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362 RESENHAS REVIEWS

A pedagogia das competências: autonomia em xeque e negados. Na prática, há a explicita-


ou adaptação? Marise Nogueira Ramos. São ção de valores e conteúdos culturais próprios
Paulo: Cortez, 2001, 320 pp. de um modelo que privilegia o instável, o indi-
vidualismo e o fim de todos os mecanismos pró-
Ramon de Oliveira ximos de práticas reguladoras da expansão do
Professor Adjunto da Universidade Federal capital.
de Pernambuco <ramono@elogica.com.br> Ao contrapor os conceitos de qualificação e
de competência, a autora reafirma como elemen-
O livro A pedagogia das competências: autono- to estruturante da interpretação das relações so-
mia ou adaptação? abriga um estudo aprofunda- ciais a contradição entre capital e trabalho; evi-
do do conceito de competência. A autora des- denciando que, em virtude desta contradição,
taca o deslocamento conceitual no campo das há um permanente movimento dialético no pro-
relações educativas, caracterizado pela negação cesso de formação humana.
do conceito de qualificação e ascensão do con- No segundo capítulo, Marise Ramos faz um
ceito de competência, este último, como regu- levantamento ao nível mundial de experiências
lador das práticas e projetos educativos. Este educativas, fundamentalmente no campo da for-
deslocamento conceitual estabelece o individu- mação profissional, pautadas pelo conceito de
alismo como ponto de partida e de chegada pa- competência. Segundo a autora, embora a dis-
ra a explicação das questões sociais. O conceito cussão e o movimento de institucionalização do
de competência seria nitidamente um mecanis- modelo de competências tenham dimensões e
mo ideológico construtor e contribuinte para o características distintas em cada país, é notável
avanço de uma cultura neoliberal. que cada vez mais trabalhadores, educadores e
Reconhecendo a multiplicidade de espaços empresários ingressem neste debate. Na práti-
econômicos, culturais e/ou educativos nos quais ca, para ela, as dificuldades para implementa-
o conceito de competência materializa-se como ção de um novo sistema profissional baseado
novo protagonista das relações entre as classes em competências apontam a necessidade de
e entre os indivíduos, a autora, utilizando a ca- construção de uma referência mais universal
tegoria ‘educação profissional’ como mediação para o processo de formação, principalmente ao
para o entendimento da “nova” função econô- se considerar que a formação por competências
mica da educação no contexto atual, chega a valoriza a ação prática – diretamente vinculada
conclusões que explicitam o caráter adaptativo a um contexto específico no local de trabalho.
do conceito de competência no que se refere à A análise da influência do conceito de com-
ordem excludente capitalista. petência nas reformas do ensino médio e da edu-
O livro está estruturado em cinco capítulos: cação profissional brasileira é o tema central do
Educação Profissional e qualificação: categorias terceiro capítulo. O capítulo ratifica a crítica que
histórico-sociais da formação humana (capítulo muitos autores vêm fazendo ao caráter autori-
1); A institucionalização de sistemas de compe- tário destas reformas. Ao destacar a improprie-
tência: materialidade do deslocamento concei- dade da desarticulação entre a formação geral e
tual (capítulo 2); A noção de competência na re- a formação profissional, bem como o caráter es-
forma do Ensino Médio e da educação profissio- sencialmente residual e mercadológico do mo-
nal de nível técnico no Brasil (capítulo 3); A no- delo de formação profissional pautado pelo de-
ção de competência como ordenadora das rela- senvolvimento de competências, a autora mos-
ções de trabalho (capítulo 4); A noção de com- tra sua cumplicidade com a “resistência histó-
petência como ordenadora das relações educa- rica”, por ela destacada, da maioria dos profes-
tivas (capítulo 5). sores em conhecer, compreender e praticar a
No primeiro capítulo, a autora destaca que pedagogia das competências.
a assunção do conceito de competência como Marise Ramos direciona, no quarto capítulo,
norteador das reformas educacionais e dos pro- suas atenções para uma análise da relação entre
jetos de formação é um movimento de desloca- o novo modelo de produção de mercadorias e o
mento conceitual, coerente com o novo momen- conceito de competência. Demarcando o caráter
to da produção capitalista. Neste, a certificação, excludente e de forte apelo ao crescimento dos
a qualificação e os direitos sociais são colocados níveis de competição industrial, característico

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da produção flexível, discute o quanto a noção se materializa apenas por um ajustamento cur-
de competência passa a ser reguladora das rela- ricular, pautado pela pedagogia das competên-
ções de trabalho e como este novo princípio de cias, mas estrutura-se também pela compreen-
ordenamento das relações contratuais passa a são da educação a partir de uma lógica economi-
ser também condutor de práticas e de significa- cista, na qual a relação custo-benefício passa a
dos externos aos locais de trabalho. ser o condicionante das políticas educacionais.
Destacando o individualismo e a competi- O livro de Marise Ramos contribui para a
ção entre trabalhadores, a autora chama atenção compreensão do papel que o conceito de com-
para o fato de que a cultura coletiva e de coe- petência tem tido como norteador das relações
são, construída ao longo dos anos sob o modelo intra-escolares, como também para a importân-
de produção fordista, vai aos poucos se esva- cia que o mesmo vem assumindo como justifi-
ziando e dando lugar a uma ética individualis- cativa, no âmbito das relações de trabalho, para
ta e descomprometida com a construção de saí- a individualização do sucesso ou, como é mais
das coletivas, fragilizando, assim, as represen- comum, como justificativa para a exclusão.
tações sindicais. Observaríamos, então, a incor- Ao destacar a relação direta entre a assun-
poração de um individualismo pós-moderno ção do conceito de competência e o desloca-
por parte dos trabalhadores – fortalecido por mento para um plano secundário do conceito de
sua identificação com os interesses da empresa qualificação, o livro não está apenas explicitan-
–, conjugado a práticas contratuais de trabalho do novas categorias estruturantes das práticas
de caráter pré-moderno. educativas, mas também apontando uma mu-
Em virtude da crise do emprego, a noção de dança na correlação de forças entre as classes.
competência passa a ser o significante e legiti- A subordinação da educação ao processo de
ma as relações contratuais. Entretanto, a descar- produção, a precarização do trabalho, a ofensiva
tabilidade da força de trabalho presente no do ideário neoliberal, a diminuição do potencial
atual estágio do desenvolvimento capitalista ar- classista dos sindicatos obreiros, além da genera-
ticula também novos conceitos legitimadores lização de uma cultura individualista e descom-
das relações de trabalho e do conflito entre as prometida com os ideais de transformação social
classes. Junto ao conceito de competência, evi- não expressam apenas uma mudança cultural ou
dencia-se então o de empregabilidade. Este, se- uma nova fase do desenvolvimento capitalista,
gundo o livro, explicita um verdadeiro ‘fascis- mas um movimento estruturado no plano mate-
mo profissional’, na medida em que a conjuga- rial de recomposição ou aquisição da hegemonia
ção entre o aumento de escolarização e o acú- das classes economicamente dominantes.
mulo de competência torna-se a solução indivi- A utilização do conceito gramsciano de “re-
dual para superação da exclusão social. volução passiva” é pertinente para a compreen-
No quinto capítulo, Marise Ramos faz um são de todo o movimento que a autora apontou
movimento semelhante ao realizado no capítulo no interior do seu trabalho. De fato, o movi-
anterior, analisando o ordenamento que o con- mento que o capital estabeleceu, nestes últimos
ceito de competência estabelece no interior das anos, é uma resposta direta aos avanços no pla-
relações educativas. Para ela, a difusão do con- no econômico e político alcançados pela classe
ceito de competência, marcadamente estrutura- trabalhadora. Se, na lógica neoliberal, as políti-
da por uma abordagem cognitivista, estabelece- cas sociais são vistas a partir da relação custo-
se no cenário educativo através da relação entre benefício, tal ação decorre de um movimento
a formação e emprego. A crítica que destaca re- contínuo estabelecido pelas elites ao nível de
fere-se ao fato de que estas competências, ao se- controle direto do fundo público.
rem referenciadas em função das situações com Desta forma, o aumento da pobreza, bem
as quais os alunos poderão se deparar no inte- como da exclusão social, não poderia deixar de
rior do processo de trabalho, acabam conduzin- ser acompanhado pela elaboração de práticas
do os conteúdos curriculares a um processo de conceituais, vislumbrando assegurar a hegemo-
fragmentação. nia cultural estabelecida pelo capital, principal-
Por outro lado, não se pode deixar de consi- mente em virtude de derrotas no plano econô-
derar que a subordinação política, ética e econô- mico e político de existências concretas (reais)
mica da educação aos interesses do capital não do socialismo.

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O trabalho em questão, além da capacidade


de explicitar um movimento que redireciona a
prática educativa em um sentido pernicioso pa-
ra a formação humana, nos possibilita repensar
nossas práticas de contestação ao ideário neoli-
beral que se instaura na educação.
Em meio à dialeticidade do processo de do-
minação econômica e política, vivemos, na soci-
edade brasileira, a possibilidade de criar práti-
cas contra-hegemônicas ao capital. Se a eleição
de um presidente ligado às tradições populares
ainda não pôde expressar a quebra da hegemo-
nia burguesa, pelo menos nos abre a possibilida-
de de pensar, para um futuro não muito distan-
te, um projeto educacional efetivamente atento
aos interesses da maioria. Nesse sentido, as crí-
ticas e análises formuladas por Marise Ramos
podem nos ser de grande valia.

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