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Os dias Entrevista Análise Reportagem
Índice de Dionísio:
“Mil pequeninas
Joanna Bryson
“Encontrámos uma forma
Série O Mundo de
Amílcar Cabral (X)
Cristina e o seu
séquito de
coisas” de assustar as pessoas com “Eis o primeiro dia da nossa levantados do chão
a inteligência artiÄcial” criação como nação”
Inteligência Desalinho
Cristina Sampaio
natural
Protopia
Graça Castanheira
A
história do cinema esta A pressão para fazer esta descober-
intimamente ligada às ta é enorme: calcula-se que a taxa
tecnologias usadas na de sobrevivência das crias durante
gravação das imagens uma fuga pudesse ser signiÆcativa-
em movimento. A pos- mente maior.
sibilidade do fecho or- Dado o enorme desamparo neo-
gânico e sequencial do diafragma natal do género Homo, as cintas vie-
permite planos-sequência que ocor- ram apoiar o crescimento fora do
rem do interior para o exterior; o útero e constituem uma das primei-
aumento da sensibilidade da pelícu- ras externalidades do corpo, muito
la ou dos sensores faculta cenas Æl- anteriores ao vestuário. Embora não
madas com luzes baixas; as lentes possam ser consideradas, por si só,
com focais longas destacam a Ægura um factor de aumento do tamanho
humana contra fundos desfocados. do cérebro — que conduziu aos cére-
São apenas três exemplos de como bros atuais, dotados de inteligência
a técnica, ao longo dos cem anos de — encorajaram-no certamente. O au-
cinema, tem vindo a viabilizar novas mento da inteligência, por sua vez,
acoplagens ao olho humano, novos permitiu o desenvolvimento da lin-
quadros e formas, daí decorrendo, guagem, da comunicação e de um
claramente, novas Ægurações. Assim, sistema tecnocultural, crescente em
a tecnologia constitui-se em boome- interdependência, que resultou na
rang; não somos apenas os seus cria- colonização Homo de todos os con-
dores, somos também o que a cada tinentes do planeta. Desde o início,
momento esta vai devolvendo — num jogo dinâmico de parada-res-
criando-nos. Inventámos o cinema, posta, a nossa evolução foi impacta-
não menos do que este nos terá in- da de forma crítica pela tecnologia.
ventado a nós. Na verdade, tudo parece indicar
E terá sido assim desde sempre. que a nossa condição seja tecno-hu-
Algures na savana onde os primeiros mana: nus, sem quaisquer ferra-
hominídeos bípedes caminhavam, mentas ou utensílios e sem capaci- A seguir
ter-se-ão fabricado as primeiras fer- dade de proteger os mais novos, não
ramentas. No entanto, evidências teríamos passado de uns hominí- Fim do prazo para pagamento da primeira prestação do IMI
arqueológicas atuais apontam para deos sem garra suÆciente para criar
que o primeiro artefacto fabricado uma história na qual Ægurar. Toda
tenha sido uma cinta de pele seca a nossa beleza enquanto espécie Em 2016, quando PS, PCP e BE pela tributação conjunta. Uma
de animal, destinada a suportar as reside na artiÆcialidade, na imensi- viviam ainda em plena lua-de- variação de “os ricos que
crias hominídeas, sendo possível dão de externalidades do corpo e -mel, o IMI passou por um paguem a crise”. Seja para AIMI
que as primeiras ferramentas de pe- da mente que temos vindo a criar, pequeno sobressalto: numa ou “simples” IMI, os prazos do
dra fossem feitas para o processo de entre as quais o próprio conceito de atitude muito criticada, Mariana “Æsco” são (quase) sempre
fabrico destas. história. Mortágua, que este Æm-de- inexoráveis. Acaba quarta-feira,
Com a evolução para uma posição Assim, a dicotomia natural versus -semana será eleita líder do BE, dia 31, o prazo para pagamento
vertical, as fêmeas tinham de trans- artiÆcial, aplicada à humanidade e à propôs um “adicional” a este da primeira prestação do IMI,
portar as crias assentes na anca, tecnologia, é uma falácia: uma histó- imposto sobre o património. O caso o seu valor seja igual ou
com o bebé apoiado no braço ou ria de tão grande reciprocidade não AIMI, que viria a ser aprovado superior a 100 euros, ou do seu
braços da mãe, o que retirava às fê- permite separações desse tipo — so- pela maioria “geringoncista” em pagamento único, mesmo que
meas o grande benefício “mãos li- mos um pack de sobrevivência que 2017, é cobrado a contribuintes exceda este valor, caso o
vres” do bipedismo. Se a evolução vingou. Insistir na ideia de que as individuais ou heranças contribuinte opte por essa
para o bipedismo é apenas biológi- tecnologias são uma coisa e nós outra indivisas, cujo somatório do opção. As restantes prestações
ca, vem depois a descoberta: uma tem o seu quê de pobre e mal-agra- Valor Patrimonial Tributável terminam em Novembro,
fêmea, inspirada, usa um pedaço de
pele de animal, une-a nas pontas,
decido. Foi graças às tecnologias que
— aos trambolhões, é certo — aqui Hora de pagar dos imóveis que possuam
ultrapassar os 600 mil euros,
quando o valor a pagar for
superior a 100 euros e inferior a
acomoda-a em volta do tronco e aí chegámos. um valor que duplica para 1,2 500 euros, ou no Ænal dos meses
instala a cria, transformando-se, ar- milhões de euros, se ambos os de Agosto e Novembro, se esse
tiÆcialmente, numa mãe marsupial. Realizadora elementos do casal optarem valor for superior a 500 euros.
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 3
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Estar bem Crónica
Nutrição enquanto Ray Stevenson A melhor metade Director Manuel Carvalho
Directora de Arte Sónia Matos
arma de anti-aging: Quase sempre de Martin Amis Editor Sérgio B. Gomes
que potencial? na pele de guerreiro Designers Marco Ferreira e Sandra
Silva Email sgomes@publico.pt
Hikikomori
E
stou inscrita num site e que recusavam todos os estudam, não trabalham, não resto, por ser irrelevante para o
de notícias médicas, contactos e interacções com o Tanto faz convivem e fogem de todas as tema desta crónica. É que, para
destinado a mundo exterior. não é resposta interacções no mundo real, estão aqui, o que interessa são as Çores,
proÆssionais de saúde, Parecia, inicialmente, que este aí. São verdadeiros. E sofrem. as árvores, os frutos e os pássaros
e é frequente receber era um problema muito particular Carmen Garcia Sofrem muito. Infelizmente, na que a presença de mais gente
notiÆcações sobre os da cultura japonesa e tentou-se maioria dos países, não existem devolveu, não só ao jardim como à
temas que elegi como prioritários. explicar este comportamento com critérios deÆnidos para o vida do gigante.
Infelizmente, devido ao meu ritmo o elevado grau de exigência que diagnóstico, pelo que, demasiadas
N
de vida frenético, é raro conseguir este povo coloca em todas as vezes, eles passam despercebidos a ós somos humanos.
ler os artigos logo que sou avisada tarefas diárias e que poderia toda a sociedade. Estamos, em maior
da sua publicação, pelo que os vou conduzir a uma sobrecarga nos Caramba, a solidão assusta-me ou menor escala,
guardando em pastas que tendem mais jovens. Acontece que tanto. Traz tanta dor e tanto vazio. talhados para o calor
a estender-se ao inÆnito. Acontece bastaram poucos anos para se Tento diariamente que os meus do toque, para a
que ontem, numa espécie de perceber que este fenómeno era Ælhos percebam que ser ilha é viver partilha e para a
(des)alinhamento astral, recebi um muito mais global do que se amarrado a fantasmas que nem socialização. Podemos ser
email enquanto esperava numa acreditava. sabemos ter. E conto-lhe vezes sem penínsulas e manter um istmo que
interminável Æla de trânsito. Como O número de hikikomoris tem Æm a história do Gigante Egoísta, de nos ligue a terra, mas nunca mais
o assunto me interessava, decidi vindo a aumentar ao redor do Oscar Wilde, que é aquela que do que isso.
não perder tempo e, à conta de tal mundo nos últimos anos e é já uma conheço que melhor mostra que a O fenómeno hikikomori é
decisão, a viagem de 200 realidade bem marcada em países solidão transforma em eterno relativamente novo e, talvez por
quilómetros, que realizei quando a como os Estados Unidos e em Inverno tudo aquilo em que toca. isso, ainda pouco conhecido e
Æla cedeu, foi toda feita com a vários Estados-membros da União Não sei se todos conhecem a compreendido. Mas os seus
cabeça num nó. Europeia. Um desses estados é história, mas, de forma resumida, números engrossam diariamente.
Não sei bem quando é que nos Portugal. existe um jardim maravilhoso no Estima-se que 1,5 milhões de
começámos a tornar pequenas palácio de um gigante que foi pessoas vivam nestas condições só
S
ilhas. Mas a noção de que estamos im, também por aqui visitar um amigo. Como essa visita no Japão. A maioria são homens
cada vez mais sozinhos é existe quem desista de durou sete anos, as crianças jovens.
assustadora. Ninguém foi feito para viver, escolha habituaram-se a usar o jardim para Não estando ainda classiÆcada
a solidão. Nem mesmo aqueles encerrar-se no quarto e brincar e este estava sempre cheio como doença mental, é difícil
que, como eu, gostam e precisam
de estar sozinhos.
fuja de todos os
contactos que não Estar sozinho de Çores muito bonitas e de
passarinhos a cantar docemente.
percebermos onde podemos
exactamente arrumar esta reclusão
Estar sozinho é muito diferente acontecem atrás de um ecrã de Só que um dia o gigante voltou e, auto-imposta, esta solidão que é só
de estar só. E cada vez há mais computador. Também aqui, num é muito egoísta, expulsou todas as crianças. falsamente quebrada pelos ecrãs
gente, especialmente jovens, a país socialmente pouco exigente, Aquele jardim era seu e não queria da televisão ou do computador,
viver numa solidão daquelas que,
como escrevia Nietzsche, modiÆca
há quem preÆra esconder-se e
tornar-se invisível. Não temos
diferente de ter de o dividir. Para que as
crianças não pudessem voltar, o
este Inverno que se eterniza sem
que quem o vive na pele
as vozes. Gosto mesmo desta frase,
sabem? Acho que resume de forma
dados numéricos concretos, aliás,
pouco mais temos sobre este
estar só. E cada gigante construiu um muro e,
assim, os mais pequenos foram
compreenda sequer por que sofre.
Numa reportagem sobre
perfeita a solidão absoluta e o
silêncio aterrador que se instala
fenómeno no nosso país do que
alguns estudos de caso como o que
vez há mais mantidos do lado de fora. O
problema é que as estações do ano
hikikomori nos Estados Unidos, um
jovem rapaz de 21 anos, que se
dentro de cada um quando nos
fechamos ao mundo. Quem passa
li, mas em Itália, por exemplo, esse
estudo com 12 mil jovens entre os
gente, deixaram de passar por ali. E se
fora dos muros era Primavera,
isolou no quarto há cerca de três,
dizia que as outras pessoas não
meses no escuro vai sempre acabar
ferido pela luz. E quem se esconde
15 e os 19 anos mostrou que cerca
de 2% são hikikomoris.
especialmente Verão ou Outono, dentro do jardim
só existia Inverno. Tudo estava
percebiam que dentro do quarto
não tinha medo de viver, mas que
no silêncio vai esquecer-se de tal
maneira das vozes dos outros que,
E antes que surja a questão, é
ainda difícil dizer se os hikikomoris
jovens, a viver coberto por gelo e o vento era o
único companheiro do gigante. Até
fora dele tudo o que conseguia
sentir era que estava numa prisão.
no dia em que aceitar voltar a
ouvi-las, vai ser incapaz de
têm sempre outras perturbações
mentais associadas porque, se numa solidão que um dia, triste e desesperado
por permanecer naquela solidão
E a mãe, que ouvia a gravação,
tinha uns olhos desesperados
reconhecê-las.
Na década de 80 do século
alguns casos apontam no sentido
de que existam daquelas que, que tinha forma de Inverno eterno,
o gigante, próximo da janela, ouviu
porque percebia a realidade que o
Ælho distorcia: não foi o mundo
passado, Tamaki Sait , psiquiatra
japonês especializado na
concomitantemente quadros de
depressão ou ansiedade, também é como escrevia um passarinho cantar. E quando
espreitou lá para fora viu que as
que o prendeu, foi ele que se
prendeu para que o mundo não lhe
adolescência, cunhou o termo
hikikomori que signiÆca,
verdade que, num estudo feito no
Japão, metade da população Nietzsche, crianças tinham conseguido fazer
um buraco no muro e voltado ao
tocasse. E, quando o fez, tornou-se
no seu próprio carcereiro.
literalmente, recluso em casa, e hikikomori não teve associada jardim. Onde elas brincavam Tornou-se num hikikomori. O rapaz
aplicou-o a todos os indivíduos que
se isolavam nos seus quartos, por
qualquer outra perturbação
psiquiátrica.
modifica regressara a Primavera.
O conto de Wilde não Æca por
que se transformou numa ilha.
um período superior a seis meses, Os hikikomoris, jovens que não as vozes aqui, mas não vale a pena contar o Enfermeira
4 • Público • Domingo, 28 de Maio de 2023
Os dias
de Dionísio
“Mil
pequeninas
coisas”
Ao longo da vida, Mário Dionísio, um dos intelectuais mais
marcantes do século XX português, foi escrevendo notas
regulares sobre o quotidiano. O que daí resultou é um
misto de diário e memórias — o 4.º volume de Passageiro
Clandestino abarca o rico período de entre 1974 e 1980
Por António Araújo
E
m Ænais do século XIX, dizia nais e com o desempenho de alguns cargos mando em pequenos artigos, um ou outro ar- servada graças ao persistente e notável labor
Júlio César Machado que, em públicos no imediato pós-25 de Abril: foi pre- tigo que geralmente agrada e logo esquece. Os do centro cultural com o seu nome, na Casa
Portugal, escrever só poderia sidente da Comissão de Estudo da Reforma livros que ando sempre mastigando cá comigo, da Achada, em Lisboa, por diversas iniciativas
ser um modo de vida de quem Educativa, entre Junho e Agosto de 1974, e da a Obra, sei bem que já não a farei”, escreveria de homenagem (v.g., pela Fundação Gul-
tivesse outro. Escrever e, em Comissão Coordenadora dos Textos de Apoio, no seu refúgio de Ranholas, ao terminar o ano benkian, em 1991; pelo Museu do Neo-Realis-
certas fases, pintar, era o de Agosto de 1974 a Julho de 1975; foi vogal da de 1977. mo, também em 1991; pela Câmara Municipal
“maior prazer” da vida de Comissão de ReclassiÆcação e Saneamento do É talvez provável que Mário Dionísio, como da Amadora, em 1993; pelo Museu República
Mário Dionísio — “a única coi- Ministério da Educação, de Novembro de 1974 ele próprio intuiu, não tenha legado uma e Resistência, em 1996) e, enÆm, através da
sa que pessoalmente de facto me interessa”, a Janeiro de 1975, e director de programas da “Obra” e que a sua poesia e prosa, incluindo publicação do seu diário, Passageiro Clandes-
confessaria ao seu diário, em Abril de 1977. Não RTP, entre Novembro de 1975 e Abril de 1976. os seus livros mais conhecidos, como O Dia tino, cujo 4.º volume, referente ao período de
dispondo de heranças de família nem sendo Com tantas e tão variadas solicitações — e Cinzento: Contos, de 1944, não sejam hoje ob- Abril/Maio de 1974 a Junho de 1980, acaba de
uma personalidade especialmente talhada para outras mais recusadas, como o convite para jecto do interesse que indiscutivelmente me- ser publicado, na companhia de dois volumo-
fazer fortuna, bem longe disso (“nunca me in- ministro da Educação, em Março de 1975, que recem. O mesmo se diga sobre os seus traba- sos tomos, com frondosas e importantes notas
teressou ser rico”), Dionísio teve de trabalhar declinou “com o coração despedaçado”, em lhos como ensaísta, com destaque para os três elaboradas por Eduarda Dionísio, num admi-
— e trabalhar muito — para ganhar a vida, pos- conversa com Vasco Gonçalves, e para presi- volumes de A Paleta e o Mundo: Uma introdução rável exercício de devoção Ælial e de pesquisa
to que modesta e frugal, acumulando a activi- dente da comissão instaladora da Universida- à pintura de hoje, de 1956-1962, que marcaram e contextualização históricas.
dade da escrita com a docência (no Liceu de Aberta —, não admira o desanimador balan- uma geração e toda uma época, mas que hoje O conjunto deste diário, a que se deve juntar
Camões e, depois, na Faculdade de Letras da ço feito quando se abeirou da velhice. “Consu- se encontram praticamente esquecidos. Ainda uma pequena Autobiografia, reeditada em
Universidade de Lisboa), com a militância cí- mi a vida toda a adiar esta ideia Æxa de escrever assim, a memória deste intelectual português, 2017, fornece inúmeras pistas de leitura, a co-
vica e política, com a redacção de prefácios, e pintar apenas. Outros o têm conseguido, e que acompanhou todo o século XX (nasceu em meçar, desde logo, pela que se debruce sobre
traduções, de inúmeras colaborações nos jor- ainda bem para eles. Por mim, vou-me quei- 1916 e morreu em 1993), tem vindo a ser pre- o seu valor literário intrínseco, dada a quali-
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dade de escrita e a densidade de pensamento Pintar e escrever vasta sobre a condição e o lugar dos intelectuais vez tenho pensado: ainda terei tempo?”
do seu autor, “um dos mais dotados compo- Entre a docência e os múltiplos cargos do Ocidente na Guerra Fria, aquele que foi, ao O tempo, a matéria-prima de que são feitos
nentes de uma geração”, como lhe chamou e tarefas no pós-25 de Abril, não cabo e ao resto, o dionisíaco tempo de Mário todos os diários, converteu-se numa obsessão
Luiz Pacheco (Figuras, Figurantes e Figurões, admira o desanimador balanço feito Dionísio, um lúcido observador das mudanças instante e constante de Mário Dionísio, sobre-
2004, p. 76). Depois, Passageiro Clandestino por Mário Dionísio quando se abeirou e andanças de um século tão fértil delas. tudo neste volume, mais próximo de uma fase
constitui um texto fundamental, o mais fun- da velhice: “Consumi a vida toda a Além de tudo isso, Passageiro Clandestino da vida em que o tempo surgia associado à
damental de todos, para a reconstrução da adiar esta ideia fixa de escrever e promove uma singular e bem original inda- falta dele, por ausência ou escassez de dias, de
trajectória de vida e do percurso intelectual e pintar apenas. Outros o têm gação sobre a natureza do género diarístico horas, de minutos para concretizar inúmeros
político de Mário Dionísio, cuja biograÆa, conseguido, e ainda bem para eles. e sobre o enorme prazer do texto, dir-se-ia ao projectos sempre idealizados e sonhados como
como aconteceu a muitos dissidentes comu- Por mim, vou-me queimando em modo de Barthes, que o mesmo proporcio- mais prazerosos, mas eternamente adiados,
nistas de várias épocas e vários países, é qua- pequenos artigos, um ou outro artigo nou a quem o escreveu — e a quem o agora fosse pela necessidade de ganhar a vida e pro-
se como que dividida ao meio por um antes e que geralmente agrada e logo lê. “O prazer de recordar mil pequeninas coi- ver ao sustento da família (a única razão que
um depois da sua pertença ao PCP, tão totali- esquece. Os livros que ando sempre sas que só escrevendo reaparecem”, anotou encontrava para dar aulas no Liceu Camões
zante e absorvente esta era. mastigando cá comigo, a Obra, sei Dionísio na entrada do dia 14 de Março de — “só não abandono a proÆssão por esta razão
Noutra aproximação possível, trata-se de um bem que já não a farei” 1977, como que aÆrmando ser a escrita cons- mesquinha: tenho de ganhar o meu pão”) —,
documento de invulgar importância, porven- titutiva da memória, ou pelo menos sua cúm- fosse por pura falta de motivação e vontade,
tura o mais importante de todos até hoje co- plice, para logo acrescentar, num registo mais fosse, enÆm, pelo contínuo surgimento de ou-
nhecidos, sobre a oposição cultural ao salaza- sombrio, mas muito seu, de permanente tras solicitações e compromissos, geralmente
rismo do pós-guerra à revolução de Abril. E questionamento e dúvida: “Será isto medo de cariz cívico-político, a que Dionísio nem
por Æm, mas não por último, estes diários pres- de morrer e o desejo (para quê?) de deixar sempre pôde ou quis furtar-se.
tam-se a um inquérito ou a uma reÇexão mais tudo arrumado? Para quem? (…) mais de uma Para um homem meticuloso e metó- c
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dico como ele (“toda a papelada arrumada por a História, mas como um registo de factos pes-
pastas de modo a que o trabalho comece a pro- soais, passível até de ser usado para outras Æ#
cessar-se planiÆcadamente”, escreveu pouco nalidades (“base” para umas futuras memórias;
depois de entrar para a RTP), as sucessivas in- argumentário de autodefesa, se fosse caso dis-
terrupções do acto de escrita, ou da pintura, so, etc.).
foram decerto um tormento, o que, a juntar à Acrescente-se que não existe nestes diários
sua personalidade autoÇagelada e torturada, uma excessiva preocupação em eleger um in-
à consciência da Ænitude dos dias e às desilu- terlocutor imaginário, escrevendo para ou em
sões do PREC, faz deste volume um repositório função dele; o que há, isso sim, é um averbar
de dores e lamentos. Ainda assim, e ao contrá- de impressões, de opiniões acerca de pessoas,
rio de outros contemporâneos seus, com Jorge factos e situações, de observações e reÇexões
de Sena à cabeça, o autor de O Dia Cinzento sobre o devir da revolução, sobre a conturba-
teve o bom senso de, no entardecer da vida, da passagem pela RTP, sobre uma não menos
não maldizer a ingratidão da pátria, nem se conturbada viagem à URSS, sobre as amarguras
queixar de falta de reconhecimento. do ensino no Liceu Camões, sobre o pânico
A sua existência estilhaçou-se, pois, como sentido com o crescendo da “reacção”. Não
todas, ou quase todas, num caleidoscópico falando para a História nem para um leitor
inÆndo de “mil pequeninas coisas”, que Abril ideal, Mário Dionísio fala e conversa sobretudo
se encarregou de um multiplicar ainda mais, consigo próprio, clandestino de si mesmo, num
fosse porque acelerou o tempo, como é timbre tom próximo e coloquial, mas jamais confes-
de todas as revoluções, ou porque consigo sional ou intimista.
trouxe uma imensidão de reptos, todos ina- Sem forçar a nota psicologista, tudo indicia
diáveis, históricos e urgentíssimos, impossí- que a traumática ruptura com o Partido Co-
veis de declinar. munista, e em especial com o seu líder (“nin-
guém fez criar tanta aversão ao PCP como o
próprio Álvaro Cunhal”), terá deixado lastro
De súbito, em Abril
no modo como Mário Dionísio se relacionou
A dado passo deste diário, Mário Dionísio com o mundo e com os outros, avolumando
questionou o sentido e o propósito do título, traços de um indisfarçável individualismo, fei-
dizendo que, com a chegada da liberdade, o to a partir de uma preocupação obsessiva com
passageiro deixara de ser clandestino. A clan- a sua integridade ética e “rigorosa indepen-
destinidade, porém, manter-se-ia, e numa dência”.
dimensão de que talvez nem o próprio se te- Como estes diários amiúde mostram, sempre
nha apercebido. Na verdade, ao longo deste que Dionísio era solicitado a participar em ini-
e dos outros volumes do diário, o seu autor ciativas e acções colectivas, e sobretudo quan-
mostra-se um clandestino de si mesmo, avesso do o convite surgia por gente próxima do PCP,
a conÆssões excessivamente íntimas ou a aná- a sua atitude instintiva e imediata era de des-
lises psicológicas, talvez porque, como chega conÆança e reserva, de busca de uma escapa-
a aÆrmá-lo, pensava dar à estampa este regis- tória perante quem o convidava e, acima de
to dos seus dias, o qual, note-se, não tem um tudo, perante a sua própria consciência moral
carácter sistemático, havendo longos períodos ou, se quisermos, perante aquilo que entendia
sem qualquer entrada ou omissões em datas serem os seus deveres de intelectual público
que, pela sua evidente historicidade, teríamos alinhado de corpo e alma com a revolução.
por “obrigatórias”, como o 28 de Setembro A sua atitude cautelar e de suma prudência,
ou o 11 de Março. justiÆcada, porventura, por ferimentos preté-
Ora, dizia Dionísio, “um diário, ou se escre- ritos, jamais cicatrizados, aliada ao medo que
ve diariamente, ou falseia tudo”. Ou seja, aque- tinha de ser capturado por facções ou grupos,
le não era, em seu entender, um diário na ver- acabou por colocar Mário Dionísio numa po-
dadeira e clássica acepção da palavra, mas sição algo precária e solitária, pouco ou nada
também não era uma autobiograÆa nem um diferente da que tivera nos anos sombrios do
depoimento memorialístico. Melhor será clas- Estado Novo. Não querendo alinhar com o PS,
siÆcá-lo, pois, como um texto híbrido, que os- que considerava excessivamente à direita, nem
cila entre dois perÆs distintos — diário e me- com as forças de extrema-esquerda, cujo radi-
mórias —, com dois ritmos também distintos calismo verberava, e não podendo nem dese-
— um, au jour le jour; outro, mais espaçado no jando, de forma alguma, retornar ao PCP de Passageiros tarde, não lhe perdoou tê-lo convidado, en-
tempo —, que acabam por lhe conferir um ca- Cunhal, Dionísio acabou por Æcar colocado No topo, Eduarda Dionísio (1946- quanto primeiro-ministro, para um jantar em
rácter muito original na comparação com o numa espécie de no man’s land, numa nebulo- 2023), filha de Mário Dionísio e Maria honra de Francisco de Paula Oliveira (“Pavel”),
registo que outros, como Miguel Torga, Natália sa “antifascista” que ia da esquerda mais ex- Letícia, na Casa da Achada — são dela no qual estranhou a presença do “Chico da
Correia ou Vergílio Ferreira foram fazendo dos trema ao socialismo moderado e de centro, as notas aos diários do pai. Em cima, o CUF” e assistiu, enojado, à má língua de Abran-
dias da revolução. um território muito vasto a que, segundo ele, casal, em 1945. À direita, Mário ches Ferrão e de Sousa Tavares contra Vasco
Ao invés de captar as “datas históricas” ou faltava “unidade” e, logo, capacidade de acção. Dionísio no 1.º de Maio de 1974. Em da Gama Fernandes, “perante os ouvidos aten-
os “grandes acontecimentos” e de sobre eles Nesse espaço difuso, amplíssimo, nunca ocu- baixo, frontispício do mais recente tos e os olhinhos gozosos do Rebelo de Sousa
emitir a sua opinião, Dionísio optou por deixá- pou, de resto, um ponto Æxo ou sequer iden- volume de Passageiro Clandestino e do Proença de Carvalho”. O modo como Má-
los passar em claro, quase completamente em tiÆcável, o que não se deveu a golpismo ou rio Dionísio descreve essa noite é mesmo o de
branco, concentrando-se nos eventos que pre- oportunismo, pois, como este livro bem de- um passageiro clandestino, de alguém que não
senciou e testemunhou em primeira mão, monstra, Mário Dionísio não tinha ambições o PC de toda a minha vida”, criticando, entre perdera as velhas cautelas conspirativas, de
como lume vivo claramente visto. Há excep- de poder ou mando, nem almejava cargos pú- outros vícios, o facto de, pela mão de Cunhal, quem a liberdade de Abril não fez perder sen-
ções, naturalmente, como as referências à blicos: recusou muitos, aceitou uns poucos a aquela força política se ter tornado um “soli- timentos de acosso e de alerta. Dionísio contra
tomada do jornal República pelos seus traba- contragosto, sempre angustiado, pois em tudo tário estalinista” numa zona da Europa onde mundum: na entrada desse dia, escreveu que
lhadores, que reprovou; às manifestações con- punha um enorme, mas dilacerante, sentido outras forças congéneres seguiam a via do eu- “por mais cuidado que se tenha em não pôr o
tra Pinheiro de Azevedo; ao rescaldo do 25 de de responsabilidade e auto-exigência. rocomunismo, “uma linha muito mais de acor- pé nas tantas armadilhas que nos cercam, há
Novembro (“o tumor rebenta”); às “manobras Ainda assim, teve ganas de fazedor, sentiu do com as realidades”. Concluiria com amar- sempre um momento de cansaço, de disponi-
sem escrúpulos” do PCP ou aos erros da ex- a pulsão do agir (“Preciso tanto de agir como gura não existir em Portugal um “partido re- bilidade de espírito, de abrandamento na vigi-
trema-esquerda, nomeadamente a sua adesão de respirar”), desejo pouco ou nada compatí- volucionário” digno desse nome, no qual lância e somos apanhados”; e, após o jantar em
à “teoria da terra queimada”, favorecedora do vel com o seu feitio anguloso, pouco atreito a pudesse militar e ser realizado e feliz. Numa São Bento, “lição a tirar de tudo isto: nunca
recrudescer das direitas. compromissos, e com o seu espírito crítico ou síntese feita em 1977, dizia: “Sou apenas por mais aceitarei qualquer convite, venha ele de
O essencial dos diários, contudo, tem que hipercrítico. Além de tudo, e sobretudo, falta- uma linha verdadeiramente antifascista que onde vier. Está tudo envenenado de mais para
ver com factos vividos e narrados em primeira va-lhe uma força política com a qual se iden- conduza de facto ao socialismo — o que não que se possa confiar seja em quem for” (itálicos
mão, por vezes ao pormenor milimétrico, o tiÆcasse e onde pudesse espraiar os seus an- vejo em parte alguma.” acrescentados).
que permite aventar a hipótese de o texto ter seios. Teve nostalgias de um PCP outro, um Em Junho de 1974, participara num comício Continuou marxista, ou assim parece, esfor-
sido pensado e escrito não tanto para falar para partido comunista que “fosse de facto um PC, do PS, a instâncias de Mário Soares, mas, mais çando-se por pensar dialecticamente. Entre
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 7
JOAO HENRIQUES
tâneo desconÆado e ingénuo, alguém que am-
bicionava, antes de tudo, ter tempo e vagar
para escrever e pintar e que, julgando-se no
crepúsculo da existência, sentiu ter falhado no
seu objectivo de vida, a realização de uma
Obra, grafada até com maiúscula. Juízo dema-
siado áspero para consigo próprio, como sem-
pre, que parte da ideia de um desígnio a cum-
prir, de uma qualquer missão a que se confere
o valor de uma redenção, e ao qual não foi
alheia, por certo, a desilusão pelos rumos que
o país ia tomando, com a subida ao poder da
AD e de um “novo Salazar em formação, o sá-
bio, calmo e sorridente Freitas do Amaral”.
Aqui e ali, mesmo sem o verbalizar expres-
samente, o autor de Passageiro Clandestino foi
deixando pistas sobre a importância das con-
dições materiais para a produção intelectual,
as “mil pequeninas coisas” de que se faz a es-
crita: tempo e sossego; disponibilidade mental;
ausência de interrupções; resistência a solici-
tações desviantes; capacidade de concentração
num projecto a prazo. Ou coisas ainda mais
ínÆmas, só aparentemente menores: conta
de que sentiu de alimentar duas obsessões: a Francisco Peixoto Bourbon que Fernando Pes-
de ser “independente”, por um lado; e, por soa gostava de lápis muito pequeninos, trazen-
outro, a de que não o tomassem por “indife- do-os nos bolsos do casaco, promiscuamente
rente” ao processo político em curso. “Agrada- misturados com o lenço e o porta-moedas, se
me que percebam que não sou um indiferente deu mal com uma lapiseira que lhe deram,
e que é mesmo a falta de indiferença que me deixando de a usar pois fazia-lhe cócegas nas
faz recusar a trágica separação que estamos pontas dos dedos (Evocando Fernando Pessoa.
vivendo todos”, escreveria em Maio de 1977.
A alegria da revolução, porém, cedo deu lu-
Será isto medo de Crónicas publicadas no jornal Eco de Estremoz,
2016, p. 59); Dionísio, de seu lado, fala aqui das
as ligações perenes, manteria um relaciona-
mento amistoso com o grupo de O Jornal, por
gar ao desalento e, em Maio de 1975, já Dionísio
falava de um “país em farrapos”. Seguiram-se
morrer e o desejo pastas arquivadoras da RTP, das Æchas na Bi-
blioteca Nacional, da dimensão da secretária,
sólida amizade com José Carlos Vasconcelos.
Publicou aí diversas crónicas, colaborou regu-
frases congéneres, sempre em plano inclinado
— “acima de tudo, nojo é o que isto causa” (09-
(para quê?) de das jornadas em que, de tão enfronhado na
escrita, a mulher tinha de o chamar para jantar,
larmente no Jornal de Letras, deu à estampa
na respectiva editora a sua Autobiografia, em
10-1975); “a Revolução já lá vai” (07/04/1976);
“a dois anos do derrube do fascismo, para ele deixar tudo da banca de trabalho em Ranholas, da pasta
que tentou comprar numa loja de Lisboa, em
1987, e A Morte É para os Outros, no ano seguin-
te. No entrementes, uma roda-viva de compro-
caminhamos a passos esgalgados” (19/04/1976)
—, culminando tudo na fatídica noite eleitoral arrumado? Para curioso diálogo com a respectiva proprietária,
que lhe disse que só já havia aquele modelo
missos cívicos: um Æm-de-semana inteiro num
colóquio da Intervenção Socialista; diversas
de 3 de Dezembro de 1979, em que, colados ao
ecrã da televisão até às cinco da manhã, na quem? (…) mais por causa do 25 de Abril (“A fábrica foi entregue
ao Estado, não produz nada.”)
sessões de homenagem aos mortos do Tarrafal; companhia dos amigos Lurdes e Afonso Car- Quotidianos reveladores: o Renault 5 na oÆ#
comemorações da vitória sobre o “hitlerismo”;
acções de graças por Lopes Graça, “justíssi-
valho, Maria e Mário assistiram em directo ao
triunfo da AD e, com ele, à “derrocada do 25
de uma vez tenho cina, na primeira revisão; o regresso de Eduar-
da a casa, em breve convalescença, com cama
mas”; homenagens a Caraça, Redol, Soeiro,
Júlio Resende; o I Encontro Nacional da Asso-
de Abril”.
Haverá aqui, porventura, matéria de reÇexão
pensado: ainda instalada no meio da sala de estar, para o efei-
to transformada num quarto “surrealista”; a
ciação de Cultura Socialista/Fraternidade Ope-
rária, a obrigar vinda mais cedo de Ranholas;
e estudo sobre as relações entre ideologia, mi-
litância e indivíduo. É que se a ideologia e a
terei tempo? humidade de Ranholas, com neblinas à Sime-
non; o acender da lareira e a mesa coberta de
idas ao Largo Camões, para assistir à manifes-
tação das Comissões Populares; recitais de
militância agrupam e uniformizam um con-
junto de vontades, irmanadas na partilha dos
Mário Dionísio livros; ante um mundo pressentido como hos-
til, pequenas delícias da domesticidade bur-
poesia da Resistência (com maiúscula), decla- mesmos ideais ou de objectivos convergentes, guesa; ou a suma importância do reduto fami-
mada por Manuel Alberto Valente; manifesta- os seus protagonistas são sempre sujeitos in- liar, agora cada vez mais circunscrito a um
ção da Frente Eleitoral Povo Unido, no Parque dividuais e concretos, cada qual com seu per- casal sexagenário, atormentado por algumas
Eduardo VII, sob um calor sufocante; quatro curso, a sua forma tão própria de ver o mundo doenças e em síndrome de ninho vazio: “Que
horas de pé no desÆle do 1.º de Maio, da CGTP- e as coisas. Quando esses sujeitos são intelec- desolação este afastamento cada dia maior
IN; conferência de imprensa no anÆteatro 2 de tuais, ou indivíduos publicamente reconheci- (inevitável?) entre pais e Ælhos! Mesmo quando
Letras, dada por professores antifascistas que dos como tais, dotados de uma peculiar cons- nada de fundamental os afasta. Nem sequer
estiveram presos e deportados (“deitei-me mui- cience de soi e do seu estatuto e do seu lugar na uma perspectiva política ao menos global.”
to mais do que o médico quer que eu faça, esfera pública, as discrepâncias entre ideologia A dada altura, e a conselho médico, por cau-
tomei os remédios fora de horas e levantei-me e militância, por um lado, e autonomia pessoal, sa dos nervos, largou a cafeína, passou a tomar
escandalosamente às dez e meia da manhã”); por outro, tornam-se mais evidentes. Nescafé. Em 22 de Junho de 1980, para come-
sessões de esclarecimento do Sindicato dos A dado momento deste diário, transcrevem- morar os 40 anos de casados, foi almoçar com
Professores, no Liceu Camões; jantares de con- se excertos de uma entrevista de Jean-Paul a mulher à Quinta das Torres, Azeitão. Passa-
fraternização de escritores, no Mercado do Sartre sobre as mulheres: “Ché-ché ou não, ram a tarde em casa, “claro”, e à noite jantaram
Povo, iniciativa da Célula de Escritores Comu- Sartre diz sempre qualquer coisa de impor- os dois num restaurante chinês que abrira no
nistas do PCP; colóquio no Camões com Fran- tante, que não se pode deitar fora sem exigir prédio ao lado. Na manhã seguinte, escreveria
cisco Miguel; adesão ao movimento de repúdio pelo menos alguma reÇexão.” Quando Sartre no diário que não lhe restava um amigo.
do regresso de Tomás a Portugal — era nesta morreu, o obituário do The Times chamou-lhe
lufa-lufa que Dionísio se sentia bem, mostran- “the man who walked alone [o homem que ca- Post-scriptum — Este texto foi escrito e entregue
do aos outros e a si próprio que participava e minhava sozinho]”, epíteto que bem poderia para publicação antes da morte de Eduarda
estava presente, mas fazendo-o como citoyen- ser aplicado a Mário Dionísio de Assis Mon- Dionísio, ocorrida no passado dia 22 de Maio.
mirone, independente e livre, sem correr o teiro e que talvez explique muito das suas As referências nele feitas ao seu admirável tra-
risco de ser capturado por uma facção ou gru- agruras na política. balho — e ao trabalho da Casa da Achada — na
po, ou usado como cabeça de cartaz em Ælmes preservação da memória de Mário Dionísio
que não eram os seus. acabaram, assim, por adquirir um outro signi-
Ecce o homem
Na verdade, é provável que este frenesi in- Æcado, sem dúvida mais triste, mas também
terventivo, calamitoso para a escrita e a pintu- Por último o que é primeiro: o livro como re- mais sentido.
ra, se deveu ao clima próprio da revolução, trato do homem que o quis escrever. Um ser
mas também, ou principalmente, à necessida- humano íntegro, ou assim parece, em simul- Jurista e historiador
8 • Público • Domingo, 28 de Maio de 2023
Joanna
Bryson
“Encontrámos uma forma
de assustar as pessoas com
a inteligência artiƊcial”
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 9
P
or detrás de qualquer Temos de estar atentos às empresas por
sistema de inteligência detrás da tecnologia. Como é que um
artiÆcial, estão os humanos e modelo pode dominar o mundo? A
as empresas que os criam. máquina não se programa sozinha. Se
Esta é a ideia-chave de pensarmos nos riscos, por exemplo, casos
Joanna Bryson, especialista de falsiÆcação de identidade — são os
alemã de ética e tecnologia criminosos que usam IA para se fazerem
conhecida por viajar pelo passar por outros humanos. No Vietname,
mundo para aconselhar governos, pessoas bem-sucedidas que mandam os
empresas e organizações não Ælhos para a Europa para estudar têm
governamentais sobre políticas de recebido pedidos de resgate a acompanhar
inteligência artiÆcial (IA). Entrou nesta área vídeos falsos [deepfakes] que mostram os
no começo da década de 1990 — fã de uma Ælhos nas mãos de criminosos. Se os pais
visão transdisciplinar da tecnologia, além não pensam em telefonar aos Ælhos antes
de dois diplomas em IA (da Universidade de de pagar, caem numa armadilha. Estamos a
Edimburgo, na Escócia, e do Instituto de falar de grupos criminosos, da máÆa, de
Tecnologia de Massachusetts, o famoso líderes como o Sam Altman usarem as
MIT, nos EUA), Bryson soma outro de máquinas e os programas informáticos de
Psicologia e um de Ciência forma incorrecta.
Comportamental. Este tipo de burlas existe sem IA. Há um
Em 2017, o seu trabalho de investigação caso das mensagens “Olá mãe/Olá pai”
ajudou a desvendar como sistemas em Portugal em que criminosos enviam
informáticos podiam promover mensagens falsas a pedir dinheiro a
estereótipos e viés acidentalmente. O pessoas...
currículo também inclui uma (muito breve) Estes problemas existem desde sempre.
passagem pelo Comité de Ética e Não vêm com a tecnologia. Lembro-me de
Inteligência ArtiÆcial da Google. uma vez receber um email da mãe de uma
Actualmente, Bryson passa a maior parte das minhas amigas a dizer que estava presa
do tempo a dar aulas sobre estes temas na numa ilha deserta e precisava de 2000
Hertie School, em Berlim, na Alemanha. dólares. E eu pensei: “Porque não ligou à
Em Maio, esteve em Portugal para falar Ælha?” Telefonei à minha amiga e ela
sobre o que distingue humanos de novos explicou que a conta de email da mãe tinha
sistemas inteligentes no programa de sido alvo de ciberataque. É preciso
conversas Human Entities, organizado pelo questionar as fontes de informação.
grupo artístico CADA em parceria com a Mas há casos em que a inteligência
Trienal de Arquitectura de Lisboa. “O maior artificial comete erros “sozinha”...
erro é vermos características humanas em Há vários. Houve recentemente um
programas informáticos”, partilha Bryson escândalo com os serviços sociais dos
com o P2 numa conversa sobre a visão que Países Baixos com um algoritmo que estava
diferentes países têm da tecnologia, os a sobrevalorizar a quantidade de pessoas
riscos da tecnologia, e os erros da que mentiam propositadamente aos
regulação. serviços sociais, quando na realidade as
O actual debate sobre a IA deixa-a pessoas apenas tinham preenchido mal
frustrada. “Sinto que muito do pânico que alguma coisa porque não falavam
está a ser expressado em torno da neerlandês Çuentemente. Eram refugiados.
inteligência artiÆcial vem de um sector que Aconteceu um erro semelhante com o
não foi adequadamente regulado durante sistema dos correios do Reino Unido, que
demasiado tempo”, salienta. “Não faz destruiu famílias porque indicou,
sentido criar regras para monitorizar os erradamente, que havia milhões de libras
modelos de IA.” desaparecidas. Em ambos os casos, há
Mais do que uma visão optimista da pessoas que se suicidaram.
tecnologia, tem uma visão optimista da Se a abordagem de Sam Altman dá
sociedade. “As pessoas que inovam e muito foco aos modelos, qual é a
investem em boa comunicação vão solução para estes problemas?
ganhar”, defende, notando que é essencial É preciso estar atento a padrões nos
expor como a tecnologia funciona. sistemas para detectar anomalias e é
Como vê as chamadas novas preciso ter o direito de contestar decisões
ferramentas de inteligência artificial das máquinas. A Lei da Inteligência
generativa? ArtiÆcial [AI Act] da União Europeia quer
A minha maior preocupação é que introduzir uma forma de todas as pessoas
encontrámos uma forma de assustar as terem o direito de recorrer das decisões. O
pessoas com a inteligência artiÆcial. Há problema é que, de momento, o debate está
sempre riscos e benefícios quando se fala a levar à alteração do texto e à introdução
em tecnologia, mas como as pessoas podem de exigências irrealistas, sobre o facto de os
ver nos novos produtos que estão a ser sistemas terem de explicar as suas
criados, surge mais confusão do que o conclusões.
normal. Tem escrito que um dos grandes
Algumas vozes não ajudam. As pessoas problemas com a IA é que as pessoas
ouvem pedidos de regulação de alguém não percebem como é que estes
como Sam Altman, o co-fundador da sistemas funcionam...
OpenAI [criadora do ChatGPT], e O maior erro é vermos características
dizem-me: “Não é maravilhoso como o Sam humanas em programas informáticos
Altman se preocupa realmente com a porque os vemos a produzir conteúdo que
regulação e está a falar com a União associamos a humanos. As máquinas nunca
Europeia?” O que ele tem dito é um perfeito vão ser como humanos porque as nossas
disparate. Não faz sentido criar regras para capacidades são baseadas nos problemas
monitorizar os modelos de IA e veriÆcar de uma espécie social que tenta
que não se transformam em ferramentas coordenar-se com outros seres do mesmo
perigosas. tipo para sobreviver.
Porque é que o foco nos modelos está Mas começa a ser fácil confundir
errado? conteúdo produzido por uma c
10 • Público • Domingo, 28 de Maio de 2023
Há uns tempos, tive uma longa conversa indústria, como o encerramento de uma
com alguém envolvido no debate que fábrica inteira num país. Basicamente, em
discorda; que diz que um sistema que casos em que as pessoas têm razão em ter
aprende e se modiÆca é muito perigoso. medo ou em estar zangadas com os seus
Isso é verdade, mas é irrelevante. O que governos.
importa é garantir que sistemas Há debates em tecnologia, como a
responsáveis por decisões importantes, polarização, que estamos a ignorar
como a instituição em que jovens estudam, devido ao foco em inteligência
ou questões judiciais, possam ser artificial?
contestadas. Temos de garantir que os Sim. O debate em torno da inteligência
algoritmos foram bem treinados. E isto é artiÆcial distrai-nos de outros temas, como
válido com qualquer tecnologia. as alterações climáticas. Mal acredito que,
Outro dos grandes receios é que as no início da pandemia da covid-19,
ferramentas de IA conduzam ao estávamos todos a dizer: “Vendo o lado
aumento da divisão. É um receio real? positivo, não estamos a voar tanto. Vamos
Pode-se criar sistemas mais limitados. Se continuar assim.” Agora estamos a celebrar
treinarmos a IA num subconjunto mais o facto de termos voltado à mesma
pequeno de dados, então a IA saberá menos quantidade de voos que fazíamos antes.
coisas. Isto não tem de infringir a liberdade Não nos podemos dar a esse luxo como
de expressão, se for transparente. É válido planeta.
que alguém queira treinar programas Outra coisa que me incomoda é a
apenas nos escritos de senadores quantidade de vezes que falamos de
republicanos. Há uns anos, algumas preconceito nos programas informáticos.
pessoas tentaram criar uma relação Embora isto seja importante, não estamos a
alternativa da Wikipédia, a Conservapedia, falar o suÆciente sobre a vigilância. Ainda
com ideias mais conservadoras. Agora, há pouco falávamos de programas de
exigir que empresas como o Google tenham reeducação na China.
diferentes modelos com diferentes visões A cibersegurança é outro dilema. Não
políticas, não faz sentido. podemos esquecer o que se está a passar
Se promovermos diferentes modelos e com o ataque aos sistemas electrónicos. E
chatbots com diferentes visões, não isto não começou com a guerra na Ucrânia.
estamos a separar as pessoas em Quando fala no problema em torno da
bolhas? vigilância, fala do facto de as pessoas
Não creio que seja um problema maior do continuarem sem questionar com quem
que aquele que já temos com, por exemplo, é que partilham os dados? Há ideia de
pessoas que consomem canais televisivos que é uma troca: dados em troca de
com diferentes inclinações políticas como a comodidade...
imparciais”. Isto só é conveniente para as Vigilância NPR ou a Fox News, nos EUA. Um dos meus As pessoas subestimam o quão prejudicial é
gigantes tecnológicas que conseguem puxar À esquerda, câmaras de colegas da Universidade de Princeton, Andy aquilo que as empresas podem saber sobre
a introdução de conceitos impossíveis de videovigilância na China. “Uma Guess, publicou um artigo que mostrava nós, ou o que outros governos podem saber
deÆnir de modo a contornar a legislação em das coisas que me incomoda é a que as pessoas diziam que estavam a ler as sobre nós. É possível usar as redes sociais
tribunal. quantidade de vezes que falamos coisas mais extremas porque, quando lhes para perceber quem é vulnerável a
Ainda não há uma versão final do AI Act. de preconceito nos programas perguntávamos, sentiam que tinham de determinados argumentos e depois abordar
O comissário europeu para o Mercado informáticos. Embora isto seja assinalar a sua identidade. Só que, se essas pessoas noutros ambientes.
Interno, Thierry Breton, afirma que importante, não estamos a falar fossem monitorizadas, que foi algo que ele Como é que impedimos esse
serão consideradas as novas o suficiente sobre a vigilância”, fez, via-se que as pessoas eram mais comportamento?
ferramentas de IA generativas, capazes alerta Joanna Bryson moderadas. Isso é um dos grandes motivos de eu me
de produzir conteúdo do zero. Há A polarização é outra área que estuda. começar a interessar por regulação e
mudanças recentes na proposta que a As redes sociais promovem a política. Temos de começar a pensar bem
preocupam? polarização? sobre o tipo de tecnologia que precisamos
Ainda não tive tempo de avaliar a versão Isso não acontece. Há dezenas de artigos de criar para nos defendermos da
mais recente. Uma das alterações que demonstram que isso não acontece, tecnologia. As sociedades que conseguem
preocupantes é o facto de os legisladores mas continuam a ser publicados mais assegurar e proteger a liberdade de
incluírem linguagem que indica que o porque as pessoas ainda não aceitam isso. expressão e de pensamento serão as
sistema de IA tem de ser fonte de Se monitorizarmos o tempo que uma sociedades mais livres. Pensemos nas falhas
transparência. Isso não faz sentido. Quando pessoa passa nas redes sociais, vemos que da tecnologia da Rússia na guerra na
se cria um sistema de inteligência artiÆcial, não há nenhuma relação com o seu grau de Ucrânia: esses erros vêm do facto de o
o objectivo é que seja o mais simples e claro polarização. Há a ideia de que as redes regime ser autocrático. Quando não se pode
possível. Programá-lo para que seja capaz sociais se tornaram mais polarizadas depois falhar e tem de se dizer sempre ao
de se explicar a si próprio vai complicar o de Donald Trump ganhar as eleições supervisor que está tudo a funcionar bem,
sistema. É importante perceber como é que presidenciais de 2016, mas isso aconteceu deixa de existir controlo de qualidade.
o sistema funciona, quais os objectivos, porque um grupo de pessoas que já eram É por isso que as pessoas que inovam e
quais as garantias… Mas não é o sistema que polarizadas se tornaram mais visíveis. investem em boa comunicação vão ganhar.
tem de descrever como funciona. O que causa então a polarização? Por curiosidade, que ferramentas de IA
Há uma falta de conhecimento técnico O meu grupo de trabalho tem uma usa? Quais são as vantagens?
por parte dos legisladores que estão a hipótese: quando vemos mudanças na Ainda não utilizo muito ferramentas de IA
decidir e a debater estas leis?
Em alguns casos. Quem acha que os O debate em torno sociedade, geralmente são fruto de uma
troca. E o que vemos é que as populações
generativa. Vou ser sincera: assusta-me a
recolha de dados das empresas nesta altura
problemas se resolvem com sistemas que mais diversas são mais benéÆcas para as e o facto de nos termos de identiÆcar
explicam como funcionam, não percebe os da inteligência pessoas. Há mais facilidade na cooperação através da criação de uma conta. Por isso é
problemas. Muitas das coisas que os e resolvem-se mais problemas. Só que a que ainda não me inscrevi no GPT-3.5. Mas
legisladores europeus mencionam nem
tem de estar na nova lei, porque já estão
artificial distrai-nos diversidade é arriscada. Quando há riscos,
devido à inÇação ou ao declínio da
estou muito interessada na forma como as
pessoas usam estas ferramentas. Como
no Regulamento Geral para a Protecção de
Dados [RGPD]. A legislação tem de incluir
de outros temas, economia, as pessoas preferem soluções
seguras, mesmo que os benefícios sejam
professora, acho que um dos potenciais
destas ferramentas é acelerar a correcção
sistemas de recurso. Se desenvolvemos
sistemas que podem mudar a vida das
como as alterações menores.
A polarização vem do medo da
de ensaios e testes de alunos.
Uso outras ferramentas de IA. Ainda no
pessoas, tem de haver formas de detectar
erros quando há problemas, de conÆrmar
climáticas mudança?
Do receio de que estamos todos a perder. A
outro dia estava a ver como o sistema de
videoconferências da Google permite criar
se a decisão foi bem tomada. Na base, é só
isso.
Joanna Bryson polarização tende a aumentar quando há
uma espécie de colapso catastróÆco de uma
legendas dos oradores, em tempo real, e
traduzi-las para diferentes línguas.
12 • Público • Domingo, 28 de Maio de 2023
“Q
uando no Ænal do se- em plena conferência, a aceitação por parte
gundo dia de trabalhos do Vaticano do pedido de encontro. O
fui à mesa da presidên- convite do Vaticano chega a 29 de junho, em
cia para dizer a Cabral resposta à carta oÆcial enviada a 29 de maio
que Paulo VI o recebe- pela própria Glisenti, em nome do comité
ria numa audiência pri- para a organização da conferência de Roma,
vada com Marcelino ao monsenhor Frana, acompanhada por um
dos Santos e Neto dois dossier acerca das atividades dos três
dias após a conclusão da conferência, ele dis- movimentos. A chegada tardia do convite
se-me: ‘Eis o primeiro dia da nossa criação terá sido estratégica; tal como viria a ser
como nação.’ O sabor vagamente bíblico da considerada estratégica a prudência vaticana
sua frase adquiriu um signiÆcado político na de afastar o fotógrafo pontifício, no
sua boca”, recordou Marcella Glisenti. momento do encontro, para sublinhar o
É um dia quente e luminoso em Roma. É o caráter rigorosamente privado da audiência.
primeiro dia das férias de Verão para a Tratava-se, sem dúvida, de uma audiência,
maioria dos italianos, como enfaticamente ainda que sob a forma privada,
anunciam os diários da manhã, falando em contrariamente ao que, apressadamente e
“início do êxodo para as praias”. É nesse dia com evidente embaraço, aÆrmou a nota do
1 de julho de 1970 que Marcelino dos Santos, secretário de Estado da Santa Sé a 7 de julho,
Amílcar Cabral e Agostinho Neto encontram em resposta aos protestos veiculados numa
o papa Paulo VI na Sala dos Paramentos, nota do embaixador de Portugal junto do
após a conclusão da audiência geral. A Vaticano: “[...] Não se tratou de uma
reunião tem início às 12h15, dura cerca de 20 audiência no verdadeiro sentido do termo: Solidariedade informado pelo próprio embaixador
minutos e decorre na presença de dois no âmbito dos encontros de caráter geral Amílcar Cabral e Joseph Turpin Eduardo Brazão da notícia do encontro e da
prelados, do intérprete vaticano e de um que, na qualidade de Pastor universal, Sua durante a Conferência de sua imediata ressonância mediática: “Fui
acompanhante italiano, Marcella Glisenti. É Santidade costuma ter [...]. Não foi Solidariedade com os Povos das logo a casa do Marcello, e decidimos o gesto
precisamente a Glisenti, diretora da Livraria pronunciada qualquer palavra que pudesse Colónias Portuguesas, em Roma, diplomático grave que é chamar para
Paesi Nuovi, que se deve a mediação com o soar ofensa a Portugal, ou menor estima pela em junho de 1970. A “audiência consultas o nosso embaixador. SigniÆca uma
Vaticano para conseguir a audiência por sua dignidade, juízo sobre a sua política, especial” de Marcelino dos Santos, atitude negativa. Chamei o Brasão a Lisboa e,
ocasião da Conferência de Solidariedade interferência nos seus assuntos internos. Por Amílcar Cabral e Agostinho Neto entretanto, saiu a notícia nos jornais. Chamei
com os povos das colónias portuguesas, isso, o Santo Padre Æcou surpreso e desolado com o Papa Paulo VI ter-se-á também o núncio apostólico, que era um
realizada na capital de Itália entre 27 e 29 de por a Embaixada de Portugal ter enviado realizado segundo um esquema homem baixinho e vesgo, e seguiram-se
junho daquele ano. A conferência foi o uma nota de protesto [...].” simples, mas judiciosamente conversas muito duras com ele. Disse-lhe
momento mais importante da longa e A nota de protesto da embaixada estudado pelo protocolo vaticano. que estávamos profundamente ofendidos
articulada história de solidariedade e apoio portuguesa ao Vaticano e a chamada O encontro com a comitiva africana com o gesto de Sua Santidade. O núncio
da esquerda e dos sectores católicos imediata do embaixador junto da Santa Sé aconteceu no dia 1 de julho de 1970, respondeu que era um gesto sem sentido
progressistas italianos aos três movimentos foram os primeiros sinais públicos de na Sala dos Paramentos, após a político, e que o Papa apenas tinha dado a
africanos de libertação do colonialismo desaprovação da concessão da audiência aos conclusão da audiência geral bênção aos terroristas. Aí, expliquei-lhe que
português: MPLA, PAIGC e Frelimo. “terroristas”, como recorda nas suas o povo português era muito católico, mas
Marcella Glisenti, editora, livreira, ativista memórias o então ministro dos Negócios também podia ser anticlerical e contei-lhe a
terceiro-mundista, é quem anuncia a Cabral, Estrangeiros Rui Patrício, rapidamente história do ‘Bispo Negro’. Depois disto tudo,
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 13
Cristina e o seu
P
ode-se assobiar para o lado, sempre associada ao reconhecimento
tentar ignorar, Ængir que não público e à acumulação de bens materiais,
se sabe, mas Cristina Ferreira mesmo que se diga que os bens materiais
tem uma capacidade rara contam muito menos que “a autenticidade”
para se impor. E não é só uma e o conseguir-se um “propósito”.
questão de apagar a televisão, Na terceira Cristina Talks (a primeira foi
séquito de
mudar de canal. A entertainer em Gondomar e a segunda em Lisboa, onde
mais bem paga do país os 19 euros da entrada se multiplicaram por
transÆgurou-se numa espécie de guru que dez mil; e já há outra marcada para Braga,
percorre o país vendendo as suas lições de cujos 7500 bilhetes se esgotaram em poucas
superação da adversidade, além de horas), o Ægurino repetiu-se e com a mesma
conjuntos de lantejoulas a 360 euros. dose de proÆssionalismo. Pouco antes das
Assume-se como uma espécie de Nossa dez horas da manhã, já os seguidores de
Senhora da Malveira versão pop e Cristina estavam a receber mensagens no
levantados
apresenta-se rodeada de uma legião de telemóvel a anunciar descontos nas roupas,
levantados do chão que, como ela, válidos por apenas 24 horas e inacessíveis
mostraram ter propriedades de herói, pela para os “anti-Cristina”. Quem tivesse pressa,
forma como se emanciparam da pobreza podia sempre aviar-se com o merchandising à
onde cresceram. venda no recinto: uma T-shirt com o nome
A intelectualidade (ou os “anti-Cristina, de Cristina a 25 euros, uns chinelos de andar
como ela gosta de dizer) pode-se estar a por casa com lantejoulas a 35,90 euros, um
do chão
borrifar, mas os seus admiradores não. E, no saco de pano a 12 euros.
passado sábado, em Guimarães, cinco mil No fundo, não é muito diferente de
seguidores da empresária/entertainer/ quando se vai a Fátima e se sai de lá com um
escritora/guru pagaram 19 euros para, terço ou uma estatueta do Papa Francisco
durante três horas e meia, participarem num em jeito de lembrete da catarse
ritual apoteótico de onde, a cumprir-se o experienciada no santuário. Mas aqui os
pressuposto da coisa, saíram transformados mantras inscritos nas peças à venda são
e mais próximos de alcançar o sucesso, diferentes: “Amor é amor”, “Não sejas
sendo que a noção de sucesso surge aqui metade”, “Está tudo certo”. Tudo altamente
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 15
presentes se “permitam sentir alguma vocês”, grita, garantindo que o seu novo Contraponto, 2020], corresponde a um dos “É uma tentação dizer que isto é um
coisa”, numa “atmosfera de não-julgamento projecto “já está a impactar a vida de muita impulsos mais importantes da nossa vida fenómeno vazio, que não tem mensagem,
e de partilha”, porque “toda a mudança gente”. religiosa, que é o da transÆguração da mas aqui a forma, o ritual, contam tanto
começa sempre com uma sensação interior O desistente da faculdade quer, aÆnal, matéria reles em matéria sublimada. No como a mensagem. Olhando bondosamente
de que algo tem de acontecer”. vender um curso motivacional, por uns caso de Cristina, trata-se de transformar a para o assunto, veria nestes ajuntamentos
No caso de Fred, a jornada começou com a módicos 995 euros, se for online, ou 1475 adversidade, os insultos e as coisas menos uma manifestação da esperança humana”,
desistência da faculdade e a decisão de criar euros, se for em formato híbrido. Seguem-se boas e sair por cima”, descreve ainda o prossegue, lembrando os rituais das religiões
uma agência de modelos publicitários com o mais algumas inspirações e expirações professor de FilosoÆa, rejeitando leituras vegetalistas que proliferaram no Brasil (e que
dinheiro da avó ( “Já agora, uma salva de colectivas e acaba tudo aos saltos ao som do simplistas que levam a descartar estes chegaram, entretanto, também a Portugal) e
palmas para a minha avó!”). Depois de nove It’s my life, dos Bon Jovi. eventos como vazios de conteúdo. “Estas cujos seguidores se reúnem para beber um
meses a dormir no chão da sala (e no ecrã do pessoas que vieram de baixo, mas que chá que altera a consciência. “Eles precisam
palco lá aparece a fotograÆa comprovativa, conseguiram subir, fascinam os outros. São de liturgia, mas como ainda não têm
“Eliminar e banir”
não fossem os mais cépticos pôr-se a mais um dos rostos do arquétipo do herói, nenhuma, não têm um profeta nem um texto
duvidar), a agência expandiu-se e conseguiu O achiever que se segue é Pedro Chagas que tem momentos de solidão e sagrado, lêem o que têm à mão. No caso da
somar várias marcas importantes no Freitas, a pessoa que, quando Cristina adversidade, mas que não foge ao combate sessão a que assisti, em Lisboa, leram o
portfólio de clientes, mas a sensação de Ferreira é mais violentamente torpedeada e acaba por vencer”, descreve. contrato de arrendamento do espaço em que
vazio foi de tal forma que o levou a largar pela crítica, faz milagres com uma simples estavam. O que conta é o ritual”, compara.
tudo e a aventurar-se numa viagem de um SMS em que escreve “Siga” e imediatamente
ano pela Ásia (também havia fotograÆas a entertainer sente que “está tudo certo”. Cristina & Companhia
“Tu consegues ser dono
disso). Aparentemente, saiu de lá a dominar Mas não é a comunicação entre os dois que Na terceira Cristina Talks — a primeira foi
as técnicas de relaxamento e meditação justiÆca a presença do escritor aqui. É a sua em Gondomar e a segunda em Lisboa, do teu destino”
guiada, tal a mestria com que põe a plateia a “life journey” e a extraordinária capacidade onde os 19 euros da entrada se Não faltam pretextos para catarse nas talks
inspirar e a expirar de olhos fechados e a de superação que o fez passar de operário multiplicaram por dez mil; e já há outra de Cristina. Além de um pedido de
visualizar onde quer estar no futuro. fabril a nadador-salvador e depois a porteiro marcada para Braga, cujos 7500 casamento em directo e ao vivo (ela disse
“Eu, supostamente, devia estar a sentir-me e a jogador de futebol, antes de se tornar bilhetes se esgotaram em poucas horas que “sim”, claro está), houve relógios
bem-sucedido, mas alguma coisa me levava a aquilo que hoje é, ou seja, “um escritor com —, o figurino repetiu-se e com a mesma atirados sobre a plateia e escondidos debaixo
sentir que eu não estava preenchido. Braços mais de um milhão de livros vendidos”. dose de profissionalismo. Entre os das cadeiras, iguais ao que usava a anÆtriã. E
no ar e diga ‘sim’ quem sente que aquilo que Receita para o sucesso? “Eliminar e banir.” E convidados estiveram Janet, Fernando houve uma norte-americana, Janet, que a
está a fazer no seu dia-a-dia não está isto aplica-se, presume-se, quer aos Daniel e Pedro Chagas Freitas apresentadora conheceu há dois ou três
propriamente alinhado com o seu comentários negativos nas redes sociais quer
verdadeiro sonho de vida!”, pede, aos obstáculos que vão aparecendo na vida.
desaÆando a plateia a ultrapassar inércia, a O escritor, tal como o cantor Fernando
procrastinação e os medos, antes de, ao som Daniel que apareceu a descrever o divórcio
de Enya, os pôr a meditar, naquilo que se dos pais, a depressão e a pobreza que
pretende seja o início de um “processo de obrigou a sua família a viver numa casa em
autodescoberta”. que um balde fazia as vezes de sanita (e que
No caso de Fred, a autodescoberta levou-o também aproveitou para presentear os fãs
à constatação de que o seu propósito era de Cristina com uma exibição do videoclip do
“contribuir positivamente para a vida dos seu novo single, Casa, em primeiríssima
outros”. Para isso, o antigo recrutador de mão) surgem, como de resto a própria
modelos publicitários colou-se à jornada do Cristina, como uma espécie de
herói descrita em 1949 no livro O Herói de Mil representantes da “divinização do humano”,
Faces, do antropólogo norte-americano segundo o professor do Departamento de
Joseph Campbell, cuja teoria citou, e FilosoÆa da Escola de Letras, Artes e Ciências
apresenta-se agora como exemplo de alguém Humanas da Universidade do Minho, José
que, depois de superar inúmeras provações Manuel Curado, para quem o caldo de que
e adversidades, consegue superar-se. “A estas Æguras se alimentam está bem descrito
jornada do herói mostra-nos que todos nós em Homo Deus — História Breve do Amanhã,
temos uma jornada única para cumprir em em que o israelita Yuval Noah Harari fala da
direcção à nossa visão ideal. Nesta jornada transferência para os homens dos deveres
somos sempre confrontados com um que até determinada altura se tinham em
momento, que se chama call to adventure, relação a Deus.
que é o momento de entrada na aventura, “Os nossos antepassados sentiam que
porque todos temos medos e desejos, tinham deveres para com Deus; nós
obstáculos e vontades. Que este momento sentimos que temos deveres para connosco:
seja o vosso call to adventure que vos vai cuidamos da nossa saúde, fazemos desporto,
permitir serem seekers em vez de settlers; porque achamos que temos qualquer coisa
serem alguém que não se conforma, que de divino. É como se fosse uma divinização
quer fazer acontecer; alguém que, por muito da humanidade em versão B. E estas Æguras
medo que tenha, diz sim à vida, diz que sim públicas oferecem aos outros um pouco de
a viver e não a parecer ou pertencer.” humanidade sublimada, isto é, são uma
Passando ao lado da contradição óbvia, e versão abonitada, melhorada, da
que resulta do facto de os fãs de Cristina humanidade: são mais bonitas, mais
poderem ser facilmente rotulados como simpáticas, mais bem-sucedidas, usam
settlers, dada a propensão para se moverem roupas mais caras, têm traços de
em rebanho, o importante é que o altruísta superpoderes, porque neles a beleza é mais
Fred que descobriu que quer ser “uma fonte manifesta, as relações sociais são mais
de energia para os outros” ofereceu em relevantes. E, no esquema mental das
exclusivo para os fãs de Cristina uma pessoas, se Deus tende a desaparecer, o que
antecipação da possibilidade de se é que vai orientá-las? O artista de cinema, o
inscreverem na nova turma do seu “Life atleta, os estadistas. Porém, no panorama
MBA” — um Master Business Administration, actual, já não há grandes estadistas. E por
sim, mas para a vida, para ensinar a cada um isso aparecem estas Æguras que se
“aquilo em que a escola falha”, a gestão das apresentam como sendo capazes da
emoções. “Vamos lançar agora a segunda transÆguração descrita por Raul Brandão
turma do Life MBA, vai começar em Julho, quando falava da transformação da pedra
ainda não lançámos nem abrimos inscrições, em Çor”, enquadra o Ælósofo.
contudo, eu sinto que, se vocês quiserem, se “Parecendo uma coisa sem valor
estiverem interessados, poderíamos talvez, e intelectual, a superação de que Cristina
não digam a ninguém, abrir aqui as Ferreira fala, e que se vê até no título de um
inscrições, apenas hoje e apenas para dos seus livros [Para Cima de Puta,
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 17
meses enquanto nadava numa piscina na pequeninos que estão sozinhos e que têm de vida de cada um; que as lutas políticas são
Comporta e que veio expressamente dos se desenvencilhar num mundo cheio de parte do que nós somos. E o facto de estas
Estados Unidos para nos ensinar “how coisas que não controlam. E por cá, sessões serem completamente à margem de
remarkable” a Cristina é, um “symbol of sobretudo depois de termos tido algumas questões essenciais como, por exemplo, o
strenght”. décadas de desinvestimento na Segurança enorme desequilíbrio social e de
Nisto as Cristina Talks seguem de perto a Social que, de alguma forma, criava rede, as rendimentos, ou o facto de o elevador social
receita de comprovadíssimo sucesso da pessoas sentem-se igualmente sozinhas e ter deixado de funcionar, a ideia de que tudo
norte-americana Oprah Winfrey. “Há aqui
dinâmicas de mobilização de multidões que
começam também a aderir mais facilmente a
quem lhe diz: ‘Tu consegues ser dono do teu
Aquilo que foi isto é opcional ou acessório devia
preocupar-nos porque isso ajuda a
são trabalhadas há dezenas de anos e que
funcionam”, compara Luís António Santos,
destino.’”
Porque o “fenómeno” Cristina “não é só
escrito a seguir [ao fundamentar opções radicais do ponto de
vista político da parte de quem vai votar, se
investigador do Centro de Estudos de
Comunicação e Sociedade da Universidade
memes e não é só bizarro”, o investigador
recusa também seguir pelo caminho mais
primeiro Cristina for votar.”
O docente da Universidade do Minho não
do Minho.
“Quando ela diz ‘Eu estou aqui para vos
fácil: o do desdém. “Desde logo porque parte
substantiva deste discurso é construída em Talks] magoou-me, enjeita a possibilidade (admitida, aliás, pela
própria) de Cristina Ferreira, que
ajudar, porque eles não nos entendem’, que
é o que está a dizer quando se refere aos
cima das críticas e o olhar depreciativo só
contribui para alimentar o fenómeno”, não por mim, mas recentemente se tornou accionista da Media
Capital e directora de Entretenimento e
anti-Cristina, está a replicar a proposta de
ideias e de fórmulas que conferem a quem a
sustenta, para lembrar ainda que estes
eventos “são essenciais para muita gente, porque se pôs em Ficção da TVI, e cujo nome foi atribuído a
um anÆteatro em Mafra, estar a ganhar
segue uma segurança muito semelhante à porque lhes suavizam a ansiedade”. embalo para se candidatar à Presidência da
que algumas pessoas encontram no
exercício mais veemente da fé religiosa”,
Mas são perigosos também: “Ao contrário causa a fé de todos. República. “Falou-se muito disso a propósito
do Jordan Peterson, que é muito centrado na da Oprah. Os Estados Unidos já foram
acrescenta aquele especialista, lembrando
que estas “conversas motivacionais”
política, a Cristina Ferreira é claramente
apolítica, ou seja, quando diz coisas como
São os mistérios governados por um actor de cinema; a
Ucrânia tem um actor de televisão à frente”,
nasceram nos Estados Unidos e não foi à toa.
“É claramente uma sociedade que tem
‘tu vais dominar a tua vida; vais ser master of
the universe’, ela actua como se a política não
da fé. E quem não equipara. “Preocupar-me-ia ter uma
candidata ao que quer que fosse que
muitas fragilidades do ponto de vista dos
sistemas de protecção transversais, isto é,
existisse. Ora, nós que andamos no mundo
sabendo que a terra não é plana sabemos
acredita não construiu a sua base de apoio na ideia de que
vamos ser todos felizes e que ‘tu consegues,
onde os indivíduos aprendem desde muito que a política domina de forma substancial a
DR
consegue nunca se quiseres’”, remata.
a sua base de apoio que nós somos capazes; provar que estamos
certos, que somos válidos”, reforçou
Cristina, para, depois de revisitar as
na ideia de que memórias do avô Chibato e da avó Leonilde,
a quem foi pedir perdão ao cemitério antes
vamos ser todos da estreia do Big Brother, largar mais um dos
seus mantras: “Nós não somos o sítio de
felizes e que onde vimos. Nós somos o que fazemos da
nossa vida. Somos o que quisermos ser.”
‘tu consegues, E aquilo que Cristina é, segundo a
própria, coloca-a “entre as pessoas mais
se quiseres’ poderosas do país”. “Se souberem o vosso
destino, ninguém vos retira a meta. E eu sei
Luís António Santos qual é o meu destino.” Ergam os braços e
digam “sim”!
18 • Público • Domingo, 28 de Maio de 2023
Semana de lazer
Por Sílvia Pereira
lazer@publico.pt
Música
Dylan e seus mistérios
Acabado de fazer 82 anos, Bob Dylan “continua a encarnar os mistérios cósmicos americanos PORTO Coliseu Porto Ageas
como mais ninguém na música”. Foi assim que a Rolling Stone o descreveu por altura do Dia 2 de Junho, às 20h.
lançamento do álbum Rough and Rowdy Ways, em 2020, mais uma reincidência de Dylan no velho Bilhetes de 50€ a 165€
hábito de deslumbrar a generalidade da crítica. O disco dá o nome à digressão mundial que LISBOA Sagres Campo Pequeno
começou em Novembro de 2021 e que agora passa por Portugal. As novas canções dividem as Dias 4 e 5 de Junho, às 20h.
atenções com clássicos a que o lendário músico (e nobelizado escritor) não se há-de escusar. Só Bilhetes de 45€ a 245€
não lhe peçam para tirar fotografias – os telemóveis estão, aliás, proibidos nos concertos.
Teatro Festival
Com fusões
Festivais para “altemente”
Uma aldeia típica do interior
estremecer a fundo algarvio, a genuinidade das
gentes da terra, a beleza da
paisagem e um “ambiente
É cartaz para “fazer estremecer as fundações do tempo e do descontraído e acolhedor para
espaço”, crê Rui Torrinha, o director artístico dos Festivais Gil todas as idades e gostos”,
Vicente. O primeiro abalo da 35.ª edição sente-se no Cosmos de Cleo com direito a “uns mergulhos
Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema, e seu resgate da mitologia nas suas fontes”. O convite
africana (na imagem). Depois, na “abordagem tropical” a Tchékhov refrescante chega de Alte,
n’As Três Irmãs segundo Tita Maravilha, no capitalismo sôfrego uma pequena povoação que
Música questionado pela Plataforma 285 em All You Can Eat e no Solo encontro, atrito e travessia entre torna a ser alvo de uma
Canções para feminista de Teresa Coutinho. O propósito manifesta-se ainda em
o passado e o presente”, define a ocupação artística que vai da
organização. A segunda edição fonte grande à pequena,
abrir a festa duas estreias: Um Quarto Só para Si, erguido pelo colectivo Silent compreende cerca de 20 passando pelo caminho entre
Na capital, nada assinala
ssinala mais a Party, e uma Noite de Verão assombrada por ansiedades e crises, propostas artísticas, entre elas, por igrejas ou pela Queda
aproximação do Verão do que a criada por Luís Mestre no âmbito da sua Tetralogia das Estações. concertos, performances, do Vigário. Para a sexta edição
chegada das Festasas de Lisboa, Fora de cena, o pensamento é sacudido por três oficinas e novas criações do Fusos — Festival de Fusões
ais, casórios,
com os seus arraiais, conversas e dois debates. nascidas nas comunidades Artísticas, a organizadora
has, bailaricos e
manjericos, marchas, locais. É o caso do Mal de UliUlisses Fungo Azul convocou nomes
do o feitio. E,
actividades de todo GUIMARÃES Centro Cultural Vila forjado entre migrantes pelo como Teresa Salgueiro, O Gajo
este ano, também m com Maria Flor e Centro Internacional das dramaturgo Rui Catalão ou d da ou as Saucejas (na imagem),
em bom, entre
Albertina, num Bem Artes José de Guimarães dança de Clara Andermatt co com que vêm representar os
nha ou com a
as Dunas, na Casinha De 1 a 3 e de 8 a 10 de Junho residentes do Bairro das cantares polifónicos da
promessa de Dou-te-te um doce. (programa detalhado em Pedreiras. Entre outros Letónia. Também se ouvirão
São estas e outrass Canções de www.aoficina.pt). momentos, também há espaço espa ecos d’O Fabuloso Destino de
Uma Noite de Verãoão que abrem as Bilhetes de 5€ a 7,50€ para a Insularidade com que Amália, uma radionovela de
as alfacinhas.
festividades juninas Jacira da Conceição liga o António Pires em estreia
Num concerto à beira-Tejo, Ana Alentejo a Cabo Verde atravé
através da absoluta. Bailes, gastronomia,
Bacalhau, António o Zambujo, cerâmica (na imagem) e para o poesia, percursos, teatro e
ris e Marta Ren
Aurea, Conan Osiris trabalho que John Romão, pintura são outros
dão voz aos novoss arranjos feitos director artístico do festival, condimentos do programa
por Filipe Raposo,, Pedro Moreira desenvolveu com jovens “altemente” recheado.
e Lino Guerreiro, com Luís atletas. LOULÉ Alte
ção artística,
Varatojo na direcção MÉRTOLA, De 2 a 4 de Junho
com a Orquestra Pop Portuguesa CASTRO VERDE e (programação detalhada
a acompanhar (sobob regência de BEJA em www.fusos.pt)
Jan Wierzba) e comm pirotecnia no Dias 3 e 4 de Grátis
ar. (Mér
Junho (Mértola),
LISBOA Praça do Comércio dias 9 e 10 de
Dia 1 de Junho, às 22h. Junho (Ca
(Castro
Grátis d
Verde) e dias
16 e 17 de
Festival (Bej
Junho (Beja).
Cantexto Mais
informações em
e comunidade
de www.futuram
www.futurama-
O Baixo Alentejo volta a ter alentejo.com.
tesia do
mais cante. É cortesia Contribuição livre
comenda a
Cantexto, que encomenda a partir de 1€
oana
sete escritores – Joana
Bértholo, Richard Zimler,
Regina Guimarães, s, Ondjaki,
o, Afonso Cruz
Isabela Figueiredo,
vas modas
e Marta Pais – novas
para outros tantoss grupos
corais. Mas este projecto é
apenas uma das expressões do
tival que se
Futurama, um festival
projecta como um m “ponto de
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 19
Coimbra Velocidade Furiosa X 13h, 15h10, 15h50, 20h10, 21h10, 22h, 23h, 23h20, 23h40, Super Mario Bros. O Filme M6. 11h20,
Dia de Äcar
QUALIDADE DO AR
SUDOKU © Alastair Chisholm 2008
www.indigopuzzles.com Portugal
Sagres 22º
15º Porto Coimbra
Solução do problema 11.931 22º
14º Faro 19º Lisboa Évora
0,5-1m
Açores Faro
Corvo
Graciosa
19º Excelente Razoável
Flores
São Jorge 19º Terceira 1,5m Mau Não é saudável
19º 20º 14º
17º Nada saudável Perigoso
1,5m-2m Faial
Pico São SOL
Miguel
19º 19º
15º
Problema 11.933 1-1,5m
Ponta Delgada
Dificuldade: Muito difícil Sta Maria Nascente Poente
Estar bem
POLINA TARSHILOVA/GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO
O envelhecimento caracteriza-se
por alterações Æsiológicas nos dife- A dieta a uma baixa incidência de doenças
cardiovasculares, e doenças neuro-
rentes sistemas e órgãos corporais, degenerativas, parecendo ser a
que podem resultar numa diminui-
ção da sua função e num aumento
mediterrânica grande quantidade de ómega-3 um
dos fatores com maior preponde-
da vulnerabilidade para a morte.
Estas alterações levam a fenómenos
ficou famosa rância. Mas nem tudo parece ser
favorável nestes hábitos alimenta-
como uma menor acuidade visual
e olfativa, perda de massa muscu-
quando se res, sendo grande consumo de sal
um dos seus pontos mais criticá-
lar, alterações no equilíbrio, doen-
ças cardiovasculares, diabetes, de-
verificou que veis. Há mesmo dados que mostram
um maior risco de hipertensão e
mência, depressão, entre muitas
outras. A alimentação desequilibra-
a esperança doenças cerebrovasculares em
áreas metropolitanas japonesas,
da surge como um dos fatores de
risco mais importantes para pro-
média de vida que a este grande consumo de sal
associam o tabagismo, o stress e um
blemas de saúde pública como obe-
sidade ou síndrome metabólica.
nos países do grande consumo de bebidas alcoó-
licas.
Assim, urge questionar: que estra-
tégias nutricionais apresentam ca- Sul da Europa A dieta nórdica foi caracterizada
mais recentemente, com o objetivo
pacidade de atrasar ou diminuir o
risco de ocorrência de alguns fenó- era das mais de representar os hábitos alimen-
tares saudáveis de cinco países:
menos associados à idade?
Os dados cientíÆcos mostram que elevadas Dinamarca, Suécia, Finlândia, No-
ruega e Islândia. Caracteriza-se pela
certos padrões alimentares se as- aposta numa elevada ingestão de
sociam a menor mortalidade e mor- mundialmente pescado, brassicáceas (espécie que
bilidade. Este efeito parece dever-se agrega os vários tipos de couves),
a uma ingestão privilegiada de cer- vegetais de raiz (batata, beterraba,
tos grupos alimentares, que são cenoura, cebola, alho, aipo, nabo,
particularmente ricos em nutrien- entre outros), maçãs, peras e frutos
tes cujo efeito Æsiológico está já e produtos ultratransformados são do bosque, cereais integrais e lati-
bem estudado. De acordo com as desencorajados. A isto acrescenta- cínios magros, utilizando óleo de
recomendações norte-americanas, se um grande respeito pela susten- colza como principal fonte de gor-
uma alimentação saudável deve tabilidade, sazonalidade e toda a dura. Ainda que, por ser muito re-
passar por privilegiar alimentos de cadeia de produção, incentivando- cente, não haja tanta evidência dos
grande densidade nutricional e dos se a compra de alimentos a produ- seus benefícios, há já trabalhos que
vários grupos alimentares, em por- tores locais. mostram uma associação inversa
ções adequadas e de forma a que a E, ainda que a base de uma dieta com doenças cardiovasculares e
ingestão energética não exceda o seja a ingestão alimentar, sobra es- diabetes, assim como com alguns
gasto individual. Nos últimos anos, paço para recomendações de estilo tipos de cancro e doenças neuro-
alguns padrões alimentares com de vida, incentivando-se o descan- degenerativas.
estas características, associados a so e a atividade física, assim como Ora, quem leu com atenção o que
zonas geográÆcas especíÆcas, têm a valorização das refeições em fa- foi escrito sobre estes três padrões
ganho algum interesse pela sua as- mília e pela passagem geracional de já se terá apercebido de um facto
sociação com uma reduzida mor- receitas e técnicas culinárias. Os curioso: ainda que geograÆcamen-
bilidade e aumento dos anos de benefícios da adoção da dieta me- te muito distantes entre si, estes
vida. Dieta mediterrânica, dieta diterrânica estão bem documenta- têm vários pontos em comum. Des-
nórdica e dieta japonesa são os me- dos, sendo o padrão alimentar com taca-se o incentivo ao consumo de
lhores exemplos. maior corpo de dados. Infelizmen- hortícolas, fruta fresca, pescado,
Nutrição
A dieta mediterrânica Æcou famo- te, a adesão às recomendações do leguminosas, cereais integrais, fru-
sa quando se veriÆcou que a espe- padrão é cada vez menor, mesmo tos oleaginosos e sementes, assim
rança média de vida nos países do entre os que vivem nos países que como uma limitação no consumo
Sul da Europa era das mais elevadas lhe deram origem. de alimentos de origem animal, es-
mundialmente, com reduzida inci- O Japão, por sua vez, detém vá- tando a carne no centro das aten-
dência de doença cardíaca isqué-
mica, cancro e outras doenças cró-
nicas. Caracteriza-se por uma gran-
de ingestão de alimentos de origem
enquanto arma rios recordes de antienvelhecimen-
to, dos quais se destacam ser o país
com maior proporção de centená-
rios e maior esperança média de
ções. Sendo Portugal um dos países
com uma cultura alimentar medi-
terrânica mais forte, faz sentido
que a assumamos como base orien-
vegetal, permitindo uma ingestão
ocasional, e em porções modera-
das, de alimentos de origem ani-
mal; defendem como base alimen-
de anti-aging: vida. Ainda que todo o componen-
te social e de estilo de vida possa
ter uma grande preponderância
nestes números, a ciência mostra
tadora, Æcando a certeza de que
não estaremos longe do que outros
padrões preconizam.
Todas as estratégias nutricionais
tar os pratos coloridos e repletos
de hortícolas, fruta fresca como so-
bremesa, frutos oleaginosos (como
nozes, avelãs ou amêndoas) e se-
que potencial? que a sua alimentação poderá ex-
plicar uma parte do sucesso. Carac-
teriza-se fundamentalmente por
uma aposta diária e substancial em
antienvelhecimento que passem
disto (suplementos milagrosos, tra-
tamentos inovadores ou alimentos-
fetiche com nomes difíceis de pro-
mentes como snacks (petiscos) ou hortícolas, pescado, arroz, legumi- nunciar) devem ser olhadas com
incorporados nas grandes refei- nosas (com a soja em destaque), algum cuidado. Porque se, real-
ções, uma aposta diária em cereais chá verde e algas, com respeito pela mente, tivessem provas sólidas que
integrais, leguminosas e laticínios, A venda de produtos “anti-aging” tem crescido à custa sazonalidade. Têm ainda uma Ælo- as suportasse, já haveria consenso
assim como a utilização de azeite de uma promessa que muitos querem: a hipótese soÆa interessante, que sugere que cientíÆco e recomendações publi-
como principal fonte de gordura. todas as refeições devem ser Ænali- cadas. Foquemo-nos no básico,
Sugerem ainda uma ingestão de de atrasar o envelhecimento. Mas a ciência favorece zadas quando se está saciado a cer- pelo menos até que nos provem
duas a três vezes por semana de mais as simples estratégias alimentares ca de 80%, moderando desta forma que estamos errados.
pescado, assim como dois a quatro a ingestão energética.
ovos por semana. Carnes vermelhas António Pedro Mendes Este padrão alimentar associa-se Nutricionista
Público • Domingo, 28 de Maio de 2023 • 23
In Memoriam
GREGG DEGUIRE/WIREIMAGE
Quase sempre
na pele de
guerreiro
Guerreiros, soldados, lutadores, vilões,
justiceiros... Ray Stevenson fez sobretudo
papéis de durão, mas, para além do talento
como actor, quem trabalhou com ele
reconhecem-lhe o afecto e a afabilidade
Rodrigo Nogueira
É complicado alguém ter prestado com Stevenson na adaptação de
atenção à produção audiovisual 2011, a cargo de Paul W.S.
anglo-saxónica nos últimos 20 Anderson, de Os Três
anos e não estar pelo menos Mosqueteiros, em que Ray fazia
vagamente familiarizado com a de Porthos, tenha escrito no
cara e o porte do actor irlandês Instagram, após a notícia da
Ray Stevenson, que morreu a 21 morte, que este era “um
de Maio, durante a rodagem de humano afável e afectuoso,
um Ælme na ilha de Ischia. Estava cheio de vida e energia”,
prestes a fazer 59 anos e a morte, chamando-lhe “gigante” e
cuja causa não foi revelada, referindo-se aos “abraços de
aconteceu depois de ter ido para urso” que ele dava. Na mesma
o hospital durante a rodagem de
um Ælme, Cassino in Ischia, de
rede social, Rosario Dawson
referiu-se a ele como “um Ray de Lexi Alexander, adaptação da
banda desenhada da Marvel. O
protagonista de Kill the
Irishman, de Jonathan
Frank Ciota, que tinha sido gigante de um homem”. James Ælme foi um falhanço de Hensleigh, como o gangster de
anunciado menos de uma semana
antes, em que iria fazer de um
Purefoy, colega de Roma,
chamou-lhe “um actor
Stevenson bilheteira, mas gerou um certo
culto, e há até quem diga que é o
origem irlandesa da vida real
Danny Greene.
herói de acção a tentar reavivar a
carreira ao protagonizar um Ælme
brilhante, corajoso e maior do
que a vida que enchia cada 1964-2023 melhor actor a ter feito esse
papel, que tem sido nos últimos
Mais recentemente, pôde ser
visto em A Memória de Um
de acção neo-realista. papel que fazia até acima”. tempos interpretado por Jon Assassino, de Martin Campbell,
Stevenson nasceu na Irlanda do
Norte em 1964, Ælho de pai
Ao longo desses mais de 30
anos de carreira em frente às
Actor Bernthal, mas já coube a Dolph
Lundgren e Thomas Jane. No
do ano passado, e, fora do
universo exclusivamente falado
britânico aviador e mãe irlandesa. câmaras, Stevenson trabalhou mesmo ano, foi também em inglês, como o sádico vilão
Cresceu em Inglaterra, para onde sempre de forma consistente, protagonista do Ælme de terror de colonial de RRR, de S.S.
se mudou com a família aos oito mesmo que nem sempre com guerra de Steve Barker, Outpost — Rajamouli, o Ælme mais caro de
anos, e enveredou pelos grande destaque e nem sempre Exército Fantasma. A partir de sempre do cinema indiano, e na
caminhos da representação como protagonista. Entre 2005 2011, fez parte do Universo terceira temporada da série
relativamente tarde, já aos 25 e 2007, num dos seus papéis CinematográÆco Marvel alemã Das Boot, continuação
anos. Era designer de interiores e, mais reconhecíveis, foi uma das propriamente dito — ao qual televisiva do Ælme da década de
ao ver John Malkovich nos palcos estrelas de Roma, a Punisher: Em Zona de Guerra não 1980, que passou originalmente
no início da década de 1990, megaprodução da BBC e da pertencia —, como o guerreiro no ano passado e tem estreia
decidiu mudar de rumo. Estudou HBO. Era, nessa série co-criada Volstagg na saga Thor. marcada em Portugal no AMC
na Bristol Old Vic Theatre School por John Milius e Bruno Heller, Foi ainda o famoso pirata Barba para 15 de Junho.
e pouco depois estreou-se nos Tito Pullo, um guerreiro Negra na terceira e quarta Em termos de trabalhos
palcos, tendo chegado à televisão bem-humorado dado a temporadas da série Black Sails, vindouros, faz parte do elenco,
através de The Dwelling Place, explosões de raiva, que gostava apareceu na sexta época de como vilão, da série Star Wars
uma minissérie de 1993. A estreia de beber e de ser mulherengo. Vikings, tendo passado também de imagem real Ahsoka, com
no cinema deu-se em 1998, como Ainda antes disso, e em termos pelas sagas G.I. Joe, Transporter e estreia prevista para Agosto. É o
um gigolô em Teoria de Voo, de de papéis de época e guerreiros, Divergente. Na comédia, foi, de regresso a um universo em que
Paul Greengrass. tinha sido um cavaleiro no Rei forma hilariante, o líder de uma já trabalhou, tendo emprestado
O actor de 1,91 metros era dado Artur de 2004, realizado por equipa de mercenários no a voz às séries animadas Star
a papéis de guerreiros, soldados, Antoine Fuqua e com Clive subvalorizado Agentes de Reserva, Wars Rebels e Clone Wars. Há
lutadores e vilões, mas também Owen como protagonista. de Adam McKay, de 2010. No ainda, além do Ælme em que
era capaz de lhes dar leveza e Em 2008, foi o brutal mesmo ano, apareceu em O Livro morreu a rodar, 1242-Gateway to
humanidade. Não é à toa que anti-herói autoritário Justiceiro de Eli, dos irmãos Allen e Albert the West, de Péter Soós, por se
Luke Evans, que contracenou em Punisher: Em Zona de Guerra, Hughes. Em 2011, foi o estrear.
24 • Público • Domingo, 28 de Maio de 2023
Crónica
A melhor metade
de Martin Amis
“O
s dipsomaníacos permanentemente um editorial do escrever como Martin Amis” era diferenças que os separavam (a
nascem assim, jornal da paróquia, ou um
Trabalhos de casa uma acusação comum. Essa menor das quais, já agora, era o
ou então memorando corporativo. Ensina Rogério Casanova qualidade contagiante da prosa Atlântico: na ligação com o
acabam assim. um modo de ser engraçado que talvez ajude a explicar alguma da mainstream das respectivas pátrias,
Sobejamente não depende da “piada” como aversão que gerou. ambos eram praticamente
reputado na unidade básica, mas da A dinâmica é comum. O próprio açorianos).
esfera da dipsomania, Malcolm manipulação criativa da sintaxe, da Amis, no prefácio a The War Nesse ensaio de 1980, Amis
Lowry, ao que parece, planeou inventividade verbal, de um radar Against Cliché, confessa disseca os maneirismos de Didion
Æcar assim, desde a infância. O aÆnado para detectar a eufonia estupefacção pela frequência com com a conÆança de quem conhece
talento não foi hereditário. Num mais oportuna ou a dissonância que criticou negativamente os os cantos à casa: a predilecção por
conto de juventude, o narrador mais eÆcaz — e que faz o sentido de escritores que “eu sentia estarem a itálicos de ênfase; a dependência
regista o comentário depreciativo humor parecer não um ornamento querer inÇuenciar-me”. A partir de de repetições, reiterações e
do pai sobre um advogado local, a
quem faltava ‘autodisciplina’. ‘Ele
colocado a posteriori, mas uma
tradução honesta e rigorosa da “Tentar certa altura, a crítica negativa ao
“novo Amis” tornou-se um ritual
inversões sintácticas; os riscos de
um estilo “tão petriÆcado nas suas
não sabia’, escreve Lowry, ‘que eu
tinha decidido secretamente
inteligência.
Embora Amis fosse, do ponto de escrever como sazonal no Reino Unido, com
regras tão rígidas e exóticas como
próprias modulações”. A dada
altura, aludindo a uma célebre
tornar-me bêbedo quando
crescesse.’ Enquanto a maioria dos
vista estritamente cronológico, um
baby boomer (nascido em 1949), Martin Amis” as do críquete ou da coroação.
Amis apareceu na fase germinal de
peça em que Didion criticava
Woody Allen, sugere que ambos
rapazinhos sonha ser maquinista contribuiu para cristalizar a um novo ecossistema mediático e têm tanto em comum que o artigo
ou cowboy, o pequeno Malcolm
sonhava ser alcoólico. E o sonho
postura dominante de uma era uma apanhou a boleia de uma nova lhe parecia “predominantemente
geração posterior, pelo menos na ética tablóide (com a consequente defensivo na sua raiz”. É o texto
tornou-se realidade. Excluindo
uma ou outra desintoxicação, em
relação pública com a realidade
social e cultural. Essa postura teve
acusação expansão da categoria de
“celebridade”), em que páginas de
que Amis poderia ter escrito sobre
Amis, se não fosse Amis.
hospitais ou prisões, e a muito o seu período ascendente na comum. Essa “perÆs” depressa ultrapassaram as
E
ocasional abstinência década de 80 e atingiu o ápice na de recensão em suplementos videntemente, a peça
auto-imposta, Malcolm Lowry
esteve com uma bezana nos cornos
seguinte. Não é fácil de deÆnir, e
muitas tentativas para o fazer
qualidade culturais. O seu antitalento para a
declaração “controversa”
não invalida a
qualidade de Joan
durante trinta e cinco anos.”
Foi assim que Martin Amis
adoptam termos descritivos de
dúbia utilidade (como “ironia” ou
contagiante da colocou-o no meio de inúmeros
ciclos noticiosos que hoje parecem
Didion, nem é, por sua
vez, invalidada por
começou a recensão a uma
biograÆa de Lowry, nas páginas do
“cinismo”, dois vocábulos
consistentemente obrigados a um
prosa talvez relíquias de outro mundo (em
1994, três ou quatro meses febris
essa não-invalidação.
Como qualquer análise crítica, é
Independent, em 1993. O parágrafo
podia ser usado como fórmula para
trabalho muito maior do que estão
equipados para fazer),
ajude a foram preenchidos com manchetes
contínuas sobre um divórcio e uma
uma aplicação estratégica de
ênfases, cuja verdade mais ampla
reconstituir as peculiaridades mais
reconhecíveis da sua obra, caso
concentrando-se quase sempre em
acusações de um distanciamento explicar operação aos dentes), e o seu
percurso pós-11 de Setembro
se esconde também no que decide
salientar ou omitir. Num texto
tudo o resto se perdesse: o ritmo,
as repetições controladas, a
altivo, em que o mero estilo Çutua
acima dos seus temas, como se não alguma da ajudou a validar quem queria ver
um decalque do trajecto do pai: do
escrito décadas mais tarde, sobre
DeLillo, Amis tentou estabelecer o
paciente preparação do
disfemismo Ænal, após uma
lhes reconhecesse seriedade
suÆciente para se aproximar. aversão que socialismo radical à misantropia
reaccionária.
que signiÆca admirar a obra de um
escritor: “O que queremos
descida retórica que nos leva da realmente dizer é que admiramos
gerou Mas as suas incursões na opinião
N
academia à porta da tasca, a a verdade, a lição política nunca tiveram grande cerca de metade.” É uma
capacidade de extrair surpresas de sintetizada no interesse, originalidade ou percepção correcta, e será mais ou
uma aparente inevitabilidade parágrafo sobre utilid
utilidade, limitando-se a canalizar menos universal. “Martin Amis”
sintáctica. Lowry é outra. A pr
os pressupostos do consenso não foi um monólito inalterado,
É um estilo de expressão da
postura transmitida edito
editorial de cada época (Hitler não em trânsito estável pelo mundo
instantaneamente apelativo para parece não prest Estaline não presta, o
presta, durante cinco décadas, mas algo
um certo tipo de personalidade — comprometer o autor com nada, terro
terrorismo islâmico não presta, o mais incerto, com altos e baixos,
jovem, maioritariamente do sexo mas arrasta pelo menos uma polit
politicamente correcto não presta, cumes e vales. Os momentos em
masculino, provavelmente com obrigação de responsabilidade: o Trum não presta, etc.), sempre
Trump que o estilo foi mais eÆcaz
moderadas e muito especíÆcas respeito pelo material sinaliza-se com a despreocupação romanesca ensinaram a detectar os momentos
ambições literárias — em parte por no trabalho de casa e não no qu
de quem pega em cada crise como em que falha. Essa generosa
sugerir um método fácil de decoro da prosa, e é preciso saberer fo
se fosse um adereço isolado, eÆcácia utilitária não consegue
projectar autoridade de voz numa o suÆciente sobre o assunto antess incap de reconhecer um cliché
incapaz tornar nenhum estilo “moral”
altura em que a conÆança ainda de fazer as piadinhas. como aliado, inimigo, ou (uma das doutrinas mais dúbias da
não é suÆciente para essa O apelo foi imediato e marcou trans
transeunte neutral. sua estética nabokoviana), mas
autoridade emergir naturalmente. duas ou três gerações O exame
e mais rigoroso da sua pode fazer algo mais valioso, que é
A vantagem é ilusória (e tem, consecutivas. Numa entrevista obra e do seu estilo, até nas suas torná-lo ético, no sentido restrito e
como estratégia cultural ou recurso de 2011, Geoè Dyer disse que limit
limitações, foi escrito por ele pragmático de ensinar boas
individual, um prazo de validade não conhecia ninguém da sua próp
próprio, indirectamente, sobre maneiras: a capacidade, por
limitado), mas a função primária é idade que tivesse escrito para Joan Didion — talvez a sua exemplo, de sentir gratidão pelo
rejeitar outra forma falsa de jornais ou revistas inglesas que con
congénere mais próxima nas prazer que um escritor
autoridade — a que se esconde na não soubesse de memória let
letras anglo-saxónicas, e no proporcionou, e de lamentar a
cadência catequista, na solenidade passagens inteiras de The s
somatório geral de virtudes e chegada do momento em que não
vazia de quem redige Moronic Inferno; “tentar defeitos, apesar das óbvias vamos voltar a senti-lo.