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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS ESTRANGEIRAS MODERNAS

NAOMI CAROLINA DE ANDRADE FERREIRA

DONA MORTE:
Uma análise da representação personificada da morte na literatura infantil

CURITIBA
2023
1. RESUMO

A morte na literatura infantil é um tema pouco abordado e pouco estudado na


literatura contemporânea, ainda que seja um assunto necessário e presente no dia a
dia. O presente trabalho analisou três livros infantis de países diferentes (Dinamarca
e Brasil), buscando diferenciar o modo de representar a morte escolhido por cada
autor, através da base teórica de Faria (2009). O resultado das análises mostrou
dois tipos de representação de morte: antropomorfizada e como fenômeno, sendo
elas diferentes pelo objetivo dos autores ao apresentar essa temática para crianças.

2. INTRODUÇÃO

A morte é um assunto presente na literatura mundial, seja infantil, infanto-


juvenil ou adulta, desde o início da produção literária. Carvalho (2002) diz que “[..] a
arte, a escrita, …, demonstra ser uma das ‘belas’ formas de expressar a dor e
promover o luto ao colocar na palavra escrita a angústia por antecipação.” No
entanto, no caso da literatura infantil, a representação da morte era feita como parte
da história e não como o elemento principal dela, fazendo com que o processo ou o
fenômeno da Morte nunca fosse explicado de uma forma facilitada para as crianças.
Contudo, no caso de obras produzidas para o público infantil, há uma
tabuização na representação da morte, devido à dificuldade de explicar esse
fenômeno para mentes ainda não inteiramente desenvolvidas das crianças, o que
explica, provavelmente, a falta de produções literárias que abranjam esse tema de
forma direta. A explicação da morte é um tema relativamente novo visto que o
entendimento da criança como o ser humano com suas individualidades específicas
de idade e desenvolvimento, não mais como um adulto em miniatura, é também
recente, como diz Heywood (2004, pg. 23) ao explicar que o conceito de infância
surgiu somente a partir do século XV, e que antes disso, não havia diferenciação de
tratamento entre crianças e adultos.
Dito isso, é necessário então estudar-se como os autores estão lidando com
esse tema, analisando as escolhas feitas por autores para representar esse
fenômeno. Faria (2009) diz que a representação da morte através de animais gera
um distanciamento entre a criança e a história, que permite o entendimento do
processo de forma simplificada e facilita o trabalho do autor ao representar situações

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de conflito. Todavia, estudos sobre a representação personificada da morte, uma
escolha muito presente não somente na literatura, como no cinema e na televisão
em geral, são escassos e de difícil referência, ocasionando um déficit de referências
ao analisar essa solução de representação da morte.
É com base nisso que o presente trabalho pretende analisar a forma como a
morte é representada e as possíveis explicações para essas escolhas autorais, do
ponto de vista psicológico e pedagógico, buscando trazer atenção para esse tema
que, apesar de pouco presente, é relevante e importante para o desenvolvimento
das crianças e para entendimento da literatura como uma ferramenta para explicar e
lidar com o luto.

3. OBJETIVO

O presente trabalho visa analisar a representação da morte em três livros


infantis de anos diferentes (2008, 2010 e 2020) em dois países (Dinamarca e Brasil),
com a intenção de listar as possíveis abordagens desse fenômeno para o público
infantil. A partir da base teórica de Heywood (2004) e Faria (2009), busca-se
entender a escolha dos autores para representar a morte, personificada ou como
fenômeno, e suas intenções ao fazê-la, analisando os trechos em que a morte é
citada ou apresentada e as escolhas linguísticas dos autores.

4. METODOLOGIA

Através da análise de três livros infantis que tratam da temática da morte,


buscou-se identificar a forma com que cada autor selecionado representa o
acontecimento nos livros infantis Pode chorar, coração, mas fique inteiro (2010),
Uma xícara de chá, um saquinho de ossos (2008) e A morte da Lagarta (2020).
Utilizou-se a base teórica de Faria (2009) para entender o aspecto psicológico
por trás da representação desse fenômeno, além dos estudos de Áries (1937) e
Hellywood (2004) sobre a definição de infância. A partir das teorias estudadas, foram
feitas análises qualitativas a respeito de cada uma das obras selecionadas, expondo
o método de abordagem dos autores para com o fenômeno da morte, elencando em
(A) e (B) as escolhas autorais, sendo (A) a personificação da morte e (B) a
explicação da morte enquanto fenômeno natural.
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5. A LITERATURA COMO INSTRUMENTO PARA LIDAR COM LUTO

Os estudos sobre o luto e o processamento da perda de familiares, apesar de


escasso, trazem consigo uma mesma conclusão, Segundo Leandro e Freitas (2015):

“[...] a criança se encontra em um processo de


estruturação da personalidade, portanto cabe dizer que
possui um modo próprio de elaboração do luto, ou seja,
em alguns aspectos, a criança vivencia o luto de forma
diferente do modo adulto. Sendo assim, ela é capaz de
elaborar o luto, porém ela o faz com suas características
peculiares.”

Entendendo esta situação, é importante que os adultos saibam dar o suporte


necessário para que a criança entenda a morte como parte essencial da vida, ainda
que seja difícil de lidar. O uso de livros e mídias para explicar esse conceito deve ser
pensado e analisado com calma, visto que a escolha errada de materiais, como
desenhos animados, pode dar à criança a falsa percepção de que os mortos podem
voltar à vida.
Existem diversos livros contemporâneos que tratam da morte para o público
infantil, como é o caso de A Morte da Lagarta, Pode chorar, coração, mas fique
inteiro e Uma xícara de chá, um saquinho de ossos. A literatura sempre foi um
instrumento para ensinar, sejam conteúdos escolares ou sobre modos de
comportamento, como é o caso de livros de etiqueta, portanto, a utilização de livros
é uma forma de abordagem conhecidamente funcional.
No caso da explicação de conceitos difíceis, a literatura infantil oferece
diversos elementos que permitem a uma criança a compreensão, sem gerar traumas
ou medo, como o uso de ilustrações, analogias, linguagem simplificada e eufemística
e a representação dos conceitos através de animais.

6. REPRESENTAÇÕES DA MORTE

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O primeiro livro analisado é Pode chorar, coração, mas fique inteiro (1),
escrito por Glenn Ringtved em 2010. A obra da autora dinamarquesa só foi traduzida
para o português brasileiro em 2020, pelo professor e tradutor Caetano W. Galindo.
A história contada pelo livro é a de três crianças que tentam fazer a morte, uma
personagem descrita e ilustrada com roupas pretas e uma foice, desistir de levar sua
avó, que descansa no quarto de cima.
Ao tentarem atrasar o falecimento da senhora, as crianças oferecem café e
tentam dialogar, até que a morte conta a eles o motivo de ter de buscar a avó, então
as crianças finalmente aceitam e deixam a Morte subir até o quarto onde a avó
descansa. A história contada pela morte é sobre dois irmãos (Sofrimento e
Desconsolo) que se apaixonam por duas irmãs (Alegria e Risada), explicando,
assim, os sentimentos de sofrimento, alegria, desconsolo e risada, ligando
inevitavelmente um ao outro.
O segundo livro, A Morte da Lagarta (2), escrito pelos autores André
Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun em 2020, conta a
história da morte de uma lagarta que vivia na floresta. Cada animal amigo dessa
lagarta passa por uma fase do luto, cada um lidando com a morte do seu jeito e
sendo acolhido como dá, até que, com o tempo, a dor vai diminuindo e se
ressignificando. No final, no túmulo da lagarta nasceu uma grande árvore,
explicando que o sofrimento se transformou em algo bonito.
O último livro Uma xícara de chá, um saquinho de ossos (3), da escritora
Nilma Lacerda, conta a história de Anitta, uma menina que sentia muito medo da
morte, até que é aconselhada a convidar a Morte para tomar um café e ser madrinha
de uma de suas bonecas. Anitta passa vários dias tomando café e conversando com
sua comadre Morte, assim como suas tias velhas faziam, e esses encontros fizeram
com que Anitta perdesse esse medo e ressignificasse a morte como algo bonito.

7. ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES

Os três livros analisados falam de morte, mas de jeitos e com intenções


diferentes. É possível dizer que o livro (1) busca ilustrar a morte como alguém que
“busca” as pessoas quando chega hora, sendo que essa busca é inevitável e
impossível de adiar. Já o livro (2) visa explicar as consequências da morte em quem
fica, ou seja, o que sentimos quando alguém morre, enquanto o livro (3) busca
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ensinar as crianças que não é necessário temer a morte, porque ela traz
transformações para as coisas, e que onde há vida, deve haver morte.
As diferenças entre as três obras estão ainda na forma como os autores
descrevem a morte. É possível dividir as representações em duas colunas:

Representação antropomorfizada (A) Representação como fenômeno (B)

Pode chorar, coração, mas fique inteiro

A Morte da Lagarta

Um dente de leite, um saquinho de


ossos

As representações de tipo (A), como é o caso das histórias (1) e (3),


demonstram que os autores buscam humanizar a morte não para explicá-la, mas
para permitir que ela seja apenas uma personagem que realiza uma ação. Esse tipo
de representação expõe a intenção autoral de focar no sentimento da criança que
perde alguém e sente medo disso, dessa forma, buscando atenuar o sofrimento
causado pela súbita perda.
Nos dois casos acima, a morte é representada como uma personagem
feminina, descrita como “assustadora” e “misteriosa”, que usa uma capa preta e não
mostra o rosto. No livro (1), entretanto, a Morte carrega uma foice.
Já a representação de tipo (B), o caso do livro (2), não se dirige à morte como
alguém que executa o ato, mas como o próprio ato, que gera consequências. Essas
consequências é que são descritas nesse tipo de representação, revelando o
objetivo dos autores de explicar como as pessoas se sentem quando existe a morte,
e não o ato em si.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Representar a morte para crianças é sempre desafiador, já que muitas vezes


o assunto é tabu até mesmo para adultos que possuem mais capacidade cognitiva
para lidar com o tópico. Todavia, a utilização de livros para facilitar a abordagem da

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questão é uma ferramenta com diversas utilidades, já que “[...] no campo emocional
as histórias podem ajudar as crianças a elaborar e vencer dificuldades psicológicas
bastante complexas, pois oferecem a possibilidade de se construir uma ponte entre
seu mundo e a fantasia [...]” (PAIVA, 2014, p. 79)
As duas representações analisadas são válidas e não deve-se colocar juízo
de valor sobre elas, visto que a conclusão que se tem é que cada uma delas possui
objetivos pedagógicos e psicológicos diferentes. Essa diferenciação é importante
para que existam possibilidades de falar sobre a temática da morte com crianças de
idades e com experiências diferentes, sem que seja necessário reduzir todas as
experiências a um único livro ou história.
Espera-se que no futuro mais criações sejam feitas com essa temática,
utilizando-se de outras abordagens e representações, para que mais estudos a
respeito dessas obras sejam realizados, aumentando a atenção que o luto infantil
recebe e permitindo que mais e mais crianças sejam acolhidas, entendidas e
respeitadas.

9. REFERÊNCIAS

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