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O

Assim, este livro tem como ob- conflito entre as dife-


jetivo contribuir para a forma- rentes classes é algo
ção de lutadores e lutadoras do que perpassa a histó-
povo, com vistas à construção de Clodomir Santos de Morais ria da humanidade, como bem
organizações dos trabalhado- 9 786558 910527 nos lembram Karl Marx e Frie-
res e trabalhadoras para a luta
de classes.
Elementos sobre a drich Engels no Manifesto do
Partido Comunista: “A história
Fruto de vasta experiência no
trabalho com organizações
teoria da organização de todas as sociedades até
hoje é a história das lutas de
camponesas em diferentes da classe trabalhadora classe”. Nesse sentido, é im-
países da América Latina portante destacar que essas
como Brasil, Chile, Nicará- classes construíram em sua
gua entre outros, Elementos época diferentes formas de
sobre a teoria da organização organização tanto para lutar
da classe trabalhadora procu- e conquistar direitos, no caso
ra reconstruir as formas e os dos de baixo, quanto para
princípios organizativos histó- manter sua dominação, no
ricos da classe trabalhadora, caso das classes dominantes.
sendo fundamental para todos Clodomir de Morais foi um dos grandes. Partindo do trabalho – inter-
e todas engajados na constru- Este trabalho, para além de sua vida e obra, é câmbio entre o ser humano e
ção de uma nova sociedade. um livreto clássico da teoria da organização a natureza – como elemento
da classe trabalhadora. Estou convencido fundante da humanidade, Clo-
de que sua contribuição é fundamental para domir de Morais expõe, em li-
compreendermos a natureza do comporta- nhas gerais, a relação entre as
mento das pessoas nas instâncias organiza- relações sociais de produção e
tivas e na militância. Sendo assim, nos ajuda a a consciência social da época.
corrigir as formas artesanais, individualistas Focando especificamente na
e oportunistas de atuação no trabalho polí- organização dos trabalhado-
tico organizativo em geral. res, o autor procura demons-
trar como mesmo aqueles e
João Pedro Stedile
aquelas empenhadas na luta
contra a ordem estabelecida
podem reproduzir alguns dos
seus valores.
Clodomir Santos de Morais
ELEMENTOS SOBRE A TEORIA DA
ORGANIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA

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Clodomir Santos de Morais

ELEMENTOS SOBRE A TEORIA DA


ORGANIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA

1ª EDIÇÃO

EXPRESSÃO POPULAR

SÃO PAULO, 2022

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Produção editorial: Miguel Yoshida
Preparação de texto: Cecília Luedemann
Revisão: Dulcineia Pavan e Lia Urbini
Projeto gráfico e diagramação: Mariana V. de Andrade
Arte da capa: Rafael Stédile sobre pôster do maio de 68 francês chamado “nous som-
mes le pouvoir” (nós somos o poder, em tradução livre), autoria desconhecida.
Impressão e acabamento: Paym

ISBN 978-65-5891-052-7

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser


utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora.

1a edição: abril de 2022

EXPRESSÃO POPULAR
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Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500
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SUMÁRIO

UMA CONTRIBUIÇÃO TEÓRICA E PRÁTICA


PARA MELHORAR NOSSAS ORGANIZAÇÕES DA CLASSE...................7
João Pedro Stedile

I. ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO....................................11


A divisão social do trabalho.........................................................................11
A mercadoria..................................................................................................13
A economia mercantil simples.....................................................................15
Valor da mercadoria......................................................................................16
A organização do trabalho............................................................................17
A economia mercantil capitalista.................................................................20

II. COMPORTAMENTO IDEOLÓGICO


DE ESTRATOS EMERGENTES.........................................................................23
Os quatro estratos..........................................................................................23
Os comportamentos ideológicos..................................................................24
Adequação da estrutura com o comportamento ideológico....................42
As organizações de produtores.....................................................................46
A empresa........................................................................................................49
Os graus de consciência................................................................................50
A unidade e a disciplina................................................................................53

III. VÍCIOS (OU DESVIOS IDEOLÓGICOS) DETERMINADOS


PELAS FORMAS ARTESANAIS DE TRABALHO.........................................55
Exemplos de alguns vícios determinados
pelas formas artesanais de trabalho.............................................................58

IV. MECANISMOS OU INSTRUMENTOS PARA COMBATER


OS VÍCIOS DAS FORMAS ARTESANAIS DE TRABALHO........................71
A vigilância.....................................................................................................71
A crítica...........................................................................................................73
A reunião.........................................................................................................74

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V. O LABORATÓRIO EXPERIMENTAL..........................................................77
Definição.........................................................................................................77
Objetivos do laboratório experimental.......................................................78
As etapas ou processo de aprendizagem no laboratório...........................78

REFERÊNCIAS......................................................................................................85

SOBRE O AUTOR.................................................................................................89

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UMA CONTRIBUIÇÃO TEÓRICA E
PR ÁTICA PAR A MELHOR AR NOSSAS
ORGANIZAÇÕES DA CLASSE
João Pedro Stedile1

Clodomir Santos de Morais (1928-2016) foi um quadro histórico


da esquerda brasileira e, em especial, um intelectual orgânico dos
movimentos camponeses. Muito jovem, saiu de sua Santa Maria da
Vitória (BA) para estudar Direito, e se engajou nas lutas de massa e
na militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Se destacou
como um organizador e um agitador de massas.
Nas lutas da década de 1960, liderou uma dissidência do PCB,
pois a linha oficial do partido era apenas organizar a União dos La-
vradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), que depois se
transformaria em um conjunto de sindicatos de trabalhadores rurais.
Clodomir, ao lado de seus companheiros e companheiras, defendia
o envolvimento e a organização das Ligas Camponesas, sobretudo a
partir da realidade do Nordeste, que ele conhecia bem.
Nas Ligas Camponesas, se firmou como um organizador e
dirigente político. Sonhava em transformá-las em uma organização
política, mais do que em um simples movimento camponês de
massas­,­como defendido por Francisco Julião. Bom tribuno, se ele-
geu deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na
década de 1960, partido que acolhia os militantes comunistas postos
na clandestinidade pela burguesia brasileira desde 1947. Chegou

1
Economista e membro da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).

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João Pedro Stedile

a ser preso ainda antes do golpe de 1964, acusado de promover a


organização clandestina dos camponeses.
Voltou a ser preso com o golpe de 1964, e compartilhou a cela
em Recife com seu amigo de longa data Paulo Freire; ali, interagiam
sobre os desafios do trabalho educativo e organizativo da classe
trabalhadora no campo e na cidade. Cultivaram uma amizade que
durou por toda a vida. Amargou o exílio durante toda a ditadura
empresarial-militar (1964-1984). Lá fora, envolveu-se com a Orga-
nização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)
e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em programas
de reforma agrária na América Central. Também fez um doutorado
na então Alemanha Oriental.
Por conta de seus vínculos com organismos internacionais, tardou
a regressar do exílio, voltando em meados de 1980. Posteriormente,
tornou-se professor na Universidade Federal de Rondônia, onde se
aposentaria. Em meados da década de 1980, ainda nos primórdios
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ele
nos visitou na Secretaria Nacional. Eu o conhecia de nome apenas,
e sobretudo por um dicionário da reforma agrária que ele publicara
em espanhol em alguma editora da América Central. Conversamos
um dia inteiro. Logo nos encantou com suas histórias e sua vida
consagrada à organização dos camponeses. Ele nos perguntou muito
sobre a natureza e as perspectivas daquele nascente e pouco conheci-
do MST, com o qual ele já de pronto simpatizara. Daí construímos
uma identidade e uma amizade que cultivamos até sua passagem
derradeira, ainda que sua ida para Rondônia o tivesse afastado das
articulações e atividades no centro do país.
Naquele encontro histórico em nossa secretaria, nos falou de sua
experiência nos programas de reforma agrária da América Central, e
de pronto ofereceu ao Movimento três livrinhos, que trazia na pasta
e nos entregou. Uma apostila sobre a história das Ligas Camponesas

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Uma contribuição teórica e prática para
melhorar nossas organizações da classe!

(que depois aproveitei na organização de História e natureza das Ligas


Camponesas (1954-1964), volume 4 da coleção A questão agrária no
Brasil, publicado pela Expressão Popular.); um exemplar do Diccionário
de Reforma Agraria em espanhol, até hoje não traduzido; e um livreto,
Elementos de la teoría de la organización del campo, que de imediato tra-
duzimos e publicamos como Caderno de Formação do MST, em 1986.
Estou contando todas essas histórias por achar que elas ajudam a
entender o motivo pelo qual o autor fez essa síntese. De certa forma,
Clodomir de Morais repetiu o que seu amigo Paulo Freire fizera em
Extensão ou comunicação, como livro-relatório da experiência de toda a
equipe pedagógica que atuava como educadores e agrônomos no pro-
cesso de reforma agrária chilena.2 Em Elementos..., Clodomir recolhe
os princípios organizativos e as experiências históricas da organização
da classe trabalhadora sistematizadas pelos clássicos. Utiliza a base filo-
sófica da dialética e reflete a própria experiência organizativa da classe
que ele teve, como militante, nas Ligas Camponesas brasileiras e com
os camponeses da América Central nos processos de reforma agrária.
O resultado é este livreto, que agora extrapola a militância do
MST e pode ser aproveitado, finalmente, por toda a militância de
esquerda brasileira.
Clodomir parte da base científica de que é a nossa relação com o
trabalho e com os processos produtivos o que caracteriza não apenas
nossa classe social, mas também nosso comportamento nas relações
sociais e na sociedade. Sistematiza e codifica por sua experiência os
comportamentos ideológicos das pessoas e militantes, seus possíveis
desvios e vícios organizativos derivados de sua condição de classe – a
classe trabalhadora, os camponeses que repetem o comportamento
individualista e artesanal de trabalhadores ou mesmo da pequena-
-burguesia, que, se agarrando em seus conhecimentos, desdenha a

2
Texto publicado em Paulo Freire, vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

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João Pedro Stedile

necessidade da organização social da divisão do trabalho. Por último,


incorpora sua experiência da práxis militante ao propor métodos e
instrumentos para combater os desvios, que podem prejudicar em
muito a organização da classe trabalhadora na militância cotidiana,
nas esferas organizativas e instâncias de direção.
Na primeira tradução brasileira, mantivemos a versão espanhola,
que falava em teoria da organização dos trabalhadores do campo.
Isso porque ela havia sido utilizada como uma espécie de manual
para o trabalho no campo e porque, sendo um Caderno de Formação
para o MST, seria importante manter a designação “do campo”.
Porém, como poderão ver, a teoria se refere a todo o processo social
organizativo da classe trabalhadora, na cidade e no campo. Por isso
suprimimos agora a designação “para o campo”. Como todo docu-
mento de época, o texto tem marcas de seu contexto e alguns dos
termos utilizados aqui ganharam novas formulações mais precisas;
optamos por manter a redação original de Clodomir que, de modo
algum, desabonam ou prejudicam o sentido geral do texto.
Clodomir de Morais foi um dos grandes. Este trabalho, para além
de sua vida e obra, é um livreto clássico da teoria da organização
da classe trabalhadora. Estou convencido de que sua contribuição é
fundamental para compreendermos a natureza do comportamento
das pessoas nas instâncias organizativas e na militância. Sendo
assim, nos ajuda a corrigir as formas artesanais, individualistas e
oportunistas de atuação no trabalho político organizativo em geral.
Espero que toda a militância brasileira possa fazer um bom uso
deste livro, não apenas individualmente, mas realizando círculos de
leituras e debates nos coletivos de militantes e de direção dos nossos
movimentos e organizações.
Bom estudo e debate.

São Paulo, fevereiro de 2022.

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I. ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO
DO TRABALHO

A divisão social do trabalho


A organização do trabalho tem origens bastante remotas e seu
marco mais longínquo se situa na divisão natural do trabalho. A
sociedade humana, em seus primórdios, não conheceu mais que a
divisão natural do trabalho. Ou seja, primitivamente, quando o ser
humano vivia em tribos, o trabalho se dividia da seguinte forma: o
trabalho mais pesado (a guerra, a caça de animais de grande porte
etc.) era tarefa dos homens adultos, enquanto o trabalho mais leve
cabia às mulheres, aos anciãos e às crianças.1

1
“A primeira divisão do trabalho da história da sociedade humana não possui
ainda o caráter de divisão profissional do trabalho. É a chamada divisão natural
do trabalho que se realiza entre os homens e, em parte também, entre pessoas
de diferentes idades. As mulheres começam a se ocupar do trabalho agrícola
e do jardim. Os homens, ao contrário, se encarregavam da caça ou da pesca.
Engels estudou o desenvolvimento da divisão profissional do trabalho, dentro
da qual distinguiu três etapas: a primeira grande divisão social do trabalho é
a diferenciação das tribos de pastores, que teve lugar na época da comunidade
pré-histórica. Conduziu ao intercâmbio regular de produtos da economia pastoril
por outros, especialmente produtos agrícolas. Nessa época, amiúde, se usava o
gado como dinheiro. A segunda grande divisão social do trabalho se relaciona
com os inícios da produção e utilização do ferro. Nessa época se separa o trabalho
artesanal (a produção industrial) da agricultura. A produção de ferramentas
e armas de ferro, a transformação de outros metais (ouro, prata) e em parte
também a fabricação de tecidos se convertem em particulares. Em relação a isso,
se desenvolvem as cidades e se produz uma separação entre a cidade e o campo. A
terceira grande divisão do trabalho consiste na diferenciação do comércio. Surge
a profissão dos comerciantes, que atuam como mediadores no intercâmbio das
mercadorias produzidas pelas diferentes profissões. O comerciante é, sobretudo,
mediador entre o artesão e a agricultura, entre a cidade e o campo e, também,
entre as cidades. Aparece o dinheiro metálico. A profissão de comerciante é a
primeira grande profissão que não se dedica à produção” (Lange, 1976, p. 253).

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Clodomir Santos de Morais

A mulher permanecia mais tempo no lar cuidando dos filhos, e


por este motivo ela pôde, ao longo de milhares de anos, observar o
que ocorria com as sementes e os restos de alimentos jogados fora. Isso
remonta a etapas primitivas da sociedade, cuja economia se baseava
na coleta de frutos, na pesca e na caça. O homem não semeava, mas
colhia os frutos silvestres, não criava animais, mas os caçava. Tudo
o que recolhia ou caçava nos bosques pertencia a todos os membros
da tribo e era repartido entre todos. Este regime ficou conhecido
como comunal primitivo.
Com base em uma longa e permanente observação do que
acontecia com as sementes dos frutos jogados fora, a mulher passou
a semear. Desse modo, aparece a agricultura. A mulher, ao longo
de milhares de anos, desenvolveu a primitiva técnica agrícola. Ela
sabia semear.
Simultaneamente, a mulher foi domesticando a galinha, o porco,
a vaca, o cavalo, o cachorro e outros animais. Estes encontravam,
nas sobras de alimentação dos humanos, mais facilidades de obter
comida sem arriscar a vida com as feras dos bosques.
Nas épocas em que escasseavam os frutos e os animais de caça, a
tribo se apoiava na agricultura e na criação que as mulheres haviam
desenvolvido, mas ainda em estágio incipiente e primitivo.
Por este motivo é que, segundo alguns autores, em sociedades
primitivas, a economia esteve baseada na técnica e no trabalho desen-
volvido pelas mulheres. Elas sustentavam as tribos nas duras épocas
de escassez, gerando-se com isso o matriarcado, marco social em
que as mulheres decidiam a sorte de todos e mandavam em todos.2

2
“Por causa da maternidade, a mulher ocupou uma posição particular entre os
membros da tribo. É à mulher que a humanidade deve o descobrimento da
agricultura, elemento extremamente importante para seu desenvolvimento
econômico. Este descobrimento foi o que, por um longo período, determinou
o papel da mulher na sociedade e na economia, colocando-a no cume das
tribos que praticavam a agricultura. [...] A divisão do trabalho das tribos que

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Conforme foram desenvolvendo a agricultura e a criação, as


tribos se especializaram: umas em agricultura e outras em pecuária.
Já não viviam da incerteza da caça e da coleta de frutos. Desde esta
longínqua época, o ser humano conhece a divisão social do trabalho
na qual uns se dedicam à caça, outros à coleta de frutos, outros à
agricultura e outros à pecuária.3

A mercadoria
Desse modo, à medida que algumas tribos se especializaram
na agricultura e outras na pecuária ou pastoreio, foi aparecendo a
propriedade privada no âmbito das tribos.4 E em razão de que cada

praticavam ao mesmo tempo a caça e a agricultura trouxe junto os seguintes


fatos: As mulheres, responsáveis pela produção, pela organização dos locais de
habitação, desenvolvem mais suas capacidades de raciocínio e de observação,
enquanto os homens, em decorrência de suas atividades de caça e de guerra,
desenvolveram bem mais sua musculatura, sua destreza corporal e sua força.
Naquela fase da evolução, a mulher era intelectualmente superior ao homem, e
no seio da coletividade ocupava, certamente, a posição dominante, ou seja, a do
matriarcado” (Kollontai, 1979, p. 51-53). Em contrapartida, foi tão acentuada a
influência da mulher que os antigos gregos, por exemplo, tinham como deusa
da agricultura uma mulher, Ceres (origem do nome cereais), e em algumas
culturas do arquipélago indonésio o vocábulo com que se denomina a mulher,
pasi-gadong, significa pasi (meios de obter) e gadong (alimentos). Entre
algumas culturas pré-colombianas da América Central, Xilónem (zil = bulbo,
ot = fruto e nem = alimento) era a deusa do milho, formosa princesa que se
sacrificou para que seu povo não perecesse de fome.
3
Apesar das primeiras manifestações da divisão social do trabalho aparecerem nos
últimos períodos do modo de produção comunal primitivo ou no começo do
modo de produção escravista, ou do polêmico modo de produção asiático, alguns
remanescentes da antiga divisão natural do trabalho, no entanto, continuam
aflorando inclusive em países considerados capitalistas. É fácil observá-los, por
exemplo, nas fronteiras agrícolas das áreas de bosques do vale centro-americano
do Caribe e de todo o vale amazônico. De fato, ali sobrevivem milhares de
indígenas que se dedicam à coleta de frutos, da caça e da pesca, enquanto a
mulher sedentária dedica seu tempo à família, à criação de animais domésticos,
à agricultura incipiente de umas poucas lavouras de milho, mandioca e outros
tubérculos.
4
A propriedade privada aparece inicialmente sob o caráter de “propriedade tribal”,
como o denomina Kautsky (1975, p. 98).

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Clodomir Santos de Morais

tribo era proprietária de tudo o que produzia, a obtenção de alguns


produtos requeria o intercâmbio com as demais tribos. Ou seja, a
tribo que produzia grãos e necessitava de couros ou de carne, troca-
va seus produtos agrícolas por produtos de pecuária das tribos que
viviam do pastoreio. Eis aqui como aparece a mercadoria.
A mercadoria é todo artigo que se produz para a troca, para a
venda, objetivando adquirir um artigo de outro gênero.
O artigo que alguém produz para usar ou comer não é mercadoria.
Esta é somente o que se produz exclusivamente para o intercâmbio.
Para que a mercadoria surgisse foi necessário que existisse, pri-
meiramente, a divisão social do trabalho e a propriedade privada. Sem
a propriedade privada não pode existir a mercadoria, pois é necessário
que a tribo ou alguém diga “Esta coisa me pertence”, e assim possa
dispor dela para trocá-la por outra coisa que pertença a outra tribo
ou a outro indivíduo.
À medida que foi se ampliando a divisão social do trabalho,
em cujo marco algumas tribos ou alguns indivíduos se especia-
lizaram em alguns tipos de artigos ou de atividade, os humanos
foram aperfeiçoando seu modo de trabalhar e gerando excedentes
de produção.
Durante milhares de anos foi se ampliando a divisão social
do trabalho, e os seres humanos se especializaram em diferentes
atividades. Na agricultura, uns foram se especializando em grãos,
outros em hortaliças. Na pecuária, uns se especializavam na criação
de ovinos, outros na criação de cavalos, de bois etc. No artesanato,
uns se especializaram em olarias (produção de jarras, panelas etc.)
enquanto outros se dedicavam a produtos de couro, dividindo-se
em sapateiros, seleiros etc. Outros ainda se dedicavam a trabalhar
a madeira: carpinteiros, marceneiros, construtores de casas etc. As
comunidades destes produtores eram autossuficientes, ou seja, pro-
duziam tudo o que necessitavam sem ter que trocar produtos com

14

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

outras comunidades. Algo semelhante acontecia aos produtores em


sua comunidade: cada qual produzia o que fosse preciso para atender
às suas necessidades fundamentais. Este período de produção para
autoconsumo ficou conhecido como economia natural.

A economia mercantil simples


Ao longo de milhares de anos, a constante divisão social do
trabalho foi criando ramos especializados, até chegar ao ponto
em que o intercâmbio de produtos se torna uma necessidade
imperiosa: os seres humanos e suas comunidades produzem para
a venda, ou seja, para o mercado, generalizando deste modo a
economia mercantil.
A economia mercantil em cujo marco os seres humanos trocam
seus produtos por outros artigos se chama economia mercantil
simples.
Na economia mercantil simples os seres humanos inicialmente
tiveram dificuldades para intercambiar seus produtos. O produtor
buscava trocar a jarra que havia produzido por um saco de trigo que
ele precisava. Outro produtor oferecia um carneiro por dois machados
que o ferreiro produzia. Assim, nessa etapa, a economia mercantil
simples se desenvolvia lentamente em forma de troca de mercadorias.
Mais tarde o ser humano escolheu uma mercadoria que servisse de
medida de valor de todas as demais mercadorias, visando com isso
facilitar o intercâmbio.
Muitos povos primitivos escolheram o gado, os grãos, e outros
escolheram a semente de cacau como um equivalente geral para
intercambiar mercadorias.
Com a evolução da técnica para produzir metais, o ser huma-
no então criou a moeda como equivalente geral de intercâmbio de
mercadorias. A partir dessa época, tudo se pode trocar por moedas,
posto que, com a moeda, outras mercadorias podem ser compradas.

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Clodomir Santos de Morais

Valor da mercadoria
Toda mercadoria tem valor e este é determinado pelo trabalho nela
incorporado. Desse modo, a fonte do valor da mercadoria é o trabalho.5
Trabalho é todo esforço que alguém emprega para produzir
bens materiais. Há dois tipos de trabalho: o trabalho concreto e o
trabalho abstrato. Trabalho concreto é aquele esforço que o produtor
emprega para produzir um artigo qualquer. O esforço que um
alfaiate emprega para produzir uma roupa ou o esforço que um
camponês emprega para produzir um saco de milho se chama
trabalho concreto.
O trabalho abstrato é definido pelos esforços que vários campo-
neses, com diferentes meios de produção e habilidades, empregam na
produção de milho, assim como pelos esforços que vários alfaiates,
com diferentes meios de produção e habilidades, empregam para
produzir roupas.
O valor de um produto é medido pela quantidade de trabalho
que alguém emprega para produzi-lo. Pode acontecer, porém, que
um camponês gaste 100 dias de trabalho para produzir 20 sacos de
milho, enquanto outro camponês, utilizando juntas de bois, arados
etc., produza a mesma quantidade em 50 dias. É possível que um
marceneiro gaste três meses de trabalho fabricando uma cadeira
com um desenho complicado e que outro marceneiro com mais
habilidades e melhores instrumentos de trabalho fabrique este tipo
de cadeira em apenas três dias.
No momento de vender essas cadeiras, o primeiro marceneiro
pede 1.500 reais por sua complicada cadeira, em cuja produção gastou

5
Aqui se simplifica ao máximo possível (mesmo quando se tenha que deixar de
lado o rigor da linguagem e dos conceitos científicos) a fim de que o cidadão
comum, o operário ou o camponês possa entender um pouco sobre o valor
da mercadoria. Um método ainda mais simplificado para explicar a teoria do
valor pode ser visto em Fernando Correia da Silva (1978). Os que quiserem se
aprofundar no tema deverão ler P. Nikitin (1975) ou Antonio Pesenti (1974).

16

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

90 dias de trabalho. Ninguém quer comprá-la por ser muito cara.


No entanto, este marceneiro acredita que este é o valor da cadeira,
já que durante os 90 dias dedicados à sua produção ele gastou uma
média de 25 reais diários de comida, vestuário etc. Se de repente os
clientes ou compradores dizem que o máximo que podem dar por tal
cadeira é 75 reais, porque este é o preço de uma cadeira, o marceneiro
reage furioso: “A vender esta cadeira por uns miseráveis 75 reais, eu
prefiro ficar com ela ou presenteá-la a um amigo que a use!”. Desse
modo, se constata que a cadeira só tem valor de uso. Não tem valor
de troca, ou seja, não é uma mercadoria. O que cria o valor de uso
da mercadoria é o trabalho concreto e, em contrapartida, o que cria
seu valor de troca é o trabalho abstrato.
Desta maneira é que o valor de troca provém do trabalho social
dos produtores, materializado em mercadorias. Uma vez que o va-
lor da mercadoria é criado pelo trabalho, a magnitude do valor de
qualquer mercadoria é resultado da quantidade de trabalho contido
em uma determinada mercadoria. A quantidade de trabalho que
alguém põe na produção de uma mercadoria se mede pelo tempo
investido em tal trabalho.
Assim, a partir do momento em que aparece a mercadoria, o
seu valor depende da quantidade de trabalho social para produzi-la
em função de uma quantidade de tempo necessário. Daí que, com
a mercadoria ou com a economia mercantil, o tempo passa a ser
considerado. Aquele que produz artigos que só têm o valor de uso
não tem pressa, não considera o tempo. Ao contrário, aquele que
produz artigos para o mercado o faz em função do tempo.

A organização do trabalho
Para conseguir produzir uma mercadoria ou uma quantidade de
mercadorias em menor quantidade de tempo, o produtor não apenas
busca ter instrumentos de trabalho aperfeiçoados, como também bus-

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Clodomir Santos de Morais

ca racionalizar a forma de produção, ou seja, organizar o trabalho em


função do tempo que ele dispõe para produzir mercadorias. Daí que
toda atividade produtiva está relacionada com unidades de tempo,
as quais são determinadas conforme o grau de desenvolvimento das
forças produtivas ou de seus instrumentos de trabalho.
Entre os camponeses, por exemplo, as unidades de tempo são in-
definidas e, em geral, são longas: um “momentinho”, um “momento”,
meio-dia, uma semana, a próxima lua nova, a colheita etc. Já entre os
operários de uma fábrica, o tempo se mede em segundos, minutos,
uma hora etc.
Com o desenvolvimento da economia mercantil, o tempo
também passa a ter valor. Os ingleses dizem: “tempo é dinheiro”.
Ninguém quer perder tempo, porque perder tempo significa perder
dinheiro. Para o produtor, quanto mais se especializa em uma ati-
vidade, menor é a quantidade de tempo que gasta para produzi-la.
Quanto mais barato lhe sai uma mercadoria, maior facilidade terá
de vendê-la no mercado. Por isso, a maior preocupação que tem o
produtor é a de produzir a maior quantidade de mercadorias na
menor quantidade de tempo possível.6
A divisão social do trabalho implica a especialização dos produ-
tores, e conforme vão se especializando também vão aperfeiçoando
seus instrumentos de trabalho e as formas de produção. Um dia os
produtores chegam à conclusão de que, para obter uma maior pro-
dução, se faz necessário reunir os artesãos em uma oficina.
Neste sentido, à medida que se organiza o trabalho nas oficinas,
a técnica de produção evolui e se inventam máquinas para produzir

6
Daí que, por vezes, pela simples diferenciação da velocidade ou do ritmo com que
as pessoas e seus veículos se movimentam nas ruas, pode-se distinguir um núcleo
populacional de maior desenvolvimento da economia mercantil capitalista de
um outro no qual predomina a economia mercantil simples, ou de um terceiro
núcleo de produtores situados na economia natural. A velocidade cresce em
razão direta ao desenvolvimento da produção e da circulação mercantil.

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em menor quantidade de tempo maior quantidade de mercadorias. O


aparecimento da máquina hidráulica (movida por água) e a máquina
a vapor gerou a Revolução Industrial, que começou na Inglaterra há
pouco mais de 200 anos.7
Com o advento da Revolução Industrial, a produção se compli-
cou mais ainda. Antes da Revolução Industrial, a produção cabia aos
artesãos de diferentes ofícios. Um alfaiate, por exemplo, começava e
terminava seu produto, um paletó ou uma calça. Ou seja, o artesão
desenvolvia sozinho todo o processo produtivo para fabricar uma
determinada roupa. Na Revolução Industrial, o artesão que vendia
sua oficina, por não poder concorrer com a fábrica ou por dívidas,
terminava metendo-se numa fábrica. Na fábrica já não ia produzir
sozinho todo o artigo – a roupa será feita por muitos operários.
A partir desse momento, aquele artesão que se tornou operá-
rio, com a única tarefa de cortar bolsos ou pregar botões, já não
realizaria todo o processo produtivo. Cabe-lhe intervir apenas em
uma parte do processo produtivo, nada mais. De modo que, desde
esse momento histórico, a divisão social do trabalho se ampliou
mais: os produtores foram divididos não apenas em ocupações,
em ramos de produtos, como também se dividiram para uma
pequena parte de um artigo ou da mercadoria. Uma roupa passa
pela mão de dezenas ou centenas de pessoas de uma fábrica. Cada
uma faz uma pequena parte da roupa, da mesma forma que em
uma grande plantação de bananeiras. Ali, cada trabalhador agrega
uma parte de trabalho na produção de cachos de bananas: uns
irrigam, outros semeiam, alguns capinam, outros podam, uns
pulverizam, outros transportam etc. Em uma plantação de bana-

7
Veja-se: Claude Fohlen (1965) e Maurice Dobb, “prefácio da Revolução
Industrial” (1975).

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nas, assim como numa fábrica, pode existir centenas de divisões


sociais do trabalho.8
A divisão social do trabalho, quando estabelece a divisão de ati-
vidades em um só produto, uma só peça – seja banana, seja roupa,
seja sapato –, se chama divisão social do processo produtivo, ou divisão
técnica do trabalho.

A economia mercantil capitalista


Foi visto que a economia natural se baseia na produção para o
consumo. Também foi visto que a economia mercantil simples se baseia
no intercâmbio de mercadorias. Além disso, se viu que o trabalho
concreto é aquele que estabelece apenas valor de uso. À medida que
avançam as condições sociais médias da produção, ou seja, o nível
técnico e o grau de habilidade dos produtores em seu conjunto,

8
“Em lugar da roca, do tear manual e do martelo do ferreiro, apareceram a máquina
de fiar, o tear mecânico e a máquina a vapor; no lugar da oficina individual, a
fábrica que impõe a colaboração de centenas e milhares de pessoas. Do mesmo
modo que os meios de produção transformaram a própria produção, que deixou
de ser uma série de ações individuais para ser uma sucessão de atos sociais e,
desse modo também, os produtos deixaram de ser produtos de indivíduos
para serem produtos sociais. Os fios, os tecidos e as mercadorias metalúrgicas
que agora saíam da fábrica eram produtos comuns de muitos operários, por
cujas mãos tinham que passar sucessivamente antes de estarem terminados.
Nenhum indivíduo pode dizer: ‘Isto eu fiz, é meu produto’. [...] Porém, sempre
que a forma básica da produção é a divisão espontânea do trabalho no seio
da sociedade, esta divisão imprime aos produtos a forma de mercadoria, cujo
recíproco intercâmbio, cuja compra e cuja venda possibilitam aos produtores
individuais a satisfação de suas diversas necessidades. Assim aconteceu na
Idade Média. O camponês, por exemplo, vendia produtos agrícolas ao artesão e
comprava, em troca, produtos artesanais. O novo modo de produção penetrou
nessa sociedade de produtores individuais, de produtores de mercadorias. E nessa
divisão do trabalho espontâneo, sem plano, ela colocou a divisão planejada
do trabalho, tal como estava organizada nas diversas fábricas. Os produtos
de ambas as procedências se vendiam a preços aproximadamente equivalentes.
Porém, a organização planejada era muito mais potente que a divisão espontânea
do trabalho; as fábricas, trabalhando socialmente, obtinham seus produtos mais
baratos que os pequenos produtores isolados.” (Engels, 1964, p. 266).

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prevalece o trabalho abstrato e, em consequência, se arruínam os


produtores que não podem vender mercadorias nas quais se investiu
muito trabalho concreto. Daí o empobrecimento dos produtores
sem meios para melhorar seus cultivos ou sua produção artesanal.
Os produtores que vão se arruinando ou empobrecendo termi-
nam vendendo seus meios de produção e instrumentos de trabalho,
ou mesmo os perdendo, em razão de dívidas contraídas com agiotas.
Finalmente, como não podem produzir mercadorias, vendem os
meios de produção: a oficina, o pedaço de terra. Porém, esta não é
a última mercadoria da qual o produtor empobrecido dispõe. Sua
última mercadoria mesmo é sua força de trabalho, que ele vai oferecer
ao latifundiário ou ao dono da fábrica, em troca de um salário com
o qual busca comer e atender a outras necessidades.
A partir do momento em que aparecem vendedores de força
de trabalho (artesãos ou camponeses arruinados) e compradores de
força de trabalho (latifundiários, industriais), a economia mercantil
apresenta outro caráter e passa a ser denominada economia mercantil
capitalista, ou seja, a economia em que prevalece a compra e venda
da força de trabalho, ou seja, o tipo de economia em que a força
de trabalho também se torna mercadoria e o resultado do trabalho
social, a produção, é apropriado de forma individual pelo capitalista
proprietário dos meios de produção.

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II. COMPORTAMENTO
IDEOLÓGICO DE ESTRATOS
EMERGENTES

Os quatro estratos
A Revolução Industrial também abarcou a agricultura, transfor-
mando-a em indústria agrícola. Para efeito de análise ou estudo da
organização do trabalho, a Sociologia da Organização considera os
produtores divididos em quatro diferentes estratos sociais.9
Primeiro: o artesão, ou seja, o produtor que começa e termina
o processo produtivo de um determinado artigo. São exemplos o
sapateiro ou o alfaiate, que fazem inteiramente o sapato ou a roupa.
O artesão da agricultura é o camponês parceleiro, que começa e
termina o processo produtivo; para produzir, faz várias limpas ou
capinas e finalmente colhe e vende no mercado ou come o cacho
de banana, por exemplo. Ele não divide o processo produtivo com
ninguém, ele faz tudo.
Segundo: o assalariado, ou seja, o produtor que intervém em
uma pequena parte do processo produtivo para produzir um de-
terminado artigo. É exemplo o operário da fábrica de roupas que
faz apenas casas para botões ou uma perna de calça. O operário do
campo é aquele assalariado que interfere em apenas um pedacinho
do processo produtivo necessário para produzir cachos de banana
ou espigas de milho em uma fazenda. Ele trabalha com capinas ou
apenas faz desbaste etc.

9
Não se pretende com isto antepor a tipologia de estratos às classes sociais; refere-
se bem mais a fenômenos particulares de uma dimensão psicossocial que se gera
a partir das relações dos produtores com o processo produtivo.

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Terceiro: o semiassalariado, ou seja, o operário que trabalha na


fábrica durante o dia e, pela noite ou em alguns dias da semana, se
dedica a sua pequena empresa familiar e artesã. Durante o dia ele
opera no processo produtivo socialmente dividido da fábrica e, em sua
oficina, trabalha em um processo produtivo único em que ele mesmo
começa e termina o artigo.
O semiassalariado do campo é aquele que sozinho produz o
artigo (milho, banana etc.) e, em alguns dias da semana, do mês, ou
do ano, ele vai trabalhar em outra atividade agrícola cujo processo
produtivo é socialmente dividido. Lá em sua pequena gleba ele opera
em um processo produtivo único. Não o divide. Mas, lá na grande
fazenda ou empresa comunitária, na cooperativa coletiva, ele está
metido em um processo produtivo socialmente dividido, fazendo
apenas uma parte desse processo, ou seja: capinando, cuidando das
valetas, arando, pulverizando etc.
Quarto: o lúmpen, ou seja, aquele indivíduo que não está envol-
vido em nenhum dos processos produtivos descritos anteriormente.
O lúmpen, em geral, não trabalha, e quando o faz é eventualmente,
e quando lhe dá vontade. Todas as classes têm lúmpens: lumpem-
proletariado, lumpemburguesia, lumpencamponês. Nunca está
efetivamente situado em um tipo de organização das classes ou dos
estratos. É uma mariposa que procura viver onde existe umidade ou
alimentos, sem fazer esforços para produzi-los.

Os comportamentos ideológicos
O comportamento ideológico do indivíduo consiste em um
complexo de valores culturais, morais e políticos determinados pelo
papel que este desempenha em um determinado processo produtivo.
O comportamento ideológico do camponês vem de um processo
de organização de tipo artesanal, porque o camponês (este artesão
do campo) opera em um processo produtivo único (sem divisão)

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no qual o produtor inicia e termina o produto. O comportamento


ideológico do assalariado agrícola em um processo de organização
é do tipo operário, porque o assalariado agrícola (este operário do
campo) opera em um processo produtivo socialmente dividido, no
qual cada um faz apenas uma parte do produto.
O comportamento ideológico do camponês-diarista em um
processo de organização é do tipo intermediário, semiassalariado,
porque o camponês diarista trabalha em sua empresa artesã, em sua
parcela familiar, e em certas épocas do ano trabalha na empresa de
tipo grande com processo produtivo socialmente dividido.
Em um processo organizativo, os operários do campo e os
camponeses manifestam na prática comportamentos às vezes
diametralmente diferentes, como pode se ver nas descrições que
seguem.

Os camponeses
Inicialmente, vamos definir com mais detalhes o que são cam-
poneses.
Os camponeses são produtores simples que trabalham a terra
como proprietários, parceiros, arrendatários, ocupantes, posseiros
etc., utilizando para isso seus próprios meios de produção e decidindo
sobre o consumo e a distribuição dos produtos.
Sua produção é familiar e algumas vezes utilizam também
diaristas para realizá-la. É o empresário da produção familiar. No
caráter familiar da produção camponesa se observa uma mínima
divisão social do processo produtivo.
Isto significa que o processo produtivo do camponês apresen-
ta o caráter orgânico do processo produtivo artesanal no qual o
indivíduo começa e termina o mesmo produto. Como foi dito an-
teriormente, o camponês “desmata”, “destoca”, limpa, ara, semeia,
efetua outras limpas, colhe e consome ou destina ao mercado o

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resultado de seus esforços pessoais. Em alguns casos, divide parte


do trabalho com sua esposa ou com algum diarista que contrata.
A produção do camponês é a produção simples e pessoal em
que ele mesmo utiliza sua própria força de trabalho. No processo
produtivo da banana, da batata, do feijão, do algodão, do arroz etc.,
um camponês intervém desde o começo até o final, tal como o ar-
tesão (um alfaiate, por exemplo, que desenha, corta, costura, passa
ferro e recebe o pagamento de seu trabalho) que começa e termina
o produto sem dividir com outros (como na indústria de roupas) o
processo produtivo.
Estes aspectos fazem com que a visão do camponês seja pessoal
no que se refere à forma de trabalho. Ele confia basicamente na ini-
ciativa que põe ao longo de todo o processo produtivo. Além disso,
o camponês geralmente vive no campo e com outros camponeses
que trabalham cada um por si sem nenhuma vinculação de caráter
produtivo.
A única vinculação se reduz à inexorável divisão social do
trabalho que se afiança no momento histórico em que a produção
excedente assume caráter de mercadoria. Não há outra vinculação
e muito menos dentro do processo produtivo, que é sumamente
pessoal, individual ou, no máximo, familiar.
A estrutura do processo produtivo em que está envolvido o
camponês determina muito de suas atitudes sociais e traços de seu
comportamento ideológico quando participa do grupo social. Sua
atitude isolacionista, aparentemente reacionária à associação (sindical,
cooperativa etc.), não é consequência apenas do nível de educação,
que entre os camponeses quase sempre é muito baixo, e procede da
incompatibilidade de tipo estrutural que distingue tal atitude da
organização de caráter e participação sociais.
O sindicato, a cooperativa e mais ainda a cooperativa de serviços
múltiplos são mecanismos sociais de estrutura orgânica complexa,

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cujo objeto ou ação que se propõe realizar conta com a intervenção de


vários indivíduos. Ninguém começa e termina o mesmo “produto”.
Quando os camponeses resolvem formar um sindicato ou uma
cooperativa de múltiplos serviços não tarda que, por circunstâncias
políticas ou administrativas, em pouco tempo estas organizações
sofram deformações em seu funcionamento. Desaparece o processo
produtivo que teoricamente deveria estar socialmente dividido e o
presidente ou alguns dos diretores passam a realizar todas as funções
e tarefas que corresponderiam a outros associados.
O líder se transforma em cacique insubstituível e resolve os pro-
blemas que caberiam ao presidente, ao tesoureiro, ao secretário etc. O
caciquismo, pois, deriva não apenas da tendência pessoal do líder, mas
se origina, sobretudo, da composição social do grupo que ele dirige. Daí
ser mais frequente o caciquismo entre grupos sociais de camponeses e
artesãos que entre grupos operários de grandes empresas.
Para o camponês este fato equivale a uma forma de buscar em
seu líder a capacidade que lhe falta para ver o processo produtivo
em seu conjunto, ou seja, tudo o que se relacione com o trabalho
da presidência, secretaria, tesouraria, consumo, vendas, produção
ou serviços.
O fenômeno do caciquismo, pois, parece formar-se em um pro-
cesso de duplo sentido, indutor e induzido. O líder com tendências
ao caciquismo necessita do apoio do corpo social para maior domínio
ou controle do mecanismo social; em troca, e ao mesmo tempo, o
corpo social dá ao cacique mais respaldo para assegurar um desejado
domínio do mecanismo social.
Nestes fatores surge a resistência que os camponeses oferecem
para se organizar. Quando o fazem, é bem mais em torno de um
líder do que de uma associação (sindicato, cooperativa etc.); se asso-
ciam em torno de um indivíduo e quase nunca em uma organização
estruturada (Morais, 1965).

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O processo produtivo individual (unifamiliar) que o camponês


desenvolve determina a visão personalista como uma das caracte-
rísticas de seu universo cultural e das superestruturas sociais que
abarca. De modo que seu partido político está encarnado em seu
líder. O aparelho do Estado é encarnado pelo presidente, governador
e até pelo prefeito local. Sua religião se resume em seu Deus ou no
Santo de sua devoção. Em cada caso se subtrai a expressão social
para reduzi-la a uma concepção personalista, individual.
Eis porque a história não registra movimentos camponeses ca-
talisados por alguma organização (Mousnier, 1957; Ohanian, 1939;
Cunha, 1902; Alavi, 1978; Lambert, 1970). Seu elemento catalisador
é o indivíduo, o líder, quase sempre carismático, que é o mais perso-
nalista dos líderes. Morto o líder, sucumbe o movimento, a menos
que oportunamente surja outro líder que, utilizando a memória do
anterior, mantenha o impulso já dado.

Os assalariados agrícolas
Os aspectos examinados oferecem grande distinção entre os
camponeses e os operários agrícolas. Estes são trabalhadores agríco-
las como os camponeses e em alguns casos mais miseráveis ainda.
Os aspectos que, à primeira vista, distinguem os camponeses dos
operários agrícolas da grande fazenda, por exemplo, são os seguintes:
a) os operários do campo vendem sua força de trabalho ao
empresário e os camponeses não o fazem, porque eles são seus
próprios empresários;
b) os camponeses dispõem dos meios de produção, às vezes, in-
clusive da terra, enquanto orecuos assalariados não os possuem;
c) os camponeses costumam ser os menos instruídos que os
assalariados do campo;

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d) os assalariados do campo lutam principalmente por


reivindicações salariais, previdência social, férias etc. (Gon-
zalez Muñoz, 1966), enquanto os camponeses costumam
lutar para adquirir ou aumentar o pedaço de terra, por
assistência técnica e creditícia ou por melhores preços para
seus produtos.
No entanto, há outro traço de caráter estrutural que distingue
claramente os assalariados do campo (sobretudo da grande empresa
rural) dos camponeses. Este traço reside nos aspectos orgânicos que
assumem os movimentos propriamente camponeses e os movimentos
operários do campo.
Ao contrário dos camponeses, os assalariados do campo tendem
naturalmente à organização social, porque, além de trabalharem
socialmente organizados, operam dentro da complexa divisão social
do processo produtivo, característica da grande empresa capitalista
(Sereni, 1968). Esta, desde o momento em que contrata o operário
agrícola, lhe imprime uma consciência da eficiência da ação coletiva
na elaboração de um produto ou na realização de uma atividade ou
ação. Não se pode esquecer que centenas ou milhares de indivíduos
desempenhando inúmeras funções diferentes intervêm para pro-
duzir um cacho de bananas, uma arroba de algodão ou um quilo
de açúcar. Um operário não necessita participar de todas as fases
do processo produtivo para que o produto fique completamente
acabado.
A experiência demonstra que o simples fato de trabalhar em
grandes concentrações de indivíduos faz com que se acentue o na-
tural espírito gregário das pessoas (Editrici Sindicali Italiana, 1969).
Trabalhando em grandes coletividades, imediatamente, a tendência
do assalariado agrícola é a de atuar coletivamente; eis o porquê da
facilidade com que surge sua atuação coletiva, em forma de asso-

29

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ciação civil ou de sindicatos. Estas organizações surgem e atuam de


alguma forma, mesmo quando não conseguem autorização legal
para funcionar. Exemplos típicos disso são as grandes organizações
clandestinas que impeliram as greves dos assalariados agrícolas da
Cuyamel Company (1924) e Zukra Company (1926) na Nicarágua;
da United Fruit Company (1925 e 1954) (Martines Funes, 1965) em
Honduras (Martinez e Merino, 1965), da United Fruit Company de
Costa Rica (1934) (Gonzales, 1966) e de operários urbanos, rurais,
camponeses e de empresários de todo o Estado de Pernambuco
(greves gerais iniciadas em 9 de novembro de 1956 e 13 de março
de 1957 com uma semana de duração cada uma) (Morais, 1959).
Apesar disso, a tendência do operário em associar-se não constitui
o mais importante efeito de sua participação na grande empresa rural.
O essencial reside no nível da organização dos assalariados agrícolas,
que varia conforme o grau de divisão social do processo produtivo.
Se a empresa tem uma complexa estrutura de produção, seus ope-
rários também podem criar e desenvolver um mecanismo social de
complexa estrutura orgânica, com setores de produção, consumo,
transporte, educação, habitação, lazer, crédito etc.10
A complexidade da estrutura da associação de trabalhadores
agrícolas nem sempre depende de seu orçamento; depende sobretudo
do nível de organização alcançado por seus membros. Este nível,
por sua vez, varia conforme a composição social do grupo afiliado.
Ainda que se possa encontrar uma associação camponesa com
um bom orçamento, na maioria dos casos não passa de uma peque-
na estrutura que não vai além de uma seção de poupança e crédito.
Entre os operários agrícolas, há maior possibilidade que a organi-
zação tenha várias seções, por exemplo: de consumo, qualificação,

O Sindicato de Trabalhadores da Tela Railroad Co. (Sitraterco) em Honduras,


10

por exemplo, tem 108 sub-seccionais, as quais dirigem cerca de 12 mil associados,
segundo o Informe de Centroamerica (Cida/Cais,1969).

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comercialização, maquinaria, crédito etc., tudo isso com respeito às


organizações de consolidação social.11
Porém, quando se passa principalmente ao terreno das organiza-
ções de luta, se aprofunda mais ainda a diferença de comportamento
ideológico entre os operários agrícolas e os camponeses, especial-
mente se as organizações se criam ou se desenvolvem nos marcos
institucionais bastante adversos, que exijam clandestinidade ou vida
extralegal. Em tais circunstâncias, tem se observado que as ações dos
assalariados agrícolas se desenvolvem de maneira diferente daquelas
que possam desenvolver os camponeses e os estratos urbanos não
operários. A greve geral é a pedra de toque.12
A assembleia geral em que se decide a greve dos operários agrícolas,
do ponto de vista organizativo, é uma reunião muito mais produtiva
do que a de uma central camponesa convocada para o mesmo fim.
Sendo vitoriosa a decisão grevista, em questão de minutos os
assalariados agrícolas organizam toda a estrutura da greve. A Co-
missão Central se divide em numerosas comissões, que por sua vez
se subdividem em várias subcomissões de propaganda, alimentação,
transporte, comunicação; coordenação com todos os setores de tra-
balho da empresa; busca de solidariedade de outras organizações de
trabalhadores e de outros setores; luta contra os “fura-greve”, controle
de tarefas, coleta e distribuição de ajuda financeira etc.13

11
Veja-se adiante as organizações de luta e de consolidação ou estabilização social
na parte referente a alguns tipos de organização.
12
Foi o que se pôde observar em duas greves gerais do Estado de Pernambuco
(Brasil), descritas na obra citada; na greve geral camponesa de Mari, estado da
Paraíba, descritas no Suplemento Especial (Terra Livre, 1964) e na greve geral
rural de 18 a 23 de setembro de 1968 na Costa Norte hondurenha, descrita no
Informe Centroamérica (Cida/Cais, 1969).
13
Durante a histórica greve geral de 1954, em Honduras, os operários agrícolas
organizaram inclusive comitês de policiamento da ordem pública; comissões de
controle dos transportes terrestres, aéreos e marítimos; comissões de censura postal
telegráfica, “comitês de combate ao alcoolismo e a prostituição” (Aldana, 1969).

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Durante os dias da greve, apenas uma parte da Comissão Cen-


tral permanece na sede da organização dos assalariados agrícolas,
possivelmente uma Comissão Executiva. Os demais estão atuando
ao lado dos coordenadores de comissões e subcomissões em seus
respectivos setores de atividades.
A sede central da associação se encontra cheia de gente apenas nas
horas fixadas para a realização de assembleias gerais ou de reuniões
de controle das tarefas das comissões. Terminada a assembleia ou
reunião de controle, as pessoas se dirigem novamente a seus respec-
tivos postos de atividades grevistas e a sede central volta a ficar vazia.
Não acontece o mesmo entre os filiados de uma associação
camponesa em greve.
O tempo gasto na fase de discussão para persuadir a assembleia
para que se decida ir à greve pode ser muito menor que o tempo gasto
nesta mesma fase pelos operários agrícolas, sobretudo se aquele que
persuade os camponeses é seu líder carismático. Em alguns casos,
a assembleia termina aí na primeira fase. Todos se manifestaram
favoráveis à greve e não vão trabalhar no dia seguinte. Dissolve-se a
assembleia sem que nenhuma medida orgânica tenha sido tomada,
pois tudo o que deve ser realizado fica a cargo do líder.
E se, por acaso, a assembleia prossegue, surgem por vezes algumas
medidas organizativas: nomeiam-se algumas comissões de trabalho,
o comando central da greve, comissões de propaganda, de coleta e
distribuição de ajuda financeira; de luta contra os “fura-greve” etc.,
e só até aí, em geral, chega a estrutura orgânica da greve camponesa.
Mesmo assim, quase sempre estas comissões não geram subcomissões
e trabalham sem eficácia, porque seus membros passam a maior parte
do tempo enchendo a sede da associação, como o fazem também os
demais camponeses em greve.
A sede central está permanentemente repleta de pessoas infor-
mando-se do andamento da greve e tratando de se convencer mu-

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tuamente do êxito, pois somente na sede central, onde atua o líder


carismático e o comando central da greve, é que se supõe obter uma
visão mais ampla e mais complexa do universo grevista. Porque se o
camponês não está permanentemente informado do curso da greve,
se sente desanimado, inseguro do tipo de atuação coletiva que um
grande movimento grevista requer.14
Em uma greve de assalariados agrícolas, os integrantes da direção
ou das comissões e subcomissões trabalham com horários normais.
Já na greve camponesa, o líder ou os poucos diretores de uma ou
de outra comissão que consegue funcionar se esgotam de tanto
trabalho tentando abarcar todo o universo da greve para informar
continuamente à multidão de camponeses que permanecem todo o
dia e às vezes pela noite na sede central. Esta é, pois, a única forma
de manter a moral alta e a unidade dos grevistas camponeses.
De qualquer modo, a greve de uns poucos dias não representa
uma tarefa sumamente difícil para uma organização de filiados tipi-
camente camponeses. De fato, ela se resume bem mais em operações
de “boicote” de determinados produtos de primeira necessidade e
do bloqueio das estradas a fim de que tais produtos não cheguem às
feiras ou mercados urbanos.15
Na verdade, a coisa se complica quando se trata de uma greve
geral que abarca grandes extensões geográficas e milhares de tra-
balhadores camponeses. Estas magnitudes exigem coordenação e
algum planejamento das atividades dos grupos e organizações e, por
conseguinte, para realizá-lo, se exige uma estrutura orgânica comple-
xa à qual o camponês não está adaptado. Nas grandes organizações

14
Foi o que se observou na greve do movimento dos camponeses de Engenho da
Serra (Pernambuco), em março de 1964, descrita no jornal Liga (1964).
15
Desse modo se comportou o setor camponês na zona da mata de Pernambuco
durante a greve geral de 18 a 20 de dezembro de 1963, descrita no jornal Terra
Livre (1963).

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camponesas, onde a legislação vigente não lhes permite funcionar


senão em caráter extralegal, a preparação sigilosa do movimento
grevista se torna quase impossível, uma vez que o camponês se sente
inseguro dentro de uma estrutura orgânica complexa e, além disso,
clandestina.
Não que o camponês seja indiscreto, ao contrário, é extraordinaria-
mente discreto pela própria força dos interesses que gera o individua-
lismo das débeis economias de tipo familiar em franca concorrência
tanto na produção como na comercialização. Em muitos casos, o
camponês guarda dinheiro ou sua arma no colchão (quando os possui)
ou os enterra em segredo. Seus vizinhos e mais ainda os agentes fiscais
nunca são informados de quanto produz exatamente um camponês.
Mas a partir do momento em que ele passa a atuar clandesti-
namente, em conjunto com milhares de outros camponeses, suas
atitudes sofrem sensíveis mudanças.
Suas tarefas estritamente pessoais não são realizadas em abso-
luto segredo, pois discute antecipadamente com a esposa, com o
compadre ou com o companheiro de maior confiança. Inconscien-
temente passa as informações, e dessa maneira busca assegurar-se
do desenvolvimento geral da preparação grevista ou conspirativa,
cuja estrutura orgânica complexa e clandestina ele não consegue
perceber completamente.
Nos dias que antecedem à greve, o camponês não permanece
tranquilo em sua casa. Ele procura estar por várias horas onde mais
se concentram seus companheiros: na sede de suas associações ou na
feira. São lugares onde acredita obter informações sobre a preparação
grevista em questão. Inclusive a forma habitual de saudar os amigos
geralmente longa, prolixa e mecânica, nesta ocasião é trocada por
um cumprimento reticente e calculado.
– Que há de novo? Que me contas? − habilmente procura intei-
rar-se dos fatos desconhecidos.

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

O camponês nestes dias é um homem permanentemente in-


tranquilo, pois, acostumado a dominar inteiramente o mecanismo
estrutural simples da empresa familiar, se desassossega quando a
ação dos grupos o reduz à simples condição de peça, de engrenagem
que constitui a estrutura orgânica complexa, que clandestinamente
impele a preparação da greve com um processo de trabalho social-
mente dividido.
Quando o camponês ou o artesão rural ou urbano (de traba-
lho manual ou trabalho intelectual) se encontra à cabeça de uma
grande organização de massas rurais (não importa o caráter, seja
de organização de luta, seja de estabilização social), pode-se observar
novamente a incompatibilidade de concepções das estruturas orgâ-
nicas da pequena e da grande empresa. No caso de uma estrutura
orgânica complexa, os trabalhos de direção se resumem em quatro
elementos essenciais:
1. análise;
2. planejamento;
3. distribuição;
4. controle.
A análise corresponde à avaliação com olho crítico dos fatos ou fe-
nômenos examinados o máximo possível em seus mínimos detalhes.
O planejamento consiste em hierarquizar a ação, estabelecer
critérios de prioridade para os fatos considerados fundamentais.
A distribuição significa a repartição ou delegação às comissões,
subcomissões ou a indivíduos das tarefas fixadas no planejamento.
O controle implica comprovar o cumprimento das tarefas no
prazo ou calendário previamente estabelecido pelo planejamento.
Modificada ou não a realidade que anteriormente se analisou,
outra vez se inicia o novo ciclo dos quatro elementos essenciais de
direção.

35

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Clodomir Santos de Morais

Em contrapartida, na pequena empresa de produção simples, de


caráter familiar ou de caráter pessoal, se minimizam extraordinaria-
mente os elementos de direção. Pelo fato de dominar tão somente o
processo produtivo em que exclusivamente ele intervém, o camponês
ou o artesão não consegue analisar globalmente um projeto social
para planejar sua execução em detalhe.16
De fato, a análise é feita com autossuficiência sem buscar
maiores elementos de julgamento.17 Seu planejamento é primitivo
e simples, como o próprio processo produtivo que ele desenvolve
espontaneamente. Essa mesma circunstância o faz prescindir da
colaboração de outras pessoas na execução das tarefas. Finalmente
o controle é frágil e inexistente, uma vez que, na produção pessoal
do camponês ou do artesão, os sujeitos ativos ou passivos do controle
se confundem.18
Desse modo, quando os órgãos de direção de uma grande organi-
zação de processo produtivo socialmente dividido são assumidos pelo
camponês ou pelo artesão, imediatamente saltam aos olhos os fatores
de incompatibilidades estruturais que no futuro vão gerar atrofias
do desenvolvimento da mencionada organização.19 Tais fatores apa-
recem como vícios herdados de um processo produtivo simples, no
qual a autossuficiência prescinde da análise; o espontaneísmo exclui
o planejamento; e a distribuição é quase nula.20

16
“Laboratório Experimental”, 102 testes realizados nos 1º, 2º, 3º, 4º e 6º Curso
de Politização das Ligas Camponesas do Brasil, Recife e Engenho Tiriri
(Pernambuco), fevereiro e março de 1964.
17
Idem.
18
Idem.
19
Idem.
20
Os comportamentos ideológicos citados anteriormente não são, entretanto,
exclusivos do trabalhador manual próprio dos setores primários (agricultura,
mineração e pesca) e secundário (industrial). Eles podem ser observados no
setor terciário (serviços). Desse modo, por exemplo, um médico que trabalha
em um grande hospital supostamente terá um comportamento ideológico de
tipo operário, pois o hospital funciona como uma fábrica, ou seja, com divisão

36

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Daí a tendência à centralização de funções e a permanente


propensão de tomar para si tarefas que outras pessoas ou dirigentes
podem e devem realizar.21 Esta tendência impede claramente a capa-
citação na prática ou o aperfeiçoamento de auxiliares que poderiam

técnica do trabalho, isto é, com um processo produtivo socialmente dividido.


Efetivamente, o doente que chega ao hospital em busca de tratamento médico
recebe cuidado de numerosos “operários”, desde a recepcionista ao clínico
geral, passando pelos biólogos, analistas, o corpo de especialistas, cirurgiões,
anestesistas, ecônomos, faxineiros etc., até pelo motorista que, conforme o
caso, o leva de volta ao lar ou à funerária. Por isso, os intelectuais e cientistas
que trabalham em empresas hospitalares, igualmente aos assalariados agrícolas
e industriais, têm um comportamento ideológico de tipo operário. É o que se
pode inferir do alto nível de organização que apresentam as ações coletivas,
como a greve dos que trabalham em hospitais. Em contrapartida, o médico de
comportamento ideológico de tipo artesão é aquele que trabalha exclusivamente
em sua própria empresa, seu consultório. Ali não há divisão social do processo
produtivo: ele mesmo preenche a ficha do cliente, o examina, lhe indica os
medicamentos e em alguns casos pode até dá-los ou vendê-los, e até ministrar
a medicação no ato da consulta. O médico de comportamento ideológico de
tipo semioperário é, por conseguinte, aquele que exerce sua profissão na grande
empresa hospitalar e, ao mesmo tempo, atende doentes em seu consultório
particular. Apesar de que, no setor de serviços, o banco seja possivelmente a
empresa de divisão técnica do trabalho mais acentuada ou do mais marcante
processo produtivo socialmente dividido. Daí que os mecanismos de controle,
vigilância, disciplina e organização de empresas bancárias, nesses aspectos,
superam em alguns casos os níveis da própria empresa militar (o exército).
Embora não seja um trabalhador manual, o funcionário de banco apresenta um
comportamento ideológico de tipo operário, o que é facilmente verificável no alto
nível de organização de suas ações coletivas como, por exemplo, a greve bancária.
21
Além da tendência à centralização, o dirigente de comportamento ideológico
artesanal que está na direção de uma empresa de tipo grande (agrícola, industrial
ou de serviços) tende quase sempre a confundir as tarefas de produção com
suas tarefas específicas de direção, ou seja, de gestão. Em outros casos de
resistência à divisão social do trabalho, a referida tendência se manifesta
como atitude consciente de pessoas que consideram burocratismo “[...] não
realizar simultaneamente atividades produtivas e atividades administrativas”.
Evidentemente desconhecem que “[...] o progresso das forças produtivas, a
permanente reprodução ampliada, a crescente divisão do trabalho, a cooperação
de produtores que executam trabalhos parciais, tudo isso, além de elevar
constantemente o papel da gestão, conduz objetivamente para a transformação
do trabalho administrativo em um tipo especial de atividade, diferente da
produção propriamente dita” (Gvishiani, 1973, p. 44).

37

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dar continuidade ao trabalho de direção. Desse modo, vão concen-


trar-se em uma só pessoa as responsabilidades dos erros, trazendo,
em consequência, o desgaste e o inevitável desprestígio do dirigente,
afetando sem dúvida a unidade e a própria vida da organização.
Mesmo que o líder de origem camponesa permita uma ampla
distribuição das tarefas, isso surte pouco efeito, pela inexistência ou
pela ineficácia das medidas de controle, pois se sabe que as tarefas
sem controle não passam de boas intenções; cada qual as faz como
quer, quando quer e segundo a lei do menor esforço.
A superação desses vícios poderia ser conseguida pelo líder de
origem camponesa ou semioperária na medida em que assimila a
estrutura do processo produtivo socialmente dividido. Isso pode
ocorrer de três maneiras:
a) participando na grande empresa (agrícola, industrial ou
de serviços);22
b) compartilhando da direção ou das ações de grandes orga-
nizações de assalariados rurais ou urbanos;
c) ou submetendo-se a cursos especiais como o “Laboratório
Experimental” para a formação de quadros de organizações
de estruturas complexas.
Dessa maneira, acreditamos que fica clara a grande diferença que
existe entre as organizações de estruturas simples e aquelas organi-
zações de estrutura orgânica complexa. Como se viu, as estruturas
impõem algumas informações sobre a sociologia do conhecimento, já
que o ser humano apresenta um comportamento ideológico confor-
me a estrutura orgânica ou organizativa em que ele desenvolve suas

22
“Na manufatura a divisão do trabalho era predominantemente subjetiva.
Cada processo individual se adaptava à pessoa do operário; ao contrário, com
a mecanização, a grande indústria possui um organismo de produção objetivo,
que o operário encontra já pronto e ao qual, por conseguinte, deve adaptar-se”
(Kautsky, 1972, p. 181).

38

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

atividades. Tal comportamento ideológico reflete um determinado


grau de consciência do indivíduo.23
Quando alguém vai organizar um grupo social, deve sempre
escolher uma estrutura orgânica que corresponda ao universo cultural
do grupo. Desse modo, é imprescindível uma análise permanente de
sua composição social para que ela se ajuste à estrutura escolhida, e
este cuidado se faz mais necessário sobretudo quando se trabalha com
a camada intermediária dos semiassalariados (Morais, 1971, p. 85).

O semiassalariado agrícola
Entre os assalariados rurais e os camponeses latino-americanos
existe um tipo intermediário de trabalhador rural: os semiassalaria-
dos agrícolas. São camponeses pobres que, em algumas épocas do
ano, para complementar sua renda familiar, vendem sua força de

“Sendo um processo social por sua natureza, a consciência é, ao mesmo


23

tempo, a consciência do homem como indivíduo. A natureza e a sociedade se


refletem na mente humana tanto em forma de consciência individual como
nas diversas formas da consciência social. A consciência individual do homem
abarca os processos de apreensão da realidade por uma pessoa determinada e
a atividade consciente do homem em um e outro tempo. A consciência social
é a compreensão da realidade por uma sociedade ou classe determinada e as
peculiaridades da atividade consciente da sociedade em seu conjunto ou de
grupos sociais isolados. A consciência social reflete a existência social em forma
de ideologia e psicologia social. [...] A consciência, em seu desenvolvimento,
percorre uma série de etapas, desde a consciência de homens que trabalham
conjuntamente e que juntos possuem os meios de produção, passando pela
consciência que reflete relações sociais de propriedade privada, até a consciência
dos trabalhadores da sociedade socialista [...]. O sentido vital da consciência
não estaria justificado se não estivesse vinculado à conduta real do homem, à
sua atividade. Assim, pois, para compreender a natureza da consciência e as
peculiaridades específicas da atividade reflexa do homem deve-se caracterizar
o nexo da consciência com a atividade. [...] A consciência que surge da base
do trabalho e se forma no processo da atividade vital concreta do homem é a
reguladora da atividade humana. A própria atividade adequada a objetivos é onde
se revela, precisamente, o papel específico do reflexo consciente da realidade”
(Shorojova, 1963, p. 54; 81; 239; 243).

39

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Clodomir Santos de Morais

trabalho ao fazendeiro, ao sitiante ou a outro camponês. São, pois,


camponeses “diaristas” em alguns períodos do ano.
Também são semiassalariados aqueles trabalhadores assalariados
que vendem sua força de trabalho a algum empresário e que, para
complementar sua renda, em alguns dias do ano, do mês ou da
semana ou em determinadas horas do dia, se dedicam a trabalhar
como produtores individuais ou como parceiros.
Os semiassalariados rurais formam a camada social mais nu-
merosa na agricultura latino-americana, pois nela se inclui grande
parte dos assalariados agrícolas (peões, vaqueiros, capatazes etc.) e
dos camponeses pobres que se veem obrigados a assalariar-se tem-
porariamente.
A grande maioria deles apresenta atitudes e traços ideológicos
muito semelhantes aos do camponês: extremado interesse em tra-
balhar seu próprio e exclusivo pedaço de terra; difícil adaptação aos
mecanismos sociais de ação e produção coletiva etc.
Os semiassalariados agrícolas são fruto de infraestruturas econô-
micas baseadas, por um lado, em um incipiente capitalismo agrícola
incapaz de pagar salários que correspondam às necessidades de seus
operários; e, por outro, em uma paupérrima economia camponesa
desprovida de terras e crédito suficientes para se desenvolver e, por
isso mesmo, em franca decomposição.
Por esse motivo, ao contrário da maioria dos assalariados agrícolas
das grandes fazendas de banana e de cana, que lutam, sobretudo, por
melhores salários e condições de vida, os semiassalariados agrícolas
aspiram, preferencialmente, à obtenção de um pedaço de terra ou à
garantia da posse da pequena parcela cujo uso recebem como parte
de seu salário, já que é assim que conseguem complementar seus
rendimentos.
Em uma pesquisa realizada na Fazenda Nacional Chocolá (Gua-
temala), que é um expressivo exemplo da penetração do capitalismo

40

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

no campo, se comprovou que a maioria dos assalariados agrícolas


(peões, diaristas etc.) preferem uma parcela de terra a melhores
salários.
No caso dos assalariados agrícolas da Fazenda Nacional Chocolá,
eles não podem apresentar outra preferência, pois a milpa24 significa
para eles uma salvação, sobretudo pelo fato de ser grande o número
de trabalhadores daquela unidade de produção que passa a maior
parte do ano sem trabalho. Da milpa, a pequeníssima parcela de
terra que a fazenda lhes permite usar, eles tiram o milho para matar
a fome de seus filhos.
Dessa maneira a milpa funciona como o vínculo ideológico entre
as aspirações do camponês e do assalariado agrícola de Chocolá, tal
como ocorre com a parcela de terra que utiliza o colono salvadore-
nho, hondurenho, nicaraguense, o inquilino chileno do complexo
latifúndio-minifúndio.
Para eles, pois, a milpa, ou seja, o pedaço de terra, é a única
coisa que não lhes falha, e em Chocolá, os que têm direito a ela
são os que menos passam fome. A milpa é indiscutivelmente um
dos marcos essenciais das aspirações do colono, contudo, o que
isso implica: a liberdade nos hábitos agrícolas e a posse (mesmo
precária) da terra.

O lúmpen
O lúmpen é contra qualquer tipo de organização, especial-
mente se esta tem fins produtivos. Uma vez que, geralmente, se
sustenta ou subsiste às custas do esforço alheio, o lúmpen não
consegue entender claramente o trabalho como uma necessidade e,
muito menos, como um dever. Se em algum caso se deixa envolver
em ações de caráter organizativo próprias dos outros estratos, o

24
A tradução adaptada poderia ser “roça” ou parcela familiar. (N. T.)

41

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Clodomir Santos de Morais

lúmpen não o faz pela necessidade de produzir, e sim pelo desejo


de entreter-se ou apenas de subsistir. Qualquer empreendimento
ou ação organizados, para que consigam alguma contribuição ou
participação efetiva do lúmpen, quase sempre têm que apresentar
aparência de um passeio, de piquenique, de festa ou mesmo de
uma “farra”.

Adequação da estrutura com o comportamento ideológico


Nos programas de reforma agrária e de colonização que es-
tabelecem as empresas agrícolas ou novos sistemas de posse dos
fatores de produção, uma estrutura inadequada ao comportamento
ideológico dos grupos assentados pode determinar o fracasso da
participação social planejada. A recíproca também é verdadeira.
Algumas experiências têm demonstrado que o fracasso das grandes
e médias empresas rurais de produção cooperativista formadas por
trabalhadores agrícolas se deve, na maioria dos casos, a incompatibi-
lidades estruturais. Os fatores circunstanciais se nos afiguram como
sendo de importância secundária, já que podem ser mais facilmente
eliminados.
Vejamos os fatos. No momento em que o governo costa-riquenho
busca implementar um projeto de reforma agrária em um grande
pedaço de terra anteriormente pertencente à United Fruit,25 ele se
dá conta de que deve aproveitar as obras de infraestrutura (irrigação,
estradas, habitações, encanamentos etc.) já existentes. Assim se des-
carta a clássica ideia de parcelamento e se planeja uma cooperativa
de produção. No entanto, prevalece o sentimento humanitarista de
beneficiar os trabalhadores agrícolas mais necessitados de terra, os
camponeses pobres. Estes são recrutados em diferentes lugares e sele-

25
Projeto Baatán, posteriormente avaliado pelo Grupo Centro-americano de Posse
da Terra (Cida/Cais).

42

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cionados sob critérios de caráter circunstancial (se tem filhos, se não


é alcoólatra, se nunca esteve preso, se gosta de trabalhar na terra etc.).
Metidos, então, em uma cooperativa de produção na qual todos
tiveram que trabalhar como assalariados agrícolas, imediatamente
sobrevieram as manifestações de fracasso de tal iniciativa do Estado.
Imediatamente o governo busca reparar os erros. Os técnicos con-
seguem detectar os líderes do grupo camponês e são ministrados a
eles cursos de cooperativismo (os princípios de Rochdale,26 noções
de contabilidade etc.). Enquanto isso, assistentes sociais lhes incul-
cam princípios de desenvolvimento comunal e de defesa sanitária.
Contudo, a nova empresa continua afundando-se no fracasso, que,
em seguida, é atribuído à vadiagem das pessoas ou à desonestidade
dos líderes e funcionários da cooperativa. Por fim, atendendo-se a
alguma ideia lúcida, se admite que, em área próxima, cada sócio
cultive de modo independente seu pedacinho de terra. Se junta, pois,
à empresa agrocomercial, a economia de subsistência da milpa ou
do cerco do complexo latifúndio-minifúndio chileno. Porém, nem
assim se consegue deter a marcha do fracasso.
Na verdade, a empresa familiar (a milpa) progride rapidamente,
enquanto fracassa a grande empresa, a cooperativa de produção,
com a redução da produtividade e com o abandono das obras de
infraestrutura e serviços comunitários.
O Projeto Baatán padece, pois, do erro de querer impor a estru-
tura orgânica complexa de grande empresa a um grupo de campo-
neses que dominam apenas a estrutura simples da empresa familiar.
Vejamos agora a recíproca.
Na mesma época em que se constata a decadência de Baatán, 84
ex-operários da United Fruit (em 1965) resolvem formar também

26
Sete princípios para o cooperativismo elaborados a partir da experiência realizada
na cidade de Rochdale, na Inglaterra, no século XIX. (N. E.)

43

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uma cooperativa de produção,27 em um pequeno pedaço de terra (500


hectares) devolvido ao Estado hondurenho pela “Bananera”. Todos
trabalham como assalariados. Em dois anos, a cooperativa consegue
dois tratores, uma debulhadeira de milho e crédito institucional. O
governo hondurenho, desejando que a experiência se ampliasse para
absorver o problema social da área, em 1967, solicita do Grupo Cen-
tro-americano de Posse da Terra (GCTT)28 a elaboração do “Projeto
de Desenvolvimento Socioeconômico das Guanchías”.
O projeto estabelece a estrutura orgânica complexa de pro-
dução coletivista e processo produtivo socialmente dividido. A
primeira instituição de crédito internacional selecionada rejeita o
financiamento do Projeto Guanchías, alegando que o processo de
produção coletivista lhe “cheira a comunismo”. Enquanto se negava
o crédito (um ano e meio), os ex-operários agrícolas da United Fruit
continuaram progredindo, organizaram uma fábrica processadora
de bananas para 4 mil unidades semanais, uma empacotadora de
bananas para 35 mil cachos anuais e uma outra para 535 mil cachos
anuais. Em 1969, a média familiar de utilização de mão de obra al-
cança 3,5 pessoas, esgotando-se a força de trabalho disponível entre
as famílias associadas.
A renda anual familiar líquida foi de 1.834 dólares e a renda per
capita de U$ 364,80, excluindo-se os excedentes da cooperativa.
Em 1969, os dois tratores de 1967 se transformaram em nove, além
de 64 armazéns.
A experiência da Cooperativa Guanchías Ltda. foi tão convincen-
te que logo depois, em 1968, surgiram ao seu redor as cooperativas de
produção coletivista Agua Blanca Sur, Buenos Amigos, La Lourdes
e Auxiliadora. Todas trabalhavam nos moldes de grande empresa,

Cooperativa Guanchías Ltda.


27

Grupo Centro-americano de Posse da Terra (GCTT), formado por agências


28

das Nações Unidas e Sieca.

44

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

ou seja, de estrutura orgânica complexa. Estas cinco cooperativas


totalizavam 353 associados, 13 tratores, e trabalhavam 1.184 hec-
tares, e no ano de 1969 movimentaram créditos de meio milhão de
dólares (896,147 lempiras). Em 1971, em Honduras, funcionaram 59
empresas camponesas pelo “modelo Guanchías”, e utilizaram mais
de 2 milhões de dólares em crédito convencional.
Bem ali, ao lado delas, agonizava a cooperativa La Subirana
Ltda., organizada em 1958 e baseada no parcelamento. Sem que
fosse levado em conta o comportamento ideológico do grupo, foram
divididos 4 mil hectares entre 150 ex-operários agrícolas da United
para que eles desenvolvessem a empresa de tipo familiar. Fracasso
completo. Os parceleiros alugam suas glebas (de 40 a 150 acres) e vão
trabalhar como diaristas nas grandes empresas vizinhas, inclusive nas
cooperativas anteriormente citadas. Como se pode ver, a experiência
da cooperativa La Subirana teve igual destino da Cooperativa Baatán
na Costa Rica.
A causa do fracasso, nesse caso, foi a incompatibilidade da estru-
tura orgânica proposta (artesanal camponesa) com o comportamento
ideológico do grupo de assentados (operários agrícolas). Em Baatán
ocorreu o diametralmente oposto: incompatibilidade do compor-
tamento ideológico (artesanal-camponês) com a estrutura orgânica
proposta (complexa de grande empresa).
Os êxitos são verificados nas experiências em que se ajustaram
as estruturas orgânicas com os comportamentos ideológicos dos
assentados. Na Cooperativa Guanchías e de certo modo na Colônia
Catacamas,29 cujos parceleiros, em grande proporção, são oriundos
de área de economia camponesa (algumas do tipo pré-colombiana)
das zonas centro-orientais de Honduras. Também as cooperativas de

Projeto de Desenvolvimento Socioeconômico da Colônia Agrícola Nacional de


29

Catacamas, Honduras (Grupo Centro-americano de Posse da Terra, 1968).

45

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poupança e crédito dos camponeses centro-americanos costumam


ter êxitos.30 Tudo indica que isso é consequência do fato de que para
sua operacionalização, em geral, se utiliza uma estrutura orgânica
simples, baseada quase que exclusivamente no líder que exerce as
funções de presidente, tesoureiro etc.
As organizações de produtores
Em relação a seu caráter, classificamos as organizações produ-
toras em dois grupos: as organizações de luta e as organizações de
consolidação social.
As organizações de luta são aquelas que se propõem a reivindicar
direitos e benefícios ainda não consagrados nos institutos legais vi-
gentes no país ou na área. São organizações que atuam como instru-
mentos de conquistas sociais. Um sindicato ou uma Liga Camponesa
podem ter este caráter conforme o país ou a área em que atuam.
As organizações de estabilização social são aquelas que buscam
fazer uso de direitos ou de benefícios já consagrados ou reconhe-
cidos nos marcos institucionais vigentes. Os condomínios31 e as
cooperativas em geral estão incluídas neste grupo. As organizações
de consolidação social são as que contribuem para a estabilização
do status quo.
Elas nem sempre atuam para uma mudança estrutural. Mas
uma cooperativa ou um condomínio podem perder o objetivo de
consolidação social e assumir o caráter de organismo de luta. Basta
o simples fato de atuarem em uma área hostil (em que os latifundiá-
rios não queiram que os camponeses se reúnam, se associem) para
que se transformem em organismos de luta, desempenhando desse
modo um papel de instrumento de mudanças. Uma cooperativa
que passa a trabalhar em prol de benefícios ainda não aceitos nem

30
Memória Anual da Federação Autônoma de Cooperativas de Poupança e
Crédito de Honduras (FACACH) Tegucigalpa, 1968.
31
Também poderia traduzir-se por associação. (N. T.)

46

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

consagrados pela estrutura de poder local assume imediatamente o


caráter de órgão de luta.
De modo que o determinante do caráter da organização de
luta ou de consolidação social é o grau de contradição existente
entre o programa ou os objetivos das organizações com os marcos
institucionais vigentes. A organização acomodada ao contexto
político e administrativo prevalecente desempenha apenas o
papel de instrumento de estabilização social e, por conseguinte,
de consolidação do status quo. As organizações de luta, as que
podem promover as mudanças nas sociedades, são aquelas cujos
programas de trabalho ou seus próprios conteúdos estabelecem
relações conflitivas com o status quo. Dessa forma, não importa o
tipo de organização ou mesmo o seu nome, pois seu caráter está
determinado pela agressividade do meio social em que ela atua.
Um sindicato, em alguns países, regiões ou municípios da América
Latina, pode se constituir em uma organização de luta, enquanto
na Europa ou nos Estados Unidos pode não passar de uma simples
organização de consolidação social com a finalidade de estabilizar
o sistema político ou econômico preestabelecido.
Como se trata de mecanismos destinados a consolidar um sta-
tus quo, as organizações tipicamente de estabilização social podem
ser também utilizadas taticamente para consolidar uma etapa de
desen­volvimento de uma organização de luta. Por exemplo, as Ligas
Camponesas do Brasil, no começo de sua existência, tiveram que criar
uma espécie de associação escolar, forma como conseguiu consolidar
o movimento numa etapa ainda embrionária. Outras sucursais das
Ligas surgiram em forma de sociedades funerárias ou de ajuda mútua.
Casos idênticos têm ocorrido entre as numerosas Ligas Camponesas
que se organizam na Venezuela.
A Associação Nacional de Camponeses Hondurenhos (Anach),
que é uma organização de luta, também tem se utilizado de orga-

47

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Clodomir Santos de Morais

nizações de estabilização social para consolidar o desenvolvimento


de suas subseccionais.
Assim, por exemplo, em 1968 a subseccional de Mezapa (Muni-
cípio de Esparta, Departamento de Atlântida), objetivando motivar
melhor seus filiados e neutralizar a hostilidade dos latifundiários,
teve que criar uma pequena cooperativa de produção. Esta tática
está sendo aplicada em outras sucursais da Anach, como as de Aldea
de Brun (Município de Cortés), Hicaque e Triunfo da Federação
Camponesa da Guatemala, e a Associação Camponesa Social Cristã
de Honduras, que atua no Golfo de Fonseca. Todos esses exemplos
também mostram que as organizações de estabilização são usadas
para assentar as bases ou para consolidar o desenvolvimento dos
núcleos camponeses organizados ou em fase de organização.
Por conseguinte, entre as grandes organizações de luta do se-
tor rural continua havendo uma espécie de preconceito contra as
organizações de estabilização social, sobretudo das cooperativas de
consumo e de poupança e crédito.
Muitos dirigentes resistem em acoplar as novas organizações
de estabilização social às organizações de luta, temendo que isso
reduza a combatividade dos camponeses, tornando-os acomodados
aos pequenos resultados ou incentivos materiais que geram as orga-
nizações de estabilização social.32 Não é estranho, pois, que entre
as centenas de Ligas Camponesas da Venezuela quase não existam
organizações de estabilização social. O mesmo ocorria há alguns
anos com as centenas de Ligas Camponesas do Brasil. Observa-se,
então, que somente na fase de consolidação é que as organizações

32
O melhor retrato dos aspectos sociais do camponês típico se encontra no livro
do ganhador do Prêmio Nobel polonês Wladyslaw Reymont, Os camponeses
(1957), enquanto o retrato da economia camponesa está no famoso trabalho
de Alexandre V. Chayanov, A organização da unidade econômica camponesa
(1974). No entanto, no âmbito da Economia Política, coube a Karl Kautsky o
melhor trabalho sobre os camponeses em A Questão Agrária (1974).

48

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

e movimentos de luta buscam afirmar-se utilizando as organiza-


ções de estabilização social. Uma vez adulto o movimento, já não
necessita delas e, de preferência, buscam evitá-las, em função dos
preconceitos referidos anteriormente (Reymont, 1957; Chayanov,
1974; Kautsky, 1974).

A empresa
Entende-se por “empresa”, nesse caso, toda e qualquer ação rea-
lizada por várias pessoas e de forma organizada. Essa ação poderá
durar uma hora, um dia, um mês, um ano, um século ou mais.
Ou seja: uma empresa pode ser um comício ou uma manifestação
preparada para ser realizada em uma hora; uma festa religiosa ou
um ato cívico que pode durar um dia, uma greve que poderá durar
um mês; a derruba, o destacamento, capinas e colheitas de vários
cultivos que poderão durar um ano; uma guerra que poderá durar
dez anos, uma revolução que pode prolongar-se por várias décadas;
ou a empresa da colonização espanhola que se prolongou por mais
de três séculos. Tudo isso é considerado empresa e, conforme as
finalidades que buscam, podem ser militares, agrícolas, industriais,
comerciais, de serviços etc.
Certamente a empresa militar – o Exército – tem sido, na maioria
dos povos do mundo, a primeira empresa que aparece. É em geral
a empresa mais antiga e a primeira que incorpora assalariados, ou
seja, que recebem soldos; daí, o soldado. Pelo fato de ser a empresa
maior, acredita-se que seja a mais eficiente; e por isso lhe entregam
façanhas especiais.
Desse modo, as empresas podem ser estatais, isto é, são admi-
nistradas e orientadas pelo Estado, segundo os interesses das classes
que dirigem o Estado; podem ser privadas, ou seja, as empresas nas
quais a orientação e a administração fazem com que as utilidades,

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Clodomir Santos de Morais

os lucros, caibam totalmente aos poucos que são donos dos fatores
de produção (terra, capital, tecnologia), não lhes importando a sorte
dos muitos que contribuem apenas com o trabalho; podem também
ser empresas comunitárias, nas quais todos os associados trabalham
e todos gozam dos frutos, porque nesse tipo de empresa os sócios
são os donos dos fatores de produção, orientam e fiscalizam sua
administração.
Os graus de consciência
São três os graus de consciência dos grupos sociais.33 O grau de
consciência ingênua, o grau de consciência crítica e o grau de consciência
organizativa. No primeiro caso, referente à consciência ingênua, os
indivíduos se dão conta de seus problemas ou de sua miséria, mas não
chegam a identificar os fatores responsáveis, ou seja, as causas.34 Em

33
“A formação da consciência está ligada diretamente à ampliação dos laços
produtivos e sociais, ao aumento das necessidades humanas, condicionadas
socialmente, e o desenvolvimento dela (a consciência) avança desse modo,
pela linha da formação e aperfeiçoamento do pensamento abstrato e lógico,
condicionado pela exigência de um posterior desenvolvimento da prática social e
produtiva, pela necessidade de penetrar na essência das coisas” (Sombart, 1966,
p. 110). Não foi por acaso que Sombart admite que foi necessário o desenvolvimento
da Economia Mercantil para que se criasse no séc. XIV a Contabilidade por Partida
Dobrada (com seu caráter “sistêmico” de entrada e saída), em razão da qual o
homem pode tomar consciência ou noção de sistema (Sombart, 1966), e desse
modo nela se descobrem “os germens do conceito de gravitação e da circulação
do sangue que coube a Copérnico e a Harvey, respectivamente, desenvolver nos
séculos subsequentes” (Sombart, 1966, p. 138).
34
Supõe-se que o grau de consciência ingênua se manifesta entre os indivíduos
dedicados ou vinculados à produção de valores predominantemente de uso, ou
seja, a produção para o consumo, enquanto a consciência crítica emerge entre os
indivíduos que estão inseridos no âmbito da produção e circulação mercantis.
Karl Kautsky estabelece essa diferença, grosso modo, entre o artesão (camponês,
artista, artesão) e o comerciante. Ao primeiro atribui “certa limitação mental”,
determinada pela “limitação especial do trabalho em que está empenhado”. Uma
vez que ele está quase que exclusivamente “interessado na natureza peculiar de
seu trabalho (trabalho útil concreto), na peculiaridade do material que tem que
manipula. [...] Enquanto as atividades do comerciante produzem nele um efeito
completamente diferente do que produzem as do artesão”. Apesar do “grande
valor dos produtos e do mercado em que esteja relacionado, o comerciante se

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

geral, atribuem sua miséria e seus problemas a um fatalismo, à natureza,


à vontade de alguma divindade, a Deus. Chegam a imaginar que os
pecados dos homens ou o destino de cada um determina sua miséria.
Nesses casos, muitos dos grupos humanos buscam a solução de seus
problemas na morte, na vida eterna ou na resignação sistemática. No
segundo caso, a consciência crítica, os indivíduos já identificam os
fatores responsáveis por seus problemas, por sua miséria. Identificam
a má distribuição dos recursos (terra, capital etc.); identificam os lati-
fundiários, os fazendeiros, a polícia e o Estado como elementos sociais
que os agridem. Até aqui o grau de organização continua sendo frágil
e quase não existe. As reuniões se resumem a denúncias, protestos,
insultos e medidas de revoltas não estruturadas em organização.
Mas apenas quando os grupos com um grau de consciência crí-
tica experimentam durante muitos anos a ineficácia de suas formas
artesanais de organização ou, ainda, quando recebem dos operários
das grandes empresas a consciência organizativa, é que eles conse-
guem criar estruturas orgânicas eficientes e capazes de responder
aos objetivos do grupo.
Porém, se é certo que o surgimento e a magnitude da consciência
organizativa são diretamente proporcionais ao grau de divisão téc-
nica do trabalho (divisão social do processo produtivo), seu grau de
eficiência, no entanto, é determinado pelo nível de desenvolvimento
do marco econômico que varia desde a economia natural até a etapa
em que os meios de produção e a força de trabalho se transformam

interessa, em última análise, apenas pelas condições dos preços; em outras


palavras, nas condições das várias quantidades de trabalho humano abstrato,
ou seja, nas relações numéricas abstratas”. Por conseguinte, o comércio tem
que estimular o pensamento matemático e ao mesmo tempo o pensamento
abstrato. Não é “a agricultura e o artesão (cujo êxito está estritamente limitado
pela capacidade individual) e sim o comércio (cujo êxito não conhece limites)
que desenvolve aquelas faculdades mentais que constituem a base do estudo
científico” e acrescenta: “a filosofia se desenvolveu unicamente nos grandes
centros comerciais” (Kautsky, 1978, p. 184, p. 186).

51

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Clodomir Santos de Morais

em mercadorias que dão forma à empresa de tipo grande, ou seja, a


empresa capitalista.
De fato, é a empresa capitalista que permite a passagem da ati-
vidade tradicional e costumeira para a atividade lucrativa racional,
cujo objetivo único e exclusivo é a obtenção de receitas monetárias.
Isso impõe uma especial estruturação dos objetivos, os quais se
submetem a um único fim, o ingresso em dinheiro. Está claro que a
visualização de um único objetivo conduz naturalmente à utilização
racional dos meios para alcançá-lo, e deste modo o indivíduo passa
a distinguir facilmente o fundamental do secundário, conseguindo
sistematicamente hierarquizar as ações.35 O grau de desenvolvimento

Oskar Lange, no capítulo sobre Praxeologia (Lange, 1976), abrange os três


35

graus de consciência (ingênua, crítica e organizativa) na análise dos elementos


materiais que corroboram sua configuração. Tais elementos materiais
considerados por Lange, são: a) a atividade econômica tradicional e habitual,
própria das economias domésticas e camponesas; b) a atividade lucrativa que
aparece com a economia monetário-mercantil e evolui gradativamente para; c)
o tipo de atividade racional (quando se configura a grande empresa capitalista),
cujo marco organizativo complexo impõe tanto a racionalidade objetiva
como a metodológica. Para entender o que Mikhailov denomina “a essência das
coisas”, Lange primeiramente estabelece uma divisão da atividade econômica em
atividade doméstica e atividade lucrativa; explica que, “na economia monetário-
mercantil, tanto o fim como os meios da atividade lucrativa rompem com a
tradição. A atividade lucrativa, afirma, vem a ser uma atividade baseada no
raciocínio, se transforma em uma atividade racional. “A passagem da atividade
econômica tradicional e habitual (em cujas formações sociais pré-capitalistas
domina a economia natural) para a atividade econômica lucrativa racional,
ou seja, a racionalização da atividade econômica, se efetua progressivamente,
à medida que vão se desenvolvendo as relações mercantis e monetária” (Lange,
1976, p. 143). Lange acrescenta que, no domínio da produção e da distribuição,
a atividade tradicional permanece apenas na economia camponesa, naquelas
que mesmo sob regime capitalista mantêm elementos de economia natural
em grande medida, e acrescenta mais adiante que “a atividade costumeira e
tradicional continua prevalecendo no âmbito da economia doméstica, tanto
no modo de produção capitalista como no socialista” (Lange, 1976, p. 180). A
diferença entre a economia doméstica e a atividade para o lucro (que consiste
em produzir mercadorias, assim como em vendê-las e em revendê-las, figurando
entre elas a força de trabalho), segundo Lange, está nas duas diferentes estruturas
dos objetivos buscados: a) “na economia doméstica, os objetivos da atividade

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

da consciência organizativa o conduzirá à racionalização metodológica


e, por conseguinte, ao manejo da categoria econômica dos resultados
que, finalmente, responderá pela eficiência das ações.36

continuam estando diretamente determinados pelas necessidades” (Lange,


1976, p. 140); b) enquanto na atividade para o lucro, há um único e exclusivo
objetivo, a obtenção de entradas de dinheiro.
36
“O desenvolvimento de uma estrutura dos objetivos da atividade econômica
torna impossível a manutenção integral de caráter tradicional desta atividade.
Com relação aos fins, o caráter costumeiro e tradicional pode se manter e, em
geral, se mantém dentro da atividade doméstica, porque nela tais fins estão
determinados pelas condições tradicionais de cultura, status social e seu
correspondente ‘estilo de vida’. Os fins da atividade lucrativa, ao contrário,
impõem-se de forma inevitável pelas relações econômicas da relação mercantil
e das trocas monetário-mercantis. A obtenção de uma entrada em dinheiro
mercantil é uma necessidade econômica independente das tradições culturais
de uma sociedade. [...] Na economia natural existe grande diversidade de
fins paralelos, assim como uma grande diversidade de meios; certos meios
estão adaptados de forma específica a fins definidos (por exemplo, o pão para a
alimentação) outros podem servir para fins variados (por exemplo, a madeira para
construção de casas, para a fabricação de veículos, para a construção de pontes
ou para calefação). Esta estrutura complicada de fins e de meios se estabelece pela
tradição e chega a ser o objetivo de uma atividade tradicional e consuetudinária
[...]. Por outro lado, acrescenta Lange, “o fato de que na atividade para o lucro
o fim seja único e, além disso, absolutamente necessário, e que todos os meios
estejam subordinados a este fim único, simplifica a atividade ao torná-la fácil de
analisar. A integração dos meios pelo fim da atividade lucrativa os arranca da
engrenagem da tradição e do costume, pois esta integração exige que a utilidade
de um meio determinado seja avaliada sempre do ponto de vista do fim da
atividade para o lucro, ou seja, da obtenção de uma entrada em dinheiro [...]. A
atividade lucrativa vem a ser uma atividade baseada no raciocínio, se transforma
em uma atividade racional [...]. Distingue-se, além disso, duas espécies de
ações racionais: a racionalização objetiva e a racionalidade metodológica. A
primeira se manifesta quando a escolha dos meios corresponde à situação
verdadeira, a que existe objetivamente. A racionalidade objetiva da atividade, é,
pois, sinônimo de eficiência. A racionalidade metodológica significa que a ação
é racional do ponto de vista dos conhecimentos adquiridos pelo sujeito que atua;
dito de outra forma, significa que a inferência lógica que decide pela escolha
dos meios é correta no marco dos conhecimentos do sujeito, bem entendido,
que deixa de lado a questão de saber se estes conhecimentos correspondem
ou não com a situação objetiva [...]. De todo modo, somente a racionalidade
metodológica constitui uma propriedade da ação considerada como modo de
comportamento; a racionalidade objetiva, ao contrário, se refere à adequação
do conhecimento em que se baseia tal atividade” (Lange, 1966, p. 141).

53

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Clodomir Santos de Morais

A unidade e a disciplina
A base de sustentação de qualquer empresa reside na uni-
dade e na disciplina. Pode ser que uma empresa associativa não
disponha de crédito; que a seca ou o furacão destrua seus cultivos;
que seja cancelada sua personalidade jurídica; porém, se a unidade
e a disciplina de seus associados são mantidas, a empresa continuará
existindo e buscará a forma de seguir adiante.
A unidade em uma empresa é tão importante que para
mantê-la os associados devem admitir este insólito princípio de
organização: é preferível errar com a empresa que acertar fora dela.

54

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III. VÍCIOS (OU DESVIOS
IDEOLÓGICOS) DETERMINADOS
PELAS FORMAS ARTESANAIS DE
TRABALHO

Toda empresa tem inimigos: a empresa agrícola, a industrial, a mi-


litar (um exército), a política (um partido ou um sindicato), a empresa
de serviços (um ministério), a desportiva (uma equipe de futebol) etc.
Em toda empresa existem inimigos externos e internos. Na empre-
sa de serviços, na empresa de produção (agrícola ou industrial), seus
integrantes identificam facilmente os inimigos externos da empresa:
o fazendeiro, algum político atrasado, um padre reacionário, um
parceleiro individualista, o caminhoneiro, o agiota etc.
Estes inimigos externos agem sempre no sentido de desintegrar e
finalmente eliminar a empresa coletiva. A ação dos inimigos externos
(igual à ação dos inimigos internos) está sempre dirigida contra dois
elementos fundamentais de qualquer empresa: a unidade e a discipli-
na. São fundamentais porque, a partir da ruptura da unidade e da
disciplina, começa a se desintegrar a empresa.
O que os associados de uma empresa coletiva ou associativa ge-
ralmente não conseguem identificar facilmente é o inimigo interno
ou os inimigos internos da empresa, vez que esta identificação exige
alguma análise e conhecimento de mecanismos apropriados.
Os inimigos internos de uma empresa associativa, e mais ainda
na empresa política, se identificam nos vícios das formas artesanais
de trabalho,37 que se manifestam minando pouco a pouco a unidade

37
De acordo com Marta Harnecker, “os métodos artesanais de trabalho, tudo
que fazem é, por um lado, desperdiçar as forças que existem, e por outro,
não aproveitar uma grande quantidade de forças que se pode pôr em ação.

55

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Clodomir Santos de Morais

e a disciplina. Tais vícios são herdados das formas artesanais de tra-


balho predominante nas sociedades de desenvolvimento econômico
incipiente, baseada em pequenas empresas ou em empresas de tipo
familiar de pouca divisão social do trabalho.
Os vícios das formas artesanais de trabalho que incidem contra
a unidade e disciplina da empresa coletiva, quanto a seu caráter ou

A divisão do trabalho dentro da própria organização permite aproveitar


melhor as forças e os recursos disponíveis. Mas não é apenas isto, e sim que,
quanto mais diversificados são os trabalhos dentro da obra comum, mais fácil
será encontrar pessoas capazes de executar cada um deles. O importante é
que cada militante seja capaz de desenvolver seu trabalho parcial dentro do
grande trabalho coletivo (nome que se dá ao conjunto de trabalhadores da
empresa moderna que realiza diferentes funções parciais dentro do processo
de produção) que é o partido operário. Ou seja, deve saber integrar sua tarefa
parcial ao trabalho de conjunto do partido. [...] Por outro lado, existem
inumeráveis tarefas parciais que podem ser desempenhadas por representantes
das mais diversas classes que, mesmo que jamais venham a ser militantes do
partido operário, estão dispostos a realizar tarefas de apoio à organização
que são muito importantes [...]. Porém, não é conveniente a especialização de
funções apenas entre os próprios militantes e simpatizantes da organização.
É importante que os comitês locais se encarreguem também de tarefas
específicas, conseguindo especializar-se em alguma função prática. [...] A
única forma em que a direção central pode deixar de ser um organismo no
qual só se discute, se aconselha e se convence para passar a ser efetivamente
quem rege a orquestra, é necessário que se saiba exatamente quem toca cada
instrumento, em que lugar, quem ensinou e como aprendeu usá-lo, onde e
como o faz, quem é responsável e quem deverá substituir quando a orquestra
começar a tocar mal [...]. Dentro das grandes linhas da divisão do trabalho
entre os militantes do partido operário deve-se distinguir as seguintes tarefas:
a) tarefas de elaboração e discussão teórica; b) propaganda; c) agitação; d) e
organização” (Harnecker, 1977, p. 50). No entanto, em outras empresas de
tipo político ou de caráter operário, seus militantes costumam considerar
uma divisão social do trabalho baseado nas seguintes atividades: a) tarefas de
elaboração e discussão teórica a cargo de um secretário ou de um organismo
(secretaria ou comissão) essencialmente político; b) tarefas de agitação e
propaganda a cargo de agitprop (nome com que tradicionalmente se denomina
o organismo especializado em animação e comunicação de massas); c) tarefas
de formação e aperfeiçoamento de quadros a cargo do organismo de educação
política; d) tarefas de mobilização de recursos materiais a cargo do organismo
de finanças, e) tarefas de desenvolvimento e de reprodução do organismo a
cargo de um secretário ou de uma comissão de organização.

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

origem, se classificam em oportunistas e subjetivistas. No primeiro


caso, o caráter oportunista do vício se manifesta como um reflexo
de uma subideologia gerada pela propriedade privada dos meios
de produção. No segundo caso, o caráter subjetivista do vício se
manifesta como um reflexo de uma subideologia gerada pela visão
idealista determinada pelas formas artesanais de trabalho. É certo que
também existem vícios ou desvios ideológicos gerados pelas formas
sociais de trabalhos inerentes ao modo de produção capitalista e ao
modo de produção socialista que, no entanto, não estão previstos
para serem tratados neste ensaio.
Mesmo quando se trata de pessoas integradas em empresas de
tipo grande e de ampla divisão social do processo produtivo, elas não
estão totalmente imunes ou preservadas dos vícios que definem o
comportamento ideológico gerado pela empresa de tipo artesanal. E
que notadamente nos países ou regiões de incipiente desenvolvimento
econômico, predominam as empresas pequenas, de dimensão fami-
liar; enquanto muitos países ou regiões desenvolvidas ainda guardam
intactos os aspectos principais do comportamento ideológico imposto
pela empresa artesã. Trata-se do comportamento humano gerado
em empresas pequenas de tamanho familiar (o que evidentemente
inclui a própria empresa doméstica – o lar), as quais não desenvolvem
fundamentalmente atividades econômicas racionais (em atividades
lucrativas), senão que se reduzem ao marco da atividade costumeira
tradicional, alheias ao princípio básico da racionalidade econômica
que busca maximizar os resultados econômicos mediante a quanti-
ficação do fim e dos meios da atividade de caráter lucrativo.
Por outro lado, nascida antes do aparecimento da economia mer-
cantil, a empresa doméstica por seu caráter, e ainda por suas dimensões,
comporta pouca divisão social do trabalho e muito menos ainda a
divisão técnica do trabalho (divisão social do processo produtivo).
O cabeça da família quase não se difere do mestre artesão da Idade

57

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Clodomir Santos de Morais

Média. Este se apropria do “produto a mais”38 de seus discípulos e o


cabeça da família faz o mesmo, seja no marco da economia natural
seja na economia mercantil simples. Desse modo (no caso de estar
situado na economia mercantil capitalista), acrescenta à apropriação
do sobreproduto do cônjuge e dos filhos que explora a reposição social
e biológica da força de trabalho.

Exemplos de alguns vícios determinados pelas formas


artesanais de trabalho

Individualismo39
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O individualista é o sujeito oportunista que acredita apenas no
indivíduo e sempre o coloca em plano superior à organização. Sem-
pre desconfia ou não acredita na ação organizada; age sozinho e não
gosta de associar-se. Seu lema é “cada qual para si e Deus para todos’’,
ao contrário do lema “cada qual com seu Deus e todos por todos’’.

Tradução de plus-produto. (N. T.)


38

Álvaro de Farias, conhecido pensador e ideólogo brasileiro, em sua definição do


39

individualismo, o considera uma “expressão de afirmação biológica dos homens”


(afirmação dentro da própria espécie) resultante da alienação do trabalho. Esta
aparece “quando os homens substituíram suas relações materiais no mundo
natural, buscando a segurança coletiva, pelas relações no mundo das cidades,
buscando a segurança pessoal não contra feras e sim, contra homens. [...] O
individualismo, como expressão de afirmação biológica dos homens e da realidade
deles, como matéria viva”, acrescenta, “não iria, pois, surgir por acaso no curso da
história. Com bases assentadas no que há de mais profundo em biologia, elevada
ao nível da biologia das espécies socialmente organizadas, o individualismo iria
instalar-se e consolidar-se nos setores mutantes da espécie e iria, nessa história,
exercer o comando por vários milênios” (Farias, 1971, p. 152-153).

58

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Ao defender o indivíduo, o individualista tem presente a defesa de


seu próprio interesse. Nas reuniões ou assembleias, não ouve ninguém
e se considera uma pessoa com direito de falar por longo tempo.
Pelo fato de a ação organizada implicar a distribuição equitativa de
sacrifícios e prazeres, o individualista não gosta que se organizem as
ações. Nas reuniões em que se divide o tempo democraticamente, para
que todos tenham direito de expressar suas opiniões, o individualista
não tem muita oportunidade de usar muito tempo para conduzir
as coisas conforme seu interesse pessoal, sobretudo se não as pode
sintetizar para resumi-las em poucos minutos. Aqui é quando ele,
então, estrila injustamente contra a suposta falta de liberdade. É que
para o individualista, a liberdade individual (sua liberdade pessoal de
fazer o que lhe dá vontade) está acima da liberdade de todos os demais
companheiros. Como todo oportunista, o individualista busca que
seu interesse esteja acima dos interesses dos demais.

Personalismo
Quanto ao caráter: subjetivista

Reflexo de uma subideologia gerada pela visão idealista das


formas artesanais de trabalho
O personalista está sempre defendendo ou cuidando de seus
interesses pessoais.
Sempre atribui a si os êxitos conseguidos ou os frutos de um
empreendimento ou de uma ação. Quase sempre diz: “eu fiz”, em
vez de “nós fizemos”; em vez de dizer “tem-se conseguido melhorar
a organização’’, o personalista diz: “eu consegui melhorar” etc.
Desse modo, como todo oportunista, busca sempre o melhor e o
mais vantajoso para si, e por isso não deixa que seus companheiros
tenham sucesso como representantes da empresa em postos, sole-
nidades, reuniões ou entrevistas com pessoas importantes, pois “a

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Clodomir Santos de Morais

empresa sou eu”; procura ter mais prestígio, mais vantagens que
os demais a fim de obter mais prazeres ou mais bens materiais.
O personalista quase sempre põe sua personalidade acima
da empresa. Ele julga sua palavra ou sua atitude impensada mais
importante que as decisões ou normas da empresa. Visando não
perder o prestígio pessoal (do qual ele vive), jamais diz não aos que
lhe solicitam algo que contraria as decisões ou normas da empresa.
É pródigo, e distribui ou empresta fácil e irresponsavelmente os
bens ou os serviços da empresa como se fosse o único dono de tudo.
O personalista em geral é paternalista, distribuindo pessoalmente
atenções e favores. Pouco a pouco vai domesticando os associados
mais acomodados da empresa, ou seja, aqueles que não se importam
em fechar os olhos aos erros do personalista, sempre e quando con-
tinue podendo compartilhar das migalhas que sobram do “domes­
ticador”, o personalista.
O personalista centraliza todas as tarefas; não as distribui
entre seus companheiros. Desse modo, não forma quadros
substitutos, porque nunca dá chance para que outros exerçam o
poder. É o mais desprezível dos artesãos. Quando morre, ninguém
pode substituí-lo; deixa a empresa acéfala, ou seja, sem cabeça.
Quanto mais se eleva o nível de organização de uma empresa ou
associação, maior é a ação coletiva de todos os associados, tornan-
do, desse modo, mais equitativa a participação de cada um. Isso
cria um grande problema para o oportunista de tipo personalista,
pois sente que vai ser eclipsado pela organização e sua pessoa vai
desaparecer no anonimato das ações coletivas. Nesses casos, para
não perder sua posição, seu prestígio, o personalista apela para o
grupismo, e daí não vacila em dividir a empresa, fracionando-a
em dois pedaços.

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Espontaneísmo
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O espontaneísta é resistente ao planejamento dos trabalhos ou
de ações e muito menos age conforme um plano de trabalho. Ele
prefere realizar as tarefas que lhe são agradáveis ou mais convenientes,
como também as realiza no momento que mais lhe agrada ou que
mais lhe convém.
Não planeja nada, vive sempre o momento imediato conforme
seus interesses pessoais, pois se ele se submete a um plano de trabalho,
não poderá atender a seus assuntos particulares pendentes. Quando
um associado propõe planejar uma ação qualquer, o espontaneísta se
irrita e em seguida alega: “somos pessoas responsáveis e experientes.
Já sabemos muito bem o que devemos fazer”.
O espontaneísta não tem horário. Para ele o relógio não passa
de um simples adorno. Não tem hora nem data certa para nada. Se
um associado lhe perguntar: “quando vamos realizar tal coisa?”,
ele responde: “qualquer dia, qualquer hora”. A menor unidade de
tempo que conhece é “um momento”, a outra unidade de tempo
é ainda mais imprecisa, está contida em “dentro de um instante’’.
As ações são marcadas para depois do almoço, para amanhã, para
a próxima semana, próximo mês, próximo ano. Trata-se, pois, de
datas imprecisas, indefinidas, que o espontaneísta propõe para que
lhe sobre tempo para cuidar de seus problemas pessoais antes de
cuidar das questões da empresa.
Desse modo, pelo seu caráter oportunista, o espontaneísta tem
pavor da ação planejada e, mais ainda, quando no planejamento se
estabelece um cronograma para os trabalhos.

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Sabendo que os trabalhos planejados não lhe deixam espaço para


dedicar-se a seus assuntos ou ao que mais lhe agrada em detrimento
dos interesses da empresa, o espontaneísta começa logo a tachar de
burocratismo a ação planejada. Quase sempre vomita frases como
estas: “necessitamos de mais ações e de menos planos de organização;
aquele que muito planeja e muito organiza, nada realiza’’.

Anarquismo
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O anarquista reage à organização das coisas ou das ações. Não
controla nem contabiliza os recursos. É uma pessoa desorganizada.
Dirige uma empresa como se dirigisse uma bodega: dinheiro entra,
dinheiro sai, e ele não anota nada. O anarquista se irrita quando vê
as coisas muito organizadas.
Uma reunião dirigida por alguém com tendência anarquista vira
uma grande bagunça.
Por conta da ausência de organização em que prima a tendência
anarquista, os participantes agem como se fossem um grande grupo
de “baratas tontas’’.
O anarquista é um tipo de oportunista que repele qualquer plano
organizado, pois receia estar metido “em uma camisa de força’’ na
qual não terá chances de dar prioridade a seus assuntos pessoais. Além
disso, por experiência própria, sabe que onde impera a anarquia, o
indivíduo desorganizado, anárquico, sobrevive.
Desorganizar para reinar. E, enquanto reina, o anarquista salva
seus interesses pessoais, deixando para trás os interesses da empresa.
Por isso ele nunca reclama quando vê as coisas desorganizadas, pois é

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

da desorganização, da confusão que o indivíduo anarquista consegue


satisfazer seus interesses particulares.

Imobilismo
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O imobilista é um tipo de oportunista que deliberadamente
não se mexe para nada. Seu lema é não fazer onda para não
afundar sua canoa de interesses pessoais. Quanto mais calado
e quieto permanecer, menos trabalho lhe toca. Esse tipo de
oportunista, o imobilista, fica feliz que ninguém se dê conta que
ele prefere viver apagado. Nas reuniões convocadas para tomar
decisões, o imobilista se comporta como um poste: não se move;
ou como uma coruja, que apenas presta atenção, mas não fala,
não propõe nada.
O imobilista sabe com certeza que quanto mais crítica, mais
discussões e mais proposições, maiores são as responsabilidades de
todos os associados da empresa ou da organização que ele integra.
Daí que, deliberada ou instintivamente, esse tipo de oportunista
não se mexe, nem quer que as coisas também se movam.
Para ele tudo está bom. Não é preciso mudar nem acrescentar
nada. Desse modo, o imobilista manhosamente resguarda o tempo
que dedica a seus interesses pessoais ou às atividades que mais
gosta de realizar. Sempre está de acordo com toda medida que
não signifique mais tempo de trabalho para a empresa e menos
tempo para dedicar a seus próprios assuntos.

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Comodismo
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O comodista é o tipo de oportunista que procura sempre se
acomodar ou estar bem com todo mundo quando surgem situações
conflitivas. É um invertebrado, um animal sem ossos que pode
encolher-se, ajeitar-se para caber em qualquer situação limitada. É
uma pessoa deliberadamente tímida; evita afirmar ou negar alguma
coisa; ele já tirou de seu vocabulário as palavras sim ou não, a fim
de não prejudicar seus interesses. Sempre está de acordo com todos
aqueles que podem lhe beneficiar.
Em geral, evita as situações em que tem o dever de defender os
interesses da empresa. Por trás dessa timidez está sempre seu proveito
pessoal, seu posto, o posto de um parente ou de algum amigo. Além
disso, o oportunismo pode levar o comodista a submeter-se prazero-
samente à domesticação propiciada pelo associado personalista. Os
dois podem sobreviver em simbiose, ou seja: o comodista satisfaz
seus interesses pessoais através da generosidade ou prodigalidade
irresponsável do personalista e, ao mesmo tempo, o personalista mais
se afirma em seu prestígio pessoal e em seu paternalismo.
O comodista, em geral, nunca soluciona seus problemas pelos canais
competentes, procura sempre fazê-lo diretamente por intermédio do
indivíduo que ele supõe com mais prestígio pessoal – o personalista.
Busca sempre o caminho ou a solução mais cômoda, mais fácil para
alcançar resultados pessoais. Às vezes se comporta como um gato ou
como outro animal domesticado que prefere viver comendo as sobras
do dono a viver livremente no bosque. Nas assembleias ou em reuniões
menores, o comodista não apresenta seus problemas. Fica calado. Prefere
apresentá-los diretamente ao “mandachuva’’. É um homem acomodado

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

ao contexto. Deliberadamente não critica os erros de seus companheiros


para que ninguém critique os seus. Em resumo, como o comodista tem
telhado de vidro, evita atirar pedras no telhado do vizinho.

Sectarismo ou Radicalismo
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O indivíduo sectário ou radical é aquele tipo de oportunista que
se sente torturado pela aparente lentidão com que amadurecem as
condições necessárias para a realização das ações fundamentais e
decisivas da empresa.
O atraso de alguns camponeses manifesta que eles ainda não
querem ir além da empresa familiar; entretanto, o sectário ou radical
se irrita por não poder transformar, da noite para o dia, o grupo de
camponeses em uma empresa de propriedade e produção coletiva.
Para o sectário ou radical, as coisas devem ser feitas imediata-
mente, não se importando se existem ou não condições para serem
realizadas. O sectário deseja que as mudanças sejam provocadas do
dia para noite e, por conseguinte, de maneira radical.
A angústia ou a tortura que o sectário sofre se origina de sua
postura oportunista, o desejo de querer satisfazer imediatamente a
coisa que mais lhe agrada, seu interesse pessoal.
Quando o sectário propõe a mudança da sociedade, não é para
o benefício de seus filhos ou de seus netos, e sim para que ele mesmo
se beneficie dos resultados de tais mudanças. Suspeitando que possa
morrer no próximo ano, o sectário deseja que tudo seja feito neste
ano, antes que morra. Ele não quer ser o “peru de natal’’ que morre
na véspera.

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Clodomir Santos de Morais

Na maioria dos casos, o sectário, no dia que consiga ter um au-


tomóvel, um bom emprego ou seu pedaço de terra, deixa de ser um
sectário; já conseguiu as mudanças que ele arduamente batalhava: a
mudança de sua situação pessoal, e não é de se estranhar que depois de
conseguido seus objetivos, se volte contra os próprios companheiros
de luta. O sectário que conduz seus companheiros a posições radicais
ou sectárias quase sempre resulta em redundante fracasso, o que é o
mesmo que fazer o jogo dos inimigos. Os operários franceses dizem
que radical vem de radis, que quer dizer rabanete: “vermelho por fora
e amarelo por dentro.” Desse modo, o indivíduo radical ou sectário
geralmente defende posições ou atitudes avançadíssimas no tempo,
com o único objetivo de satisfazer seu interesse imediato. Sempre
quer queimar etapas, mesmo quando as condições não estejam
maduras para fazê-lo.

Liquidacionismo
Quanto ao caráter: oportunista

Reflexo de uma subideologia gerada pela propriedade privada


dos meios de produção.
O liquidacionista é aquele tipo de oportunista que habilmente
busca liquidar ou suprimir uma ação que possa prejudicar seu
interesse pessoal. No dia em que uma reunião ou uma ação qualquer
da empresa coincide com um encontro amoroso do liquidacionista,
este rapidamente quer suprimir ou liquidar a reunião, consideran-
do-a sem maior importância ou adiando-a para qualquer outro dia.
Quando a empresa está caminhando para um ponto ou em uma
direção que possa vir a prejudicar o interesse do oportunista, ele não
vacila inclusive em liquidar ou suprimir a empresa sugerindo que a
transformem em outra coisa. Por exemplo: se a ação combativa de
uma subseccional da Central Camponesa ameaça os interesses do

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

oportunista ou de seus parentes, ele não vacila em dividir ou em


dissolver a organização para que não se realize a ação. Outra forma
sub-reptícia ou sutil do liquidacionista, para disfarçar seu oportu-
nismo, consiste no uso da crítica sistemática. Quando sente que
seus interesses pessoais estão sendo ameaçados, ele passa a criticar a
tudo e a todos. Neste caso, para o liquidacionista, tudo está andando
mal. Tudo está errado e necessita-se destruir ou apagar tudo para se
começar tudo de novo, a partir do começo. A assembleia já tomou
uma decisão por maioria, já vai começar a execução do projeto ou
da ação que não convém ao oportunista. Rapidamente ele começa
suas manobras liquidacionistas por meio da crítica indiscriminada.
Diz que tudo está mal feito, que é necessário reunir a assembleia
outra vez, que a assembleia também está mal conduzida, propõe
que se liquide a assembleia, enfim, que não se realize o projeto que
contraria seus interesses.

Aventureirismo
Quanto ao caráter: subjetivista

Reflexo de uma subideologia gerada pela visão idealista das


formas artesanais de trabalho.
O aventureiro, como todos os demais subjetivistas, nunca con-
sulta a realidade na qual vai se basear a ação. Tampouco mede as
consequências ou os resultados da ação. O aventureiro pensa e age
dentro de um marco idealista. Jamais planeja com base na realidade,
e sim baseado no que pensa, ou supõe que é factível realizar.
Geralmente o indivíduo com tendências ao aventureirismo
atua de forma isolada e facilmente rompe a unidade da empresa,
dividindo-a. Quando o aventureiro não encontra resistência dos
associados, acaba por conduzir todos à aventura de consequências
imprevisíveis.

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Clodomir Santos de Morais

A autossuficiência
Quanto ao caráter: subjetivista

Reflexo de uma subideologia gerada pela visão idealista das


formas artesanais de trabalho.
A autossuficiência tem origem no subjetivismo do indivíduo com
grande dose de ideologia artesã. O indivíduo autossuficiente tem
resposta para tudo, não ignora nada, não pergunta nada nem pede
nenhuma explicação, nunca tem nenhuma dúvida. Estando perdido
em uma grande cidade, o indivíduo autossuficiente não reconhece
que não sabe onde está e tenta, às cegas, encontrar sozinho a rua
aonde vai. Quando discute, não ouve ninguém. Quando participa
de uma reunião não anota nada.
O autossuficiente se imagina com um gravador na cabeça. Em
países cuja economia se baseia em empresas pequenas, artesanais,
todos os seus habitantes se metem em questões de medicina. Basta
que alguém sinta uma dor para que logo apareçam pessoas para
diagnosticar a doença e recomendar-lhe o remédio. Todos se sentem
médicos e não entendem apenas de medicina, mas também entendem
de aviões, de eletrônica, de veterinária, cibernética etc. Se um auto-
móvel tem um problema no meio da rua, imediatamente aparecem
várias pessoas para dizer que se trata do carburador, de uma bateria,
do distribuidor etc. Todos se sentem autossuficientes, entendidos em
mecânica de automóveis.
Se o autossuficiente é indagado sobre a população de Ulan Ba-
tor, capital da Mongólia, ele jamais admite que não sabe, o normal
é que ele responda: “não deve ser maior que tal ou qual cidade”. O
autossuficiente nunca se preocupa com a precisão dos dados, ele os
calcula conforme sua própria ideia, de acordo com o que tem em
sua cabeça, segundo sua subjetividade. Por isso que os europeus
denominam de “tropicalismo” à tendência que nós, dos trópicos,

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

temos de exagerar, ou de não sermos exatos, ou de basear-nos em


nossos próprios dados, cálculos ou apreciações. É que nos trópicos
estão as sociedades de economia predominantemente artesanal, mais
atrasadas, e por conseguinte com maior incidência deste vício das
formas artesanais de trabalho.
O autossuficiente tanto superestima como subestima a reali-
dade, e em qualquer desses casos ele age baseado na irrealidade de
seu próprio subjetivismo. Uma empresa em que predominam os
autossuficientes acaba tendo constantes fracassos, e estes conduzem
inevitavelmente à ruptura de sua unidade. Os autossuficientes são
mais frequentes entre os artesãos intelectuais e entre os camponeses.
Há camponeses que contraem dívidas (empréstimos) para que sua
empresa plante 200 canteiros de melão, simplesmente por imaginar
que nos Estados Unidos se consome muito esta fruta. Não consultam
os mecanismos de mercado, não consultam os meios e os custos de
transporte. Para os autossuficientes, basta saber que vão fazer um
grande negócio plantando melão para vender aos Estados Unidos.
Falta ao autossuficiente a humildade do operário, o qual, pelo fato
de sua ação depender de milhares de outros ou de algumas máquinas
complicadas, nunca decide nem planeja sem consultar a realidade.

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IV. MECANISMOS OU
INSTRUMENTOS PARA COMBATER
OS VÍCIOS DAS FORMAS
ARTESANAIS DE TRABALHO

Dentre os instrumentos ou mecanismos conhecidos que se


empregam para evitar ou combater os vícios gerados pelas formas
artesanais de trabalho, se destacam os seguintes: a vigilância, a crítica
e a reunião.

A vigilância
A vigilância tem o objetivo de manter a unidade e a disciplina
dos grupos. Entretanto, não é uma vigilância exercida de forma
primitiva, desconfiando de todos, como fazem os policiais. Isso cria
uma atmosfera destrutiva. A vigilância é exercida zelando-se pelo fiel
cumprimento dos princípios da empresa, das técnicas organizativas,
e por meio da crítica. São três os níveis mais importantes em que se
realiza a vigilância: ideológico, político e organizativo.
Entende-se por ideologia de uma empresa o seu “espírito”, ou o
aspecto da empresa que tanto pode ser o espírito usurário imediatista
de um pequeno banco ou de uma cooperativa de crédito e poupança,
como pode ser o aspecto paternalista de uma junta de desenvolvi-
mento da comunidade; tanto pode ser a mentalidade individualista
de um grupo de parceleiros, na qual prevalece o princípio de “cada
um por si e Deus por todos’’, como pode ser o aspecto solidário dos
grêmios de artesãos; o espírito pseudocooperativista de uma socie-
dade anônima, como também o caráter coletivista de uma empresa
comunitária; ou ainda a consciência da distribuição do trabalho social
das empresas estatais da área de propriedade do povo.

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Clodomir Santos de Morais

Entende-se como política de uma empresa ou organização o con-


junto de teses e decisões que seus associados se propõem a aplicar, isto
é, refere-se à ação consciente, à programática e ao plano de trabalho
aprovado pela assembleia ou congresso da empresa.
Entende-se como organizativo o conjunto de normas ou de prin-
cípios que se busca aplicar objetivando que as ações dos associados
correspondam ou sejam coerentes com a ideologia e a política da
empresa.
Em âmbito ideológico, a vigilância se efetua fazendo ver (de
forma organizada) aos associados que manifestam vícios que aten-
tem contra a unidade e a disciplina, o dano que podem causar à
empresa. Aqueles que transgridam, mesmo que inconscientemente,
os princípios da empresa, se comportam como inimigos ideológicos.
Se, ao serem advertidos de seus erros, e de forma organizada, voltam
a cometer os mesmos erros reiteradamente, convertem-se em inimi-
gos políticos. O inimigo político deve ser afastado imediatamente
da empresa.
No âmbito organizativo, a vigilância se exerce zelando pelo fiel
cumprimento das técnicas organizativas e das disposições vigentes
em matéria de organização.40

Não basta que a vigilância seja realizada apenas nos âmbitos ideológicos e
40

políticos, os quais se apoiam sobretudo no marco teórico. Ela só é eficiente quando


também é exercida, necessariamente, em âmbito organizativo, pois, segundo
Lukács, “a organização é a forma de mediação entre a teoria e a prática. E, do
mesmo modo que em toda relação dialética, também neste caso, os membros
não cobram concreção e realidade de outro modo que não seja por sua mediação.
Este caráter da organização, mediadora entre a teoria e a prática, se manifesta de
modo mais claro no fato de que para a organização, as tendências discrepantes
têm uma sensibilidade muito maior, mais apurada e mais segura para qualquer
outro terreno do pensamento e da ação políticos. Enquanto na simples teoria
podem conviver pacificamente as concepções e as tendências mais díspares e seus
contrastes tomam simplesmente a forma de discussão que podem desenvolver-se
no âmbito de uma mesma organização sem que necessariamente provoque um
rompimento, mas, quando essas mesmas questões se apresentam a partir de
um ponto de vista organizativo, irrompem como orientações profundamente

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Finalmente, a vigilância só é eficiente quando é exercida simul-


taneamente nos três âmbitos, e se torna definitivamente precária
quando exclui o âmbito organizativo, que, ao lado do âmbito político,
não comporta apreciações subjetivistas.

A crítica
A crítica é um elemento indispensável para combater os vícios
das formas artesanais de trabalho. Desse modo, ela constitui um
instrumento que permite capacitar as pessoas e harmonizar a ação
das organizações, objetivando conseguir maior rendimento do
trabalho; por essas razões, deve ser estimulada e exercida com a
frequência necessária.
Toda crítica deve ser fraternal e organizada, ou seja, só poderá
ser feita em reunião e com o objetivo de ajudar aos indivíduos e à
ação das organizações ou comitês. Além disso, a crítica só deve ser
considerada quando se apontam as causas dos erros e há sugestão de
medidas para superá-las.
A crítica manifestada fora de uma reunião da organização ou
comitê tem conotações de repreensão e, desse modo, cria atritos
pessoais e ressentimentos que posteriormente afetarão a unidade e a
disciplina da empresa.41

contrapostas e irreconciliáveis”. Acrescenta, ainda, que “toda tendência teórica,


toda divergência de opiniões tem que mudar de um momento para outro em
discrepância organizativa” (Lukács, 1969, p. 312).
41
No âmbito da empresa política, um partido, por exemplo, se “não há crítica, o
trabalho se encaminha para o fracasso, tende ao relaxamento e à desorganização.
Sem o exercício da crítica não se pode educar os quadros e militantes, não
se impulsiona seu desenvolvimento” (Harnecker, 1977, p. 40). “Veja bem; é
fundamental que esta crítica seja feita dentro da organização e a partir de seus
interesses e princípios. Os comentários e opiniões feitos nas calçadas, fora
das reuniões e canais normais do partido, se transformam em fofocas e em
nada ajudam na solução dos problemas. [...] A crítica deve ser, em primeiro
lugar, resultado de uma análise bem pensada, amadurecida. O direito de
criticar impõe aos militantes a responsabilidade de evitar os pronunciamentos

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Clodomir Santos de Morais

A reunião
A reunião é um mecanismo por meio do qual se exercita o trabalho
coletivo ou associativo em qualquer nível, quer seja de base, de assem-
bleia ou de comitês dirigentes e intermediários da empresa. A reunião
só alcança esse objetivo, além daqueles para a qual foi programada,
quando é realizada de maneira organizada. Uma reunião desorganizada
não passa de um “bate-papo’’, um encontro de amigos ou compadres.
Toda reunião, para ser produtiva, terá que ser organizada.42 Entre os
artesãos ou indivíduos de ideologia de caráter artesanal, as reuniões
não têm hora para começar nem para terminar, além disso, sempre
se realizam da maneira mais anárquica possível. Os espontaneístas
particularmente se mostram felizes nestas reuniões que não têm hora
para terminar. Se uma reunião não tem fixado previamente o tempo
de sua duração, geralmente se realiza de maneira desorganizada.
Uma reunião séria de uma empresa ou de um comitê responsável
é composta de quatro partes: preparação, informativo com balanço
crítico, plano de trabalho, distribuição e controle.
Na preparação da reunião, o coordenador responsável pela orga-
nização estabelece o local da reunião, a pauta, escreve o informativo e
esboça um plano de trabalho para as tarefas decorrentes da reunião.43

superficiais e gerais. Porque a crítica não é uma simples enumeração de erros


ou deficiências: o fundamental é a análise das causas que originam estes erros
ou deficiências. E é difícil encontrar as causas sem um bom conhecimento do
desenvolvimento do trabalho, das lutas ocorridas, sem uma análise perfeita da
situação” (Harnecker, 1977, p. 36). Se assim não for feito, a crítica se transforma
em um ato destrutivo que desintegra o movimento em vez de levantá-lo. Os erros
voltam a ser cometidos, porque não se examinou qual era a sua raiz.
42
“É importante não esquecer, depois de cada reunião, de cada discussão coletiva,
de designar tarefas concretas a cada participante. Do contrário, cai-se no
vício do ‘reunionismo’, que impede de passar das palavras à ação, e sem ação
concreta, é muito pouco o que os militantes podem contribuir para a discussão”
(Harnecker, 1977, p. 34).
43
“Efetuar uma reunião sem haver se preparado para isso ou deixar que se
desenvolva espontaneamente esperando que a discussão se produza de
modo natural, é irracional”, conforme se lê na obra O dirigente, o coletivo, a

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Uma vez reunidos todos os integrantes da organização que vão


participar da reunião, discute-se, então, o tempo em que vão estar
reunidos. Se o tempo aprovado for de 120 minutos, as três partes
seguintes da reunião terão seu tempo programado. Em cinco mi-
nutos deve-se ler o informativo e o balanço crítico. Em 45 minutos
os integrantes da reunião terão que discutir o informativo. Se os
participantes, por exemplo, forem em número de nove, cada um
terá cinco minutos para sua intervenção. Do mesmo modo deve-se
proceder para a duração do plano de trabalho e os 20 ou 30 minutos
restantes serão empregados para a distribuição de tarefas e para o
estabelecimento das datas de controle, porque já foi dito que tarefa
sem controle não passa de boas intenções, ninguém as cumpre.
O coordenador de uma assembleia é responsável pelo
cumprimento das normas organizativas da reunião. Desse modo, se
seus companheiros aprovam os tempos para cada pessoa ou para cada
parte da reunião, o coordenador deve fazer cumprir o estabelecido a
fim de que a reunião não passe dos 120 minutos. Dilatar o horário,
somente para satisfazer a um espontaneísta ou um anarquista que
alega demagogicamente que não tem liberdade para expressar sua
opinião, é desrespeitar a vontade da maioria que aprovou o tempo de
120 minutos e cinco minutos para cada pessoa.44 Apenas se prolonga

personalidade escrito por cientistas da República Democrática Alemã (Coletivo


de autores, 1978).
44
“Antes de tudo, a assembleia geral deve ser bem organizada. Que fazer em
primeiro lugar? Primeiramente necessita-se pontualidade. A assembleia geral
começa às 8h30. Às 8h29 (não às 8h28 ou às 8h30, mas exatamente às 8h29) se
dá o sinal e exatamente às 8h30 se abre a assembleia. Quando isto é feito uma
só vez, é muito difícil; quando se faz durante muitos meses é fácil; e quando é
feito durante anos, se torna muito simples. Aparece a tradição. Cada indivíduo
consciente e depois cada comunero, olha o relógio, são 8h25. Recolhe os livros
ou os instrumentos e se dirige à sala onde se reúne a assembleia geral para não
ter que correr depois, quando soe o sinal. Se soar o sinal quando ainda esteja
trabalhando, o remédio é correr, do contrário chega atrasado. Isto deve se tornar
hábito. O secretário do conselho de chefes olha o relógio e às 8h30, em ponto,

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Clodomir Santos de Morais

o tempo de uma reunião quando a maioria dos seus integrantes decide


modificar o tempo de duração. A utilização do tempo nas reuniões
permite apurar sua organização, e desse modo permite a educação
dos associados para que tratem exclusivamente de assuntos funda-
mentais, deixando de lado os assuntos secundários e de interesses
puramente pessoais que não dizem respeito à empresa. Desse modo,
o respeito ao tempo estabelecido garante que cada um organize sua
intervenção, tornando-a o mais racional possível.

diz: ‘Declaro aberta a assembleia geral’. Não se deve perder nem um só minuto.
O regulamento se estabelece de maneira simples, um minuto com relógio de
areia.
− Peço a palavra.
− Fala.
Vira-se o relógio. A areia começa a descer. Termina o um minuto. Sobre as
questões práticas, deve-se falar na assembleia em um minuto. No início
tornava-se difícil, depois se acostumaram e todos pediam a palavra. Alguns
inclusive poupavam o tempo.
Esta questão, aparentemente insignificante, tem uma enorme importância.
Primeiro, porque na assembleia geral podíamos falar de tudo. Segundo, cada
um se habituava a dizer apenas o necessário.
Com um regulamento tão severo, a tendência das pessoas é de se expressar
com brevidade sem explanações, porém com as palavras precisas. O indivíduo
se acostuma a ser prático.
Em alguns casos, quando o problema tinha uma importância especial ou se
apresentava uma proposição de muita significação, o orador dizia:
− Não posso resolver com um minuto.
− Quanto tempo necessita?
− Três minutos.
− É muito.
− Dois minutos, então.
− Fala.
Assembleias deste tipo nos ocupava no máximo 20 minutos. E ninguém chegava
tarde nem se esperava ninguém.
Esta questão tão simples e, aparentemente, nada pedagógica, a distribuição do
tempo, é, no entanto, decisiva. Deve-se respeitar o tempo, observar a exatidão”
(Makarenko, 1977, p. 234-235).

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V. O LABORATÓRIO
EXPERIMENTAL

Definição
O que é um laboratório experimental? É um ensaio prático e ao
mesmo tempo real no qual se busca introduzir em um grupo social
a consciência organizativa que necessita para atuar em forma de
empresa ou ação organizada.
A consciência organizativa é introduzida no grupo social por
intermédio de uma aceleração preconcebida da práxis de organi-
zação por meio da análise teórico-prática dos fenômenos, quer seja
os que dão forma ou os que buscam desintegrar o “todo-orgânico”
programado, ou seja, a empresa.
Para a realização de um laboratório experimental é necessário criar
artificialmente uma empresa, porém com existência e funcionamento
reais. Para isso, são imprescindíveis três requisitos:
a) as pessoas (mínimo de 40 e o máximo não tem limite);
b) o pleno direito de organizar-se;
c) os meios de produção em mãos dos integrantes da empresa,
ou seja, insumos indivisíveis em poder do grupo social.
Se a maioria dos integrantes da empresa artificial é composta de
operáriwos ou de semioperários, o laboratório experimental poderá
alcançar seus objetivos em 15 dias de duração. Porém, se a maioria
for formada por artesãos, o laboratório não conseguirá seus objetivos
em menos de 30 ou 40 dias ininterruptos.

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Clodomir Santos de Morais

Objetivos do laboratório experimental


Os objetivos do laboratório experimental consistem em formar
quadros organizadores de empresas e, ao mesmo tempo (no caso de
que no laboratório participem técnicos em promoção social), formar
laboratoristas, ou seja, técnicos na montagem e desenvolvimento
de laboratórios experimentais. Pelo fato de acelerar a consciência
organizativa, essa ferramenta consegue também elevar o nível de
organização das empresas já existentes.45

As etapas ou processo de aprendizagem no laboratório


Para a realização de um laboratório experimental necessita-se,
em alguns casos, criar antecipadamente uma estrutura primária.
Esta consiste na estruturação de três ou quatro pessoas às quais são
transferidos alguns conhecimentos sobre possíveis acontecimentos
decorrentes da composição social dos integrantes do experimento.
Com apenas alguns minutos de informação aos integrantes da es-
trutura primária sobre o que poderá acontecer, eles consciente ou
inconscientemente se preparam para ajudar o andamento da empresa
que todos vão criar.
Reunidos então os integrantes da empresa, o laboratorista
transfere a eles todos os bens e meios de produção imprescindíveis
para sua ação e desenvolvimento. Por sua variedade, tais meios de
produção e/ou bens de serviços (insumos indivisíveis) os induzem

45
Os laboratórios experimentais existem sob quatro tipos: a) laboratório de centro,
cujo objetivo é a formação de quadros organizadores de empresas coletivas e
de futuros diretores de laboratórios experimentais; b) laboratório de empresa,
cujo objetivo é elevar o nível organizativo de uma empresa coletiva mediante a
redução das formas artesanais de trabalho; c) laboratório de terreno ou mediante
o qual se consegue acelerar a consciência organizativa do grupo social para se
criar as bases de empresas de serviço e produção; d) laboratório de curso, cuja
consciência organizativa do grupo de alunos integrados em uma empresa de
serviços é destinada à autocapacitação para aperfeiçoamento dos dois primeiros
tipos de laboratórios.

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

inevitavelmente a trabalhar com uma divisão técnica do trabalho,


ou seja, com um processo produtivo socialmente dividido.
Os meios de subsistência são transferidos em quantidades bem
inferiores as suas necessidades, a fim de que eles ponham em prática
sua capacidade de iniciativa.
A partir do momento em que os integrantes do “Laboratório”
dão forma orgânica a sua empresa, ou seja, quando eles a estruturam,
é que se transfere um inventário dos bens do centro de capacitação:
área cultivadas, veículos, tratores, implementos, instrumentos de tra-
balho, instalações de serviços etc., para que eles façam o que julguem
conveniente, respeitando, porém, a legislação vigente.
Os alunos são obrigados a permanecer no centro de capacitação
apenas enquanto durar o laboratório, e assistir às primeiras 15 horas
de aulas sobre Teorias da Organização, a qual se constituirá no ins-
trumento de aceleração do processo de organização, à medida que
se introduz no grupo a consciência organizativa.
Aparentemente, durante essa primeira parte há uma anomia
(desordem) total. Os participantes têm diversas expectativas sobre a
situação, o que, na maioria dos casos, denuncia um espírito sectário
do grupo ou subgrupo de indivíduos que tende a se formar, e quase
sempre isso acaba prejudicando o trabalho organizado ao provocar
resistência de uns setores ou indivíduos frente a outros.
Pode, por exemplo, se dar um enfrentamento e polarizar a ques-
tão em termos de facções, visando assumir a direção ou coordenação
do laboratório,46 para desse modo utilizá-lo para propósitos de sub-
grupos, o que para a finalidade organizativa (que é fundamental) se
torna muito nocivo.

46
Essas facções, conforme a composição do grupo, podem estar compostas
por pessoas de posturas sociais antagônicas, princípios religiosos ou políticos,
preconceitos étnicos ou raciais, ou por pessoas de diferentes níveis educacionais,
diferentes filiações sindicais etc.

79

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Clodomir Santos de Morais

A estrutura primária, nesse momento, busca controlar imediata-


mente esta anomalia, procurando incentivar dentro de todo o grupo
a participação organizada, que será, posteriormente, a única forma
de eliminar ou de desaparecer com as tendências dos subgrupos.
Em outras palavras, o grupo começa a sentir a necessidade de
criar seus próprios mecanismos autocorretivos e, como num processo
de profilaxia (saneamento), pretende tirar a experiência de sua desor-
dem e ineficiência por meio do assinalamento oportuno de todo tipo
de vícios que se originam de tendências artesanais, visando objetivar
seus problemas, o que significa, mais ou menos, que o grupo terá
diante de si uma espécie de fotografia ou retrato de si mesmo.47
Geralmente a estrutura primária funciona num marco teórico
preconcebido, que lhe permite fazer este levantamento de problemas
iniciais e, em caso de necessidade,48 apresentá-los ao grupo, uma vez
que este haja percebido que esteja faltando harmonia.
Poderíamos chamar esta etapa de levantamento de problemas
(dentro de todo processo) de etapa de síncrese, que significa a tentativa
de destacar certas categorias fundamentais de caráter teórico, apa-
nhadas da própria realidade do grupo e com um objetivo pedagógico.
Depois desta síncrese, ou levantamento de problemas, o grupo
possui todo um instrumental teórico, que terá que aplicar no desen-
volvimento das atividades que se propôs a realizar. Além disso, existe

47
As normas de conduta social no seio da coletividade vão se forjando
paulatinamente durante o transcurso da atividade prática e da inter-relação
de seus membros. A conduta adequada às normas estabelecidas encontra a
aprovação dos trabalhadores e, ao contrário, a conduta discrepante destas
normas é avaliada negativamente pelos membros do coletivo. Cada trabalhador,
de maneira involuntária, estabelece uma comparação entre seus próprios atos
e as normas que se propõem (autoeducação no coletivo) (Coletivo de autores,
1978, p. 125-126).
48
No momento em que se constata a iminência de ruptura da unidade e
da disciplina da “empresa”, qualquer participante da estrutura primária
premeditadamente adverte dos problemas da organização.

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

uma atitude fundamental que o grupo terá que aceitar e assumir


durante todo o laboratório, e que é uma atitude de análise frente a
tudo o que está acontecendo, por meio de um elemento que deve ser
descoberto e utilizado sistematicamente pelo grupo, ou seja, a crítica.
Inicia-se, assim, uma nova fase do processo que vai permitir ao
grupo começar a caminhar com seus próprios pés e ir se descolando
inconscientemente da estrutura primária.
Nessa etapa, que pode ser chamada de análise, o grupo já se
encontra estruturado, dividido em comissões de trabalho, com
coordenadores em cada comissão, e a secretaria geral eleita de acordo
com a decisão do próprio grupo.
Vai se tentar aplicar aqui, pela primeira vez, o modelo teórico
da realidade.
Para contribuir com o desenvolvimento da atitude crítica e de
análise, o laboratorista efetuará uma série de palestras sobre a teoria
da organização.
Estas palestras são acompanhadas por outras de caráter forma-
tivo e informativo que o grupo tenha formulado por meio de uma
comissão e programação, ao mesmo tempo que vão se desenvolvendo
alguns outros planos de trabalho programados também por outras
comissões, cujo conteúdo específico não é o fator mais importante,
já que a finalidade é o trabalho organizado do grupo.
Assim que o grupo começa a andar, vem a primeira síntese do
trabalho, na qual o grupo examina o que aprendeu mediante as
diferentes formas de participação organizada.
No caso concreto dos laboratórios, esta primeira síntese assume
a forma de uma assembleia geral, na qual se delibera, se chega a
conclusões e se sentem as necessidades do grupo para incorporar
ao trabalho todos os seus integrantes que algumas vezes têm uma
participação passiva bastante receptiva.

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Clodomir Santos de Morais

Este processo de síncrese, análise e síntese que foi descrito se


apresenta sempre, e por meio dele o grupo vai descobrindo a teoria
organizativa que lhe é apresentada para ser analisada e aplicada na
prática.49 Isto é, as categorias teóricas vão sendo checadas com o
exercício inconsciente e espontâneo de organização do grupo. Esta
segunda etapa, na qual o processo volta a se apresentar de maneira
geral, permite assimilar definitivamente a rica experiência organi-
zativa adquirida, e permite ainda manipular mais rapidamente os
elementos conhecidos.
Na experiência concreta, as sínteses subsequentes do grupo
poderão estar apresentadas na implementação de projetos ou pla-
nos de trabalhos programados pelos participantes do laboratório
experimental.
Porém, em nenhum caso os participantes adquirem de maneira
eficaz a consciência organizativa se o laboratorista ou a estrutura
primária não observar rigorosamente os passos metodológicos.
Neste caso, é importante que o laboratorista saiba que o conhe-
cimento ou a consciência dos fatos avança à medida que a prática
gera a teoria, e esta se enriquece toda vez que é aplicada e assim
sucessivamente. Ou seja, que a consciência se forma a partir de dois
fenômenos integrados – o fenômeno “práxico” primeiro, seguido do

“O processo de apreensão teórica consiste em duas partes ou etapas: análise e


49

síntese, nas quais o pensamento se movimenta do concreto para o abstrato e,


inversamente, do abstrato para o concreto (o conceito de análise, neste caso,
é a divisão do todo em partes). [...] O primeiro nível de conhecimento pelos
homens, de suas relações econômicas, é o conhecimento empírico resultante da
percepção direta dos fatos do cotidiano. Convém lembrar que o conhecimento
empírico vai elaborando alguns conceitos e impõe aos homens determinadas
regras de conduta, pois se opera uma acumulação de experiências, uma adaptação
intuitiva às circunstâncias. Assim como o ferreiro de uma aldeia não tinha uma
noção clara das leis da mecânica, porém trabalhava em correspondência com
elas, também os pequenos comerciantes e artesãos não conheciam a lei do valor,
e, no entanto, baseando-se na experiência, se adaptavam a sua ação ao produzir
e vender mercadorias” (Peshejovov, 1977, p. 103).

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

fenômeno “gnósico”. No laboratório não se deve inverter a ordem


desses fenômenos, senão não se processará a mentalização ou “inter-
nalização’’ do conhecimento, já que é nesse vaivém preconcebido e
programado de prática e teoria que o grupo, atuando entre coisas e
fatos individualizados, os converte em dados da percepção.50
A transferência antecipada dos elementos teóricos (antes que se
produzam os elementos práticos) aos integrantes da “empresa labo-
ratório’’ frustra a capacitação: se aprende, porém não se capacita.

50
Sobre o fenômeno “práxico” ou praxeológico, ver: Vázquez (1967), Kotarbinski
(1955), Lange (1976) e Suarez (1978).

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SOBRE O AUTOR

Clodomir Santos de Morais nasceu em 30 de setembro de 1928,


em Santa Maria da Vitória, estado da Bahia. Depois da escola básica,
trabalhou como alfaiate, e depois como operário e ativista sindical na
linha de montagem da fábrica Ford de São Paulo, dando continuida-
de aos estudos. Em 1950, publicou seu primeiro livro de poesia, O
amor e a sociedade, fundou o semanário Crítica na cidade de Salvador
(BA), e trabalhou como repórter para vários periódicos, revistas e
programas de rádio, além da agência AP. Mudou-se para Recife (PE)
para estudar Direito na Universidade. Como advogado, trabalhou
com Francisco Julião como fundador das Ligas Camponesas do
Nordeste. Em 1954, junto aos companheiros das Ligas, desenvolveu
o projeto do Laboratório Organizacional. Foi organizador, ativista
político do Partido Comunista do Brasil (PCB) e assessor das Ligas
Camponesas nos anos 1960, tendo sido eleito deputado federal pelo
PCB/PE quando participou da criação do Banco de Desenvolvimento
de Pernambuco (Bandepe). Em seguida, foi cassado em 1964 pelo
golpe empresarial-militar que derrubou o governo João Goulart.
Foi preso, dividindo cela com o educador Paulo Freire, com quem
desenvolveu uma longa e forte amizade.
Clodomir amargou o exílio – que só lhe foi possível com a
concessão de asilo pela embaixada do Chile no Rio de Janeiro –
período no qual publicou a maior parte de seus mais de 20 livros
como pesquisador, jornalista e escritor. No Chile, aprofundou seus
conhecimentos sobre reforma agrária no Instituto de Capacitação e
Investigação em Reforma Agrária (Icira). Também durante o exílio
foi conselheiro regional da Organização Internacional do Trabalho
(OIT/ONU) em assuntos da reforma agrária e desenvolvimento rural,

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Clodomir Santos de Morais

quando criou um Laboratório de Centro (Locen) na Cooperativa de


Guanchías de Honduras (1968). Em 1969, dirigiu um Locen mas-
sivo no Panamá do governo Omar Torrijos. Trabalhou em diversos
países, sempre dando assessoria em questões de agricultura, como no
Chile, Honduras, Costa Rica, México, Nicarágua, e também realizou
pesquisas junto ao Instituto Latino Americano de Pesquisas Sociais,
na República Democrática Alemã, entre outros. Ajudou a formular
projetos de reforma agrária em vários países, tendo sido Conselheiro
Regional da América Latina para Organização e Capacitação Cam-
ponesa para Reforma Agrária. Lutou em defesa da reforma agrária
até o final de sua vida.
Além da graduação em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco (1956), Clodomir também se especializou em Antro-
pologia Cultural pela Sociedade Arqueológica de Santiago Chile
(1966), e em “Planificación y Proyectos de La Reforma Agrária” pelo
Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agrária (1965),
e concluiu doutorado em Sociologia pela Universidade de Rostock
(1987). Foi professor visitante na Universidade de Wisconsin (EUA),
na Universidade de Rostock (RDA), na Universidade de Brasília, na
Universidade Autônoma de Chapingo (México), na Universidade
Autônoma de Honduras, e da Universidade Federal de Rondônia. Em
1989, retornou ao Brasil e fundou junto à Universidade de Brasília
o Instituto de Apoio Técnico aos Países do Terceiro Mundo, cujas
primeiras organizações participantes foram as 30 cooperativas auto-
gestionada do MST. Em 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
lhe outorgou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Depois de
desenvolver inúmeros laboratórios experimentais, em 2013, Clodomir
voltou a sua cidade natal, na Bahia, onde faleceu em março de 2016.
Dentre suas obras, destacam-se: Curso intensivo de capacitação
de técnicos em desenvolvimento agrário (1974), Cinco modelos teóricos
de reforma agrária (1974), Notas sobre a teoria da organização (1979),

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Elementos sobre a teoria da organização da classe trabalhadora

Dicionário de Reforma Agrária na América Latina (1983), História das


Ligas Camponesas no Brasil (1997) e Cenários da Libertação: Paulo
Freire na prisão, no exílio e na universidade (2009, reeditado pela
Expressão Popular em 2021, no centenário de Paulo Freire).
O Movimento Sem Terra agradece essa contribuição do compa-
nheiro Clodomir Santos de Morais para a luta dos camponeses em
prol da conquista de uma sociedade fraterna.

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Este livro foi composto com tipografia Adobe Garamond Pro e im-
presso em papel pólen soft 70g, capa supremo alta alvura 250g na
gráfica Paym, para a Editora Expressão Popular, em abril de 2022.

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