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1.

o poder disciplinar nas instituições totais; Os estudos sobre organizações complexas freqüentemen-
2. O poder disciplinar na 'empresa; te deixam de lado o papel desses aparelhos na reprodu-
3. O poder disciplinar; ção de uma formação social capitalista. Na realidade,
4. O poder disciplinar nas instituições de parece inútil tentar analisar com autonomia um fenô-
formação profissional; meno que não é autônomo. As organizações são instru-
5. Conclusão. mentos de. reprodução de uma sociedade de classes, o
que também significa urna sociedade ainda dividida em
frações de classes, camadas, estarnentos e grupos sociais
diversos.
Para uma mudança de perspectiva a contribuição de
Poulantzas parece fundamental. Colocando a luta de
classes no cerne da questão, esse autor afirma que a luta
de classes não decorre da existência das classes. Isto
significa que as classes existem na luta de classes, isto é,
na luta econômica, política e ideológica em que se tra-
duz essa luta de classes: Assim, para se entender as clas-
ses sociais, deve-se assumi-las como "conjuntos de agen-
tes sociais determinados principalmente, mas não exclu-
sivamente, por seu lugar no processo de produção". 1
Não exclusivamente, porque devemos considerar múlti-
plas determinações de dominação e subordinação políti-
cas e ideológicas.
Naturalmente que o critério fundamental para a per-
Fernando Cláudio Prestes Motta" cepção das classes sociais em uma dada formação é sem-
pre, e antes de mais nada, o critério das relações de
produção vigentes nessa formação. A constituição dessas
relações de produção parte de uma dupla relação. Essa
dupla relação engloba em primeiro lugar as relações dos
homens com a natureza na produção material, as rela-
ções dos agentes com o objeto e os meios de trabalho 33
que definem as forças produtivas, ou seja, a tecnologia e
as formas de cooperação. Em segundo lugar, essa dupla
relação implica a relação dos homens entre si, conforme;
sua relação com o objeto e os meios de trabalho. Por
outras palavras, propriedade ou posse definem as rela-
ções de classe,"
As relações de produção, engendrando a estrutura
de classes, engendram também o poder de classe. De
onde decorre que as relações de dominação, e em uma
sociedade capitalista avançada a dominação aparece
como administração, não podem ser entendidas a não ser
em sua articulação com as relações de produção. Nas
palavras de Poulantzas: "As relações de produção e aque-
las que as compõem (propriedade econômica/posse) tra-
duzem-se sob a forma de poderes daí decorrentes, em
suma pelos poderes de classe: como tais, estes poderes
estão constitutivamente ligados às relações políticas e
ideológicas que os consagram e legitimam ... O processo
de produção e exploração é ao mesmo tempo processo
de reprodução das relações de dominação e subordinação
política e ídeológíca.:"
Acontece, porém, que as classes sociais e sua repro-
dução implicam a materialização das relações de classe.
A materialização dessas relações se dá nas organizações
complexas. Como afirma Poulantzas: "As classes sociais
e sua reprodução só existem pela relação classes sociais/
* Professor no Departamento de aparelhos de Estado e aparelhos econômicos. Tais apare-
Administração Geral e Recursos Humanos da lhos não se sobrepõem simplesmente como apêndices à
EAESP/FCV. luta de classes, mas detêm um papel constítutívo.?"

Rev. Adm, Emp., Rio de' Janeiro, 21 (4): 33-41 out./dez.1981

O poder disciplinar nas organizações


-------------'
formais
--'--~------'-----------'-----~---------
As organizações, enquanto aparelhos, desempenham Figura I
diversos papéis importantes na reprodução das classes
sociais. t essa constatação que permite assim defini-las.
Enquanto. aparelhos, as organizações se classífícam ini-
cialmente em dois grandes grupos: aparelhos econômicos
(empresa) e aparelhos de Estado, t fundamentalmente
Emp •••••
in_

enquanto estruturá de poder que a empresa constitui um


aparelho, da mesma forma que os aparelhos de Estado.
ApueIJlOl
econômicos EmplOlU
comOldois
Poulantzas lembra que "os aparelhos de Estado têm empresas .
como principal papel a manutenção da unidade e a coe- Mqlstntun
são de uma formação social que concentra e consagra a Emp ••••
fhwlC:.lr ••
dominação. de classe, e a reprodução, assim, das relações
sociais, isto. é, das relações de classe. As relações políticas Prisões
e as relações ideológicas se materíalízam e se encarnam, ~
como práticas materiais, nos aparelhos de Estado, Esses
aparelhos compreendem, de um lado, o. aparelho repres-
sivo.de Estado, no sentido estrito, e seus ramos: exército,
polícia, prisões, magistratura, administração; de outro IO~
AparelhOJ
~OI
H Polícia

_to
lado, os aparelhos ideológicos de Estado: o aparelho aponihOl

escolar, o. aparelho religioso (as Igrejas), o. aparelho de Exército

informação (rãdío, televisão, imprensa), o aparelho cul-


tural (cinema, teatro, edição), o aparelho sindical de
colaboração. de classe e os partidos políticos burgueses e órgãos da

pequeno burgueses, etc., e enfun, sob certo aspecto, e ""~~~


pública

pelo menos no modo de produção. capitalista, a famí-


lia".5
~
Colégios I
Da mesma forma, segundo ainda Poulantzas, ."uma Apuelho.de
34 Estado
empresa, enquanto unidade de produção sob sua forma A:Pu.u.o
escolar
HEntidade~1
formação
profissional

y I
capitalista, constitui um aparelho, no sentido. de que
reproduz, pela divisão social do trabalho em seu seio Unhersí-
dadas
(organização despótica do trabalho), as relações políticas
·Aparelh()-
e ideológicas referentes aos lugares das classes socíaís"," religioso
(igrejas)
Tendo-se em conta que os aparelhos não criam a divisão
da sociedade em classes, mas contribuem para essa divi-
são. e para sua reproduçãoampliada, parece oportuno ri Rádiõ I
tentar classificar as organizações enquanto aparelhos vol-. Apuelhosde
H TelevisãO I
infOmlaçio
tados para essa reprodução, conforme a figura 1.
Apan,lhos
LI Imprensa 1
Essa classificação que segue rígorosamente a análise ideolóslcos
rl Cinema I
de Poulantzas sugere o aspecto. central de cada tipo de Aparelho
H--Teairo I
cultural
organização, bem como sugere a função básica da cou-
raça. organizacional que domina as sociedades capitalistas --I Ediçio I
avançadas, daí capitalistas burocráticas. Ela oculta,
_Aparelho
porém, um outro aspecto não menos essencial para quem sindical de
cotibOraçãÕ
tem as organizações como objeto de análise. Por mais de classes
que uma organização se caracterize como aparelho eco-
nômico, ela é também aparelho repressivo e aparelho
artlilõs
ideológico. Da mesma forma, todo aparelho ideológico é políticos
burgueses e
repressivo e todo aparelho repressivo é ideológico. Esse pequeno-
bUr&ucse
fenômeno deriva do fato de que as organizações cum-
prem suas funções reprodutoras primordialmente através
de mediações políticas e ideológicas. Em suma, organiza-
ção é poder. Para esse objetivo o ponto de partida segundo o qual
Em outro trabalho, estivemos mais preocupados organização é poder parece primordial, bem como essen-
com as diferenças entre as diversas organízações." Aqui ciais parecem algumas análises de Foucault, Goffman,
nossa preocupação é muito mais com as semelhanças, Pagês, Lobrot e Grignon.

Revista de Administração de EmpreSlls


Foucault é por muitas razões o outro lado de dade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que
Poulantzas. Enquanto o segundo investiga o poder no pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na
Estado, embora não apenas no Estado, Foucault sub- realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o
linha a existência de formas de exercício do poder que próprio doente.r''" .
não dizem respeito ao Estado de modo direto, mas que Em suma, são as correlações de força que nos permi-
são indispensáveis para a sua eficácia e, portanto, para tem entender o poder de forma regionalizada. E é desse
sua sustentação " ... não existe em Foucault uma teoria modo que Foucault chega a algo que parece implícito e
geral do poder. O que significa dizer que suas análises não dito em toda a massa de estudos organizacionais: a
não consideram o poder como uma realidade que possua questão do poder disciplinar. Ê verdade que a organiza-
uma natureza, uma essência que ele procuraria defmir ção é poder e é igualmente verdadeiro que enquanto
por suas características universais. Não existe algo unitá- prática social esse poder organizacional se manifesta
rio e global chamado poder, mas unicamente formas como poder disciplinar. O, campo de atenção de Fou-
díspares, heterogêneas, em constante transformação. O cault se restringe porém à prisão. Generalizações que
poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática possamos fazer são por nossa conta e risco.
social e, como tal, constituída historicamente. Esta A repressão implica saberes constituídos tanto quan-
razão, no entanto, não é suficiente, pois, na realidade, to a inculcação ideológica, a administração de negócios
. deixa sempre aberta a possibilidade de se procurar redu-
ou o tratamento de doentes mentais. Os saberes evoluem
zir a multiplicidade e a dispersão das práticas de poder
historicamente e desvendam formas novas de ação do
através de uma teoria global que subordine a variedade e
poder. Assim, historicamente se pode delimitar marcos,
a descontinuidade a um conceito universal. Não é assim,
como a criação do hospital geral em 165.7 ou a libertação
entretanto, que Foucault tematiza o poder ... Nesse
dos acorrentados de Bicêtre em 1794, que foram essen-
sentido, nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia
ciais à gênese do saber psiquiátrico atual. A repressão
têm por objetivo fundar uma ciência, construir uma teo-
descobriu formas novas de ação de poder, não de forma
ria, ou se constituir como sistema; o programa que elas
súbita ou gratuita: O que ela terminou por esboçar foi
formulam é o de realizar análises fragmentárias e trans-
um método geral, a disciplina. Para Foucault, a gênese da
formáveis". 3
descoberta deve ser vista em uma "multiplicidade de pro-
As análises de Foucault não foram concebidas para
cessos, muitas vezesmicroscópicos, de origens diferentes
serem aplicadas a outros objetos que não os focalizados
(... ) que se imbricam, se repetem, ou se imitam,
pelo autor, isto é, não se pode passar da prisão à empresa
apóiam-se uns nos outros, distinguem-se segundo seu 35
com facilidade. Contudo, pode-se pensar em poder de
campo de aplicação, entram em convergência e esboçam
uma outra forma, não partindo do Estado e de sua disse-
aos poucos a fachada de um método geral". 11
minação pelo corpo social. Nas palavras de Foucault:
Nesse processo são fundamentais os conhecimentos
"Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,
como a multiplicidade de correlações de força imanentes que se desenvolvem sobre o controle do corpo. ~ preciso
extrair do corpo seu potencial produtivo e ao mesmo
ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua orga-
tempo, e por isso mesmo, impor-lhe uma relação de doci-
nização; o jogo que, de lutas e afrontamentos incessantes
lidade. O corpo não é, pois, apenas o objeto de ataques
as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correla-
frontais, o objeto da coerção direta. Os saberes sobre o
ções de força encontram umas nas outras, formando
cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e con- corpo voltam-se para sua moralização, ou dito de outra
tradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em forma, para sua domesticação com vistas a determinados
que se originam e cujo esboço geral ou cristalização insti- fins. ~ preciso canalizar todas as forças que possam ser
tucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formula- produtivas, e para tanto não basta punir ou reprimir, mas
ção de leis, nas hegemonias socíaís." Essa proposta torna-se essencial vigiar de modo discreto e permanente.
implica a negação em pensar o poder apenas como domi- Nas palavras de Foucault, "as disciplinas se tornaram no
nação de indivíduos ou de grupos sobre outros deixando decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de
de lado também as visões legalísticas do poder. Implica dominação ( ... ) diferentes da escravidão, pois não se
um jogo cujas peças fundamentais parecem ser o saber, o fundam em uma relação de apropriação do corpo. ( ... )
diferentes da domesticidade, que é uma relação constan-
poder e a instituição.
te, global, maciça, não-analítica, ilimitada ( ... ) dife-
Esse jogo parece permitir a Foucault caminhar em rente da vassalagem, que é uma relação de submissão
linhas diversas, estudando o saber médico, o hospital altamente codificada, mas longínqua e que se realiza
psiquiátrico, a prisão, a vigilância e a submissão. ~ assim menos sobre o corpo do que sobre os produtos do tra-
que vê o manicômio como "lugar de diagnóstico e classi- balho e as marcas rituais da obediência. ( ... ) O momento'
ficação, retângulo botânico onde as espécies de doenças histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
são divididas em compartimentos cuja disposição lembra arte do corpo humano, que visa não unicamente o au-
uma vasta horta, mas também espaço fechado para um mento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar
confronto, lugar de uma disputa, campo institucional sua sujeição, mas a formação de uma relação que no
onde se trata de vitória e submissão. O grande médico do mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto
asilo é, ao mesmo tempo, aquele que pode dizer a ver- é mais útil,e ínversamente".'?

o poder disciplinar
o poder disciplinar instaura wn novo uníverso que delinqüentes, alvo e auxiliares do controle policial que
deixa de lado o suplício, a desnutrição, o esquarteja- regularmente manda alguns deles de volta prisão.,,16 A
â

mento ou o dilaceramento em praça pública, práticas delinqüência é assim produzida e controlada, adaptan-
comuns nas velhas monarquias que assim vingavam as do-se a wn determinado modo de produzir. De resto, o
desobediências ao rei e â sua ordem política ou religiosa. poder disciplinar da prisão, com seus horrores, paira
O novo universo é o da vigilância, do controle sobre o como ameaça a todos aqueles que precisam se submeter
corpo, que se vai difundindo paulatina mas firmemente ao poder disciplinar mais sutil de outras organizações
dominando as instituições penais. A prisão é fruto do formais. A lógica é social antes de organizacional, impli-
novo universo a "região mais sombria do aparelho de cando sempre a produção de corpos dóceis, cujo poten-
justiça, o local onde o poder de punir, que não mais ousa cial produtivo é liberado eo potencial político inibido.
exercer-se com o rosto descoberto, organiza silenciosa-
mente um campo de objetividade em que o castigo po-
derá funcionar em plena luz como terapêutica () a sen- 1. O PODER DISCIPLINAR NAS INSTITUIÇÕES
tença se inscreve entre os discursos do saber". 13 TOTAIS
A prisão é a organização onde aparentemente se
levou mais longe a tecnologia do poder disciplinar, atra- Goffman também estuda de modo exaustivo o poder
vés da organização do espaço, do controle do tempo, da disciplin:ar tal como aparece como aspecto das organiza-
vigilância e do exame contínuo. Todavia, o poder disci- ções. Aocontrãrío de Foucault, contudo, Goffman tenta
plinar pode ser encontrado em outras instítuíções, geral. uma teorização desse poder disciplinar através de um-
mente aquelas que se organizam em locais fechados e estudo sistemático daquilo que chama instítuições totais,
com estruturas burocráticas rígidas, como a fábrica, o e que define como "wn local de residência e trabalho
manicômio, o convento e algumas escolas. Contudo, a onde um grande número de indivíduos com situação
não realização plena do poder disciplinar não indica sua semelhante, separados da sociedade mais ampla por con-
ausência e nem mesmo sua pouca importância. O poder siderável período de tempo, levam wna vida fechada e
disciplinar é wn aspecto essencial de qualquer organiza- formalmente administrada". 17
ção formal no capitalismo burocrático.
O autor procura inicialmente classificar as institui-
Se toda sociedade tem seus códigos de ilegalidades, a
ções totais em cinco grupos ou classes. "Em primeiro
prisão surge exatamente como o meio legal de punição
lugar, há Instituiçõescriadas para cuidar de pessoas que,
dessas ilegalidades em uma sociedade moderna. Todavia
segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso
36 a repressão não vale por si mesma nas organizações carce-
estão as casas para cegos, velhos, Órfãos e indigentes. Em
rárias; a lógica do poder disciplinar implica a distri-
segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pes-
buição, diferenciação e utilização dos infratores através
soas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que
da vigilância permanente. Os infratores são confrontados
são também wna ameaça â comunidade, embota de
com um quadro geral de ilegalidades, criando-se wn tipo
maneira não-intencional; sanatório para· tuberculosos,
específico de produção de delinqüência. O desenvolvi-
hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro
mento da prisão é paralelo ao desenvolvimento da crímí-
tipo de instituição total é organizado para proteger a
nalidade urbana e. isolada, em oposição aos motins e
comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar
pilhagens, para os quais se mobilizam outras formas de
das pessoas assim isoladas não constitui o problema
repressão. Mas, se o objetivo da prisão é criar corpos
imediato: cadeias, penitencíãríes, campos de prisioneiros
dóceis e produtivos, se essa é a essência do poder discipli-
de guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há
nar, por que então a prisão tende a fracassar na readapta-
instituições estabelecidas com a intenção de realizar de
ção sociedade?
â

modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se


Foucault procura responder a essa questão inda-
justificam apenas através de tais fundamentos instrumen-
gando-se se esse pretenso fracasso não faria 'parte do fun-
tais: quartéis, navios, colégios internos, campos de traba-
cionamento da prisão: "Não deveria (este processo) ser
lho, colônias e grandes mansões (do ponto de vista dos
inscrito naqueles efeitos de poder que a disciplina e a
que vivem nas moradias de empregados). Finalmente, há
tecnologia conexa do encarceramento introduziram no
estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mun-
aparelho de justiça e de wna maneira mais 'geral na socie-
do, embora muitas vezes sirvam também como locais de
dade e que podemos agrupar sob o nome de "sistema
instrução para os religiosos; entre exemplos de tais insti-
carcerário?" 14 A real funcionalidade da prisão parece
estar ligada a wn mecanismo de ampliação da crimínali- tuições, é possíveL citar abadias, mosteiros, conventos e
outros claustros.' 8
dade. Produzindo wna delinqüência controlável, a prisão
possibilitaria uma forma de vigilância permanente da O objetivo de Goffrnan ao estabelecer essa classifica-
população. Nas palavras de Foucault, o sistema carcerá- ção não foi listar exaustivamente todos os tipos de insti-
rio constituiria "wn aparelho que permite controlar, tuições totais,mas ter wn ponto de partida para definir
através dos próprios delinqüentes, 'todo o campo so- suas características gerais. Tampouco essas característi-
cial".15 Polícia, prisão e delinqüente seriam três termos cas são exclusivas das instituíções totais ou aparecem
de wn ciclo que se retroalimentaria. "Jt. vigilância poli- necessariamente em todas elas. O critério parece ser o da
cial fornece prisão os infratores que esta transforma em
â intensidade em que wngrupo de tais características

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aparece na organização. Por outra, o poder disciplinar, mento com uma concepção de si mesmo que se tornou
expressão que Goffman não utiliza, aparece com muito possível por algumas disposições sociais despido do
mais clareza e força nas instituições totais do que nas apoio dado por tais disposições. Na .linguagem exata de
demais organizações, embora também esteja presente algumas de nossas mais antigas instituições totais.
nestas de modo significativo. começa Uma série de rebaixamentos, degradações, humi-
lhações e profanações, embora muitas vezes não inten-
As instituições totais apresentam, portanto, as se-
cionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas
guintes características, que decorrem do fato de as bar-
mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira
reiras entre as diversas esferas da vida estarem rompidas.
composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas
Em primeiro lugar, há uma concentração de todos os
crenças que tem a seu respeito e a respeito dos outros
aspectos da vida em um mesmo local e sob uma única
que são significativos para ele.,,2 o Essas mortificações
autoridade. Em segundo lugar, a atividade cotidiana de
passam pelos processos de admissão, que incluem a codi-
cada indivíduo é dividida em fases; que são realizadas em
ficação da vida pessoal a fim de torná-la administrável,
conjunto com um grupo relativamente grande de pes-
pelo despojamento de posição social, ou de qualquer
soas, obrigadas a fazer as mesmas coisas e tratadas da
papel desempenhado no mundo externo, pela conta-
mesma maneira. Em terceiro lugar, há uma divisão rigo-
rosa do tempo para as diversas atividades, cuja seqüência minação física e psicológica e pela perda de defesas usa-
é imposta, de cima, por um grupo de funcionários e um das no mundo externo. A mortificação do eu talvez
represente a forma típica de ação do poder disciplinar
conjunto de regras explícitas. Em quarto lugar, todas as
nas instituições totais. Presos, doentes mentais, cadetes,
atividades são organizadas de acordo com um plano
alunos internos, seminaristas, freqüentemente têm o que
racional único, supostamente elaborado para melhor
atingir os fins oficiais da organização. 19 contar a respeito desse processo. Algo que quem muda
de empresa ou de universidade também vive, mas eviden-
O controle burocrático das necessidades humanas de temente em nível de intensidade incomparavelmente
grupos relativamente grandes de pessoas nas instituições
menor.
totais implica algumas conseqüências importantes: Há,
em primeiro lugar, um pessoal cuja única função é a
2. 'o PODER DISCIPLINAR NA EMPRESA
vigilância. Em segundo lugar, existe uma distância muito,
grande entre o grupo dos internos e a equipe dirigente.
Reconhecendo que a questão do poder é por demais
Enquanto o grande grupo de internos vive na instituição. ,complexa para ser esclarecida por uma única esfera de
e tem um contato muito restrito com o mundo externo, determinações, que suas raízes não podem ser encontra- 37
o pequeno grupo dirigente trabalha em regime de oito das apenas na propriedade" na organização do espaço, no
horas, estando perfeitamente integrado no mundo exter- sistema de regras burocráticas, na distribuição e na pro-
no. Em terceiro lugar, os dirigentes tendem a sentir-se duçãodo saber, mas que estão presentes todos esses ele-
corretos e superiores, enquanto os internos tendem a mentos e até O inconsciente, Max Pagê·s e seus colabora-
sentir-se inferiores e culpados. Em quarto lugar, a comu- dores desenvolveram· uma' pesquisa junto a uma grande
nicação entre as duas categorias é restrita" tanto no que corporação multinacional operando na França. Seu obje-
diz respeito â possibilidade de conversas, quanto no que tivo era desvendar o modo de ação do poder naquilo que
diz respeito transmissão de informações.
â
chamaram uma organização hipermoderna e o fizeram a
Há ainda outras conseqüências importantes das partir de um eixo de coordenadas econômicas, políticas,
características das instituições totais que devem ser con- ideológicas e psícolõgícas." '
sideradas. Há em primeiro lugar. uma incompatibilidade A contribuição de Pagês parece estar numa concep-
entre essas Instituições e a estrutura bãsíca de pagamento ção bastante particular de reprodução a partir da consta-
pelo trabalho na sociedade moderna. O pagamento pelo tação do caráter sutil do poder disciplinar na grande
trabalho na instituição total não tem a significação estru- empresa moderna. Com efeito, o que ocorre nesse tipo
tural que tem no mundo externo. Qualquer que seja o de organização é uma identificação afetiva e intelectual
incentivo monetário dado ao trabalho, o interno não é dos indivíduos. A organização se reproduz, assim, en-
livre para dele usufruir. Isto tende a levar a uma desmo- quanto sistema social que inclui o funcionamento psico- .
ralização geral. São comuns práticas como tapear ou usar lógico e individual de seus membros. O sistema organiza-
o trabalho alheio em troca de um vale utilizável na can- cional articula-se, portanto, com o sistema de personali-
tina. Em segundo lugar, há uma incompatibilidade da dade e de valores de seus participantes. Reprodução, no
vida coletiva da instituição total com a vida familiar. Se caso da grande empresa, não diz respeito apenas ao capi-
de um lado a manutenção de uma família serve como tal e as forças produtivas. A reprodução se dá em todos
uma ponte para o mundo externo, a vida doméstica os níveis 'e implica uma ação da organização sobre o
torna-se impossível face ao isolamento do interno. sistema pulsional dos indivíduos, que passam a promover
Há inúmeros outros aspectos da vida organizacional ativamente seus objetivos e políticas.
que nas instituições totais adquirem um caráter dramá- Para entender melhor a análise de Pagês, convém
tico. No que se refere ao interno, o aspecto que talvez retornar ao conceito de ideal do ego na psicanálise. Por
seja o mais significativo seja a mortificação do eu. Nas ideal do ego se entende uma instância de personalidade
palavras de Goffman: "O novato chega ao estabeleci- que resulta da idealização do eu e das identificações com

o poder disciplinar

~"'~" ... ,.'.~'---_. -~~-~-------~--~--'---~----~~~-~-----


";:-.iT"--

as figuras' parentaís e/ou com ideais coletivos. O ideal do Essa identificação se revela como introjeção na me-
ego constitui um modelo ao qual o indivíduo procura se dida em que há uma passagem do que é externo para o
ajustar. Essa instância da personalidade caracteriza-se por que é interno, em termos das qualidades da organização.
exigências ilimitadas de potência e perfeição. A hipótese Por outro lado, ela também se revela como identificação
de Max Pagês de que a organização propõe a 8eloiSmem- com os demais membros da empresa, sem que para tanto
bros um ideal coletivo que capta o seu ideal do ego. haja necessidade de qualquer ligação funcional ou afetiva
Essa captação tem múltiplas conseqüências. "A mais entre os indivíduos componentes. As ligações .que sur-
direta é a íntrojeção pelos indivíduos das exigências fixa- gem derivam diretamente do fato de todos estarem liga-
das pela organização." Esta pode, portanto, através desse dos inconscientemente à organização. Existe, portanto,
processo, canalizar ao máximo a energia dos indivíduos um traço comum no que se refere aos sentimentos e
em seu benefício, sem precisar empregar um sistema de reações das pessoas, e esse traço comum deriva daquilo
punições funcionando com base na força e na repressão. que é idealizado por todos. Naturalmente, tudo isso tem
Por outro lado, o indivíduo, submetendo-se totalmente a ver com tomada do objetivo econômico, com os pró-
(de corpo e alma: diríamos), trabalha para a organização prios fins do capitalismo como o próprio ideal do ego,
como para si próprio -.Ele experimenta o sentimento de embora as racíonalízações de que os indivíduos lancem
que a organização faz parte dele, da mesma forma que mão possam ser múltiplas e variadas.
ele faz parte da organização, sentimento este que o liga Todavia, nem tudo são flores na tomada do ideal do
ao futuro da organização. Há, portanto, uma tomada do ego pela grande empresa. "A organização exige que o
indivíduo pela organização a nível do inconsciente; essa indivíduo dê o melhor de si. que se consagre inteira-
tomada é especialmente forte porque é paralela a uma mente ao sucesso, que se sacrifique. Ele é condenado a
dissolução da instância crítica.22 vender. Não se trata evidentemente de uma lei formal,
Os aspectos ligados à apropriação do indivíduo pela mas de um mandamento que tem seu fundamento na
organização são muitos e relacionam-se com a adminis- onipotência do inconsciente de cada um. É uma exígên-
tração do prazer e a canalização da agressividade. Toda- ciaabsoluta, e como todo absoluto, inacessível. Também
via, fixando-se no processo pelo qual a organização o medo de fracassar, de perder o amor do objeto amado,
garante a sua presa, Pagês procura identificar alguns de está sempre presente. Esses temores se situam próximo
seus elementos essenciais. Em primeiro lugar, toda orga- da culpabilidade. A culpabilidade não advém mais do
nização moderna possui um sistema mais ou menos com- fato de haver cumprido um ato contrário à sua consciên-
plexo de regras. Esse sistema deve ser capaz de garantir 'da, às exigências do superego, mas de não estar à altura
38 aos seus membros um sentimento de segurança e de das exigências da organização e do ideal que se procura
potência pelo respeito que lhe devotam. Em segundo alcançar, o indivíduo não tem medo de ser punido se não
lugar, es~e_sistema não é apenas um regulamento frio. for bem-sucedido; ser bem-sucedido torna-se uma neces-
Trata-se, na realidade, de um sistema de crenças, um sidade vital para ele. Tomando o lugar do ideal do ego
ideal de vida, que se concretiza em regras e procedimen- dos indivíduos que a compõem, a organização não ape-
tos. É evidente que esse ideal de vida e essas crenças vão nas canaliza ao ináximo a energia desses em seu benefí-
responder a uma necessidade muito forte dos indivíduos. cio; ela os torna dóceis_,,24 Estamos aqui, mais uma vez,
O que a organização propõe é um modelo de persona- diante da essência do poder disciplinar: produzir corpos
lidade caracterizado pelo ideal de perfeição, por fortes dóceis, liberando seu potencial produtivo.
exigências morais, pelo individualismo e pela resistência Essa produção de corpos dóceis, no caso da grande
ao stress e à angústia. O indivíduo se sujeita inconscien- empresa moderna, passa também pela dissolução da ins-
temente às exigências da empresa. O ideal coletivo pro- tância crítica e pelo empobrecimento do sentimento de
posto pela empresa toma o lugar do ideal do ego de cada identidade. A organização é sempre ,boa e irreprovável.
um. NoS"casos de conflito, a culpa cai sobre o indivíduo, que
Nas palavras de Pagês, "aquele que se conforma com freqüentemente entra em depressão. Além disso, a orga-
isso encontra uma fonte de satisfação e valorização nar- nização é uma construção imaginária, onde a autoridade
cisista muito importante, satísfação que explica sua acei- não está identificada com pessoas, mas com o conjunto
tação de diversas sujeições, especialmente no que diz res- da organização. Isto a torná especialmente poderosa e,
peito à carga de trabalho. Quanto mais fortes forem essas conseqüentemente, torna o indivíduo milito impotente.
satisfações, mais ele aceitará essa carga, mais a organiza- Por essa razão ele se identifica com ela, mas se identi-
ção será forte e mais satisfação trará àqueles que com ela fica com algo que é imaginário. Na maior parte das rela-
se identificam. Ama-se a organização pelas perfeições ções interpessoais é possível testar nossos fantasmas,
que se deseja ao próprio eu. As qualidades da organiza- porque nos deparamos com objetos reais. No caso da
ção tornam-se as qualidades do sujeito. Mesmo que o' relação indivíduo-empresa tudo se passa no nível do ima-
indivíduo tenha consciência de estar preso aum pro- ginário. Por isso mesmo a construção da identidade atra-
cesso, os fundamentos desse processo permanecem vés de um jogo de projeções e introjeções com outras
inconscientes, o que explica sua impossibilidade de esca- pessoas; mas, o que fazer quando o outro é um ser imagi-
par. Ele trata a organização como seu próprio eu, e uma nário e onipotente? o indivíduo típico da grande empre-
parte da libido narcisita se encontra transferida para a saoscila entre a potência e a fraqueza exagerada. O que
organização por identificação". 23 lhe é difícil é uma consciência equilibrada de sua força

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efetiva e de seus limites. Todos esses aspectos, evidente- do de prestar esses concursos ou mesmo de posse dos
mente, são absolutamente coerentes com a docilidade e a. títulos; o docente depende para ser promovido da buro-
produtividade. cracia superior que decide sobre sua promoção.
O exercício sutil do poder disciplinar na empresa é . No caso francês, e os demais dele diferem apenas em
algo que diz respeito muito mais ao universo dos cola- questio de grau, o docente está a nível de seu trabalho,
rinhos-branco do que ao universo dos operários. Nesse' "sujeito a normas draconianas que só lhe permitem uma
segundo caso,' organização do espaço, controle do fraca liberdade. O emprego do seu tempo é fixado pela
tempo, vigilância e exame contínuo são coisas mais pal- -administração do estabeleeíraento onde se encontra. A ,
páveis e diretamente perceptíveís. O taylorismo, sobre o organização total deste último, na qual ele está inserido,
qual não nos estenderemos agora, continua sendo a teo- nfo: depende do docente. Enfim, e sobretudo, os progra-
ria do modo de ação do poder disciplinar na fábrica. mas prevêem os objetivos que deve procurar atingir, os
Todavia, o participacíonísmo, mesmo em suas formas meios que deve utilizar, e mesmo, muitas vezes, a divi-
mais sofisticadas, como os comitês de empresa franceses, são, no tempo, das atividades. Por exemplo, no ensino
ou a co-gestão alemã, parece mostrar que o poder disci- primário as "instruções oficiais" prevêem o tempo que
plinar encontra formas sempre novas de ação. Para seu deve ser atribuído a cada atividade: a leitura deve ocupar
exercício, todos os expedientes são utilizados, sejam eles 10 horas no curso preparatório, 6 horas e um quarto no
econômicos, políticos, repressivos ou ideológicos?' curso elementar, 3 horas e meia no curso médio, 3 horas
e meia no curso superior. Tendo as instruções de 1923,
1938, 1945-1947, vê-se até a qUe pormenor vão estes
3. O PODER DISCIPLINAR regulamentos, não s6 do ponto de vista dos métodos
com~ do ponto de vista da divisão das atividades"? 7
A reprodução das formações sociais capitalistas depende, De resto, os docentes devem cumprir os programas.
entre outros elementos, da reprodução da força de tra- Estes são formulações apriorísticas, absolutamente for-
balho. Essa reprodução é mais que a simples reprodução mais, que desconsideram totalmente o público a que se
biológica, já que implica a própria manutenção da força destinam. Com intenções que podem ser muito boas, a
de trabalho existente sob condições específicas do pro- burocracia escolar prepara objetivos, tópicos, prevê
cesso de luta de classes, bem como na reprodução das .métodos e chega mesmo a indicar urna bibliografia. Em
qualificações dos agentes segundo a divisão do trabalho. suma, se prevê as atividades dos docentes e dos alunos
A escola tem, portanto, um papel habilitador, na medida sem levar em consideração os interesses concretos de
em que transmite os saberes técnicos de acordo com as ambos. Tudo se faz em nome de uma relação de meios e 39
necessidades do capitalismo. Não há, contudo, uma har- fins que se define impessoalmente. Há uma desconfiança
monia necessária entre as necessidades do mercado de de que a criança ou o docente podem ficar sem fazer
trabalho e a formação escolar. Os títulos preenchem nada, sem trabalhar. Em suma, é preciso dar à adminis-
outras funções igualmente importantes que dizem res-' tração e aos pais ,a garantia de que a criança está sociabi-
peito ao modo pelo qual se mantém a correlação de lízando-se, isto é, aprendendo a adaptar-se profissional e
forças entre as classes e grupos sociais. De qualquer socialmente.
modo, porém, a escola também tem por função a trans- Surge, assim, o problema da avaliação dessa sociali-
missão da ideologia da classe dominante, a reprodução zação. Como saber se a criança está efetivamente ''tra-
da estrutura social, especialmente dos lugares de classe, e balhando", Para isso foram feitos os exames. Há aqui
uma função moralizadora: a escola serve para criar um . uma inversão de meios e fins. Se o exame fosse pura e
habitatus, através da ínculcação de uma díscíplína.ê? simplesmente um trabalho desenvolvido pelas crianças
O sistema escolar tende a ser profundamente buro- sob a orientação do professor e a partir de centros de
cratizado nos países capitalistas modernos. Essa burocra- interesse bem identificados, não haveria nele nenhum
tização, que em geral se caracteriza por uma centraliza- problema enquanto instrumento de avaliação. O pro-
ção a nível nacional, manifesta-se a nível do pessoal e de blema .ocorre no momento em que o exame passa a ser o
sua organização, dos programas edo trabalho e dos exa- objetivo do aprendizado. Não se estuda para adquirir
mes e inspeções. No que diz respeito ao pessoal, é pre- conhecimento, mas para passar nos exames. Isto pode
ciso distinguir os administradores escolares dos professo- preparar a criança para ser dócil e disciplinada e para
res propriamente ditos. Geralmente, é a própría burocra- .aprender a galgar os degraus da vida burocrática que a
cia educacional que recruta o seu pessoal administrativo. espera. Evidentemente, porém, não estimula o gosto pelo
Os professores, por sua vez, devem ter determinados saber, nem a indagação intelectual. Além disso, o que se
diplomas e passar por um concurso público de seleção. aprende para passar no exame é facilmente perecível,
Observe-se bem que não são propriamente qualidades porque não deriva de um interesse real.
intelectuais ou pedagógicas que são medidas, embora isto O que se espera da escola é que prepare para a vida.
também tenha um certo peso. O que se verifica primor- Preparar para a vida, entretanto, geralmente significa
dialmente é se o candidato se preparou bem para os para um número de pessoas aprender a ser dirigido,
exames. Uma vez no magistério, o docente deve passar enquadrado e condicionado, para; quem sabe, um dia
por, uma carreira. Essa carreira pressupõe novos diplomas poder dirigir, enquadrar e condicionar. Infelizmente, os
e freqüentemente novos concursos. Mesmo com a deci- resultados disso tem sido mais negativos que positivos.
O poder disciplinar
"A juventude tornada passiva, nada pode fazer além de À maneira das organizações repressivas, o tempo
se submeter aos estereótipos da juventude, antes de se livre concedido aos aprendizes é mínímo. Ao ensino pro-
transformar numa geração adulta que, por sua vez, terá fissional é justaposto o ensino geral, saturando o empre-
medo da juventude.,,28 Em suma, a escola prepara para go de seu tempo. Nos quartéis, a ordem assume um
a docilidade, organizando o espaço, controlando o aspecto muito visível, a hierarquia aparece como imutá-
tempo, instaurando a vigilância e a avaliação periódica. O vel e natural, Os quartéis apresentam aos indivíduos um
resultado é a preparação de uma coletividade ansiosa por ideal coletivo ao qual os recrutas devem sacrificar os seus
direção. A educação contemporânea parece ser, no plano próprios ideais. Tudo se passa como se o indivíduo só
político, um terreno fértil para o totalitarismo e, no tivesse valor na medida em que pudesse ser utilizável pela
plano psicológico, um viveiro de personalidades insegu- .instítuíção, na medida em que se tornasse confiável e
ras, angustiadas, insatisfeitas e, via de regra, autoritárias. produtivo. O adestramento nos quartéis é, como decor-
rência, coletivo. As diferenças individuais são reduzidas
ao mínimo, inclusive pelo uso de uniformes e corte ho-
4. O PODER DISCIPLINAR NAS INSTITUIÇOES mogêneo dos cabelos. Nos estabelecimentos franceses de
DEFORMAÇÃO PROFISSIONAL formação profissional as coisas se passam de modo seme-
lhante.
Inculcar atitudes e disposições morais é próprio da insti- Com efeito, embora as transgressões individuais pos-
tuição educacional, qualquer que seja a sua clientela. sam particularizar as reprimendas e os discursos morali-
Quando esta, porém, é composta de indivíduos destina- zadores, sanções físicas corno bofetadas são formas vio-
dos a ocupar posições inferiores na divisão do trabalho, a lentas de repreensão que não distinguem casos particula-
moralização educacional assume ares de "domestícação". res. Tornar-se um trabalhador de elite implica ser capaz
Aprender a comportar-se de acordo com os interesses das de passar por um processo de. mortificação do eu, visto
classes e grupos dominantes parece ser o essencial do como necessário para a inculcação da disciplina como
aprendizado profissional. Contudo, esse tipo de ensino hábito. A violência dessa inculcação se traduz bem nas
jamais proclama esse aspecto central de sua natureza. Ele manifestações de contra-aculturação, nas ofensas aos
se apresenta como transmissão de saber especializado e treinadores e bedéis, nas fugas e nas depredações. Uma
como formação de competência técnica. ' particularidade da instituição de formação profissional
entre as diversas instituições pedagógicas está talvez no
Face aos dominantes, os clientes das instituições de fato de que não se visa substituir uma cultura por outra.
formação profissional industrial ou mesmo comercial são Visa-se formar um índívíduo que ao mesmo tempo par-
40 sempre vistos como "não civilizados" e como poten- ticipe de uma "naturez~ popular" e de uma "cultura"
cialmente ameaçadores no que diz respeito à ordem esta-
pequeno-burguesa. Corno o futuro trabalhador de elite,
belecida. ~ evidente que há muitos especialistas em for- ele será um intermediário' entre as classes. A ambigüidade
mação profissional preocupados sinceramente em propi- de sua situação exige essa ação pedagógica que, apesar de
ciar a seus treinandos uma melhor consciência de sua violentadora, não chega a;ser desculturalizante.
condição. Todavia, essas instituições, geralmente finan-
O ensino técnico ncs CET caracteriza-se pela inter-
ciadas por empresários, têm um perfil estruturalmente nalízação de um conjunto de princípios indiscutíveis, de
conservador, capaz, perfeitamente, de neutralizar esses
modo que a sanção téCIJ.icaé ao mesmo tempo sanção
"desvios". Do ponto de vista das classes e grupos domi-
moral, a primeira garantindo realismo à segunda. Dessa
nantes a formação profissional é um processo "civiliza-
forma, os maus hábitos 40s jovens marceneiros são corri-
tório" relativamente barato e seguro. O essencial é disci-
gidos ensinando-lhes como segurar uma plaina, os ângu-
plinar os operários.
;
los em que a ferramenta deve entrar em contato com a
A suspeita de vida irregular, de preguiça, parece madeira. Os gestos espontâneos e brutais vão sendo subs-
I
comum quando se pensa nas famílias populares de onde tituídos por gestos disciplinados. Isto ocorre com quase
saem os adolescentes que na França se dirigem para os todos os ofícios, que sãq sistematicamente decompostos
CET (Estabelecimentos de Ensino Técnico Elementar). em operações técnicas. Geralmente, essa decomposição
I
Não se duvida que as crianças vindas das classes médias e introduz mudanças na consciência que os aprendizes têm
alta adquirem desde muito cedo o sentimento de dever e da duração do tempo. ~ idéia de uma duração natural é
o hábito da ordem e da regularidade, mas da criança de paulatinamente substituída pela idéia de que o tempo é
baixa classe se imagina tudo ao inverso. É, portanto, raro e precioso, que pod~ ser quantificado e organizado,
visto como essencial' ensiná-las a respeitar a ordem e as de modo que cada operaTã0 tenha um lugar preciso nesse
hierarquias, a obediência sem questionamento e o com- tempo. .
portamento racional e inofensivo. Para tanto as institui- Outro dado específico do ensino profissional, quan-
ções de formação profissional não fogem à regra: organi- do comparado ao ensino tradicional, é a sugestão de que
zam o espaço a ser ocupado pelos aprendizes e dividem o não existem- problema, insolúveis. Existe sempre a
seu tempo em atividades de trabalho e lazer, sempre sob melhor maneira, a meno~ oneropa (a one. best way taylo-
vigilância permanente. Tudo se passa no sentido de privi- rista) de se realizar uma ~a.Fefa.Rigor e eficácia são vistos
legiar o aprendizado' da utilização metódica e ordenada como uma unidade. A ircerteza é substituída pela cer-
do espaço e do tempo. teza de que não existeI1(lincertezas. O mundo físico é

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apresentado como regido por determinismos rigorosos, o 1 Poulantzas, Nícos, As classes sociais no capitalismo de hoje.

que tende a se traduzir numa semelhante visão dos múlti- Rio de Janeiro, Zahar, 1975 ..p. 13.
plos domínios da realidade. Assim, o mundo humano 2 I~. ibid. p. 19.
tende a ser assimilado ao mundo dos objetos técnicos. A 3 Id. ibid. p. 22.
própria aparência que os aprendizes devem ter asseme- 4 Id, ibid. p, 27.
lha-se à aparência que os instrumentos devem ter. A
aparência deve revelar toda a natureza da pessoa, como a 5 Id. ibid. p. 26.
aparência do instrumento revela a sua função. Daí os 6 Id. ibid, p. 34.
cabelos curtos, a roupa sóbria, o asseio, a postura modes- ? Veja Prestes Motta, Fernando C. As organizações burocráticas

ta. Quanto à linguagem, ela deve ser exata e precisa. e a sociedade. Revista Educação e Sociedade, CEDES, v. 4, 1979.
Quanto aos mestres, eles são escolhidos entre a elíteope- • Machado, Roberto. Por urna genealogia do poder. Introdução a
ráría, fazendo com que a "conversão" seja realizada por Foucault, Michel. Microf(sica do poder. Edição com base em
"convertidos", o que constitui tradicionalmente uma textos de Michel Foucault, organizada por Roberto Machado.
Rio de Janeiro, Graal, 1979.
técnica pouco onerosa, sutil e eficaz de "domestica-
ção".29 9 Foucault, Michel. Histôria da sexualidade. Rio de Janeiro,
No Brasil, existem instituições de formaçãoprofís- Graal, 1979. p..88-9.
sional de âmbito nacional mantidas pelo empresariado. 10 Foueault, Michel. Microfisicado poder. Op. cito p. 121.
Essas instituições surgiram na década de 40 com a finali- 11 Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
dade de formar jovens aprendizes para o exercício de
12 Id. ibid. p, 126-7.
funções qualificadas. Quando, porém, 6 ritmo da indus-
trialização passou a exigir mais mão-de-obra pouco ou . 13 Id. il:M. p. 227.
semiqualificada, a política muda e essas instituições pas- 14 Id. ibid. p. 239.
sam a se. dirigir a operários adultos. Esses operários são 15 Id. ibid. p. 247.
escolhídos pelas empresas entre aqueles que mais se iden-
1. Id. ibid. p. 248.
tificam com elas. A formação repousa em valores, atitu-.
des e disposições coerentes com o universo fabril. Subli- 1'Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São
nha-se a disciplina, a pontualidade e a disciplina, bem Paulo, Perspectiva, 1974. p. 11.
como o orgulho profissional e o gosto pelo trabalho. O 18 Id, ibid. p. 17.
operário' aprende, assim, a aceitar e a se adaptar ao mun- 19 Id. ibid. p. 17-8.
do, social hierárquico da fábrica e aos seus imperativos 41
2 o Id. ibid. p. 24.
tecnológícos.ê?
21 Veja Pagês, Max, Bonetti et alii, L Emprise de l'organisation,

Paris, PUF, 1979. p. 248.

5. CONCLUSÃO 22 Id. ibid. p. 1734.


23 Id. ibid. p. 174-5.
As organizações são sistemas sociais artificiais cuja fun- 24 Id. ibid. p. 175.
ção primordial é a reprodução da sociedade de classes.
2 5 Alguns efeitos do poder disciplinar sobre os operários estão
Embora existam organizações primordialmente econômi-
ilustrados em MattinsRodrigues, Arakey. Operário, operária,
cas, repressivas ou ideológicas, toda e qualquer organi- Edições Símbolo, 1978, especialmente na parte referente à vivên-
zação é de alguma forma econômica, repressiva e ideoló-
gica.
cia do tempo.
.
26 Veja Althusser, Louís, Ideologia e aparelhos ideológicos do
Enquanto aparelho a organização se caracteriza Estado. Lisboa, Presença, 1974; e Bo.urdieu, Pierre & Passeron,
como um modo de ação do poder que podemos chamar' Jean Ciaude. Â reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves,
1975.
poder disciplinar. Esse modo de ação se concretiza na
organização do espaço, na organização do 'tempo, na vigi- :f7 Lobrot, Michel. A pedagogÚl institucional. Lisboa, Iniciativas
Editoriais, 1966.
lância e nos exames periódicos.
Todavia, as organizações tendem a desenvolver 21ld. ibid. p. 227.
mecanismos para a sua própria reprodução. Esses meca- 29 Veja Grignon, Claude. Amoral técnica. EAESP/FGV,
nismos, comuns nas instituições religiosas, militares e mimeogr. Traduzido de L 'ordre des choses [tes fonctions sociales
educacionais, são também encontrados nas empresas, e de t'enseimemen: technique. Paris, Les Editions de Minuit,
1971.
geralmente se associam a uma captação pela organização
do ideal do ego de seus membros individuais. 3 o Veja castro, Cláudio M. & Meno e Souza, Alberto Mão-de-
Obra tndustria! no Brasil. IPEA-INPES, Relatório de Pesquisa
Quaisquer que sejam as modalidades e a intensidade
n.25, 1974" p, 406-7. Apud Ferro, José Roberto. Processo de
do poder disciplinar, porém, ele tem sempre o mesmo produção e qualificação da mão-de-obra: a função da escola.
objetivo: formar corpos dóceis e produtivos. EAESP/FGV, datilogr.

o poder disciplinar

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