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Entre os velhos e os novos activismos

A
acção colectiva para ter lugar “socialismo”), apelando a identificações es- O movimento sindical, embora em muitos um novo enclave “socialista” na península
e ganhar impacto social e truturadas contra um adversário conotado países também ele se tenha envolvido nas Ibérica, de matriz soviética. Tais tensões
político, comporta o confronto com um passado que agrediu a dignidade, contestações promovidas pelos NMSs, exprimiram não só enquadramentos ideo-
entre actores e objectivos que reprimiu, explorou, etc. A identidade prosseguiu o seu caminho autonomamen- lógicos contrastantes, mas igualmente uma
opostos, mas também (como precede os interesses. Mesmo a participa- te. Mas, sobretudo em sociedades que não combinação dialéctica entre movimentos
assinalei na primeira parte) ção, a solidariedade e o prazer colectiva- passaram por uma forte industrialização os de velho e de novo tipo.
uma exigência identitária, a qual passa pela mente partilhado correspondem ao desejo movimentos reúnem geralmente “novas” Seja como for, a “utopia” portuguesa
construção de representações simbólicas, de reconstrução comunitária, quer este e “velhas” lógicas de acção e transportam desvaneceu-se rapidamente e a história
muitas vezes apoiadas na promessa de seja virado para um passado nostálgico e muito da dimensão comunitária atrás prosseguiu com a institucionalização da
recuperação do sentido comunitário, em nome das “raízes”, quer para um futuro referida. São conhecidos alguns contextos democracia representativa e a posterior
que os processos sociais destruíram ou promissor e “emancipatório” ou, o que é particulares, nomeadamente aqueles onde adesão do país ao clube da UE. Assim, o
ameaçaram devido à acção predadora mesmo, subjectivamente vivido enquanto a luta de massas e o clima de agitação polí- campo laboral e as estruturas sindicais
do mercado e do Estado. Na Inglaterra tal (Tilly, 1978; Morris, 1996). tica foram mais intensos – como aconteceu foram progressivamente colocadas perante
problemas comuns aos outros países euro-
peus, derivados da abertura de fronteiras e
da globalização económica.
A BUROCRACIA NOS SINDICATOS Entre os efeitos da globalização neoliberal,
iniciada na década de 1980, surgiram no-
Para além das condições sociais mais gerais, cujos impactos sobre a ac- prios. Os seus interesses são diferentes dos da classe operária, e nunca
vas formas de trabalho mais desreguladas
ção sindical foram em muitos casos devastadores, o processo de fragi- recuará para os defender. Se algum dia os sindicatos perdessem a sua
lização por que vêm passando os sindicatos nas últimas três ou quatro utilidade, ainda assim não desapareceriam.” Ainda segundo ele, muitos e expandiu-se um quadro social marcado
décadas deve-se também a responsabilidades que lhes são próprias. A sindicatos tornaram-se grandes organizações, dominadas por dirigentes pela terciarização, flexibilidade, subcontra-
questão da democracia interna, a tendência à burocratização, a resis- e quadros que funcionam numa base profissional, burocratizaram-se, tação, individualização e precariedade da
tência à renovação das lideranças e as dificuldades de manterem uma familiarizaram-se com a linguagem institucional e patronal, tratam os força de trabalho (e do próprio emprego).
permanente ligação às bases constituem alguns dos obstáculos que se empresários de igual para igual ao mesmo tempo que se afastaram da Assistiu-se a uma progressiva redução de
colocam à revitalização do sindicalismo. realidade laboral e ignoram as condições degradantes em que trabalham
direitos laborais e sociais, e ao aumento
Já nos anos 20, Robert Michels1 concebeu a chamada lei de bronze da as camadas mais vulneráveis e desqualificadas da força de trabalho.
oligarquia, reflectindo sobre o funcionamento dos partidos e sindica- Se estas tendências e perigos de perversão burocrática por parte do da insegurança e do risco, num processo
tos, onde chamou a atenção para os efeitos perversos do crescimento sindicalismo já vinham sendo apontadas desde as primeiras décadas do que se vem revelando devastador para a
organizacional, que leva à criação de estruturas de poder que promovem século passado, nos últimos cinquenta anos elas acentuaram-se ainda classe trabalhadora e o sindicalismo neste
e reproduzem os interesses dos próprios dirigentes em desfavor das ba- mais. Embora se possa argumentar que tais características não são gene- início do século XXI (Beck, 2000; Castells,
ses. A questão não é, portanto, nova. Também nos anos 30 do século ralizáveis as todas as experiências de organização e acção sindical – uma 1999). Já não são os direitos laborais
passado, Anton Pannekoek2, um velho marxista que desde cedo criticou afirmação que só pode merecer concordância –, o certo é que os traços
que se pretende defender, mas apenas o
o regime soviético e que privilegiava a defesa dos conselhos operários de rigidez, as restrições à democracia interna, a perda de capacidade
emprego. E reforça-se a ideia de que “o
e da autogestão como solução alternativa para a emancipação da classe inventiva e de dinamismo por parte das principais correntes do movi-
operária referia, num texto de 1936, que a organização sindical “já não é mento sindical se foram tornando particularmente notórias, sobretudo a pior dos empregos é sempre preferível ao
uma assembleia de operários; forma um corpo organizado, que possui partir dos anos 60. A emergência dos novos movimentos sociais (NMSs), desemprego”, o que traduz bem a debilida-
uma política, um carácter, uma mentalidade, tradições que lhe são pró- nesse período, ajudou a revelar ainda mais essa realidade. de em que se encontra hoje o trabalhador.
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MICHELS, Robert (2001) – Para uma Sociologia dos Partidos Políticos na Democracia Moderna. Lisboa: Antígona. O actual compromisso capital-trabalho não
PANNEKOEK, Anton (1934) – O Sindicalismo, em http://www.marxists.org/portugues/pannekoe /1936/01.htm (acesso em 22 de Setembro de 2007).
passa de uma aparência de compromisso,
ou seja, uma imposição de novas e mais
precárias condições ao parceiro mais fraco
do século XIX e noutros contextos mais Muitas revoluções e protestos sociais ao em Portugal – em que o sindicalismo e os do contrato (Santos, 2006).
recentes, de que pode ser exemplo o caso longo da história começaram por movi- movimentos populares se misturaram de
português – com o 25 de Abril de 1974 –, mentos de carácter disperso e espontâneo tal modo que foi impossível distingui-los.
Novos activismos em rede e
a mobilização popular não se deveu apenas baseados nesse tipo de elementos (Skocpol, A Revolução dos Cravos foi vista por
novos desafios sindicais
a motivações políticas e económicas (nem 1985). Porém, à medida que os movimentos muitos como expressão de continuidade
a causas racionais, da ordem da “consci- se vão expandindo e ganhando força, à dos NMSs da década anterior no plano Tomados por muitos como factores de
ência” ou dos “interesses”), mas também, medida que se afirmam as suas lideranças, internacional, um exemplo que chegou bloqueio ao crescimento económico e ao
talvez sobretudo, a factores culturais e se estruturam as suas bases organizativas e a criar expectativas de construção de um desenvolvimento, os sindicatos queixam-
identitários. E estes foram construídos a orientações ideológicas, tende do mesmo modelo “único” de democracia participati- se, com razão, de que estamos a regressar
partir de estímulos discursivos dirigidos ao passo a reforçar-se a componente formal va. Mas, ao mesmo tempo, os partidos da aos tempos “satânicos” de Marx. Mas,
imaginário colectivo, em nome da “boa” e, por isso, as conquistas alcançadas pelos extrema-esquerda e o PCP, que integravam apesar disso, a mítica classe operária
comunidade, solidária e justa (fosse ela o movimentos sociais caminham geralmente essas mobilizações, advogavam uma “dita- que alimentou o discurso sindicalista do
“povo”, a “classe operária”, o “MFA” ou o de par com o apagamento das suas lutas. dura do proletariado” ou sonhavam com passado está em irreversível desagregação

JANUS 2008 anuário de relações exteriores


Título do capítulo
Elísio Estanque Sub-capítulo 0.0.00

PERCEPÇÃO SUBJECTIVA DOS CONFLITOS DE INTERESSE NA SOCIEDADE (em %) cionais, de dentro para fora, dos países acomodação ao funcionamento burocrá-
Conflitos entre1: Portugal Suécia Canadá Rep. Checa avançados para os países pobres; que não tico em que boa parte do sindicalismo de
Pobres e ricos 76,7 35,0 34,7 29,3 abdique da defesa dos valores democrá- hoje se deixou enredar. Exige uma reflexão
Classe trabalhadora e classe média 63,2 12,6 14,1 9,4 ticos, mas em que estes se alarguem à séria e uma atitude auto-crítica e porven-
Directores e trabalhadores 87,8 33,2 –1 38,5 democracia participativa (nas empresas, tura mais humilde da parte das actuais
O topo e a base da sociedade 86,5 64,6 52,3 44,8
escolas, cidades, comunidades, etc); que lideranças. Por exemplo, o recurso aos
Jovens e idosos 62,6 19,5 27,1 21,6
coloque as questões ambientais e a defesa meios informáticos, que os movimentos
Fonte: Estudo comparativo baseado nos dados do International Social Survey Programe (ISSP). Publicado em: ESTANQUE, Elísio
(2003) – “O efeito classe média: desigualdades e oportunidades no limiar do século XXI”, in CABRAL, M. Villaverde, VALA, J. e dos consumidores, dos saberes e tradições “alter-globalização” têm sabido utilizar des-
FREIRE, A. (orgs.) – Desigualdades Sociais e Percepções de Justiça. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, pp. 69-105.
1 As percentagens correspondem ao somatório de respostas indicando serem os interesses conflituais entre estas categorias “fortes” ou
culturais locais no centro das suas lutas de Seatle, a extraordinária capacidade que
“muito fortes”.
e negociações; que resista ao capitalismo a Internet e o ciberespaço disponibilizam
destrutivo através de um maior controlo para aceder, acumular e divulgar a informa-
sobre o processo produtivo, os investimen- ção em fracções de segundo, mostra como
e não surge no horizonte nenhuma outra alguns aspectos inovadores das novas tos, a inovação tecnológica e as políticas de o activismo “virtual-real” poderia ser uma
entidade capaz de congregar a unidade redes de activismo global do século XXI. formação e qualificação profissional; que poderosa arma ao serviço do movimento
dos assalariados. As actuais pressões do Apesar do sindicalismo apenas timidamen- pense os problemas laborais no quadro sindical (Ribeiro, 2000; Waterman, 2002).
mercado e da economia global deixam te se ter envolvido nessas iniciativas, o mais vasto da sociedade, da cultura ao Mas permanece no ar a dúvida sobre se os
aos sindicatos uma margem de manobra actual contexto apresenta um conjunto de consumo, do trabalho ao lazer, da empresa seus dirigentes, formados no velho modelo
cada vez mais estreita, mas por outro lado novos desafios para o movimento sindical à família, do local ao global (Estanque, nacional-industrial, conseguirão responder
o esforço de actualização por parte das e outros movimentos sociais. Diversos 2004; Hyman, 2002). a estes desafios ou se deixarão definhar um
estruturas sindicais tem sido diminuto e autores e académicos têm formulado a Mas tudo isto pressupõe uma estratégia sindicalismo já em acelerado processo de
insuficiente para responder aos problemas necessidade de se criarem novas alianças e ambiciosa que rompa com a prática de descredibilização. ■
da actualidade. dinâmicas internacionalistas, como condi-
Nas últimas décadas, enquanto a economia ção para revitalizar o sindicalismo perante
e os mercados deixaram de estar confi- as preocupantes desigualdades e injustiças
nados a fronteiras, o movimento sindical que se acentuam em todos os continentes,
revelou grandes dificuldades em agir para alegando que a globalização do capital exi-
lá do âmbito nacional (e muitas vezes ge respostas igualmente globalizadas por
sectorial). A globalização revela-se contra- parte das suas vítimas1 ( Waterman, 2002;
ditória e gera efeitos paradoxais, por vezes Estanque, 2007).
justapondo lógicas globais e locais. Expres- Daí o apelo à criação de novas redes de
são dessas contradições foi a recente onda activismo transnacional. Estas, porém, só
de movimentos sociais que se reclamam de poderão fortalecer-se com um sindica-
“alter-globalização”. Os repetidos protestos lismo de novo tipo – um sindicalismo
desencadeados desde a cimeira da OMC de movimento social global – orientado
em Seatle, em 1999, que culminaram com para a intervenção cidadã, que se estenda
os encontros do Fórum Social Mundial, em para além da esfera laboral; que passe das
1 Aqueles sectores particularmente dependentes e precários que a nova tecnocracia, isto é, a nova classe capitalista transna-
Porto Alegre e noutras cidades, revelaram solidariedades nacionais para as transna- cional (Sklair, 2001) considera como os “detritos” da avassaladora onda da (boa) globalização.

Referências

BECK, Ulrich (2000) – Un nuevo mundo feliz: la precaridad del trabajo en la era de la globalización. Barcelona: Paidós.
CASTELLS, Manuel (1999) – A sociedade em Rede — A era da informação: economia, sociedade e cultura, Vol. 1, São
Paulo: Paz e Terra.
ATITUDES PERANTE A IMPORTÂNCIA DO “MÉRITO”, POR CATEGOROA DE CLASSE (em %) ESTANQUE, Elísio (2004) – “A Reinvenção do sindicalismo e os novos desafios emancipatórios: do despotismo local à mobi-
“As recompensas dependem do mérito e das qualificações” (% de concordância)1 lização global”, in SANTOS, Boaventura S. (org.) – Trabalhar o Mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário.
Porto: Afrontamento, pp. 297-334.
Categorias de classe Portugal Suécia Canadá Rep. Checa
ESTANQUE, Elísio (2007) – “A questão social e a democracia no início do século XXI: participação cívica, desigualdades
Empregadores 40,0 37,3 65,4 24,5 sociais e sindicalismo”, Finisterra – Revista de Reflexão Crítica, vol. 55/56/57.
Pequena burguesia 47,9 43,8 57,1 26,1 HYMAN, Richard (2002) – “Europeização ou erosão das relações laborais?”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 62. Coimbra:
CES, pp. 7-32.
Gestores 59,4 41,9 62,9 15,0 MORRIS, Paul (1996) – “Community Beyond Tradition”, in Paul Heelas et al. (eds.), Detraditionalization. Oxford: Blackwell,
Supervisores 46,0 43,9 58,2 23,4 223-249.
RIBEIRO, Gustavo Lins (2000) – “Política Cibercultural: ativismo político à distância na comunidade transnacional imaginada-
Trabalhadores sem qualificação 44,3 32,2 64,0 19,6 virtual”, in ALVEREZ, S., DAGNINO, E. e ESCOBAR, A. – Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos. Belo
Proletários 37,6 33,6 50,8 21,0 Horizonte: Editora UFMG, pp. 465-502.
SANTOS, Boaventura S. (2006) – A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento.
Totais 43,2 36,6 58,6 21,5
SKLAIR, Leslie (2001) – The Transnational Capitalist Class. Oxford/Malden, MA: Blackwell.
Fonte: Elísio ESTANQUE (2003), “O efeito classe média: desigualdades e oportunidades no limiar do século XXI”, in CABRAL, M.
SKOCPOL, Theda (1985) – Estados e Revoluções Sociais. Lisboa: Editorial Presença.
Villaverde, VALA, J. e FREIRE, A. (orgs.) – Desigualdades Sociais e Percepções de Justiça. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, pp.
69-105. TILLY, Charles (1978) – From Mobilization to Revolution. Addison/Mass: Wesley Publishing Company.
1 As percentagens correspondem ao somatório das respostas “concordo totalmente” e “concordo” com esta afirmação. WATERMAN, Peter (2002) – “O internacionalismo sindical na era de Seattle”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 62.

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