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Estanque, E.

- Entre a Fábrica e a Comunidade

Capítulo 2
PRECEDIMENTOS ANALÍTICOS E METODOLÓGICOS

2.1 - Hipóteses de partida

A perspectiva de análise em que me apoiei na realização deste estudo pressupõe,


como tenho vindo a referir, a existência de múltiplas combinações entre a classe e a
comunidade, as quais permitirão compreender as formas de acção e de produção
identitária dos trabalhadores da indústria do calçado e das colectividades locais da zona de
S. João da Madeira. É na base das variadas formas de articulação entre a produção e o
consumo, entre o trabalho e o lazer, entre a economia e a cultura que terão de se encontrar
as principais linhas de interpretação sociológica para as formas aparentemente ambíguas e
contraditórias que definem o operariado do calçado desta região industrial.

Ao mesmo tempo, o passado histórico constitui uma dimensão fundamental que


procurei equacionar, no sentido de perceber as formas de estruturação e os traços
específicos – quer no quadro estrutural mais amplo, quer no terreno das práticas e
subjectividades – desta classe trabalhadora. Deste modo, é importante saber, em primeiro
lugar, até que ponto e de que maneira as experiências vividas em certos momentos da
história local deram lugar a uma identidade classista ou que tipo de mecanismos impediu
que a mesma se tornasse relevante em termos culturais e políticos. Em segundo lugar, só
equacionando essa dimensão se poderão compreender os principais processos de mudança
na região e de que modo eles foram ou não marcantes na estruturação da memória
colectiva dos trabalhadores. Qual o papel das experiências de luta vividas nos princípios
deste século – nomeadamente pelo sector chapeleiro – na emergência de uma cultura com
contornos de “aristocracia operária”? Que processos contribuíram para a sua posterior
reconversão e esbatimento? É possível ver, através das formas populares de expressão
festiva, a mistura de referências e a ductilidade de lógicas culturais e identitárias resultante
da penetração da indústria e do mercado no seio das culturas tradicionais? Que incidência
terá tido esse processo no domínio das formações de classe locais? Que outras dinâmicas
concorreram para impedir a emergência de uma identidade de classe com verdadeira
expressão social e política? Qual o papel do bairrismo local e de que forma ele estimulou
o paternalismo em detrimento da classe? Que factores favoreceram a acção do Estado

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Novo a nível local e qual o impacto das suas políticas de controlo recreativo sobre os
trabalhadores?

Torna-se necessário procurar possíveis respostas a estas interrogações para que elas
nos ajudem a compreender algumas das especificidades e contradições que actualmente
acompanham a expansão da indústria do calçado na região. Tanto no passado como na
actualidade, este contexto socioeconómico continua a ser atravessado por tendências
contraditórias – a produção industrial e o mundo rural, o mercado e a comunidade
tradicional, a presença do Estado e as redes primárias e familiares, o sindicalismo e as
lealdades locais, etc. –, as quais se inscrevem no contexto cultural envolvente sob a forma
de redes de relações sociais em constante estruturação e fragmentação. De um lado, um
tecido industrial flexível que estende os seus mecanismos de suporte para diferentes
direcções e espacialidades, que os move de uns lugares para outros, que se implanta no
seio da família com o trabalho domiciliário, que liga as maiores empresas às inúmeras e
minúsculas unidades produtivas semi-clandestinas que se dispersam entre diferentes
comunidades. De outro lado, uma força de trabalho animada pela luta constante pela
renovação das formas de subsistência, procurando pôr em marcha novas estratégias de
acumulação, em que o trabalho industrial não é incompatível com as actividades agrícolas,
em que a relação salarial na fábrica não é incompatível com as mais diversas formas
informais de actividade económica. Neste conjunto extremamente maleável de formas de
ligação entre a indústria e as comunidades, torna-se impossível identificar estruturas
rígidas e práticas de classe bem definidas.

Uma primeira hipótese de partida que formulei prende-se justamente com a


abordagem das relações e práticas de classe deste operariado: pressupõe que as formas de
adaptação e de resistência se preservaram na base de uma constante ligação e
interdependência entre o trabalho industrial e as comunidades. Tal situação tende a
favorecer a preservação de sistemas de poder de índole paternalista apoiados em lógicas
identitárias ambivalentes e intermutáveis – estruturadas na transposição de fronteiras entre
a fábrica e a comunidade – em que a experiência vivida em cada uma dessas esferas é
fortemente impregnada pela experiência incorporada a partir da outra.

Uma segunda hipótese, diz respeito mais estritamente às relações de trabalho e


pressupõe que as transformações neste campo decorreram em três fases, as quais
correspondem a distintos regimes de acumulação: a fase de arranque da industrialização –

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de finais do século passado até à queda da 1ª República –, em que o liberalismo


económico foi acompanhado pela emergência de uma lógica paternalista enraizada na
tradição artesanal e em que as experiências de classe foram marcadas pela “aristocracia
operária” da indústria de chapelaria; a fase de estagnação salazarista em que as políticas
autoritárias promoveram e se apoiaram no discurso bairrista promovido pelas novas elites
da vila industrial – e do qual a lógica nacionalista do Estado Novo tentou apropriar-se –,
deixando no entanto espaço para pequenas bolsas de “fordismo” (o caso da indústria
metalomecânica Oliva) onde a consciência de classe operária ganhou algum significado a
partir de meados do século; e, finalmente, uma fase que se desenvolveu a partir de finais
dos anos sessenta, de características “pós-fordistas”, cujo sector impulsionador foi o
calçado e que foi estruturando um modelo de massificação operária, com uma mão-de-
obra fragmentada e precarizada, vinculada aos habitus rurais, que se afasta da militância
sindical e em que a resistência passiva que promove é largamente suplantada pela lógica
do consentimento no interior da fábrica, onde prevalecem modelos de poder de tipo
despótico-paternalistas.

Uma terceira hipótese – continuando a considerar as mesmas três fases – dirige-se


às grandes linhas de mudança que ocorreram na esfera comunitária e das relações de lazer:
na primeira fase vigorou sobretudo o modelo rural, em que as festividades permaneciam
associadas ao “tempo natural” dos ciclos agrícolas, mas ao mesmo tempo assiste-se à
penetração das relações de mercado e à sua acção modeladora sobre a cultura popular, em
que os efeitos disciplinares do trabalho industrial são secundados pela crescente acção
moralista das elites locais face aos costumes do povo (considerados “desbragados”); na
fase seguinte, a incidência dos costumes e consumos burgueses fez-se sentir, a
moralização tutelada pelo Estado salazarista tornou-se mais notória e o enquadramento
institucional do recreio popular forneceu algumas bases para a expansão de novas formas
de lazer da classe trabalhadora local; na última fase, a massificação dos consumos ganha
maior expressão nas comunidades locais e a lógica mercantilista acompanha a expansão
dos contextos industriais, mas, embora os seus efeitos adaptativos estejam em
crescimento, não deixam de ter lugar ambientes populares e formas de expressão cultural
próximas do “carnavalesco”, onde a tradição e as culturas locais misturam a irreverência
popular com a estética uniformizante da cultura de massas.

Uma quarta hipótese desenvolve-se na base da mútua permeabilidade entre estas


duas dimensões – da produção e do consumo – e considera que as expressões pontuais da

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cultura operária se dissiparam no seio de uma cultura popular mais dispersa e polifacetada,
estruturada em espaços mistos de ruralidade e urbanidade, onde a comunidade combina
dialecticamente práticas e formações pré-modernas com os efeitos da lógica moderna
produzidas pela dupla acção da produção e do consumo, dando lugar a um tecido
sociocultural em acelerada recomposição.

Finalmente, uma quinta hipótese refere-se ao processo de formação e fragmentação


de classes e considera que as formas de acção e de consciência que este operariado dá
mostras nunca evidenciaram uma “identidade de classe” forte e estruturada1, antes
revelarão a natureza dúctil e ambígua de uma categoria social que na sua heterogeneidade
e nas suas posições contraditórias desenvolve práticas e subjectividades ambivalentes,
cujas capacidades de acção em termos colectivos não são suficientemente fortes para
combater a lógica despótica e exploradora a que se sujeita, mas cujos códigos culturais e
sentido identitário não são suficientemente fracos para ver no patrão o seu protector. Por
isso, é de prever que o aparente esbatimento de formas de luta não significará a total
ausência de expressões de rebeldia.

2.2 - Orientação metodológica

Para a ciência moderna, o conhecimento cientifico é, como se sabe, construído em


ruptura com o senso comum. Quer isto dizer que, no caso das ciências sociais, as
subjectividades e atitudes dos actores ou categorias sociais em estudo são tomadas como
parte dos determinantes estruturais em que os indivíduos estão mergulhados e dos quais
não se dão conta, segundo o conhecido princípio da não consciência. O cientista, pelo
contrário, e dado o domínio que detém do vasto arsenal teórico e metodológico ao seu
dispor, é situado num plano superior e regra geral aparece como que imune face às
armadilhas do senso comum. Ele posiciona-se no lugar da razão. É tido como o produtor
da verdade, enquanto os agentes sociais que ele estuda vivem no mundo da illusio, da
“ilusão bem fundada” durkheimiana (Bourdieu). Esta concepção dominante da prática
científica caracteriza-se não apenas pelo viés positivista mas inclusivamente pela posição
privilegiada que é atribuída ao cientista (neste caso ao sociólogo) no acesso à “verdade”, e

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Sendo certo que a existência das classes enquanto forças sociais organizadas nunca teve uma
inquestionável tradução empírica, muitas lutas operárias foram durante muito tempo entendidas pelos
marxistas como estruturadas unicamente através das relações de produção. Mas, não pode esquecer-se,
evidentemente, que o conceito de classe foi muitas vezes perspectivado num sentido mais abrangente,
incluindo por vezes a própria esfera da comunidade, como acontece com E. P. Thompson (veja-se Capítulo
1).

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que exige a remoção das “pré-noções” e a denúncia da illusio que define o senso comum.
Embora bem ciente das incontornáveis “rasteiras epistemológicas” a que estarei exposto –
qualquer que seja a orientação privilegiada –, ao adoptar uma postura compreensiva e
auto-reflexiva no manuseamento dos diferentes instrumentos metodológicos utilizados,
pretendi assumir uma perspectiva crítica destinada a questionar e confrontar a concepção
que acabo de referir.

Apesar de fazer uso de uma variedade de técnicas de recolha de informação – umas


eminentemente quantitativas, como é o caso de inquérito por questionário, outras
abertamente qualitativas, como a observação participante –, procurei, no entanto, articulá-
las na base de uma estratégia metodológica que obedece a um princípio comum: a de
privilegiar uma orientação compreensiva e reflexiva. Tal orientação, procurando em
primeiro lugar questionar e analisar o objecto de estudo, pretende ao mesmo tempo
questionar o próprio investigador na sua relação com o terreno e, na medida do possível,
dar conta das ambiguidades que esse processo encerra. Se quisesse catalogar a
metodologia adoptada, diria que ela se aproxima do “método de caso alargado” (Burawoy,
1991), a que mais adiante farei referência. Inspirando-me nessa orientação, procurei, por
um lado, centrar-me no detalhe e na minúcia das diversas situações observadas e, por
outro lado, pretendi inserir esses cenários sociais num quadro estrutural e histórico mais
amplo, tendo em vista utilizá-los como ilustração dos efeitos localizados – e nessa medida
dotados de características particulares – das tendências transformadoras ocorridas na
sociedade portuguesa ao longo dos últimos cem anos, em especial naquilo em que as
mesmas tiveram uma incidência directa nesta região e nas dimensões abrangidas pela
pesquisa.

Passarei então a apresentar uma breve discussão acerca da metodologia qualitativa


que privilegiei na elaboração do estudo. Refiro-me aos problemas que se ligam à
sociologia compreensiva, à relação macro-micro e ao método de caso alargado, a que atrás
aludi. Procurarei no final deste tópico sistematizar as várias técnicas a que recorri, em
função das diferentes dimensões analíticas que integram a pesquisa.

2.2.1 - Compreensão e auto-reflexão

A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o
investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não
pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma

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racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta
reconhecer cinicamente que o cientista é também ele um ser social para que o problema
esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de conhecimento
que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma sociologia auto-
reflexiva, é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio trabalho de
pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições que ele
encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto processo social
orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de contingências. A
estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser expostos a avaliação do
mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que este tipo de problemas se
levanta nos mais variados contextos de investigação, é evidente que quanto maior for o
grau de envolvimento do investigador com os sujeitos sociais sob observação, mais
pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente discussão vem a propósito das diversas
situações de observação directa utilizadas durante a pesquisa, mas ganha um significado
especial no caso da observação participante realizada na fábrica.

Quer os actores ou agentes em estudo, quer o próprio investigador orientam as suas


acções e percepções segundo o esquema de disposições sócio-cognitivas e afectivas
modeladas pelo mundo vivido das suas experiências e trajectórias. A acção social não é
mera estratégia. O comportamento humano resulta do desdobramento de linhas de acção
que obedecem a regularidades e padrões de conduta socialmente inteligíveis e coerentes,
mesmo que não se limitem a seguir conscientemente um dado conjunto de regras com
vista a alcançar objectivos premeditados (Bourdieu e Wacquant, 1992: 25).

Para a sociologia compreensiva de Bourdieu, a principal diferença na estratégia de


pesquisa não é entre uma ciência que introduz no seu seio os pressupostos subjectivos do
investigador e uma ciência que não os introduz mas sim, entre uma ciência cujos efeitos
implícitos passam adiante sem que o investigador se dê conta deles ou uma ciência em que
o mesmo está alertado para eles e procura revelá-los o mais abertamente possível de modo
a que esses efeitos perversos sejam por ele controlados e incorporados na análise
(Bourdieu, 1996: 18). Quando o investigador mergulha no contexto da pesquisa, é
necessário procurar os efeitos arbitrários dessa intrusão, os quais são inerentes à própria
forma como ele se apresenta. Ele deve tentar situar e contextualizar as expectativas dos
observados e, ao mesmo tempo, esclarecer o modo como se estabelece a interacção e as
razões que levam uns a colaborar e outros a recusar entrar nesse tipo de intercâmbio.

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Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a atenção para o facto de que,
quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele tende a criar mecanismos de
protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho está sujeito, incluindo o do
próprio estatuto “soberano” do cientista: “uma condição da compreensão é a constante
interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que nos autorizam a mover-nos no
mundo social como peixe na água” (Fowler, 1996: 11). A reflexividade baseia-se num
sentimento e num olhar sociológico que habilita o investigador a perceber e a dirigir no
terreno os efeitos da estrutura social em que a pesquisa está a decorrer, mas não se pode
dissociar a construção do objecto, do instrumento de construção do objecto e da sua crítica
(Wacquant e Bourdieu, 1992: 30). Acresce que o conhecimento é sempre situado e
produzido a partir de uma perspectiva parcial que, em situação, canaliza de modo
selectivo e definido dimensões sociais (concepções de justiça social, por exemplo)
diversificadas que são constitutivas de um contingente de subjectividades (Haraway,
1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja a modalidade cognitiva de que falamos, o
processo de construção do conhecimento contém sempre uma dimensão autobiográfica, e
esta não é redutível à reflexividade, tal como a entende Bourdieu.

2.2.2 - O macro e o micro

Uma segunda preocupação que esteve presente na elaboração deste estudo diz
respeito à articulação entre os níveis de análise macro e micro. Desde logo, o facto de a
abordagem incidir no contexto específico da indústria do calçado assenta num pressuposto
de raiz metodológica e que remete para esta questão. A razão de ser desta delimitação
espacial prende-se com a ideia de que o processo de estruturação industrial constitui uma
importante base de modelação de práticas e subjectividades sociais, ou seja, a lógica
estrutural e sistémica desse processo é fortemente marcada por uma estratégia macro-
económica, mas a sua especificidade local e a coerência sociocultural que daí resultaram
ao longo do tempo devem-se, em boa medida, às formas particulares de acção dos agentes
e das comunidades, no modo como se adaptaram ou resistiram à sua implantação.

Embora, como lembra Giddens, se devam distinguir analiticamente os sujeitos e a


estrutura, o que importa é ter presente que a mudança depende das formas de articulação
entre ambas. Para compreender a transformação há que atender às linhas de continuidade e
descontinuidade no tempo e no espaço e conceber os sujeitos não como meros “suportes”
mas sim como elementos com “capacidade de monitorização reflexiva” sobre as estruturas

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em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte integrante da estrutura e por isso,
embora estas imponham fortes limites e obstáculos ao conhecimento e à acção dos
indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem face às pressões exteriores são
geradoras de mudança, muito embora essa mudança possa ser contrária às suas intenções.
É nesse sentido que a estrutura pode ser vista como uma “ordem virtual” que se refere às
“propriedades de estruturação” (Giddens, 1989: 13), as quais tendem a assegurar as
necessidades de reprodução sistémica, mas, dadas as múltiplas pressões e adaptações que
encerram, são obrigadas a uma permanente reconstituição dessas propriedades (cf. Fine,
1991 e 1992; Collins, 1981).

Tal como a macroestrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de
um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro
como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no
cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e
complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que
permitam ver a forma como as dicotomias acção/ estrutura e micro/ macro, são
impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162). Se nos situamos, por exemplo, no micro
nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos exige que se observe o
exercício do constrangimento não só enquanto resultado da interiorização de normas e
valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos da estrutura societal que
modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o constrangimento opera
internamente, tanto pela coerção como pela interiorização individual da disciplina, as
contingências da realidade exterior operam independentemente da percepção, impondo
limites ao sucesso almejado pelo esforço individual de agenciamento. A exterioridade é a
estrutura persistente, incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os
actores, mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa
dupla articulação que se afirmam as bases ou os macro-fundamentos da micro-estrutura
(Fine, 1991). Não se trata de os indivíduos não poderem agir “como eles querem”, mas
sim de ter em conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o
nosso entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num
sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura do
mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc., vistas
num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro-estrutura. “O
mundo micro e macro são colocados num equilíbrio delicado. A liberdade do actor

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individual é ilusória, mas através dessa profunda ilusão torna-se real para todos os efeitos.
As estruturas tornam-se reais e aceites como tais por aqueles que se encontram em
interacção com as suas manifestações. Os efeitos da estrutura não são ilusórios, mas,
apesar disso, as imagens que caracterizam a estrutura podem ter um charme fantástico”
(Fine, 1991: 165).

2.2.3 - O método de caso alargado

A importância das dimensões que acabo de referir pode ser enquadrada no


procedimento metodológico mais geral que foi privilegiado na presente pesquisa: o
chamado “método de caso alargado”, desenvolvido e aplicado em vários estudos de
campo, entre outros, por Boaventura Sousa Santos (1983 e 1995) e Michael Burawoy
(1979, 1985 e 1991; Burawoy e Lukács, 1992). Esta perspectiva está intimamente ligada
às questões que acabei de referir. A orientação metodológica que persegue destina-se a
contrariar os tradicionais métodos positivistas, opondo a generalização pela quantidade e
pela uniformização, a generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Boaventura
Sousa Santos sintetiza bem as suas vantagens na seguinte passagem: “em vez de reduzir
os casos [em estudo] às variáveis que os tornam mecanicamente semelhantes, procura
analisar, com o máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar
o que há nele de diferente ou mesmo de único. A riqueza do caso não está no que há nele
de generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela
multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem” (Santos, 1983: 11-12).

O método de caso alargado (extended case method) é discutido por Burawoy em


articulação com o método da “teoria apoiada” (grounded theory), tradicionalmente
utilizado pelos estudos etnográficos. Ambas as perspectivas incorporam o micro e o
macro, considerando estes dois níveis como mutuamente implicados na realidade. A
primeira centra-se numa situação social concreta procurando compreender as forças
particulares que a moldam, evitando assim o problema da generalização; enquanto a
grounded theory “pode construir o macro a partir das suas micro generalizações, o método
de caso alargado pode fazer emergir generalizações através da teoria reconstruída”
(Burawoy, 1991: 274). Ou seja, o contexto é visto como indissociável e reflexivamente
ligado às situações, e a sua invocação e explicitação deve ser feita de modo relevante para
conferir unidade às situações no quadro de uma realidade estruturada. Através desta
abordagem é possível demarcarmo-nos dos procedimentos que adoptam um excessivo

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relativismo, segundo o qual parece não existir um mundo real mas apenas múltiplas
situações de acordo com as perspectivas particulares e, por outro lado, no que toca à sua
procura de características invariantes que tendem a universalizar todas as situações sociais
com base nesses princípios universais (a comunicação, a racionalidade, o tabu do incesto,
etc.). Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do
espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações
genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é,
explicações com base em resultados particulares. “No modo genético, o significado de um
caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a
verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha
assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao
significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a
sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares”
(Burawoy, 1991: 281).

O método de caso alargado, embora também adopte uma análise situacional2, evita
os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente
modelada a partir de cima. Pretende-se dar conta da generalização “através da
reconstrução das generalizações existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente”
(Burawoy, 1991: 279). Procurei, no entanto, não ficar preso à ênfase, talvez excessiva, que
Burawoy coloca no consentimento e nas capacidades de modelação vindas de cima e por
isso não deixei de atender às formas de resistência dirigidas de baixo para cima. No
cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom up – deverão
encontrar-se as especificidades deste tecido sociocultural, e é a essa luz que pretendo
explicar as suas características ambíguas. Significa isto que as formas particulares que
assumem as relações entre a classe e a comunidade ou entre a produção e as identidades
culturais locais nesta região devem dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de
mudança estrutural mais vastos, mas as suas principais linhas de transformação histórica
podem assumir formas discrepantes nos níveis nacional e local. A metodologia de
Burawoy conduz directamente às questões da dominação e da resistência, aspectos estes
que, como já enunciei, ocupam um lugar central na presente tese. Adopta-se, portanto,

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Porém, diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o poder sobretudo através dos modos
como ele se realiza nas situações no interior do micro-contexto, colocando a ênfase nas variáveis que podem
ser manipuladas na situação imediata – a presente orientação metodológica não menospreza as forças mais
amplas procurando ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro.

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aqui uma perspectiva que se assume como herdeira da metodologia compreensiva e


multicausal de Max Weber. O método de caso alargado, ao reconstruir uma situação social
como única, coloca a atenção na sua complexidade, na sua profundidade e na sua
amplitude. A causalidade torna-se assim múltipla, envolvendo uma interconexão entre a
situação social e o seu contexto de determinação, tentando descobrir os macro-
fundamentos da micro sociologia e os micro-fundamentos da macro sociologia. Uma
forma de evitar o determinismo e o descritivismo é dar visibilidade às práticas e
subjectividades observadas, adquiram elas a forma de adaptação e consentimento face aos
mecanismos de poder ou o carácter de resistência e transgressão em face da lógica
hegemónica – seja ela de base classista, estatal, cultural ou outra – que tais mecanismos se
destinam a servir.

2.2.4 - As técnicas de recolha utilizadas

Foi, portanto, à luz deste tipo de preocupações que procurei conjugar as técnicas
utilizadas, qualitativas e quantitativas. O facto de há vários anos ter começado a estudar o
sector do calçado nesta região (Estanque, 1991, 1992, 1993 e 1994) facilitou imenso a
realização deste projecto de pesquisa. Os contactos e ligações prévias que mantive com
diversas fontes e observadores locais, assim como a própria reflexão já realizada, foram
fundamentais para levar a cabo o presente estudo. Assim, numa primeira fase, a observação
sistemática, as entrevistas não estruturadas e conversas informais, a observação participante
em ambientes populares e celebrações festivas, e a análise documental de monografias,
jornais e revistas locais foram os instrumentos privilegiados.

A análise histórica apoiou-se, evidentemente, em diferentes fontes documentais,


nomeadamente jornais locais, monografias, comunicados, anúncios e ilustrações diversas
(Capítulos 3 e 4). No caso da resistência operária durante o salazarismo, foram realizadas
algumas entrevistas a antigos militantes ainda vivos e socorri-me também de um documento
escrito, autobiográfico de um dos mais destacados dirigentes do sindicato do calçado. Trata-
se de uma história de vida que descreve com assinalável detalhe os problemas e angústias
desse operário num clima de perseguição e até de prisão e tortura a que foi sujeito por volta
de meados do século (ver Capítulo 4). Esta foi, portanto, uma fonte de informação de grande
importância para a compreensão da resistência sindical desse período, nesta região. Os
ambientes festivos e recreativos foram abordados a partir de discursos em que por vezes é
nítida a orientação normativa dos observadores, eles mesmos membros activos da

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comunidade local. Assim, por exemplo, na abordagem das comunidades tradicionais e suas
expressões festivas (Capítulo 3), recorri a diversas monografias elaboradas por esses
observadores privilegiados (nalguns casos, por figuras da terra e em geral publicadas por
instituições locais), procurando dar atenção ao viés subjectivo ou moralista que surge em
alguns desses testemunhos, tomando-os como um elemento do próprio processo de
normalização e enquadramento cultural, quer na análise das experiências laborais, quer no
campo dos lazeres populares. Quer isto dizer que os discursos centrados nos
comportamentos populares são por vezes vistos como uma espécie de contraponto moral das
práticas efectivas que por essa via podem ser captadas. Este aspecto prende-se, no fundo,
com um problema que não é novo nas ciências sociais e que diz respeito à escassez de fontes
e testemunhos directos, quando se trata de estudar as classes subordinadas e o seu passado
histórico. Como se sabe, são sobretudo os grupos dominantes, escolarizados e poderosos,
que nos deixam legados escritos. Essa lacuna poderá, portanto, ser compensada desde que a
leitura das fontes possa ser sujeita a escrutínio crítico e se proceda ao seu enquadramento no
contexto mais geral da pesquisa, de acordo com os pressupostos analíticos já referidos.

No que se refere aos aspectos da análise mais centrados na actualidade, socorri-me de


instrumentos como a observação participante, o inquérito por amostragem, análise
documental, entrevistas e observação directa. Esta última técnica foi sobretudo utilizada nos
casos em que se pretendeu retratar os ambientes públicos (cafés, tabernas, festas, etc.).
Diversas entrevistas foram realizadas a operários, proprietários do sector do calçado,
dirigentes sindicais e da associação patronal, além das inúmeras conversas informais com
trabalhadores de variadas empresas. Por vezes acompanhei jovens trabalhadores nas suas
ocupações de lazer (bares, discotecas, festas populares, etc.) a fim de compreender algumas
das actuais tendências dos comportamentos juvenis neste campo. O sindicato do sector do
calçado e os seus mais destacados dirigentes prestaram um apoio que merece realce por
terem permitido o acesso a ambientes e situações laborais que de outra forma dificilmente
seriam detectáveis (Capítulo 6).

O inquérito foi aplicado a uma amostra representativa da população activa, com idades
entre os 18 e os 70 anos. A amostra foi constituída por 300 indivíduos, seleccionados entre a
população dos três concelhos estudados, tendo-se seguido os procedimentos de
representatividade e aleatoriedade que garantem uma margem de erro de 5%, para um nível
de confiança de 95% (ver Anexo Metodológico do Capítulo 6). O questionário, bem como o
modelo teórico utilizados nesta abordagem (que se apoia na teoria de classes de Erik Olin

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Wright), foram os mesmos que se adoptaram no estudo sobre a estrutura de classes em


Portugal, num projecto recentemente concluído (Estanque e Mendes, 1998). Esta vertente de
análise destina-se, por um lado, a fornecer uma visão mais sistematizada da estrutura de
classes da região do calçado e, por outro lado, permitiu-me articular a análise histórica e
qualitativa com as conclusões fornecidas por esta leitura estrutural, ao mesmo tempo que
possibilitou também a sua comparação com os resultados nacionais. Desde modo, não
obstante o modelo de análise se apoiar aqui numa técnica quantitativa, a interpretação dos
dados insere-se na orientação analítica mais geral do método de caso alargado.

A observação participante foi adoptada tendo em vista uma abordagem mais em


profundidade das relações de trabalho numa empresa do sector do calçado3 (Capítulo 7). A
selecção desta unidade foi efectuada a partir de um leque relativamente restrito de
alternativas, na sequência de contactos por carta que dirigi a um conjunto de cerca de vinte
empresas, explicando os meus objectivos. De assinalar é ainda o facto de a minha aceitação
pelo proprietário ter passado por uma negociação em que me comprometi a realizar,
paralelamente aos meus próprios interesses de pesquisa, um diagnóstico da situação social e
das atitudes dos operários perante o trabalho e a empresa.

Trabalhei como operário durante um período de cerca de três meses, cumprindo todos
os horários, executando diversas tarefas na linha de montagem e sujeitando-me o mais
possível a todos os condicionalismos inerentes ao processo produtivo. Os inúmeros
problemas com que me deparei durante esta fase da pesquisa – quer de natureza científica,
quer pessoal e humana, se é que estas duas vertentes se podem desligar – são
detalhadamente relatados no capítulo anexo ao da análise dos resultados (Capítulo 7-A),
apresentado sob a forma de Diário de Campo. Por esse motivo não vou aqui alongar-me
neste assunto. Como se sabe, uma das maiores dificuldades que este método levanta diz
respeito ao período de integração e aceitação do investigador no seio do grupo que vai
estudar. O esforço necessário para conquistar a aceitação é, como a antropologia cultural já
mostrou, um dos aspectos mais importantes do método de observação participante. “Raro é o
etnógrafo que, durante esse período de adaptação, não tenha sentido uma forte reacção
pessoal de desgosto, agressividade e até repulsa pela população escolhida” (Geertz, citado
por Pina Cabral, 1983: 331). Se as experiências de campo vividas pelos antropólogos, em

3
Tratou-se de uma pequena fábrica, com cerca de 55 trabalhadores, sediada em SJM. A empresa foi
criada no início dos anos oitenta e é actualmente dotada de um conjunto de equipamentos tecnológicos
bastante avançados. Como na maioria do sector, a sua produção é sobretudo destinada à exportação para a
Europa, Oriente e América do Norte.

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Estanque, E. - Entre a Fábrica e a Comunidade

especial no estudo das sociedades tribais, contêm um grau de exigência, de dureza e se


sacrifício pessoal (até pela sua duração) incomparavelmente superior às dificuldades que eu
próprio vivi na fábrica, o mundo operário e o quotidiano fabril levantam um outro tipo de
problemas. Nomeadamente, os que se prendem com a questão da intensidade dos
antagonismos sociais aí presentes e que tornam extremamente difícil a gestão das opções que
o investigador tem pela frente na aproximação aos trabalhadores. Os conflitos de interesse e
as contradições de classe em que ele tem de se posicionar, a necessidade de construir e
preservar laços de confiança mútua com diversos sectores rivais entre si, tornam-no um alvo
de permanente desconfiança num contexto em que os campos opostos estão claramente
demarcados. Por outro lado, numa fábrica de pequenas dimensões torna-se impossível
preservar o anonimato. Colocado entre o desejo de me assumir como um trabalhador
“normal” e a premência de ser aceite pelo grupo, tornou-se necessário ir aos poucos dando
conta dos meus objectivos para que os operários me começassem a olhar como alguém que
estava do lado deles, apesar de, em rigor, nunca ter sido considerado como um igual. Sendo
o problema do poder um factor decisivo a todos os títulos, quando se pretende estudar as
estruturas de poder e ao mesmo tempo é preciso que o investigador use o poder que o seu
próprio estatuto lhe confere, entra-se num tipo de jogo simbólico extremamente difícil de
gerir.

Com todas as nuances e contingências que foram decorrendo (como relatarei no


Capítulo 7-A), consegui conquistar a simpatia geral dos trabalhadores e criar afinidades com
muitos deles, mas o reverso disso foram as desconfianças e dificuldades que surgiram na
minha relação com o patrão e alguns dos encarregados. Esta situação confirma a pertinência
e a relevância que continua ter a questão do whose side are we on (H. Becker), que não é só
um problema de escolha, mas o resultado da própria presença num terreno com estas
características (e, em geral, em qualquer terreno). Esta foi, pois, uma das mais ricas
experiências humanas que já vivi enquanto sociólogo, e é porque neste caso a experiência
pessoal e o trabalho de pesquisa são aspectos que se encontram intimamente imbricados um
no outro que se torna fundamental ter presente a dimensão compreensiva e auto-reflexiva
desta pesquisa, como referi no início.

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