ja-
que podem competir com os estragos neiro: Rocco, 1997.
FREYRE, Gilberto. José de Alencar - Renovador
provocados no indivíduo pela sociedade,
das letras e crítico social. In: ALENCAR, José
pelo que é externo e estranho aos elos ir-
de. Romances Ilustrados de José de Alencar.
mados na privacidade. A nação brasileira
Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, p.x-xxvi.
precisava de homens imbuídos de um _____. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro:
espírito superior, e ele sabia que a subjeti- Record, 1996.
vidade era no mínimo dual, tendia para o _____. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro:
bem e para o mal, e em seu tempo parecia Record, 1990.
predominarem homens contaminados NOVAES, Fernando A. (org.). História da vida
pelos males causados pelo mundo públi- privada no Brasil. 2v. São Paulo: Companhia
co. Porém, a mulher e a família poderiam das Letras, 1997.
fortalecer o lado bom, garantindo assim a HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.
formação de homens de caráter virtuoso São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
que promoveriam o bem-estar social. O PAES, José Paulo. Para uma pedagogia da me-
aspecto moral deve, então, neutralizar o táfora. In: Poesia sempre, n.8. Rio de Janeiro:
lado negativo do social: os maus devem Fundação Biblioteca Nacional, jun. 1997.
ser punidos, os bons recompensados e, PERROT, Michelle (org.) et al. História da vida
se errarem, devem ser perdoados, caso privada, 4. Da Revolução Francesa à Pri-
se arrependam. A família é considerada meira Guerra. São Paulo: Companhia das
a célula base da sociedade, idéia que se Letras, 1991.
fortalece depois da Revolução Francesa, SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São
e que se torna também uma forma de Paulo: Duas Cidades, 1977.
regulação do social. Alencar, ao importar SENNETT, Richard. O declínio do homem públi-
o modelo europeu de romance, traz junto co: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia.
com ele esse modelo burguês de família, das Letras, 1988.
idealizando-a, distanciando sua narrativa WATIER, Patrick. Conhecimento comum e saber
sociológico. Logos: Comunicação e Univer-
do solo social brasileiro.
sidade, n.6. Rio de Janeiro: LED/FCS/UERJ,
Finalmente, o paradigma de José de
1997, p.24-30.
Alencar é a manutenção de uma ordem
iluminista que cristalize uma doutrina
que evite os deslocamentos do indivíduo.
E a literatura é parte desse processo for-
mador para se viver em sociedade. Seu
romance é, portanto, um experimento
para o exercício ético; é um investimento
em uma moral que promova a coesão
social.

Nota
1
Sobre a comparação dos referidos romances de
José de Alencar e Machado de Assis, ver: MATTA,
Carmen da. Representações da casa em Senhora
e Dom Casmurro. Dissertação de Mestrado. Rio
de Janeiro: PUC, março, 1998.

Bibliograia
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática,
1997.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: Obras
* Carmen da Matta é Mestre
completas. 32 v. Rio de Janeiro, São Paulo,
em Literatura Brasileira pela
Porto Alegre: W.M.Jackson Inc. Editores,
1944, vol.7.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da his-
LOGOS

Considerações sobre duas ou


três coisas úteis ao jornalismo João de Deus Corrêa*

RESUMO
Firmando-se como uma nova abordagem
no campo da Psicologia, a Neurolingüística

E u penso em coisas que exis-
tem e digo: por quê? Eu
penso em coisas que nunca
existiram e pergunto: por que não?”
John F. Kennedy
sucesso do desempenho de quatro
grandes terapeutas (Gregory Bate-
son, Milton Ericson, Fritz Perls e Virgínia
Satir). Descobriram que todos tinham em
comum apenas o método de comunicação
tem sido recebida com muito preconceito.
No entanto, uma leitura mais atenta permite
com os pacientes. Todas as variáveis
vislumbrar alguns de seus recursos aplicados Um problema de imagem dos processos de cura podiam ser
ao fazer jornalístico. A presente abordagem As novidades são encaradas pela diferentes ou trocadas que levavam
identifica na técnica do rapport um meio sociedade, segundo Richard Saul Wur- aos mesmos resultados, desde que o
útil e eicaz para a condução de entrevistas man, com “desprezo, zombaria e escár- ritual de comunicação fosse mantido.
jornalísticas.
nio. Depois vem o estágio profético, No entanto, alterada a dinâmica comu-
Palavras-chave: neurolingüística/jornalismo;
em que os visionários exploram suas nicativa, desapareciam os resultados
entrevista/rapport; comunicação interpes- positivos.
soal. potencialidades...”. (1991, p.331)
A mais nova escola de Psicologia As lições aprendidas com os tera-
– a Neurolingüística – está passando peutas foram codiicadas em princípios
SUMMARY
e estratégias, a seguir aplicados à Lin-
Consolidating itself as a new perspective in pelas fases iniciais de contato com
güística, à Psicologia, lições essas enri-
the ield of Psychology, Neurolinguistics has a sociedade e a mídia brasileiras.
been treated with much prejudice. However, quecidas pela Neurologia e pela Ciber-
Sintomaticamente, seus eventos são
a more attentive reading allows us to conjec- nética. Hoje, a Neurolingüística pode
classiicados com o mesmo carimbo
ture some of its applicable resources into the ser conceituada como o “conjunto de
dado às mágicas de Paulo Coelho, dos
journalistic making. The current perspective técnicas de intervenção nas estratégias
identiies in the procedure of the rapport, a
ciganos e dos astrólogos. de comunicação do indivíduo consigo
useful and efective means to conduct jour- No caso especíico da Neurolingüística mesmo e com o exterior, com vistas à
nalistic interviews. – também denominada PNL (Programação otimização de comportamentos dese-
Keywords: Neurolinguistics/Journalism; inter- Neurolingüística) -, essa imagem é devida jados ou alteração dos indesejáveis”.
view/rapport; interpersonal communication. à atuação do médico Lair Ribeiro, autor (Kluczny, 1993, p.21)
de uma dezena de livros e, acima de Uma das técnicas desenvolvidas
RESUMEN tudo, “garoto propaganda” que mais
Airmándose como un nuevo abordaje en el por essa nova escola de Psicologia é
personalizou a PNL no país, ocupando denominada rapport e se inspira em al-
campo de la Psicología, la Neurolinguística
um espaço extraordinário no topo guns princípios e conceitos que airmam
ha sido recibida con muchos prejuícios. Sin
embargo, una lectura más atenta permite dos livros mais vendidos, por alguns serem os homens “dotados da mesma
entrever algunos de sus recursos aplicados anos. Junto à sua habilidade autoral estrutura neurológica”, ou que vêem em
al quehacer periodístico. El presente abordaje e divulgadora, Lair também propagou a todo comportamento “a manifestação
identiica en la técnica del rapport un medio conotação “marketeira” que acabou con- de processos comunicativos”. (Ibidem)
útil y eicaz para la dirección de entrevistas taminando a Neurolingüística com aquele Outro princípio básico é o que considera
periodísticas. ranço de “sucesso-a-qualquer-preço”. ser “a resposta do receptor ao estímulo
Palabras-llave: neurolinguística/periodismo; Enim, foi esse o peril inaugural da dado por um emissor o que dá sentido
entrevista/rapport; comunicación interper- PNL, responsável por sua recepção com
sonal.
ao processo de comunicação”.
“desprezo, zombaria e escárnio”.
Em meados da década de 70, o
lingüista John Grinberg e o analista de Em que consiste o rapport
sistemas Richard Bandler, patrocinados Sensibilizados pelas evidências dos
pelo NIH (Instituto Nacional de Saúde), atributos dessa técnica, confessamos
pesquisaram, na Califórnia, as causas do que, praticamente, ela mesma se esca-
LOGOS

lou como o nosso objeto de pesquisa Uma comunicação que se apegue a estabelecer durante o transcorrer do
pela ainidade com o jornalismo. apenas aos dados verbais estará dei- diálogo. Quanto maior o grau de distan-
Etimologicamente, rapport é um ter- xando escapar o volume mais signii- ciamento entre os interlocutores, mais se
mo francês que, entre outras acepções, cativo do processo e, possivelmente, acentua a dicotomia entre eles, trazendo
signiica ligação, ainidade, semelhança, o mais autêntico, “pois se a palavra prejuízos para a agilidade e idelidade
enim, sintonia numa relação. O verbo refere-se ao nível consciente do co- do depoimento. Tudo isso por falta de
rapporter signiica “trazer de novo”, recon- municador, a isiologia e a linguagem sintonia entre os comunicadores, por falta
duzir e importar (trazer para o interior o corporal traduzem a esfera incons- de pontos comuns entre eles.
que está fora). ciente”, (Idem, p.76), certamente mais Como o rapport pode, então, ser útil
A técnica do rapport pode ser deini- autêntica por fugir do controle racional aos objetivos jornalísticos na entrevista?
da como “um conjunto de procedimentos imediato e rotineiro. Pela otimização de técnicas verbais e
de observação e reprodução de posturas, não-verbais introduzidas no diálogo,
valores e sinalizações do interlocutor com entendidas como recursos que abrem
o propósito de acessar o interior dele com Etimologicamente, rapport é possibilidades para o entrevistado.
agilidade e autenticidade”. um termo francês que, entre ou- A entrevista, como diálogo que é,
Alguns atributos devem ser ressalta- tras acepções, signiica ligação, não pode prescindir de uma “conversa
dos: a) observação - o emissor que deseja de aquecimento” sobre o tempo, o estado
conduzir eicazmente a comunicação afinidade, semelhança, enfim,
da pessoa, enim, o que se denomina de
deve concentrar-se na produção sintonia numa relação. O verbo “conversa preliminar” (small talk). Essa é
expressiva do outro; b) reprodução rapporter significa “trazer de a primeira técnica recomendada pela
- identiicados os sinais e valores do novo”, reconduzir e importar. neurolingüística e pelo bom senso.
receptor, cabe ao emissor usar esses O passo seguinte é simultâneo ao
conhecimentos para se colocar no lu- primeiro e consiste em registrar, já
gar dele, como um espelho; c) posturas,
Entender o rapport como estratégia neste momento, os predicados usados
valores e sinalizações - são estes os objetos
natural na comunicação humana faz pelo outro, pois cada pessoa selecio-
da observação e da reprodução, por parte
com que se reconheça a existência de na de modo peculiar os vocábulos
do agente instigador da comunicação; d)
inúmeros caminhos e individualidades essenciais de sua língua e os repete
acessar o interior é o objetivo de quem
envolvidas no processo. Isso é uma diicul- sistematicamente. A PNL recomenda
toma a iniciativa da comunicação encarada
dade, mas o mero conhecimento desses que, tão logo sejam identiicados, o co-
proissionalmente; e) agilidade e auten-
elementos do comportamento pode e municador comece a empregá-los tam-
ticidade - a reprodução de valores,
deve ser utilizado para se estabelecer bém. Junto com os predicados, alguns
posturas e sinalizações do receptor faz
com que este se veja no outro, criando um relacionamento marcado pela se- termos, basicamente substantivos e
o estado de empatia que acelera as gurança e pela eicácia nas tentativas adjetivos, vão ser redundantemente
comunicações. de interação. usados e reaproveitados pelo condutor
Um dos produtos da investigação Pesquisas recentes na Universida- da entrevista, naturalmente.
da PNL é a constatação de que “na de da Cidade do México revelaram Ainda operando no nível das técni-
comunicação humana, nenhuma uma sincronia das ondas cerebrais cas verbais, a atenção do entrevistador
informação está simplesmente nas entre os comunicadores bem sucedi- deve-se voltar para identiicar os siste-
palavras e em seu conteúdo. Os fenô- dos, fazendo com que os “padrões dos mas de representação do interlocutor,
menos paralingüísticos, como tonalidade eletroencefalogramas dos interlocutores suas generalizações, seus paradigmas.
da voz, pausas, sorriso, gemido, postura ajustassem-se consideravelmente (...) Reparar em que critérios ele se baseia
corporal, gestos e movimentos de expres- como momento de grande solidariedade para avaliar as coisas, as pessoas, o
são, fornecem indicações de como a infor- recíproca”. (Grinberg, 1988) mundo e as relações. Os valores devem
mação comunicada deve ser entendida” ter muito peso na escolha dos cami-
(Kluczny, 1993, p.75) e freqüentemente O rapport na entrevista nhos, por mais que não se tenha muita
contradizem o discurso oral. Descrito como uma técnica de co- consciência deles nem do seu grau de
As investigações nesse domínio municação interpessoal que observa, interferência. Muito ligados aos crité-
quantiicaram os elementos comuni- entende e utiliza as estratégias do inter- rios, estão os interesses, isto é, aquilo
cativos, concluindo que “aproximada- locutor, o rapport ajusta-se plenamente que serve de mola propulsora para as
mente 7% da informação global de um aos objetivos do jornalismo, especial- ambições e realizações do homem,
processo de comunicação são transmi- mente quando se trata da execução da como prestígio, dinheiro, prazer etc.
tidos através de palavras e seu conteúdo; entrevista. Entrar em sintonia com esse siste-
38% são expressos por meio da voz e de Principal instrumento de apura- ma de representação e reproduzi-lo
suas características (tonalidade, rapidez, ção do jornalismo, a entrevista tem-se frente ao outro é como oferecer ao
altura etc.); 55% são o resultado da isio- revelado um verdadeiro jogo de estudos entrevistado um espelho onde ele vê
logia ou da linguagem corporal (gestos, entre o repórter, que tem pressa, dados e se prolongarem, de modo natural e
postura, expressão facial, mudanças na angulações a descobrir, e o entrevistado, familiar, seus horizontes e a si mesmo.
respiração etc.)”. (Ibidem) que tem medos, reservas e anteparos Quem já se viu sozinho em algum outro
LOGOS

país ou cidade e, de repente, descobre membro, como pé, mão, perna ou bra-
um conterrâneo, sabe o sentido da ço, na mesma freqüência do outro. Essa
sintonia que esses primeiros passos técnica é denominada “espelhamento
do rapport implicam: eles abrem todas cruzado” (crossover mirroring) (Kluczny,
as portas porque estabelecem pontes 1993, p.82), e tem a mesma base do auto-
com o outro pelo contexto “familiar” reconhecimento que gera a coniança.
em que o projetam. Especialmente
num momento de confronto, como Conclusão
no da entrevista, quando isso se dá de Como se pode perceber, a contribui-
forma usual. ção da PNL ao jornalismo está apenas
Para completar o empenho de sin- em início de pesquisa. A técnica do
tonia, é preciso identiicar o tom de voz rapport parece ser a mais pronta e vizi-
e a velocidade com que o outro fala. nha das necessidades jornalísticas por
Em seguida, ambos são reproduzidos ter a evidente qualiicação de acelerar
da maneira mais iel possível. Natural- e otimizar os resultados do principal
mente, não se espera que a caricatura instrumento de apuração do proissio-
de alguém o agrade. No caso de o inter- nal da notícia e da reportagem, que é a
locutor ser gago ou fanho, imitá-lo será entrevista.
um desastre. A escolha da técnica do rapport
Com o mesmo objetivo de recons- como ponte entre o jornalismo e a PNL
truir, frente ao entrevistado, uma espé- foi produto do princípio da comodidade,
cie de réplica de seu “Eu”, visando criar ou da evidência, já que é clara a relação
um clima favorável, a Neurolingüística entre o exercício da entrevista e o esforço
ensina a empregar a reprodução dos de sintonia que o rapport preconiza.
comportamentos não-verbais, como Freud airmou em 1901 que “não há
a técnica do “espelhamento”. Quanto mortal capaz de guardar um segredo.
mais semelhante for a postura cor- Mesmo que os lábios silenciem, ele
poral do entrevistador, comparada à conversa com as pontas dos dedos;
do entrevistado, mais este se sentirá a autotraição exala dele por todos os
prolongado no outro e, portanto, à poros. Assim a tarefa de tornar cons-
vontade e seguro para se expor. cientes os recessos mais ocultos da
Há várias facetas nesta técnica. mente apresenta boas possibilidades
Uma delas é acompanhar a mudança de ser realizada”.
do centro de gravidade do corpo, incli- A PNL e a Psicanálise confirmam o
nando-se para um lado ou para o outro, que Sócrates ensinava em sua Maiêutica:
esteja ele sentado ou em pé. Certas temos o poder de despertar as verdades
partes do corpo, em especial pernas e dentro dos outros.
braços, são facilmente observáveis e, Nossa proposta inicial de utilizar
da mesma forma, imitáveis na postura. as técnicas do rapport na entrevista
A expressão facial oferece as mesmas jornalística tem-se mostrado profícua.
facilidades, junto com a própria po- A PNL precisa ser conhecida para trazer
sição da cabeça (inclinações: para os alguma contribuição ao comunicador
lados, para a frente, para trás). proissional. Ela é essencialmente uma
Um elemento de comunicação mui- técnica de comunicação.
to expressivo é a respiração. Ela pode
ser observada pelo aspecto da profun- Bibliograia
didade, característica de um esforço de GRINBERG, J. International Journal of Neuros-
auto-controle, se for acentuadamente cience, n.36, 1988, p.41-52.
generosa, profunda. A freqüência com KLUCZNY, Johann. NLP - Practitioner Training
que se respira também deve ser objeto Manual. Berlim: NLP in Berlin, 1993.
de observação e reprodução. WURMAN, Richard Saul. Ansiedade de informa-
Não só em razão do grau de dii- ção. São Paulo: Cultura Editores Associados,
culdade que a imitação do ritmo e da 1991, p.331.
profundidade respiratória/inspiratória
traz, mas até mesmo em função do * João de Deus Corrêa é Mestre
em Comunicação Social pela
esforço em ser discreto na similarida- UFRJ e Professor da Universida­
de, a PNL sugere acompanhar o ritmo de Estácio de Sá/RJ.
respiratório com o movimento de um
LOGOS

Trois Couleurs: Kieslowski


e a ética dos possíveis
Fernando do Nascimento Gonçalves*


A
são corpos que respiram e têm presença.
migos são unos em três casos: É justamente assim, na ambigüidade do
irmãos diante da miséria, não-dito que não quer interpretações,
RESUMO iguais diante do inimigo, mas a leveza e a sinceridade dos senti-
Até que ponto liberdade, igualdade e frater- livres... diante da morte!” mentos, que o inominável irrompe talvez
nidde são valores naturais e universais? Com Nietzsche com maior força.
a trilogia Trois couleurs, o cineasta polonês Nesta última obra, até as cores da
Krzystof Kieslowski faz um silencioso ques-
As três cores bandeira francesa, união que simboliza
tionamento do sonho europeu da uniica-
ção, a partir da desmistificação dos ideais De um lado, o sonho de uma Europa valores, parecem querer a si mesmas.
da Revolução Francesa. Abre assim espaço uniicada, sem fronteiras alfandegárias, Somente os valores são questionados,
para a discussão sobre a ética dos possíveis com livre luxo de pessoas e serviços e por esta própria união, por serem uma
da realidade. uma moeda única. De outro, sonhos de se construção histórica que se impõe como
Palavras-chave: cinema; ética; devir. continuar vivendo, com ou sem identida- natural e universal. Nos porões mesmo
des. Sonhos e contradições que indicam dessa união que se revela e se denuncia
SUMMARY diferentes formas de estar no mundo e essa fraude.
Under to what extent, are liberty, equality Assim é que cada ilme apresenta uma
de perceber a realidade. Este é o enredo
and fraternity natural and universal values? espécie de solidariedade orgânica. Pode-
With the trilogy Trois couleurs, the Polish
de Trois Couleurs, do cineasta polonês
Kzrystof Kieslowski. ríamos dizer mesmo que se entrecruzam
movie-maker Krzystof Kieslowski makes a
Trois Couleurs, a trilogia que marcou ou que são simultâneos, na medida em
silent questioning of the European dream of
uniication, as from the dysmistiication of the o fim da carreira do cineasta, falecido que cenas e personagens dos três ilmes
ideals of the French Revolution. It opens, in em 1996, também autor de Decálogo e sempre convergem em algum ponto,
this way, a room for discussion on the Ethics de A Dupla Vida de Véronique, é acima como a lembrar que as cores e os valores
of the possible of the reality. de tudo uma denúncia e um questiona- ocorrem sempre juntos em nossas vidas e
Keywords: motion picture; ethics; devenire. mento silencioso do sonho europeu da não separados, racionalizáveis.
uniicação, através da desmistiicação dos Aliás, esse parece ser mesmo o ponto.
RESUMEN ideais iluministas da Revolução Francesa: Para Kieslowski, existe no homem algo
Hasta que punto libertad, igualdad y fraterni- inexplicável, subterrâneo, o que lhe per-
liberdade, igualdade e fraternidade.
dad son valores naturales y universales. Con mite uma certa exterioridade. Esse “algo”
la trilogía Trois couleurs, el cineasta polonés Nestas obras - A Liberdade é Azul, A
Igualdade é Branca e A Fraternidade é são a intuição e o acaso. São esses ele-
Krzystof Kieslowski hace un silencioso cuestio-
namiento del sueño europeo de uniicación, Vermelha -, baseadas nas cores da ban- mentos considerados inumanos, irracio-
a partir de la desmistiición de los ideales de deira da França, Kieslowski questiona o nais, feiticeiros - e que foram coninados
la Revolución Francesa. Abre, por lo tanto, caráter universal dos ideais da Revolução pela razão em temporalidades malditas
un espacio para la discusión de la ética de los e da própria Uniicação Européia, por meio do cotidiano - que geram os desencontros
posibles de la realidad. da irrupção do devir revolucionário de seus lagrados a todo instante em sua obra e
Palabras-llave: cine; ética; devenir. personagens, que mesmo tendo como que servem de suporte para se questionar
marca o típico individualismo europeu, o que é o homem, o que é natural e o que
conseguem manter uma certa exterioridade é universal.
à aliança, reescrevendo-a à sua maneira e
dando um outro sentido à ética. A Liberdade é Azul
Kieslowski atua por microscopias. Nos Um carro em movimento visto pela
detalhes se concentra o vigor de sua obra. perspectiva das rodas. Um garoto espe-
Olhares, gestos, situações em suspenso, ra carona enquanto tenta sem sucesso
muito mais do que as palavras, têm um acertar seu biloquê, e que só consegue no
peso específico. Na trilogia, jogos de momento em que o carro perde a direção
câmera e luz e, principalmente, a música
LOGOS

e bate numa árvore. Uma mulher perde o Nenhuma espera. Em uma mala, um por lei, não lhe pertence. Após o “enterro”,
marido e a ilha no acidente fatal. homem escondido. ela vai para o hotel, onde Karol-Karol a
Sobreviver é morrer. Como se liber- Karol-Karol é um polonês casado com aguarda. Os dois fazem amor e ele a faz
tar? uma francesa e mora em Paris. Depois de sentir prazer. Karol-Karol se sente aliviado
Depois de ter tentado suicídio no certo tempo, o casamento dos dois fracas- e diz: “você gritou mais alto do que com
hospital, Julie volta para casa, que pre- sa, ou melhor, não se consuma, segundo aquele homem!”. Ele sai enquanto ela
tende vender e, ao entrar, encontra uma a mulher. O homem se sente impotente dorme. Na manhã seguinte ela é presa.
parte da partitura que o marido até então diante da beleza da esposa. Imperdoável. O francês diante do polonês. “Sou cida-
compunha por ocasião dos festejos da Ela pede o divórcio e o expulsa de casa. dã francesa”, argumenta. A embaixada
Uniicação da Europa. Começa a tocá-la, Sem ter para onde ir, sem dinheiro e é acionada. Inútil. Será por que ela não
quando, de repente, deixa cair o tampo sem falar direito o francês, já dupla- fala polonês?
do piano, interrompendo violentamente mente impotente, Karol-Karol vaga Karol-Karol sente-se vingado. Mas
a sinfonia ainda inacabada. Uma luz azul pelas ruas da Cidade Luz. Assim ica quem muito odeia, muito ama. Ele se
brilha sobre seu rosto. até o dia marcado para a audiência, sente arrependido, ela também, mas já é
Azul é a cor de sua liberdade. quando o divórcio se consumará. tarde. A igualdade é branca, cor do casa-
Sai. Consegue os originais da partitura No ambiente frio e impessoal, como mento que os uniu e separou.
e os joga fora. Retorna. Entra, abre a bolsa sói à Justiça, o polonês tenta se explicar
e despeja todo o seu conteúdo sobre diante do francês, fazer valer o que é seu, A Fraternidade é Vermelha
o colchão, uma das únicas coisas que o direito. Mas, se não tem sido “marido”, Alguém faz uma ligação telefônica.
sobraram na casa. Encontra um pirulito não tem direito. O francês reconhece o O impulso percorre vertiginosamente os
(azul) que coloca rapidamente na boca. do francês. ios subterrâneos que o separam do con-
Começa a mastigá-lo compulsivamente, Sentindo-se injustiçado e já sem tinente. Atravessa o Canal da Mancha. Do
numa espécie de objetofagia. argumentos que sejam aceitos pelo juiz, outro lado da linha ninguém responde. O
Muda-se, enim, levando para o novo diante da insistência da mulher que diz impulso retorna, célere.
apartamento somente um lustre de não mais amá-lo, pergunta angustiado
Numa noite, após um desile de moda,
contas azuis que icava no antigo quar- pela igualdade: “Só porque não falo fran-
Valentine dirige de volta para casa. Um
to do casal. Pendura-o, não mais como cês?” Bem, ele não falava francês. Ele só a
homem atravessa a rua e deixa cair seus
lembrança a ser afastada, mas como amava. Encerrada a audiência, corre atrás
livros. Um deles se abre numa certa página
símbolo transmutado da liberdade a seu da ex-mulher, tentando ainda alguma
alcance. reconciliação. Inútil. e ele a marca.
Uma velhinha na rua se esforça para Novamente na rua, liga para casa. A Na mesma noite, Valentine atropela
depositar a garrafa de vidro no coletor ex-mulher está na cama com outro. Ela acidentalmente uma cadela. Encontra o
seletivo. Um lautista anônimo toca uma pensa em desligar, mas no momento endereço do dono em sua correia e tenta
canção semelhante à sinfonia inacabada do clímax, aproxima o telefone para que devolvê-la, mas ele não quer o animal de
do marido. Ao ser perguntado de onde ele ouça melhor os gemidos que ele não volta. Um homem misterioso que diz não
conhecia aquela música, simplesmente soubera lhe proporcionar. querer mais nada da vida.
responde que adora tocar, inventar coi- Acaba a noite numa estação de metrô, No outro dia, ela sai de casa, vai a um
sas. Como se a essência dos sentimentos essa casa dos pobres dos países ricos, bistrô, pede algo, joga a sorte na slot ma-
em cada indivíduo não fosse intuitiva e onde conhece um conterrâneo que pro- chine. Perde. Sai contente. Faz uma sessão
singular e, ao mesmo tempo, passível mete levá-lo de volta à Polônia. E ele de de fotos para out-doors de toda Genebra.
de estar no coração de todos como um fato retorna, dentro de uma mala com O fotógrafo pede que pose com um ar
poder intransferível. Mas como se a “Li- apenas um furo para poder respirar. Só muito triste, como se alguma coisa muito
berdade” fosse. que, ao chegar lá, a mala é roubada e ele triste lhe tivesse acontecido. Encontra o
Aliás, cada personagem do ilme forja se perde do amigo. Mais tarde, num local tom. Aprovam a foto.
a sua própria. Liberdades. Liberdade do deserto e afastado, a mala é aberta e de lá Ela retorna à casa do homem miste-
múltiplo. A liberdade única é uma farsa, pois, sai Karol-Karol, menos para a surpresa do rioso. Descobre tratar-se de um velho e
ainal, se é livre do quê? que para a decepção dos ladrões. Ainal, solitário juiz aposentado, que espiona
Enquanto a “Liberdade” é defendida dentro nada mais há do que um polonês. a vizinhança com uma aparelhagem
como direito precípuo do indivíduo e se Leva uma surra e é abandonado. especial. Nisto entra uma conversa. Um
discute como esta será prodigalizada pela Volta para casa, num subúrbio de vizinho, casado e com uma ilha, conversa
Uniicação, beneiciando todos os cida- Varsóvia, onde tinha um negócio. Retoma com o amante.
dãos do velho continente, Julie só quer lentamente sua vida, mas acalenta o plano Ela condena o procedimento do ve-
a liberdade de esquecer o passado para de se vingar da ex-mulher. Elevar-se a seus lho, airmando que ele não tem o direito
continuar vivendo. Então, que lhe importa olhos, para então rebaixá-la. Ficar quite. de fazer aquilo. Ele responde que fez isso
a Europa e sua liberdade? Isso em nada o Igualdade. durante toda a vida e sugere que ela o
toca. É o primeiro desencontro. Segundo desencontro. denuncie à polícia ou vá à casa do vizinho.
Assim é que se transforma num rico Ela vai. Mas não tem coragem. Retorna. O
empresário e tempos depois simula sua ex-juiz adianta-se e adivinha a situação e
A Igualdade é Branca morte, apostando que a ex-mulher viria lhe pergunta o que seria bom ou mau,
Uma esteira de bagagens em seu “ético”, neste caso: contar a verdade à
em seu encalço. Seu plano dá certo. Ela
movimento. Um saguão de aeroporto.
vem para tomar posse da herança que,
LOGOS

esposa, destruindo a família, ou deixar a o irmão nos jornais, num envolvimento e o amante e de como anos depois
farsa continuar. com drogas. Entra no bistrô. Joga na slot (a mulher já morta num acidente),
Por fim, Valentine sai indignada machine e acerta. Sai dizendo que sabe na posição de juiz, reencontrou o
dizendo ter pena dele. Fraternidade? O porque ganhou. amante dela no tribunal, acusado de
encontro, porém, a faz repensar uma série Uma velhinha na rua se esforça para ser responsável por um incêndio que
de valores como o bem e o mal, a ética depositar a garrafa de vidro no coletor vitimou dezenas de pessoas. Condena-o,
e a justiça. Pouco a pouco, no entanto, seletivo. Ela se adianta e a ajuda. por rancor, duplamente. Sem dúvida, um
aproxima-se do ex-juiz, do qual se torna O homem que atravessou a rua e crime doloso.
amiga. E a amizade faz com que ela en- deixou os livros caírem é aprovado O ex-juiz se entrega à polícia por es-
tenda melhor sua posição, isto é, daquele numa prova para juiz graças ao ponto pionagem. Valentine lê o caso nos jornais
que não julga mais (está aposentado). Ela sorteado, que corresponde ao da pá- e vai visitá-lo. Pergunta o que pode fazer
então passa a se colocar em seu lugar e gina aberta ao acaso. para ajudar, ao que ele responde: “ser”.
deixa de condená-lo. O ex-juiz conta a Valentine sua O rapaz tornado juiz é traído pela
Terceiro desencontro. história. Conta que se tornou juiz da namorada, que segue com o amante para
A fraternidade é vermelha. Talvez mesma forma. Então, narra uma espécie o Canal da Mancha, num iate. Valentine
estejamos sempre certos só até ouvir o de sonho premonitório que teve com ela, viaja para se encontrar com o namorado
outro. para fugir da questão principal, o seu des-
Nesse momento, ela se refere ao pro- na Inglaterra. O rapaz segue o mesmo
gosto pela vida. Ela percebe, se adianta e destino. Quem sabe ambos os destinos?
blema que tem com o irmão drogado, adivinha tudo. Ele conirma.
ao que ele se antecipa e adivinha toda Uma forte tempestade na região
Ele fala de sua decepção amorosa. causa o naufrágio do ferry-boat em que
a história. Ela vai embora. Mais tarde vê
Do tempo em que perseguiu a mulher viajavam. Entre os sobreviventes, Julie,
LOGOS

Karol-Karol devidamente acompanhado da relação “credor X devedor”, que ele um novo desejo, uma sede “comum”
da mulher, Valentine e o novo juiz. Entre nos remete às formas primitivas de e superior que para Kieslowski vem a ser
os mortos, sua amante (o namorado terá compra e venda, de câmbio, como a fraternidade e que Nietzsche chama de
morrido)? coloca Nietzsche. (s/d.b, p.62) amizade. Assim é que adquire também
De repente, Valentine, ainda muito Quando esta relação migra do esse estranho poder de intuição, poder
assustada e envolta em cobertores, vira- mercado para a cultura e se instala na simbólico de uma condição inumana ou
se e pára na mesma posição da foto do consciência, prejuízo e dor passam a sobre-humana, gerado pelo esquecimen-
outdoor. ser equivalentes e, como todo dano to, incomum no homem que julga, que
O ex-juiz, que assiste ao resgate dos (falta) vai pedir compensação, nasce apenas prevê pelo cálculo. Daí que julgar
sobreviventes pela TV, lança um olhar disso a necessidade do castigo, da é atualizar a memória, a moral. Aposen-
profundo... reparação. É que em todo contrato tar-se é esquecer, é cuidar para que haja
outros agenciamentos, talvez inumanos,
A estética do desencontro como quer Lyotard.
Muitas vezes fazemos coisas que,
a princípio, não têm explicação ou
Julie, na solidão de sua liber- As cores unidas da trilogia logram
dade, que na verdade é uma mostrar esta face (oculta?) do desen-
que parecem bastar a si mesmas. Os contro, que constitui uma ética e uma
sentimentos e as coisas nem sempre fuga, experimenta ultrapassar os estética. Mostram como as cores que-
aceitam os signiicados que lhe são limites de seus valores, ao renun- rem a si mesmas, assim como talvez
impostos. É que o sentido é da ordem ciar a bens, recordações, amiza- as pessoas e os sentimentos querem
do possível, não do real que legitima
o racional. Esta é a origem do que
des, amores, vínculos, que ao seu e precisam de uma autonomia, de um
ver são meras armadilhas. direito que não só não é reconheci-
poderíamos chamar “estética do de- do como natural, como é negado ao
sencontro”. homem em sua aliança com as forças
Liberdade pelo esquecimento, fracas: o direito de ser.
igualdade pela vingança, fraternidade O desencontro é, portanto, um
pelo julgamento. há uma promessa e, no casamento, delírio, uma potência de afirmação
Nessas três situações, pessoas comuns, instituição esta analisada por Kies- desterritorializadora. E é neste sen-
com vidas comuns, desterritorializam lowski, não é diferente. Daí a alegria tido, inalmente, que o desencontro
valores que, construídos para serem de fazer sofrer, o desejo de vingança. remete-nos àquilo que Foucault chamou
universais, são vividos de forma sin- “Ver sofrer alegra, fazer sofrer alegra de “domínio intermediário e obscuro
gular. mais ainda”. Nisto consiste, segundo entre o olhar já codiicado e o conheci-
Julie, na solidão de sua liberdade, Nietzsche, uma antiga verdade huma- mento relexivo”, no qual “uma cultura,
que na verdade é uma fuga, experi- na, demasiado humana. Poderá ela afastando-se insensivelmente das ordens
menta ultrapassar os limites de seus ser corrigida pelo princípio universal da empíricas que lhes são prescritas por
valores, ao renunciar a bens, recorda- igualdade? seus códigos primários, instaurando uma
ções, amizades, amores, vínculos, que E o que é fraternidade? Fazer o bem primeira distância em relação a elas, fá-las
ao seu ver são meras armadilhas. porque se quer compensar o mal pratica- perder sua transparência inicial, cessa
Neste sentido, parece que essa do? (Então seria fazer o bem para o outro de se deixar passivamente atravessar
renúncia opera uma transformação. ou para si mesmo?) Ter piedade para se por elas, desprende-se de seus poderes
A atitude de Julie não se aproximaria sentir superior ao condenado por nosso imediatos e invisíveis, liberta-se o bas-
do fechar as portas e as janelas da julgamento? Ser juiz: decidir o que é e o tante para constatar que essas ordens
consciência, que Nietzsche chamou que não é verdade, o que é certo e errado. não são talvez as únicas possíveis nem
de “faculdade de esquecimento”? Se, Pura vaidade. as melhores: de tal sorte que se encontre
no início, há de fato uma subtração Valentine aventura-se, sai do seu lugar frente ao fato bruto de que há, sob suas
passiva ao sofrimento, percebe-se para vê-lo melhor e decide igualmente ordens espontâneas, coisas que são em
que, pouco a pouco, passa a haver por se aposentar do juízo e dos valores si mesmas ordenáveis, que pertencem a
uma “vontade ativa de guardar im- constituídos para simplesmente “ser”. uma certa ordem muda, em suma, que
pressões” (cena em que pendura o Transmutação da ética. Também aí parece há ordem. Como se, libertando-se por
lustre azul no novo apartamento) que reincidir a “faculdade de esquecimento”, uma parte de seus grilhões lingüísticos,
a afasta (não totalmente) da mora- porém de forma mais nítida e promissora. perceptivos, práticos, a cultura aplicasse
lização dos costumes. O aposentar-se do juízo é esquecer, é sobre estes um segundo grilhão que os
Karol-Karol comprova que o ho- “fazer silêncio e tábua rasa na nossa cons- neutralizasse, que, duplicando-os, os
mem mesmo tendo leis que garantem ciência, a im de que aí haja lugar para as izesse aparecer ao mesmo tempo que os
(para quem?) os direitos civis, tidos funções mais nobres para governar, para excluísse (...)”. (Foucault, 1992, p.10)
como naturais, só vê solução para o prever, para pressentir (...)”. (Idem, p.57)
seu caso ao combater a injustiça com De fato, notaremos que quando Por uma ética de possíveis
o rancor, reivindicando à vingança o Valentine põe-se no lugar do ex-juiz e Semelhante ao pacto do Fausto de
estatuto de igualdade. Ora, trata-se deixa de condená-lo, experimenta com Goethe com Meistófelis, que simbo-
LOGOS

liza a ainidade entre o ideal cultural causas ininitesimais. Uma histeria, uma É assim que a ética dos direitos huma-
do auto-desenvolvimento e o efetivo inércia na velocidade, um êxtase, como nos, que se baseia nos ideais iluministas
movimento social na direção do de- diz Baudrillard. Uma ab-reação ao vazio. que inventam o sábio, o homem imu-
senvolvimento econômico e, crente Ora, a ética e os direitos humanos mo- tável, impessoal, ganha força e estatuto
de que a única forma de transformar- dernos inscrevem-se mesmo nesse vazio universal, pois nada mais é do que um
se é a radical transformação de todo (não por desaparição da presença, mas consenso, uma opinião-doxa que fala de
o mundo físico, moral e social em que por saturação), nesse projeto obsceno e um sujeito que se quer universal e que crê
vive, o homem moderno viu no desen- obeso,”simbolicamente gordo de todos que seu conhecimento é o princípio da
volvimento das forças materiais uma os objetos de que não soube separar-se, vida. Os “direitos humanos” são, portanto,
utopia redentora, que lhe prometia ou daqueles em relação aos quais não en- uma política delineada não a partir das
plenitude e liberdade. controu a distância, para poder amá-los” representações do que as pessoas fazem
O que ele encontra, entretanto, (Baudrillard, 1990, p.279), que é o projeto de suas vidas e de seus direitos, mas de
é nada mais nada menos do que a si um “consenso planetário” capaz de se dar
mesmo, em um mundo impessoal, por sua imposição.
indireto, mediado por complexas or- Diante da falta de referências, Diz-se, inalmente, que a ética desses
ganizações e funções institucionais, direitos existe para proteger o homem.
capazes de conduzir e atribuir valor à
de valores e inalidades, há uma Porém, do ponto de vista do consenso,
sua própria experiência e de divorciá- exacerbação dos sistemas: uma só há julgamento, e co-incidência, e
lo da totalidade da vida. busca obsessiva da origem, da não airmação do múltiplo, da vida. Mas
A princípio, para Fausto o que responsabilidade, da referência, é preciso protegê-lo de alguma coisa.
importava era o processo, não o resul- uma tentativa de esgotar os Sem se dar conta de que “o homem é o
tado. Ao inal de sua aventura, porém, lobo do próprio homem”, vai-se buscar o
pergunta a si mesmo: “Que serei eu se fenômenos até suas causas ini- inimigo fora, no Mal. Logo, a ética passa
não puder atingir a coroa da huma- a ser concebida como a capacidade de
nidade, que se ri de nossos anseios, distinguir o Mal que prejudica o homem
suplicando inutilmente?”. Ao que de “homem”. e o conjunto de medidas para contorná-lo
responde Meisto: “O que você é”. Como já foi dito, o homem, em sua ou, se possível, eliminá-lo. Logo, como su-
O que somos. Esta realidade, in- tentativa de dominação do real, tende a gere Badiou, o Bem se subordina ao Mal, e
suportável para o homem moderno, apreendê-lo quase sempre de forma rea- não o contrário, e os “direitos do homem”
homem da “cultura”, radicalmente tiva, e não ativa, ou seja, não é o homem passam a ser os “direitos ao não-Mal”.
distanciado da “phisis” e que parece quem quer: há uma vontade que atua Mas o homem não é um simples
possibilitar tudo menos a desejada sobre a vontade do homem, que não é vivente que tem por único objetivo so-
plenitude, deixa-o aterrorizado. Tal- de ação, de potência, como diz Nietzsche, breviver, como propõe Badiou. Ele é uma
vez seja por isso que, diante dela, bus- mas vontade reativa. singularidade imortal, cujo direito “não é
que atualmente novos parâmentos, Segundo Deleuze e Guattari, os direi- mais da vida contra morte, do bem contra
novas máscaras, novos mecanismos tos do homem são axiomas que podem o mal, que o identiica com a vítima, mas
de ilusão que neguem a dor, o sofri- coexistir no mercado com muitos outros com os direitos de um ser imortal, que
mento e a experiência. Esta situação axiomas. Na verdade, airmam, os “direitos pairam sobre as contingências do sofri-
parece estar especialmente expressa do homem” não dizem nada sobre os mo- mento e da morte”. (1995, p.24) O homem
nas questões da ética e dos direitos dos de existência imanentes do homem não precisa ser salvo.
humanos, espécies de arranjo das provido de direitos, só legitimam o “pen- A idéia do homem como imortal
forças fracas para os fracos, como diria samento-para-o-mercado”, e por que não opõe-se a de um “ser-para-a-morte” e
Nietzsche. dizer, “para-o-Estado”. (1992, p.139) corresponde, em última análise, à airma-
Na aliança com essas forças, o ho- E o Estado propõe sempre uma doxa ção da vida, como expressa Nietzsche em
mem vem se colocando em posição que reterritorializa a percepção e a rele- Zaratustra, com a pregação do princípio
de eterna vítima. Vítima do destino, xão, de forma a naturalizar uma verdade, da terra. Com esta airmação, Zaratustra
da história e de si mesmo. Divorciado uma opinião, que em si é tão somente a assume a vida como “fenômeno estético”
da totalidade da vida, o homem con- vontade da maioria (e não do múltiplo), e não moral ou religioso, assume o bem e
temporâneo apenas sobrevive e com- mas que já fala em nome dela (Idem, o mal, o valor da experiência. Ele ri, joga
pensa essa falta fazendo aliança com p.160). A opinião-doxa opera então por e dança, isto é, airma a vida, o acaso e
seus pares, numa espécie de pacto de co-incidência, adquire uma qualidade o devir. Aceita, como Dionísio, o ser do
não-agressão com a morte. intrínseca na medida em que se acopla à devir, a multiplicidade e a diversidade da
Diante da falta de referências, de necessidade “de pertença” do indivíduo, airmação de tudo o que aparece.
valores e finalidades, há uma exa- com a qual inalmente se expande para Isso nos remete ao que Nietzsche cha-
cerbação dos sistemas: uma busca além dos limites de um grupo, para co- mou de “educação superior da humanida-
obsessiva da origem, da responsabi- incidir com a vontade de uma maioria de” (s/d.c, p.90), capaz de tornar de novo
lidade, da referência, uma tentativa cada vez maior, em que se apagam as possível sobre a terra o excesso de vida
de esgotar os fenômenos até as suas singularidades. - negado pelo projeto de “homem” - que
LOGOS

restabeleça a situação dionisíaca, o in-


tempestivo e todas as formas de vontade
de viver, de criar, de amar, de inventar
uma outra sociedade, outra percepção
do mundo, outros sistemas de valores,
de que nos fala Guattari.
Esses novos processos de subje-
tivação, essas novas alternativas de
vida, da existência “não como sujeito,
mas como obra de arte”, como propõe
Foucault, sugerem-nos uma estética da
ética, pois não há ética em geral, como
airma Badiou, mas uma ética de proces-
sos, pelos quais tratam-se os possíveis
de uma situação. E são esses possíveis,
lagrados em todo desencontro, que nos
incitam a sermos iéis aos acontecimen-
tos, a perseverar no “ser”, num “interesse
desinteressado” (1994, p.113), no amor
fatti nietzscheano.
Finalmente, se a Razão tem sido, ao
longo de todos esses tempos, o suporte
para a ciência e suas aplicações, de forma
a levar-nos a “bem-aventuranças”, atual-
mente, contudo, perguntamo-nos se de-
vemos ou queremos ser “racionais”. Ainal,
como aponta Touraine, em que medida a
Bibliograia
liberdade, a felicidade ou a satisfação das
BADIOU, A. A ética. Rio de Janeiro: Relume-Du-
necessidades são racionais? Na verdade,
mará, 1995.
a perspectiva da racionalidade, em que _____. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de
se insere a ética tradicional, supõe pro- Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
duções de subjetividade, inseridas num BAUDRILLARD, J. As estratégias fatais. Lisboa:
processo de modelização dominante, Estampa, 1991.
contra o qual lutava Nietzsche “a golpes DELEUZE, G. Nietzsche e a ilosoia. Porto: Rés,
de martelo”. s/d.
A trilogia de Kieslowski pode ser vista, _____. Conversações. Rio de Janeiro: Editora.
34, 1992.
nesse sentido, como uma bela coadju-
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a Filosoia?
vante das análises de Badiou, na medida Rio de Janeiro: Editora 34, 1992
em que propõem repensar essa ética e a FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo:
questão dos direitos humanos nela imbu- Martins Fontes, 1992.
tida. A “estética do desencontro” proposta LYOTARD, F. O Inumano. Lisboa: Editorial Estam-
pelas cores, por sua vez, sugere uma es- pa, 1990.
tética da airmação da vida, de uma outra NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Rio de
ética, portanto. É assim que, sob o inluxo Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. A gaia ciência. Rio de Janeiro: Ediouro,
dessa outra ética, a estética, permitimo-
s/d.a.
nos renunciar alegremente às ilusões da _____. A genealogia da moral. Rio de Janeiro:
racionalidade para airmarmos a simples, Ediouro, s/d.b.
porém fecunda, vontade de viver. _____. Ecce Homo. Lisboa: Guimarães Editores,
s/d.c.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis:
Vozes, 1994.

* Fernando do Nascimento
Gonçalves é Professor Assis­
tente da FCS/UERJ e Mestre
em Comunicação e Cultura
pela Escola de Comunicação
da UFRJ.
LOGOS

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
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1. Considerações Iniciais
Logos: Comunicação e Universidade é uma pu- Reitor
blicação semestral do Programa de Memória em ANTONIO CELSO ALVES PEREIRA
Comunicação da Faculdade de Comunicação Social Vice-reitora
da UERJ. A cada número há uma temática central, NILCÉA FREIRE
focalizada para servir de escopo aos artigos, organi- Sub-reitor de Graduação
zados por seções. RICARDO VIEIRALVES DE CASTRO
Sub-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
2. Orientação Editorial REINALDO FELIPPE NERY GUIMARÃES
2.1. Os textos serão revisados e poderão sofrer peque- Sub-reitora de Extensão e Cultura
nas correções ou cortes em função das necessidades MARIA THEREZINHA NÓBREGA DA SILVA
editoriais, respeitado o conteúdo. Diretor do Centro de Educação e Humanidades
2.2. Os artigos assinados são de exclusiva res- JOSÉ RICARDO DA SILVA ROSA
ponsabilidade dos autores. Faculdade de Comunicação Social
2.3. É permitida a reprodução total ou parcial das ma- Diretor: RICARDO FERREIRA FREITAS
térias desta revista, desde que citada a fonte. Vice-diretor: PAULO SÉRGIO MAGALHÃES MACHADO
Chefe do Departamento de Jornalismo
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3. Procedimentos Metodológicos Chefe do Departamento de Relações Públicas
3.1. Os trabalhos devem ser apresentados impressos JORGE HÉLIO SANTOS
em duas vias, acompanhados do disquete, gravados Chefe do Departamento de Teoria da Comunicação
em editor de texto Word for Windows 6.0 ou 7.0 (ou ANDRÉ LÁZARO
compatível para conversão), em espaço duplo, fonte
tamanho 12, não excedendo a 15 laudas (incluindo a
folha de referências bibliográficas e notas). LOGOS
Editora: Héris Arnt
3.2. Uma breve referência profissional do autor com
Conselho Editorial: Ricardo Ferreira Freitas (Presidente), Angela
até cinco linhas deve acompanhar o texto.
de Faria Vieira (UERJ), João Pedro Dias Vieira (UERJ), Luis Custó-
3.3. Os artigos devem ser antecipados por um resumo
dio da Silva (UFPB), Nízia Villaça (UFRJ), Luiz Felipe Baêta Neves
de no máximo cinco linhas e três palavras-chave. É
(UFRJ/UERJ), Robert Shields (Carleton University/Canadá), Ronal-
desejável que o resumo tenha duas versões, uma em
do Helal (UERJ) e Rosa Lucila de Freitas (UFL)
inglês e outra em espanhol.
Consultores Cientíicos: Nelly de Camargo (UNICAMP), Ismar de
3.4. As citações devem vir entre aspas e imedia-
Oliveira Soares (USP), Pedro Gilberto Gomes (UNISINOS), Manoel
tamente acompanhadas das referências: sobrenome
Marcondes Machado Neto (UERJ), Danielle Rocha Pitta (UFPE),
do autor, ano da obra e página correspondente,
André Lázaro (UERJ), João Maia (UERJ) e Carlos Moreno (UERJ)
entre parênteses.
Projeto Gráico e Diagramação: Lilian Nabuco e Lao Martins
3.5. As notas devem ser numeradas no corpo do texto. Redatora: Carmen da Matta
É desejável que sejam em número reduzido. Devem Editoração Eletrônica: Carla Cristina da Costa
ser organizadas em seguida à conclusão do trabalho Tradutor de Espanhol: Francisco Manhães
e antes da bibliografia. Tradutora de Inglês: Lúcia Rezende
3.6. As ilustrações, gráficos e tabelas devem ser apre- Revisão: Carmen da Matta e Marco Aurélio Alves de Mendonça
sentados em folha separada, no original, gravados no Estagiárias: Daniela Amin e Mariana Queiroz
mesmo disquete, como um apêndice ao artigo, com Ilustrações: Wania Moita
as respectivas legendas e indicação de localização Secretaria Gráica: João Carlos Baptista
apropriada no texto. Fotolitos e Impressão: Gráica UERJ
3.7. A bibliografia, organizada na folha final, não deverá
exceder a dez obras, obedecendo às normas da ABNT Endereço para correspondência:
(Ex.: SOBRENOME DO AUTOR, Nome. Título da obra. PROGRAMA DE MEMÓRIA EM COMUNICAÇÃO/REVISTA
Cidade: Editora, ano.) Os títulos de artigos de revistas LOGOS/FCS/UERJ
devem seguir o mesmo padrão, sendo que o nome Rua São Francisco Xavier, 524/10º andar/Bloco A - Maracanã
da publicação deve vir em itálico (Ex.: SOBRENOME 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ
DO AUTOR, Nome. Artigo. Cidade: Revista/Periódico, Tel.: (021) 587-7645/Fax: (021) 587-7458
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