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Para iniciarmos nossos estudos da gramática grega propriamente dita, teremos de partir
inevitavelmente de uma explicação do sistema de casos do grego e de considerações acerca do
que corresponde a esse sistema no português, se é que algo assim existe. Costuma-se dizer que
estudar grego é, invariavelmente, estudar gramática; aos que ainda não estudaram grego ou
alguma outra língua de caso, isso ficará evidente a seguir.
Uma língua de caso é uma língua em que as funções sintáticas (que, a bem da verdade, são
também, em alguma medida, funções semânticas) dos substantivos se encontram condensadas
morfologicamente nesses mesmos substantivos. No caso do grego e das demais línguas indo-
européias, essas funções se condensam morfologicamente como sufixos que se agregam aos
substantivos. Para explicar concretamente essa definição, formulemos o seguinte exemplo
hipotético:
Nessa frase, temos dois substantivos: Carlo e carro. Carlo, aqui, exerce a função sintática de
sujeito da oração; já carro desempenha a função de objeto direto da ação de comprar. Agora,
suponhamos que nossa língua pudesse marcar as funções sintáticas dos substantivos por meio de
um sufixo: digamos, o sufixo -s para a função de sujeito e o sufixo -m para a função de objeto
direto. Acrescentemos, pois, esses sufixos às palavras de nossa frase exemplar:
Ou ainda:
Carlos me chamou. (Pronome pessoal objetivo direto, ou pronome pessoal do caso oblíquo).
Carlos deu um carro para mim. (Pronome pessoal objetivo indireto, ou pronome pessoal do caso
oblíquo).
Reparem que, nesses exemplos, de um modo geral, o referente semântico, ou o significado, dos
pronomes em itálico é o mesmo: Eu, quer dizer, uma primeira pessoa do discurso. O que muda é
apenas a função sintática desses pronomes (desconsiderando que uma função sintática também
expressa, de algum modo, uma informação semântica).
Por que, então, optei por criar exemplos hipotéticos? Porque, em primeiro lugar, esses resquícios
portugueses de caso são apenas resquícios, quer dizer, eles não são percebidos, hoje (de maneira
geral), como formas diferentes do mesmo pronome, mas como pronomes independentes. Por
isso, e porque em português as funções sintáticas são indicadas em grande parte pela posição das
palavras na frase (sendo a ordem canônica S-V-O), a mobilidade dos pronomes pessoais na frase
é reduzida, o que não é verdade para os substantivos em grego. É até possível dizer: Comprei um
carro eu − mas é bastante estranho. Ademais, usei exemplos criados arbitrariamente porque
queria exemplificar o funcionamento dos casos com substantivos, já que, em grego e nas demais
línguas indo-européias de caso, são eles sobretudo que apresentam flexão, isto é, variação, de
caso.
É exatamente assim que funciona o grego. Só que, em vez de ter apenas duas marcas
morfológicas de funções sintáticas, o grego apresenta cinco tipos de marcas. E, para complicar, o
número de funções sintáticas que podemos identificar em qualquer língua ultrapassa em muito os
cinco casos gregos (algumas línguas, como o finlandês, chegam a ter 15 casos, e outras até mais),
o que significa que cada caso grego pode expressar mais de uma função sintática. No entanto,
não seria útil estudarmos agora, em detalhes, as inúmeras funções sintáticas existentes e suas
distinções finas. Em sua Gramática Latina, o professor Napoleão Mendes de Almeida explica o
sistema de casos com base apenas em seis funções sintáticas, o que é suficiente, de maneira
geral, tanto para o latim quanto para o grego. Contudo, eu gostaria de acrescentar mais duas
funções ao nosso estudo, que são as funções condensadas no sistema de casos do sânscrito (a
língua litúrgica e sagrada da Índia).
Digamos, pois, que em uma oração se podem encontrar oito funções expressas por substantivos
(ou pronomes, ou formas nominais de verbos):
1- O sujeito
2- O vocativo
3- O objeto direto
4- O adjunto adnominal restritivo
5- O objeto indireto
6- O adjunto adverbial de instrumento (e companhia)
7- O adjunto adverbial de lugar
8- O adjunto adverbial dos demais tipos
Esses oito casos representam as oito funções sintáticas mais importantes de qualquer língua, a
meu ver. No grego, porém, há apenas cinco casos, porque as funções locativa, instrumental e
ablativa são expressas por outros casos − pelo dativo e pelo genitivo, para ser mais exato; em
outras palavras, o genitivo e o dativo gregos dão conta de todos (ou quase todos) os adjuntos
adverbiais. Porém, como a função locativa, a instrumental e a ablativa são muito recorrentes e
significativas, creio que seja interessante as considerarmos separadamente dos casos pelos quais
são expressas em grego. Vejamos, portanto, a função de cada caso em mais detalhes.
Mas, antes de prosseguirmos, fica uma ressalva: todos devem entender claramente as noções de
sujeito, objeto, adjunto etc.; do contrário, será dificílimo prosseguir no estudo do grego. Não
convém, no entanto, explicar aqui, em detalhes, essas noções, já que isso nos desviaria
demasiadamente do tópico e já que, suponho, a maioria de vocês deve estar suficientemente
familiarizada com essas noções. Aos que ainda têm dificuldades com elas, portanto, recomendo o
estudo das cinco primeiras lições da Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida, que é
suficientemente esclarecedora a esse respeito. Se, após estudar essas cinco lições, o aluno ainda
tiver dúvidas quanto a essas noções, peço que me escreva uma mensagem com os problemas
encontrados e tentaremos solucioná-los.
O nominativo é, por excelência o caso do sujeito. Quer dizer, todo substantivo que, numa oração,
exerça a função de sujeito apresentará flexão do caso nominativo (há uma exceção a essa regra,
mas depois veremos isso). Além disso, quando temos um predicado nominal e, portanto, um
predicativo do sujeito, o predicativo se encontra também no caso nominativo. Vejamos um
exemplo em português e, em seguida, sua tradução em grego, aproveitando para introduzirmos
desde logo a primeira declinação grega (veremos mais adiante o que é uma declinação):
A alma é bela. − Nessa frase, alma é o sujeito; é bela é o predicado, quer dizer, aquilo que se diz
do sujeito; e bela é o predicativo do sujeito, quer dizer, o núcleo nominal do predicado. Agora,
em grego:
Uma outra observação que podemos fazer é que, até este ponto da apresentação, falávamos de
flexão de caso em substantivos. Mas kalh/ é um adjetivo. Isso indica que, em grego, os
adjetivos concordam com os substantivos não apenas em número e gênero, mas também em
caso. Porém, veremos os adjetivos em detalhes mais adiante; por hora, basta notar isso.
2- Vocativo
Etimologia: > Latim accusativos, de ad "contra; junto a" + causari "dar como causa ou motivo",
como tradução do grego aitiatike "caso do que é causado", de aitia "causa; acusação". A
tradução mais apropriada seria, então, "causativo".
O acusativo é, por excelência, o caso do objeto direto, conquanto desempenhe em grego também
outras funções. Tomemos um exemplo em português:
"Alma", aqui, é o objeto direto da ação de amar, da qual deusa é sujeito agente. Em outras
palavras, a ação de amar, iniciada no sujeito deusa, tem seu término em alma, que é,
evidentemente, o objeto da ação. Em grego:
Outra observação importante é que em português o objeto direto nunca vem acompanhado por
uma preposição; do mesmo modo, quando o acusativo grego expressa sua função primária, isto
é, a função de objeto direto, tampouco o acompanhará uma preposição. Fica, porém, a ressalva
de que nem todos os verbos que pedem complemento direto em português necessitam do mesmo
complemento em grego, e vice-versa.
Aproveitamos para introduzir também o verbo file/w, um verbo da conjugação em -w, que é a
primeira que iremos estudar. Uma conjugação é, para um verbo, algo bastante similar ao que
uma declinação é para um substantivo, adjetivo ou pronome; isto é, uma conjugação é um grupo
de verbos que são formados mais ou menos da mesma maneira e que, portanto, se comportam
mais ou menos da mesma forma. No futuro, estudaremos detidamente as peculiaridades de cada
conjugação verbal. Mas, embora conjugação e declinação sejam coisas semelhantes, não se deve
confundi-las jamais: conjugação é para verbos; declinação, para substantivos (e adjetivos e
pronomes).
Etimologia: > Latim genitivus "que expressa posse, fonte, origem", de gignere "gerar", como
tradução do grego genike "genérico (isto é, que expressa raça ou tipo)".
"Da alma", aqui, tem a função de adjunto adnominal restritivo, isto é, trata-se de uma locução
adjetiva que amplia o sentido e restringe a aplicação da palavra glória. No exemplo, não falamos
de qualquer glória, mas da glória da alma, que pertence à alma. O genitivo é, então, por
excelência, o caso para indicar posse. Vejamos o mesmo exemplo em grego:
Quem já estudou inglês e tem familiaridade com a língua já deve estar acostumado com o caso
genitivo. Em inglês, expressa-se pelo sufixo -'s, como no exemplo this is John's car. Pois bem, a
função do genitivo grego, via de regra, é precisamente a mesma. Ele agrega também outras
funções, assim como a maioria dos outros casos, mas essas funções secundárias não nos devem
ocupar agora.
Etimologia: > Latim dativus, de datus "dado", como tradução do grego dotike "de natureza
doadora; que dá".
O dativo é, por natureza, o caso do objeto indireto. O caso recebeu esse nome, imagino, porque
seu paradigma nos é fornecido pelo verbo dar, que é de predicação duplamente incompleta:
Em outras palavras, o verbo dar exige dois objetos, um direto (rosa) e outro indireto (para a
rainha). Notem que, neste exemplo, a ação tem seu término propriamente no objeto indireto, a
rainha, que recebe o objeto direto como resultado da ação que o sujeito exerce sobre ele.
Vejamos agora um exemplo em grego:
O dativo grego também pode expressar uma outra função bastante comum. Vejamos a seguinte
frase:
O caso instrumental, em sânscrito, tem por excelência duas funções: de adjunto adverbial de
instrumento e de adjunto adverbial de companhia. Em grego, ambas as funções são
desempenhadas pelo uso do caso dativo. Vejamos um exemplo para cada uma dessas funções:
No exemplo 1, "com uma rosa" indica o instrumento da ação de agradar − trata-se, portanto, de
um adjunto adverbial de instrumento. Em outras palavras, a rosa é o meio pelo qual o marinheiro
agrada a rainha. Já no exemplo 2, o poeta louva a rainha em companhia do marinheiro; "com o
marinheiro", portanto, tem a função de adjunto adverbial de companhia, isto é, indica a pessoa
com quem o poeta realiza sua ação.
Como já vimos todas as desinências de caso para o singular da primeira declinação, não vejo
necessidade de fornecer e explicar, agora, um exemplo grego dessas funções, nem do locativo e
do ablativo, que vêm a seguir. Por hora, basta que vocês entendam essas funções e saibam que
elas se expressam em grego pelo dativo, no caso do adjunto adverbial de instrumento e do
adjunto adverbial de lugar, e pelo genitivo, no caso do adjunto adverbial de procedência
(ablativo).
Como se trata do caso dativo, a desinência é idêntica à usada nas funções instrumental e
associativa. Só temos duas coisas a observar aqui, por conseguinte: (1) como eu disse há pouco,
o locativo indica um lugar estático: o poeta está na ilha, não se dirige para lá (a idéia de
movimento para algum lugar se expressa, em grego, pelo caso acusativo); (2) o locativo grego
vem acompanhado, em geral, de alguma preposição que indica local ou posição, como e0n "em".
Etimologia: > Latim ablativus, de ab "de, a partir de; para longe" + latus "carregado; levado".
O caso ablativo, por excelência, tem a função de adjunto adverbial de procedência; isto é, ele
indica o ponto de partida de um movimento ou ação. No grego, essa idéia de procedência,
propriamente ablativa, é expressa pelo caso genitivo e, em geral, vem acompanhada das
preposições e0k ou a0po/. Vejamos:
"A partir da terra" expressa aqui a idéia do ablativo; quer dizer, a terra é o ponto desde o qual o
poeta canta, ou celebra, a lua. Em outras palavras, o ablativo indica o ponto de partida da ação do
poeta.
3) Modo − Não peça com tanta insistência (expressa pelo dativo ou pelo acusativo adverbial)
4) Companhia − Farei fortuna com meu irmão (função associativa − expressa pelo dativo)
5) Instrumento ou Meio − Comemos com garfo (função instrumental − expressa pelo dativo)
6) Causa − Quebrou-se por culpa do menino (expressa, se não me engano, pelo genitivo)
Há, no entanto, outros tipos de adjunto adverbial, mas esses são os principais. Além dos tipos
estudados aqui em mais detalhes, estudaremos os demais de forma mais cuidadosa no futuro. Por
hora, bastam essas indicações.
Com isso, concluímos nossa introdução ao sistema de casos grego, espero que de modo
satisfatório.
Deixo apenas um exercício para a próxima aula: vocês devem ter reparado que, em nossos
exemplos, empregamos o artigo definido feminino em diversos casos; pois bem, creio que seja
extremamente útil vermos todas as formas do artigo definido feminino e as decorarmos, porque
suas terminações correspondem, de modo geral, às desinências da primeira declinação grega.
Aprendamos, por conseguinte, a declinação desse artigo, como forma de introdução ao estudo da
primeira declinação: