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Hilary Putnam fora uma figura importante na assim chamada filosofia analítica a partir da

segunda metade do século passado. Suas principais contribuições perambulam entre os


domínios da filosofia da ciência, filosofia da matemática, filosofia da linguagem e filosofia da
mente. No campo da epistemologia, é conhecido por sua crítica inflamada ao ceticismo global
ou cartesiano ilustrado pelo famoso experimento mental “cérebros em cubas” – i.e., o
experimento mental que consiste na hipótese de que todas as nossas experiências são
ilusórias, originadas a partir de estímulos de um supercomputador interligado a nossos
terminais nervosos responsável por projetar uma realidade fantasiosa. A seguir, proveremos
uma reconstrução do argumento de Putnam em ataque a uma possível defesa do já
mencionado ceticismo radical, bem como uma avaliação do sucesso ou fracasso de sua
empreitada.

Uma das teses caras a Putnam, cujo papel na pretensa refutação da ideia da
possibilidade de que sejamos, de facto, cérebros em cubas, é aquela segundo a qual agentes
racionais apenas podem se referir a objetos por meio da linguagem se e somente se
entreterem uma relação causal com estes mesmos objetos aos quais designam pelo uso das
palavras. Desse modo, em um intercurso discursivo, para que um determinado signo (seja uma
palavra, um retrato ou qualquer outra coisa) mantenha uma relação significativa genuína com
um item externo aos indivíduos participantes de um exercício de trocas proposicionais, tais
sujeitos devem estar sob condições tais que o item em questão esteja disposto em seu
horizonte experiencial – em outras palavras, em suas condições empíricas imediatas,
pregressas ou verificáveis. Assim, a palavra “cão” somente adquire referência se os falantes da
tal língua têm acesso (ou contato) a esta classe de objetos (a saber, cães). Caso o contrário, a
locução carece de sentido e falha miseravelmente na função designativa primitiva de qualquer
linguagem natural. Com efeito, tal traço distintivo da referência não se apresenta apenas no
discurso ou numa interação entre dois entes – antes, se manifesta como condicional a
qualquer símbolo que se candidate a representar algo, seja na mente ou fora dela. Dito isso, o
que acontece quando falamos que “somos cérebros em cubas”?

Segundo o filósofo americano, a tese de que todos os humanos ou seres sencientes se


tratam de cérebros em cubas é autorrefutante a partir de uma enunciação em primeira
pessoa. Se é o caso que o somos, então os domínios experienciais dos quais temos acesso são
aqueles emulados pelo software (ou qualquer coisa que o valha) do supercomputador
conectado a nossos cérebros. Assim, como qualquer sujeito disposto em quaisquer condições
empíricas (vítima de um cientista maluco que removeu o seu cérebro e o plugou em um
computador ou não), os únicos enunciados dotados de sentido (referência) são aqueles cujas
palavras designam objetos aos quais o falante possui interação causal. A referência da palavra
“árvore”, p.e., será um conjunto de dados proto-sensoriais (ou a emulação de dados
sensoriais) ao qual <<a palavra>> designa na imagem ilusória, projetada em sua mente por
meio da atividade do supercomputador. A única referência possível em uma linguagem
comungada por cérebros encubados é aquela acessível às condições empíricas (e epistêmicas)
por eles compartilhadas – e a única interação causal que mantém com a cuba é a de estarem
nela abrigados, alheios à sua existência enquanto entretidos pelas ilusões do cientista maluco.

Portanto, uma enunciação em primeira pessoa de um indivíduo que alegue ser um


cérebro numa cuba, cruelmente iludido pelo programa do computador científico,
necessariamente manifesta a propriedade referencial designativa própria das locuções
ordinárias de uma língua natural uma vez que as palavras articuladas pelo agente mantiverem
interação causal com seu horizonte experiencial. Como já dito antes, tal interação causal está
restrita pelas condições empírico-epistêmicas onde o sujeito se vê disposto. Sendo assim, é
forçoso que a referência subjacente ao enunciado “Eu sou um cérebro numa cuba” verse
apenas a respeito da imagem emulada ao qual o sujeito dá vazão às suas experiências – o
enunciado ele mesmo não tem a capacidade de transportar a si mesmo (i.e., transportar a sua
referência) de condições empírico-epistêmicas x (originadas pela atividade do software de um
computador acoplado ao cérebro de uma pessoa) para condições empírico-epistêmicas y, i.e.,
não pode misticamente designar coisas em um mundo completamente alheio ao domínio de
experiências possíveis do indivíduo em questão. Em outras palavras, a proposição “Eu sou um
cérebro numa cuba” não pode referir a nada para além da realidade emulada. Se não pode
referir para além das condições empírico-epistêmicas x (a realidade emulada), onde se é
sabido que o sujeito não é um cérebro em uma cuba (pois nesse mundo de ilusão que constitui
sua única realidade, ele levanta a mão direita e se olha em frente ao espelho e, prontamente,
verifica que possui inegavelmente a si e a seus pares, braços, mãos, pernas, pés, nariz e
bochechas, e que não é o caso que se trate de um cérebro encubado), então o enunciado é
evidentemente falso e, como já pontuamos, autorrefutativo – pois a única referência possível
aos objetos designados nas palavras constituintes do enunciado “Eu sou um cérebro numa
cuba” são aqueles que causalmente depõe não ser este o caso. Logo, se somos cérebros
encubados, toda empreitada de o atestar encontrar-se-á natimorta, uma vez que a referência
ao qual o enunciado “Eu sou um cérebro numa cuba” incorpora (i.e., os itens dispostos no
horizonte de experiências do sujeito e sua interação causal para com estes) imediatamente
atesta sua falsidade.

Creio que o eloquente ataque de Putnam ao ceticismo radical, como naturalmente é


esperado de um filósofo de seu calibre, satisfaça todas as prescrições para a validez de um
argumento. Podemos ver isso mais claramente se simplificarmos a sua reconstrução:

(P1) – Signos manifestam referência se e somente se os objetos aos quais designam possuem
interação causal com um sujeito;

(P2) – A interação causal de um sujeito com objetos se dá sob as condições empírico-


epistêmicas aos quais o sujeito está submetido;

(P3) – As condições empírico-epistêmicas de um sujeito podem ser originadas pela atividade


de um supercomputador científico de modo que ele jamais disso se aperceba, tendo seu
cérebro retirado de seu corpo e armazenado numa cuba mesmo antes da aquisição biológica
da consciência, configurando toda a sua coleção de experiências uma mera emulação de
eventos e objetos de modo a acreditar não ser um cérebro numa cuba;

(P4) – Um sujeito que se trata de um cérebro numa cuba, cujas condições empírico-
epistêmicas são tramadas por um supercomputador científico que emula experiências e o
engana incessantemente – de modo a acreditar que não é o caso ser um cérebro numa cuba –
não tem uma interação causal consigo mesmo como um cérebro numa cuba;

(CONCLUSÃO) – Logo, se um sujeito é um cérebro numa cuba devidamente ludibriado pelo


processamento do algoritmo de um supercomputador científico de modo a não perceber a si
mesmo como um cérebro numa cuba, e esse mesmo sujeito enuncia “Eu sou um cérebro numa
cuba” quando disposto em seu mundo experiencial fictício, então a referência ao qual as
palavras do seu enunciado designam serão os objetos dispostos na sua própria condição
empírico-epistêmica, configurando, portanto, a falsidade do enunciado, uma vez que o sujeito
não mantém uma interação causal consigo mesmo como um cérebro numa cuba.
Acredito que, com a exposição acima, fica claro que o argumento comporta uma forma lógica
válida.

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