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NEUROCIÊNCIA

UMA NOVA
POSSÍVEL
CAUSA DA
DEPRESSÃO

U
m grupo de pesquisadores do ça psiquiátrica marcada por tristeza pro-
Falha na reciclagem
Brasil e da França apresentou longada que pode atingir até 20% das pes-
de componentes dos em um artigo publicado em 2 soas em algum momento da vida. Além
de fevereiro na revista Natu- desse fator biológico, dois outros já haviam
neurônios provoca re Aging uma nova possível sido associados ao surgimento da depres-
causa biológica da depressão: a perda da são: a baixa reposição das células cerebrais
em roedores capacidade dos neurônios de reciclar seus (em especial, os neurônios) e a redução das
componentes velhos ou danificados. Cha- conexões entre essas células. Sozinhos, no
sinais semelhantes
mado de autofagia, que, em grego, significa entanto, eles não explicam todos os casos
aos da doença “devorar a si mesmo”, esse mecanismo da doença, que, assim como outros trans-
de destruição e reaproveitamento dos tornos psiquiátricos, decorre da interação
em seres humanos componentes, quando bem controlado, é das características biológicas do indivíduo
fundamental para a saúde e o bom funcio- com as condições sociais, econômicas, psi-
namento das células. Sua conexão com a cológicas e culturais em que vive.
depressão foi identificada pela equipe do Kapczinski e Lledo chegaram à falha
neurocientista francês Pierre-Marie Lledo, da autofagia como potencial causa da
do Instituto Pasteur, em Paris, em parceria depressão de modo fortuito. Anos atrás,
com o grupo do psiquiatra brasileiro Flávio eles iniciaram uma colaboração para in-
Kapczinski, da Universidade Federal do vestigar o efeito de uma proteína chama-
Rio Grande do Sul (UFRGS). da fator de diferenciação do crescimento
A redução da capacidade de realizar au- 11 (GDF11) sobre a saúde dos neurônios.
tofagia é apenas um dos fatores biológicos Essa proteína favorece o desenvolvimen-
ligados ao surgimento da depressão, doen- to do cérebro, dos vasos sanguíneos e de
Ao longo da Essa molécula era o GDF11, cuja ação e tratados com esse fator de crescimento
restauradora sobre o cérebro havia sido funcionavam melhor e faziam mais cone-
vida, até 20% demonstrada pela neurocientista grega xões com outros neurônios. A evidência
Lida Katsimpardi durante um estágio de de que a autofagia estava por trás desse
das pessoas pós-doutorado na Universidade Harvard, resultado veio de outro experimento. Ao
nos Estados Unidos. Em um artigo publi- inativar geneticamente uma das proteí-
apresentam cado em 2014 na Science, Katsimpardi nas envolvidas na autofagia ou bloqueá-la
um episódio da comprovou que, em roedores, a proteína completamente por meio de compostos
revertia o efeito do envelhecimento por químicos, o efeito protetor se perdeu.
doença, marcado promover a formação de novos neurô- “Descobrir esse papel do GDF11 avan-
nios (neurogênese). Agora no Pasteur, ela ça nossa compreensão da conexão entre
pela tristeza propôs avaliar o efeito do GDF11 sobre a envelhecimento, memória e transtornos
depressão e um sintoma que a acompa- do humor e – talvez o mais emocionante
prolongada nha com frequência, a perda de memó- – aumenta a perspectiva de usar o GDF11
ria, também comum no envelhecimento. como um meio de melhorar o diagnós-

A
tico e o tratamento desses problemas”,
presentados na Nature Aging, escreveram Patrick Piantadosi e Andrew
os resultados dos experi- Holmes, pesquisadores dos Institutos
mentos mostraram que a Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados
administração por algumas Unidos, em um comentário sobre o estudo
semanas do GDF11 em ca- publicado na mesma edição da revista.
mundongos idosos, que naturalmente “Esse trabalho é relevante por três mo-
têm níveis mais baixos desse fator de tivos”, afirma a psiquiatra brasileira Eli-
crescimento, foi suficiente para evitar sa Brietzke, da Queen’s University, no
o declínio da memória e os sintomas ca- Canadá, que não participou do estudo.
racterísticos da depressão. Os animais “Por mostrar que há múltiplos mecanis-
tratados passaram a apresentar desem- mos envolvidos na depressão, que não
penho semelhante ao de roedores jovens. é explicada apenas pela falta de neuro-
Já nos jovens, a proteína impediu que transmissores, como a serotonina. Por
desenvolvessem os sinais da depressão indicar que esse transtorno mental não
induzida por corticosterona, o hormônio causa alterações apenas no cérebro, mas
do estresse em roedores. no corpo todo. E por criar a perspectiva
Os pesquisadores também verificaram de que algum dia um tratamento que au-
que, nos animais tratados com GDF11, o mente os níveis de GDF11 possa combater
hipocampo, região cerebral associada à tanto a depressão quanto as queixas de
regulação do humor e à aquisição da me- memória, que são comuns nessa doença,
outros tecidos no embrião e é produzida mória, funcionava melhor, mas não pelo mas não melhoram com os antidepressi-
pelo organismo até a idade adulta. Nos motivo que supunham. “Pensávamos que vos atuais”, explica.
seres humanos, sua síntese declina a par- o efeito do GDF11 fosse decorrente da Embora Kapczinski e sua equipe te-
tir dos 70 anos. neurogênese, que compensaria a perda nham observado que os níveis de GDF11
Havia tempos o pesquisador brasileiro dessas células observada na depressão e estão reduzidos no sangue de pessoas
reunia evidências, em testes com animais e no envelhecimento”, conta Kapczinski. com depressão, ainda é longo o caminho
seres humanos, de que episódios sucessivos Análises da ação do GDF11 sobre os antes que se chegue a uma terapia para
de depressão causavam danos gradativos a neurônios, porém, mostraram que a me- aumentar seus níveis no organismo. “Pro-
neurônios e outras células cerebrais, lem- lhora não se devia à neurogênese. Ou não teínas como o GDF11 agem em diferentes
brando uma espécie de envelhecimento só a ela. Administrado na corrente sanguí- órgãos e tecidos e, quando administra-
acelerado, fenômeno que Kapczinski de- nea, o GDF11 até promove a formação de das diretamente, podem produzir efei-
nominou neuroprogressão (ver Pesqui- novos neurônios, mas, aparentemente, tos benéficos em alguns e deletérios em
sa FAPESP nº 197). “Em uma conferência de forma indireta, por estimular a libera- outros”, alerta Brietzke. Entender como
realizada em 2018 no Pasteur, apresentei a ção de outros compostos que provocam a o GDF11 age nas células, porém, pode
hipótese da neuroprogressão e soube que o neurogênese. Injetado no cérebro, ele não levar ao desenvolvimento de compostos
grupo de Lledo tinha disponível uma molé- levou à proliferação de neurônios, apesar que atuem nos mesmos alvos molecula-
cula que funcionaria como um rejuvenes- de promover melhora na memória e nos res e, além de eficientes, sejam seguros
cedor de neurônios”, conta o pesquisador, sintomas depressivos. e bem tolerados. n Ricardo Zorzetto
KLOSFOTO / GETTY IMAGES

que integra o Instituto Nacional de Ciência O efeito benéfico do GDF11, constata-


e Tecnologia Translacional em Medicina ram os pesquisadores, foi consequência
Artigo científico
(INCT-TM), financiado pela FAPESP e pe- do aumento da autofagia, que contribui
MOIGNEU, C. et al. Systemic GDF11 attenuates depres-
lo Conselho Nacional de Desenvolvimento para a eliminação de resíduos tóxicos. sion-like phenotype in aged mice via stimulation of neu-
Científico e Tecnológico (CNPq). Os neurônios cultivados em laboratório ronal autophagy. Nature Aging. 2 fev. 2023.

PESQUISA FAPESP 325 | 51

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