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Literatura Piauiense: Seis proposições sobre o conceito e seus efeitos

em julho 29, 2009


Wanderson Lima

1. O conceito de “literatura piauiense”, que emerge por volta da segunda


metade do século XIX, não descreve uma realidade ontológica, mas funda uma
“formação discursiva”, na acepção de Michel Foucault, que tem, pelo menos,
dois objetivos evidentes: compensar o esquecimento dos autores piauienses no
quadro da literatura nacional e delegar poder e prestígio àqueles que atuam
nesta formação. Assim, não se pode separar a criação deste conceito do
quadro de interesses e jogos de poder que marcam nossa sociedade, nossa
elite cultural em especial, desde a emergência do conceito, no século XIX, até
os dias atuais.

2. O problema é que este conceito, que emergiu a partir de um dado momento


histórico, foi naturalizado. Tornou-se um “mito” na acepção de Roland Barthes:
uma operação estratégica de naturalização de uma realidade histórica ou, de
forma mais sintética, a transformação da História em Natureza. Dessa forma,
fala-se de literatura piauiense como se esta noção existisse desde sempre e
como se não se pudesse analisar a produção literária de autores do Piauí a
partir de outros parâmetros.

3. Quando se diz “literatura piauiense” circunscreve-se uma noção artística


(literatura) a uma realidade geográfica (piauiense). Mas arte nenhuma é
determinada por fronteiras geográficas; o surrealismo pode ter surgido na
França, mas não é uma “arte francesa”. Octavio Paz disse: “O nacionalismo
não é só uma aberração moral; é também uma falácia estética”.

4. Falar de “literatura piauiense”, para além do mal-estar que é fundir uma


noção estética a uma geográfica, supõe que há uma essência
do ethos piauiense que esta literatura deva representar. Onde está esta
suposta “piauiensidade”? Não digo, como já ouvi, que o piauiense não tenha
uma identidade (o que seria uma aberração), mas esta identidade é mais rica,
híbrida e complexa do que comumente se supõe, e não se resume a traços
regionalistas (cajuína, bumba-meu-boi, cabeça-de-cuia). O discurso
regionalista, em arte e em política, é quase sempre a expressão de um
saudosismo conservador, inócuo como plataforma de resistência aos efeitos
nocivos da globalização.

5. O que é um autor da literatura piauiense? Creio que há duas respostas


básicas para esta pergunta. A primeira, e mais ingênua, seria responder,
pura e simplesmente: é um autor que nasceu no Piauí. Neste caso, Hardi
Filho e Rubervam du Nascimento simplesmente não fariam parte da
literatura piauiense. A segunda seria dizer: é aquele que se ocupa de
tradições culturais e questões sociais que dizem respeito ao Piauí. Neste
caso, Mário Faustino e qualquer outro poeta meditativo e metafísico não
fariam parte do conceito; mais estranho ainda: Elio Ferreira, quando
escreve uma obra sobre o massacre de Eldorado de Carajás, passaria,
nesta lógica, a fazer parte da literatura paraense. Aqui se desvela um
pressuposto repressivo que está na base de um conceito de literatura
estadual: reduzir a obra literária a uma dimensão meramente documental;
no nosso caso, conceituar literatura piauiense como aquela que
“documenta” a realidade do Piauí.

6. Em 1873, Machado de Assis já criticava o “nacionalismo de vocabulário” –


que nós adaptaríamos para o “regionalismo de vocabulário” – e se punha
contra àqueles que só reconheciam “o espírito nacional nas obras que tratam
de assunto local”. Dizia ele: “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é
certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda
quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. O compromisso do
escritor com sua época e sua nação, pensava Machado, não pode ser
assimilado à ideia repressora de ter que se limitar à tematização de questões
locais e contemporâneas. O afastamento de uma abordagem direta das
questões locais pode ser uma estratégia de uma crítica talvez mais refinada
aos dilemas daquele local. Como muitas outras sugestões de Machado, esta
ainda precisa ser meditada suficientemente, em especial pelos nacionalistas e
regionalistas.

Wanderson Lima é professor e escritor.


Disponível em: http://adrianolobao.blogspot.com/2009/07/literatura-piauiense-
seis-proposicoes.html

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