Você está na página 1de 4

CÂNONE4 S MIGUEL TAMEN

UM CÂNONE É UMA LISTA.Há duas


espécies de listas: prospectivas e
retrospectivas. As listas prospectivas, como as
listas de compras, permi-
tem calcular intenções, fazer profecias e imaginar
promessas. As listas
retrospectivas, como os catálogos de bibliotecas, permitem
identificar
coisas. Um cânone literário é uma lista retrospectiva: uma
lista de auto-
res e livros que os vários, muitos, e muitas vezes anónimos, autores
da
lista identificam como importantes. É por isso que, como observaram
várias pessoas, um cânone é constituído por costumesrepetidosao
longo do tempo. No entanto, como os costumes, os conteúdos de um
cânone literário são muitas vezes alterados.
A confusão principal que se faz a respeito de cânones é tratar um
catálogo como uma lista de compras, isto é, imaginar que a razão por
que certos itens estão numa lista (por exemplo autores, obras de arte,
ou mesmo movimentos e períodos) é irmos continuar a precisar deles
para sempre. A confusão vem de querer transformar as nossas inclina-
ções presentes em normas que se aplicam sem restrições. No entanto,
nenhuma lista de compras, por completa que seja, garante satisfação
indefinida com um produto. O escritor Miguel Torga esteve por duas
vezes na lista de compras do Prémio Nobel da Literatura. O facto de
nunca o ter ganhado é pouco importante. Muitos escritores melhores
não o ganharam, e alguns piores ganharam-no. O que é importante é
que a urgência com que foi incluído na lista sugeria uma crença parti-
mereceriam,
lhada nas suas qualidades, e uma ideia das honras que estas
da
a qual o tempo se encarregou entretanto de atenuar. A frequência
desejo, não diz
minha urgência prospectiva, as vezes que manifesto um

523
O CÂNONE

futuras de terceiros. A poetisa


nada sobre os hábitos e escolhas Maria
Patrício esteve por catorze vezes na lista de compras
Madalena Martel
do Prémio Nobel da Literatura.
Se, como observou famosamente um economista, a longo prazo todos
vamos estar como Maria Madalena Martel Patrício, nem todos os escri-
tores sofrem o destino de Miguel Torga. O assunto merece ser tratado
com mais pormenor. E no entanto a história da literatura portuguesa,
como aliás a história em geral, está cheia de casos de pessoas, objectos
e ideias que foram praticamente esquecidos apesar de terem sido cele-
brados em vida (ou mesmo um pouco depois) como contribuições ou
progressos perenes. Desse ponto de vista, o remotamente lembrado
Fernando Namora não é muito diferente daquelas coisas ou pessoas
onde gerações inteiras viram o futuro: para dar exemplos do século xx,
o Betamax, a eugenia, os electrochoques, o Citrõen ID e o socialismo.
Os admiradores de Namora, como aliás os do socialismo e do Betamax,
não devem no entanto entender isto como uma maldição e sentir-se
visados. A esperança de que aquilo que erradamente todos viram como
o futuro se venha a realizar não pode ser completamente posta de parte,
e isto pela simples razão de que ninguém tem a menor ideia de como
virá o futuro a ser, a não ser, claro está, a uma escala martel-patrícia.
Um dos ingredientes mais previsíveis da crítica literária, e uma das
últimas vantagens competitivas que os historiadores ainda têm, é a redes-
coberta de pessoas, animais ou coisas, como diz o refrão, «injustamente
esquecidos». A expressão «injustamente esquecido» sugere toda uma
teoria, que no entanto não é fácil de explicitar. Insinua por exemplo
que as coisas esquecidas são como tesouros de que inexplicavelmente
co-
perdemos o rasto. O problema é o «inexplicavelmente». A intuição
Tendemos
mum, aliás certa, é a de que raras vezes perdemos tesouros.
valioso.
a prestar muita atenção àquilo que para nós é importante ou
não são
Ao contrário dos cães, as coisas que para nós são importantes
futuras,e
regra geral enterradas no jardim, como ossos para refeições
há assim,
muito menos, neste caso como por cães, são esquecidas. Não
saberíamos
deste ponto de vista, esquecimentos injustos, visto que não
«injustamente
dizer o que neste caso constituiria justiça. A expressão
muitas
esquecido» não designa lapsos dos nossos antepassados, embora
ter come-
vezes seja empregue para os acusar de erros que não poderiam
esquecido
tido. Pelo contrário, dizer que um escritor foi injustamente

524
CÂNONE 4 S MIGUEL TAMEN

quer simplesmente dizer que eu me estou a lembrar dele agora e que


me imagino como o protagonista fugaz de uma fábula em que, por um
momento embora, estou um passo à frente dos meus injustos contempo-
râneos, Apesar de quase nunca terem ambições cósmicas, os críticos e os
historiadores têm uma afeição pronunciada por momentos messiânicos
desde que, claro está, desempenhem neles um papel digno.
A ideia de que os escritores têm propriedades que não são afectadas
pelo tempo ou pelo lugar onde apareceram não é apenas característica
das nossas ideias sobre tesouros ocultos. E também característica das
nossasideias sobre autores e livros de que nos lembramos perfeitamente
e, mais ainda, das nossas explicações sobre o costume reiterado que
gerações inteiras desenvolveram de ler certos autores e livros. Que
sejamos levados a imaginar qualidades comuns àquilo que nos acontece
celebrar no presente tem de ser desculpado pela característica inelimi-
nável de reconduzirmos as opiniões que temos sobre as coisas às pessoas
que as têm. Todas as opiniões são sempre de alguém. Como nenhum de
nós poderia estar enganado sobre tudo, muitos de nós imaginam que
há qualquer coisa de comum entre todas as coisas sobre que não nos
enganamos. O aspecto da nossa explicação tem aqui a forma a que os
gregos chamaram hysteronproteron. É o facto de darmos importância a
livros e autores que nos faz embarcar na expedição pelas suas qualidades;
é ainda o mesmo facto que, posteriormente, nos faz atribuir o facto da
expedição e o estado da importância que sentimos a qualidades desses
livros e autores. Mas, claro está, as propriedades de um livro são cons-
tituídas através de descrições desse livro. Nada, na Eneida ou nas obras
completas de Fernando Namora, existe independentemente de quem
as celebre.
Analogamente, atribuir a persistência na admiração às qualidades
da coisa admirada é uma maneira de falar que, como todas, não pre-
cisa do esforço de uma refutação, mas que se caracteriza por imaginar
que as obras literárias têm qualidades com uma eficiência tal que, como
certas substâncias radioactivas, farão sentir os seus efeitos até que final-
Esta
mente toda a espécie se junte a Maria Madalena Martel Patrício.
teoria não tem pés nem cabeça. É por exemplo possível que gerações
descrevam
sucessivas concorram na admiração por um livro mas que o
não estiveram
de modos tão diferentes que a um marciano pareceria que
a falar do mesmo livro. É aliás isso que geralmente acontece. Ficarmos

525
O CÂNONE

Camões e começar a imaginar que a


hipnotizados pela perenidade de
instanciar ele uma substância radioactiva
sua popularidade se deve a
urânio na tabela perió-
praticamente eterna (a camonite, à direita do
que os grandes críticos camonianos,
dica) leva-nos sempre a esquecer
concordaram entre si sobre pouco, ou pelo
para não falar dos pequenos,
menos discordaram entre si sobre muito, e também que a maior parte
dos leitores de Camões é imune a qualquer radiação.
O critério de todos os cânones é a memória. No entanto a palavra «me-
mória» não tem aqui um sentido abstracto ou psicológico. Em relação a
um cânone, «memória» é uma metáfora para factos práticos, para coisas
que fazemos e pensamos habitualmente. E nessa medida que qualquer
cânone depende de pensamentos, acções e intenções humanas, e ainda
de circunstâncias e acontecimentos fortuitos. Exemplos destas activida-
des, se a palavra é a certa, são saber ler, discutir, imaginar que a nossa vida
é prefigurada por certos livros, imaginar que as melhores descrições de
nós próprios foram feitas por terceiros, admirar pessoas extraordinárias,
ler opiniões sobre livros, haver sítios para falar de poemas, não sofrer
consequências por ter certas opiniões sobre livros, ou prestar atenção a
pormenores. Mas a causa de nos lembrarmos de alguma coisa não pode
ser em nenhum destes casos derivada das propriedades daquilo de que
nos lembramos.
Lembramo-nos de escritores e poetas portugueses por muitas razões.
Apesar de algumas vezes os termos lido, a mais frequente não é tê-los
lido. Se os lemos, lemo-los muitas vezes há muito tempo, e a memória
que deles temos é difusa. Só três pessoas em Portugal se lembram da
diferença que em OsLusíadasparece que existe entre Thetis e Thetys.
O resto de nós segue o conselho de Ira Gershwin, o melhor crítico: «I'm
notgonna stop eatin urstas / Just causeyou say oysters». Lembramo-nos de
Alexandre Herculano porque andámos em certo liceu ou lemos algures
que salvou um livro a nado; de António Nobre porque passamos por certa
rua que afinal se chamava António Patrício; de Cristóvão Falcão porque
apreciamos uma certa pastelaria; de Eça de Queirós porque nunca tive-
mos tempo de acabar OsMaias; e de Bocage por motivos mais robustos
que as cartas de Olinda e Alzira. E às vezes demonstramos a nossa afeição
por Camões com versos que Camões nunca escreveu. Um cânone não
é nunca mais que a soma de todas estas
acções, de todas estas razões, e
de todas estas certezas.

526

Você também pode gostar