Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Capítulo 2
PRECEDIMENTOS ANALÍTICOS E METODOLÓGICOS
101
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
Novo a nível local e qual o impacto das suas políticas de controlo recreativo sobre os
trabalhadores?
Torna-se necessário procurar possíveis respostas a estas interrogações para que elas
nos ajudem a compreender algumas das especificidades e contradições que actualmente
acompanham a expansão da indústria do calçado na região. Tanto no passado como na
actualidade, este contexto socioeconómico continua a ser atravessado por tendências
contraditórias – a produção industrial e o mundo rural, o mercado e a comunidade
tradicional, a presença do Estado e as redes primárias e familiares, o sindicalismo e as
lealdades locais, etc. –, as quais se inscrevem no contexto cultural envolvente sob a forma
de redes de relações sociais em constante estruturação e fragmentação. De um lado, um
tecido industrial flexível que estende os seus mecanismos de suporte para diferentes
direcções e espacialidades, que os move de uns lugares para outros, que se implanta no
seio da família com o trabalho domiciliário, que liga as maiores empresas às inúmeras e
minúsculas unidades produtivas semi-clandestinas que se dispersam entre diferentes
comunidades. De outro lado, uma força de trabalho animada pela luta constante pela
renovação das formas de subsistência, procurando pôr em marcha novas estratégias de
acumulação, em que o trabalho industrial não é incompatível com as actividades agrícolas,
em que a relação salarial na fábrica não é incompatível com as mais diversas formas
informais de actividade económica. Neste conjunto extremamente maleável de formas de
ligação entre a indústria e as comunidades, torna-se impossível identificar estruturas
rígidas e práticas de classe bem definidas.
102
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
103
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
cultura operária se dissiparam no seio de uma cultura popular mais dispersa e polifacetada,
estruturada em espaços mistos de ruralidade e urbanidade, onde a comunidade combina
dialecticamente práticas e formações pré-modernas com os efeitos da lógica moderna
produzidas pela dupla acção da produção e do consumo, dando lugar a um tecido
sociocultural em acelerada recomposição.
1
Sendo certo que a existência das classes enquanto forças sociais organizadas nunca teve uma
inquestionável tradução empírica, muitas lutas operárias foram durante muito tempo entendidas pelos
marxistas como estruturadas unicamente através das relações de produção. Mas, não pode esquecer-se,
evidentemente, que o conceito de classe foi muitas vezes perspectivado num sentido mais abrangente,
incluindo por vezes a própria esfera da comunidade, como acontece com E. P. Thompson (veja-se Capítulo
1).
104
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
que exige a remoção das “pré-noções” e a denúncia da illusio que define o senso comum.
Embora bem ciente das incontornáveis “rasteiras epistemológicas” a que estarei exposto –
qualquer que seja a orientação privilegiada –, ao adoptar uma postura compreensiva e
auto-reflexiva no manuseamento dos diferentes instrumentos metodológicos utilizados,
pretendi assumir uma perspectiva crítica destinada a questionar e confrontar a concepção
que acabo de referir.
A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o
investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não
pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma
105
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta
reconhecer cinicamente que o cientista é também ele um ser social para que o problema
esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de conhecimento
que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma sociologia auto-
reflexiva, é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio trabalho de
pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições que ele
encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto processo social
orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de contingências. A
estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser expostos a avaliação do
mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que este tipo de problemas se
levanta nos mais variados contextos de investigação, é evidente que quanto maior for o
grau de envolvimento do investigador com os sujeitos sociais sob observação, mais
pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente discussão vem a propósito das diversas
situações de observação directa utilizadas durante a pesquisa, mas ganha um significado
especial no caso da observação participante realizada na fábrica.
106
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a atenção para o facto de que,
quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele tende a criar mecanismos de
protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho está sujeito, incluindo o do
próprio estatuto “soberano” do cientista: “uma condição da compreensão é a constante
interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que nos autorizam a mover-nos no
mundo social como peixe na água” (Fowler, 1996: 11). A reflexividade baseia-se num
sentimento e num olhar sociológico que habilita o investigador a perceber e a dirigir no
terreno os efeitos da estrutura social em que a pesquisa está a decorrer, mas não se pode
dissociar a construção do objecto, do instrumento de construção do objecto e da sua crítica
(Wacquant e Bourdieu, 1992: 30). Acresce que o conhecimento é sempre situado e
produzido a partir de uma perspectiva parcial que, em situação, canaliza de modo
selectivo e definido dimensões sociais (concepções de justiça social, por exemplo)
diversificadas que são constitutivas de um contingente de subjectividades (Haraway,
1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja a modalidade cognitiva de que falamos, o
processo de construção do conhecimento contém sempre uma dimensão autobiográfica, e
esta não é redutível à reflexividade, tal como a entende Bourdieu.
Uma segunda preocupação que esteve presente na elaboração deste estudo diz
respeito à articulação entre os níveis de análise macro e micro. Desde logo, o facto de a
abordagem incidir no contexto específico da indústria do calçado assenta num pressuposto
de raiz metodológica e que remete para esta questão. A razão de ser desta delimitação
espacial prende-se com a ideia de que o processo de estruturação industrial constitui uma
importante base de modelação de práticas e subjectividades sociais, ou seja, a lógica
estrutural e sistémica desse processo é fortemente marcada por uma estratégia macro-
económica, mas a sua especificidade local e a coerência sociocultural que daí resultaram
ao longo do tempo devem-se, em boa medida, às formas particulares de acção dos agentes
e das comunidades, no modo como se adaptaram ou resistiram à sua implantação.
107
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte integrante da estrutura e por isso,
embora estas imponham fortes limites e obstáculos ao conhecimento e à acção dos
indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem face às pressões exteriores são
geradoras de mudança, muito embora essa mudança possa ser contrária às suas intenções.
É nesse sentido que a estrutura pode ser vista como uma “ordem virtual” que se refere às
“propriedades de estruturação” (Giddens, 1989: 13), as quais tendem a assegurar as
necessidades de reprodução sistémica, mas, dadas as múltiplas pressões e adaptações que
encerram, são obrigadas a uma permanente reconstituição dessas propriedades (cf. Fine,
1991 e 1992; Collins, 1981).
Tal como a macroestrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de
um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro
como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no
cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e
complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que
permitam ver a forma como as dicotomias acção/ estrutura e micro/ macro, são
impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162). Se nos situamos, por exemplo, no micro
nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos exige que se observe o
exercício do constrangimento não só enquanto resultado da interiorização de normas e
valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos da estrutura societal que
modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o constrangimento opera
internamente, tanto pela coerção como pela interiorização individual da disciplina, as
contingências da realidade exterior operam independentemente da percepção, impondo
limites ao sucesso almejado pelo esforço individual de agenciamento. A exterioridade é a
estrutura persistente, incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os
actores, mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa
dupla articulação que se afirmam as bases ou os macro-fundamentos da micro-estrutura
(Fine, 1991). Não se trata de os indivíduos não poderem agir “como eles querem”, mas
sim de ter em conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o
nosso entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num
sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura do
mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc., vistas
num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro-estrutura. “O
mundo micro e macro são colocados num equilíbrio delicado. A liberdade do actor
108
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
individual é ilusória, mas através dessa profunda ilusão torna-se real para todos os efeitos.
As estruturas tornam-se reais e aceites como tais por aqueles que se encontram em
interacção com as suas manifestações. Os efeitos da estrutura não são ilusórios, mas,
apesar disso, as imagens que caracterizam a estrutura podem ter um charme fantástico”
(Fine, 1991: 165).
109
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
relativismo, segundo o qual parece não existir um mundo real mas apenas múltiplas
situações de acordo com as perspectivas particulares e, por outro lado, no que toca à sua
procura de características invariantes que tendem a universalizar todas as situações sociais
com base nesses princípios universais (a comunicação, a racionalidade, o tabu do incesto,
etc.). Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do
espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações
genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é,
explicações com base em resultados particulares. “No modo genético, o significado de um
caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a
verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha
assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao
significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a
sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares”
(Burawoy, 1991: 281).
O método de caso alargado, embora também adopte uma análise situacional2, evita
os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente
modelada a partir de cima. Pretende-se dar conta da generalização “através da
reconstrução das generalizações existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente”
(Burawoy, 1991: 279). Procurei, no entanto, não ficar preso à ênfase, talvez excessiva, que
Burawoy coloca no consentimento e nas capacidades de modelação vindas de cima e por
isso não deixei de atender às formas de resistência dirigidas de baixo para cima. No
cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom up – deverão
encontrar-se as especificidades deste tecido sociocultural, e é a essa luz que pretendo
explicar as suas características ambíguas. Significa isto que as formas particulares que
assumem as relações entre a classe e a comunidade ou entre a produção e as identidades
culturais locais nesta região devem dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de
mudança estrutural mais vastos, mas as suas principais linhas de transformação histórica
podem assumir formas discrepantes nos níveis nacional e local. A metodologia de
Burawoy conduz directamente às questões da dominação e da resistência, aspectos estes
que, como já enunciei, ocupam um lugar central na presente tese. Adopta-se, portanto,
2
Porém, diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o poder sobretudo através dos modos
como ele se realiza nas situações no interior do micro-contexto, colocando a ênfase nas variáveis que podem
ser manipuladas na situação imediata – a presente orientação metodológica não menospreza as forças mais
amplas procurando ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro.
110
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
Foi, portanto, à luz deste tipo de preocupações que procurei conjugar as técnicas
utilizadas, qualitativas e quantitativas. O facto de há vários anos ter começado a estudar o
sector do calçado nesta região (Estanque, 1991, 1992, 1993 e 1994) facilitou imenso a
realização deste projecto de pesquisa. Os contactos e ligações prévias que mantive com
diversas fontes e observadores locais, assim como a própria reflexão já realizada, foram
fundamentais para levar a cabo o presente estudo. Assim, numa primeira fase, a observação
sistemática, as entrevistas não estruturadas e conversas informais, a observação participante
em ambientes populares e celebrações festivas, e a análise documental de monografias,
jornais e revistas locais foram os instrumentos privilegiados.
111
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
comunidade local. Assim, por exemplo, na abordagem das comunidades tradicionais e suas
expressões festivas (Capítulo 3), recorri a diversas monografias elaboradas por esses
observadores privilegiados (nalguns casos, por figuras da terra e em geral publicadas por
instituições locais), procurando dar atenção ao viés subjectivo ou moralista que surge em
alguns desses testemunhos, tomando-os como um elemento do próprio processo de
normalização e enquadramento cultural, quer na análise das experiências laborais, quer no
campo dos lazeres populares. Quer isto dizer que os discursos centrados nos
comportamentos populares são por vezes vistos como uma espécie de contraponto moral das
práticas efectivas que por essa via podem ser captadas. Este aspecto prende-se, no fundo,
com um problema que não é novo nas ciências sociais e que diz respeito à escassez de fontes
e testemunhos directos, quando se trata de estudar as classes subordinadas e o seu passado
histórico. Como se sabe, são sobretudo os grupos dominantes, escolarizados e poderosos,
que nos deixam legados escritos. Essa lacuna poderá, portanto, ser compensada desde que a
leitura das fontes possa ser sujeita a escrutínio crítico e se proceda ao seu enquadramento no
contexto mais geral da pesquisa, de acordo com os pressupostos analíticos já referidos.
O inquérito foi aplicado a uma amostra representativa da população activa, com idades
entre os 18 e os 70 anos. A amostra foi constituída por 300 indivíduos, seleccionados entre a
população dos três concelhos estudados, tendo-se seguido os procedimentos de
representatividade e aleatoriedade que garantem uma margem de erro de 5%, para um nível
de confiança de 95% (ver Anexo Metodológico do Capítulo 6). O questionário, bem como o
modelo teórico utilizados nesta abordagem (que se apoia na teoria de classes de Erik Olin
112
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
Trabalhei como operário durante um período de cerca de três meses, cumprindo todos
os horários, executando diversas tarefas na linha de montagem e sujeitando-me o mais
possível a todos os condicionalismos inerentes ao processo produtivo. Os inúmeros
problemas com que me deparei durante esta fase da pesquisa – quer de natureza científica,
quer pessoal e humana, se é que estas duas vertentes se podem desligar – são
detalhadamente relatados no capítulo anexo ao da análise dos resultados (Capítulo 7-A),
apresentado sob a forma de Diário de Campo. Por esse motivo não vou aqui alongar-me
neste assunto. Como se sabe, uma das maiores dificuldades que este método levanta diz
respeito ao período de integração e aceitação do investigador no seio do grupo que vai
estudar. O esforço necessário para conquistar a aceitação é, como a antropologia cultural já
mostrou, um dos aspectos mais importantes do método de observação participante. “Raro é o
etnógrafo que, durante esse período de adaptação, não tenha sentido uma forte reacção
pessoal de desgosto, agressividade e até repulsa pela população escolhida” (Geertz, citado
por Pina Cabral, 1983: 331). Se as experiências de campo vividas pelos antropólogos, em
3
Tratou-se de uma pequena fábrica, com cerca de 55 trabalhadores, sediada em SJM. A empresa foi
criada no início dos anos oitenta e é actualmente dotada de um conjunto de equipamentos tecnológicos
bastante avançados. Como na maioria do sector, a sua produção é sobretudo destinada à exportação para a
Europa, Oriente e América do Norte.
113
Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade
114