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A lentidão
Romance
Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria
Luiza Newlands da Silveira
Editora Nova Fronteira
Título original em francês: La Lenteur
© Milan Kundera, 1995
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no
Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira S.A.
Rua Bambina, 25 – Botafogo CEP: 22251-050 – Rio de
Janeiro – RJ – Brasil Tel.: 537-8770 – Fax: 286-6755
Endereço telegráfico: NEOFRONT
Revisão de originais Maria Angela Villela
Revisão tipográfica
Maria José de Sant’Anna
Angela Nogueira Pessoa
Tereza da Rocha
CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos
Editores de Livros, RJ.
Kundera, Milan, 1929-A lentidão / Milan Kundera;
tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza
Newlands da Silveira. • Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1995.
ISBN 85-209- 0670-2
Tradução de: La lenteur 1. Romance tcheco. 1. Fonseca,
Teresa Bulhões Carvalho da. II. Título
95-1256
CDD – 891.8635
CDU – 885-3
Orelha
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É a primeira vez que tira a roupa diante dele com uma tal
falta de pudor, com uma indiferença tão ostensiva. Essa
maneira de despir-se significa: sua presença aqui, diante de
mim, não tem nenhuma, mas nenhuma importância; sua
presença é igual a de um cachorro, de um camundongo. Seu
olhar não vai mexer com a menor parcela de meu corpo.
Poderia fazer o que quer que fosse diante de você, os atos
mais inconvenientes, poderia vomitar na sua frente, lavar
minhas orelhas ou meu sexo, me masturbar, fazer pipi. Você
é um não-olho, um não-ouvido, uma não-cabeça. Minha
orgulhosa indiferença é um manto que permite que eu me
mova diante de você com toda liberdade, com todo
despudor.
O cameraman vê o corpo de sua amante transformar-se
sob seus olhos: aquele corpo que até então se entregava
com simplicidade e rapidamente, ergue-se diante dele como
uma estátua grega colocada num pedestal de cem metros
de altura. Fica louco de desejo, e é um desejo estranho, que
não se manifesta sensualmente, mas que enche sua cabeça
e apenas sua cabeça, um desejo que é como uma
fascinação cerebral, ideia fixa, loucura mística, a certeza de
que aquele corpo, e nenhum outro, está destinado a
preencher sua vida, toda a sua vida Ela sente essa
fascinação, essa devoção, colar-se à sua pele, e uma onda
de frieza sobe-lhe à cabeça. Ela mesma fica surpresa, nunca
sentiu uma onda dessas. E uma onda de frieza, como
existem ondas de paixão, de calor, de raiva. Pois essa frieza
é realmente uma paixão; como se a devoção absoluta do
cameraman e a rejeição absoluta de Berck fossem duas
faces de uma mesma maldição contra a qual ela se rebela;
como se a rejeição de Berck quisesse devolvê-la aos braços
de seu amante banal e como se o único recurso contra essa
rejeição fosse a raiva absoluta contra esse amante. Eis a
razão pela qual ela o recusa com uma tal raiva, querendo
transformá-lo em camundongo, transformar esse
camundongo em aranha e essa aranha numa mosca
devorada por uma outra aranha.
Já pôs um vestido branco, decidida a descer e mostrar-se
a Berck e a todos os outros. Está feliz por ter trazido um
vestido de cor branca, a cor do casamento, pois tem a
impressão de viver um dia de casamento, casamento ao
contrário, casamento trágico sem noivo. Leva embaixo de
sua roupa branca a ferida de uma injustiça, sente-se
engrandecida por essa injustiça, embelezada por ela, como
as personagens de uma tragédia ficam embelezadas por
sua desgraça. Vai em direção à porta, sabendo que o outro,
de pijama, irá sair atrás dela e irá segui-la como um
cachorro que a adora, e quer que atravessem assim o
castelo, casal tragigrotesco, uma rainha seguida por um cão
bastardo.
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