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Tormenta: o que significa ser tecnologicamente mais


avançado?
João Paulo Francisconi 7 anos atrás

O tema central de Tormenta RPG é o choque de civilizações: Arton contra Lefeu. No


mundo real, quando duas civilizações se encontram, conflitos estão destinados a
acontecer quando essas civilizações disputam por recursos necessários a ambas. O
resultado, usualmente, termina em massacre. Especialmente quando existe um abismo
tecnológico entre elas. Mas como exatamente podemos identificar quando uma sociedade
é realmente tecnologicamente superior a outra? A maioria de vocês deve estar
imaginando europeus armados com armas de fogo contra nativo-americanos armados
com arcos e imaginando que o primeiro tem a vantagem tecnológica, certo? Heh.
Surpresa das surpresas, em termos bélicos o nativo-americano e seu arco é várias vezes
mais mortífero que o europeu com a arma de fogo. Enquanto um mosquete poderia levar
cerca de um minuto para ser recarregado e o alcance efetivo era de apenas pouco mais de
90m a 130m, o arco poderia disparar uma flecha a cada dez segundos e o alcance efetivo
era entre 200m e 350m dependendo do tipo de arco. Armas de fogo só se tornariam mais
mortíferas que o arco no século XIX, quando revólveres e fuzis de repetição começaram a
ser produzidos.
Mas espera aí. Se o nativo-americano com seu arco e flecha possuía a vantagem
tecnológica, como é que eles perderam os conflitos armados e foram massacrados pelos
europeus? Bem, nem sempre a sociedade tecnologicamente superior é aquela que possui
armas mais poderosas, muitas vezes o que realmente interessa não é tangível como um
mosquete ou arco e flecha. O uso de armas de fogo pelas nações europeias a partir do
século XV não se trata delas serem superiores aos arcos usados por milhares de anos
através do mundo, mas pelo fato de que para treinar um arqueiro são necessários anos,
mas para treinar um homem no uso do mosquete só são necessárias algumas semanas.
Essa velocidade com que é possível pegar um homem comum e torná-lo num soldado
pronto para lutar é onde reside a vantagem tecnológica da arma de fogo na era moderna.
Completamente intangível, e ainda assim de um valor imensurável nos campos de
batalha. Junte a esta facilidade de repor tropas com as doenças europeias que arrasaram
as populações nativas e a instabilidade política dos aztecas e incas e você tem a receita
pronta da dominação europeia.
Mas e o que é que isto tem a ver com Arton, então? Bem, para começar, você já percebeu
algo sobre aquilo que dá nome ao cenário? A Tormenta é uma entidade estrangeira que
deseja utilizar os recursos artonianos (a fé dos mortais) para tomar para si o poder sobre
este mundo (tornando-se uma divindade maior), eles atingem isto através da substituição
da cultura artoniana (fé no Panteão e deuses menores) pela sua própria cultura (fé nos
Lefeu e assimilação) e tem um desprezo absoluto por tudo aquilo que não venha da sua
própria realidade que os leva a um comportamento amoral que só pode ser descrito como
desumano pelos nativos… Percebeu? A Tormenta é uma gigantesca
metáfora lovecraftiana para as invasões coloniais¹.
E é aí onde definir o que significa ser tecnologicamente mais avançado se torna tão
importante para a sua campanha. Porque neste momento os habitantes de Arton são os
nativo-americanos, e a Tormenta é a inalcançável Europa, cheia de vantagens contra a
gente… certo?
Mais ou menos.
O que eu quero dizer é que, embora a primeira vista pareça que Arton está em
desvantagem, a verdade é que a situação é muito diferente do que você pode imaginar a
princípio. Por exemplo, é fácil notar que a Tormenta é tóxica para o ambiente artoniano,
ela chega para ficar e pode apagar completamente partes da existência… até você lembrar
que Arton também é tóxica para a Tormenta. Apenas imaginem o que teria acontecido se
os europeus fossem destroçados por pragas nativas do continente americano para as
quais eles não tinham nenhuma imunidade, teriam eles conquistado a América? Nope.
Esta é a primeira coisa que causa verdadeiro terror nos lefeu.
Mas não é só isso. Logo que a Tormenta surgiu em Arton, os deuses maiores decidiram
não fazer nada diretamente a princípio, porque eles basicamente não sabiam com o que
diabos eles estavam lidando e isso os aterrorizava. Por quê? Sun Tzu já dizia: “aquele que
não conhece a si mesmo ou ao inimigo perderá todas as batalhas, aquele que conhece a si
mesmo mas não conhece o inimigo perderá metade das batalhas, e aquele que conhece a
si mesmo e ao inimigo ganhará todas as batalhas”. Quando a Tormenta veio para Arton,
eles sabiam tudo sobre si mesmos e sobre Arton enquanto os deuses não sabiam tudo
sobre si mesmos ou sobre a Tormenta (por conta da maldição do esquecimento que caia
sobre o Terceiro e a Revolta dos Três). Durante 15 anos Arton perdeu cada batalha que
lutou contra a Tormenta. Até que a maldição sobre Kallyadranoch foi quebrada e o
conhecimento que os deuses possuíam sobre a realidade lefeu retornou. Agora Arton
conhecia a si mesma e ao inimigo. Soma-se a isso o fato de que os Lordes da Tormenta
haviam ficado desunidos após a realização de que estavam se tornando indivíduos e,
imediatamente, a Área de Tormenta de Tamu-ra foi destruída. O fato de que existe algo
sobre sua história que os deuses de Arton sabem que os lefeu não conhecem é a segunda
coisa que causa terror nos lefeu.
Ambas estas coisas são intangíveis, não são algo com o qual você pode matar um lefeu
diretamente. Mas a primeira coisa que eu expliquei para você neste artigo foi que às
vezes não é quem tem a melhor arma quem vence uma guerra entre civilizações, mas sim
aquela que tem aquele algo intangível que a torna superior, não é verdade?
¹ Não é incrível que o cenário de fantasia mais popular do Brasil tem como tema central
uma metáfora que coloca o colonialismo como o mal absoluto? Bem, isto ou é um
daqueles casos que o autor diz que o céu é azul e a gente interpreta que o azul é uma
metáfora para a tristeza e solidão da vida moderna mas, na verdade, o autor só quis dizer
que a porra do céu é azul, caralho. Até que você atinge a realização que o que o autor quis
dizer não faz nenhuma diferença porque o que importa é a sua experiência com a obra.
😉
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Categorias: Opinião, RPG, Tormenta

Tags: Arton, Tecnologia

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