Você está na página 1de 412

UNIVERSIDADE DE VIGO

DEPARTAMENTO DE FILOLOXÍA GALEGA E LATINA

TESE DE DOUTORAMENTO

TRADUZIR OTERO PEDRAYO:


O CASO DE ARREDOR DE SI
EM PORTUGUÊS

AUTOR: FELIPE DOMÍNGUEZ PRESA

Tese de doutoramento coa que opta ao grao de doutor pola Universidade de Vigo

DIRECTOR: DOUTOR BURGHARD BALTRUSCH

Setembro 2015
À minha mãe e ao meu pai
À Belém
Ao Félix
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Gonçalves Dias, Canção do Exílio


ÍNDICE

ABREVIATURAS....................................................................................................................xi

RESUMO EN GALEGO.......................................................................................................xiii

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1

1. O AUTOR DE ARREDOR DE SI........................................................................................9


1.1. Vida, obra e pensamento de Otero Pedrayo........................................................................................11
1.1.1. Caracterização ideológica de Otero Pedrayo...........................................................................13
1.1.2. Coincidências e descoincidências biográficas em Arredor de si.............................................15

1.2. A língua de Otero Pedrayo...................................................................................................................17


1.2.1. Da ideia à língua.......................................................................................................................17
1.2.2. O diferencialismo linguístico...................................................................................................20
1.2.3. Uma língua descuidada?...........................................................................................................35
1.2.4. Falta de memória e revisão......................................................................................................37
1.2.5. A língua de uma geração?........................................................................................................38

1.3. O romance Arredor de si.....................................................................................................................40


1.3.1. O estilo de Otero Pedrayo em Arredor de si............................................................................40
1.3.2. As edições de Arredor de si......................................................................................................46
1.3.3. A língua de Otero Pedrayo em Arredor de si: análise de aspectos linguísticos.......................48

2. TRADUZIR DE GALEGO PARA PORTUGUÊS: CONSIDERAÇÕES


TEÓRICO-PRÁTICAS......................................................................................................85
2.1. Necessidade e aceitabilidade. Tradução ou adaptação?......................................................................87
2.1.1. Adaptação: Sempre em Galiza de Castelao..............................................................................89
2.1.2. Adaptação: Os Pobres de Deus de Amado Carballo................................................................97
2.1.3. Tradução de Arredor de si......................................................................................................107
2.1.4. Conveniência da tradução.......................................................................................................111

2.2. Observação à luz da teoria dos polissistemas....................................................................................114

2.3. Uma tradução cultural?......................................................................................................................119


2.3.1. Explicitação e normalização..................................................................................................122
2.3.2. Relação entre culturas............................................................................................................127
2.3.3. Ideologia.................................................................................................................................129

2.4. Teoria e prática..................................................................................................................................132


3. ESTUDO DESCRITIVO DA TRADUÇÃO PARA PORTUGUÊS DE ARREDOR
DE SI..................................................................................................................................143
3.1. Pontuação...........................................................................................................................................146
3.1.1. Inclusão de sinais de pontuação.............................................................................................146
3.1.2. Alteração de sinais de pontuação...........................................................................................147

3.2. Divisão do texto em parágrafos.........................................................................................................148

3.3. Nomes próprios e formas de tratamento...........................................................................................150


3.3.1. Antropónimos.........................................................................................................................150
3.3.2. Topónimos..............................................................................................................................152
3.3.3. Nomes de arruamentos...........................................................................................................154
3.3.4. Uso do artigo definido com antropónimos e topónimos........................................................155
3.3.5. Formas de tratamento.............................................................................................................156

3.4. Fraseologia e locuções fraseológicas................................................................................................158

3.5. Falsos amigos....................................................................................................................................162


3.5.1. Falsos amigos comuns............................................................................................................162
3.5.2. Falsos amigos oterianos em Arredor de si.............................................................................165
3.5.3. Falsos amigos de uso..............................................................................................................170
3.5.4. Casos especiais.......................................................................................................................177
3.5.5. Falsos amigos gramaticais......................................................................................................182

3.6. Estrangeirismos.................................................................................................................................183

3.7. Intertextualidade................................................................................................................................188

3.8. Notas do tradutor...............................................................................................................................191

3.9. Deslocamentos...................................................................................................................................197

3.10. Explicitações, amplificações, adições.............................................................................................206

3.11. Normalização estilística...................................................................................................................209

3.12. Correcções.......................................................................................................................................212

3.13. Dificuldades de interpretação..........................................................................................................213

4. CONCLUSÕES.................................................................................................................219

5. BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................231

6. ANEXO: TRADUÇÃO DE ARREDOR DE SI...............................................................245


ABREVIATURAS

cast.: castelhano

ga.: galego

lat.: latim

pt.: português

TA: texto-alvo

TF: texto-fonte
RESUMO EN GALEGO
Resumo en galego

Ramón Otero Pedrayo, nacido en 1888, é unha das grandes personalidades da


literatura galega do século XX. Cando todo estaba por facer, este intelectual ourensán decide
dedicarse de corpo e alma ás letras en galego, atinxindo os cumes dunha narrativa que, con el,
conseguía saír das tebras. Tras o seu ingreso nas Irmandades da Fala en 1917, non deixará de
escribir e participar na vida cultural e política do seu tempo até 1936, cando comeza a Guerra
Civil española.

Traducir Arredor de si (1930) ao portugués tivo como implicación lóxica ter un


coñecemento profundo acerca do autor. No primeiro capítulo desta tese apúntanse os aspectos
máis relevantes da vida, obra e pensamento do autor, destacando as coincidencias que levaron
a crítica a destacar o carácter autobiográfico da novela, mais tamén mencionando outros que
ningunha relación teñen coa biografía do autor.

Consciente das carencia lingüísticas e literarias galegas, Otero implícase en erixir unha
obra persoal para a cal escolle por ferramenta unha lingua diferencialista a respecto do
castelán, tentando salientar todo o que considera específico do galego. Otero recorre a
diferentes estratexias: a creación de palabras inexistentes na lingua común, o
hipergaleguismo, o vulgarismo, a sufixación diferencial, metáforas, arcaísmos e lusismos,
entre outros. A pesar de facer uso dunha expresión moi rica e enxebre, fixéronse moitas
críticas ás súas carencias formais, aos seus lapsus calami e á ausencia de revisión das súas
obras. Presento tamén a hipótese de que a lingua de Otero poida compartir características
comúns á doutros autores do primeiro terzo do século XX, aínda que se trate dun estudo por
levar a cabo.

Na opinión de Venâncio (2007), o diferencialismo lingüístico, que deixou unha forte


pegada nas décadas de 1920 e 1930, pervive aínda hoxe na pluma de moitos escritores e das
persoas que se preocupan pola expresión en lingua galega, mesmo existindo unha norma
lingüística máis definida. Este feito ten moita importancia desde o punto de vista
tradutolóxico, dado que o tradutor ou tradutora debe ser coñecedor desta complexa relación
lingüística e sociolingüística entre galego e castelán, tentando desenmarañar fíos estreitamente
enredados. A inexistencia desta conciencia diferencialista nas sociedades lusófonas fai a
percepción que se poida ter da nosa tradución moito máis neutra.

Para a miña tradución ao portugués foi fundamental obter o maior número de datos

xv
Resumo en galego

relativos a Arredor de si: coñecer as interpretacións que se fixeron até o día de hoxe e
entender o estilo lacónico desta novela lírica, todo o cal contribuiu a abrir portas á
comprensión da mesma. Tamén foi esencial ter conciencia de que houbo várias e diferentes
edicións desta novela, así como unha tradución ao inglés publicada en 2007. Circling foi o
título que a sua tradutora, Kathleen March, lle deu.

A análise de aspectos de lingua específicos de Arredor de si foi fundamental para a


tradución e pode ser de utilidade para calquera lector, estudioso, crítico ou tradutor de Otero,
dado que moitas das características apuntadas se repiten noutros textos seus. Nesta análise
observamos o diferencialismo, o castelanismo, as vacilacións, o dialectalismo e outras
características. Do seu diferencialismo salientamos o léxico diferencial, as hipercorreccións,
os vulgarismos e a ortografía diverxente. A pesar de querer desmarcarse do castelán, son
abundantes as palabras e expresións importadas desta lingua. Presentamos unha listaxe dos
termos nos que hai vacilación, sendo utilizadas dúas ou máis formas na novela. Por último,
mencionamos a escaseza de marcas dialectais e outras características como o uso do sufixo
-eiro, a substantivación de infinitivos, o uso do dativo de solidariedade e as repeticións
lexicais en contextos próximos.

Comecei o segundo capítulo presentando a cuestión da necesidade da tradución


galego-portugués para, deseguida, realizar unha descrición tradutiva dalgunhas páxinas das
adaptacións en lingua portuguesa de Sempre en Galiza de Castelao (1944) e de Os Probes de
Deus de Amado Carballo (1925). Concluímos que nestas versións en portugués existe unha
tendencia a manterse o máis preto posíbel do texto fonte, concentrándose, polo tanto, no polo
da adecuación, en termos de Toury (1995), e atribuíndo ao texto-meta un cariz funcionalista.
Porén, ás veces houbo distanciamento desta matriz inicial: foron realizados deslocamentos
tradutivos relativos a a cuestións culturais, lexicais e estruturais, operacións que están máis
próximas do polo da aceptabilidade.

A miña tradución de Arredor de si deu prioridade á recepción na cultura meta, sen


considerar a lingua fonte elemento prioritario ou condicionante. En canto á cuestión da
distancia temporal do texto fonte, a lingua galega que foi usada no inicio do século XX obriga
o tradutor de hoxe a decidir se debe ou non manter un matiz arcaico na súa tradución. A nosa
escolla na tradución foi recorrer a unha lingua portuguesa da actualidade. Estas decisións
están vinculadas á conveniencia da tradución da narrativa galega, expresada por diversos

xvi
Resumo en galego

autores (Venâncio, Viale Moutinho, José Saramago), a fim de que os destinatarios acepten
mellor o texto final. Se a base da funcionalidade para realizar as versións en portugués de
Sempre en Galiza e Os Probes de Deus foi facer explícito o forte elo lingüístico-textual entre
a escrita en galego e a portuguesa, a nosa concepción alicerzouse na aceptabilidade e na
fluencia da lectura, realizando as operacións tradutivas necesarias para atinxir este obxectivo.

Nunha análise polisistémica da tradución galego-portugués, queda patente que, en gran


medida, as obras do sistema literario galego son, na actualidade, mediadas polo sistema
español: a literatura galega perde a súa identidade referencial e cultural e, en moitas ocasións,
o castelán serve de lingua ponte. Argumentamos que sería moi benéfica unha relación
intersistémica directa con calquera dos diferentes polisistemas lusófonos, sen a mediación
doutros, para a valoración mutua das culturas e para os receptores de lingua portuguesa. A
hipótese que defendemos, para a cal presentamos argumentos de diversos autores, é que, por
medio de traducións que privilexiasen a aceptabilidade, se podería suscitar e aumentar o
interese doutros sistemas literarios pola literatura galega, o cal, pola súa vez, podería servir
tamén para unha nova relectura galega.

En termos de Venuti (1995), a estratexia que adoptamos é relativamente


domesticadora: desexamos que a tradución sexa aceptada nun polisistema cunha tendencia á
domesticación no século XXI, mais ao mesmo tempo esperamos que se manteñan referencias
á procedencia dunha constelación lingüístico-cultural complexa do primeiro terzo do século
XX. Deparámonos con aspectos culturais de difícil tradución e con pasaxes que foi necesario
interpretar. Baixo este enfoque, facemos que unha obra literaria como Arredor de si poida ser
cuestionada desde un novo ángulo e favorecemos o xurdimento de lecturas modernas de
autores clásicos galegos, dado que a súa interpretación non será a mesma nos diferentes
territorios lusófonos ou na Galiza. Os procedementos explicitadores tiveron relación coas
notas do tradutor e coa intepretación de certas pasaxes, como, por exemplo, saber se hai unha
intervención do narrador ou do protagonista debido ás múltiples erratas tipográficas e às
ausencias de aspas. Os procedementos de normalización foron variados: puntuación,
construción oracional, léxico con diferente frecuencia de uso e repeticións en contextos
próximos. Acho que en ningún momento se altera a mensaxe literaria de Otero Pedrayo nin os
seus valores estilísticos, polo menos dunha forma relevante.

A tradución, segundo Snell-Hornby (1988), pode ser definida como unha interacción

xvii
Resumo en galego

entre dúas culturas. Este diálogo intercultural vese moi influído polos intereses comerciais e
as fronteiras políticas, esquecendo moitas veces que o produto non é o único importante. Os
suxeitos, as persoas que efectivamente reciben estes produtos culturais, deben ocupar unha
posición central. A ideoloxía é un dos aspectos capitais da cultura: por exemplo, as diferenzas
ideolóxico-ortográficas na Galiza non coinciden coas existentes en Portugal no momento
presente. O apelo á ética do tradutor ten grande influencia sobre a súa forma de intepretar e
traducir as obras dunha determinada literatura. Moitos autores afirman que, dunha forma ou
doutra, o tradutor aparece sempre por detrás do texto traducido. Neste diálogo entre culturas, a
nosa posición baséase na centralidade do receptor e da lectura que este realiza, ofrecendo un
texto meta tan espontáneo e fluído como nos foi posíbel.

Na miña proposta de tradución de Arredor de si non tiven en conta posíbeis


constrinximentos editoriais. Ao traducir, tiven sempre en mente os obxectivos literarios de
Otero Pedrayo e os receptores da cultura meta de lingua portuguesa. Contrastei solucións
tradutivas con Circling, a tradución ao inglés da novela, habendo algunhas diverxencias,
nomeadamente no uso das notas do tradutor. Unha importante diferenza reside en que a
tradución ao inglés se baseou na segunda edición de Arredor de si, de 1970. A tradutora,
Kathleen March, concentrouse na transmisión da mensaxe acerca da busca dunha identidade,
sen sentir a necesidade de producir unha tradución domesticadora.

Penso que moitas das dificultades do proceso de tradución son compartidas coas
hipotéticas dificultades de recepción do texto traducido: lingua e estilo do autor,
hiperreferencialidade, distancia cultural, distancia temporal, estrañeza lingüística e literaria.
Os destinatarios da tradución poderán sentir dificultades tamén en dous ámbitos: as diferenzas
entre sistemas literarios e o descoñecemento da sociedade galega por parte de lectores en
lingua portuguesa. Xa para o tradutor, outros atrancos engadidos foron os seguintes: a fase
pola que estaba a pasar a lingua e literatura galegas, a comprensión e interpretación de certas
pasaxes e os problemas derivados de diferentes edicións do texto orixinal.

Desde o inicio, determinei que a primeira edición, de 1930, sería tomada como texto
fonte para a tradución, o que resultou ser unha decisión transcendental dado que foron
practicadas moitas modificacións ao texto de Arredor de si nas edicións seguintes. Para unha
comprensión global da novela foron esenciais tamén outras obras narrativas de Otero Pedrayo
e ensaísticas, como a de Villares (2007), baseada na figura de Adrián Solovio, ou a de

xviii
Resumo en galego

Quintana e Valcárcel (1988), sobre o conxunto de vida, obra e pensamento oterianos, sen se
circunscribir á figura do Otero literato.

As ideas e experiencias que presento poderán ser de utilidade para outras posíbeis
traducións. Refírome especificamente ás traducións ao portugués que teñen como texto fonte
autotraducións que autores galegos realizan ao castelán. O texto meta producido através de
traducións mediadas será inevitabelmente unha visión parcial, polo que se poderán perder
moitos dos matices do orixinal galego.

No que respecta aos referentes culturais, optamos por tres solucións en función de
diversos factores: conservación (por exemplo, tostado, tipo de viño), tradución (p. ex.,
estadea > pt. “assombração”) ou unha posición intermedia (p. ex., praza d'Oriente > “Praça
de Oriente”), onde un elemento é traducido e o outro non. As referencias relixiosas tamén
foron abordadas con especial coidado: Otero Pedrayo tivo o catolicismo como fulcro da súa
ideoloxía e en Arredor de si o protagonista, Adrián Solovio, tamén busca a súa identidade por
medio da relixión e de figuras e pensadores do cristianismo.

As mencións dunha sociedade onde os vehículos a motor xa imperan son frecuentes ao


longo de toda a obra. No entanto, os usos lingüísticos do autor presentan dúbidas, como o seu
uso de coche, auto e automóvil con diferentes sentidos. Estas referencias están inseridas
nunha época histórica concreta que difire moito do presente. Para comprender mellor os
posíbeis sentidos e valores sociais da década de 1920 en Europa foi esencial o uso das
tecnoloxías da información e comunicación, entre moitas outras utilidades que tivo.

No capítulo terceiro abordei o estudo descritivo das cuestión máis relevantes da


tradución de Arredor de si: puntuación, división en parágrafos, antropónimos, topónimos,
formas de tratamento, fraseoloxía, falsos amigos, estranxeirismos, intertextualidade, notas do
tradutor, deslocamentos tradutivos, explicitacións, normalización estilística, correccións e
dificultades de interpretación.

En primeiro lugar, quero apuntar que as erratas contidas na primeira edición suscitaron
moitas e diferentes dúbidas que afectaron de diversas maneiras á tradución. A puntuación foi
unha delas, dado que é bastante precaria e leva a confusións. A estratexia seguida foi
simplemente a de interpretar o sentido do texto fonte e puntuar de acordo coas regras da
lingua meta. A maior parte dos casos levou á inclusión de sinais de puntuación ou á

xix
Resumo en galego

modificación dos sinais utilizados polo orixinal. Comas, aspas e raias foron os sinais máis
frecuentemente afectados.

A primeira edición non realiza unha división en parágrafos moderna. Moitas páxinas
presentan moles de texto corrido que tratan asuntos diversos sen calquera separación gráfica.
A segunda edición realizou unha división do texto en parágrafos que serviu de referencia para
todas as posteriores edicións galegas. Guieime polas divisións da edición de 1991, mais houbo
algunhas ocasións nas que discordei das mesmas.

En canto aos antropónimos, mantiven os nomes de personaxes utilizados polo autor,


unificando nalgúns casos aqueles para os cales se empregaban variantes: Xacobe / Xacobo,
Florinda / Frorinda / Frolinda. As primeiras formas foron as escollidas. No que respecta ás
personaxes históricas, optei polas designacións tradicionais en portugués como Carlos Magno
ou Filipe II. Outros nomes, grafados erradamente, foron simplemente corrixidos. Cos
topónimos, mais abundantes na novela, procedemos da mesma maneira, sempre que houbese
tradición no portugués europeo: Amberes (“Antuérpia”) ou Rhin (“Reno”).

Os nomes de rúas e vías, a maior parte dos cales pertencen á cidade de Madrid, deron
lugar a unha estratexia tradutiva intermedia: por exemplo, rúa de Peligros foi traducida como
“Rua de Peligros”. O primeiro termo é vertido ao portugués e o segundo, identificador do
topónimo, mantido como no orixinal. Otero Pedrayo galeguiza soamente o nome dunha rúa:
calle do Desengano, que foi traducida como “Rua do Desengaño”. Por outro lado, tamén
ocorren vacilacións na designación de vías , como o castelán calle de que convive con rúa de.

O uso do artigo definido con antropónimos e topónimos é totalmente asistemático.


Dado que non conseguimos interpretar ningún significado nestas vacilacións continuas,
optamos polo uso corrente en lingua portuguesa: por exemplo, Galiza sempre con artigo
definido feminino e os nomes de personaxes sempre sen artigo, se fan parte do texto do
narrador omnisciente. Nun único contexto, unha intervención dialogada dunha personaxe, é
utilizado na tradución “o Adrián”.

As formas de tratamento tamén foron traducidas consoante o contexto: don e doña


tiveron traducións diversas. Señorito e señorita son formas de tratamento que, debido aos
contextos, podían levar a ambigüidades, polo que preferín mantelas engadindo unha nota de
rodapé na primeira aparición de cada unha delas.

xx
Resumo en galego

Otero Pedrayo non utilizou proverbios en Arredor de si, mais recorreu en moitas
ocasións a unidades fraseolóxicas diversas, bastantes provenientes do castelán, as cales
galeguiza. Na tradución, tentei facer uso de expresións idiomáticas coa mesma frecuencia que
na novela, aínda que non sempre foi posíbel.

En canto aos falsos amigos, o seu número foi moi abundante, como era de esperar.
Reunínnos en cinco grupos: comúns, oterianos, de uso, casos especiais e gramaticais. Os
falsos amigos comúns son os máis coñecidos e esperábeis. Se o contexto é claro, as solucións
tradutivas son doadas, como no caso de verba (“palavra”). Os falsos amigos oterianos en
Arredor de si teñen relación coas escollas lexicais do autor: campía (“campo”) ou figurar
(“parecer”) son opcións diferenciais coas cales Otero tenta evitar un uso demasiado próximo
ao castelán. Algúns destes falsos amigos resultaron moi problemáticos, como noxo e noxento.
Os falsos amigos de uso adoitan ser palabras nas que o sentido xenérico é compartido mais a
súa frecuencia de uso ou certos matices levan a comprensións diferentes. Un caso típico é o de
fermoso, cuxo uso habitual en galego o aproxima máis a “bonito” ou “belo”, consoante o
contexto, quedando distante dun “formoso” poético. Os casos especiais teñen que ver con
falsos amigos que non se inclúen nas restantes categorías ou que se presentan en contextos
específicos. Por último, os falsos amigos gramaticais estiveron relacionados co infinitivo
conxugado, o futuro do subxuntivo, os pretéritos pluscuamperfectos, o pretérito perfecto
simple e a rexencia verbal.

O uso de estranxeirismos foi unha cuestión complexa: diversas linguas estranxeiras


(alemán, francés, inglés, italiano e latín), diversos significados asociados ás mesmas e
diversas tipografías, alén de erratas, vacilacións e incorreccións no orixinal. O estranxeirismo
é usado deliberadamente polo autor como elevador do estatuto social do galego, sentido que é
imposíbel de transmitir na tradución. Exceptúanse castelán e portugués, que son integrados na
lingua do autor, quer consciente quer inconscientemente. Os lusismos, nalgúns dos cales se
advertiron erros, foron escasos.

A intertextualidade foi entendida aquí como a presenza de textos doutras obras que son
utilizados na novela. Dos once casos, dez foron mantidos nas súas respectivas linguas, como
figuraban no orixinal, e soamente a citación dun versículo bíblico foi traducido ao portugués.

A problemática ao redor das notas do tradutor foi a de máis difícil solución, dende o

xxi
Resumo en galego

meu punto de vista. Isto foi debido ao carácter erudito da prosa oteriana en Arredor de si:
abundantes e continuas referencias culturais, algunhas de interese soamente para as persoas
que viviron na época histórica na que a novela veu a lume, outras que servem de chave para
unha comprensión profunda da mensaxe da novela e do pensamento do autor. Tendo como
base o criterio da aceptabilidade, en termos tradutolóxicos, e levando en conta as normas
(Toury, 1995) da hipotética cultura meta (Portugal), fixen uso do menor número posíbel de
notas: en rodapé nos casos de opacidade lingüística e idiosincrasia cultural (Donaire 1991), no
fin da novela nos casos de referência cultural moi indirecta, dificilmente descifrábel por parte
dun lector. En quince ocasións foi posíbel explicitar algunhas referencias culturais no corpo
do texto, como en de Cacheiras (“da aldeia de Cacheiras”). O número total de notas (13 en
rodapé e 41 finais) é indicio de que a solución adoptada foi a dunha vía intermedia entre a
escaseza absoluta e a profusión explicativa.

No que respecta aos deslocamentos tradutivos, estes relaciónanse cos sentidos dados á
lingua galega por Otero (valor do estranxeirismo e do diferencialismo), imposíbeis de
transmitir na tradución. Noutros casos é o propio sentido dalgunhas expresións, como Estado
Español, que, por medio dunha simple tradución literal, non transmite o mesmo valor
histórico-político para o lector en lingua portuguesa que para o lector galego. Tampouco foi
posíbel verter en portugués os dativos de solidariedade e de interese do galego, aínda que
estas omisións estivesen claramente compensadas polos contextos nos que aparecen.
Igualmente, recorrín á xeneralización, atenuación ou neutralización con alguns termos
culturais específicos que foron traducidos de forma máis xenérica e menos connotativa, tendo
unha importancia limitada no conxunto da novela.

As explicitacións e amplificacións realizadas líganse aos contextos ambiguos ou ás


necesidades da lingua portuguesa de realizar axustes lexicais (p. ex., muros entoxados, “muros
cheios de tojo”), estruturais (p. ex., Porque nascín fidalgo?, “Porque é que nasci fidalgo?”) ou
enfáticos (p. ex., onde sexa, “lá onde for”).

Os procedementos de normalización estilística tiveron relación coas repeticións


lexicais do autor que achei inxustificadas. Estas repeticións non serían sentidas como escollas
adecuadas no texto meta, o que me levou a evitalas tanto como me foi posíbel. Tamén tiven
que mudar unha estrutura oracional (suxeito posposto ao verbo principal) que Otero utiliza de
forma abundante sen lle engadir un valor especial.

xxii
Resumo en galego

As correccións que realizo están vinculadas aos estranxeirismos, como xa foi indicado,
e ás referencias culturais que Otero menciona confiando na súa memoria, sen as confirmar
posteriormente. Lamentabelmente, son erros que permanecen en todas as edicións galegas da
novela.

Por último, abordo a cuestión das interpretacións que, como tradutor, tiven que
realizar. Tiveron relación con erratas, expresións crípticas, termos ou contextos pouco claros
así como a sobreposición das voces do narrador, do protagonista e do autor. Por último,
xustifico a escolla do título dado á tradución: “Ao redor de si”.

xxiii
INTRODUÇÃO
Introdução

A origem da presente tese encontra-se no trabalho de fim de curso para a obtenção do título
correspondente à Licenciatura em Tradução e Interpretação pela Universidade de Vigo,
trabalho apresentado em setembro de 2000. Nesta primeira etapa, a minha tradução parcial de
Arredor de si quis ser um mero exercício linguístico inicial, um esforço por “compreender e
transmitir” que se limitou aos primeiros sete capítulos de um total de quinze de que consta
este livro. Nas conclusões deste trabalho, no qual identifico e comento muitos dos principais
elementos de interesse tradutivo, menciono que talvez fosse desejável realizar uma nova
revisão de uma óptica globalizadora da obra e da língua oterianas.

Continuei com a leitura e estudo de obras de Otero Pedrayo bem como da sua crítica
literária. Completei outros cinco capítulos da tradução, chegando até ao XII, para além de
rever e melhorar o já traduzido. Nove anos depois, em setembro de 2009, ultrapassadas
vicissitudes pessoais e profissionais, apresentei um projecto de tese, uma investigação para a
obtenção do Diploma de Estudos Avançados dentro do programa de doutoramento de
Tradução e Paratradução da Universidade de Vigo. Neste renovado trabalho já há uma análise
mais aprofundada e abrangente do texto-fonte e das características da língua do autor.

De 2000 até hoje, houve um natural desenvolvimento pessoal, não apenas humano
como também intelectual e profissional, pois tive a sorte de poder dedicar a maior parte dos
meus esforços ao ensino da língua portuguesa a adultos galegos motivados para a
aprendizagem. A minha visão da sociedade e das relações humanas também se tornou mais
complexa, pós-moderna, se a quisermos etiquetar. Estas informações podem parecer triviais,
mas do ponto de vista da investigação científica não o são: a ética é fundamental em todas as
actividades humanas e, mais especificamente, a sinceridade do tradutor ou tradutora é um
elemento basilar em todo o processo de tradução.

A maior carência dos estudos que realizei previamente a esta tese reside, a meu ver, na
análise da realidade social: foi preciso tempo para compreender que a tradução se pode
integrar de diversas maneiras na sociedade, como de facto acontece, e que, portanto, não é um
acontecimento isolado ou pura abstracção, não se limita ao preto no branco. Traduzir
representa, sobretudo, um acto de comunicação com múltiplas interpretações e significados
culturais.

A base desta tese é a efectiva prática tradutiva, da qual resulta um produto e o seu
comentário crítico. Na página seguinte apresento um esquema onde se pode observar

3
Introdução

graficamente a evolução do processo de tradução de Arredor de si ao longo do tempo. Este


esquema refere-se apenas à tradução e não às investigações sobre a mesma, embora ambas
estejam até certo ponto ligadas.

PROCESSO DE TRADUÇÃO DE ARREDOR DE SI AO LONGO DO TEMPO

Trabalho de fim de curso Projecto de tese Tese de doutoramento


(licenciatura) 2009 2015
2000

Tradução parcial de Tradução parcial de Tradução completa de


Arredor de si Arredor de si Arredor de si
(capítulos I - VII) (capítulos I - XII) (capítulos I - XV)
+ +
Revisão e correcção Revisão e correcção

Tradução de carácter Tradução de carácter


Tradução de carácter cultural
linguístico textual-autoral

Norma inicial touryana: Norma inicial touryana: Norma inicial touryana:


aceitabilidade aceitabilidade aceitabilidade

- Leitura de obras oterianas e - Leitura de obras oterianas e


crítica literária sobre o autor crítica literária sobre o autor
- Leituras e investigação - Leitura de autores
sobre a geração Nós e a época mencionados em Arredor de
histórica si
- Visita à Casa-Museu de - Leitura e consulta da
Otero Pedrayo tradução em inglês de
Arredor de si (tradutora:
Kathleen March)
- Visita à Casa-Museu de
Otero Pedrayo
- Consulta de outras traduções
literárias de galego para
português

Há uma singularidade que deve ser observada desde o início: este produto é uma
proposta de tradução não publicada comercialmente. Baseio-me nesta proposta pessoal para
realizar o estudo teórico posterior. Desejo deixar patente também que todo o estudo parte de

4
Introdução

um duplo atrevimento: em primeiro lugar, traduzo para uma variedade de português que não
é, à partida, 'a minha'. Utilizo propositadamente as aspas para pôr de relevo quão absurdo
pode resultar atribuir a posse de uma língua a um determinado colectivo. Mesmo sendo um
dado que deva ser tido em conta, com toda a humildade quero apontar que são abundantes e
facilmente reconhecíveis os exemplos de pessoas que supostamente não são 'donas' de uma
determinada língua mas que magistralmente a tomam 'emprestada'. Em segundo lugar, realizo
uma análise descritiva e crítica da minha própria tradução. Não oculto que, mesmo existindo
total transparência e a mais esforçada sinceridade, resulta inevitável que a análise não esteja
totalmente isenta de algum viés: o autor da tradução tentará justificar o seu trabalho com uma
argumentação tão robusta quanto lhe for possível e fará fincapé nos pontos que julgar mais
interessantes ou relevantes, excluindo outros que terá por menores.

Lo que el investigador estudia es lo que el profesional produce o ha producido; por eso es tan difícil ser
arte y parte, ser actor y espectador a un tiempo. Lo mismo que un actor o director encontraría
tremendamente difícil realizar una crítica de su propia actuación (tampoco se le pediría), así al traductor
le resultará casi imposible distanciarse de su trabajo como para estudiarlo con la perspectiva necesaria.
Eso sí, cuando reflexione sobre su propio trabajo tenderá a justificar, explicar y describir su producto,
incluso el proceso que lo generó, pero siempre habrá variables que se le escapen, y, desde luego, le
resultará muy difícil contextualizar; y en cualquier caso su corpus de trabajo sólo tendrá un criterio de
selección: el de haber sido realizado por el mismo traductor. (Rabadán e Merino, 2004: 18)

Aceitando tudo o que há de verdade nas linhas anteriores, também é fácil compreender
que a análise do próprio tradutor não deixa de ser mais uma análise, até privilegiada em certos
aspectos, tal e como qualquer tradução nunca é 'a tradução' definitiva mas apenas 'uma outra'
das muitas possíveis, descritíveis e discutíveis. Uma vez publicada a tradução, o que espero
que venha a concretizar-se num prazo razoável de tempo, outras análises poderão surgir e
serão bem-vindas, pois lançarão luz sobre aqueles pontos que me passaram despercebidos ou
que considerei secundários.

A presente tese está dividida em três capítulos que tratam três aspectos diferentes
relacionados com a tradução de Arredor de si: o autor e o seu romance, as considerações
teórico-práticas sobre a tradução de galego para português e, por último, a análise descritiva
da tradução.

No primeiro capítulo começo por apresentar a vida, a obra e o pensamento de Otero


Pedrayo. Todos estes aspectos são revistos duma óptica concreta, que é a do romance

5
Introdução

traduzido. Dado que Arredor de si foi intepretado por um sector da crítica como uma obra
com claros traços autobiográficos, destaco os pontos de encontro e distanciamento entre a
vida narrada de Adrián Solovio, o protagonista, e a do autor.

A seguir, caracterizo a língua literária oteriana de forma geral: as principais ideias que
tiveram influência sobre a sua língua, o diferencialismo linguístico, os supostos descuidos, a
falta de memoria e revisão, e a hipótese de estarmos perante a língua de uma geração.

Finalmente, analiso o romance Arredor de si comentando o seu estilo, as edições em


galego utilizadas (1930, 1970, 1985 e 1991) e a tradução para inglês de Kathleen March
(2007), e aspectos da língua empregada no romance: diferencialismo, castelhanismo,
vacilações, dialectalismo e outras características diversas.

No segundo capítulo teço as considerações teórico-práticas da tradução no sentido


galego-português. Em primeiro lugar, realizo uma breve análise das adaptações ou versões em
português de Sempre en Galiza de Castelao e Os Probes de Deus de Amado Carballo. Logo a
seguir, apresento a minha posição em relação à tradução de Arredor de si no eixo
adequação-aceitabilidade (Toury, 1995) e à questão da historicidade ou busca da arcaização da
tradução. Continuo com a reflexão acerca da conveniência ou não da tradução de obras
narrativas galegas para português.

Na seguinte secção apresento o meu ponto de vista da tradução de literatura galega à


luz da Teoria dos Polissistemas de Even-Zohar (1991): observo as relações estabelecidas entre
os polissistemas literários e culturais galego, espanhol e português relativamente à tradução de
acordo com as reflexões de diferentes autores e apresento a minha proposta para Arredor de
si.

A visão da tradução como processo comunicativo fundamental no intercâmbio cultural


é tratada no ponto seguinte. Aqui exponho algumas ideias acerca do fenómeno da explicitação
no respeitante às notas do tradutor e à interpretação de passagens obscuras. Também abordo a
normalização, entendida como procedimento de adequação aos modelos da língua-alvo.

Nos dois pontos seguintes apresento a visão da tradução como relação entre culturas
junto com os condicionamentos existentes para as transferências culturais e o grau de
intervenção do tradutor consoante a sua postura ideológica. No último ponto estabeleço a

6
Introdução

ligação entre aspectos teóricos e a prática real da tradução de Arredor de si.

No terceiro e último capítulo realizo a descrição da tradução para português, onde são
tratados os seguintes aspectos: pontuação, divisão do texto em parágrafos, antropónimos,
topónimos, formas de tratamento, fraseologia e locuções, falsos amigos, estrangeirismos,
intertextualidade, notas do tradutor, deslocamentos, explicitações e amplificações,
normalização estilística, correcções e dificuldades de interpretação.

Por último, desejo referir que, para melhor compreender as ideias, descrição e
argumentos que apresento, o mais conveniente seria realizar, em primeiro lugar, uma leitura
completa da proposta de tradução de Arredor de si e posteriormente passar à leitura da tese,
nomeadamente, do terceiro capítulo, onde se concentram as questões tradutivas e linguísticas
de maior interesse entre galego e português.

Por coerência com os trabalhos anteriores e com o texto da tradução, na presente tese
utilizo a ortografia da norma europeia do português anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

7
1. O AUTOR DE ARREDOR DE SI
O autor de Arredor de si

1.1. Vida, obra e pensamento de Otero Pedrayo

Não tenciono copiar ou parafrasear os conteúdos, análises e interpretações de Quintana


e Valcárcel (1988), visto que o subtítulo da sua obra coincide com o título desta breve parte
inicial da minha tese. Quero deixar claro que esta não é a parte mais original de todas, mas é
absolutamente necessária para deixar patentes aspectos que poderiam passar despercebidos
em uma primeira leitura de Arredor de si. Portanto, o meu objectivo agora é apresentar
sintetizadamente vida, obra e pensamento de Ramón Otero Pedrayo sob o prisma deste
romance, sem acrescentar novidades ou interpretações pessoais1.

Ramón Antonio Vicente Otero Pedrayo nasce a 5 de Março de 1888 em Ourense. É


filho de Enrique Otero Sotelo, médico, e Eladia Pedrayo Ansoar, ambos de linhagem fidalga.
Será filho único, passando infância e adolescência entre a cidade de Ourense e a casa na
aldeia de Trasalba. Ainda menino, inicia as suas primeiras leituras, algumas das quais terão
grande importância para o resto da sua vida, como o primeiro livro das Memorias de
Ultratumba de Chateaubriand, “todo adeprendido de memoria”2.

A 29 de Maio de 1904 falece o seu pai quando Otero contava apenas 16 anos.

Em 1905 inscreve-se no “Curso de Ampliación” da Universidade de Santiago de


Compostela. Fica impressionado com a capital galega, mas decepcionado com a sua
instituição educativa. Ainda neste ano, realiza uma viagem com um tio seu pelo Mar do Norte,
conhecendo Southampton, Brest, Hull, Rotterdam. Avista Saint-Malo, onde nasceu
Chateaubriand. Lê durante a viagem Les fleurs du mal de Baudelaire.

A partir de 1905 desloca-se para Madrid para estudar Direito, pressionado pela mãe, e
Filosofia e Letras (secção de História). Em 1906 morre em Trasalba a avó paterna, pelo que a
partir desta data viverá alternadamente entre a sua casa na Galiza e Madrid. Calcorreia a
capital espanhola e muitas outras cidades castelhanas, dentre as que destacam Toledo e Ávila.
Lê muito no Ateneu de Madrid e frequenta as tertúlias nos cafés da moda. Finaliza os seus
1 As principais fontes para a elaboração destas breves páginas biográficas foram Baliñas (1991), Fernández
Valdehorras (2001), Quintana e Valcárcel (1988) e Filgueira Valverde (1990).
2 Otero Pedrayo (1990): “Unha confesión autobiográfica” em X. F. Filgueira Valverde, Con Otero Pedrayo.
Vigo, Edicións do Patronato da Fundación Otero Pedrayo: p. 14. Segundo Baliñas (1991: 39), um exemplar
da tradução para castelhano destas Memorias, realizada por Tomás García Luna, foi doado por Otero à
Biblioteca da Casa-Museo de Rosalía de Castro. Na sua dedicatória lê-se: “primeiro gran libro que lin de
neno”.

11
O autor de Arredor de si

estudos em 1911.

Até 1917 experimentará uma vida de 'diletantismo', viajando arredor de si,


questionando o sentido vital de ter acumulado tanta cultura enquanto enfrenta a triste
realidade social galega.

Em 1911 reencontra-se em Ourense com os amigos, dentre os que destaca Vicente


Risco, e começa a participar da vida cultural galega. Em 1914 participa na fundação do
Ateneu de Ourense, com Risco e Cuevillas. No ano de 1917 produz-se uma importante
viragem, pois Otero, instigado por Lousada Diéguez, ingressa nas Irmandades da Fala,
iniciando também a sua actividade política. É o momento do seu definitivo apoio ao
galeguismo.

Em 1919 acede à função pública após aprovação, à terceira tentativa, do concurso


público à cátedra de História e Geografia no ensino secundário. Primeiro irá trabalhar para
Burgos, no ano seguinte para Santander e finalmente voltará para Ourense.

Em 1923 casa-se com María Josefa Bustamante Muñoz, Fita, que será a sua
companheira para toda a vida.

Desde o início dos anos 1920 colaborará intensamente em meios impressos galegos e
iniciará também a sua faceta de orador em actos públicos. Destaca-se o seu papel na revista
Nós dirigida por Vicente Risco.

Em 1924 ganha o prémio convocado pelo Seminario de Estudos Galegos com a novela
Pantelas, home libre. A partir desta altura decide dedicar-se de corpo e alma à criação
literária. Entre 1925 e 1936 viverá o seu período mais prolífico como escritor de ficção.
Primeiro publica algumas das suas obras narrativas curtas: Pantelas, home libre (1925), O
purgatorio de don Ramiro (1926), Escrito na néboa (1927). Em 1928 publica a sua trilogia
Os camiños da vida, que precede a Arredor de si, de 1930. Pouco depois viriam a novela
Vidas non paralelas (1930) e o livro de relatos Contos do camiño e da rúa (1932).

Em Julho de 1930, constitui-se a Asociação de Escritores Galegos. Otero Pedrayo, já


um escritor renomado, é eleito presidente.

Em 1931 tem lugar uma poderosa mudança política: após as eleições municipais de 12

12
O autor de Arredor de si

de Abril, cai a monarquia (Afonso XIII abandona Espanha). A 14 de Abril é proclamada a


Segunda República espanhola. Em Ourense, funda-se o Partido Nazonalista Repubricán de
Ourense, cujo presidente será Otero. Em Junho de 1931, Otero sai eleito deputado do
parlamento espanhol, mantendo o lugar obtido até Novembro de 1933.

A partir de 1934, Otero continua com a sua importante actividade política galeguista,
embora já sem a responsabilidade parlamentar. Prossegue também a sua criação literária com
narrativa e teatro, bem como ensaio e os seus artigos para jornais e revistas. Em Junho de
1936 é nomeado presidente do Seminario de Estudos Galegos.

Em meados de Julho de 1936 tem lugar o golpe de estado de um sector de militares


contra o governo democrático, a que se seguiria uma guerra civil que duraria até Abril de
1939. Otero vive os primeiros dias da sublevação militar entre Ourense e Trasalba. Muitos
colegas galeguistas são presos ou assassinados. Um ano depois, em Agosto de 1937, Otero é
afastado do seu posto de professor na função pública em um processo de depuración. Otero
continua com a sua criação literária, mas durante a ditadura franquista deve abandonar a
escrita em galego e recorrer ao castelhano.

Retoma a escrita em galego apenas em 1947, escrevendo para o jornal compostelano


La Noche. Em Setembro de 1948 recupera a sua cátedra, voltando a exercer como professor
em Ourense.

Em 1950 participa na fundação da editora Galaxia. Em Março de 1950, aos 62 anos,


depois de participar em concurso público, obtém a cátedra de Geografia da Universidade de
Santiago de Compostela, onde irá leccionar durante oito anos. Nesse mesmo ano, participa na
fundação da editora Galaxia. Em 1958 reforma-se e começa a se transformar já num símbolo
do galeguismo histórico. Em 1957 morre a sua mãe, Eladia, aos 98 anos.

A 8 de Abril de 1975 morre a sua esposa, Fita. A 10 de Abril de 1976 Otero Pedrayo
falece. Será enterrado vestido com o hábito carmelita e coberto pela bandeira galega. Algumas
horas antes de morrer, pede para ler as Memorias de Ultratumba de Chateaubriand.

1.1.1. Caracterização ideológica de Otero Pedrayo

Em primeiro lugar, tenho presente que Otero Pedrayo foi um dos grandes vultos da

13
O autor de Arredor de si

cultura galega de todos os tempos e, como tal, apresenta, qual diamante, diversas faces com
múltiplas cores e irisações. Baliñas (1991: 21) partilha desta opinião ao afirmar: “Persoas
coma Otero Pedrayo non se axeitan nunca ben ás clasificacións de taxidermistas por
especialidades ou por caracterizacións globalizadoras.” Também em Quintana e Valcárcel
(1988: 104) vemos que toda a pessoa é um faciendum: “Vexamos agora o proceso de
decantación ideolóxico-política de Otero en función dos acontecementos, pois as ideoloxías
non son algo impermeable ás realidades que os individuos vivencian.”

Tomem-se os 'rótulos' que apresento abaixo3, em forma de nuvem de palavras4, como


explicitação muito redutora das ideias que transparecem na evolução ideológica e vital do
autor e que podem valer como apresentação. Em muitas ocasiões, ver-se influído por opiniões
alheias antes de travar conhecimento de uma dada obra ou pessoa não é a melhor maneira de
proceder. Todavia, dada a distância cultural e temporal de Arredor de si com o presente do
século XXI e o seu relativo carácter críptico, julgo que o conhecimento das ideias deste autor
pode ajudar a realizar uma leitura mais esclarecedora:

E a seguir apresento mais alguns 'rótulos' com adjectivos que denotam o contrário
daquilo que Otero Pedrayo pensou e praticou em vida:

3 Baseados em Quintana e Valcárcel (1988).


4 Realizadas mediante a ferramenta online disponível em <http://worditout.com>.

14
O autor de Arredor de si

Do ponto de vista cultural, Otero não foi uma pessoa fechada às novidades da cultura
(Quintana 1988: 56), estando aberto a avaliar positivamente autores distantes das suas
posições ideológicas.

É importante referir também que a sua visão do mundo passava pela geografia, pelo
qual um certo olhar atento e descritivo está sempre presente nele. Politicamente, não se
definia como independentista, mas federalista ibérico. Por último, mostrava um grande apego
à terra e ao mundo rural por oposição ao citadino, moderno e industrializado, que sentia como
alheio.

1.1.2. Coincidências e descoincidências biográficas em Arredor de si

De todas as entrevistas oferecidas por Otero, resulta de grande interesse, no contexto


desta tese, uma das primeiras, publicada no jornal El Pueblo Gallego a 2 de Março5
(Carballeira 1930: 6-8), poucas semanas depois de que tivesse terminado Arredor de si, antes
da sua publicação. Nesta entrevista Otero menciona aspectos biográficos que coincidem com
muitas das referências que aparecem neste romance que, segundo afirma ao jornal, é “actual o
casi actual”: “estudiante un tanto giróvago”, professores da faculdade, krausismo, Madrid,
jardim de Allendesalazar, biblioteca do Ateneu de Madrid, amizades, cidades castelhanas
(Toledo, La Vega, Burgos, Ávila, Leão, Aranjuez, Escorial), Paris, Bruxelas, Bruges,
Antuérpia. Menciona personalidades como De Jussieu, Platão, Hegel e Bergson, Stendhal,
Proust, Rilke, Amadis de Gaula. Todas estas são referências que surgem em Arredor de si,
utilizadas pelo narrador ou pelo protagonista, Adrián Solovio, com quem foi identificado
claramente Otero Pedrayo (Casares 1981: 108). Alguns aspectos dos seus anos de diletante,
5 Disponível em <http://galiciana.bibliotecadegalicia.xunta.es/gl/publicaciones/numeros_por_mes.cmd?
idPublicacion =215&anyo=1930>. Consulta: 14/07/2015.

15
O autor de Arredor de si

anteriores a 1917, mostram-se claramente neste romance, havendo coincidencias evidentes.


Outras coincidências biográficas são a orfandade de pai, a presença de mãe e avó na casa da
aldeia, o facto óbvio de pertencer a uma família fidalga proprietária de terras, a francofilia, as
tertúlias de café em Madrid, o uso do galego com os camponeses, entre outros. No entanto,
muitos outros aspectos de Arredor de si mantêm grande distância com a sua biografia, entre
os que destacam a inclusão de certas personagens: o irmão do protagonista, Xacobe, um
materialista com comportamentos veladamente desaprovados no seio familiar; ou a amante de
Adrián Solovio durante parte da sua viagem europeia, Florinda, que sente vergonha de ser
galega e da própria Galiza.

Allegue Leira e Fernández Pérez-Sanjulián (2014) realizaram uma interessante leitura


que se diferencia da tradicional interpretação biográfico-geracional deste romance como se
tem feito maioritariamente: vários aspectos de Arredor de si não fazem parte da biografia de
Otero nem podem fazer parte da vida dos autores da geração Nós. Quanto a Otero Pedrayo,
este não visitou as cidades da Alemanha mencionadas: Colónia, Berlim, Potsdam (ibidem:
15). Posso acrescentar que Adrián Solovio conhece Santiago de Compostela pela primeira vez
ao regressar da sua viagem pela Europa, o que também não encaixa na biografia oteriana.

Allegue Leira e Fernández Pérez-Sanjulián, sem excluir outras interpretações já


conhecidas, apresentam muito justificadamente uma intenção didáctica de Arredor de si pois
o romance “aspiraba a sinalar o camiño que a mocidade debía seguir na súa formación e na
relación con outras culturas europeas” (ibidem: 14). Otero publica o seu romance “actual o
casi actual” quando já contava 42 anos, sendo possível que este vá propositadamente
endereçado a leitores mais jovens, na sua fase de formação, que parecem não sentir a língua
galega e o galeguismo como identidade própria. Nas páginas de El Pueblo Gallego durante os
meses anteriores a 1930 escrevem estes jovens com ideias “opostas ás que defendía Otero e
representaba Solovio” (ibidem: 16).

Também julgo importante considerar que entre 1914 e 1918 teve lugar a Primeira
Guerra Mundial, o que tornaria quase impossível que Otero ou alguma outra pessoa da sua
geração pudessem viajar pela Europa durante esses anos. Por outro lado, as menções que são
feitas em Arredor de si a táxis, coches, autos e automóviles fazem pensar já num certo nível
de circulação de veículos motorizados pelas estradas europeias, o que não seria real até depois
da guerra com a chegada da euforia económica dos anos 1920, anterior ao crash de 1929.

16
O autor de Arredor de si

1.2. A língua de Otero Pedrayo

1.2.1. Da ideia à língua

Otero Pedrayo teve uma incorporação relativamente tardia ao galeguismo. Nascido em


Ourense em 1888, realizou os seus estudos universitários em Madrid entre 1905 e 1911, onde
foi também participante activo do Ateneu de Madrid, tendo podido ler ali todo o tipo de
literaturas em castelhano e noutras línguas. Otero, já idoso, diria o seguinte numa entrevista a
Víctor Fernández Freixanes:

Moitos de nós andabamos en Madrid coma sin brúxola, coma o Salovio [sic] da novela. Podo
falar do meu caso: marchéi estudar á capital de España e metínme nos libros e na miña carreira como
calquer outro rapaz do meu tempo. Lía filosofía, teoloxía, ética, estudéi os crásicos españoles da Edade
Media e do Século de Ouro, farteime de leituras francesas e alemás, ateigueime de doutrinas, correntes
intelectuais moi de moda na Europa daquelas datas... en fin: fíxenme universal. [...] Os meus anos em
Madrid e en xeral os meus anos fora de Galicia foron naquel tempo unha búsqueda sen acougo. Todo
me gostaba, estaba moi ben, pero non conquería a identificación que arelaba. ¿Quén era eu? [...] ¡Cánto
nos costóu descobrir a nosa Terra dando voltas polo universo e os libros! De cando en vez voltaba cheo
de preocupacións dilectantes á miña terra de Trasalba e ¿qué atopaba alí? Unha Galicia campesiña e
asoballada, xentes iñorantes, esquencidas de todos no seu curruncho, namentras eu andaba detrás das
verdades dos libros, e aquelo queimábame no peito cada vez mais. (Fernández Freixanes 1976: 22-23)

Casares resume muito bem o que poderia estar a passar pela cabeça de Otero Pedrayo
neste momento:

De pronto, a cultura acumulada durante tantos anos carecía de sentido, ou polo menos Otero
non llo atopaba. O seu individualismo altivo e o seu sentemento antisocial batían contra a realidade
duns homes que perto del, á porta mesmo da sua casa de Trasalba, vivían no desamparo máis absoluto.
Sentirse solidario con eles ou polo contrario seguir laborando por unha salvación personal, era a
elección que se lle ofrecía a aquel home de trinta anos, escéptico e distante, orgulloso e culto, pero
canso xa de andar arredor de si á percura de si mesmo sin atoparse endexamáis. (Casares 1981: 60)

O seu regresso a Ourense em Julho de 1911 traria também a autêntica descoberta da


realidade galega, por contraste com tudo o que não era tal. Reencontrar-se-ia com Vicente
Risco, Florentino López Cuevillas e Primitivo R. Sanjurjo. Irão frequentar e envolver-se
activamente nas actividades do ateneu ourensano e participar nas tertúlias do Café Royalti.
Em Junho de 1917 iniciar-se-á a publicação da revista La Centuria, dirigida por Risco e para a

17
O autor de Arredor de si

qual Otero Pedrayo realizará apenas dois contributos.

Mas o momento importante na viragem de rumo inicial de Otero Pedrayo tem lugar
com a sua entrada, junto com a de outros colegas, no fim do ano de 1917, para as Irmandades
da Fala, organização galeguista que tinha por objectivo a defesa da língua galega (Quintana e
Valcárcel 1988: 46). Antón Lousada Diéguez foi o principal encorajador para que Otero
Pedrayo se somasse à causa da língua e do galeguismo. O próprio Otero confessa isto mais
tarde ao seu entrevistador, Manuel Outeiriño:

Por aquela época non se compuña nada. A literatura galega parecía unha literatura morta. Pero
pronto empezou o rexurdimento con Vicente Risco, Losada Diéguez, Vilar Ponte, Castelao, e eu tamén.
Eu era o mais novo deles, tiña trinta e un anos. Eu non escribía nada ata os trinta e tantos anos. Ademáis
do sentimento que eu tiña, entrei no galeguismo por influencia de Losada Diéguez, que era meu amigo.
El era da Estrada, pero tiña terras no Carballiño. Era un home moi culto pero, sobre todo, un gran
descubridor de vontades. Sabía encauzar as actitudes dos rapaces moi ben. Un gran galego, carlista e
moi católico. Eu coñecino en Madrid e un día díxome “¡pero home vostede que estudia tanto, porque
non traballa con nós!” E comencei a escribir centos de artículos. (Outeiriño apud Quintana e Valcárcel
1988: 20).

Numa outra entrevista posterior também faz referência à importância deste membro da
Geração Nós: “[...] até que un día coñecín a Antón Lousada Diéguez. A el lle debo eu os meus
primeiros achádegos, el foi quen vencéu teimudamente o meu escepticismo, o meu
dilectantismo de leitor de Chateaubriand, a filosofía moderna e a Historia de España, a miña
casca de home culto.” (Fernández Freixanes 1976: 23).

Estamos a falar, portanto, de um jovem Otero Pedrayo de trinta e poucos anos, muito
culto e viajado, que começa a abeirar-se de uma ideologia pró-galeguista também em estado
inicial e que começa a dar grande importância à língua considerada própria, o galego, face à
língua considerada alheia, o castelhano.

Segundo Otero Pedrayo, a língua é o elemento central definidor da etnicidade da


Galiza (Quintana e Valcárcel 1988: 96), mas, no que diz respeito à língua literária, como será
o modelo de língua de que o autor fará uso? A resposta a esta pergunta foi dada por Lousada
Diéguez, que afirma o seguinte: “a literatura cancioneira vai sempre camiño adiante da prosa,
[...] a fala galega dempois da súa vida poética e do lume cultural do século XII debería ter
unha axeitada prosa enxebre. [...] O conto é qu-hoxe síntese un valeiro qu-é perciso encher”

18
O autor de Arredor de si

(Lousada Diéguez 1929: 2).

Como muitos outros, o que Otero Pedrayo viu foi esse vazio, essa carência de prosa
em língua galega. Era um espaço por preencher, um género literário ainda por descobrir e por
dignificar em galego. O galego era língua popular, dos camponeses, e também língua poética,
dos trovadores e poetas do Rexurdimento. Faltava ocupar terrenos mais triviais, embora de
grande importância: narrativa, ensaio, jornalismo e muitos outros âmbitos.

Otero dispunha da referência dos poetas medievais e dos autores do Rexurdimento


galego do século XIX, para além da língua oral que tinha chegado aos seus ouvidos na Galiza
da altura e dos textos mais recentes dos seus coevos, mas era urgente uma actualização do
modelo linguístico num prazo de tempo breve, construir uma língua moderna a partir de quase
nada.

No artigo Encol da prosa galega, Lousada Diéguez (1929: 2-8) oferecia uma tradução
de um artigo de crítica filosófica, tema completamente alheio à temática galega típica. Mas
antes disso, apresentava a problemática da prosa galega e propunha algumas soluções às
carências existentes:

1. Face à cativeza do vocabulário, propõe o uso de metáforas, isto é, o recurso ao uso


figurado. Dá exemplos como inzar, terreo, amorear.
2. Face às carências da linguagem técnica, propõe o recurso às línguas clássicas.
3. Propõe o estudo da fala dos camponeses e da gramática galega.
4. Propõe o estudo do vocabulário medieval.
5. Propõe a realização de traduções de temática diversa não relativas à cultura galega.

Estas propostas encontrarão eco em Otero Pedrayo, quem tinha muito claro que o
galego devia ser uma língua não diglóssica, ausente de subserviências a outras línguas e em
especial ao castelhano. Por esse motivo era importante ocupar espaços vistos como pouco
naturais ou habituais para o galego e até antecipar-se ao competidor, o castelhano, oferecendo
novidades, de que foi exemplo a sua tradução de algumas páginas do Ulysses de James Joyce.
Falando da revista Nós, Otero Pedrayo diz o seguinte:

Había que facer un idioma de cultura. Compría rexeitar aquela imaxe da iñorancia que eu
lembraba de neno e que os paisáns, no íntimo, tiñan moi presente sempre: por eso tentaban de falar o
castelán co señorito, co comerciante da vila ou co funcionario da Facenda. (Fernández Freixanes 1976:

19
O autor de Arredor de si

34)

Existe uma clara intenção normalizadora do galego em âmbitos intelectuais


inexplorados e uma intenção universalizadora ou europeísta que já se nota em Arredor de si
para além de noutros textos oterianos. O galego podia servir para tratar quaisquer assuntos e
por isso as temáticas universais conjugam-se com as galegas em Otero Pedrayo.

Ciente da dependência social em todos os níveis com respeito ao castelhano, Otero


Pedrayo ensaia com uma língua que terá como norte o diferencialismo, o que se irá manifestar
de forma clara nas suas escolhas linguísticas.

O galego é unha lingua, non un dialecto; pero, sobre todo, non é unha variante do español, nin
sequera unha lingua demasiado próxima a el, pois son tantas as diferencias que se un fala o galego
enxebre, como ten que ser, as dificultades de comprensión por parte dun español-falante son enormes.
Esta era a idea. (Álvarez 1988: 13-14)

Segundo Salgado e Monteagudo, no contexto da evolução da estandardização do


galego, a língua literária de Otero Pedrayo e nomeadamente a de Arredor de si poderiam ser
caracterizadas como pertencentes à fase do puristic Galician ou galego enxebrizante (1991:
207 e 210-212).

1.2.2. O diferencialismo linguístico

O diferencialismo linguístico, como veremos, é de suma importância para


compreender os textos oterianos e realizar uma tradução apropriada. Segundo Álvarez (1988:
15), “entre distintas variantes léxicas [Otero Pedrayo] prefire a máis distante do español,
mesmo pasando por alto diferencias de significado ou de posibilidades de uso que haxa entre
unha e outra”. Apresento a seguir algumas destas escolhas diferencialistas seleccionadas por
Álvarez:

Forma castelhana Forma escolhida por Otero Pedrayo


buscar procurar
cerca preto, perto
falta falla
hasta hastra, deica
libre ceibe

20
O autor de Arredor de si

Forma castelhana Forma escolhida por Otero Pedrayo


sobre (prep.) encol de (locução prep.)
subir rubir
ver, mirar ollar

No entanto, apesar deste afã por evitar o castelhano, não deixa de haver incoerências
na prosa oteriana. Por exemplo, ver, mirar e ollar convivem nos seus textos, ora usados como
verbos, ora sob a forma de infinitivos substantivados, ora por meio dos correspondentes
substantivos (ollar, ollada, mirar, mirada). Em Arredor de si, umas e outras são utilizadas em
contextos muito próximos: ollaba (p. 34), miraba (p. 34); os ollares (p. 41), a ollada (p. 43);
o mirar tan agudo (p. 97), unha soila mirada (p. 99); ollar, ollaba, amorosas miradas (p.
100), ollar, ollando (p. 117). Parece haver uma clara preferência por ollar, mas em contexto
coloquial, nas falas de um personagem, é inserido o verbo mirar: “Mira home, xa ch'imos
vellos” (p. 33), “Mire ben doña María” (p. 67). Esta escolha mostra o conhecimento do uso
linguística que se faz em sociedade e esclarece a impressão tida do recurso ao verbo ollar
como culto e diferencial.

As implicações para a realização de uma tradução são muitas: descobrir, a pouco e


pouco, frequências de uso e escolhas conscientes do autor; considerar possíveis erros,
esquecimentos, descuidos do autor; ter conhecimentos do castelhano e das interacções entre
castelhano e galego na Galiza; saber quando o autor tenciona marcar estilisticamente ou não
uma palavra, expressão ou trecho; considerar a hipótese de gralhas na composição editorial.
Encontro esta minha opinião e experiência tradutológica plenamente compreendida em
Venâncio (2007: 40), que afirma o seguinte:

Quem se exprime em galego, sobretudo quem escreve, traz consigo, por circunstâncias
conhecidas [dos galegos, não dos portugueses], um tradutor incorporado. É uma segunda voz [o
castelhano] que, em surdina, vai guiando, por atracção ou repulsa, o concreto desempenho. Só que o
utente pode, por consciente decisão, tomar o comando do processo e marcar uma distância frente a essa
modulação paralela, ame-a ele ou deteste-a. Esquecer isto pode ser, para um tradutor, sobretudo se
português, simplesmente fatal.
[...]
O tradutor português do galego tem de ter presente, por sistema, essa opção diferencialista
galega, voluntária ou não, proveniente da comunidade ou do indivíduo. (Venâncio 2007: 40)

Em opinião de Venâncio, o que acontecia com Otero Pedrayo nas décadas de 1920 e

21
O autor de Arredor de si

1930 continua, tantas décadas depois, a passar-se com os escritores galegos do século XXI,
mesmo tendo uma norma linguística mais definida, cuja carência era problemática na altura. A
esquizofrenia da língua e o diferencialismo parecem estar muito incutidos naquelas pessoas
que, no passado ou no presente, cultivam o galego e se preocupam por esta língua. Veremos
os casos concretos mais importantes relacionados com o diferencialismo a respeito do
castelhano em Arredor de si na análise da língua do autor neste romance.

González, para explicar a impressão de exuberância verbal que produz a leitura de


textos oterianos, afirma o seguinte: “Otero foxe conscientemente no uso que fai da lingua
galega das palabras que son comúns ó castelán.” (González 1990: 345). A seguir assinala
brevemente os recursos utilizados por Otero Pedrayo, que aqui resumo:
1. Criação de palavras derivadas inexistentes na língua comum.
2. Diferencialismo em palavras comuns a galego e castelhano:
2.1. Hipergaleguismo;
2.2. Vulgarismos;
2.3. Sufixação diferencial.
3. Criação semântica por metáfora (“forzamento do contido semántico”).
4. Arcaísmos léxicos.
5. Alteração de categoria gramatical (adjectivo utilizado como advérbio).
6. Apossínclise ou intercalação do advérbio non entre pronome átono e verbo.

A seguir veremos alguns exemplos do diferencialismo recolhidos por outros estudiosos


que organizo e comento brevemente.

1.2.2.1. Vulgarismos e criação de novas palavras por analogia com vulgarismos

Otero Pedrayo recorre à língua da rua, fazendo uso de vulgarismos para se distanciar
do castelhano. Vejamos alguns exemplos dados por Álvarez (1988: 15-16) e González (1990:
346):

Forma escolhida por Otero Pedrayo Fenómeno observado


lus, des, vos sesseio implosivo
voce, cabalgare paragoge
millor, pior fechamento vocálico
a yauga epéntese

22
O autor de Arredor de si

Forma escolhida por Otero Pedrayo Fenómeno observado


tod'o día contracção; sinalefa
non-o, non'as quere alveolaridade

Em opinião de Álvarez (1988: 16), certos vulgarismos da língua popular foram


usados como modelos para inventar ou alterar outras palavras cultas, “a maior parte delas
nunca oídas nin baixo esa forma nin baixo outra de boca do pobo”, mas cuja forma era
diferente do castelhano:

Castelhano Galego Fenómeno


igualar, igoalar, abertura vocálica
linguas, língoas,
impresión, impreseón,
introspección, introspeceón,
esquemático, esquemáteco,
anatómica anatómeca
observaciones, ouservaciós, vocalização
objetividad ouxetividade
alegría, legría, indefrente, aférese, síncope
indiferente, istante, retos
instante, réditos
juventud, xuventude, ---
mocedad mocidade
realidades, realidás, Madrí apócope
Madrid

No últimos dois casos, Otero Pedrayo recorre a mocidade no singular e a realidás no


plural, formas morfologicamente mais distantes ou, simplesmente, diferentes de mocedad e
realidades do castelhano. Não são escolhas casuais.

Sem sombra de dúvida, Otero Pedrayo utiliza o vulgarismo como marca de


galeguidade. Porém, julgo que nem todos os exemplos anteriores pertencem à língua culta.
Seria mais exacto talvez falar na “[a]bundancia de vocábulos técnicos e científicos tal como
se pronuncian na fala máis vulgar” (Alonso 2004: 17) ou baseando-se nas pronúncias de
outras palavras da língua popular. Outros exemplos dados por Alonso Montero são:

23
O autor de Arredor de si

Castelhano Galego Fenómeno


gramática, gramáteca, abertura vocálica
Física, Físeca,
Metafísica, Metafíseca,
Matemáticas, Matemátecas,
história, hestórea,
románico, románeco,
gótico, cósmico góteco, cósmeco
ciencia cencia síncope

1.2.2.2. Manipulação e criação morfológica

Para evitar ou se opor ao castelhano “Otero mesmo chega a forza-la lingua” (Álvarez
1988: 17). Estas são algumas das manipulações, invenções e hipercorrecções de Otero
Pedrayo com palavras da língua comum indicadas por Álvarez (1988) e González (1990):

Formas inventadas Analogia estabelecida

uso de ista, isa, aquila analogia com iste, ise, aquil, em oposição ao cast. esta,
esa, aquella
pronome quens, plural inventado analogia com ben - bens, em oposição ao cast. bien -
de quen bienes
determinante aqués, plural de analogia com animal - animás, papel - papés, em
aquel oposição ao cast. aquel - aquellos
curtar, curtante analogia com curto, em oposição ao cast. corto, cortar e
cortante
dificuldoso, sadisfautoreo analogia com a sonorização, por exemplo dificuldade,
em oposição ao cast. dificultad e dificultoso
entrana, montana, sonadas analogia com a presença de -n- por -ñ-, como no par ga.
cana - cast. caña
orgaizar, escea, lumioso, analogia com a queda do -n-, como no par ga. lua - cast.
emozoado, ensoado luna
botela, orgulo, cochila analogia com a presença de -l- por -ll-, como no par ga.
cabalo - cast. caballo
groriosa, subrime, bibrioteca, analogia com o rotacismo, como no par ga. branco -
craramente, crasificar cast. blanco

24
O autor de Arredor de si

Formas inventadas Analogia estabelecida

hourizonte analogia com a ditongação, como no par ga. ouro - cast.


oro
ourental [oriental] analogia com a regra anterior e com a monotongação,
como no par ga. cen - cast. cien
determiñada, detremiñada analogia com a presença de -ñ- por -n-, como no par ga.
viño - cast. vino
primaveira, carreteira analogia com a ditongação, como no par ga. carpinteiro
- cast. carpintero
arquiteito, escéitico, eisame, analogia com a vocalização em -i-, em oposição ao cast.
eisproradores, por eisempro e a arquitecto ou examen, por exemplo
sua abreviatura p. eis.
resiñaceón, iñorada, diño analogia com a evolução lat. -gn- > ga. -ñ-, em
oposição ao cast. digno, por exemplo
armoñoso analogia com a evolução lat. -nio, -nia > ga. -ño, -ña,
em oposição ao cast. armonioso

Algumas consequências da aplicação destas regras são palavras como: carpinteiría,


Azabacheiría, Prateirías (manutenção de ditongo em um sufixo -eiría inexistente), conteñer,
deveñir e porveñir (a alteração de formas castelhanas esquecendo as formas galegas
equivalentes conter, devir e porvir).

Por outro lado, a criação de novas palavras por meio de alterações morfológicas é
muito frequente em Otero Pedrayo. Apresentamos aqui a recolha realizada por Álvarez (1988:
19-23) e González (1990: 346):

Palavra original Palavra derivada criada Castelhano


fado, vida fadal, fadalidade, vidal, vidalidade fatal, fatalidad, vital, vitalidad
lentura lenturar (verbo) humedecer, rociar
crucifixo crucifixar, crucifixado (verbo) crucificar, crucificado
aplauso aplausar (verbo) aplaudir
imprenta imprentar (verbo) imprimir
ceibe, ceibar ceibeza, ceibadora libertad, liberadora
chan chanura llanura

25
O autor de Arredor de si

Palavra original Palavra derivada criada Castelhano


azas azadas (que dispõe de asas) aladas
cántiga cantigadoras cantantes
Lois loisino (adjectivo) luisino
cast. -(d)or > triunfadoiras, tentadoira, inmorredoiro, triunfadora, tentadora, inmortal,
ga. -(d)oiro vibradoiro, lembradoiras, vividoiras, vibrante, recordatorias, vividora,
prioiro prior
sufixos -eza e palideza, timideza (preferência pelo palidez, timidez
-ez sufixo -eza)

Nos exemplos anteriores, fadal e outras palavras similares podem dever-se


simplesmente a uma sonorização da consoante /t/, procedimento frequente em Otero Pedrayo,
talvez por diferencialismo. Vemos também como Otero Pedrayo utiliza o sufixo -doiro de
forma generalizada a diversas palavras que podem ter ou não em castelhano o sufixo -dor. A
modo de exemplo, em Arredor de si, ainda encontramos apicarada (p. 139, de pícara) e
orcelado / orceladas (p. 61 e 139 respectivamente, de orcela6).

González (1990: 345) também refere alguns casos de criação de palavras derivadas
inexistentes na língua comum:

Neologismos oterianos Origem ou explicação


desamorados baseado em enamorados com troca do prefixo en- por des-
(mans) angaceiras adjectivo que remete em galego para angazo (pt. “ancinho”),
aplicado às mãos de uma personagem que conseguem apanhar
tudo o que encontram
(panos) sedáns, (ar) oután adjectivos que significam “de seda” e “altaneiro” (aplicado ao
temperamento de uma pessoa)
(aire) abrileiro adjectivo que significa “de Abril”

Uma marca de estilo oteriana é o seu gosto por adjectivos forçados ou inventados em
vez de utilizar uma estrutura mais corriqueira como preposição de + substantivo (de angazo,
de seda, de Abril). González também indica que sedán é um “adxectivo que probablemente

6 Tipo de líquen, em português “urzela”.

26
O autor de Arredor de si

Otero aprendeu nas súas lecturas de Rosalía [de Castro]7”.

Salgado (2004: 694) oferece dois exemplos de criações neológicas oterianas formadas
a partir de estrangeirismos: arioladas (que, segundo informa, provém do italianismo ariolar
“adivinhar” ou ariolo “adivinho”8) e sapiños (a partir do galicismo sapin “abeto”).

No caso de angaceiras vemos uma criação por meio do sufixo -eiras e também o
acréscimo de um novo significado figurado, sendo este o recurso de que nos iremos ocupar no
seguinte ponto.

González (1990: 347) também indica um recurso que consiste na alteração da


categoria gramatical de uma palavra, em concreto de um adjectivo, que passa a funcionar
como advérbio, embora mantendo a concordância com o sujeito da frase. Um exemplo é o que
se indica a seguir: Tivo medo a chegar tardeiro. Otero consegue assim distanciar-se de um
simples tarde que seria coincidente com o castelhano.

1.2.2.3. Criação semântica por metáfora

A metáfora ou uso figurado é um dos procedimentos para o enriquecimento da língua


galega propostos por Lousada Diéguez, como já vimos. A seguir refiro alguns exemplos de
neologismos semânticos de Otero Pedrayo indicados por Álvarez (1988: 20) ou González
(1990: 346-347) e que comento brevemente:

Neologismos Origem ou explicação


oterianos
mundo de Possível influência do português9. Em Arredor de si na p. 59.
alem-coba
pranouto Por analogia com o par ga. outo - cast. alto; aplicada ao cast. planalto.
Também foi utilizada em Arredor de si, p. 13. No entanto, figura igualmente
a forma pranaltos (p. 130).

7 Rosalía de Castro utiliza o adjectivo sedán, pelo menos, no seu famoso poema “O Gaiteiro” em Cantares
Gallegos (1863). Porém, pano sedán é expressão comum usada para se referir a um tipo de pano fino
empregado nos trajes de festa galegos.
8 Em minha opinião, trata-se do latinismo hariŏlus que em português deu haríolo e em castelhano aríolo.
9 Esta é uma referência à obra de Chateaubriand que tem por título em português Memórias de além-túmulo
(título original em francês: Mémoires d'Outre-Tombe). Otero Pedrayo parece introduzir o termo além do
português, embora sem o acentuar.

27
O autor de Arredor de si

Neologismos Origem ou explicação


oterianos
fato Tem duas acepções: 1. “grupo de animais”; 2. em sentido figurado, “grupo
de outra classe”. Ex. fato de piñeiros.
Otero Pedrayo utiliza este termo em Arredor de si: fatos de costureiriñas (p.
45), fatos de mozos (p. 119). No entanto, noutro contexto utiliza grupo:
“Pasaban grupos chamativos de mulleres.” (p. 30).
verba, parola Utilizada para evitar o cast. palabra.
Em Arredor de si vemos verba utilizada nas páginas 12, 23, 28, 35, 37, 85 e
101. Porém, também vemos palabra nas páginas 14, 24, 91, 110 e 112.
Não observámos o uso de parola em Arredor de si, que, curiosamente, é
muito utilizada por Lousada Diéguez (1929).
inzar Considerando uma primeira acepção como “encher, povoar, invadir
rapidamente” também é utilizada com o sentido de “estender-se,
multiplicar-se”. Inzar também foi salientado como exemplo de uso
metafórico por Lousada Diéguez (1929).
Usada em Arredor de si nas páginas 15, 89 e 11610.
cerne Primariamente significa “parte central do lenho das árvores”. Numa segunda
acepção, figurada, é “a parte íntima ou essencial de alguma coisa”11.
A palavra cerne é utilizada às páginas 8, 13, 81, 107, 108 e 118 de Arredor
de si.
debullar Numa primeira acepção é “extrair os grãos de uma planta”. Como bem
indica Álvarez, Otero Pedrayo confere a debullar uma acepção nova,
podendo significar, consoante o contexto, “aproveitar, tirar proveito,
consumir, utilizar”, se bem que é clara e curiosa a relação que estabelece
entre debullar e a leitura de livros pelos contextos em que aparece, ao menos
em Arredor de si:
- “debullando os primeiros libros” (p. 31)
- “non poder debullar todol'os libros novos” (p. 47)
- “Maino debullar na bibrioteca de Santa Genoveva” (p. 107)
10 Na página 27, inzar é utilizado com o sentido de “elevar, aumentar (o volume de um som)”: “[...] ensayaba
scherzos e risadas, fugas e tonos, baixiño, inzandoos apenas [...]”.
11 Álvarez destaca esta acepção figurada de cerne em galego, uso que em português não é especialmente

salientável por estar incorporado na língua culta de forma natural, sinónima de “âmago”.

28
O autor de Arredor de si

Neologismos Origem ou explicação


oterianos
- “Adrián debulla fortes viandas” (p. 111)
- “Debullaba George Sand” (p. 116)
- “vinte días, longos, ditosos, debullados, coma froitos” (p. 117).
esculcar Tem um primeiro significado de “vigiar”12. Associado a este significado, de
forma metafórica, é utilizado por Otero Pedrayo como “investigar, inquirir”
em Arredor de si:
- “vai esculcar no seu arquivo” (p. 19-20)
- “Esculcaba con finxida severidade a faciana do neno” (p. 37)
- “O amor un motivo pra viaxes, esculcas, leuturas” (p. 50)
- “esculcar a verdade” (p. 118)
escolmar Tem o significado primário de “privar do colmo”. Também é utilizado na
actualidade em galego como “escolher uma ou várias coisas de um conjunto;
seleccionar”. Otero Pedrayo utiliza esta palavra com os significados de “dar
preferência a” e “optar (entre duas ou mais coisas)”:
- “Escolmou por turreiro o grande curro de palla”
- “escolmou o calar o seu desexo”
Em Arredor de si aparecem escolmadas (p. 33), escolmado (p. 45) mas
também escolleitas (p. 61 e 114), escolleitos (p. 69) e escoller (p. 70).

1.2.2.4. Arcaísmos e lusismos

Como já foi dito, Lousada Diéguez propunha o estudo e a utilização da língua


medieval para a recuperação da prosa galega. É muito provável, pelas ricas leituras de Otero
Pedrayo, que este tivesse tido contacto com textos medievais. No entanto, como bem indica
Álvarez, não podemos saber se certas palavras utilizadas tiveram a sua origem nestas leituras
ou em outras em língua portuguesa. O que sim parece verdade é que mais uma vez a sua
neologia é aplicada “con independencia total de se esas formas en concreto existiron ou non
nalgunha época dentro do galego” (Álvarez, 1988: 21).

12 Emportuguês existe o substantivo “esculca”, que é uma sentinela nocturna, embora seja palavra antiga e
desusada.

29
O autor de Arredor de si

Álvarez comenta algumas palavras como:

Palavras oterianas Comentário


1. prezoso, emozoado, lediza, navegazón, queda do iode
audenza
2. paresce, obedesce, conosce, nascera, restabelecimento do grupo culto -sc- nas
crescida, frorescido formações galegas em -cer
3. vegada, outa, tidoaban, al Señor, door, supostas formas ou grafias medievais,
coor, cibdade utilizadas no início do século XX

Podemos garantir que dificilmente as palavras dos anteriores pontos 1 e 3 podem ter
sido devidas a influências de leituras em português moderno, do primeiro terço do século XX.
Tais palavras teriam aparecido sob as seguintes formas: “precioso”, “emocionado”, “alegria”
(ou, de uso raro, “ledice”), “navegação”, “audiência”, “vez”, “alta”, “intitulavam”, “ao
Senhor”, “dor”, “cor”, “cidade”.

Poderia ter havido influência do uso do grupo culto -sc-, restabelecido em algumas
palavras portuguesas terminadas em -cer a partir do século XVIII13 no português europeu,
embora tenha sido conseguida de forma assistemática: na actualidade em português temos,
por um lado, “parecer”, “obedecer”, “conhecer” e por outro, “nascer”, “crescer”, “florescer”.
O que fica claro em Otero Pedrayo é o uso do -sc- em conosce como medievalismo ou
simplesmente como expressão da vontade diferencial a respeito do castelhano.

Dentre alguns dos lusismos que Otero Pedrayo incorpora, segundo Álvarez, parecem
claros os seguintes: doirada, fica, viver, nubens, feias, fundo. Acho difícil conseguir verificar
até que ponto têm uma origem clara em leituras de textos portugueses ou em formas dialectais
próximas da fronteira galega com Portugal, embora esta última hipótese pareça menos
provável. Menos claros são outros: cenas, após de min, dificuldade, amizades.

O português “cena” não é utilizado em Arredor de si. Sim aparecem escenógrafo (p.
25) e escea (p. 108). Parece tratar-se de um caso claro de vacilação do autor: com ou sem es-
inicial, com ou sem -n- intervocálico. Esta vacilação pode estar motivada pela vontade
diferencial com o castelhano, o que pode ter levado noutros textos ao uso ocasional do

13 Verbete -sc- do Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa versão 1.5, Dezembro de 2006.

30
O autor de Arredor de si

lusismo cena.

A locução prepositiva portuguesa “após de” é muito pouco usada se comparada com
“depois de” + SN ou simplesmente “após” + SN. Parece muito pouco provável que seja de
influência portuguesa, a não ser que Otero Pedrayo tenha interpretado mal o seu uso em
português.

O caso de dificuldade pode ser um lusismo ou dever-se simplesmente a uma


sonorização da consoante /t/, procedimento frequente em Otero Pedrayo, talvez por
diferencialismo com o castelhano. Por último, amizades não é forma exclusiva do português,
embora desconheça se era palavra correntemente utilizada no galego do primeiro terço do
século XX. Em Arredor de si aparece às páginas 21, 64 e 89.

Quanto ao romance Arredor de si, embora coincida com Álvarez em que são pouco
importantes os contributos de arcaísmos e lusismos para a língua de Otero Pedrayo, resulta
necessário tê-los em conta para compreender a possível origem, forma e sentido de termos
oterianos.

Embora a língua portuguesa tivesse um carácter modélico ou referencial para as elites


culturais galegas (Salgado e Monteagudo 1993: 211), Otero recorre preferencialmente à fala
popular, comportamento que se insere na “tese romântica do povo criador”, uma vez que
escrever em galego era “pura obediência ao espírito da civilização rural em que mergulhava as
suas raízes” (Rodrigues Lapa 1977: 37).

1.2.2.5. Sintaxe

No plano sintáctico, Álvarez (1988: 17) refere algumas particularidades oterianas:

- o uso de coma, nexo comparativo, utilizado em contextos incorrectos ou impossíveis,

- preferência da próclise do pronome oblíquo ao infinitivo quando aquele aparece antecedido


de preposição (p. ex. por lle facer),

- apossínclise ou interpolação de elementos entre o pronome átono e o verbo, sobretudo do


advérbio non, estendendo-a a casos impossíveis. Alguns exemplos dados por González (1990:
348) são: ata se non escoitar, para lle non falar, esgazar coas mans a quen lle non soubese

31
O autor de Arredor de si

gardar respeto.

Seja como arcaísmo ou por influência do português, Otero Pedrayo utiliza também o
futuro do conjuntivo, embora nem sempre com acerto como podemos ver nos exemplos dados
por González (1990: 347):

Usos do futuro do conjuntivo


Co medo que Deus se esvaecer
Había papear o conto cando lle conviñer
desentóñese como puider e procure o seu camiño

Nos dois primeiros exemplos deveriam aparecer as formas do pretérito imperfeito de


conjuntivo esvaecese e conviñese.
Chama a atenção que Otero Pedrayo não faça uso abundante de recursos sintácticos
marcadamente galegos como o dativo de solidariedade ou o infinito conjugado (Álvarez 1988:
17).

1.2.2.6. Dialectalismos

O uso de formas dialectais é pouco abundante em Otero Pedrayo ou, pelo menos, não
tão vistoso como outros aspectos. Lembremos que a sua intenção era criar um galego que
pudesse ser utilizado em qualquer situação social e que fosse língua pátria. Para Álvarez
(2002: 210) “non se pode dicir de xeito ningún que esta sexa unha característica do seu
galego, que semella máis ben unha lingua interdialectal, de acollida aberta e libre de tódalas
variacións posibles”. Podemos dizer que Otero Pedrayo não recorre a formas dialectais para
marcar uma fronteira com o castelhano.

1.2.2.7. Estrangeirismos

Os estrangeirismos em Otero Pedrayo foram muito bem estudados por Salgado (2004).
Como diz este autor, por meio de palavras de outras línguas Otero tenta ostentar o seu
europeísmo e universalismo pretendidos para a língua galega. O mais frequente é haver
palavras ou termos únicos e, em menor medida, expressões ou orações em línguas
estrangeiras. A língua de que Otero Pedrayo importa mais palavras e expressões é o francês,
mas também recorre ao inglês, italiano, português e alemão. Um dos objectivos do uso de

32
O autor de Arredor de si

termos estrangeiros é prestigiar a língua e a literatura galegas, tornado-as úteis e válidas para
uso em qualquer contexto.

O estrangeirismo tem também uma função estilística: ambientar, dar maior realismo,
evocar outros países ou caracterizar algumas personagens. É importante salientar que os
estrangeirismos aparecem sempre em contextos foráneos e nunca com temas ou obras
referidas à Galiza ou a temáticas galegas.

Salgado (2004: 689-690) afirma, ao falar dos préstamos de outras línguas, que “Otero
exerceu unha estricta vixilancia sobre o seu propio uso idiomático, manténdose equidistante
entre o purismo exacerbado e o entreguismo mimético” e que “Otero ten clara conciencia de
que está empregando elementos léxicos alleos ó galego” marcando, em geral, com itálico,
aspas ou negrito o termo estrangeiro. No entanto, estranhamente, o próprio Salgado
reconhece:

De tódolos xeitos non se mostra Otero moi coherente respecto de apoñer algún tipo de sinal ó
termo estranxeiro e, de detérmonos con certa morosidade sobre as páxinas da súa vizosa obra, non
resultará difícil de comprobar como un mesmo elemento léxico aparece “marcado” ou “espido” sen que
medie razón de ningún tipo para tal elección. (Salgado 2004: 690)

Descuido do autor? Ausência de revisão e correcção? Necessidade de criar e editar


com rapidez nova literatura galega? Ou simples desleixo editorial? Resulta muito difícil, se
não impossível, encontrar explicações para este aspecto, como para outros. O uso marcado ou
não de estrangeirismos parece ser mais um aspecto de vacilação nas obras de Otero.

Menos vacilante é o tratamento que Otero faz do castelhano usado consciente e


explicitamente nas suas obras. Salgado (2004: 688) observa três funções nestes usos:
a) Indicador sociológico, para conseguir verosimilhança ao reflectir as relações
sociolinguísticas na Galiza;
b) Indicador ético de pessoa, com acusadas conotações negativas para a pessoa em questão;
c) Evocador de ambiente não galego.
De resto, como já indicamos, Otero tenta fugir, tanto quanto possível, da língua
castelhana. E o estrangeirismo não castelhano também funciona como elemento
diferencialista ao estar implícita a evitação e o distanciamento com o castelhano.

33
O autor de Arredor de si

1.2.2.8. Castelhanismos não detectados

Dado o seu afã diferencialista, achamos pertinente separar, dentre as palavras e


expressões estrangeiras, os castelhanismos que se deslizam na prosa oteriana sem que o autor
tenha consciência dos mesmos.

Álvarez (1988: 22) selecciona alguns claros castelhanismos lexicais: apariencia,


patillas, plegos, gerrillas, ventanas, bombilla, caballería, cabecilla, colmenas, xeneracións,
pitillo, templan.

Noutros casos são decalques por analogia com o castelhano:

Castelhano Galego oteriano


llano > llanura chan > chanura (“chã”)
lejos > lejano lonxe > lonxano (“afastado, longíquo”)
reja (de um arado) reixa (“relha”)

Também há abundantes casos de uso do género gramatical de palavras do castelhano:


o paisaxe, a serán, o moblaxe, os orixes, o pelerinaxe, o arbre, a mar.

Outros castelhanismos morfológicos ou sintácticos apontados por Álvarez são os


seguintes: tercer, cuio, quens, calquer, andivera, non so confesaba.

São surpreendentes alguns castelhanismos sintácticos de que Otero Pedrayo parece


não se aperceber:
- omissão de artigos obrigatórios antes de possessivo,
- abundância da preposição a com complemento directo com traço [+ humano].

Curiosamente Álvarez acha que a frequente ausência de artigo antes de possessivo não
se deve a influência do castelhano, do qual discorda Alonso (2004: 17).

Salgado (2004: 691) também indica que algumas vezes, em vez de aparecer na sua
forma estrangeira, certas vozes de outras línguas aparecem também na forma adaptada ao
castelhano: dandi, bulevares, fraque, champán ou champaña.

Isto mesmo é patente no número demasiado elevado de castelhanismos de todo o tipo

34
O autor de Arredor de si

na língua oral de Otero, isto é, nos seus discursos e palestras. Tudo parece indicar que as suas
preocupações mais importantes estavam concentradas noutros aspectos (Álvarez 2002: 212),
que seriam, com toda a certeza, normalizar e elevar a língua e a cultura galegas.

1.2.3. Uma língua descuidada?

A par dos melhores elogios como escritor, encontramos também referências negativas
ou comentários que questionam a qualidade da prosa de Otero Pedrayo. Já Vicente Risco dizia
que Otero Pedrayo escrevia “cunha prosa nova, pode que incorrecta, mais gustosamente viva
e enxebre” (Risco apud Casares 1981: 83-84). Alonso Montero (2004: 17), comentando o seu
diferencialismo, afirma que “a artificialidade e vulgaridade do seu idioma cuestiona ou
desvirtúa o inmenso talento literario do seu autor”. E em Salgado (2004: 688) lemos que
Otero Pedrayo foi e é “[a]dmirado polas súas brillantes dotes expresivas como ás veces
censurado polo que se consideran os seus «excesos» retóricos e literarios”.

Para compreender a língua de Otero Pedrayo é necessário primeiro compreender o seu


pensamento. Começou a publicar tarde, aos 36 anos, devido ao seu “dilectantismo de leitor de
Chateaubriand” (Fernández Freixanes 1976: 23) e à insegurança que lhe produziam a sua falta
de sistemacidade e organização, segundo suspeita Tarrío (1988: 33). A base filosófica para dar
início à sua carreira intelectual é fornecida pelo francês Henri Bergson. Este filósofo predica a
importância da intuição, junto com o conhecimento conceitual e lógico, para chegar ao
verdadeiro conhecimento. O achado de Bergson é um elemento fundamental para espicaçar a
mente de Otero, aparecendo de forma explícita em Arredor de si (p. 77-78): “Por camiños
estranos lêndo a Bergson [Adrián Solovio, o protagonista] atopou un consolo. A evolución do
seu pensamento poderíase esquematizar así: non é pecado pol'o contrareo necesidade deixarse
levar pol'a vida”. Assim Otero Pedrayo começa a deixar-se levar pelo seu impulso vital: criar
uma prosa que não existia para o galego.

Ramón Piñeiro (1958), em Carta a Leonor e Francisco da Cunha Leão, trata a questão
da qualidade da língua de Otero Pedrayo:

No tocante á perfeición formal ou gramatical do idioma, a despreocupación de Otero é total. O


seu galego é rico, vivo e puro no vocabulario; mais é descoidado, mesmo diríamos anárquico, no aspeito
formal. Prescinde de toda preocupación normativa e atende con escrusividade á sua función espresiva,
que é, dende logo, a esencial. (Piñeiro 1958: 188)

35
O autor de Arredor de si

Piñeiro realiza uma breve comparação com a prosa de Castelao e Risco, dois escritores
“conscentes”, “que saben traballar e atinguir a perfeición formal”. Face ao classicismo destes,
Otero é considerado um claro e acentuado autor romântico.

Da sua língua são criticadas a sua vacilação e incoerência formais. Álvarez (1988: 13)
proporciona exemplos como diño / dino, mocidade / mocidá / mocedade14. Em Arredor de si o
próprio nome do país não tem um uso regular, aparecendo Galiza com ou sem artigo definido
de forma aparentemente arbitrária, sem qualquer explicação lógica. Também Salgado (2004:
690) indica, como vimos, como Otero Pedrayo é incoerente ao marcar os estrangeirismos que
utiliza e como também não segue uma regra ou lógica ao utilizar termos de outras línguas sob
formas diversas: na sua grafia original, na grafia adaptada ao castelhano ou simplesmente de
forma errada (Salgado 2004: 692). Estes erros na translação de estrangeirismos são devidos
sobretudo a estranhas formações de plural, emprego do plural em vez do singular e
concordâncias anómalas entre substantivo e adjectivo.

Já nas primeiras décadas do século XX existia um acirrado debate acerca da norma do


galego. Por exemplo, o Seminario de Estudos Galegos propôs em 1933 Algunhas normas pra
a unificazón do idioma galego. Ramón Villar Ponte publicou em 1935 na revista Nós o artigo
intitulado “A Unificación da Língoa, Unha preocupación inxustificada.- Espello en que
fitarnos”. Segundo este autor, “[f]recoentemente, escritores nosos andan a se laiaren de que
non haxa impostas, por quen sexa, unhas iñormas xeraes de ortografía e léisico, que poñan
remate a certa pretendida anarquía”. No entanto, para ele a ausência de uma norma clara não é
problemático, sobretudo considerando a evolução da língua galega.

[...] o que entonces [no Rexurdimento galego do século XIX] eran gaguexos, tímidas
eispresións de algo moi sentido, pro feito con medo, son hoxe manifestacións espontáneas, feitas sen
esforzo ningún, e por espontáneas ben logradas, rexas e firmes do noso máis íntimo sentir; son a gráfica
eispresión, ateigada de naturalidade do noso pensamento autóctono, orixinal, que por selo se eisterioriza
en moldes oraes propios i eiscrusivos, de cuios moldes os escritos feitos na lingua galega son a
eispresión verdadeira, fidel i exacta. (Villar Ponte 1997: 91)

Como vemos, a ausência ou carência de umas normas não era uma questão primária
para todos os autores. Sem dúvida, Otero Pedrayo era um desses. Segundo Álvarez (1988:
13), “Otero non ten ningunha pretensión de erixirse en autoridade que propoña unha forma
14 EmArredor de si podemos ler “modernidá e curiosidade” (p. 115) num perfeito exemplo de incoerência
formal.

36
O autor de Arredor de si

única para cada palabra”. É mais, “o desexo de fixación ou non existía en absoluto ou lle era
totalmente secundario”. Partilho desta opinião, sobretudo tendo em conta a assistemacidade
intelectual de Otero, o seu bergsonianismo e a situação em que se encontrava a língua e a
sociedade galegas na altura.

Faço também minha a opinião de Álvarez (1988: 19), que, vendo que o termo
manipulação linguística pode ser entendido em sentido pejorativo, explica que Otero
tencionou criar uma nova língua literária partindo praticamente do zero. Apesar de todas as
dificuldades e particularismos, o saldo final é abrumadoramente positivo a favor do autor e do
seu projecto literário.

O facto de ser tão diferencialista poderia ter produzido um efeito negativo: todo o
texto produzido em galego poderia ser apenas um contratexto de um outro hipotético texto
produzido em castelhano. Novamente coincido com González (1990: 348) ao afirmar que “O.
Pedraio supera con moito a simple contestación do castelán, e profundiza dun xeito admirable
nas posibilidades que lle ofrece o sistema lingüístico galego, ó que achega a súa excepcional
capacidade creadora”.

1.2.4. Falta de memória e revisão

Salgado (1990) recolheu alguns dos abundantes lapsos em que Otero Pedrayo incorreu
em várias das suas obras. Fala dos lapsus calami de Otero ao citar de memória textos de
outros autores, sobretudo de outras línguas, e ao mencionar datas. Otero Pedrayo, dotado de
uma memória prodigiosa, também foi traído por esta em diversas ocasiões ao citar um autor
“sen preocuparse despois de comproba-la exactitude da mesma [citação]” (Salgado, 1990:
176). Villares também afirma haver confusões na atribuição de ideias ou na actuação de
pessoas dado que Otero confiava demasiado na sua memória (2007: 14 e 107).

Juntemos a estes lapsos memorísticos mais dois elementos: o facto de que Otero
escrevesse à mão e a ausência de revisões ou correcções dos seus originais ou das provas
tipográficas (Salgado, 1990: 168 e 180-181). Na que provavelmente seja a primeira recensão
crítica de Arredor de si, Antón Villar Ponte (1930: 1) fala no jornal El Pueblo Gallego de uma
“novela gallega magistral”. No fim do seu texto, refere que a editora Nós, para poder vender a
obra a baixo preço, realizou “una edición modesta” e que algum dia “será preciso llevar esta

37
O autor de Arredor de si

obra a la edición de lujo escrupulosamente corregida de erratas y de lapsus de léxico”. Por


outro lado, em uma carta enviada por Castelao a 1 de Março de 1934, este lembra a Otero o
seguinte: “Supoño que coidarás ben as correicións das probas para que saia o libro [A
romeiría de Gelmírez] sen erratas.” (apud Monteagudo 2015: 56). Em uma outra carta de 9 de
Maio do mesmo ano, Castelao insiste: “Onte fun a Santiago e xa vin que o Casal [Ánxel
Casal] empezou a compoñer o teu libro. Procura correxir ben as probas, pois é unha pena que
saia con erratas” (ibidem: 58).

Resulta intrigante que Otero afirme que Arredor de si seja a sua obra preferida
(Quintana e Valcárcel 1988: 174), que este romance seja considerado pela crítica o mais bem
conseguido tecnicamente (Casares 1981: 111) mas que, na sequência destas afirmações, não
se tenha realizado uma única revisão em profundidade do mesmo em vida do autor, máxime
quando a redacção do romance levou apenas doze meses (Villares 2007: 37). O próprio
Pedrayo teve tempo para ver a publicação da sua segunda edição em 1970, quarenta anos
depois da primeira, sendo presidente do Conselho de Administração da Editorial Galaxia, que
o haveria de reeditar. Apesar de tudo isto, manteve-se em silêncio, talvez devido à idade, já
um octogenário, ou a uma certa desmotivação após tantas décadas de ditadura franquista. Este
proceder parece confirmar mais uma vez a sua filosofia de vida bergsoniana, se bem que, da
óptica do tradutor, representa um problema para a interpretação e, por conseguinte, para a
tradução.

1.2.5. A língua de uma geração?

Otero Pedrayo foi um excelente escritor, embora deixasse algo a desejar como
filólogo. Cada autor deve ser lido e interpretado no seu contexto histórico, tendo em conta as
suas ideias e objectivos. Numa entrevista a Fernández Freixanes, Otero afirma:

[N]aquel intre, cando tan poucas cousas tiñamos, había que facelo todo: viaxar, botar discursos,
escribir nos xornáis, estudar xeografía, etnoloxía, historia da nosa terra [...] O que de ningunha maneira
se podía era estar calados e quedos por que [sic] o tempo, xa daquela, loitaba contra nós. (Fernández
Freixanes 1976: 25)

O esforço por normalizar a língua galega na sociedade era mais importante na altura
para Otero do que o requinte formal.

38
O autor de Arredor de si

Álvarez (1988: 23) reconhece a carência de um estudo estilístico profundo da língua


de Otero Pedrayo. A mesma coisa pode dizer-se da língua de outros autores da sua geração, da
língua e critérios editoriais utilizados na Revista Nós e de muitos outros autores do primeiro
terço do século XX galego. Ao ler alguns textos dessa época encontrei algumas semelhanças
formais, mas não disponho de todos os dados necessários para aventurar uma conclusão.
Levanto apenas algumas questões que ficam em aberto: Serão algumas características ditas
oterianas partilhadas por outros autores da mesma geração? Podemos garantir
terminantemente que as regras neológicas diferencialistas de Otero Pedrayo são todas da sua
autoria? Lembremos que o galego das primeiras décadas do século XX era às vezes
extremamente diferencialista (Alonso 2004: 16).

Em Arredor de si, romance de que se afirmou ser o retrato ou biografia espiritual de


uma geração (Casares 1981: 110), parece haver uma reflexão sociolinguística aplicável à
análise que foi feita até aqui:

No comercio c'os labregos o desperto senso críteco de Solovio adeprendeu ben pronto a falsedá
d'unha afirmación na qu'il por costume e priguiza, participara: a de ser o galego unha lingoa vella, unha
roina, non doada pra conteñer nin fecundare unha idea moderna, impropia pr'a Técnica e pr'a Filosofía
por eixempro. Pois desque Adrián falaba galego sentía todo seu ser renovado, non tiña que loitar contr'a
lingoa desmasiado feita e traballada que ll'impuña unha retórica moitas veces enxoitadora do ceibe nacer
do pensamento. Na mesma indecisión había unha garantía de mocidade. Tampouco ollaba a morte diarea
do galego nos beizos dos paisanos que falaban castelán por infroencia da cibdade e d'Améreca. Era un
castelán esterior e falso. Na costroición da frase, no acento, na yalma das verbas falaban galego
disfrazado de outra cousa transitorea.

Pois Adrián no seu novo e ledo sentir i-enxergar non coidaba pousarse sobre vellas roínas
procurando unha postura cómoda e finamente malencóneca pra despedir â xuventude e xustificare os
fracasos das pasadas esprencias. Ardentemente disfroitaba do novo vivir e trazaba esquemas pra
desenrolalo en Filosofía, en Historia, en Ensayo. Foise dando conta de non ser il soilo na Galiza: unha
falanxe dispersa na aparencia, unánime na arela traballaba en difrentes Terras da Galiza. A maor porción
d'aquiles homes e mozos, que Adrián foi pouco a pouco coñecendo e valorizando renunceaban as grorias
da moda e do tempo, seu reino non era d'iste mundo presente e fuxitivo sinón d'unha Galiza que pol'a
derradeira xustificación dos tempos debía locir n'un futuro, cecais non tan lonxano. (Otero 1930: 145-
146)

39
O autor de Arredor de si

1.3. O romance Arredor de si

O nosso estudo não pretende nem pode entrar nas diferentes questões hermenêuticas
relacionadas com esta obra fundamental da literatura galega do início do século XX. Somente
queremos deixar alguns brevíssimos apontamentos contextualizadores das principais linhas
que a crítica literária tem percorrido desde os anos 70 do século XX.

Numa perspectiva tradicional, Adrián Solovio, protagonista do romance, é identificado


com o próprio Otero (Fernández Roca 1976: 149-150, Casares 1981: 94, Tarrío 1998: 223),
mas também com os membros da geração Nós, que se viram reflectidos nesta personagem
(Risco 1933, Carballo Calero 1934 e 1981: 666, Vilavedra 1999: 191).

O romance pode ser considerado “fundacional” (Fernández Pérez-Sanjulián 2003: 35)


dentro de um projecto de “construción da nación” que legitimaria uma “nación emerxente”
(López Sández 2008: 6) e também exemplifica o esforço diferencialista entre a geração Nós e
a geração espanhola de 1898 (Patterson 2004).

Arredor de si é vista também como uma obra de cariz didáctico que, para além de
referir a evolução intelectual partilhada por vários intelectuais coetâneos, aspirava a apontar o
caminho que as novas gerações deveriam seguir. Os homens de Nós não tiveram mestres, mas
aspiravam a ser os das novas gerações (Villares 2007: 180). Para esta formação cultural dos
futuros jovens e a relação com outras culturas europeias, o romance rebatía, no seu dia, um
discurso que propugnava as bondades do cosmopolitismo (Allegue e Fernández 2014: 14).

1.3.1. O estilo de Otero Pedrayo em Arredor de si

Do Otero Pedrayo romancista costuma dizer-se que tem dois estilos definidos: por um
lado há um estilo barroco, extenso, ramificado, complicado do ponto de vista da construção
oracional, em cascatas que acrescentam pormenores; por outro lado há um estilo lacónico,
conciso, breve, assindético.

Para Tarrío (1988: 37) o estilo próprio de Otero é o barroco e, em relação com a sua
intuição bergsoniana, “no medio do torrente lingüístico haberían xurdi-las xoias da verdade
como algo espontáneo, sincero e ceibe de requintamentos racionalistas”. No entanto, em
“alguns momentos [...] Otero pretendeu axustarse á frase curta”, isto é, recorreu ao seu estilo

40
O autor de Arredor de si

lacónico. É o caso de Arredor de si, entre outros. Álvarez (2002: 204) indica também que
Otero utiliza este estilo em Rosalía e em algumas descrições biográficas de O libro dos
amigos.

Este estilo é caracterizado por orações de estrutura simples, prescindindo de


subordinações e até de coordenação sindética, o que implica a utilização de vírgulas ou
pontos. Temos muitas vezes enunciados compostos por sintagmas nominais de difícil
interpretação. Álvarez (2002: 205) apresenta um exemplo muito claro deste estilo tirado de O
libro dos amigos:

Ramón San Martín tiña unha amante. Vellota e cansada. Graciosa, gasalleira, disgraciada.
Facíalle ben de xantar e tiña dedos artistas de cigarreira. Entendía as priguizas do seu amante e iste
podia que sentira por ela máis lástema do que amor. (Otero 1953: 14)

Este é o estilo que se encontra em muitas passagens de Arredor de si. Neste exemplo
tudo é bastante transparente: a amante é uma mulher vellota, cansada, graciosa, gasalleira e
disgraciada. Vejamos agora outro bastante mais difícil e complexo junto com a sua
correspondente tradução para português marcado com referências para posterior análise:

Texto original Texto traduzido com marcas


[Ref. 1]
No seu departamento intresanlle â Adrián No seu compartimento interessam a
os xornais enrugados. Un diareo de Vigo. Adrián os jornais amarfanhados. Um diário de
Gardao por exotismo. E pensa un istante no Vigo. Guarda-o por exotismo. E pensa um
estrano d'iste nome: Sant-Iago. Tidoaba instante em como este nome é estranho:
unha seuceón de noticeas. Catedráticos Santiago. Era o título de uma secção de
enchisteirados, sabios cuia sona non notícias. Catedráticos encartolados, sábios cuja
pasaba de Cacheiras. Morte. Chuvia. fama não passava da aldeia de Cacheiras.
Badeladas. Farradas d'estudantes. Xa Morte. Chuva. Badaladas. Farras de estudantes.
[Ref. 2]
entrando na estaceón Adrián ollaba con Já a entrar na estação, Adrián olhava
lediza os grandes coches do Sud-Exprés. com alegria as grandes carruagens do
Paris-Madrí. Goya figuraba meterse nos Sud-Express. Paris-Madrid. Goya parecia
andéns: alciprestes dos afusilados da meter-se nas plataformas: ciprestes dos
Moncloa coma formación de pompós de fuzilados da Moncloa como formação de
chacós ou escobillós de artillería. Eirexa de pompons de barretinas ou escovilhões de

41
O autor de Arredor de si

Texto original Texto traduzido com marcas


San Antonio o lisboeta. Door de rubir a artilharia. Igreja de Santo António, o lisboeta.
[Ref. 3]
costa de San Vicente, soilo, no taxi. Outros, Dor de subir a Encosta de San
ô segundo viaxe teñen xente e coches Vicente, sozinho, no táxi. Outros, à segunda
galoneados, agardandoos. Firente senso, viagem, têm gente e carros galonados a
insospeitado, do fracaso en Madrí: chegar aguardá-los. Magoante sentido, insuspeito, do
sempre, coma o primeiro día, procurando fracasso em Madrid: chegar sempre, como no
fonda. (p. 10) primeiro dia, à procura de pensão.

No contexto do capítulo I de Arredor de si, estamos a ler a narração de uma viagem de


comboio da Galiza a Madrid, contada apenas por meio de umas pinceladas (fala-se do que
acontece nas carruagens do comboio e aparecem referências à cidade de Ávila e ao Escorial,
entre outras), e podemos compreender de forma geral o seu significado. Porém, se quisermos
indagar no significado concreto de cada uma das referências dadas, as dificuldades serão
muito maiores.

Um primeiro problema, que, aliás, permeia todo o romance, é a divisão em parágrafos.


Na primeira edição, de 1930, temos um único parágrafo desde o início, na página sete, até à
página onze. Na segunda edição e seguintes realiza-se em geral uma boa divisão em
parágrafos, mas o trecho apresentado acima aparece dividido em um único parágrafo.
Fazendo uma análise mais pormenorizada, vemos neste trecho três referências diferentes, as
marcadas acima na tradução, que justificam fazer uma divisão em três parágrafos diferentes:

Referência 1: Adrián guarda um diário onde se lê o nome “Santiago”. O leitor deve


interpretar que este topónimo, lido num jornal do comboio momentos antes de chegar a
Madrid, faz lembrar a Adrián, protagonista da história, as seguintes ideias: catedráticos,
morte, chuvia, badeladas e farradas. Para dificultar mais, temos uma referência a Cacheiras,
pequeno lugar a poucos quilómetros de Santiago de Compostela. Portanto, “Catedráticos
enchisteirados, sabios cuia sona non pasaba de Cacheiras” é uma crítica a alguns professores
dessa universidade, que para Adrián não eram muito bons, segundo o narrador. E o texto do
romance original continua sem qualquer marca que indique uma mudança temática.

Referência 2: O comboio entra numa estação madrilena e três itens (carruagens,


ciprestes e uma igreja) são vistos por Adrián. O comboio está a chegar à antiga Estación del

42
O autor de Arredor de si

Norte madrilena, estação que também é mencionada noutra passagem de Arredor de si (p. 79).
O leitor deve interpretar que Adrián fixa a vista em três elementos: as carruagens do comboio
Paris-Madrid, as duas fileiras de ciprestes do Cementerio de la Florida e a ermida de San
Antonio de la Florida.
Adrián olha “con lediza” para as carruagens que ligam Paris e Madrid: são as que
depois o levarão a uma outra Europa, bem diferente da capital espanhola. É uma antecipação
do desejo de viajar de Adrián e do que será a sequência do romance.
Adrián também olha para os ciprestes situados no Cementerio de la Florida, onde se
encontram enterrados os restos de quarenta e três pessoas fusiladas na madrugada de três de
Maio de 1808 por tropas francesas. Devemos ter em conta também que Goya pintou o quadro
El 3 de mayo de 1808 en Madrid: los fusilamientos en la montaña del Príncipe Pío, que
plasma este acontecimento e simboliza a luta dos espanhóis contra os franceses. Este
cemitério está situado alguns metros antes da Estación del Norte, daí que Otero escreva “Goya
figuraba meterse nos andéns”. Aos olhos de Adrián, estes ciprestes parecem elementos
castrenses, hirtos que estão na sua posição, como “formación de pompós de chacós ou
escobillós de artillería”. Reparemos também que no quadro de Goya aparecem soldados
franceses com chacós (“barretinas”). Os ciprestes do cemitério e o quadro de Goya parecem
fundir-se de forma estranha na mente de Adrián (ou do autor).

Por último, aparece a “Eirexa de San Antonio o lisboeta”. É uma referência à ermida
de San Antonio de la Florida, muito perto da antiga Estación del Norte madrilena. Goya
pintou os frescos desta ermida em 1798 e é aqui também onde o pintor se encontra enterrado.

Referência 3: Adrián sai da Estación del Norte e apanha um táxi. As suas reflexões
aqui são mais transparentes, sem dificuldades de compreensão.

Interpretado todo o trecho anterior, talvez agora, numa nova leitura, tudo pareça mais
fácil de perceber. Mas, à partida, a atitude do autor é quase críptica, hermética, pouco
explicativa e, sem qualquer dúvida, muitíssimo exigente para com o hipotético leitor ou
leitora, inclusivamente na época em que foi escrito. Muitos enunciados são sintagmas
nominais que apenas insinuam, sem dar explicações. Otero utiliza o ponto para separar
elementos de difícil compreensão e até há referências culturais que chegam a misturar-se. E,
mais um entrave, não existem os parágrafos que marquem mudanças temáticas.

43
O autor de Arredor de si

Para descobrir muitas destas referências foi fundamental a utilização da Internet,


sobretudo de sítios como a Wikipédia (www.wikipedia.org) nos seus diferentes idiomas, o
motor de pesquisa Google (www.google.com)15, o serviço de visualização de mapas e ruas de
GoogleMaps (maps.google.com) e as páginas do Museo del Prado (www.museodelprado.es).
Graças a estes meios informáticos em linha pude realizar pesquisas que misturam texto,
imagem e som: saber o que é Cacheiras, descobrir qual a “estação” mencionada no romance
(antiga Estación del Norte, agora transformada em um centro comercial), considerar o
percurso das ferrovias, indagar acerca dos ciprestes mencionados, saber quem são os fusilados
da Moncloa, qual a eirexa de San Antonio (há uma em Madrid, outra em Aranjuez e,
finalmente, a ermida de San Antonio de la Florida), saber onde está a costa (pt. “encosta”) de
San Vicente, fora os aspectos linguísticos, já de per si com uma dificuldade considerável,
como, por exemplo, escobillós ou chacós.

O estilo lacónico oteriano tem pouco de prosaico e muito de poético. Tarrío (1988: 34)
afirma: “É indudable [...] a relación causa-efecto que Otero establece entre a intuición e a
expresión lírica, polo que, baixo [o] meu punto de vista, a súa obra narrativa, globalmente
pode ser analizada dende os presupostos da novela lírica”. No romance lírico temos
entrelaçados narrativa e lírica, existindo portanto uma maior liberdade do autor e “[forçando]
ó lector a unha máis estreita coperación no acto creativo que [...] supón o feito de ler” (Tarrío
1988: 35).

Acrescentemos agora as referências culturais de todo o tipo, variadas e, por vezes,


indirectas, subtis, e veremos como o Otero ensaísta se mistura com o Otero narrador e o Otero
poeta num mesmo texto.

É certo, como sinala Carballo Calero, que nun escritor romántico como Otero non existe unha
clara delimitación de fronteiras entre os distintos xéneros e que non poucas páxinas das suas novelas
están escritas en estilo ensaístico, do mesmo modo que algún dos seus libros de ensaio contén capítulos
enteiros que son verdadeiras narracións breves, pero non é menos certo que Otero non pode ser
considerado propiamente un ensaísta e que neste campo da sua producción os mellores momentos
conseguiunos en páxinas que valen sobre todo polo seu contido poético, pola gracia de algunhas
intuicións ou pola brillantez e a orixinalidade de determinadas síntesis en que cristaliza a sua cultura.
(Casares 1981: 128)

15 Durante a tradução, as informações obtidas na Wikipédia e no Google serviram apenas como dados, muitas
vezes iniciais, que foram contrastados depois com outras fontes de autoria conhecida e que demonstravam
critério de autoridade.

44
O autor de Arredor de si

As implicações deste estilo (ou estilos) para a tradução de Arredor de si foram


consideráveis. O tradutor teve sempre presentes dois aspectos: Otero mistura estilos e o
tradutor deve investigar e interpretar, em não poucas ocasiões, o que está subjacente para
poder traduzir. Um exemplo foi a divisão em parágrafos proposta para o trecho antes
analisado. Noutros casos, como o que se segue, foi muito difícil saber com certeza o que o
autor queria comunicar:

Texto original Texto traduzido


—«Non, eu ou son parvo ou estrano. Pr’o «Não, eu ou sou parvo ou estranho. Para o
caso é igoal. Endexamáis entenderei a caso é igual. Jamais entenderei Espanha. Não
España. Non serei nada n’ela. Levo un vivir serei nada nela. Levo um viver de estudante
d’estudante apricado e apaixonado, de aplicado e apaixonado, de pureza e
pureza e honestidade mental. Fago o que honestidade mental. Faço o que posso, mas
podo mais fúxeme a realidade do Misticismo, foge-me a realidade do misticismo; adormeço
dúrmome lêndo a Calderón, sinto o mudexar lendo Calderón; sinto o mudéjar ruinoso e
roinoso e queimado pol’o sol que alapa as queimado pelo sol que alabara as sepulturas.
sepolturas. Ou estóu morto ou é a Iberia a Ou estou eu morto ou é a Ibéria a que está
qu’está morta. Xa nin zume. (p. 29) morta. Já nem suco resta.

Este trecho, inserido em um longo parágrafo de várias páginas, aparece num contexto
bastante definido e claro. Tudo parece fazer sentido a não ser as três palavras finais: “Xa nin
zume”. As interpretações para um leitor galego podem ser múltiplas e variadas, tal e qual para
um tradutor. É importante assinalar, em primeiro lugar, o uso da palavra zume16 que realiza
Otero Pedrayo, com um sentido figurado (“essência”, “substância”), como parece ser neste
caso. Tendo em conta o contexto bastante claro para o leitor, a singularidade da expressão “Xa
nin zume” e a sua breve extensão, a opção de tradução escolhida foi simplesmente acrescentar
o verbo “resta” no fim. Parece-me que assim se consegue, limpamente, uma recepção próxima
da intenção oteriana. Neste caso achei melhor realizar uma pequena amplificação do que
deixar uma tradução literal com uma frase enigmática e aparentemente incompleta.

Havia ainda duas opções léxicas na tradução: sumo ou suco. A segunda foi considerada
16 Outroexemplos de uso da palavra zume com sentido figurado podem ver-se na página 30 de A Lagarada
(edição de 1928) e na página 62 de O Estudante (edição de 1928) pertencente à trilogia Os camiños da vida.
(Santamarina (coord.) Tesouro informatizado da lingua galega).

45
O autor de Arredor de si

mais apropriada visto que sumo é a palavra mais corrente na língua comum em Portugal,
enquanto que suco, sinónimo parcial, é menos utilizada, tendo também o significado figurado
de “essência, substância”.

Podemos relacionar o uso figurado de zume que Otero faz aqui à profusão de
referências sensoriais que este autor utiliza nas suas obras: sabores, cheiros, sensações de frio
e calor, etc. Lembremos o uso figurado já comentado de debullar (secção 1.2.2.3) vinculado à
comida e aos livros.

Talvez o bergsonianismo, a sua livre intuição, tenha levado Otero à mistura de


géneros: narrativa, lírica e ensaio. No entanto, do ponto de vista conceptual o autor parece ter
claro em que género situar cada uma das suas obras ou textos. Otero não se considerava um
grande poeta. “Non sum dignus” é uma das suas frases célebres (Quintana e Valcárcel 1988:
199), também utilizada no seu conto “O fidalgo” em Contos do camiño e da rua (Otero 2003:
38). Disse também, com humildade, ser um “novelista” e não um “gran novelista” (Fernández
Freixanes 1976: 25). O que resulta curioso é a incoerência entre o estilo dos seus textos
narrativos, demasiado líricos, e um dos objectivos que a sua geração desejava alcançar: obter
uma prosa literária menos poética, por ser este um campo já explorado, para que a língua
galega ocupasse mais um espaço para si e assim conseguisse a desejada normalização
linguística. Já em um dos seus primeiros ensaios, “Encol da aldeia” (Otero 1922: 7) afirmava
acerca da cultura letrada entre aldeões: “E eiquí vou notar a falla en que estamos d'unha
formidabre aitividá na feitura e porpaganda na novela. [...] esa forma de épica que é a novela,
tería unha masa imensa de leitores, apaixoados e fondamente intresados na narración.” Acho
que fica no ar uma grande dúvida histórica para sabermos até que ponto esse objectivo
sociolinguístico e cultural foi efectivamente atingido por Otero e a sua geração.

1.3.2. As edições de Arredor de si

Otero Pedrayo escrevia à mão. Já foi dito também que o autor não realizava revisões
dos seus textos para publicação17, como também não realizou em vida revisões ou edições
corrigidas da sua literatura já publicada. Estes aspectos têm levantado algumas dificuldades
para as edições das suas obras: em muitas destas aparecem “critérios de edição” onde são
17 A primeira edição de Arredor de si contém dois erros de composição facilmente detectáveis numa revisão de
provas: a última linha da página 109 está vazia e os três primeiros caracteres da página 124 (“va.”) provêm
da translineação de uma palavra que já figura completa na página anterior (“nova.”).

46
O autor de Arredor de si

expostas, de forma genérica, as alterações praticadas mais importantes relativamente à


primeira edição.

Otero Pedrayo escreve com uma língua bastante peculiar e é considerado um autor
difícil, que em bastantes passagens deve ser interpretado. Vendo algumas das suas obras
literárias, deparámo-nos com diferentes encarregados de edição e diferentes modos de
proceder. Este facto pode ser considerado positivo (a existência de diferentes pontos de vista
da obra de Otero Pedrayo) ou negativo (a ausência de uniformidade para a edição da literatura
oteriana). Um exemplo claro de como os pontos de vista editoriais têm grande influência são
as duras críticas lançadas por Gonçales Blasco (1994 e 1997) acerca da sexta edição de Os
camiños da vida realizada por Mariño Paz (1994).

A segunda edição de Arredor de si surge em 1970 com a editora Galaxia, sendo a que
se mantém mais apegada à primeira. A sua principal novidade é a proposta de divisão em
parágrafos. Como pormenor anedótico, apresenta cinco sugestivas ilustrações no início de
alguns capítulos.

A vasta cultura de Otero e o uso que faz desta nas abundantes referências culturais e
históricas nas suas obras literárias também levantam questões importantes. Tive acesso à
quinta edição de Arredor de si, que tem carácter divulgativo por ser destinada a um público
adolescente. Luciano Rodríguez Gómez, encarregado da edição, acrescentou em todos os
capítulos frequentes notas de rodapé que oferecem informações sobre as inúmeras referências
eruditas do texto, com toda a probabilidade desconhecidas pelo leitor médio actual, além de
dificultadores de uma leitura palatável.

A sétima edição de Arredor de si é de 1991. O romance conta com uma introdução de


Inma García Sendón e Manuel García Sendón, que também estiveram encarregados da
edição-actualização linguística da obra. Afirmam terem tido como referência a primeira
edição, de 1930, mas também consultaram as seguintes “para cotexar algunhas frases ou
parágrafos de lectura ou interpretación escura” (García Sendón, 1991: 40). A sua intenção foi
“facilita-la lectura ó lector fundamental hoxe, [...] os estudiantes”. Referem alterações
realizadas ao original relacionadas com a pontuação, erros, peculiaridades (sintácticas) do
autor, dialectalismos, castelhanismos, diferencialismos; também apontam a manutenção de
termos particulares do autor, o uso de maiúsculas, o uso do artigo e os estrangeirismos.

47
O autor de Arredor de si

Quanto às notas de rodapé, basearam-se nas elaboradas por Luciano Rodríguez Gómez para a
edição anterior. Foram incluídas duzentas notas de rodapé num romance que se estende por
cento e quarenta e uma páginas. As edições oitava, nona, décima e décima primeira têm o
mesmo conteúdo que a sétima.

Existe uma única tradução de Arredor de si para outra língua estrangeira, o inglês. A
tradutora, Kathleen March (1996: 193), afirma num breve artigo que a edição inglesa da obra
“require unha abundancia extraordinaria de notas” e que “[o] resultado para o texto inglés é
unha maior abundancia de notas que no galego, mais é imprescindible”. March parece pensar,
um bocado de forma implícita, na leitura que o potencial destinatário estado-unidense poderia
fazer ao escrever que o “intelectualismo de Otero é propio do seu momento e tal momento
non semellaba en nada ó mesmo período en Estados Unidos”. March também expõe
interessantes questões lexicais e estilísticas relacionadas com a tradução de Arredor de si para
inglês.

Circling, título dado à tradução em inglês, foi publicada em 2007 pela Amaranta Press.
Apesar do dito acima, foi tomada a decisão de não incluir quaisquer notas no corpo do texto.
Uma edição com notas “would be a different edition of the English translation” (March 2007:
7). A tradutora concentra-se no sentido último da obra e afirma: “Despite the obscure
references, the reader will easily recognize the questioning of one's identity as one common to
many cultures and eras.” (ibidem: 8). Houve, portanto, uma viragem na abordagem da
tradução e da sua recepção.

Por último, devo mencionar que existe um rascunho incompleto de Arredor de si no


Fondo Otero Pedrayo da Fundación Penzol em Vigo, segundo informa Villares (2007: 190).
Não tive acesso a este rascunho, mas gostaria de pensar que é um texto manuscrito de punho e
letra oterianos com a “caligrafía endiañada do autor” (Penas 2013: 14), o que facilitaria em
grande medida a interpretação original da intenção do autor e descartaria possíveis gralhas de
edição.

1.3.3. A língua de Otero Pedrayo em Arredor de si: análise de aspectos linguísticos

Na análise que exporei da língua do autor de Arredor de si serão contemplados os


seguintes pontos:

48
O autor de Arredor de si

- Diferencialismo,
- Castelhanismo,
- Vacilações,
- Dialectalismo,
- Outras características.

Os números de página indicados referem-se à primeira edição de Arredor de si, de


1930. Todas as ocorrências salientadas são apresentadas na sua forma original.

Os seguintes exemplos mencionados não pretendem ser uma listagem completa de


todas as ocorrências no romance de uma certa palavra, expressão ou particularidade
linguística. A vontade é ilustrar com casos concretos como escreve Otero Pedrayo,
manifestando a abundância de aspectos que devem ser tidos em conta pelo leitor e pelo
tradutor.

1.3.3.1. Diferencialismo

Já foram vistos de forma geral os aspectos diferenciais da língua oteriana. Exemplifico


agora onde aparecem de forma clara no romance Arredor de si:

1.3.3.1.1. Léxico e variantes lexicais diferenciais

Otero Pedrayo evita o castelhano por meio do uso sistemático ou quase sistemático de
léxico diferente ou de variantes lexicais, sobretudo quando certas palavras pudessem ser
coincidentes em ambas as línguas. Porém, nem sempre consegue ser coerente e incorre em
vacilações, como se verá. Entre parênteses figuram os equivalentes em castelhano:

alumear / alomear (cast. iluminar)

- p. 17 alomeada
- p. 31 alumeada
- p. 91 alumeoú
- p. 91 alomiando
- p. 92 alomiando
- p. 129 alumaedos (com gralha)
- p. 139 alumeados (usada duas vezes)

Porém, com queda diferencialista do -n-:

49
O autor de Arredor de si

- p. 25 lumiosa
- p. 36 lumiosa
- p. 149 lumiosos

Com base em lum-, Otero também cria:

- p. 140 deslumeamento

cavilar (cast. reflexionar, pensar)

- p. 53 cavilando
- p. 58 cavilaba
- p. 74 cavilar
- p. 82 cavilaba
- p. 93 cavilaba
- p. 101 cavilosas
- p. 104 cavilaba
- p. 109 cavilaba
- p. 124 cavilación
- p. 130 cavilaba

Porém:

- p. 104 pensaba

ceibe, ceibar, ceibeza (cast. libre, liberar, libertad)

- p. 47 ceibe
- p. 59 ceibeza
- p. 64 ceibe
- p. 89 ceibes
- p. 118 ceibaba
- p. 120 ceibadora
- p. 123 ceibeza
- p. 131 ceibe
- p. 133 ceibe

Porém:

- p. 92 liberar
- p. 108 liberadora
- p. 120 liberte

50
O autor de Arredor de si

- p. 133 libre
- p. 133 liberdade
- p. 151 liberdade

Os termos relacionados com a ideia de liberdade têm grande peso específico


(linguístico e ideológico) em Arredor de si.

choutar (cast. saltar)

- p. 36 choutar
- p. 49 choutos de pensamento
- p. 53 choutar
- p. 88 choutando muros
- p. 98 choutaba
- p. 105 choutar
- p. 136 choutando

conquerir (cast. conquistar)

- p. 55 conquerido
- p. 85 conquerir
- p. 89 conqueridor
- p. 108 conquire

Mas:

- p. 126 conquista

curtar (cast. cortar)

- p. 7 curtante
- p. 15 curtando
- p. 28 curta (pres. v. curtar)
- p. 47 curtadas
- p. 47-48 curtan
- p. 51 curtante
- p. 52 curtando
- p. 83 curtantes
- p. 52 curtando
- p. 98 curtando
- p. 104 curtou

51
O autor de Arredor de si

Porém:

- p. 63 unha corta (subs.)

Por ter uma forma similar, Otero aplica o mesmo critério diferencial a cortés e
derivados, embora de modo irregular:

- p. 37 curtés
- p. 39 cortesá
- p. 95 cortesanía
- p. 104 cortesán (Neste caso lê-se: “certo cortesán curtou”)
- p. 127 curtesano
- p. 141 curteses

derradeiro (cast. último)

- p. 20 derradeiros
- p. 26 derradeira
- p. 43 derradeiro
- p. 44 derradeira
- p. 61 derradeira
- p. 66 derradeiro
- p. 72 derradeiras
- p. 76 derradeiramente
- p. 91 derradeira
- p. 92 derradeira
- p. 100 derradeiras
- p. 113 derradeiro (usado duas vezes)
- p. 118 derradeiro
- p. 119 derradeiras
- p. 132 derradeiro
- p. 133 derradeira
- p. 146 derradeira

dinantes (adv., cast. antes)

- p. 13, 19 (duas vezes), 34 (duas vezes), 36, 42, 50 (duas vezes), 65, 70, 78, 81, 91, 94, 104,
126, 141, 147, 152

ditoso (cast. feliz)

52
O autor de Arredor de si

- p. 11 ditoso
- p. 15 ditosa
- p. 35 ditoso
- p. 46 ditoso
- p. 61 ditosos
- p. 66 ditoso
- p. 75 ditosas
- p. 108 ditosa
- p. 111 ditoso
- p. 117 ditosos
- p. 135 ditoso
- p. 137 ditoso
- p. 152 ditosos

Porém:

- p. 36 feliz (usada duas vezes)


- p. 46 felis
- p. 86 felices
- p. 62 felicidade
- p. 81 felicidade

Não há registo do substantivo dita.

enxoitar (cast. secar)

- p. 53 enxoiteza
- p. 92 que s'enxoita
- p. 97 enxoiteza
- p. 98 enxoitar
- p. 99 enxoito
- p. 128 enxoitoú
- p. 130 neve enxoita

ficar (cast. quedar)

- p. 12 ficaba
- p. 17 fica
- p. 26 ficaba
- p. 34 ficaba
- p. 36 ficoú
- p. 51 fica
- p. 62 ficaba
- p. 66 ficaban
- p. 77 Ficoulle

53
O autor de Arredor de si

- p. 91 ficaron
- p. 100 ficase
- p. 104 ficaría
- p. 106 fica
- p. 118 ficar
- p. 124 ficar
- p. 128 Fica
- p. 129 fican
- p. 138 Fican

Porém:

- p. 17 quedoú
- p. 34 quedaba
- p. 55 quedaba
- p. 83 quedaba
- p. 90 Quedoú
- p. 95 quedoulle

figurar (cast. parecer)

- p. 19 figura
- p. 57 figuraba
- p. 72 figura
- p. 82 figura
- p. 85 figura
- p. 95 figuraba
- p. 117 Figuraba
- p. 119 figuraba
- p. 122 figuran
- p. 137 figuróu

franquear, franqueado (cast. abrir)

Otero parece variar, sem qualquer diferença de valor estilístico ou semântico, entre os
lemas franquear e abrir.

- p. 20 franqueou
- p. 39 franqueouse
- p. 43 franquear
- p. 60 franqueábase
- p. 65 Franqueadal'as
- p. 72 franqueada

54
O autor de Arredor de si

- p. 84 franqueábase
- p. 96 franquees
- p. 106 franqueoú
- p. 117 Franqueáballe
- p. 139 franquea
- p. 148 franqueoume

Em Arredor de si é mais utilizado abrir.

- p. 12 abrindo
- p. 16 abrilas
- p. 30 abertas
- p. 31 abrindo
- p. 35 abrindo
- p. 36 aberto
- p. 39 aberta
- p. 40 abrir
- p. 58 s'abriría
- p. 62 abertas
- p. 71 aberto
- p. 72 abrir
- p. 74 abrir
- p. 80 aberta
- p. 96 aberto
- p. 97 abría
- p. 137 aberto
- p. 139 abertas
- p. 142 abría

gostar, gosto (cast. gustar)

- p. 16 gostaba
- p. 17 gostosidade
- p. 23 gostar un coktail
- p. 42 gostada a mel
- p. 45 gostaba de
- p. 51 Gostóulle
- p. 62 gosto (subs.)
- p. 71 me gosta
- p. 81 gostosamente
- p. 89 gostaba de
- p. 111 Gostáballe
- p. 117 gosto (subs.)
- p. 138 gostosamente

55
O autor de Arredor de si

Apesar de coerente no uso deste lema, Otero é inconstante quanto à estrutura do verbo
gostar.

ledo, lediza (cast. alegre, alegría)

- p. 31 ledo
- p. 34 lediza
- p. 40 lediza
- p. 61 leda
- p. 65 ledamente
- p. 75 lediza
- p. 123 ledo
- p. 129 ledo
- p. 134 ledamente

Mesmo com preferência por ledo, aparecem também no original alegria ou legria
(acentuadas ou não):

- p. 91 alegria
- p. 93 as legrías
- p. 98 legria
- p. 120 legría

mais (cast. pero)

Em múltiplas páginas esta conjunção adversativa aparece sob a forma mais. No


entanto, também figura acentuada ortograficamente:

- p. 20 máis
- p. 21 máis

O advérbio que indica maior grau ou quantidade também é usado em bastantes


ocasiões com a forma mais, e em certas ocasiões muito próxima do mais conjunção (por
exemplo, na p. 73).

mirar / ollar

56
O autor de Arredor de si

Como já expusemos antes (secção 1.2.2), mirar e ollar são usada por Otero, com
preferência por ollar.

rayola (cast. rayo)

- p. 15 rayolas
- p. 21 rayola
- p. 35 rayola
- p. 36 rayola
- p. 40 rayolante
- p. 88 rayola
- p. 90 rayolante
- p. 97 rayolante
- p. 117 rayolante
- p. 150 rayolante

Curiosamente, Otero mantém o <y>, mas acrescenta um sufixo -ola, sem qualquer
valor diminutivo ou afectivo e inexistente em castelhano.

Porém:

- p. 9 raio
- p. 51 rayos
- p. 99 rayo
- p. 117 radiosa
- p. 129 rayo

rubir (cast. subir)

- p. 7 ruben
- p. 10 rubir
- p. 11 rubindo
- p. 15 Rubianlle
- p. 16 rubían
- p. 20 rubido
- p. 34 rubía
- p. 38 rubo
- p. 41 Rubía
- p. 41 rubia
- p. 48 Rubindo
- p. 69 rubían
- p. 69 Rubían

57
O autor de Arredor de si

- p. 71 rubían
- p. 114 rubira
- p. 115 Rubía
- p. 118 rubía
- p. 120 rubiría
- p. 135 rubía
- p. 135 rube
- p. 142 rubindo
- p. 146 rubía
- p. 146 rubir
- p. 149 rubira

serán (cast. tarde)

O uso de serán, com género feminino e significado de “momento do dia situado entre
a manhã e a noite”, é considerado uma característica oteriana.

- p. 19 seráns
- p. 27 serán
- p. 28 serán
- p. 31 seráns
- p. 52 serán
- p. 62 serán
- p. 73 serán
- p. 74 serán
- p. 88 serán
- p. 89 serán
- p. 108 serán
- p. 110 serán
- p. 124 serán
- p. 143 serán
- p. 149 serán

No entanto, o lema tard- não ficou excluído de Arredor de si. Em certas ocasiões,
Otero tenta mascarar o adjectivo tarde acrescentando um sufixo -eiro/-eira, também
empregado como advérbio.

- p. 15 tardeiro
- p. 21 tarde
- p. 27 tarde
- p. 35 tardeiro
- p. 45 Tarde
- p. 45 tarde

58
O autor de Arredor de si

- p. 49 tarde
- p. 79 tarde
- p. 85 tardes
- p. 123 tardeira
- p. 136 tarde
- p. 140 tarde

sinxela (cast. simple)

- p. 12-13 sinxelas
- p. 21 sinxela
- p. 43 sinxelo
- p. 49 sinxelo
- p. 52 sinxela
- p. 61 sinxelos
- p. 65 sinxelo
- p. 81 sinxela
- p. 84 sinxelas
- p. 111 sinxela
- p. 115 sinxelamente
- p. 122 sinxelos
- p. 145 sinxelas
- p. 148 sinxeleza
- p. 149 sinxelos
- p. 152 sinxelo

Porém, com troca diferencial de <l> por <r>:

- p. 47 simpremente
- p. 144 simpre

testa (cast. cabeza)

Testa, em singular ou plural, é usada nas páginas 11, 38, 44, 52, 61, 62, 63, 88, 90, 91
(duas vezes), 93, 96, 97, 105, 110, 113 e 122.

No entanto, cabeza também tem certo uso:

- p. 11 cabeza
- p. 13 cabeza
- p. 48 cabeza
- p. 61 cabeza
- p. 142 cabeza

59
O autor de Arredor de si

- p. 149 cabeza

Também é usado cabezos, na página 94, com sentido de acidente geográfico (outeiro,
elevação de terreno).

valeiro (cast. vacío)

- p. 12 valeirarse
- p. 24 valeiras
- p. 25 valeira
- p. 30 valeiro
- p. 50 valeiros
- p. 75 valeiros
- p. 122 valeira
- p. 123 valeiro

É provável que outras palavras do autor tivessem sido usadas com valor diferencial. O
que fica patente é o seu esforço por se distanciar do castelhano por meio de um uso repetitivo
destes termos.

1.3.3.1.2. Hipercorrecções diferenciais com o castelhano

Queda de -n- intervocálico

- p. 15 orgaizar
- p. 52 moimentos (monumento)
- p. 59 ordeadas
- p. 63 abandoar
- p. 69 comprovinciaos
- p. 76 dias lumiosos
- p. 98 ollos sereos
- p. 101 apaixoado
- p. 103 campía
- p. 107 un moimento (monumento)
- p. 108 escea

Queda de -l- intervocálico

- p. 73 Peninsoa (península)

60
O autor de Arredor de si

- p. 96 consoadora
- p. 96 cristaíño (cristalino)
- p. 108 cristaización
- p. 111 tídoo

Queda de -i- (monotongação)

- p. 16 silenzo
- p. 59 intelixenza
- p. 66 intelixenza
- p. 78 eleganza
- p. 85 renunzar
- p. 87 ausenza
- p. 89 importanza
- p. 108 esenza
- p. 101 sacrifizo
- p. 101 inquetude
- p. 101 intelixenza
- p. 107 violenza
- p. 109 concenza
- p. 110 Razonalismo

Ditongação: ditongo -ou-

- p. 96 hourizontes
- p. 91 hourizontes
- p. 115 hourizontes
- p. 88 ouservar
- p. 120 Oucidente
- p. 125 oucidental
- p. 24 outo
- p. 76 outo
- p. 46 outo
- p. 52 outo bordo
- p. 45 outo traballo mental
- p. 51 outos
- p. 55 outos chaos
- p. 80 outo bordo
- p. 72 outos sagretos
- p. 81 ouxetivamente
- p. 13 pranouto

Porém:

61
O autor de Arredor de si

- p. 34 alto

Ditongação: ditongo -ei-

- p. 25 libreiría de vello
- p. 62 Prateiría
- p. 129 arquiteituras
- p. 137 cerveceiría
- p. 139 Azabacheiría

Ditongação: ditongo -oi-

- p. 107 prodoito industrial


- p. 141 prodoito

Ditongação: ditongo -au-

- p. 36 práuteco
- p. 117 estrautos (extractos)
- p. 121 autoalidade

Troca de -ñ- por -n-

- p. 78 ensono interior
- p. 108 estrana
- p. 101 estranábase
- p. 109 estrano
- p. 77 sono metafíseco
- p. 85 sono

Porém:

- p. 109 ensoño

Troca de -n- por -ñ-

- p. 101 cañas das tempas cavilosas


- p. 66 destiñada

62
O autor de Arredor de si

- p. 100 determiñantes
- p. 96 discipriña
- p. 121 domiñalo

Troca de -ll- por -l-

- p. 60 brilantes coores sportivos


- p. 110 orgulo
- p. 76 orgulo
- p. 110 orguloso
- p. 84 brilar
- p. 98 brilanteces

Troca de -t- por -d- (sonorização)

- p. 81 vidal enerxía
- p. 25 Hespidal (hospital)
- p. 98 fadigado
- p. 107 fadiga
- p. 108 vidal
- p. 109 vidal
- p. 109 sadisfeito
- p. 104 sadisfacerlle

Sufixação diferencial

- p. 14 humán
- p. 25 humán
- p. 15 tardeiro
- p. 35 tardeiro
- p. 123 tardeira

Uso do futuro de conjuntivo

- p. 23 “Nin que se tratar do «Corpus inscriptionum latinarum»”


- p. 149 “dábase conta de facer o redícolo si lle dixer o fillo”

Otero Pedrayo tem consciência deste recurso inexistente no castelhano do seu tempo,
mas parece utilizá-lo em muito poucas ocasiões. Provavelmente não compreendesse bem o
funcionamento das regras sintácticas dos tempos verbais do conjuntivo, daí que utilize futuro

63
O autor de Arredor de si

onde deveria ser pretérito imperfeito. O reconhecimento destes tempos poderá provir de
leituras de textos medievais ou de influências da língua portuguesa.

1.3.3.1.3. Vulgarismos

Apresentamos alguns exemplos dos abundantes usos que realiza Otero em Arredor de si.

1.3.3.1.3.1. Metaplasmos por supressão de sons:

Aférese

- p. 66 marela
- p. 67 marela
- p. 16 marelo
- p. 51 maxinaba
- p. 19 nemigos
- p. 88 estilador (destilador)
- p. 103 estilarse (destilarse)

Síncope

- p. 20 albre
- p. 53 albres
- p. 19 indefrentes (indiferentes)
- p. 107 indefrenza (indiferenza)
- p. 15 istinto
- p. 70 dinidade

Porém:

- p. 108 arboredos
- p. 89 arboledas

Apócope

- p. 17 individoalidá
- p. 50 calidá
- p. 73 vosté (usada duas vezes)
- p. 74 vosté
- p. 43 voluntás

64
O autor de Arredor de si

Mas também:

- p. 30 vostede
- p. 70 vostede
- p. 97 voluntade

1.3.3.1.3.2. Metaplasmos por adição de sons

Prótese

- p. 58 alcipreste
- p. 34 alciprestes
- p. 107 escomenza

Talvez exista também em alcipreste (pt. “cipreste”) uma influência por analogia com
arcipreste (título religioso) junto com lateralização (troca de [ɾ] por [l]).

Epêntese

- p. 51 eirexa
- p. 54 eirexa
- p. 60 bañado de yalba
- p. 64 aixiña
- p. 65 soilo
- p. 77 na sua yalma
- p. 101 eiquí
- p. 106 adeprenderan
- p. 106 Eirexe
- p. 108 soilo

Paragoge

- p. 38 entrare
- p. 76 acompasare
- p. 78 concurrire
- p. 81 repetire
- p. 87 canalizare
- p. 99 confesare
- p. 99 obedecere

65
O autor de Arredor de si

- p. 100 habere
- p. 106 sere

1.3.3.1.3.3. Lateralização

- p. 20 albre
- p. 53 albres

Porém:

- p. 89 arboledas
- p. 106 arbres
- p. 108 arboredos

1.3.3.1.3.4. Rotacismo

- p. 19 crara
- p. 20 Cremente
- p. 21 crara
- p. 58 pensatibre
- p. 77 imposibre
- p. 85 incompreta
- p. 93 Disciprinantes
- p. 96 discipriña

1.3.3.1.3.5. Metátese

- p. 13 tromento
- p. 17 esquirtura
- p. 81 probe
- p. 100 probes
- p. 105 crebado

1.3.3.1.3.6. Abertura vocálica

Abertura da vogal [e]

- p. 48 dazanove

66
O autor de Arredor de si

Abertura da vogal [i]

- p. 15 Gobernaceón
- p. 21 habitaceón
- p. 25 preciseón
- p. 42 preciseón
- p. 70 reumátecos
- p. 73 redículo
- p. 75 hestóreco
- p. 81 Amérecas
- p. 85 católeca
- p. 85 angusteosamente

Abertura da vogal [u]

- p. 17 alomeada
- p. 52 redícola
- p. 53 semicircolar
- p. 59 locir
- p. 65 arroina
- p. 72 logar
- p. 76 soficiente
- p. 77 soficente
- p. 108 calcolaba

1.3.3.1.3.7. Outras alterações vocálicas

- p. 10 chiculate
- p. 24 chiculate
- p. 34 chiculate
- p. 57 chileco

1.3.3.1.4. Ortografia divergente com o castelhano

- p. 87 cobertas
- p. 107 cobrir
- p. 109 eispricala
- p. 90 esprencia
- p. 81 esprencia
- p. 89 vítima
- p. 81 com'um, com'unha (uso do apóstrofo)
- p. 81 desfroitoú (acentuação da última vogal de ditongos decrescentes)
- p. 12 ô rivés (uso do circunflexo para indicar contracção)

67
O autor de Arredor de si

- p. 13 ôs místecos
- p. 81 i-eterna (escrita da conjunção copulativa e)
- p. 8 i-a door
- p. 8 I-aquil sentimento

1.3.3.2. Castelhanismo

Faremos referência aqui aos castelhanismos presentes em Arredor de si que não têm
um uso marcado, isto é, que poderiam ser prescindíveis. O autor esforça-se por afastar o
castelhano da sua escrita, o que não consegue em muitas ocasiões. Distinguimos três
conjuntos de castelhanismos: castelhanimos evidentes, castelhanismos por decalque e formas
híbridas, e, por último, vacilações entre formas de castelhano e galego.

1.3.3.2.1. Castelhanismos evidentes

1.3.3.2.1.1. Castelhanismos prosódicos

- p. 108 atmósferas
- p. 98 océano

1.3.3.2.1.2. Castelhanismos ortográficos

- p. 60 de yalba
- p. 77 na sua yalma
- p. 106 arroyadas
- p. 113 arroyadas
- p. 130 cayas
- p. 108 Egipto
- p. 108 egipcio
- p. 142 ensayara
- p. 106 exegesis
- p. 25 juergas
- p. 72 Noya
- p. 137 prayas
- p. 129 rayadas
- p. 36 rayola
- p. 21 rayola
- p. 40 rayolante
- p. 97 rayolante
- p. 42 salayante
- p. 80 San Xohan de los Reyes
- p. 96 sayal

68
O autor de Arredor de si

Parece, à vista dos exemplos anteriores, que Otero Pedrayo integra a letra ípsilon
dentro do galego. No entanto, confronte-se este uso ortográfico com o realizado para a
conjunção copulativa representada como i (ver secção 1.3.3.1.4).

1.3.3.2.1.3. Castelhanismos morfológicos

Género

- p. 19 as seráns
- p. 42 do primeiro dor
- p. 51 da mar
- p. 88 a mesma serán
- p. 106 os arbres
- p. 116 longos viaxes
- p. 116 ô marxe
- p. 137 coores labregos

Especialmente claro é o caso de serán que Otero utiliza sempre com género feminino,
clara referência à palavra tarde, que tenta evitar.

Morfologia do plural

- p. 15 esquinales
- p. 16 cascabeles
- p. 69 ducales
- p. 75 mantaniales (com gralha, em vez de manantiales)
- p. 118 xornales
- p. 125 espirtoales
- p. 126 sentimentales
- p. 129 cereales
- p. 134 orientales
- p. 135 canales
- p. 139 Reales

Porém:

- p. 10 xornais
- p. 120 taes (pl. de tal)

69
O autor de Arredor de si

- p. 116 reás
- p. 131 individuás

Morfologia verbal

- p. 20 tivo rubido
- p. 53 houbera sido
- p. 91 iba

Nos múltiplos casos de uso do pretérito perfeito simples de subjuntivo, a forma é


sempre a castelhana:

- p. 118 callaran
- p. 121 falaran
- p.137 cantara
- p. 152 pensaran

Excepcionalmente, também é usada a forma galega:

- p. 131 xurdise

1.3.3.2.1.4. Castelhanismos lexicais

- p. 14 aceras
- p. 89 as arboledas
- p. 75 Bachillerato
- p. 133 cerveza
- p. 26 chopeda
- p. 7 chopo
- p. 77 corteza
- p. 71 cursilerías
- p. 130 cursilería
- p. 67 doña
- p. 66 doña
- p. 34 doña
- p. 52 encina
- p. 57 frente (parte superior do rosto)
- p. 34 fuerte (termo militar)
- p. 89 gavilán
- p. 58 hamaca
- p. 74 infernillo

70
O autor de Arredor de si

- p. 87 manantial
- p. 108 Rocas
- p. 139 velatorio

O caso de frente é uma excepção, sendo mais frequente ler-se fronte. Resulta curioso e
chamativo que Otero, sendo estudioso de história e geografia, não tivesse conhecimento de
termos galegos correspondentes a certas palavras castelhanas que figuram na lista anterior e
que não as tivesse evitado de alguma maneira por serem evidentes. Também é de salientar que
nenhuma das palavras desta lista fosse utilizada com algum matiz estilístico ou marcadas com
alguma intenção.

1.3.3.2.2. Castelhanismos por decalque e formas híbridas

Adjectivos

- p. 33 alaxada (cast. alhajada [uma casa])


- p. 57 aletexante
- p. 25 destemprado
- p. 37 froxa
- p. 91 lonxana
- p. 115 lonxana
- p. 60 mañanceiras
- p. 15 roxo
- p. 16 roxo
- p. 88 roxo
- p. 95 roxo
- p. 96 roxo
- p. 116 roxo
- p. 131 xeneral

Porém:
- p. 117 afastado

Substantivos

- p. 60 barandela
- p. 61 bufo (cast. buho)
- p. 75 caaveiras
- p. 140 certidume
- p. 73 congoxa
- p. 121 desenrolo

71
O autor de Arredor de si

- p. 91 dulciño
- p. 16 lonxanias
- p. 90 moitedume
- p. 129 moitedume
- p. 142 pobo
- p. 62 reló
- p. 126 reló
- p. 96 roxear das amapolas
- p. 72 siñales
- p. 97 voluntade
- p. 61 xorobados
- p. 48 xuez

Verbos

- p. 88 andiveron
- p. 23 andivo18
- p. 77 añudaba
- p. 42 añudar
- p. 57 arregrando
- p. 45 asomábase
- p. 23 desaunar
- p. 27 prantearse o probrema
- p. 70 se prantearía
- p. 113 aletexar
- p. 150 deveñir

Sintaxe

- p. 74 faise a comida (reflexividade)


- p. 79 criarse unha persoalidade
- p. 112 bebéndose as palabras
- p. 115 correuse [...] a nova
- p. 119 para se trazare un futuro
- p. 119 correu a dormirse
- p. 82 observar ô mundo (prep. a para introduzir complemento directo)
- p. 65 se ll'afinará (colocação proclítica de pronomes átonos sem motivo)
- p. 119 impresionoulle (uso do pronome lle como CD)
- p. 119 chamoulle
- p. 141 Vou a salvar (perífrase castelhana ir + prep. a + infinitivo)

Fraseologia e expressões idiomáticas


- p. 14 a tiro feito
18 Andiveron e andivo também poderiam ser consideradas formas analógicas do pretérito perfeito simples de
estar (“estiveron” e “estivo”).

72
O autor de Arredor de si

- p. 15 a zorro
- p. 37 como si tal cousa
- p. 50 pôrse a tono
- p. 54 pôrse a tono
- p. 61 pegar ollo
- p. 82 dende logo
- p. 84 De fixo
- p. 109 mais ben
- p. 133 De fixo
- p. 137 De fixo
- p. 148 De fixo
- p. 148 pol'o de pronto
- p. 152 De igoal a igoal

1.3.3.2.3. Vacilações entre castelhano e galego

calle / rúa

- p. 23 calle
- p. 25 calle
- p. 25 calle
- p. 24 rúa
- p. 25 rúa
- p. 45 rúa

carretera / carreteira / estrada

- p. 67 carreteira
- p. 88 carretera
- p. 28 carretera
- p. 52 carretera
- p. 53 estrada

quenturas / calenturas

- p. 13 calenturas
- p. 57 quenturas

ía / iba

- p. 88 ía

73
O autor de Arredor de si

- p. 8 Iba

1.3.3.3. Vacilação linguística

A leitura de um romance de Otero Pedrayo na sua primeira edição resulta


desconcertante devido às vacilações linguísticas do autor. Nas edições posteriores das suas
obras, a sua língua sofreu um processo de regularização, o que com certeza deve ter colocado
não poucas dúvidas aos responsáveis das mesmas.

O cenário literário de partida é o de uma ausência de uma norma ou tradição de escrita


culta definida aliada à vontade e necessidade de criar essa língua literária inexistente. Otero
Pedrayo tenta levar à prática os seus objectivos literários mas o resultado é o surgimento de
vacilações na sua língua: diferencialismo sistemático com o castelhano nem sempre
conseguido, dialectalismo inconsciente face a uma vontade de ultrapassar diferenças
linguísticas geográficas, modismos linguísticos cultos à par de usos populares, simples gosto
pela variedade e despreocupação pela sistematicidade, ausência de revisão de provas, gralhas
editoriais, ou ainda, atrevo-me a arriscar esta hipótese, carências linguísticas do autor.

Uma das questões postas pela escrita de Otero é a seguinte: existirá algum significado
implícito nesta suposta incoerência formal? No caso em apreço, não percebi intenções claras
do autor que justificassem tantas vacilações, mas não descarto que uma análise integral de
toda a obra do autor mostrem algum significado ou até vários. Seria muito interessante
comparar a língua de todas as primeiras edições de obras literárias do autor e verificar se as
vacilações se mantêm constantes. Também seria possível realizar um contraste com a sua obra
ensaística e científica em galego (por exemplo, os artigos da revista Nós, escritos na década de
1930), onde deveria haver maior rigor e univocidade a bem do conteúdo que se deseja
comunicar; comparar também com as transcrições dos seus discursos e palestras orais e,
finalmente, verificar até onde esta característica oteriana também se reproduz nos seus textos
escritos em castelhano. Noutro estudo poder-se-ia contrapor estas vacilações de Otero
Pedrayo às de outros escritores coevos.

No ponto anterior vimos vacilações entre formas galegas e castelhanas. Vejamos


alguns casos de vacilações no próprio galego oteriano:

74
O autor de Arredor de si

Xacobe / Xacobo

- p. 59 Xacobe
- p. 59 Xacobo
- p. 63 Xacobo
- p. 64 Xacobo
- p. 67 Xacobo
- p. 89 Xacobe
- p. 91 Xacobe
- p. 118 Xacobe
- p. 148 Xacobe

Florinda / Frolinda / Frorinda

- p. 116 Florinda (usado duas vezes)


- p. 117 Florinda
- p. 119 Florinda
- p. 120 Florinda (usado três vezes)
- p. 123 Florinda (usado duas vezes)
- p. 124 Frolinda
- p. 128 Frorinda
- p. 132 Frolinda (usada duas vezes)
- p. 133 Frolinda (usada duas vezes)

Parece haver uma preferência geral pelas formas Xacobe e Florinda. Otero utilizou os
nomes de muitas personagens noutras obras suas, mas parece não ter mantido uma coerência
com as formas dos mesmos. Em Escrito na néboa, romance de 1927, o apelido do
protagonista é Solobio, mas três anos depois em Arredor de si troca-se o <b> pelo <v>:
Solovio.

Galiza / a Galiza / Galicia

- p. 12 A Galiza lonxana
- p. 14 da Galiza
- p. 27 da Galiza
- p. 42-43 de Galiza
- p. 43 esa Galiza
- p. 44 a Galiza
- p. 47 Galiza
- p. 50 Galiza
- p. 70 de Galiza
- p. 70 da Galiza

75
O autor de Arredor de si

- p. 71 da Galiza
- p. 71 Galiza
- p. 71 Galiza
- p. 72 Galiza
- p. 72 Galiza
- p. 72 da Galiza
- p. 73 da Galiza
- p. 73 Galiza
- p. 73 Galiza
- p. 74 de Galiza
- p. 92 da Galiza
- p. 94 de Galiza
- p. 117 tod'a Galiza
- p. 119 da Galiza
- p. 125 da Galiza
- p. 127 da Galiza
- p. 132 da Galiza
- p. 134 Galiza
- p. 137 da Galiza
- p. 139 na Galiza
- p. 139 da Galiza
- p. 141 de Galiza
- p. 141 Galiza
- p. 146 na Galiza
- p. 146 da Galiza
- p. 146 d'unha Galiza
- p. 147 tod'a Galiza
- p. 147 A Galiza labrega
- p. 149 da Galiza
- p. 150 da Galicia
- p. 150 Por Galiza
- p. 150 na Galiza
- p. 150 da Galiza
- p. 150 A Galiza privada
- p. 152 na Galiza
- p. 153 da Galiza
- p. 153 da Galiza
- p. 153 a Galiza

O uso do artigo definido com o topónimo Galiza não é claro, apesar da enorme
importância que o uso do nome de um país deveria ter para um ideólogo galeguista como
Otero Pedrayo. Nota-se uma preferência clara pela forma Galiza, com ou sem artigo. As
vacilações chegam ao extremo de que na página 150, a poucos parágrafos do final do romance
e num momento de claro posicionamento ideológico e vital do protagonista, é possível ler-se

76
O autor de Arredor de si

em menos de duas linhas: da Galicia, Por Galiza e na Galiza.

primaveira / primadeira

- p. 19 primadeiras
- p. 21 Primadeira
- p. 25 primaveiras
- p. 28 Primadeira
- p. 28 primadeira
- p. 29 primadeira
- p. 44 primaveira
- p. 47 Primaveira
- p. 55 primaveira
- p. 40 carballeiras primaveirás

arboredo / arboleda

- p. 28 arboredo
- p. 28 alboredo
- p. 53 arboredos
- p. 69 arboredo
- p. 79 arboredos
- p. 89 as arboledas
- p. 92 arboredo
- p. 96 arboredos
- p. 98 arboredos
- p. 103 arboledos
- p. 108 arboredos

Arboredo é a forma preferida do autor, mas esta convive com arboledo e arboleda.
Esta última é um castelhanismo.

rapaza / rapariga

- p. 28 rapazas
- p. 61 rapaza
- p. 80 rapaza
- p. 87 raparigas
- p. 88 rapaza
- p. 88 rapariga
- p. 88 rapaza
- p. 96 rapaza

77
O autor de Arredor de si

Parece haver uma preferência pela forma rapaza. No entanto, Otero varia duas vezes
nas páginas 87 e 88 entre rapariga e rapaza sem qualquer diferença. Talvez seja um
dialectalismo ou um lusismo incorporado na sua língua literária a fim de evitar repetições.

aer / aire

- p. 51 aer
- p. 70 aire
- p. 91 aer
- p. 95 aer
- p. 96 aire
- p. 100 aer
- p. 111 aers
- p. 115 aer
- p. 115 aire
- p. 123 aire
- p. 125 aer
- p. 129 aire
- p. 135 aer
- p. 140 aer
- p. 143 aer

seguridade / seguranza

- p. 16 seguridade
- p. 48 seguridade
- p. 93 seguranza
- p. 110 seguridade
- p. 127 seguridade
- p. 128 seguranza
- p. 128 seguridade
- p. 140 seguridade (usada duas vezes)
- p. 142 seguranza

hasta / hastra

- p. 91 hastra
- p. 92 hastra
- p. 97 hasta
- p. 107 hastra

78
O autor de Arredor de si

Hastra é a forma mais habitual em todo o romance.

pendurar / colgar

- p. 34 pendurar
- p. 36 pendurados
- p. 37 pendura
- p. 63 penduradas
- p. 80 penduraba
- p. 91 descolga
- p. 91 Pendurárono

O uso de descolga parece uma excepção no conjunto do romance.

cidade / cibdade

- p. 10 cibdade
- p. 19 cibdade
- p. 28 cibdade
- p. 49 cibdade
- p. 52 cibdade
- p. 61 cibdade
- p. 92 cidades
- p. 115 cibdade
- p. 120 cibdade
- p. 127 cibdade
- p. 128 cibdades
- p. 142 cibdade
- p. 143 cibdade

Também aparece cibdadán na página 136. O uso de cidade parece uma excepção no
conjunto do romance.

dominar / domiñar

- p. 45 dominaba
- p. 53 domiñar
- p. 60 dominaba

79
O autor de Arredor de si

- p. 75 dominadora
- p. 81 dominadora
- p. 93 dominare
- p. 97 domiñadora
- p. 110 domiñante

Domiñar parece um uso diferencial típico de Otero Pedrayo.

1.3.3.4. Dialectalismos

São poucas as marcas dialectais que encontramos em Arredor de si. Alguns exemplos
são os seguintes:

Plurais

- p. 10 pompós
- p. 10 escobillós
- p. 45 oposiciós
- p. 71 melocotós
- p. 74 oposiciós
- p. 74 aforrós
- p. 106 degradaciós

Pronomes

- p. 99 Il

Demonstrativos

- p. 88 aquil
- p. 9 aquil
- p. 9 iste
- p. 103 ise

Advérbios

- p. 85 eiquí

80
O autor de Arredor de si

1.3.3.5. Outras características

1.3.3.5.1. Sufixo -eiro

- p. 15 erguerse tardeiro
- p. 20 mociño riseiro
- p. 23 un pouco tristeiro
- p. 60 pelo ainda griseiro
- p. 63 testa xa griseira
- p. 150 falseiro

Otero Pedrayo faz um uso do sufixo -eiro diferencial do ponto de vista da forma, sem
acrescentar qualquer valor ou matiz à palavra em muitos casos. É mais frequente ver este
sufixo com adjectivos, mas também é aplicado a advérbios.

1.3.3.5.2. Substantivação de infinitivos

Otero Pedrayo utiliza a substantivação de infinitivos de forma abundantíssima.


Seleccionamos apenas alguns exemplos ilustrativos:

- p. 7 o brilar do día
- p. 26 o rolar dos coches
- p. 30 un sorrir
- p. 31 no empardecer
- p. 34 un vivir sán e volgar
- p. 136 o seu cantar
- p. 137 un cantar
- p. 139 o correr das estradas
- p. 140 un tremelocir d'estrelas
- p. 143 do seu vivir
- p. 145 no seu novo e ledo sentir i-enxergar
- p. 148 un empardecer

1.3.3.5.3. Dativo de solidariedade

O uso do dativo de solidariedade está motivado pela inclusão de intervenções de


personagens em estilo directo nas páginas indicadas. Embora Otero Pedrayo tivesse podido
fazer um uso diferencial marcado por meio deste recurso gramatical, as ocorrências não são
muito abundantes em Arredor de si.

- p. 33 xa ch'imos vellos

81
O autor de Arredor de si

- p. 65 ténche razón
- p. 66 éche
- p. 66 Eche
- p. 66 ténche razón
- p. 67 ll'están alí
- p. 67 sónlle
- p. 73 sonlle
- p. 85 éche
- p. 122 non che sei
- p. 149 sônche

1.3.3.5.4. Repetições próximas

Otero Pedrayo tem um léxico próprio e uma teimosa preferência pela repetição de
certas escolhas lexicais. O diferencialismo com o castelhano é um dos motivos para que isto
aconteça, mas também pode haver outros, como uma simples opção de estilo. Julgo que estas
escolhas deveriam ser estudadas com mais pormenor como parte de uma estilística oteriana
ainda por fazer.

Junto com essas escolhas lexicais, também tive a impressão de que, em certas partes
de Arredor de si, o autor recorria, em contextos próximos, à mesma palavra ou expressão duas
ou mais vezes, parecendo forçar a inclusão destas. Alguns exemplos são os seguintes:

- p. 26 a medias
- p. 26 as medias

- p. 66 lonxanas
- p. 66 lonxe
- p. 66 lonxe

Lonxe e outras palavras da sua família são abundantes em Arredor de si. Na página 66
vemo-la utilizada três vezes.

- p. 74 angueiras
- p. 75 angueira
- p. 75 angueira

- p. 95 esgrevios

82
O autor de Arredor de si

- p. 95 esgrevia

- p. 95 rexo
- p. 95 rexa

Esgrevio e rexo, palavras de bastante proximidade semântica, são utilizadas duas vezes
cada uma num espaço de poucas linhas. Também aparecem em bastantes outras páginas do
romance.

- p. 103 precisión
- p. 103 precisión

Precisión com o sentido de “necessidade” é palavra do gosto de Otero Pedrayo, que a


utiliza em bastantes ocasiões.

Se bem que menos frequente, também há trechos onde Otero se serve da sinonímia
para evitar repetições, como no seguinte, onde são usadas palavras semanticamente próximas
(gozaba, disfroitoú, gozar e gostosamente):

Bécquer gozaba com'un descobridor, aquila legría, unha das poucas do seu vivir probe, non se
volverá a repetire. Barrés tamén disfroitoú d'unha felicidade: home de cultura confiada, feita,
dominadora, gozaba a Toledo ouxetivamente, com'unha esprencia mais. Atopaba en carne de edificios,
en paixón, en terra e sangue un dos seus soños d'egotista, com'un cheiro gostosamente tráxico[...] (Otero
1930: 81)

Como exemplo paradigmático de repetições próximas, atentemos para as páginas 118,


119 e 120 do romance. Podemos observar ao todo sete repetições, embora também se recorra
a sinónimos:

83
Repetições próximas:
1. Saint-Sulpice / San Sulpice
2. Apaixoado / paixón / paixón
3. Esprenceas / esprenceas / esprencias
4. Derradeiro / derradeiras
5. Agarimo / acariñaba / acariñaba
6. Tona de pel / tona da yalma
7. Silenzos / silenzo
2. TRADUZIR DE GALEGO PARA PORTUGUÊS:
CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-PRÁTICAS
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

2.1. Necessidade e aceitabilidade. Tradução ou adaptação?

Uma questão óbvia que surge no contexto do presente estudo, bem como nos
intercâmbios entre as literaturas em galego e português, é a seguinte: É realmente necessário
traduzir de galego para português? E, logo a seguir, surgem outras perguntas, por lógica: Por
que motivos é necessário traduzir de galego para português? Quais as razões que levam a
considerar que uma obra galega deveria ser traduzida para português ou para um público
português? Como levar a cabo esta tarefa?

Não tenciono responder a estas perguntas de forma global, isto é, abrangendo todo o
tipo de textos, literários ou não, o que julgo ser uma tarefa impossível, uma questão de
complexidade poliédrica com múltiplos ângulos de visão. Desejo apenas acrescentar mais um
elemento ao debate teórico e à prática tradutiva: o caso específico da narrativa de Ramón
Otero Pedrayo.

Baxter (2004) , ao abordar a tradução de galego para português, refere o seguinte:

[...] a justificação deve repousar no facto de existirem salientáveis diferenças, para se poderem
contrastar, entre a versão original e a versão traduzida, para além de simples mudanças de tipo
ortográfico, se socialmente ela quer ser aceita [sic] como uma autêntica “tradução” e não apenas como
uma simples “adaptação”. [...] a não existirem diferenças claras a todos os níveis (sintaxe, morfologia,
léxico...) entre o texto de partida e o de chegada, não existe razão suficiente alguma para sustentar que
se trata de duas línguas diferentes, nem, portanto, que resulta precisa uma tradução entre ambas. (Baxter
2004: 130)

Para Baxter o importante é “a perspectiva do valor simbólico das línguas envolvidas”


(2004: 129). A seu ver, não interessa estritamente o que se faz nem como se faz, em referência
ao acto tradutivo, mas porquê se faz. Seguindo esta linha de raciocínio, uma das hipotéticas
funções da pessoa tradutora e da tradução é “distanciar socialmente quanto for possível as
variedades linguísticas próprias da Galiza do conjunto do galego-português de além das suas
fronteiras” (Baxter 2004: 136).

O presente estudo não aspira a demonstrar ou refutar que galego e português são
variedades de um mesmo sistema linguístico. A intercompreensão mútua, escrita ou oral, em
contextos claros, sobre assuntos conhecidos e com um nível de língua básico é evidente aos
olhos e ouvidos de qualquer utilizador da língua19. Também não tenciono argumentar a
19 No entanto, desejo apontar que a maior parte dos estudos linguísticos, como se pode ver em Cunha e Cintra

87
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

necessidade ou necedade20 da tradução de todo o tipo de textos entre galego e português. O


que importa aqui, do meu ponto de vista, é analisar certas características de uma das obras
narrativas de Otero Pedrayo e concluir se há necessidade ou não de uma tradução que
aproxime a mesma dos leitores em língua portuguesa. Veremos no seguinte capítulo que todos
os quesitos acima mencionados por Baxter, e ainda outros, são apresentados e comentados:
ortografia, morfologia, sintaxe, léxico (falsos amigos de todo o tipo, castelhanismos),
fraseologia, diversas características próprias da língua e usos de Otero Pedrayo e diversas
questões relativas aos manuscritos oterianos, às primeiras edições e às edições mais recentes
de obras de Otero Pedrayo. Esta análise é o resultado das reflexões realizadas durante a
tradução.

Reconheço igualmente que existe a possibilidade de que uma dada tradução, literária
ou não, seja completamente prescindível ou até inútil por não cumprir função alguma, isto é,
quando apenas existe uma adaptação ortográfica com mínimas diferenças lexicais. É o caso
evidente de passagens, citações ou trechos breves de textos que são perfeitamente
compreendidos e que cumprem o que delas é esperado. No caso de Arredor de si de Otero
Pedrayo houve, desde o projecto inicial, uma impressão clara da necessidade da função
tradutiva. Provavelmente, em textos galegos de complexidade similar torna-se muito
recomendável a tradução.

Baxter (2004: 132) também afirma que “avondaria com incluir umas quantas – poucas
– notas explicativas a rodapé” para castelhanismos, arcaísmos, dialectalismos, galeguismos e
ainda enxebrismos21. Se assim tivesse sido feita uma nossa adaptação em sentido lato, pois
que já não seria em sentido estrito uma tradução, haveria que incluir uma infinidade de notas
em quase todos os parágrafos do texto de Otero Pedrayo. Se a estas acrescentássemos as notas
que julgo necessárias para uma melhor recepção do romance em questão, o texto tornar-se-ia,
na prática, de leitura insuportável. É pedido ao leitor um grande esforço de compreensão ou
decodificação de um texto numa variedade ou língua não reconhecida como própria ou
habitual e com infinidade de notas ou textos explicativos. A função estética do mesmo
ver-se-ia muito comprometida, se não absolutamente dinamitada. Esta sugestão de Baxter

(1990), coincidem em definir galego e português como variedades de um mesmo sistema linguístico.
20 O trocadilho é de Baxter (2004: 127), embora se engane ao escrever nec(ess)idade quando deveria ser
nece(ssi)dade.
21 Diferencie-se o galeguismo (do ponto de vista do português) do enxebrismo (termo castiço e próprio da

língua galega).

88
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

poderia ser aplicável a outros tipos de texto e a outros autores, mas não ao romance Arredor
de si e, em minha opinião, a praticamente nenhuma das obras narrativas de Otero Pedrayo
nem a outras de complexidade linguística similar. Pode resultar muito mais proveitoso e
prazeroso para um hipotético leitor poder dispor de uma breve introdução escrita pelo tradutor
ou editor, explicativa de aspectos que o público destinatário pode desconhecer, sem por isto
desvirtuar ou condicionar a leitura do romance. Esta foi a solução adoptada por Kathleen
March, tradutora de Arredor de si para inglês, e também a opção de algumas das edições em
galego do romance.

2.1.1. Adaptação: Sempre em Galiza de Castelao

Adaptação é um termo controverso do ponto de vista teórico e não apresenta uma


definição única. Vejamos o que acontece com o livro Sempre em Galiza (2010), editado pela
Através Editora. Na capa desta obra clássica do nacionalismo galego lê-se “Versão em língua
portuguesa: Fernando Vasquez Corredoira” sob o apelido do autor, Castelao. No interior, nas
referências bibliográficas, em letras de tamanho reduzido, ficamos a saber que o título original
é “Sempre en Galiza” e, nesta mesma página, é usada a expressão “tradução do original”. Não
são indicados nem o ano nem a edição do original utilizado para esta versão em língua
portuguesa. Informa-se apenas, na contracapa, de que a primeira edição foi publicada em
1944, no exílio do autor em Buenos Aires. No entanto, a intenção editorial só parece ficar
clara numa outra obra anexa, Sempre Castelao (Penas e Sanmartin 2010). Neste livro,
composto de breves e diversos textos de vários autores, publicado e vendido juntamente com
o Sempre em Galiza, o versionador do original, Vasquez Corredoira, reflecte acerca do acto de
“rescrever em português o que já foi escrito em português” (Vasquez Corredoira 2010: 11). O
seu próprio texto tem por título “Prefácio à versão em língua portuguesa do Sempre em
Galiza” (negritos nossos). Vasquez Corredoira prefere falar em “versão” e não tanto em
“tradução” ou “adaptação”.

Do nosso ponto de vista e à luz dos Estudos de Tradução, não é possível considerar
este texto como uma adaptação em sentido estrito: não parece existir uma reescrita nem se
verifica uma ausência de um contexto a que se faz referência no original, elementos incluídos
no conceito técnico de adaptação usado por Vinay e Darbelnet (apud Bastin 2009: 3-4). A
vontade inicial foi a de transcrever o texto de partida do Sempre en Galiza à norma do

89
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

português europeu, neste caso utilizando a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990,
ao qual se acrescentou um glossário final explicativo de termos galegos, para além das
abundantes e extensas notas culturais após cada uma das partes (um prólogo e quatro livros)
de que se compõe a obra. Editores e/ou tradutor tiveram o intuito de manter a versão
resultante próxima do original, pressupondo que os potenciais leitores em português irão
informar-se quando surgirem dúvidas sobre os termos galegos usados ou as referências
culturais correspondentes. O resultado desejado é aferrar-se tanto quanto possível à letra do
original, mesmo à custa de usos e expressões que podem resultar inesperados para um leitor
de língua portuguesa.

Realizarei uma muito breve análise dos elementos modificados na versão em


português. Para esta análise utilizei como texto de partida a edição de 1986 do Sempre en
Galiza publicado pela Editorial Galaxia. Na bibliografia desta edição indica-se muito
sucintamente terem sido operadas correcções de ortografia, vulgarismos, deformações e, em
alguns poucos casos, morfossintaxe e léxico. Esta mesma questão relativa a edições e
posteriores alterações do original, que não é menor, colocou-se também com a tradução de
Arredor de si, como veremos22.

Foram contrastadas as primeiras páginas do Adro (Castelao 1986: 9), livro primeiro
(idem 1986: 31) e livro segundo (idem 1986: 127) do original e as respectivas da versão em
português. Ao todo são apenas três páginas. As diferenças ortográficas foram excluídas deste
contraste.

Vejamos as alterações não ortográficas operadas, apresentadas por ordem de aparição:

Original galego Versão em língua portuguesa


Bos Aires Buenos Aires
cavilando reflectindo
tivo a ben houve por bem
velos aí ei-los
fanal campânula
lonxanía lonjura
percibo [a Elvas] enxergo [Elvas]

22 Posteriormente contrastada com a primeira edição, não tiveram relevância alguma as correcções realizadas
nesta edição de 1986 para a presente análise.

90
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original galego Versão em língua portuguesa


vagamundo vagabundo
a todas partes a toda a parte
vedreiro velho
intre momento
temades receeis
arroutos raptos [arroubos]
velaí23 eis
se me ocurre me ocorre
24
decirlles aos lectores dizer aos leitores
pasan a vida predicando passam a vida a pregar
ledicia ledice
cicais25 talvez
antifeixistas antifascistas
outa alta
ogallá oxalá
adovíos enfeites
en Galiza na Galiza
arrincamos arrancamos
creen acreditam
está lonxe é longe [fica longe]
pero mas
tronzouse, troncen truncou-se, trunquem
empezo começo
Nova York Nova Iorque
invita convida
ensumirnos sumir-nos
rañaceos arranha-céus [sem itálico]
fiestras janelas
dende a miña [fiestra] da minha [janela]
coartelas folhas de papel
seguro [estou] certo [estou]

23 Velahí na primeira edição.


24 Decirlle na primeira edição.
25 Cicáis na primeira edição.

91
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original galego Versão em língua portuguesa


sona nomeada
creto crédito
afán anseio

A seguir, vejamos o breve rol de galeguismos mantidos e a sua explicação no glossário final:

Original galego Versão em língua portuguesa Glossário


lanzal lançal [esbelto] -
luxado luxado [sujo] sujo; gasto
faramalleiros faramalheiros [trapaceiros, trapaceiro
enganadores]
ateigados ateigados [atulhados] atulhado
ponla póla [ramo] ramo
cachoupa cachopa [toco de árvore] tronco, toro
tristura tristura [tristeza] -
esborranchen [v. esborranchar] esborranchem [esborratem] borratar, garatujar
acugulados acogulados [atulhados] -

Por último, eis os galeguismos que figuram nas citações iniciais dos livros primeiro e
segundo, mantidos na versão em português:

Original galego Versão em língua portuguesa Glossário


trebón trevão [trovão] -
sagra sagra [sacra] -
ringleira ringleira [fileira] renque, fileira [no glossário
rengleira]

Não aparece no início do livro nenhuma indicação da existência de um glossário final


de termos galegos. Somente se faz referência ao mesmo no texto de Vasquez Corredoira
(2010) em Sempre Castelao, obra anexa. Também não é indicado no corpo do texto quais os
termos que figuram no anexo, pelo que o leitor que não conhecer alguma palavra terá de ir ao
glossário, sem ter a certeza de a encontrar.

92
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

2.1.1.1. Alterações não ortográficas no Sempre em Galiza

Os topónimos “Buenos Aires” e “Nova Iorque” foram escritos segundo a tradição


portuguesa, que não tem de coincidir com a galega, que poderia ter mudado de 1944 até à
actualidade. Da mesma forma, a designação portuguesa das cidades de “Madrid” e
“Moscovo” tem por equivalentes “Madri” e “Moscou” no Brasil.

Com o topónimo “Galiza” acontece algo singular: O título do livro original é


respeitado, Sempre em Galiza, mas no corpo do texto surge Galiza com artigo definido. O uso
no português europeu é muito claro: sempre leva artigo definido feminino. Embora dentro da
esfera ortográfica, mencione-se que “hespañoes” e “hespañola”, bem como “Hespaña” ao
longo de todo o livro, foram usadas com agá pelo autor 26. Na versão em português ler-se-á
também “Hespanhóis”, “hespanhola” e “Hespanha”. Parece não haver um comportamento
coerente na realização da tradução: em um caso mais próximo do original, no outro das
normas da língua de recepção.

O substantivo vagamundo também se encontra dicionarizado em português, sendo


preferente “vagabundo”. Na versão em português foi preferida esta última.

A palavra galega intre, incluída no Dicionário Estraviz, entre outros, é usada


largamente no galego atual. Foi escolhido “momento” como equivalente em português.

O termo arrouto também foi recolhido por dicionários galegos com o mesmo sentido
que os portugueses “arroubo” ou “rapto”, termo este seleccionado para o texto final.

Adovíos é traduzido por “enfeites”, tendo sido possível recorrer também a “atavios”.

Rañaceos figura grifado no original, mas em português perde-se esse formato. Talvez
fosse de interesse mantê-lo, dado o momento histórico em que foi escrito o livro, 1944.

Com a palavra ledicia pode interpretar-se a existência de um emprego diferencial:


evita-se o termo alegría, muito mais comum na oralidade, por ser coincidente com o
espanhol. A versão em português escolheu o termo “ledice”, de uso muito raro, o que irá ser
visto pelo leitor como uma palavra culta, introduzida intencionalmente. Contrariamente,

26 Hespanhaé a designação utilizada pela geração Nós para se referir à união de povos da Península Ibérica
(Pociña López 2008: 223).

93
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

“cecais” é transformado em talvez, desta vez sim respeitando a frequência de uso deste
advérbio em português face a quiçá, equivalente literal que seria esperável numa mera
transformação ortográfica, de uso mais restrito na oralidade e até na escrita em português.

Por último, passam a vida predicando é transformado em “passam a vida a pregar”,


com uma modificação léxica e estrutural.

Em bastantes casos, a alteração não puramente ortográfica é devida à presença de um


castelhanismo ou de palavras e expressões assim consideradas: fanal, lonxanía, percibo, a
todas partes, se me ocurre, decirlles aos lectores, pero, tronzouse, troncen, invita, dende a
miña [fiestra], coartelas, seguro [estou], afán.

Como pudemos ver, em apenas três páginas são bastantes os elementos alterados que
não têm relação unicamente com a superfície ortográfica do original.

2.1.1.2. Manutenção de galeguismos

Dos galeguismos mantidos no corpo do texto, lançal (“esbelto”) e acogulados


(“atulhados”) irão ocasionar problemas, embora não sejam essenciais à compreensão geral do
texto. Tristura (“tristeza”) pode chamar a atenção do leitor em português, mas não levanta
dúvidas. Exceptuando os três anteriores galeguismos, os restantes acima indicados figuram no
glossário final da obra. Apenas um deles poderia levar a equívoco: esborranchen, mantido
como “esborranchem” (esborratem; garatujem, rabisquem). Esta forma está muito próxima de
“esborrachar” (esmagar). O contexto, neste caso, ajuda porque não se espera que alguém
“esborrache folhas de papel”. No entanto, é possível a confusão ou impressão de haver
alguma coisa errada. Daí a importância da inclusão de chamadas ou marcas para poder
efectuar a consulta dos termos galegos.

2.1.1.3. Tratamento dado às citações

No início dos livros primeiro e segundo aparecem as seguintes citações, que reproduzo
com a versão em português em paralelo e as suas correspondentes tipografias:

Original galego Versão em língua portuguesa


Roseira que o trebón deixou espida Roseira que o trevão deixou espida
é a sagra Terra nosa. é a sagra Terra nossa.

94
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

¡Temos de póla ergueita, frorecida, Temos de pô-la ergueita, frorecida,


cada pinga de sangue nunha rosa! cada pinga de sangue numa rosa!
RAMÓN CABANILLAS RAMÓN CABANILLAS
A probe da formiga botou a andar, lixeira, A pobre da formiga botou a andar, ligeira,
Parando a todas cantas ó paso tropezou; parando a todas q'antas ó passo tropeçou;
Estas pararon outras i en ringleira estas parárom outras e em ringleira
A pouco un gran trafego antre elas comezou. a pouco um grão trafego entre elas começou.
CURROS ENRÍQUEZ CURROS ENRÍQUEZ

Surpreende ver que fosse produzida uma versão em português destas citações, versos
que fazem parte de outras obras de poesia de autores clássicos galegos. Haveria que
considerá-las tanto no contexto do Sempre em Galiza como no das obras de procedência
original, respectivamente Da Terra Asoballada de 1917 e Aires da miña terra de 1886. Julgo
que o melhor teria sido deixar as citações originais e não arriscar uma tradução ou versão
muito literal. Os galeguismos mantidos aqui não foram incluídos no glossário final.

Na primeira citação, aparecem “trevão”, “espida”, “sagra”, “frorecida”. As três


primeiras correspondem a “trovão”, “despida” e “sacra” em português. “Trevão” poderia
confundir-se com um aumentativo de “trevas”. Tanto “espida” quanto “sagra”, que aparece a
par de “Terra nossa”, afiguram-se-nos menos ambíguas, tal como “frorecida”. No caso deste
adjectivo, na versão em português do Sempre em Galiza pode ler-se também “florescidas”: em
contexto, “póla florescida na velha cachopa de Hespanha” (Castelao 2010: 38). Num caso,
surpreendentemente, é mantida a ortografia original, provavelmente por serem os versos de
um poema de autor diferente; no outro, há mudança. “Ergueita” parece-nos que seria de difícil
interpretação, com “erguida” como escolha mais esperável e desejável. “Pinga”, sem levantar
problemas, seria mais aceitável como “gota” ou “pingo”.

Na segunda citação, as questões são outras: “botou a andar”, “parando a todas”,


“q'antas”, “ó”, “passo”, “tropeçou”, “parárom”, “ringleira”, “a pouco”, “grão trafego”. “Botou
a andar” pede “desatou a andar” ou simplesmente “começou a andar”. Já “parando a todas”
deveria eliminar a preposição a para ficar “parando todas”. Em “q'antas” vê-se uma licença
poética que aproxima a grafia da oralidade. Existe a intenção de mostrar ao leitor em
português que “quantas” é lido como “cantas”. A contração “ó” poderia ser interpretada como
interjeição ou simples gralha. Teria sido melhor optar por “ao”, sem afectar ao número de
sílabas do verso. “Passo”, claro castelhanismo, deveria ser “passagem”, de género feminino.

95
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

“Tropeçou” pede a regência da preposição com, que está ausente. No verbo “parárom” é usada
a ortografia AGAL. “Ringleira”, que consta do glossário final como “rengleira”,
provavelmente por figurar noutro lugar da obra, é desconhecida dos falantes de língua
portuguesa, sendo desejável o uso de “fileira” ou “fila”. “A pouco” deveria ser “dali a pouco”.
“Grão” poderia ser intepretada como substantivo e “trafego” vista como uma gralha, sem o
acento agudo de “tráfego”. Uma possível tradução, sugestão nossa, seria: “A pobre da formiga
desatou a andar, ligeira / Parando todas com que à sua passagem tropeçou; / Estas pararam
outras e em fileira / E logo um grande tráfego entre elas começou”. Nesta proposta, prescindi
do pronome relativo “quantas” para introduzir a preposição com que rege tropeçar e traduzi A
pouco por “E logo” com sentido de imediatez.

No caso dos versos destas citações, não há uma mínima hipótese de obter uma versão
que funcione27 em português com uma mera alteração ortográfica: devem ser traduzidos ou
devem figurar como no original.

2.1.1.4. Outras opções possíveis

Nas três páginas iniciais analisadas, por duas vezes aparece o uso do pronome se com
valor impessoal, isto é, com sujeito não explícito. Uma outra opção em português, para além
do uso da mesma estrutura, teria sido uma construção passiva, de uso muito mais frequente
em português do que em galego, seja na escrita ou na oralidade.

Original galego Versão em língua portuguesa


Cando a Galiza se lle cortou o caminho Quando à Galiza se cortou o caminho

tronzouse a raíz truncou-se a raiz

Outras alternativas às soluções escolhidas poderiam ser: “Quando à Galiza foi cortado
o caminho” e “foi truncada a raiz”.

2.1.1.5. Sempre em Galiza: conclusões

À vista das páginas analisadas, o resultado da versão em língua portuguesa às vezes

27 Aabordagem funcionalista vê a tradução como uma actividade transcultural que desempenha uma função
em um dado contexto (Schäffner 2009: 115).

96
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

parece conseguir o seu objectivo, com uma leitura acessível. Outras vezes assemelha-se a
alguma outra coisa, ora próxima do português, ora estranha, ora alheia, ora infrequente, ora
simplesmente errada. Podemos ver também que não foi possível realizar um trabalho que
afectasse apenas à superfície ortográfica, surgindo outras questões, nomeadamente lexicais, às
que dar resposta. Também observámos algumas poucas alterações estruturais, ainda que
importantes para a recepção do texto final. A estratégia de elaboração de um glossário, se bem
que interessante e respeitosa com o original e com as particularidades linguísticas galegas,
resulta insuficiente, devido sobretudo a não haver indicações de quais os termos a consultar.
Também foram referidas algumas incoerências no que diz respeito à escolha, na versão em
português, de palavras do original ou as mesmas de uso corrente no português europeu.

Desejo explicitar que esta breve análise teve em conta apenas elementos linguísticos,
sem considerar a intencionalidade do autor, a totalidade do ensaio em questão, o conjunto de
vida e obra, assim como relações interpessoais com outros intelectuais e escritores da época,
entre outros factores. São elementos muito relevantes para um tradutor literário, que deve
conhecer antes de iniciar o seu esforço, a risco de interpretar erradamente as intenções iniciais
de um autor.

Realizar uma versão em língua portuguesa do Sempre en Galiza parece-nos uma tarefa
comparável, em muitos aspectos, à tradução de Arredor de si que aqui propomos. Os seus
respectivos autores são da mesma época histórica, colaboradores e amigos pessoais. No
entanto, um aspecto importante as diferencia: o primeiro é um longo ensaio político; o
segundo é um romance com claras intenções estilísticas, para além das ideológico-didácticas
implícitas. Julgo que uma abordagem restrita à simples alteração ortográfica de Arredor de si,
para além de problemática, produziria um resultado de baixa aceitabilidade ou, quando
menos, uma pobre versão-tradução literária em língua portuguesa, entre outros motivos por
causa da perda da sua função estética.

2.1.2. Adaptação: Os Pobres de Deus de Amado Carballo

Quero considerar a seguir a adaptação de diversos textos em prosa e verso de Luís


Amado Carballo, que foram reunidos e publicados em 2011 sob o título de Proel e O Galo. A
adaptadora dos textos é Isabel Rei Samartim, que contou com os correctores Carlos Durão e
Fernando Vasquez Corredoira. Na bibliografia, a obra é referida como sendo uma “tradução

97
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

do original”, sem que se indique qual é a edição do mesmo.

A breve análise que apresento teve em conta apenas as primeiras quatro páginas, isto é,
a primeira parte das nove de que é composta a novela Os Probes de Deus. Esta breve história
de apenas trinta e poucas páginas, tendo sido escrita pelo autor em 1923 e publicada
originalmente pela revista Lar em 1925, apresenta um elevado grau de semelhança com
Arredor de si de Otero Pedrayo, sobretudo pela proximidade temporal e as intenções estético-
literárias, para além de que o editor de ambas, Ánxel Casal, tenha sido a mesma pessoa. A
extensão e as temáticas das duas obras são muito diferentes.

Antes de passar à análise, apresento uma lista de diferenças entre texto de partida e
texto de chegada. Ofereço entre colchetes, na coluna da direita, opções possíveis em
português europeu padrão.

Original galego28 Versão adaptada à ortografia portuguesa


Probes Pobres
tremar tremer
súpetos súbitos
calofríos calafrios
ateigada ateigada [atulhada]
cheirentos cheirentos [malcheirosos]
tépedo tépido
de leito en leito de leito a leito [entre leito e leito]
mainiñamente maininhamente [calmamente, mansamente]
resiñada resignada
melanconía melancolia
verbas palavras
espranza esperança
Carón da A carão da [Ao lado da]
fenestra janela
comprida edá comprida idade [avançada idade]
ollaba o paisaxe olhava a paisagem [olhava para a paisagem]
apreixando apresando [apertando]

28 O original utilizado foi a edição de 1970 de Edicións Castrelos, publicado em Vigo. Posteriormente, esta
lista foi novamente comparada com a primeira edição, de 1925, sem que existissem diferenças de maior.

98
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original galego Versão adaptada à ortografia portuguesa


alento alento [respiração, hálito]
os máis asilados os demais asilados
balbordo balbordo [balbúrdia, confusão]
risas risos
xantar jantar [almoço]
atopábase achava-se
íbao ia-o
ganando29 ganhando
asemade assemade [a cada passo]
floxa frouxa
que (...) levantábase que (...) levantava-se [que (...) se levantava]
aló aló [lá]
leira leira [terreno, campo]
legón legão [enxada]
ao lombo ao lombo [às costas]
apouvigado apouvigado [estafado]
cansancio cansaço
meirande maior
ledicia lediça [alegria]
vagariñante vagarinhante [vagarosa]
lexanías longuidões [longes, lonjuras, distâncias]
bretemosas bretemosas [nevoentas, brumosas]
dende as fenestras das janelas
tempos (...) nos que o seu corpo tempos (...) em que o seu corpo
aterecido aterecido [aterido]
rudo rude
traballo dacotío trabalho de a cotio [quotidiano, diário]
decote sempre
finaba por espertar finava por despertar [acabava por acordar]
ensoño30 sonho
anguria angústia
arela arela [anseio, desejo]
29 Gañando na primeira edição de 1925.
30 Ensono na primeira edição de 1925.

99
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original galego Versão adaptada à ortografia portuguesa


cramar a berros clamar aos berros
pranto (...) que esbaraba (...) polas súas pranto (...) que esvarava [descia, caia,
enrugas escorregava] (...) pelas suas enrugas [rugas]
decote de cote [de costume]
valeira vazia
agarimos agarimos [carinhos]
barudos alentos varudos alentos [vigoroso alento]
ponlas polas [ramos]
do seu dór da sua dor
refozábase reforçava-se [revolvia-se, chafurdava]31
malpocados malpocados [miseráveis, infelizes, coitados]
(na) podre (na) podridão
cortello cortelho [curral]
carroña carniça
mes de Sant-Iago32 mês de Sant-Iago [mês de Julho]
patacas patacas [batatas]
Agarimábao Agarimava-o [Aconchegava-o]
sedante sedante [sedativo]
arelas arelas [ânsias]
fementes frementes [famintas]
Mais Mas
insospeitado insuspeito
pequeneira pequeneira [pequenina]
cucho cuxo [bezerro]
rebuldeiros rebuldeiros [brincalhões]
tola carreira tola carreira [louca corrida]
miradas miradas [olhares]
esnaquizábase esnaquizava-se [despedaçava-se, espatifava-
se]
mouras fachadas mouras fachadas [negras fachadas]

31 Considerando o contexto em que aparece, é possível que em refozábase esteja oculto um decalque do verbo
castelhano retozar(se) ou que exista uma amálgama do cast. retozar(se) e do galego fozar. O português
retouçar, com um matiz de divertimento, seria menos adequado aqui.
32 Sant-Yago na primeira edição de 1925.

100
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original galego Versão adaptada à ortografia portuguesa


casas vilegas casas vilegas [casarões, casas de vila]33
chapapote alcatrão
xenreira xenreira [ódio]
cristaíñas risas cristalinos risos
nenos nenos [meninos]
afrenta afronta
maldizoada amaldiçoada
lacras dos homildes lacras dos humildes [cicatrizes dos
humildes]34
menesterosos necessitados
Tivera desexado Tivera desejado [Teria desejado]
afundirse afundar [afundarem-se]
acougo acougo [sossego]
en ningures em nenhures [nenhures]
somellaban semelhavam [pareciam]
atopábase encontrava-se
35
espellaba espalhava [espelhava]
un anaco de terra labrega um naco de terra labrega [um pedaço de terra
camponesa]
saloucando saloucando [a soluçar]
saudade do ceibe saudade do ceive [saudade da
independência]36
que enchíao que o enchia
morriña morrinha [nostalgia]
acongoxante atormentante [aflitiva, angustiadora]
ollava (...) as cromáticas lonxanías olhava (...) as cromáticas longuidões [olhava
(...) para as cromáticas lonjuras / distâncias]

33 Uma casa vilega é uma construção de uma vila, isto é, uma casa de importância. No contexto, opõe-se ao
asilo precário de que fala a história e às restantes casas de pessoas pobres. Embora não signifique
exactamente a mesma coisa, “casas solarengas” poderia ser uma outra opção de tradução.
34 No equivalente português que propomos, “cicatriz” teria um sentido figurado, sinónimo de “marca, sequela,

vestígio negativo”.
35 Espallaba na primeira edição de 1925.
36 No texto original, umas linhas antes é utilizada a expressão saudade da libertade. Propomos

“independência” para evitar uma repetição.

101
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original galego Versão adaptada à ortografia portuguesa


coma decote como de cote [como de costume]
Voltóu a acordar en sí Voltou a acordar [Veio a si]
bágoas báguas [lágrimas]
man encallecida mão encalecida [mão calejada/encalecida]
¿Tí oies?37 Tu ouves?
Acochado Acochado [Aconchegado]
ollos afundidos nas concas olhos afundados nas órbitas
gorxa gorja [garganta]
asemade assemade [também]38
patrón dun bergantín patrão dum bergantim [mestre, capitão,
patrão]39
unha chea de uma cheia de [montes de]40
chinos chinos [chineses]
agarimo agarimo [carinho, delicadeza]
cal se fore qual se fosse

Quanto aos textos originais, nestas breves quatro páginas analisadas, foram achadas
pequenas diferenças entre a primeira edição de 1925 e a de 1970 de Edicións Castrelos
(gañando/ganando, ensono/ensoño, ti oyes/tí oies, Sant-Yago/Sant-Iago). Somente parece
salientável um pequeno lapso:

Original, primeira edição de 1925, Revista Original, edição de 1970, Edicións Castrelos
Lar
Xa tiña no peito mergullada a saudade da Xa tiña mergullada a saudade da libertade (...)
libertade (...)

37 ¿Ti oyes? na primeira edição de 1925.


38 Na versão online do dicionário da Real Academia Galega (consultado a 1 de Junho de 2015), no verbete
asemade indica-se que “O uso desta palabra co significado de tamén ou igualmente considérase incorrecto”.
No entanto, este parece ser o sentido que o advérbio possui neste contexto.
39 Sendo possível o uso de patrão, com o sentido de “pessoa ao comando de uma embarcação”, são mais

frequentes em português mestre, capitão, comandante ou arrais.


40 A expressão galega corrente unha chea de não tem a mesma frequência que “uma cheia de” em português,

embora exista com o mesmo significado.

102
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

2.1.2.1. Análise de Os Pobres de Deus

No início desta versão que adapta o texto original galego à ortografia do português,
realizada por Isabel Rei Samartim e editada em 2011, são apresentados uma nota e uns
critérios de adaptação. Na primeira são referidas a adaptação “à ortografia atual da língua
portuguesa” e a conservação do “sabor galego dos textos”. Entre os critérios de adaptação,
aparecem mencionadas as notas de rodapé para facilitar a leitura e um glossário final.

Ao ler o texto, percebe-se com clareza a vontade de se manter fiel à letra original,
alterando apenas a ortografia e depurando castelhanismos evidentes, sempre que possível. No
entanto, nem sempre é assim: verbas, fenestra, atopábase, meirande, anguria, valeira, a
podre, insospeitado, ningures são mudadas para “palavra”, “janela”, “encontrava-se” /
“achava-se”, “maior”, “angústia”, “vazia”, “a podridão”, “insuspeito”, “nenhures”. Os
critérios de adaptação desta edição, não se estendendo em explicações, são claros: “1.-
Mantém-se no possível o texto original atualizando a ortografia” e “2.- Mantêm-se em menor
medida o uso dalgumas palavras (preferência para palavra, sobre, vazio, em vez de verba,
encol de, valeiro, mantidas na poesia).” Faltaria, a nosso ver, a explicitação dos motivos que
levam a tais alterações lexicais do texto original, embora a presença dum ponto de vista
ideológico reintegracionista da língua galega seja também evidente. Paradoxalmente, há
outros casos de uso de léxico galego que se distanciam do padrão português (sem que exista
para muitas destas unidades qualquer possibilidade de compreensão fácil por parte de uma
pessoa nativa de língua portuguesa sem recurso ao glossário final ou às notas de rodapé) e que
são mantidas no texto final adaptado: “ateigada”, “cheirentos”, “assemade”, “leira”, “legão”,
“bretemosas”, “de a cotio”, “arela”, “polas” [ramos], “agarimos”, “pequeneira”, “cuxo”,
“rebuldeiro”, “carreira”, “miradas”, “esnaquizava-se”, “mouras” [pretas, negras], “vilegas”,
“semelhavam”, “saloucando”, “o ceive”, “morrinha”, “de cote”, “báguas”, “acochado”,
“gorja”, “patrão” [mestre de embarcação], “uma cheia de”, “chinos”.

Do ponto de vista tradutológico e dos Estudos Descritivos de Tradução, resulta de


interesse analisar qual é a prática efectiva, não apenas o critério apresentado inicialmente.
Outrossim, é assinalável e compreensível que um critério possa ser aplicável num contexto
mas não noutro, como por exemplo se faz ao diferenciar prosa e poesia, neste caso de
adaptação dos textos de Amado Carballo. No entanto, não parece coerente a manutenção de
galeguismos como “assemade” (com sentido de 'também'), “carreira”, “miradas”, “mouras”

103
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

(pretas, adjectivo femenino que indica cor), “semelhavam”, “gorja”, “chinos” entre outras, se
coexistem outras alterações-traduções como as já indicadas “palavra”, “janela”,
“encontrava-se” / “achava-se”, “maior”, “angústia”, “vazia”, “a podridão”, “insuspeito”,
“nenhures”.

Também foram notadas alterações ortográficas e morfológicas de um original que, se


mantidas, poderiam ser consideradas próprias do “sabor do texto galego” da época: “pobres”
por probes, “súbitos” por súpetos, “tépido” por tépedo entre muitas outras, tal e como foi
mantido “Sant-Iago”41. Verificou-se também a correção de um pronome pessoal átono mal
colocado (“que o enchia” por que enchíao) mas a manutenção de uma outra colocação errada
(“que [...] levantava-se”).

Nesta adaptação surgem, para uma hipotética pessoa receptora do texto em língua
portuguesa, falsos amigos parciais ou totais: em “olhava a paisagem” parece necessária a
preposição para, a refeição do “jantar” será considerada como nocturna, “finava por
despertar” terá um sabor confuso com nuances entre o poético e o funesto, nas “mouras
fachadas” haverá uma conotação geográfico-religiosa e não cromática, em “naco de terra
labrega” surge uma noção de alimentação.

Julgo menos correctos o uso de “sedante” (pt. ‘sedativo’), “lacras” (pt. ‘cicatrizes’ ou
‘marcas’), e “tivera desejado” (pt. ‘teria desejado’).

Outros casos mais interessantes são os que apresento a seguir, visto que há uma
componente interpretativa que deve ser dirimida e para os quais resulta fundamental o
contexto:

Original Versão adaptada à ortografia portuguesa


refozábase reforçava-se [revolvia-se, chafurdava]

O contexto original é o seguinte: “Mais él, tiña un pracer íntimo, inconfeso, nas ponlas
do seu dôr: refozábase nas suas mágoas coa ledicia de todol-os malpocados na podre do seu
esprito, coma os porcos no estrume do seu cortello, coma os probes das portas na carroña das
suas chagas”.

41 Sant-Yago na primeira edição de 1925.

104
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Como já mencionei em nota de rodapé anterior, é possível que em refozábase esteja


oculto um decalque do verbo castelhano retozar(se) ou que exista uma amálgama do
castelhano retozar(se) e do galego fozar. O uso da preposição en (nas suas mágoas, no
estrume e na carroña) e a referência à imundície e à putrefacção tornam mais credível o
sentido português de “chafurdar” e não o de “reforçar”.

Original Versão adaptada à ortografia portuguesa


fementes frementes [famintas]

Eis o contexto original: “aquelo era un consolo pro seu esprito esgazado, un sedante
para as suas arelas fementes de quietude”.

A primeira edição e a de 1970 mantêm fementes. Numa edição de 2002 da editora A


Nosa Terra também consultada, o texto muda para famentas. Não há possível acordo acerca
do sentido do original. As arelas podem ser vistas como frementes ou famentas. Pode haver
um jogo de palavras do autor (uma oposição de sentimentos entre arelas e quietude) ou pode
haver uma simples gralha. A tomada de decisão terá em conta uma interpretação ou outra.
Num contexto mais alargado, o da história narrada, pareceu-nos mais coerente que o original
dissesse famentas (pt. “famintas”) com o sentido de ‘necessitadas’.

Original Versão adaptada à ortografia portuguesa


espellaba espalhava [espelhava]

Na primeira edição lemos: “Sô n-aquela fenestra qu'espallaba un anaco de terra


labrega, pasaba as horas mortas, saloucando internamente a saudade do ceibe que enchíao de
morriña acongoxante.”

Na primeira edição figura espallaba, mas na edição de 1970 aparece espellaba. Como
no caso anterior, a interpretação só pode ser pessoal. A nosso ver, a menção de fenestra (pt.
“janela”) e a referência à paisagem tornam credível um contexto no qual o verbo usado seja
espellar com uma gralha tipográfica que o converteu em espallar. No entanto, também não
parece contraditório o uso de espallar.

105
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Original Versão adaptada à ortografia portuguesa


Tivera desexado velas arder polos catro Tivera desejado vê-las arder pelos quatro
flancos e afundirse nun estrondo de traxedia flancos e afundar42 num estrondo de tragédia
aquelas ledicias tan ingratas á súa amergura. aquelas lediças tão ingratas à sua amargura.

No original, o sujeito de afundirse é aquelas ledicias. Já na versão adaptada o sujeito


de “afundar” parece ser o mesmo que o de “Tivera desejado”, isto é, o protagonista é quem
realiza a acção de “afundar”. A versão adaptada comete o erro de não considerar pronominal o
verbo “afundar” e criar involuntariamente uma ambiguidade no texto de chegada. Da
adaptação realizada deduz-se que ele teria desejado duas coisas: “vê-las arder” [as casas antes
citadas] e “afundar aquelas lediças”. Na realidade, deveria interpretar-se assim a passagem:
Ele teria desejado ver duas coisas acontecerem: arderem [as casas] e afundarem-se “aquelas
lediças”. Tudo poderia resolver-se simplesmente com o recurso ao infinitivo conjugado.

Original Versão adaptada à ortografia portuguesa


Voltóu á acordar en si Voltou a acordar [Veio a si]

O protagonista, Pedro Lueiro, não está a dormir. Está simplesmente ausente, a


contemplar a paisagem do céu cinzento. Na versão adaptada parece acordar depois de ter
adormecido, o que não é verdade na história narrada.

2.1.2.2. Os Pobres de Deus: conclusões

Observa-se que os critérios de adaptação e a aplicação destes encaixam no eixo


aceitabilidade-adequação dos Estudos Descritivos de Tradução de Toury (1995),
aproximando-se mais claramente do pólo da adequação. Esses próprios critérios podem mudar
em função do tradutor (neste caso da adaptadora e dos correctores), do contexto ou de
diversos outros factores. Aponto também a relevância de existir um objectivo ou intenção com
o texto adaptado (“reintegrar a literatura galega na literatura comum lusófona”), isto é, um
ponto de vista funcionalista inicial.

Na adaptação não se explica de forma clara quais os galeguismos mantidos e quais


não, nem os motivos que levaram a tais decisões. Apenas são fornecidos alguns exemplos.

42 Negritos nossos.

106
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Também não se indica que os castelhanismos usados pelo autor foram eliminados e
substituídos por formas galego-portuguesas. Parece, portanto, necessária uma maior e melhor
explicitação dos critérios de adaptação e uma aplicação coerente. A adaptadora teve de tomar
decisões não puramente ortográfica ou morfológicas, já que léxico e ocasionais elementos de
sintaxe se viram envolvidos na adaptação. Foram executadas também outras alterações-
adaptações que levaram ao surgimento de novos sentidos e interpretações. Apesar da tentativa
de se manter próxima da adequação (apego ao texto de partida) tanto quanto possível, houve
mudanças, algumas das quais significativas.

Quanto à recepção da adaptação, é provável que grande parte da população galega veja
este texto como uma tradução para português ou como um texto galego com ortografia
portuguesa, sem qualquer intenção de verificar diferenças entre texto-fonte e texto-adaptado.
Já para um leitor de língua portuguesa, julgo que o texto seria pouco fluente, por vezes árduo,
esquisito, ou até uma tentativa não muito bem-sucedida de escrita em português.

Esta adaptação não desmerece por focar o pólo da adequação. Pelo contrário, surge
apenas como mais uma opção, tenciona realizar uma função específica com um objectivo
concreto no sistema literário lusófono, incluído o galego, com destinatários potenciais em
qualquer território. Paralelamente, poderíamos ter uma outra tradução que focasse o pólo da
aceitabilidade e a recepção feita pelos leitores de uma determinada variedade ou norma da
língua portuguesa, como a brasileira ou a luso-africana.

2.1.3. Tradução de Arredor de si

A nossa tradução de Arredor de si foi realizada com os seguintes pressupostos: foi


dada prioridade à recepção na cultura-alvo (neste caso, leitores da variedade europeia do
português), sem que a forma linguística galega do original de 1930, a primeira edição, se
considerasse um elemento prioritário ou condicionante. Adoptámos uma posição funcionalista
que procura a actualização da língua de partida para melhorar a potencial aceitação do texto
na cultura de chegada.

Uma outra questão tornou a opção pela tradução aconselhável: a distância temporal. O
factor tempo pode ser considerado aquí como uma questão tradutológica a partir de três
ângulos diferentes que exporei a seguir: 1) as referências extralinguísticas com marca

107
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

temporal, 2) a situação sociocultural da língua e literatura galegas aquando da primeira


edição, 3) as diferentes edições do original realizadas.

Otero Pedrayo gostava de ver entrecruzadas as suas ideias ou criações pessoais com os
seus vastos conhecimentos. Essa bagagem cultural manifesta-se na hiper-referencialidade
contida em Arredor de si. Logo nas primeiras páginas do romance, algumas das dificuldades
das instâncias de tradutor e leitor concentram-se nas chamadas para uma época passada e
culturalmente alheias aos receptores. Exemplo disto são as menções de Mesonero-Romano,
Ortega, Azorín, Villacampa, Peñaplata. As referências continuam ao longo de toda a obra e
são uma particularidade do estilo oteriano. Em algumas ocasiões, são referências muito
tangenciais, claras na época em que foram escritas, mas que obrigam o tradutor do presente a
investigar para poder contextualizá-los: Fornos foi um café de Madrid muito frequentado no
início do século XX, catro vagos da Cruña é uma referência às Irmandades da Fala e Xunta
remete para a Junta para la Ampliación de Estudios e Investigaciones Científicas, sem
qualquer relação com a Xunta de Galicia, governo autonómico da actualidade democrática.
Algumas destas referências devem necessariamente ser explicadas numa tradução actual,
como também se fez nas posteriores edições galegas, para melhor compreensão e
aproveitamento da obra por parte de um leitor que terá, sem dúvida, consciência de estar face
a uma obra traduzida e que remete para o passado. Notas e comentários conformam, portanto,
uma dificuldade acrescida que deve ser minimizada, tanto quanto possível, para que a fluência
da leitura não desapareça.

A língua e a literatura galegas encontravam-se nos primórdios de uma estruturação e


atualização no primeiro terço do século XX. Em 1917 surgem as Irmandades da Fala, em
1920 a revista Nós (que dará nome à geração Nós, de que Otero Pedrayo fez parte) e em 1923
será a vez do Seminario de Estudos Galegos (SEG). Foi um período muito frutífero para a
cultura e a sociedade galegas. Não existia, até aqui, uma narrativa moderna nem um modelo
de língua escrita culta. A prática totalidade dos escritores em língua galega tiveram os seus
inícios e conviveram, inevitavelmente, com a intelectualidade espanhola da altura, motivo
pelo qual o seu galego poderá conter elementos muito diversos: do coloquialismo ou
vulgarismo galego até às expressões tidas como mais refinadas ou autenticamente galegas, à
mistura com abundantes castelhanismos, entre outros aspectos. Este último elemento, quando
detectado, será considerado exógeno por muitos, aparecendo assim uma tendência

108
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

diferencialista a partir desta época. No caso de Otero Pedrayo, o estrangeirismo será utilizado
para distanciar o galego do castelhano e ainda como elemento elevador do estatuto da língua
galega. Mais uma vez, devo argumentar que um leitor que parta do português não iria
sentir-se à vontade com um texto com abundantes entraves linguísticos indescifráveis, mesmo
que com uma ortografia portuguesa actual. Também seria muito difícil a tomada de decisões
de um ‘versionador’ ou adaptador, vendo-se forçado, com toda a probabilidade, a realizar
alterações mais próprias da tradução do que de uma ‘mera versão’, dado lugar assim a
hipotéticas incoerências na abordagem do texto. A elaboração de uma versão em português
não seria um imaginado e desejado procedimento quase automático, uma rápida mudança de
uma ortografia galega dos anos 1920 para outra, portuguesa do século XXI. Entre outras, as
questões que poderiam surgir seriam: qual o tratamento a dar ao castelhanismo? E ao
estrangeirismo? Também haveria que tomar decisões acerca da fraseologia, das estruturas
gramaticais de base castelhana ou questões relativas ao estilo literário oteriano, como a
anteposição do verbo ao sujeito que, de tão repetida, acaba por perder o seu valor estilístico,
convertendo-se numa forma natural, como acontece em frases como Chegaba doña María c'o
abade. (cap. IX, p. 92) ou Inzaríase d'herbas bravas o prolixo dibuxo dos sendeiros do xardín
(cap. XV, p. 147).

Nas edições posteriores à primeira de Arredor de si, de 1930, foram realizadas


modificações que tiveram por objectivo actualizar uma obra que já não se enquadrava no
presente. A segunda edição veio a lume apenas em 1970 com a Editorial Galaxia, já numa
época tardo-franquista. As sucessivas edições irão modificando aspectos da obra original:
divisão em parágrafos (em vez de inúmeras páginas escritas sem qualquer marca ou
interrupção visual), introduções, atualizações e regularizações ortográficas, notas e
comentários, alguns muito esclarecedores. Junto com estas alterações, foram também
realizadas outras de carácter interpretativo que não agradaram a muitos leitores de Otero.
Exemplo de uma alteração surpreendente e imotivada é, no primeiro capítulo, a referência a
Robert Bontine Cunninghame Graham, político e escritor escocês. Tanto na primeira como na
segunda edição, de 1930 e 1970 respectivamente, figura claramente o nome de Gabriela
Cunninghame Graham, esposa do mencionado político e autora de um extenso volume sobre
Santa Teresa de Ávila que é mencionado em Arredor de si. Já na quinta edição, de 1985, surge
um erro ao ser trocado o nome de “Gabriela” pelo de “R. B.” (Robert Bontine), possivelmente
motivado pela inclusão de notas explicativas de referências culturais. Este erro perpetua-se, de

109
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

forma mais evidente na sétima edição, de 1991, ao ler-se “Robert B.” As duas notas de rodapé
da quinta e sétima edições não têm nenhuma utilidade, visto que oferecem dados biográficos
sem qualquer relação com “Gabriela” nem com Santa Teresa de Ávila, figura de importância
para o autor e para o protagonista do romance, Adrián Solovio. A relevância de Santa Teresa e
da religiosidade católica em geral surgem de diversas maneiras em Arredor de si, mas
desapareceram com a alteração realizada por meio desta nota de rodapé nas edições
mencionadas.

No estudo já referido, Baxter (2004: 133) menciona a diferença entre tradução


interlinguística e tradução intralinguística, justificando a necessidade desta última quando são
alteradas referências temporais, espaciais e, em geral, culturais. Dá os exemplos de
adaptações ou 'actualizações' do francês antigo para o francês moderno ou reelaborações,
comentários e interpretações de textos que recorrem a línguas de especialidade, como a
jurídica. Talvez as edições de Arredor de si posteriores à primeira estejam muito próximas
desta definição de intratradução. Porém, no caso em apreço (a proposta de tradução que
apresento) e tendo presente que um dos objectivos principais é a divulgação de uma obra por
meio da aproximação à cultura-alvo, acho mais apropriado falar-se na realização de uma
tradução, tendo esta uma consideração interlinguística ou não.

A questão da distância temporal entre original e tradução já foi abordada por


Schleiermacher no início do século XIX: o tradutor pode deixar o texto-fonte em paz,
forçando o leitor a compreender o autor, ou bem pode 'facilitar a vida' ao leitor, aproximando
a tradução daquilo que este espera e já conhece (Lefevere 2003: 5).

Frederico Lourenço (2013) adaptou no ano de 2005 a Odisseia de Homero para


leitores jovens portugueses. O que o levou a realizar esta adaptação foi precisamente a
distância entre uma tradução integral em verso, adequada para os seus estudantes
universitários, e os adolescentes do ensino secundário que o ouviram falar em algumas
conferências. A finalidade da sua adaptação foi fazer “nascer a curiosidade pela Antiguidade
Clássica” e estimular “o gosto e a competência linguística na língua portuguesa” (2013: 328)
entre os alunos e alunas portugueses, segundo manifestou no posfácio da obra. Na contracapa
pode-se ler que “Frederico Lourenço concilia a fluência narrativa com a fidelidade ao
original”.

110
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Hernández Guerrero (2002) apresenta o caso da tradução de Hamlet para francês.


Marcel Schwob, tradutor do século XIX, utilizou a língua francesa do século XVI para esta
tarefa após comparar os estádios de evolução de francês e inglês. Ora, qual seria o caso de
uma tradução de Hamlet para chinês ou árabe? Será que existiram estádios similares nestas
línguas? O que faria um tradutor quebequense? Poderíamos afirmar que

Todo contexto es diacrónico; el campo de la significación, las diversas regiones de la tonalidad


y de la asociación, se desplazan de continuo. Que elija las voces y los giros gramaticales apropiados, el
traductor conoce su historia subsiguiente, y es inevitable que la gama de connotaciones sea la de su
siglo y lugar de origen. Y aún cuando logre el equivalente justo en la escala del tiempo, y los objetos y
manifestaciones afectivas a que se hace referencia en el texto, se encuentran incrustados en la
percepción moderna que tiene de ellos. Por eso, funcionan como antiguallas que, obvio es, no lo eran en
la época en que la referencia original fue hecha, o bien se han transformado. (Hernández Guerrero
2002: 77-78)

A questão a elucidar é se uma tradução deve mostrar que a obra original pertence ao
passado ou não. Amparo Hurtado (1990) estudou este distanciamento no tempo, a que ela deu
o nome de “historicidade” (historicité). Esta autora reconhece que o fundamental é a
finalidade da tradução tendo em conta o público destinatário. Recomenda a manutenção do
“reflexo arcaizante”, em palavras de George Steiner, por meio de léxico, estruturas e traços
estilísticos, mas “en général on constate un phénomène de rajeunissement des traductions”
(1990: 154). Numa obra posterior (2011: 604), Hurtado afirmou que a tradução não tem de ser
adaptada integralmente. Diferentemente desta, Rabadán (1991: 97-99) não aceita a busca do
“matiz arcaico” através da língua, pois em sua opinião muitos outros elementos
extralinguísticos são suficientes para marcar o texto como pertencente a outra época. A nossa
posição ao traduzir Arredor de si aproxima-se mais desta última, mesmo tendo sempre
presente que se trata de um texto original escrito e pensado no final da década de 1920.

2.1.4. Conveniência da tradução

Diga-se de passagem que Otero Pedrayo e outros autores da geração Nós conheciam a
literatura portuguesa e liam autores como Eça de Queirós, Lopes Veira ou Eugénio de Castro
(Quintana e Valcárcel 1988: 160). O próprio Otero Pedrayo, respondendo numa entrevista a
uma pergunta acerca das relações da geração Nós com Portugal, afirmava ter tido contacto
com gentes e intelectuais do Porto e de Coimbra, lembrava o interesse do poeta português

111
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Teixeira de Pascoaes pelo galeguismo, as relações entre o Seminario de Estudos Galegos e os


intelectuais do Norte de Portugal; as palestras, colóquios e conversas em terras lusas
(Fernández 1976: 30-31). Quanto destas relações pessoais e literárias foi aproveitado por
Otero Pedrayo ou quanto transparece nas suas obras é questão difícil de elucidar e que resta
por estudar.

Não sabemos se Otero Pedrayo teria gostado de ver a sua obra vertida para português.
Domínguez Pérez (2008), na sua tese de doutoramento, explica como o escritor galego Neira
Vilas se recusou a que Espantallo Amigo, breve romance infanto-juvenil de sua autoria, fosse
traduzido para português por o considerar desnecessário “dada la proximidad lingüística entre
las dos lenguas” (ibidem: 383-384). Na realidade, após conversa telefónica com o autor 43,
posso afirmar que Neira Vilas não se recusou a nada, apenas julgou que seria melhor optar
pela tradução para basco e não para português, chegando a afirmar que, na altura, essa foi uma
decisão errada. Finalmente, o Espantallo Amigo seria traduzido para catalão e espanhol em
edição bilingue e publicado pela editora La Galera na década de 1970. Sem ter lido o romance
de Neira Vilas, parece improvável que crianças e adolescentes portugueses do último quartel
do século XX pudessem sequer ter fácil acesso à edição impressa em galego do Espantallo
Amigo, que pudessem realizar uma leitura sem um certo grau de surpresa ou dificuldade na
compreensão ou que o livro tivesse fácil distribuição e aceitação nas livrarias portuguesas.
Pouco tempo depois seria vertido para português o seu romance mais conhecido sob o título
Memórias de um Pequeno Camponês44, publicado em 1977 pela Forja Editora no Porto, com
tradução de Viale Moutinho.

Venâncio, ao se referir a uma tradução para português de Papaventos de Xavier


Queipo, afirma que o texto “que examinámos evidencia uma parcial opacidade entre galego e
português que, se não impede um global entendimento, condiciona demasiado o prazer da
leitura” (2007: 28). No caso de Arredor de si, concordo com a opinião deste autor, que
conclui: podemos falar da “suma conveniência de traduzir a ficção galega para leitores
portugueses” (ibidem: 28). Atente-se para a referência à ficção, isto é, a narrativa, género que
mais enche as prateleiras das livrarias no presente. Esta conveniência liga-se não só à
compreensão por parte do leitor mas também à aceitabilidade do texto traduzido no sistema
literário no qual se irá inserir: às expectativas do mercado, da distribuição, da publicidade, dos
43 Conversa telefónica mantida a 18 de Abril de 2015.
44 Em galego Memorias dun neno labrego.

112
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

editores e, em última instância, dos potenciais leitores, que não têm de ser forçosamente
eruditos ou estudiosos de língua, literatura ou cultura. São ideias que se prendem com os
comentários e impressões dos escritores portugueses Viale Moutinho e José Saramago: o
pleno prazer do texto e o problema da familiaridade, respectivamente (em Dasilva 2008: 410).

Venâncio designa por “conveniência” (2007: 28) o que nos Estudos de Tradução seria
definido como um posicionamento no eixo marcado pelos pólos da adequação (apego ao texto
fonte) e da aceitabilidade (respeito às normas da cultura-alvo) (Toury 1995: 56-57). Esta
conveniência situar-se-ia mais próxima da aceitabilidade.

No Japão existe uma tradição já histórica que prioriza a adequação da tradução ao seu
original, sobretudo em textos não ficcionais, chegando ao extremo de produzir textos na
língua de chegada de compreensão impossível. É o que se lê no artigo Translationese in
Japan (Furuno 2005) em referência à tradução no período Meiji:

During that period, new ways of writing were also accepted as necessary to express these new
ideas, and translators were under no pressure to express the original ideas in a way that conformed to
the target language. (Wakabayashi apud Furuno 2005: 149)

A adequação foi considerada muito mais importante do que a aceitabilidade no Japão,


o que acarretou a longo prazo um maior grau de aceitação de traduções estrangeirizantes da
parte dos leitores japoneses. Naquela altura existia a premente necessidade de importação de
conceitos e ideias provenientes da cultural ocidental que eram desconhecidos no Japão, dado
o seu isolamento cultural.

O artigo de Furuno indica que, apesar desta tradição e da abertura popular a este
'tradutês' ou língua das traduções, nos últimos anos se tem assistido a uma certa crítica das
traduções literais inglês-japonês assim como a uma maior procura da aceitabilidade nos textos
de chegada, com recurso a uma língua espontânea e natural que facilite o acesso às novas
ideias a toda a população.

Concordo, portanto, com Toury (1995: 57) ao afirmar que até as traduções com maior
grau de adequação incorporam desvios em relação ao texto original. No caso da tradução no
sentido galego-português, o que parece ser determinante é o grau de aproximação ou
afastamento a respeito do original em função de factores como os objectivos e funções
perseguidos ou ideias linguísticas pré-estabelecidas, entre outros.

113
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

2.2. Observação à luz da teoria dos polissistemas

Desde finais do século XIX e durante todo o primeiro terço do século XX teve lugar a
restruturação de um incipiente sistema literário galego para ocupar o espaço que lhe fora
vedado e que lhe era de direito. Neste contexto, não foi até ao século XX que escritores
galegos sentiram a necessidade de criar novas obras e estabelecer relações com outros
sistemas literários de forma directa, sem a tradicional mediação e dependência da língua,
literatura e cultura espanholas, da qual eram extraídos, num início, técnica, temas e estilos
(Verdini Deus 1983: 1).

Foi nessa altura que os autores da geração Nós tentaram esquivar as normas sistémicas
espanholas e assim obter um rédito que impulsionasse a cultura galega para um
reconhecimento europeu e universal. Exemplo disto foi o espírito criativo de Otero Pedrayo,
desbordante em volume, ideias, intenções e géneros. Um modelo desta vontade foi a sua
conhecida tradução de algumas páginas do Ulysses de James Joyce, a primeira na Península
Ibérica e publicada na revista Nós em 1926, quatro anos e meio depois de que viesse a lume o
original (Cardwell 1990: 15).

Alguns aspectos da literatura portuguesa serviam de referência para alguns escritores


galegos que escreviam em galego, lembremos, numa época com elevadíssimos índices de
analfabetismo. Nos termos polissistémicos de Even-Zohar (1991 e 1997), os escritores
galegos do primeiro terço do século XX representavam um desafio ao repertório do
polissistema espanhol. Por outro lado, em termos globais, o sistema literário português e o
incipiente sistema literário galego da altura, ou protossistema (termo proposto por Torres
Feijó 2004: 429), apresentavam escassos pontos de encontro.

A situação actual, a da segunda década do século XXI, apresenta grandes diferenças e


algumas semelhanças: o polissistema literário galego amadureceu e actualizou-se. Agora
dispõe das suas normas e idiossincrasias sistémicas próprias, que não coincidem com as do
sistema espanhol. Porém, aquele apresenta um grau de ligação a este, e até de dependência,
que são contraproducentes para a literatura e cultura galegas. Baltrusch, em referência a um
contexto cultural mais alargado e não apenas literário, afirma: “Galicia atópase atravesada,
hoxe em día, dunha forma moi profunda e de xeito bastante consciente, pola cultura castelá”
(2008: 61). Aplicando esta ideia à literatura, o intersistema galego-espanhol apresenta laços de

114
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

grande força no presente.

Polissistema literário não é sinónimo de literatura nacional (Domínguez 2008: 45-46).


Neste último conceito predominam a construção da identidade e a organização de materiais
literários. Com os polissistemas devemos pensar em termos de rede de relações, ou ausência
das mesmas, com factores como instituições, mercados, repertórios, produtores, produtos e
receptores (Torres Feijó 2004: 427), observando que o polissistema literário ultrapassa o
espaço social e político de uma literatura nacional (ibidem: 428). No âmbito da tradução, um
modelo novo é o Made in Galiza de Séchu Sende. Publicado em 2007 e traduzido para turco e
curdo em 2010, atente-se, sem passar pelo espanhol (Mandiá 2010), o livro foi um sucesso de
vendas com uma recepção espantosa por parte dos leitores em curdo, sem dúvida devido às
muitas semelhanças sociolinguísticas.

Na actualidade, muitas das obras galegas que chegam às livrarias portuguesas


fazem-no através do espanhol. Nestes casos, as relações entre os polissistemas galego e
espanhol dificultam a comunicação directa entre os polissistemas galego e português. O
resultado desta mediação são as diversas traduções para português de autores que são vistos
como espanhóis ou como parte da literatura espanhola. Esta rotulagem genérica tem efeitos
perversos, pois do ponto de vista tradutológico importa conhecer o texto-fonte assim como o
texto-alvo. Um exemplo é A praia dos afogados, escrita por Domingo Villar e publicada ao
mesmo tempo, em 2009, em galego e castelhano pelas editoras Galaxia e Siruela
respectivamente. Após o seu êxito, vieram as traduções para outras línguas: em inglês, alemão
e português, pelo menos, foi utilizada a edição em espanhol como texto original, como figura
nas bibliografias correspondentes. E no entanto, resta uma dúvida por resolver: qual foi a
primeira?, a edição galega ou espanhola? Quem realizou a tradução a partir do original? Seria
o próprio autor? Em nenhum dos dois 'originais' figura qual foi a língua de criação literária.
Pude saber45 que o livro foi escrito em galego e posteriormente autotraduzido para castelhano.
Domingo Villar tomou esta decisão devido às reticências iniciais das editoras galegas a
publicarem o seu romance.

Dasilva chama a atenção para dois possíveis perigos no caso da autotradução


realizadas por autores que escrevem originalmente em galego (2008: 390-391): em primeiro
lugar, esta literatura galega acaba sendo misturada e fagocitada pela literatura espanhola; e em
45 Conversa telefónica mantida com o autor, Domingo Villar, a 20 de abril de 2015.

115
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

segundo lugar, a língua de ponte utilizada para outras terceiras costuma vir a ser o castelhano.
Podemos, portanto, observar que o sistema literário galego fica colocado no interior do
sistema espanhol, em dependência e relação absolutas, com consequências negativas como o
surgimento de umas normas sistémicas que não favorecem a visibilidade da literatura e da
cultura galegas, a criação literária em galego nem a tradução tendo o galego como língua de
partida, como seria normal e esperável.

Quanto à língua portuguesa, a nossa opinião é que seria muito mais benéfico para a
cultura em geral e para a literatura galega, incluindo os seus agentes, produtos e produtores
em particular, uma relação directa, isto é, o favorecimento de um intersistema
galego-português, galego-brasileiro, e/ou galego-lusoafricano. Já existe uma desigualdade de
percepções das relações entre os dois territórios mais próximos geograficamente, a Galiza e
Portugal:

[A] relação galego-portuguesa, em termos culturais e literários, foi assimétrica, central na


maioria dos setores do galeguismo e periférica sempre por parte lusa [Portugal], mais retórica que real,
mais individual que grupal ou organizada. (Torres Feijó 2005)

Constata-se, portanto, uma relação atomizada por ambas as partes acima referidas,
podendo ser até questionável que exista um intersistema galego-português sem as
interferências do sistema espanhol. A relação entre estes sistemas literários é melhor do que
no início do século XX, mas a forte presença do sistema espanhol e problemas de base
permanecem.

O polissistema literário português mostra um elevado grau de desconhecimento e


desinteresse face à literatura proveniente da pena de autores galegos, que são vistos
maioritariamente como espanhóis. O grande público português, isto é, todos os destinatários
das poucas traduções de obras galegas disponíveis, torna-se vítima e posteriormente carrasco
de uma simplificação grosseira: “galego” equivale a “um tipo de espanhol” ou, simplesmente,
“espanhol”. A dificuldade para o público leitor médio de Portugal assenta na identificação das
diferenças culturais e históricas, em não saber bem como separar uma “coisa” da outra, e
provavelmente também numa apreciação nebulosa destes sistemas literários interligados (o
galego e o espanhol) e dos seus encontros e fricções internos, se notados.

Os campos de produção cultural (Bourdieu 1991) português, brasileiro, africano

116
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

lusófono e galego diferem muito entre si, como também os campos de poder nestes estados e
territórios. Um exemplo típico são as diferentes versões ou edições de uma mesma obra no
Brasil e em Portugal. Especificamente, a literatura galega, com os seus agentes e produtores,
deve competir no campo literário galego, que está inserido num campo literário mais amplo,
forte e variado, o espanhol, sem dispor neste momento das mesmas capacidades, qualidades e
variedade. No que diz respeito à exportação de obras por meio da tradução, resulta crucial
existir um esquema definido, uma série de objectivos realistas e algumas apostas com certo
grau de risco que possam acrescentar valor cultural e económico, algo necessário se os
produtores de um determinado campo cultural desejam ocupar uma posição tão central como
possível.

Uma estratégia de exportação poderia ser a selecção de obras literárias galegas


organizadas num eixo de consagração artística. A dita consagração ou canonização é sempre
uma lista mutável de autores e obras, seja esta consciente ou não. A sua natureza é inclusiva e
ao mesmo tempo excludente, por não falar do atrevido juízo inerente a toda a proposta de
cânone. No entanto, como estratégia editorial, deve ser conscientemente estudada
previamente.

Ventura Ruiz (2006) propõe um interessante cânone literário galego baseado em dois
critérios: a influência na sociedade onde nasceu um determinado autor e a sua
“homologación” externa, isto é, a sua imprescindibilidade no contexto de um cânone literário
europeu. Os poucos autores galegos que, a seu ver, conseguiriam entrar nesta selecção são:
Rosalía de Castro, Manuel Antonio, Álvaro Cunqueiro, Rafael Dieste, Eduardo Blanco Amor
e Xosé Luís Méndez Ferrín. O autor desta proposta não realizou esta selecção em função de
possíveis necessidades de outros polissistemas nem com o intuito de obter prestígio
necessário para um dado polissistema de partida, no caso de traduções para línguas
estrangeiras. O cânone parte também do reconhecimento dos autores ligado ao seu capital
simbólico, em termos de Bourdieu.

A proposta de cânone de Ventura Ruiz exclui de forma explícita todos os autores da


geração Nós, por não cumprirem a condição de homologação no contexto europeu. Talvez
este seja motivo suficiente para a sua não inclusão; porém, no contexto do sistema literário
português, os interesses e objectivos podem ser diferentes. Do meu ponto de vista, este é o
caso de Arredor de si, uma vez que explica, por meio do romance, o percurso vital de um

117
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

intelectual galeguista do início do século XX.

Publicar e distribuir uma literatura qualquer, escrita numa língua estrangeira qualquer,
pelas livrarias portuguesas é perfeitamente possível, mas também é sinónimo de provável
fracasso literário, comercial e comunicativo, pois não “funcionará” bem no sistema literário
português (Torres Feijó 2004: 430-431). A necessidade da tradução parece impor-se do ponto
de vista editorial e para uma recepção mais fácil pelo público:

O escritor e xornalista madeirense Viale Moutinho, a persoa de certo con maior sensibilidade á
hora de definir as fórmulas máis axeitadas para o tráfico literario galego-luso, en máis dunha
oportunidade subliñou, nese sentido, en que medida os lectores portugueses se mostran avessos a ler em
galego, perdendo obras fundamentais das nosas letras por non estaren traducidas. (Dasilva 2008: 403)

Na esteira desta ideia, Vila Barbosa manifesta que “[m]oitos persoeiros portugueses
opinan que a tradución é a máis acertada estratexia para dinamizar as relacións literarias e
editoriais entre Galicia e Portugal” (2011: 44).

Observando todo o contexto do ponto de vista do tradutor, não é trivial conhecer a


intenção que este persegue com a sua mediação, pois o resultado do seu esforço será o que
chegue às mãos dos leitores. No nosso caso, com a proposta de tradução de Arredor de si
tenciono fazer com que o romance possa ultrapassar limites já conhecidos, não se
circunscrever apenas a ambientes cultos e exceder o círculo restrito das poucas pessoas já
interessadas pela literatura galega. Arredor de si foi escrita com um estilo que, por si próprio,
condiciona a leitura fácil de grandes públicos da actualidade, mais virados para uma narrativa
repleta de acções e diálogos numa linguagem acessível. Aproximar a obra do leitor comum
mantendo o génio do autor é uma tarefa árdua, por vezes impossível. O profissional que
traduz literatura realiza uma função fulcral como mais um agente na relação entre sistemas
literários, neste caso entre os sistemas galego e português.

Toury (2004: 236-237) apresenta o caso da tradução para inglês do haiku, uma forma
poética japonesa breve e sugestiva, e explica a sua introdução nos Países Baixos na década de
1940 por meio de estratégias que inicialmente privilegiaram a aceitabilidade, isto é, as normas
da cultura de chegada, uma vez que se tratava da importação de uma forma poética exótica e
desconhecida na altura: estrofes de quatro versos quando um haiku só dispõe de três (mais
exactamente dezassete sílabas) ou a combinação de dois haikus em um único poema

118
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

traduzido. Trinta anos depois, mudados os interesses culturais e as normas internas, a forma
de traduzir haikus pôde aproximar-se do pólo da adequação.

A tradução de autores clássicos galegos para português poderá exercer também uma
outra hipotética influência: o seu retorno, qual bumerangue, para uma releitura à galega. Nos
tempos actuais das compras de livros electrónicos online, as editoras e livrarias portuguesas
podem também abastecer o mercado de qualquer parte do mundo, como também podem ser as
editoras galegas a publicarem em língua portuguesa, o que já acontece (Vila Barbosa 2011).
Se bem que uma tradução seja, do ponto de vista do público português, o único texto de
referência, sem outro ao qual recorrer, para um leitor ou leitora da Galiza que tenha
conhecimento do autor e do texto original, o acesso ao texto-alvo em português será lido
como a 'visão' do tradutor. Este 're-leitor' será, por sua vez, levado a uma nova reflexão e
contraste com um texto original e com umas ideias já estabelecidas. Cria-se, portanto, um
novo vector de força que poderá ligar os dois sistemas literários e as duas culturas.

2.3. Uma tradução cultural?

Rabadán e Merino, na introdução à versão espanhola de Los Estudios Descriptivos de


Traducción y más allá de Toury, falam da “concepción básica de la traducción como un
fenómeno no sólo lingüístico sino, sobre todo, cultural” (apud Toury 2004: 28). Em
concordância com esta apreciação e baseando-se na definição de Hurtado (2011: 41), segundo
a qual a tradução é vista como um processo interpretativo e comunicativo consistente na
reformulação de um texto com os meios de outra língua que se desenvolve em um contexto
social e com uma finalidade determinada, Áurea Fernández (2013: 186) infere três
características importantes de qualquer tradução: a) a tradução considera o contexto
espaço-temporal de um texto bem como a importância de receptores, características da
encomenda e finalidade da mesma; b) a tradução parte da negociação da pertinência ou não da
mesma e da competência específica tradutiva da pessoa que traduz; c) a tradução é um acto
comunicativo intercultural; portanto, “traduzimos” culturas e não línguas.

Outro ponto de vista basilar é o que utilizou o linguista Pike em 1967 no estudo do
comportamento humano: é possível efectuar uma abordagem ou descrição emic (nativa,
realizada de dentro do sistema cultural, por meio da estrutura inconsciente) ou uma
abordagem etic (estrangeira, de fora do sistema, por meio de uma estrutura consciente).

119
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Quanto à tradução, consideremos um hipotético texto-alvo que entra numa cultura receptora
ou importadora. O tradutor ou tradutora é sempre alguém que pode, à partida, observar e
compreender a cultura de procedência de um texto escrito (visão etic, privilegiada, de fora do
sistema receptor por ter conhecimento do texto original) mas também de dentro do sistema ,
isto é, como participante na recepção (visão emic como parte integrante da comunidade
destinatária, que terá o seu texto traduzido como única referência). O tradutor é a dobradiça
que permite o intercâmbio cultural e age sempre como observador participante.

É óbvio que o tradutor terá sempre um ponto de vista pessoal condicionado pela(s)
sua(s) cultura(s) e realizará uma interpretação do texto original, seja esta consciente ou
inconsciente. No caso da tradução de uma obra literária galega para português, um tradutor
pode considerar, por exemplo, que existem dois sistemas culturais diferentes, de uma óptica
antropológica, ou que há um único sistema. O mesmo tradutor pode também, implícita ou
explícitamente, achar que a recepção será (ou deve ser) realizada de uma maneira ou de outra,
ficando assim à vista a sua posição entre as diversas intepretações possíveis e necessárias para
uma tradução.

Arredor de si é um texto literário de 1930 pertencente ao sistema literário galego, em


termos polissistémicos, e já é considerado um clássico. É vertido aqui em português por meio
da proposta que apresento, com um hipotético acesso futuro ao sistema literário português. As
únicas partes envolvidas até agora foram o texto original de partida e o tradutor. Não houve
por enquanto contactos com editoras nem com os proprietários dos direitos autorais, pelo que
muitos factores (por exemplo, uma revisão linguística editorial) não foram trazidos à baila por
ainda não passarem de pura especulação e por representarem um provável condicionamento,
de uma proposta de tradução.

Para a análise cultural no par de línguas galego-português, é fundamental falarmos em


estrangeirização (foregnization) e domesticação (domestication). Em primeiro lugar, quero
salientar que não são opções excludentes, podendo um tradutor fazer uso de estratégias
(normas operacionais em palavras de Toury) estrangeirizantes em certas passagens e recorrer
a estratégias domesticadoras noutras. Navegamos em águas de turbidez variável, por vezes
com tonalidades mais escuras, outras vezes menos. No entanto, estas opções farão maior
sentido se apoiadas no conceito touriano de norma inicial, que implica a preferência genérica
do tradutor por escolhas orientadas para o texto-fonte ou para o texto-alvo.

120
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Do ponto de vista de Venuti (1995: 23), uma estratégia estrangeirizadora aponta para
as diferenças linguísticas e culturais do texto estrangeiro. É, portanto, fonte de
enriquecimento, pois se produz um preenchimento de espaços vazios ou desconhecidos da
cultura receptora, evitando também assim o etnocentrismo. Em Arredor de si, o autor narra
certas situações para tentar comunicar algumas ideias e produzir efeitos estéticos de diferente
tipo no leitor. Estas ideias e efeitos estão presentes em diferentes níveis: na língua (por
exemplo, por meio do diferencialismo com o castelhano), no texto (por meio do estilo) e, por
último, na mensagem (por meio de conceitos e reflexões).

Resulta impossível transmitir a realidade sociolinguística vivida na Galiza nos anos


anteriores a 1930 apenas por meio do romance Arredor de si para uma pessoa que não tenha
conhecimento prévio desta realidade. A língua galega tem, nesta obra, um valor muito
marcado: diferencialista a respeito do castelhano no plano linguístico e afirmativa de uma
identidade comum nos planos ideológico, social e político. Mesmo em edições modernas do
original, estes conteúdos somente poderão ser identificados por leitores e leitoras galegas bem
formados e informados. Já no contexto de uma tradução, todos estes conteúdos e nuances
resultam impossíveis de comunicar às pessoas pertencentes a uma sociedade de língua
portuguesa, alheias a estas e outras vivências. Vejamos um exemplo: no capítulo III o autor
utiliza entre aspas, como pensamento interior do protagonista, as palavras castelhanas
“Galleguito listo”, que seriam compreensíveis para um leitor galego, palavras marcadas por
uma mudança clara entre dois códigos linguísticos com funções e posições sociais definidas.
O tradutor só pode deixá-las como estão e, caso julgue necessário, acrescentar uma nota de
rodapé explicativa, o que não foi necessário aqui devido a um contexto claro. Noutro caso
diferente, também não foi possível transmitir o valor de elevação social para a língua galega
que surge do uso do estrangeirismo nesse momento histórico (alemão, francês, inglês e
italiano, em Arredor de si). O preço que haveria que pagar por acrescentar estas notas do
tradutor que fazem a interpretação de cada passagem da obra para o leitor destinatário da
tradução seria inassumível do ponto de vista literário.

Conferir uma focagem domesticadora à tradução ou a consideração da sua necessidade


faz com que a literatura galega possa ser analisada sob uma luz diferente, embora muito
próxima: a tradução de obras literárias galegas para português pode servir, entre outros, para
levantar questões acerca da originalidade da literatura galega, para 'pôr à prova' o

121
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

conhecimento linguístico e literário dos escritores e escritoras galegas de épocas passadas e da


actualidade, para sugerir maior consciencialização àqueles autores actuais que quiserem ou
tiverem de realizar a autotradução de obras suas para castelhano, e para dar azo a uma
releitura moderna de autores galegos de qualquer momento histórico através de um diálogo
com um público não galego e sem a intermediação do 'guarda-chuva' cultural espanhol.
Mesmo com uma grande proximidade linguística, as diferenças socioculturais, de tradição, de
costumes, de referências e influências de todo o tipo fazem com que a leitura e interpretação
de uma obra traduzida não seja a mesma nos diferentes territórios lusófonos bem como na
Galiza.

2.3.1. Explicitação e normalização

Submeti, em várias momentos, diversos capítulos traduzidos de Arredor de si à leitura


de várias pessoas de nível cultural elevado e com diferentes graus de conhecimento da cultura
galega a fim de que expressassem as suas opiniões: em geral, os textos foram lidos de forma
natural, com a fluência de um livro em português, apresentando as reservas esperáveis
relativas ao estilo literário próprio desta obra. Foram apontadas algumas dúvidas e pedidos
esclarecimentos. Houve sugestões de alterações e correcções, algumas das quais muito úteis,
outras que representavam uma redução do nível ou da riqueza linguística, enquanto que outras
eram simples pedidos de explicações de contextos ou interpretações erróneas do texto. Nada
foi comentado acerca de aspectos culturais propriamente galegos contidos no romance, em
geral referidos em notas de rodapé, visto que o texto era considerado e aceite como tradução.
Os leitores galegos do texto traduzido para português exprimiram a sua surpresa ao se
depararem, em sua opinião, com um romance mais acessível e fluido do que o próprio original
de Otero Pedrayo que conheciam de antemão, considerando também as dificuldades inerentes
ao estilo e língua deste autor. Estas observações acerca da inteligibilidade da tradução
poderiam, hipoteticamente, estar ligadas ao hipotético universal de tradução conhecido como
explicitação, entendido como um aumento no nível de informações explícitas no texto-alvo
que não figuram no texto-fonte. Julgo, no entanto, que têm maior relação com a leitura de um
texto com uma ortografia padronizada em língua portuguesa e conhecida pelos leitores
galegos da nossa tradução.

Como já foi referido acerca da situação sociolinguística da língua galega no início do

122
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

século XX, tem grande importância cultural a fase que estava a atravessar a literatura galega
em 1930. A ausência de narrativa galega moderna fez com que os diversos autores tivessem
de partir quase do zero em termos linguísticos ou que o debate sobre como escrever literatura
em galego tivesse manifestações muito volúveis. Medeiros (2006: 108), ao falar sobre a
primeira hirmandade da fala fundada em 1916, refere-se ao uso do agá inicial desta palavra e
realiza um comentário em nota de rodapé referido às “idiossincrasias do galego dos anos
1910”, caracterizando-as como “patentes e curiosas”. Termina assim a nota: “Naquele
período, as capacidades de inventiva de formas ortográficas tornam-se evidentes em cada
texto, dada a ausência de qualquer norma e a escassez de exemplos prosísticos”. Numa outra
passagem posterior, Medeiros (ibidem: 111) define a língua de um colaborador de A Nosa
Terra de 1917 como um “galego muito idiossincrático”. Os tradutores e tradutoras actuais de
obras clássicas da literatura galega pertencentes a esta época devem, sempre que possível,
recorrer às primeiras edições, onde poderão observar os usos ortográficos da época. Uma
tradução para português deverá utilizar uma ortografia portuguesa moderna regularizada
(anterior ou posterior ao Acordo Ortográfico de 1990). Porém, este facto não tem qualquer
relação com procedimentos de explicitação, embora pudesse parecê-lo.

Quanto às notas de rodapé ou finais acrescentadas pelo tradutor, estas são, a meu ver,
necessárias para uma leitura proveitosa e aprofundada de Arredor de si. As explicações
oferecidas tiveram a tenção de serem tão breves quanto nos foi possível, sem que supusessem
uma interrupção muito notória na fluência de leitura. As notas finais apresentam informações
sobre elementos culturais mencionados de forma indirecta ou muito tangencialmente
enquanto que as notas de rodapé abordam os itens especificamente galegos. Servem para
informar e situar o romance numa órbita cultural diferente daquilo que um leitor de língua
portuguesa poderá conhecer ou reconhecer. O número total ascende a cuarenta e uma notas
finais e treze notas de rodapé, mas inúmeros outros elementos culturais aparecem em Arredor
de si, uma vez que a hiperreferencialidade é uma característica deste romance. Não foram
incluídas notas sobre cultura universal ou de provável conhecimento geral quando figuravam
de forma clara no texto ou que poderiam ser rapidamente esclarecidas consultando outras
fontes.

As notas do tradutor em Arredor de si representam uma explicitação, em termos


tradutológicos, por oferecerem informações não constantes no original, informações estas que

123
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

ou não pertencem à cultura receptora, neste caso às culturas de língua portuguesa, ou não se
apresentam como referências claras ou explícitas no texto de partida, ou bem com as quais há
uma distância temporal que as torna opacas para qualquer leitor da actualidade. Como já foi
dito, o presente conjunto de notas do tradutor foi situado em dois espaços diferentes: no
rodapé das respectivas páginas quando explicavam termos culturais galegos intraduzíveis e no
final do romance quando explicavam referências culturais indirectas. Porém, não veria
utilidade nem praticidade no seu uso como notas de final de capítulo.

Houve alguns casos de interpretação de passagens um tanto obscuras de Arredor de si


que poderiam ser consideradas igualmente casos de explicitação por diversos motivos.
Vejamos um exemplo:

Texto original Texto traduzido


E a lucente xeometría do moderno— E a luzente geometria do moderno —
xeometría non euclidiana—leda com'un geometria não euclidiana— alegre como um
mociño sportivo que c'o sport procura unha mocinho desportista que com o desporto
seguranza transitoria, pois sabe qu'as procura uma segurança transitória, pois sabe
eternas preguntas volverán a resoar que as eternas perguntas voltarão a ressoar
urxentes. Apesares da poderosa e valeira urgentes. «Apesar da poderosa e vazia
seguridade da nosa gran burguesía, da segurança da nossa grande burguesia, do
post- guerra, curado pol'o marco-ouro, hai en pós-guerra, há, na Berlim curada pelo marco
Berlín moitas sondas botadas o porveñir de ouro, muitas sondas lançadas ao obscuro
escuro. (p. 128, cap. XIII) porvir.»

Adrián, o protagonista do romance, encontra-se em viagem pela Alemanha dos anos


posteriores à Primeira Guerra Mundial. No capítulo XIII, Otero Pedrayo utiliza o narrador
para apresentar diferentes visões e comentários sobre a Alemanha dos anos 1920, mas em
ocasiões são lançadas opiniões que só podem ser pessoais, que provêm de alguém que emite
um juízo muito evidente. Em muitos outros pontos do romance, a voz que se adivinha por trás
do narrador é a de Adrián (que foi identificada com a voz do próprio Otero Pedrayo). No
entanto, aqui estamos perante uma situação menos clara: quem é que poderá ter mencionado a
nosa gran burguesía? (negrito nosso). Pelo contexto deduz-se que é uma referência à
burguesia alemã e não à galega ou espanhola. O que não sabemos com certeza é quem fala
dessa nosa gran burguesía. Para complicar ainda mais a situação, não há marca gráfica
alguma de intervenção (travessão) ou pensamento (aspas) que indique diferença com a voz do
narrador. Existe uma hipótese, embora atrevida, de atribuir esta opinião ao mociño sportivo

124
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

que procura uma seguranza transitoria, sobretudo porque depois é mencionada a seguridade
da nosa gran burguesía (negritos nossos). Também não sabemos por que motivo Otero
Pedrayo varia entre seguranza e seguridade em menos de três linhas. Mas entraríamos num
terreno puramente especulativo, para além de ter de imaginar diferentes formas de ligar essa
opinião a um sujeito (o mociño sportivo) que aparece no relato de modo tão fugaz e incoeso.

Temos também curado polo marco-ouro. O adjectivo curado remete para um


substantivo de género masculino que não aparece antes do mesmo. Podemos deduzir que o
substantivo figure depois e que se trate de Berlim, pois aos nomes de cidade é conferido em
galego (e castelhano) género masculino, como se pôde ler já em un pequeno Madrid (p. 9,
cap. I). Na tradução para português deveremos usar o género feminino, o que ocasionaria que
“curada” pudesse ser visto como adjectivo de “burguesia”: na tradução ler-se-ia “[...] nossa
grande burguesia, do pós-guerra, curada [...]”. Isto é, sairíamos de um contexto original
ambíguo para obter outro traduzido que seria erróneo.

Por último, resta ainda outra dúvida: poderia haver uma gralha no adjectivo “curado”
do original, que figura com género masculino quando deveria ser feminino? Deste modo faria
mais sentido que fosse a post-guerra, curada. No entanto, trata-se de uma especulação que
não me atrevi a transpor para a tradução.

A minha interpretação foi a de associar o adjectivo curado ao substantivo Berlín,


baseando-nos no texto escrito e não abrindo a porta a conjecturas. A solução que apresento
altera a estrutura da oração: “[...] há, na Berlim curada pelo marco de ouro, [...]”. Assim, surge
uma explicitação na tradução, sem deixar margem para outras possíveis interpretações.
Ler-se-á um texto com um sentido único e claro que parte de uma ambiguidade do original.

As retraduções de uma mesma obra podem estar relacionadas com novas


interpretações de um texto (Hernández Guerrero 2002: 83). As traduções de passagens
obscuras resultam em traduções mais claras devido a que o tradutor deve, por vezes, optar por
uma das interpretações possíveis. Novas edições sucessivas ou póstumas de um original
também se vêem forçadas a tomar decisões sobre a interpretação de palavras, duplos sentidos
inesperados, incoerências gramaticais ou gralhas.

Quanto aos procedimentos de normalização, entendida esta como tendência para se


adequar a modelos e práticas típicos da língua-alvo, foram variados e abundantes durante a

125
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

realização da tradução: sinais de pontuação foram incluídos e modificados; frases e,


sobretudo, parágrafos foram estruturados de forma diferente (anteposição recorrente de verbo
ao sujeito em contexto neutro, frases com uma construção inadequada para a língua-alvo,
tempos verbais não coincidentes com o tempo referencial), intervenções orais de personagens
foram marcadas com travessão inicial quando estes não existiam, as repetições lexicais
injustificadas e próximas foram evitadas por meio de sinónimos, entre outros. O léxico foi
outro elemento normalizado, pois muitas palavras de uso raro ou pouco frequente em
português têm frequência elevada em galego, sendo conhecidos e usados popularmente:
fermosas (“bonitas”, “belas”, p. 114), medrar (“crescer”, p. 116), home (“marido”, p. 116),
franquear (“abrir”, p. 117), debullar (“devorar” [a obra de um escritor], p. 117), namorado de
(“apaixonado por”, p. 118), figurar (“parecer”, p. 119), pulo (“impulso”, p. 268), sinxelos
(“simples”, p. 122), sólpores (“pores-do-sol”, p. 108, com gralha ortográfica), verdecer
(“verdejar”, p. 87), primaveiral (“primaveril”, p. 137, com ditongação), entre muitos. Deixar
estas palavras na tradução ou simplesmente alterar a sua ortografia (por exemplo, fermosas >
formosas, debullar > debulhar) teria sido criar uma sensação de estranheza que não estava
presente no original. Leitores em língua portuguesa poderiam, com bastante esforço,
compreender o sentido (atente-se que não se fala aqui de comunicação de nível básico mas da
leitura de uma obra literária). Porém, não perceberiam a intenção de um uso repetitivo e tão
marcado de língua que não é habitual em português, nem na oralidade nem na escrita, literária
ou não. A normalização lexical está relacionada com os falsos amigos entre galego e
português, como veremos (secção 3.5).

Julgo que estes procedimentos de normalização não alteram a mensagem literária de


Otero Pedrayo nem as funções textuais ou os valores estilísticos que o romance poderia
desempenhar nas sociedades-alvo, tornando a leitura mais inteligível para qualquer pessoa de
língua portuguesa. Sara Laviosa-Braithwaite (2001) menciona diversas operações
normalizadoras, semelhantes às aqui indicadas, realizadas na tradução de romances da
literatura neerlandesa para inglês.

[T]hese adjustments occur not only in those translations which are explicitly target-oriented,
but also in those whose declared aim is to make Dutch literature known to foreign cultures and which
might therefore be expected to adhere more closely to the source text. (Laviosa-Braithwaite, 2001: 290)

O que mais chama a atenção da anterior constatação é o facto de existir a intenção de

126
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

exportar a literatura neerlandesa, o qual exemplifica, pelo menos no par neerlandês-inglês,


que a aceitabilidade pode também ser uma estratégia bem sucedida, dentre as várias possíveis,
para atingir um público-alvo com uma nova literatura, embora a lógica nos pudesse levar a
pensar o contrário, visto que o mais atraente de uma literatura desconhecida deveria ser a sua
novidade ou as suas diferenças linguístico-culturais.

2.3.2. Relação entre culturas

A tradução de Arredor de si que propomos teve presente muitas diferenças culturais e


referenciais entre a Galiza e um hipotético país de língua portuguesa destinatário do texto de
chegada. O padrão linguístico utilizado para a realização da tradução foi a do português
luso-africano. Portanto, como tradutor, tive em conta sempre um receptor que conhece e se
reconhece nessa variedade e contexto cultural.

O texto-fonte, um clássico literário galego de 1930, foi vertido para um texto-alvo que
será lido numa cultura alheia no século XXI. Com Arredor de si estamos a falar de culturas
muito próximas, embora com sistemas literários 'afastados', por vários motivos, ou até
independentes para a maior parte dos potenciais receptores. Também devemos ter em conta
que os eixos culturais dos receptores actuais não têm relação com os de um leitor galego de
1930 ou da actualidade. Por exemplo, para um português de nível cultural médio, países como
Brasil, Angola ou Moçambique estão presentes no seu imaginário e no dia-a-dia informativo,
tal e como Argentina, Cuba ou Colômbia estão para um espanhol. Numa recente aposta
iniciada em 2013, o referenciado jornal espanhol El País começou a editar a versão El País
Brasil. A partir dessa altura começaram a aparecer conteúdos produzidos originalmente no
Brasil e traduzidos para castelhano na edição espanhola, para além de notícias relativas ao
Brasil. Os interesses comerciais são uma força inexorável que tanto podem aproximar países e
culturas como afastá-los.

As fronteiras culturais vêem-se muito condicionadas por estas imagens mentais,


promovidas por indivíduos, instituições ou meios de comunicação massivos 46. Todos os
agentes culturais influenciam também o mercado comercial da cultura: por exemplo, segundo
informações do jornal espanhol Público (2015), o vídeo mais visto do site YouTube em
46 Hongwei (1999: 121) diferencia cultura material, cultura institucional (onde inclui a língua) e cultura
mental (onde figuram a mentalidade, os comportamentos, padrões de pensamento, crenças, valores e
preferências estéticas).

127
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Espanha, nos dez anos de vida desta empresa global nascida em 2005, foi “Pollito Amarillito”,
uma adaptação das canções do DVD de origem brasileira Galinha Pintadinha lançado em
2009 no Brasil. Este produto foi adaptado para castelhano e vendido nos quiosques do
mercado espanhol, isto é, em toda a Espanha, como mercadoria para consumo infantil. Os
destinatários galegos ficaram subsumidos no polissistema cultural espanhol, como acontece
com a prática totalidade dos produtos audiovisuais. Curiosamente, na Galiza, a circulação
destes vídeos musicais foi iniciada anos antes, através de diversos sites da Internet, pois
tiveram grande aceitação em português entre as famílias galegas. O produto comercializável
em português não entrou no mercado galego (pois este não terá sido identificado como
público-alvo e, caso tivesse havido essa vontade, seria uma tarefa dificilmente realizável),
mas, felizmente, a Internet tornou possível, à partida, que qualquer pessoa interessada pudesse
comprar a versão original brasileira já a partir do seu lançamento no Brasil.

Como indica André Lefevere, as traduções não são feitas no vazio (2003: 14).
Normalmente concorrem um contexto social, uma motivação ou finalidade perseguida com a
tradução, um tradutor e a sua interpretação do texto original, aspectos ideológicos
condicionantes de forma explícita ou implícita, para além de muitos outros factores, agentes e
particularidades. O tradutor não deve desprezar nenhum destes, nem sequer a sua própria
interpretação e ideias, mesmo quando implícitas. Tudo isto leva a um questionamento de
grande complexidade que torna difícil a tomada de decisões durante o processo de tradução.

Mary Snell-Hornby (1988: 39) definiu a tradução não como uma actividade que tem
lugar entre duas línguas, mas em uma interacção entre duas culturas, entendendo 'cultura' em
um sentido antropológico alargado, isto é, todos os aspectos sociais que condicionam a vida
humana. A partir dos anos 1980 são muitos os teóricos, pensadores e tradutores que falam de
uma viragem cultural (cultural turn) nas traduções e nos estudos de tradução: trata-se de uma
visão que ultrapassa o meramente linguístico e gramatical, isto é, o texto da página impressa,
e que levanta questões espinhosas e complexas como a hermenêutica de textos, a ideologia ou
a ética.

Baltrusch reconhece a ausência de fomento de transferências culturais entre a Galiza e


a Lusofonia (2010: 58) bem como “a falta de interese en verdadeiras traducións e adaptacións
culturais e de valores, como tamén da súa crítica correspondente” (ibidem: 61),
concentrando-se apenas na vertente económica. Esta falta de contacto faz com que “[m]oito

128
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

do que á maioría da xente lle gusta caracterizar como 'lusófono' na súa cultura, en realidade
non lles é intelixíbel, sexa por diverxencias lingüísticas sexa por diferenzas culturais” (ibidem:
62). Uma dinâmica que aproximasse, no nosso caso, a literatura galega da Lusofonia poderia e
deveria contemplar uma 'tradução cultural' na qual o foco de atenção estivesse não apenas no
produto mas também no processo tradutivo, onde os sujeitos (as pessoas) ocupassem a
posição central e não os objectos (os textos). Seria, com certeza, uma mudança de paradigma
que nos ajudaria a pensar “about a globalizing world in which it is no longer possible to
assume that the 'source' and 'target' sides are stable and separate” (Pym, 2010: 144).

2.3.3. Ideologia

A ideologia que está por detrás de uma tradução pode ser consciente ou inconsciente e
pode manifestar-se parcialmente ou de forma continuada. Também pode haver vacilações,
dúvidas, desconhecimento ou simples distrações do tradutor. David Katan (2009: 70) afirma
que o grau de intervenção (isto é, de interpretação e manipulação) realizada numa tradução
estará de acordo com as suas crenças acerca de quais os enquadramentos 47 culturais que têm
maior influência sobre a tradução.

Quanto ao estudo ou investigação de uma tradução, é possível posicionar-se entre uma


abordagem descritiva (descriptive approach) e outra comprometida (committed approach).
Segundo Hermans, a abordagem comprometida, por não questionar os seus pressupostos, será
prejudicial a uma visão crítica, embora tanto a descritiva como a comprometida sejam
abordagens limitadas por concepções interpretativas (ibidem: 80). Brownlie defende uma
posição integradora de ambas: tomadas de decisão firmes e justificadas ao traduzir à par da
necessidade do questionamento das concepções pessoais à luz dos contextos concretos em que
estas decisões são tomadas (ibidem: 80).

Os estudiosos da tradução costumam atentar para os níveis ocultos das traduções


enquanto que os profissionais se preocupam mais pelo que é visível à superfície (ibidem: 70).
No caso do par galego-português, a ortografia, elemento superficial, é um aspecto melindroso
que transmite, mais explícita do que implicitamente, ideias e opiniões sobre possíveis
interpretações acerca da língua, da literatura, da cultura e da identidade colectiva da Galiza e

47 “Enquadramento” foi a palavra utilizada para traduzir “frame”, conceito psicológico de Bateson (1942) a
que o estudioso da tradução, David Katan, recorre.

129
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

na Galiza. As leituras 'entre linhas' que são feitas na Galiza devido às diferenças
ideológico-ortográficas não coincidem com as que se realizam na actualidade em Portugal no
respeitante à defesa ou não do Acordo Ortográfico de 1990.

Nas traduções que são feitas tendo o galego como língua de chegada e o português
como língua de partida, Peres Rodrigues (2000: 767), aceitando a denominação de tradução
dada à conversão entre textos de variedades de uma mesma língua (“traduçom intralingual”),
propõe uma fase prévia à realização da mesma durante a qual deveria surgir um debate entre
os assim chamados 'reintegracionismo' e 'isolacionismo' linguístico na Galiza. Não são
mencionadas as partes ou instâncias que costumam, podem ou devem participar deste debate,
mas sim há uma apelo explícito: “aconselhamos ao tradutor que, na medida das suas
possibilidades, mantenha umha atitude clara, razoada e comprometida a respeito, sendo
consciente, em todo o caso, das consequências últimas de índole cultural e linguística que tem
a divulgaçom dos seus produtos.” (ibidem: 767-768, negrito nosso).

Baseando-se no conceito coseriano de língua funcional, forma delimitada de língua


histórica caracterizada por uma unidade sintópica, sinstrática e sinfásica, Vidal Figueroa
(1995: 145) aponta que “[...] estamos ante dous agregados de múltiplas linguas funcionais, e
por tanto non só é posible traducir de galego para portugués, ou ó revés, senón tamén é
posible traducir entre si diversas linguas funcionais galegas ou diversas linguas funcionais
portuguesas.”

Vidal Figueroa continua, afirmando que não há dúvida que a literatura, os textos
jurídicos e administrativos bem como os poucos escritos científicos e técnicos produzidos em
língua galega nunca poderão ser tomados por textos portugueses, e vice-versa.

Carlos Quiroga não aprova a tradução de português para galego: “qualquer galego ou
galega pode beber no original sem que os nossos recursos se gastem nesse atentado ecológico
e intelectual” (2013: 214). Porém, afirma a seguir: “na direção contrária estou completamente
de acordo, e até a língua comum pode aprender e receber contributos galegos” (ibidem: 215),
exprimindo um ponto de vista que se prende com a ideologia reintegracionista. Por sua vez, a
ideologia autonomista da língua galega também poderá aceitar a tradução de galego para
português, pois é mais um argumento de diferença e independência.

Não poucos estudiosos da tradução afirmam que o tradutor aparece inevitavelmente

130
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

por trás da sua tradução, pois traduzir implica transformar. No caso de Arredor de si, um
maior grau “intervenção” aproximou o texto-alvo do extremo da domesticação, com maior
invisibilidade do tradutor, em termos venutianos. Uma menor “intervenção” do tradutor, como
a realizada nas versões em língua portuguesa de Sempre em Galiza ou Pobres de Deus,
apresentaria um texto-alvo virado para a estrangeirização 48 que se leria às claras como um
texto que subverte certas normas do sistema literário de recepção e se concentra no
texto-fonte. Para nós, um grande problema reside nas palavras, construções, usos, matizes e
significados aparentemente conhecidos pelo destinatário mas abertamente diferentes na língua
de partida (Vidal, 1995: 145). A manutenção destes elementos por motivos ideológicos
produziria um efeito enganoso ou, pelo menos, parcialmente enganoso no receptor de língua
portuguesa. Esta falsa sensação de entendimento não se corresponde em última instância com
o sentido do texto original nem com a intenção estético-literária do autor de Arredor de si. O
nosso é, portanto, um ponto de vista que prioriza a compreensão do texto traduzido na cultura
de recepção.

Numa outra vertente ideológica, deve um tradutor ou tradutora recorrer a outras


traduções, adaptações ou versões (soluções que são, portanto, outras 'interpretações') já
realizadas de um texto de partida, mesmo noutras línguas que não a do original ou aquela a
que se pretende verter? Um exemplo que já foi tratado (ver secção 2.2) é o da tradução para
português da literatura galega mediada pelo castelhano. Deve também o tradutor ter em conta
a intenção ou as preferências do autor? E do editor?

Estas duas últimas perguntas têm fácil resposta na nossa proposta de tradução de
Arredor de si: Otero Pedrayo faleceu em 1976, pelo que as referências extratextuais e pessoais
que, como tradutor, podíamos ter eram as opiniões que o autor deixou em vida (escritos,
entrevistas) bem como interpretações de críticos literários ou autores coetâneos que tivessem
conhecido o autor. Não existe um editor da nossa tradução, pois não quisemos que esta
proposta tivesse de se subjugar, por enquanto, a este tipo de condicionamentos. Quanto à
primeira pergunta, sim tive em conta a tradução para inglês que Kathleen March fez de
Arredor de si, publicada em 2007 pela Amaranta Press e tendo como texto-fonte a segunda
edição de 1970 publicada pela Editorial Galaxia. Recorri a esta tradução em inglês quando se
colocaram dúvidas no que diz respeito ao sentido ou interpretação de termos ou passagens e
48 No caso de Sempre em Galiza e Pobres de Deus, para manter a consideração de uma tradução
estrangeirizante dever-se-ia pensar num sistema receptor lusófono e não no sistema galego.

131
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

para obter uma segunda opinião sobre as soluções possíveis para algumas questões
tradutológicas. Em muitas ocasiões compartilhei a mesma visão que March, noutras as nossas
decisões ficaram distantes. Lamentavelmente, foi apenas uma vez finalizada a tradução que
pude obter o estudo de March intitulado “La conflictividad lingüística en Arredor de si de
Ramón Otero Pedrayo” publicado em 1983 no número 99 dos Cuadernos de Estudios
Gallegos. Sim tive em consideração as reflexões da tradutora para inglês publicadas no
número 2 da revista Viceversa (1996), onde, à guisa de conclusão, escreve:

Non pensamos que a traducción teña a obriga de compensar esta natureza narrativa 49 cunha
prosa fluída ou rápida. Non pensamos, en fin, que fose mellor unha tradución transparente ou axeitada
(domesticated, diría Venuti) ós gustos dun público anglosaxón dos 90. O equilibrio dun mundo e doutro
foi o propósito da versión inglesa, sempre sen sacrificárense os elementos que facían posible unha
lectura “galega” do texto como obra propia dunha Galicia vivida nas primeiras décadas do século XX.
Velaquí que o verdadeiro desafío da obra fose a presentación do seu contexto, o saber e querer poñer
todo o pensamento donramoniano ó nivel que merece, cunha amplitude de perspectiva que fose que o
mundo en certo senso si xirase arredor del. (1996: 194)

As ideias de Kathleen March coincidem com a sua prática tradutiva: nenhuma nota da
tradutora, sem explicações de referências culturais e até sem grandes introduções (apenas duas
páginas e meia). Não foram feitas 'concessões' ao potencial leitor em inglês. Quanto a nós,
existe uma clara divergência de ponto de vista tradutológico entre a nossa proposta e a de
March: a tradução para português vira-se para os destinatários em língua portuguesa e
aproxima-se deles tanto quanto nos é possível.

2.4. Teoria e prática

Na actualidade, as edições divulgativas de Otero Pedrayo disponíveis na actualidade


em galego já contêm bastantes adaptações, regularizações e esclarecimentos, o que, em alguns
casos, aproxima a obra dos leitores contemporâneos, e noutros casos falseia ou interpreta a
primeira edição, que deve ser tida como fulcro para posteriores trabalhos rigorosos. Em nossa
opinião, o escasso público de língua portuguesa que pudesse estar interessado nos originais
em galego de Otero Pedrayo teria uma leitura cheia de solavancos com as edições actuais,
mais ou menos recentes, e não avançaria para além de uma poucas páginas se não contasse

49 Marchrefere-se ao mais que provável desconhecimento da geração Nós por parte de um hipotético leitor em
língua inglesa.

132
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

com uma determinação inabalável. E há que considerar também que são edições realizadas e
anotadas para leitores galegos.

Por isto, vimos, ao iniciar a tradução, duas opções: deixar Otero Pedrayo como está,
nas edições modernas galegas, com critérios editoriais que já alteram o original de diversos
modos; ou bem traduzir Otero Pedrayo para o aproximar do leitor em português,
descomplicando, tornando a leitura uma tarefa menos árdua, sem trair o autor e o seu estilo
mas a pensar no destinatário. A opção escolhida foi esta última. A norma inicial touriana em
que nos alicerçamos foi ter sempre em mente o hipotético receptor ou receptora de língua
portuguesa.

Na altura em que tomámos decisões globais sobre como iria realizar a tradução, não
considerámos como hipótese a adaptação ortográfica nem a realização de uma versão em
língua portuguesa mantendo especificidades léxico-semânticas e culturais galegas. Estas eram
opções de translação cultural que desconhecíamos na prática, pois nunca tinha havido a
oportunidade de ter entre mãos uma adaptação do género.

Baxter (2004: 133) fala em “barreiras artificiais e mesquinhas que [fazem] que os
portugueses precisem de «santos» tradutores para intercederem por eles”. Concordo
parcialmente com esta opinião. Talvez não sejam precisos tantos salvadores de simples
diferenças ortográficas. Mas será que este é o caso da literatura de Otero Pedrayo? Nem por
isso. O tradutor aqui não quis apenas redimir o leitor português mas também salvar uma obra
da literatura galega. Quisemos levar o próprio autor para mais perto do público, tentando
evitar o que Ramón Piñeiro confessa a Fernández del Riego (2000: 85) por carta: “A pena é
que a xente —a min mesmo ocurriume— sinte preguiza de o ler «a fondo». Moito débese á
dificultade do seu propio estilo, que fai del un escritor de minorías cultas.” Ogando Vázquez,
ao falar do Otero orador assevera:

[...] o drama do “escritor” residía en que Otero era escoitado e non lido; que para moitos dos
seus admiradores resultaba máis levadío deixarse levar pola conferencia que pola lectura dunha novela
súa. Hai moito de certo nesta sinxela afirmación. [...] non tódolos posibles lectores posuían a cultura
precisa para entender a mensaxe e a súa alta calidade literaria. Por todo isto Otero Pedrayo resultaba un
escritor de minorías selectas. Dito doutro xeito: un escritor difícil. (Ogando, 2002: 267)

A nossa vontade foi fazer que o romance pudesse chegar ao maior número de leitores

133
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

“comuns”, sem que tivessem elevados interesses literários nem que fossem especialistas em
língua ou literatura. Com este ponto de vista, as dificuldades mais salientáveis que Arredor de
si apresentou para a tradução residiram de um modo geral nos seguintes aspectos:

Dificuldades quanto à realização da tradução (processo)

- características da língua e estilo do autor e do romance,


- hiper-referencialidade,
- distância cultural,
- distância temporal e de referentes da época,
- sensação de estranheza linguística, literária e cultural,
- características da fase da língua e da literatura galegas,
- dificuldades de compreensão e interpretação de passagens,
- problemas com as diferentes edições do texto original.

O processo de tradução passou por diferentes fases: primeiro foi uma tradução de cariz
puramente linguístico na qual o esforço inicial se baseava na comparação de códigos e usos,
mas rapidamente passámos a um contexto alargado de todo romance Arredor de si e do seu
autor, estudando quais as ideias e intenções pretendidas com o romance. Finalmente, impôs-se
a consideração mais global de estarmos a verter uma obra original de 1930 com umas
especificidades culturais definidas para uma tradução do século XXI recebida numa outra
cultura próxima. A percepção destas três fases (língua > contexto-autor > cultura) foi um
processo interno, ajudado pela reflexão teórica e a comparação com outros casos de traduções
de línguas diversas.

O texto-alvo viu-se submetido a contínuas revisões e correcções, reviravoltas


inevitáveis na busca de um resultado mais coerente com os objectivos propostos. Certas
alternativas escolhidas são sem dúvida questionáveis e é provável que se possa melhorar o
resultado com maiores estudos e reflexões mais aprofundadas. Porém, julgamos incontestável
a revitalização da figura de Otero Pedrayo (por enquanto, potencial), assim como é inevitável
obtermos da tradução uma visão actualizadora de uma obra canónica da literatura galega do
século XX.

Do ponto de vista dos receptores hipotéticos da tradução, considero que poderiam


existir as seguintes dificuldades:

134
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Dificuldades quanto à recepção da tradução (produto)

- características da língua e estilo do autor e do romance,


- hiper-referencialidade,
- distância cultural,
- distância temporal e de referentes da época,
- sensação de estranheza linguística, literária e cultural,
- diferenças entre sistemas literários,
- desconhecimento da sociedade galega para os leitores em língua portuguesa.

As primeiras cinco dificuldades apontadas são comuns ao ponto de vista da processo


de tradução como da recepção da mesma.

Tanto o objectivo de levar Arredor de si aos leitores de língua portuguesa quanto a


determinação da primeira edição de 1930 como texto de partida foram pontos dados como
assentes logo no início da tradução e permaneceram inalterados até ao final do processo sem
que surgisse qualquer sombra de dúvida acerca destes. Outras edições do original tiveram
grande importância como fonte de informação: a segunda edição (1970), que apresenta uma
divisão em parágrafos modernizada e modelo para as seguintes; a quinta edição (1985), com
introdução e notas50 de Luciano Rodríguez Gómez; e a sétima edição (1991), dos irmãos Inma
e Manuel García Sendón.

Também foram essenciais para a compreensão, esclarecimento de dúvidas e


confirmação de hipóteses as edições de outras obras narrativas oterianas lidas ou consultadas,
entre as que destacam Os Camiños da Vida (edição de 1990 de Ramón Mariño Paz, com
primeira edição em 1928, imediatamente antes de Arredor de si) e O Fidalgo e outros relatos
(edição de 2001 de Antón Palacio Sánchez), ambas saídas da Editorial Galaxia.

Outras obras essenciais para apreender o universo de Otero Pedrayo foram Fuga e
retorno de Adrián Solovio: Sobre a educación sentimental dun intelectual galeguista de
Ramón Villares (2007), que se concentra em Adrián Solovio, personagem principal de
Arredor de si e alter ego de Pedrayo; e Ramón Otero Pedrayo: vida, obra e pensamento dos
historiadores Xosé Ramón Quintana e Marcos Valcárcel (1988), essencial para obter uma
50 Trata-sede uma edição destinada ao âmbito escolar e cujas notas de rodapé foram elaboradas a pensar nas
dificuldades dos estudantes. Por exemplo, explicam-se os significados de palavras e expressões do alemão,
francês, inglês ou latim, e apresentam-se informações complementares sobre artistas, escritores, políticos,
músicos e intelectuais de renome e mundialmente conhecidos, desnecessárias numa edição para público
adulto.

135
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

visão panorâmica do percurso vital, ideológico, político e literário do autor em questão. Estes
e muitos outros estudos e livros, literários ou não, ajudaram-nos a entrever a dimensão da obra
de Pedrayo e o significado e importância que tem adquirido ao longo dos anos.

Menciono estas obras e estudos de forma explícita porque fizeram parte do processo
tradutivo, serviram para compreender o original e validar ou rebater certas tomadas de decisão
feitas à medida que avançávamos na tradução e sentíamos a necessidade de não nos
basearmos apenas na 'tona' linguística do texto-fonte. Em bastantes ocasiões uma escolha
'menos boa' significou ter de recuar e perder grande tempo em reflexões, consultas, revisões e
correcções que se poderiam ter evitado tendo à partida um maior conhecimento da língua do
autor, da sua obra completa, do contexto histórico ou das referências culturais referidas. Esta
percepção confirma a ideia de que a tradução literária exige uma apreensão tão global como
possível e que as reflexões prévias à fase linguística ou tradutiva são indispensáveis.

Ligado a esta ideia está o facto da divulgação e consolidação de traduções literárias


sem um estudo prévio aprofundado ou adequado. Sirva de exemplo o que já foi referido
acerca das traduções de literatura galega para português mediadas por uma primeira tradução
em espanhol (autotradução ou não). O texto-alvo será uma visão parcial, ou, pelo menos,
muito mais parcial do que se tivesse sido realizada a partir do original pois o tradutor não
poderá captar a riqueza e os matizes do texto-fonte para os transmitir aos destinatários. A
longo prazo, em função de novas necessidades ou críticas, poderão surgir retraduções da
mesma obra com novas interpretações, actualizações e correcções.

Tal e como a obra original pertence ao autor e ao seu tempo, a tradução 'pertence' ao
tradutor e às suas circunstâncias. Como já indicamos anteriormente, a nossa intenção foi
elevar o grau de aceitabilidade do texto-alvo na cultura receptora. Entre os abundantes
elementos que indicam ao leitor que tem entre mãos uma tradução destacam-se os referentes
culturais. Foram contempladas as seguintes soluções à presença destes:

a) conservar o referente: por exemplo, tostado (p. 19) e migueletes (p. 103) são,
respectivamente, o nome de um tipo de vinho e a designação de um militar do século XIX.
Foram mantidos, adoptando uma posição estrangeirizante. Também foram acrescentadas notas
de rodapé explicativas.

b) traduzir o referente no texto de chegada: estadea e xamona (ambas p. 13) são

136
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

realidades desconhecidas em português, sendo domesticadas com os equivalentes


“assombração” e “bonitona” respectivamente.

c) adoptar uma posição intermédia, em função do contexto: com alguns topónimos


urbanos, o primeiro elemento foi traduzido (“Rua de”, “Praça de”) e o segundo, com peso
cultural e identitário, mantido como no original (“Estrella”, “Ancha”, “Alcalá”).

Um aspecto cultural e identitário de enorme importância é a religião, dentro da


doutrina cristã católica, que permeia o romance Arredor de si e, em geral, a vida e obra de
Otero Pedrayo. Quintana e Valcárcel (1988: 101) mencionam a “centralidade da súa
concepción católica do mundo” que o despossuem de elementos nacionalistas galeguistas.
Estes autores apontam esta contradição interna do pensamento oteriano, um enfrentamento
entre a crença religiosa e as ideias políticas, mas minimizam a sua transcendência vistas as
acções levadas a cabo no âmbito do galeguismo político. São muitas as referências a
realidades religiosas no romance, difíceis de perceber e explicar a quem não as tenha vivido
ou conhecido. Mais importante para o tradutor é compreender que Solovio, o protagonista,
procura a sua identidade também por meio da religião e de reconhecidas personalidades
históricas e do pensamento cristão. O conhecimento deste tipo de inquietudes ajuda a
destrinçar certas dificuldades e a ir de encontro aos termos de cariz religioso que devem ser
tratados com especial cuidado na tradução.

Alguns nomes de personagens secundárias poderão chamar a atenção ao leitor:


Bernaldo (e não “Bernardo”) ou Xacobe (e não “Jacob” ou “Jacó”), se tais equivalentes da
tradição em língua portuguesa o leitor puder entrever. Com os nomes Xacobe e Florinda
sucede no original qualquer coisa de singular: Xacobe convive com a forma Xacobo enquanto
que Florinda surge junto com Frolinda e até Frorinda. Deixando de parte os motivos para o
uso destas variedades, decidimos unificar a forma dos antropónimos naquela que aparece com
maior frequência, isto é, a primeira das acima mencionadas. Pudemos comprovar que na
segunda edição do original (1970) estas variedades de antropónimos permanecem, não assim
na quinta edição (1985), onde são unificados com escolha idêntica à nossa. Esta
multiplicidade de nomes poderia chegar a confundir o leitor e até o tradutor. Desconhecemos
o motivo pelo qual não se manteve a biunivocidade entre personagens e nomes na primeira
edição, mormente sendo este um aspecto tão relevante para a criação literária de Otero
Pedrayo, uma vez que noutras obras se repetem os mesmos nomes dados a outras

137
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

personagens.

Após o necessário aperfeiçoamento técnico prévio, entre o final da I Guerra Mundial e


a Grande Depressão de 1929, os automóveis começaram a vulgarizar-se por todas as grandes
cidades da Europa e dos Estados Unidos. As diversas descrições e narrações de Arredor de si
remetem para este período histórico. No fim do romance, de regresso à Galiza depois de viajar
por diversos países europeus, Adrián Solovio aporta à Corunha: “Ardía por abrazar a nai e
non querendo agardar pol'o tren colleú un automóvil” (p. 138, cap. XIV, negrito nosso). Os
termos coche, auto, automóvil e taxi são usados no romance em diferentes momentos. Na
mesma página podemos ler: “O auto afúndese na noite de piñeirals”. No contexto em questão,
devemos determinar o que é exactamente esse automóvil ou auto, se um automóvel de aluguer
no seu conceito moderno, isto é, um táxi, ou um veículo para transporte colectivo, um
“autocarro” dos dias de hoje. Descartamos uma terceira opção, a do aluguer de um carro para
condução própria, dado que Adrián Solovio viaja acompanhado por um motorista. A tradução
para inglês optou por bus nos dois contextos acima indicados, interpretando que se trata de
um veículo para muitos passageiros.

Depois de viajar por meia Europa, Adrián Solovio pode por fim contemplar cidades e
aldeias galegas, casas, igrejas, monumentos, ruas e praças que conhece das suas leituras e
conversas, mas às quais nunca tinha dado importância. “O chófer vaille dicindo por onde
pasan pois é o primeiro viaxe de Solovio pol'o corazón da Galiza.” (p. 139). O protagonista
viaja durante a noite e gostaria de fazer “il soilo, sin a latricada do chófer, a descoberta de
Compostela”, informa-nos o narrador omnisciente. Na capital galega, em plena Praça do
Obradoiro, ouve o sino do “reló de Compostela” (a Torre do Relógio) e “manda parar hastra
que o soar morre mainamente” (p. 140). Difícil seria que um cliente ocasional pudesse
ordenar ao motorista de um autocarro que efectuasse uma paragem não prevista a meio da
carreira e de madrugada.

É bastante provável que um rico fidalgo galego, após uma despreocupada viagem
durante semanas por toda a Europa, sem qualquer obrigação profissional ou de outro género,
possa contratar o serviço de um táxi que o leve por onde ele bem entender, sem seguir o
itinerário obrigatório para todos os passageiros e desrespeitando horários e paragens. É de
manhã quando Solovio chega a casa, nos arredores de Ourense, e vai dormir. Já há
camponeses a trabalhar: “Um coro de vendimadoras nos primeiros velos do sono.” E só

138
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

acorda “xa entrada a tarde”. Também não é muito provável que um autocarro viaje de
madrugada com apenas um passageiro. Optámos por traduzir automóvil e auto por “táxi”,
realizando assim uma clara explicitação do termo. “Automóvel” teria sido uma escolha
razoável, mas não encaixaria nos contextos concretos em que aparece. Outro motivo que nos
levou a escolher “táxi” foi o uso do verbo coller, que em português se torna “apanhar”.
Também é importante referir que a palavra taxi já tinha sido utilizada antes (p. 10, cap. I; p.
110, cap. XI).

Noutro contexto a decisão tomada foi diferente: “Algús días soaban na carretera
trompas mañanceiras d'auto. O Xacobe [...] despedíase [...] e corría car'o coche que levaba o
equipo algareiro.” (p. 60, cap. VI, negritos nossos). Um grupo de jovens muito animados vai
para outra cidade onde disputarão uma partida de futebol. Umas linhas antes, diz-se de
Xacobe que aos “poucos días xa tiña organizado un once c'os rapaces d'aldea.”
Evidentemente, pelo número de passageiros trata-se de um autocarro. Neste mesmo contexto,
o autor recorre também a coche como sinónimo, o que nos obriga a alternar “autocarro” com
“camioneta”.

Para chegar a estas conclusões tivemos de investigar acerca da história dos veículos a
motor e tentar compreender, visual e conceptualmente, como era a circulação nas cidades
europeias da década de 1920. Graças às tecnologias da informação e comunicação e ao
esforço tantas vezes desinteressado de muitas pessoas, foi fácil chegar a rápidas conclusões e
não termos de despender preciosas horas em buscas, às vezes infrutuosas, nas mais diversas
bibliotecas. Na Internet, foi possível ler textos em diversas línguas, ver fotografias e visionar
filmes de Londres, Paris, Madrid, Lisboa ou Galiza nas primeiras décadas do século XX e
apreciar, por exemplo, as avassaladoras diferenças no número de veículos motorizados e a
convivência destes com os de tracção animal, bicicletas e peões. Também foi possível
contrastar e confirmar informações com outras fontes e publicações online diversas que, por
sua vez, remetiam para obras publicadas em papel.

A distância entre a vida real e a vida virtual parece estar a esvaecer-se de todo. Actos
da vida online têm efeito directo sobre a sociedade e vice-versa. Nos últimos anos, a
percepção da diferença de valor dado às informações em papel e eletrónicas diminuiu
sensivelmente. Um exemplo disto é a Wikipédia, projecto de enciclopédia de acesso livre e
sob a administração da Fundação Wikimedia, que deu os seus primeiros passos em 2001. O

139
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

seu uso como fonte de referência única não deve ser aplaudido, talvez precisamente por se
tratar de uma enciclopédia de autoria anónima, quando em investigações académicas ou de
relevância devem ser consultadas sempre as fontes primárias dos autores e autoras. No
entanto, um estudo publicado na revista Nature em 200551 afirmava que os níveis de exactidão
de artigos científicos da enciclopédia Britannica e da Wikipédia eram similares.

Por outro lado, parece existir uma fé cega em tudo aquilo que surge rodeado de uma
aura empirista. Publicações de carácter académico sério, muito referenciadas e com influência
em diversas esferas a nível mundial como as revistas Science ou a já mencionada Nature têm
visto como a sua fiabilidade é posta em causa devido a supostos trabalhos científicos que
resultaram ser fraudes que conseguiram ludibriar os seus filtros de qualidade e controlo.

A realidade do mundo da tradução é que o motor de pesquisa Google é utilizado como


um gigantesco corpus que permite verificar em poucos segundos se certas palavras ou
expressões têm um determinado uso numa língua ou se contêm nuances de que o tradutor
suspeita, entre outras possibilidades. Por este e por outros motivos, resulta de grande interesse
saber valer-se de todo o tipo de ferramentas informáticas ao dispor do tradutor. Cada vez mais
publicações de todo o tipo estão disponíveis apenas em formato electrónico e o livro digital,
que veio para ficar, pode ser lido em todo o tipo de dispositivos de forma simultânea. Estamos
a viver uma fase acelerada de transição da publicação impressa para a electrónica, da qual os
meios de comunicação de massa ditos tradicionais e a cidadania se aperceberam há já alguns
anos.

A nossa opinião é que devemos desconsiderar o formato de publicação e valorizar o


rigor e o contraste de informações. Por exemplo, foi de grande utilidade podermos obter obras
digitalizadas que já estão no domínio público, como Santa Teresa de Gabriela Cunninghame
Graham ou Mémoirs d'Outre-Tumbe de Chateaubriand. Democratiza-se o acesso à informação
e à circulação da cultura, embora sejam necessários critérios de selecção, qualidade e
credibilidade.

O tradutor também deve duvidar de informações dadas como certas pelo autor. Em
Arredor de si, Florinda, em conversa com Adrián, informa-o do seguinte: “Eu non che sei
outra filosofia qu'adeprendida n'unha leución de Bergson na Sorbonne” (p. 122, cap. XIII).

51 GILES, Jim (2005) “Internet encyclopaedias go head to head”. Nature, vol. 438 (7070): 900-901.

140
Traduzir de galego para português: considerações teórico-práticas

Henri Bergson é um pensador central no mundo oteriano e também em Arredor de si, onde o
seu nome é mencionado em seis ocasiões. Também é importante saber que Bergson obteve o
prémio Nobel de literatura em 1927, três anos antes da publicação de Arredor de si. Apesar da
sua importância, Otero parece ter-se enganado pois Bergson não ensinou na Sorbonne mas na
École normale supérieure e no Collège de France (Villares, 2007: 107). O nosso autor tinha
uma prodigiosa memória, mas esta às vezes pregava-lhe algumas partidas52.

Em última instância, o essencial é o compromisso ético do tradutor na transmissão


cultural. A tradução deve igualmente ser vista como uma acção social na qual um dos agentes
principais é o tradutor. Não existem fórmulas mágicas aplicáveis, menos ainda na tradução
literária. Cada caso é particular e pode haver diversas alternativas à escolha. Quanto ao
produto ou resultado, o desejável é que o texto de chegada tenha o desejado sucesso, que seja
lido pelo público-alvo e não apenas que ocupe um lugar nas prateleiras de livrarias e
bibliotecas. Afinal, é muito ténue a linha que separa uma tradução que atinge os seus
objectivos de outra que fica esquecida.

52 No entanto, Gillies (1996: 62) refere o seguinte: “[...] Elliot listened to Bergson's lectures at the Sorbonne in
the winter of 1911 [...]”. Portanto, existe a possibilidade de que Bergson tenha ministrado algumas aulas
nesta universidade.

141
3. ESTUDO DESCRITIVO DA TRADUÇÃO PARA PORTUGUÊS DE
ARREDOR DE SI
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

3. Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

A abordagem deste estudo descritivo será de natureza empírica, apoiada


fundamentalmente nos Estudos Descritivos de Toury (1995). Como é sabido, não há uma
prática ou receita tradutiva única e invariável para qualquer texto. Na área da tradução
literária, essa ausência de critério talvez seja ainda mais marcada, pois é aqui onde
observamos com maior clareza o elo inegável entre tradutor e texto traduzido: da sua
sensibilidade e competências tradutivas dependem o produto final.

Queremos também opor-nos à ideia de que os tradutores não teorizam. Em opinião de


Pym (2010: 1), “[t]ranslators are theorizing all the time. Once they have identified a
translation problem, they usually have to decide between several possible solutions”. O
posicionamento pessoal perante as questões tradutológicas de um dado par de línguas, as
analogias com outros casos e contextos, a busca incessante de uma solução conveniente,
satisfatória ou simplesmente 'decente' para um trecho ou termo são, no fundo, procedimentos
'muito humanos', próprios de um Homo sapiens que reconhece sentidos e matizes e que
valoriza a complexidade subjacente aos processos comunicativos. Também isto é levar a cabo
um tipo de teorização.

O tradutor é, para o receptor de uma obra cuja língua original não conhece, o intérprete
necessário e inevitável. A sua capacidade de interpretação e criatividade linguística são o que
permite a transposição de forma e sentido, enquanto que a sua atitude moral é o maior
condicionante de uma suposta vontade última do autor em relação à sua obra. Do ponto de
vista prático, uma tradução (ou retradução) significa uma renovação da visão que se tem de
uma obra consoante a época histórica, a finalidade, a edição, o processo tradutivo e os agentes
que participam nele, etc. Por tudo isto, cada tradutor vai descobrindo pouco a pouco o seu
caminho. O que deve permear a mente de todo o tradutor e tradutora literária é a curiosidade:
há que duvidar sempre das primeiras interpretações e das críticas literárias monolíticas e
prestabelecidas. De facto, a partir de novas interpretações, o tradutor oferece à obra traduzida
uma nova vida, pois abre (ou reabre) um campo de sobrevivência geográfica e cultural,
inesperada em muitos casos, e enceta novos diálogos. Por este motivo, resulta de grande
interesse realizar a descrição de uma tradução, de um ponto de vista crítico e justificativo,
como também será expressivo o grau de satisfação manifestado pela sociedade destinatária.

145
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

A descrição que realizo da tradução do romance Arredor de si para português aborda


uma série de pontos que considerei problemáticos na relação tradutiva entre galego e
português: pontuação, parágrafos, antropónimos, topónimos, formas de tratamento,
fraseologia, falsos amigos, estrangeirismos, intertextualidade, notas do tradutor,
deslocamentos, explicitações, normalização estilística, correcções e dificuldades de
interpretação.

Foram seleccionados diversos pares de textos submetidos a análise. Quando


necessário, utilizamos o sublinhado para uma mais fácil localização ou identificação dos
aspectos descritos.

3.1. Pontuação

A pontuação da primeira edição de Arredor de si é precária e leva a bastantes


confusões. Nestes casos, a estratégia seguida foi interpretar o sentido do original para, a
seguir, pontuar correctamente em português. Isto levantou certas dúvidas, mas não foi um
problema incontornável graças ao contexto, o qual resolvia estas incertezas na maior parte dos
casos. Noutros optei por alterar alguma pontuação do texto de partida quando não se adequava
bem ao texto de chegada. O ritmo do original, sobretudo no que diz respeito ao estilo de
orações breves que emprega o autor, não se viu alterado. Apresento aqui alguns exemplos das
alterações efectuadas salientadas por meio do sublinhado.

3.1.1. Inclusão de sinais de pontuação

TF: Tiña unha filla miuda e linda, un pouquiño arrevellada, grossiña de falar de paxariño
mimoso. [p. 23]
TA: Tinha uma filha miúda e linda, um pouquinho envelhecida, cheiinha, de falar de
passarinho mimoso.

TF: A fontela muller a primaveira dos outos chaos. [p. 55]


TA: A fontainha feita mulher, a Primavera das altas chãs.

TF: O sol do meiodía, fixo, no cume do ceo mataba o sol dubidoso, mollado de mar de
Alborada do Amadís. [p. 83]

146
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TA: O sol do meio-dia, fixo, no cume do céu, matava o sol duvidoso, molhado de mar de
alvorada do Amadis.

TF: hai pra camiñar a Europa ôs camiños da mar. [p. 84]


TA: há, para caminhar a Europa, os caminhos do mar.

TF: A nai sadisfeita somentes tiña duas preocupaciós [p. 89]


TA: A mãe, satisfeita, somente tinha duas preocupações

TF: Xente bien. D'a Cruña. ¿Non ch'adeprenderon, fidalga señora, qu'a Cruña era un
pequeno Madrí? [...] En Madrí todos falan c'aquil acentiño tan lindo do novio da tua
curmán. [p. 9]
TA: Gente fina. Da Corunha. «Não lhe ensinaram, senhora fidalga, que a Corunha era uma
pequena Madrid? [...] Em Madrid todos falam com aquele sotaquezinho tão lindo do
namorado da tua prima.»

TF: Unha grea de pensamentos pesimistas galopaba impracabre pol'o cerebro de Solovio.
E moi tarde. Estou i-está condenada sin remedio. Por primeira vegada [...] [p. 136-
137]
TA: Uma grei de pensamentos pessimistas galopava implacável pelo cérebro de Solovio.
«É muito tarde. Estou e está condenada sem remédio.» Pela primeira vez [...]

Nos dois últimos pares incluíram-se as aspas que indicam uma reflexão interior de
Adrián Solovio. Sem as aspas, estes pensamento teriam de ser atribuídos ao narrador.

3.1.2. Alteração de sinais de pontuação

TF: Us dín Alcán: outros Mercure. [p. 20]


TA: Uns dizem «Alcan», outros, «Mercure».

TF: Si Xacobo meditase diríalles o seu pensamento: —«Tráigovos o Evanxeo do Sport [p.
59]
TA: Se Xacobe meditasse, dir-lhes-ia o seu pensamento: «Trago-vos o evangelho do
Desporto

147
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Eliminei um travessão na tradução por se tratar de uma reflexão interior.

TF: Sin axuda do Apóstol Sant-Iago. Pois o que se trataba era de [p. 81]
TA: Sem ajuda do apóstolo Santiago, pois do que se tratava era de

TF: diant'aquela casa que levaba o rótulo estrano: «posada del alma de Lucas Moreno»:
Desengánate. Eiquí o que vive non é o Alcázar. [p. 85]
TA: em frente daquela casa que levava o rótulo estranho «Posada del alma de Lucas
Moreno»:
—Desengana-te. Aqui o que está vivo não é o alcácer.

Elimino o primeiro sinal de dois pontos e inicio, em um novo parágrafo, uma


intervenção dialogada com um travessão. No original não se marca esta intervenção de
nenhuma maneira (nem aspas nem travessão), embora seja clara e extensa.

TF: Teresa —Sor Teresa— [p. 99]


TA: Teresa, Sóror Teresa,

TF: Mateo, X, 5, 10. [p. 39]


TA: Mateus 10, 9.

Neste último exemplo, altero não só o formato de citação como também corrijo um
lapso do autor, que cita explicitamente um versículo do evangelho de São Mateus e não
vários.

3.2. Divisão do texto em parágrafos

Quanto à divisão do romance em parágrafos, a primeira edição de Arredor de si não


foi composta de acordo com uma organização narrativa moderna. Várias páginas podem
conformar um único parágrafo, mesmo tratando muitas ideias e assuntos diferentes. A maneira
como procedi neste caso foi semelhante às edições galegas posteriores à primeira: subdividir
os extensos parágrafos de muitas páginas noutros mais pequenos em função do contexto, das
temáticas mencionadas e de certos formalismos textuais. Guiei-me pela divisão realizada na
sétima edição, de 1991, que, por sua vez, parece estar baseada na divisão realizada na segunda

148
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

edição, de 1970. Mesmo assim, não concordei sempre com estas divisões. Exemplifico aqui
algumas das diferentes divisões em parágrafos que realizei.

Texto-fonte Texto-alvo
O amor dos dous irmáns medróu c’a O amor dos dois irmãos cresceu com a
común doenza e sem se visitar pensaban un comum doença e, sem se visitarem, pensavam
n’outro: [...] A ama non entendía aquilas um no outro: [...] A ama não entendia aquelas
verbas estranas do seu señor. Ainda lle palavras estranhas do seu senhor. Ainda lhe
puñan mais medo os longos silenzos c’os metiam mais medo os longos silêncios com
ollos apegados âs vigas do treito. Nos os olhos colados às vigas do tecto.
mediados do entroido unha leda rayola de Em meados de Fevereiro um alegre
sol entroú procurando os pés taraceados do raio de sol entrou à procura dos pés
leito. Na cerdeira da canella cantaba un marchetados do leito. Na cerejeira do carreiro
paxariño. Chegaban berros tolos de nenos. cantava um passarinho. Chegavam gritos
D. Bernaldo ergueuse traballosamente do loucos de crianças. O padre Bernaldo
sillote, [...] foise pr’o despacho. [p. 35] ergueu-se laboriosamente da poltrona, [...]
foi-se para o escritório.

No primeiro parágrafo do texto-alvo fala-se da doença do padre Bernaldo que o separa


da sua irmã e do medo que os comportamentos estranhos do padre Bernaldo causam à ama. O
segundo parágrafo começa com a descrição do ambiente fora da casa do padre Bernaldo para
passar depois ao interior da mesma. Dois elementos do contexto que evidenciam isto são os
verbos entroú e Chegaban. O narrador situa-se a si próprio dentro da casa do padre Bernaldo,
enquanto diz que fora há sol (unha leda rayola de sol entroú), há um pássaro a cantar e
crianças a gritar (Chegaban berros tolos de nenos).

As edições galegas posteriores à primeira propõem dividir os dois parágrafos a partir


de “D. Bernaldo ergueuse traballosamente [...]”. Desta forma está-se a indicar erradamente
que o ambiente antes descrito (sol, pássaro e crianças) pertence ao parágrafo anterior, o qual
de um ponto de vista contextual e lógico não é muito provável.

Texto-fonte Texto-alvo
[...] diant'aquela casa que levaba o [...] em frente daquela casa que levava
rótulo estrano: «posada del alma de Lucas o rótulo estranho «Posada del alma de Lucas
Moreno»: Desengánate. Eiquí o que vive non Moreno»:
é o Alcázar. [...] Pol'o menos eu sinto d'ista —Desengana-te. Aqui o que está vivo
maneira â España... Adrián dicíao con não é o alcácer. [...] Pelo menos eu sinto
tristeza [...] [p. 35] Espanha desta maneira...
Adrián dizia isto com tristeza [...]

149
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Há uma clara intervenção de Adrián que fala com um amigo toledano antes
mencionado. Esta intervenção deve ser marcada com um travessão. Talvez o problema na
divisão de parágrafos das edições galegas provenha do facto de não haver nenhuma marca
(aspas ou travessão) indicadoras destas palavras do protagonista. Portanto, antes e depois
desta intervenção surgem dois parágrafos diferentes.

Texto-fonte Texto-alvo
[...] albre frolido que nos meses [...] árvore florida que nos meses
tépedos asombraba o coarto onde Kant tépidos assombrava o quarto onde Kant
estudaba. Tecendo ideas arredor de Mad. estudava.
Stäed (recender d'un pecado intelixente, Tecendo ideias à volta de Madame de
novidade relativa, rebeldía contra o Staël —recender de um pecado inteligente,
Emperador, d'ela soila, d'unha muller). novidade relativa, rebeldia contra o
Adrián trazaba as duas fuxidas opostas: [...] imperador, dela só, de uma mulher—, Adrián
[p. 121] traçava as duas fugas opostas: [...]

O que primeiro detectei foi a ausência de verbo principal no período que se inicia com
“Tecendo ideas”. Uma divisão de parágrafo deveria ser introduzida antes ou depois deste
período, consoante estivesse relacionado com os assuntos anteriores ou posteriores. No
entanto, não é possível estabelecer uma relação temática clara, pois são tratadas ideias sem
nexo. Considerei que talvez houvesse uma pequena gralha: o ponto que antecede “Adrián”
deveria ter sido grafado como vírgula. Desta forma, tudo parecia encaixar, uma vez que
“Tecendo ideas” seria um período que antecederia uma frase principal (“Adrián trazaba”).

Outra alteração na divisão de parágrafos (as reflexões de Adrián no interior do


compartimento de um comboio que chega à Estação do Norte madrilena) já foi comentada ao
falar do estilo do autor na secção 1.3.1.

3.3. Nomes próprios e formas de tratamento

3.3.1. Antropónimos

Os nomes das personagens principais que aparecem no romance foram respeitados e


deixados tal e qual no original. Portanto, Adrián, Alberte, María e Bernaldo, entre outros, não

150
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

sofreram modificações. Também não foram alterados outros nomes próprios menos repetidos.
É o caso de Cremente, forma popular de Clemente. Os antropónimos também tornam mais
visível a procedência estrangeira do texto-alvo.

O nome de dois personagens importantes levantou uma pequena dúvida. No original, o


autor vacila indistintamente entre as duas ou três variantes dos seguintes nomes: Xacobe /
Xacobo e Florinda / Frorinda / Frolinda. Por este motivo, numa leitura relaxada do original
poderíamos ver-nos confundidos ou até chegar a pensar que se trata de personagens
diferentes, o que me levou a unificá-los em Xacobe e Florinda. No caso de Xacobe, esta é a
forma mais repetida no conjunto do romance.

Quanto aos nomes de personalidades históricas, estes foram traduzidos para português
desde que existisse tradição reconhecida. Os casos mais salientáveis são os seguintes:

Texto-fonte Texto-alvo
Alfonso VI [p. 85] Afonso VI
Calros53 [p. 115] Carlos
Carlomagno [p. 108] Carlos Magno
Colón [p. 150] Colombo
Federigo II [p. 128] Frederico II
Felipe II [p. 9] Filipe II
Idacio (bispo) [p. 126] Idácio
Platón [p. 76, 77, 131] Platão
San Bavón [p. 137] São Bavão
Santa Taresa [p. 84] Santa Teresa

Também foram detectados erros ou formas menos frequentes de nomes de


personalidades. Todos estes antropónimos são estrangeiros e foram modificados na tradução:

Texto-fonte Texto-alvo
Alcán [p. 20, 89, 116] Alcan
Barrés [p. 110] Barrès
Chateau-briand [p. 110] Chateaubriand

53 Trata-se
do primeiro pretendente carlista ao trono espanhol, Dom Carlos de Bourbon. A escrita metatética
Calros concorda com calrista (p. 53) e calristas (p. 133), mas discorda de carlistas (p. 115) e Carlos V (p.
137) em Arredor de si.

151
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Gesgis Kán [p. 127] Gengis Khan


Laperousse [p. 106] La Pérouse54
Lavoissier [p. 131] Lavoisier
Mad Stäel, Mad. Stäel [p. 121] Madame de Staël
Nietsche [p. 110] Nietzsche
o Petrarca (com art. def.) [p. 150] Petrarca
Renán [p. 108, 130] Rénan
Turgueneff [p. 109] Turguenev
Valery Larbaud [p. 110] Valéry Larbaud

Também foi adaptada a grafia da alcunha dada a um rico produtor de azeite, o


Aceiteiro (“Azeiteiro”), mencionado em bastantes ocasiões no romance.

3.3.2. Topónimos

Os topónimos foram traduzidos segundo a sua tradição em língua portuguesa. Vejamos


alguns exemplos:

Texto-fonte Texto-alvo
Africa [p. 135] África
Aguas flavias [p. 126] Águas Flávias
Alemania [p. 121] Alemanha
Amberes [p. 134, 138] Antuérpia
Améreca55 [p. 145, 149] América
Asia [p. 127, 135] Ásia
Atránteco [p. 135] Atlântico
56
Bálteco [p. 116, 134] Báltico
Berlín [p. 120, 127, 128] Berlim
Bilbao [p. 84] Bilbau
Bruselas [p. 137] Bruxelas
Bruxas [p. 137] Bruges
Colonia [p. 121, 123] Colónia

54 Também frequente a escrita Lapérouse.


55 Também é usada a forma América (p. 135, 149).
56 Também é usada a forma Báltico (p. 121, 132).

152
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
Cruña [p. 9, 73, 84, 135] Corunha
Flandes [p. 112] Flandres
Francia [p. 17, 115, 127] França
Iberia [p. 130] Ibéria
Ingraterra [p. 130] Inglaterra
Italia [p. 127] Itália
León [p. 7] Leão
Madrí [p. 97, 109, 128, 143] Madrid
Oucidente [p. 120] Ocidente
57
París [p. 103, 111, 116] Paris
Peninsoa [p. 121] Península
Pirineu(s) [p. 51, 84, 110] Pirenéu(s)
Postdam [p. 129] Potsdam
Prusia [p. 129] Prússia
Rhin [p. 110, 122] Reno
Rusia [p. 130] Rússia
Sans Souci [p. 121] Sanssouci
Sant-Iago58 [p. 37, 41, 73, Santiago
92, 114, 133, 139, 143, 147]
Segovia [p. 128] Segóvia
Slavia [p. 127] Eslávia
Tennedt59 [p. 126] Tennstedt
Teutonia [p. 127] Teutónia
Touraine [p. 110] Turena
Venecia [p. 16] Veneza
Verdún [p. 17] Verdun
Vizcaya [p. 115] Biscaia
Xermania [p. 122, 125] Germânia

Os topónimos de lugares menores ou pouco conhecidos como Bouzas (p. 88, 148),
Cacheiras (p. 10), Millarada (p. 87) ou Vega (p. 82) foram deixados na sua forma original,

57 A forma Paris, sem acento agudo, é profusamente usada no original.


58 Forma muito utilizada pelos membros da geração Nós.
59 Provável gralha.

153
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

uma vez que não têm tradição de uso em português.

3.3.3. Nomes de arruamentos

Uma questão mais complicada foi a dos nomes de arruamentos. Normalmente estes
topónimos surgem no original galeguizados ou parcialmente galeguizados por Otero Pedrayo.
Vejamos como funciona o procedimento utilizado pelo autor: a maioria dos arruamentos
pertencem à cidade de Madrid e, portanto, têm uma designação castelhana. O primeiro
elemento é facilmente galeguizado (rúa de, praza de). Já o segundo elemento fica em geral
idêntico ao castelhano. Eis alguns exemplos que aparecem em Arredor de si: rua da Luna (p.
10), rúa de Peligros (p. 11), rúa das Infantas (p. 13), rua da Estrella (p. 25), rúa d’Alcalá (p.
45), rúa de Alcalá (p. 45), rúa do Prado (p. 45), praza de Puerta de Hierro (p. 48), praza
d’Oriente (p. 27), praza da Armería (p. 28). Há um único caso em que o segundo elemento é
galeguizado: [rua] do Desengano (p. 10), calle do Desengano (p. 25), que em castelhano
corresponderia a calle del Desengaño.

Otero Pedrayo respeita em geral o segundo termo, essencial para a identificação dos
topónimos reais, sem cair na tentação de adaptar erradamente, por exemplo, calle Ancha por
rúa Larga, com o que se perderia de vista a referência geográfica madrilena.

Porém, mesmo observando esta tendência, o autor não é regular:


- a palavra rúa acentuada graficamente coexiste com rua sem acentuar.
- uma mesma rua tem, por vezes, várias representações escritas: calle de Alcalá (p. 23), rúa
d’Alcalá, rua de Alcalá (p. 45); calle do Desengano (p. 25), [rúa] do Desengano (p. 10).

Tendo em conta todos estes factores, estimei que havia duas possibilidades para a
tradução portuguesa:

1. Recorrer ás designações originais em castelhano, contrariando a intenção do autor


no texto-fonte (tradução-correcção do tipo “calle de la Luna” ou “plaza de Puerta de Hierro”).

2. Seguir a intenção do escritor e regularizar as suas escolhas no texto-alvo: o primeiro


termo é traduzido ao passo que o segundo termo se mantém como no texto de partida.

Escolhi esta última opção e o resultado para os exemplos mencionados acima foi o

154
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

seguinte: “Rua da Luna”, “Rua do Desengaño”60, “Rua de Peligros”, “Rua das Infantas”, “Rua
do Arenal”, “Rua do Calvario”, “Rua San Bernardo”, “Rua da Estrella”, “Rua Ancha”, “Rua
de Alcalá”, “Rua do Prado”, “Praça de Oriente”, “Praça da Armería”, “Praça de Puerta de
Hierro”.

O primeiro elemento do topónimo leva maiúscula, seguindo o costume mais habitual


do português europeu. O segundo elemento é levemente diferente para um leitor de língua
portuguesa. A acentuação divergente entre castelhano e português poderia levar a pensar que
existe um pequeno erro em certos topónimos (“Rua do Calvario”, “Praça da Armería”). No
entanto, esta mesma estranheza pode produzir-se com os nomes próprios de personagens
como “María”.

Por meio deste proceder, mantemos no essencial o que deduzimos ser a vontade do
autor, o texto ganha fluência com menos elementos exógenos ao português do que numa
tradução que voltasse às designações completas em castelhano e mantêm-se os elementos de
base toponímica que identificam os locais originais com modificações mínimas, caso se
queira indagar mais sobre este aspecto. Justifica-se também esta escolha com a necessidade de
manter viva na consciência do público leitor a procedência cultural do texto.

3.3.4. Uso do artigo definido com antropónimos e topónimos

O autor vacila enormemente, e de forma geral, no uso do artigo definido com


antropónimos e topónimos. Não se observa qualquer tipo de lógica, intenção ou regra, seja
proveniente das normas e usos do galego seja por uma vontade do autor. A impressão global é
a de uma total assistematicidade. As diferenças com as regras e usos da língua portuguesa são
inconciliáveis, sendo o contexto, o nível de formalidade ou a língua literária os elementos que
podem auxiliar o tradutor na tomada de decisões.

O nome do protagonista do romance é utilizado maioritariamente sem artigo definido


(Adrián), mas aparece em diversas ocasiões como o Adrián (p. 20, 27, 60, 91, 120). O mesmo
acontece com Xacobe, usado com artigo em bastantes ocasiões (p. 57, 58, 60, 61, 63, 87, 88,
89) e com Florinda, também com artigo nas páginas 124, 128, 132, 133. Numa ocasião, ainda
mais desconcertante, à página 132, pode ler-se “a Frolinda e Adrián” (sublinhado nosso) e

60 Traduzo rúa do Desengano por “Rua do Desengaño”.

155
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

quatro linhas mais à frente “dicía Frolinda”.

Com os topónimos, o caso mais significativo é o de Galiza, que ora leva artigo ora não
o leva, como já indicámos na secção 1.3.3.3. Esta vacilação não se verifica em português, uma
vez que “Galiza” sempre é precedida do artigo definido feminino. Otero antepõe artigos de
forma inaudita em galego: a Cantabria (p. 85), a Castela (p. 98, 103), a Navarra (p. 115), a
Vizcaya, o Carral (p. 138). Noutros casos, vacila sem explicação: España (p. 13, 14, 117) / a
España (p. 105, 106, 107, 117); Europa (p. 116) / a Europa (p. 116); Asia (p. 127) / a Asia (p.
130).

Visto que não observámos nenhuma intenção clara com a presença ou ausência do
artigo definido, a minha decisão como tradutor foi respeitar os usos em língua portuguesa.
Quanto aos antropónimos, não foi usado artigo nos contextos em que está presente a voz do
narrador. Nos poucos contextos dialogados do romance ou nos de reflexão interior, o artigo
definido com nome foi usado em uma única ocasião na tradução (o Adrián no original, p. 66).
Quanto aos topónimos, foi seguida a tradição do português europeu.

3.3.5. Formas de tratamento

Don em galego é uma forma de tratamento respeitosa que precede os nomes próprios
de homem, abreviado como D. em diversas ocasiões no romance de Arredor de si. Esta forma
foi traduzida de diversas maneiras, consoante o contexto: “o padre” (D. Bernaldo [p. 33] , “o
padre Bernaldo”), “o senhor” (don Santiago Rusiñol [p. 16], “o senhor Santiago Rusiñol”), “o
professor” (Don Platón [p. 23], “o professor Platón”) e “o doutor” (don Víctor Balaguer [p.
54], “o doutor Víctor Balaguer”). Passei de uma forma genérica para outras com maior
especificidade, o que exigiu ter algum conhecimento acerca das personagens ou pessoas em
questão.

A correspondente forma de tratamento respeitosa para os nomes próprios de mulher


que Otero Pedrayo utiliza é doña (p. 34, 66, 67, 90, 91, 116, 118). Trata-se de um
castelhanismo evidente que o autor aceita na sua escrita. Também se verifica o uso de dona,
mas como substantivo comum sinónimo de “mulher, esposa” (cf. secção 3.5.3, Falsos amigos
de uso). A forma de tratamento doña foi traduzido sempre por “senhora”, visto que é um falso
amigo a respeito do uso actual de “dona” na língua portuguesa, este último generalizado e

156
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

sentido como muito mais próximo ou até afectuoso, do ponto de vista sociolinguístico, do que
“senhora”.

Apenas em um único contexto foi pertinente traduzir don por “dom” e doña por
“dona”: à página 115 são mencionados o Señor Don Calros (“senhor Dom Carlos”) e a Doña
Margarida (“Dona Margarida”), aspirantes ao trono dos reis de Espanha.

Também foi usada em duas ocasiões a forma Misia, contração de miña señora, seguida
de nome próprio de mulher: Misia Elisa (p. 114, duas vezes). Na tradução optei por “Senhora
Dona”61, dado que o texto se refere a ela como uma pessoa célebre do passado, com toda a
probabilidade do século XIX.

As formas señorito e señorita aparecem bastantes vezes. São as formas de tratamento


empregadas normalmente por trabalhadores e trabalhadoras em posição social inferior para se
dirigirem ou se referirem aos filhos jovens de uma família abastada ou da alta sociedade62. Em
Arredor de si há uma família fidalga do primeiro terço do século XX composta de avó, nora
(María) e netos (Adrián e Xacobe). Estes dois são jovens: Adrián tem entre 25 e 35 anos 63
enquanto que Xacobe é mais novo, tem 17 anos, como se indica na página 57 do romance.
Eles são os señoritos desta família fidalga. Podería ter recorrido na tradução ao equivalente
menino, mas achei que poderia levar a uma leitura infantilizadora enquanto que o contexto é
claramente o de dois jovens. Com señorita há mais dificuldades ainda: a nora, María, é
considerada a señorita enquanto que a avó é a señora: “A ela, a áboa, chamanlle a señora e a
doña María a señorita” (p. 20, negritos do original). No último capítulo narra-se a morte da
avó e o narrador informa-nos: “D'entón a nai d'Adrián foi na casa chamada a Señora.
Dinantes era a señorita” (p. 147). Portanto, este contexto narrativo é fundamental e leva-nos
a concluir que uma señorita (María) é mãe de dois señoritos (Adrián e Xacobe), o que não
deixa de ser surpreendente. Optar pela tradução “menina” para señorita (María) poderia levar
a confusões. Na página 80 temos outro contexto de difícil tradução: “falar d'amores con
61 Na mesma página 114 aparece também “Doña Elisa” que traduzo por “Senhora Dona Elisa”, por coerência
com as duas menções anteriores.
62 Este uso está praticamente extinto devido às mudanças sociais, tendo adquirido señorito/señorita o sentido

pejorativo de “pessoa que gosta de viver sem trabalhar ou que não gosta de realizar certo tipo de trabalhos”.
63 O narrador informa-nos da opinião que Xacobe tem de seu irmão: “Sería un profesor en calquer provincia,

pra ganar catro mil pesetas despois dos trinta e cinco anos.” (p. 63). Sabemos também que Adrián está em
Madrid para preparar um concurso público (“co gallo d'unhas cátedras”, p. 12) depois de ter finalizado os
seus estudos universitários (“Levado pol'a fermosura do tidoo Filosofía e Letras seguiú ista Faculdade”, p.
75). Já não é bem um 'menino' pois no início da sua viagem pela Europa o narrador diz-nos que o vento
brinca com as suas “primeiras cañas das tempas cavilosas” (p. 101).

157
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

mozas do pobo e con señoritas de boa caste”. As mozas do pobo são “raparigas de aldeia”.
Mas, e as señoritas? Serão “meninas de boa casta”? Qual o sentido que o leitor poderia
interpretar em “meninas” aqui? Na realidade, todo o problema reside nas diferenças sociais e
culturais entre o tempo em que foi escrito o romance e o tempo de recepção do mesmo.

Noutros contextos señorita (termo que é usado nove vezes no romance) parece ser um
perfeito marcador de classe social que “menina” em português não transmite. Podemos dizer
que señorita e señorito cumprem uma função como forma de tratamento e outra como título
dignitário para uma classe social. Talvez em textos dialógicos não ambíguos fosse prático
traduzir señorito/a por “menino/a”. Mas no romance señorito e señorita aparecem sempre
como uma referência dada pelo narrador, o que nos levou a optar por deixar este termos na
sua forma original e a acrescentar uma breve nota de rodapé na primeira aparição de cada uma
delas.

3.4. Fraseologia e locuções fraseológicas

Utilizo o termo 'fraseologia' em sentido lato para me referir a todas as construções com
um certo grau de fixação numa determinada língua. Otero Pedrayo não utiliza provérbios em
Arredor de si, mas não são poucas as locuções fraseológicas breves a que recorre. A tradução
destas unidades foi uma questão de árdua solução por vezes.

Tentei utilizar expressões fraseológicas em português com a mesma frequência com


que o fez o autor, mas nem sempre foi possível. Noutros casos foi na tradução onde surgiu a
necessidade de incorporar algumas locuções, como aconteceu com os seguintes exemplos
com “para baixo” e “abaixo”:

TF: descolgar (mapa grande) [p. 91]


TA: tirar para baixo

TF: tirarse (do leito) [p. 90]


TA: atirar-se do leito abaixo

Excluí da lista que apresento a seguir as locuções fraseológicas que são comuns a
galego e português, como ás apalpadelas ou de corpo presente.

158
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
a bravo (terra, eidos, xardín) [p. 104, 114, a monte
147]
a chorro (beber o viño) [p. 84] de jorro em jorro
a furto [p. 20] à socapa
a medias, as medias [p. 26] mais ou menos, em parte
a modiño [p. 34] devagarinho
â redonda [p. 114] à volta
a zorro [p. 15] de rastos
aberto en canal (porco) [p. 71] aberto de alto a baixo
ben mirado [p. 125] vendo bem
botar pel nova [p. 150] ganhar pele nova
botar unha ollada [p. 57, 89] deitar uma olhadela, dar uma olhadela
botar na cara a [p. 133] atirar à cara de
botar a perder [p. 26] deitar a perder
casa de banca [p. 148] casa bancária
chorar a rego [p. 44] chorar a fio
como si tal cousa [p. 37] como se nada acontecesse
con bó pé [p. 117] com o pé direito
“Cousa de dous días” [p. 147] “Seria questão de dois dias”
d'acabalo [p. 37] a cavalo
d'apaseio [p. 129] a passear
d'esguello [p. 117] de soslaio
dar guardia a [p. 147] montar guarda a
dar voltas a: “Non lle dés voltas” [p. 85] “Não dês voltas à cabeça”
de fixo [p. 8, 13, 21, 29, 84, 94, 133, 147, com certeza, de certeza
148]
de igoal a igual [p. 152] de igual para igual
de merenda (“irían de merenda”) [p. 89] ir merendar
de neno [p. 144] em miúdo
de vello (“virtuosidade de vello”) [p. 83] antiga
descargas pechadas [p. 38] cargas cerradas
e logo (“E logo donde sacoú [...]?) [p. 73] ora (“Ora donde é que tirou [...]?)
en renda (terras en renda) arrendado

159
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
en troques [p. 8, 34, 49, 58, 66, 81, 83, 94, por outro lado, no entanto, pelo contrário
104, 105, 116]
en troques de [p. 96] em vez de
en valeiro [p. 141] debalde
facer mentes de [p. 28] tomar a decisão de
facer oposiciós [p. 14] prestar concurso
formar parte de [p. 132-133] fazer parte de
“Haberá que velo” [p. 52]64 “Bom seria vê-lo”
libriño de notas [p. 93] caderno de notas
mais alá [p. 96] mais além
mais ben [p. 109] antes
na mesa [p. 141] à mesa
na noite [p. 91] de noite
ni un istante [p. 84] nem por um instante
no seu troque [p. 39] no seu lugar
ô dia (actualizado) [p. 47] em dia
patente de corso [p. 133] carta de corso
podia que [p. 82], pódia que [p. 121, 122] se calhar
polo depronto [p. 8], pol'o pronto [p. 11, 120, para já, por enquanto
142], pol'o de pronto [p. 148]
pol'o d'agora [p. 33] por enquanto
pol'o momento [p. 100] por enquanto
por certo [p. 11] por falar nisso
pór medo (“puxo medo na señora”) [p. 65] “meteu medo à senhora”
pór ô descoberto (“pôn ô descoberto”) [p. “põe a descoberto”
103]
pôrse a tono [p. 50, 54] não destoar, estar à altura das circunstâncias
pórse pesado (“non te me poñas pesado”) [p. “não me chateies”
122]
prantear un problema [p. 27] colocar um problema
“¿Qué cousa enorme [...] enche a noite?” [p. “Qual é a coisa enorme [...] que enche a
140] noite?”
“que en groria esteña” [p. 133] “que Deus o tenha na sua glória”
“¡Qué mais da!” [p. 30] “Tanto faz!”
64 Trata-se de uma estrutura enfática.

160
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
sair ô paso [p. 48] sair ao encontro
sin pegar ollo [p. 61] sem pregar olho
teatro â moda [p. 55] teatro da moda
“¡Tempos aquiles!” [p. 115] “Bons tempos aqueles!”
terra de pan levar [p. 80] terra de bom cereal
tirar (ir tirando) [p. 94] aguentar (ir-se aguentando)
vir a tiro feito [p. 14] não ser tiro e queda
“vindo de paseo” [p. 85] “enquanto passeavam”
voltar en sí [p. 48] vir a si
voltar sobre do tema [p. 100] retomar o tema
“Xa vés” [p. 130] “Ora pois”
“Xente bien” [p. 9] “Gente fina”
xogar o balón [p. 57] jogar à bola

Certas locuções usadas no original foram galeguizadas pelo autor a partir do


castelhano, algumas das quais bastante evidentes (como si tal cousa, prantear un problema,
por exemplo). Isto exige ao tradutor saber reconhecer unidades fraseológicas do castelhano
transformadas no galego ou até levemente modificadas (ga. descargas pechadas, cast.
descargas cerradas, expressão de âmbito militar que denota a descarga de várias armas de
fogo ao mesmo tempo).

Com en troques e polo depronto, a tradução resultou mais variada, oferecendo diversas
formas equivalentes consoante o caso. Com facer oposiciós recorri a um verbo mais
específico, “prestar concurso”, tornando-se numa locução mais idiomática. No caso seguinte,
lancei mão de dois elementos: o pronome interrogativo “qual”, mais específico do que o
pronome que e a estrutura interrogativa enfática “é [...] que”, ficando mais explícito que é
feita uma pergunta.

¿Qué cousa enorme [...] enche a noite? [p. Qual é a coisa enorme [...] que enche a noite?
140]

No entanto, o mais frequente foi uma certa anulação de valor fraseológico: como si tal
cousa (“como se nada acontecesse”), d'apaseio (“a passear”), ir de merenda (“ir merendar”),
de vello (“antiga”), en renda (“arrendado”), pórse pesado (“chatear”), terra de pan levar

161
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

(“terra de bom cereal”) e vindo de paseo (“enquanto passeavam”).

As expressões ir de paseo, ir de merenda e vir de paseo não existem em português,


sendo similares a outras do género, como ir de festa, ir de compras, ir de museos, que seguem
a estrutura ir de + substantivo. A tradução deste tipo de locuções costuma ser em português
mais literal (“ir pasear”, “ir merendar”, “ir para a festa”, “ir às compras”, “ir visitar museus”).

Por último, mantive na tradução a expressão fraseológica “España de pandeireta” (p.


16). Pandeireta foi galeguizada pelo autor a partir do castelhano pandereta. Esta expressão,
que se tornou fraseológica, tem origem no verso “España de charanga y pandereta” de
Antonio Machado. “De pandereta” é uma expressão que continua sendo utilizada na
actualidade em castelhano. Para além do seu sentido, tem um valor literário, pictórico e
cultural que julguei interessante manter por meio de uma nota de rodapé. Machado também é
mencionado de forma explícita em outro ponto de Arredor de si (p. 80).

3.5. Falsos amigos

Tratamos os falsos amigos apenas do ponto de vista do tradutor, que deve produzir um
texto para um público destinatário. Portanto, falaremos das dificuldades que foram
encontradas ao traduzir e que potencialmente podem ser de interesse para qualquer outro
tradutor ou tradutora. Por lógica, limitamo-nos aos homógrafos, dado que nos baseamos
apenas em textos escritos.

Apresento os falsos amigos em duas colunas: na primeira figuram os termos em


galego, na segunda em português. Reuni os falsos amigos em cinco grupos: falsos amigos
comuns, falsos amigos oterianos, falsos amigos de uso, casos especiais e falsos amigos
gramaticais.

3.5.1. Falsos amigos comuns

Neste grupo estão aqueles termos que foram facilmente reconhecíveis, sendo
esperáveis pelo tradutor com conhecimentos de galego. Se o contexto não põe entraves às
operações de tradução, as soluções costumam ser fáceis de adoptar.

162
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
aceiro [p. 100] aço
acodir (“apresentar-se”) [p. 88] aparecer
aficionado [p. 50] com gosto por
apenas [p. 28, 114, 122, 127, 138] mal, quase não
aperta (subs.) [p. 138] abraço
balcón [p. 100, 127] varanda
bicar [p. 63], bico [p. 90] beijar, beijo
bodega [p. 89, 11165] adega
bulrarse de [p. 44] troçar de
caixón [p. 100] gaveta
carreira [p. 63, 65] curso
carreira [p. 103] corrida
castelán (adj., que habita em Castela) [p. 85] castelhano
cativa [149] (adj.) pequena
cavilar [p. 53, 58, 74, 82, 93, 101, 104, 109, pensar, reflectir
124, 130]
cavilación [p. 124, 148] reflexão
coller (alcançar) [p. 139] apanhar
colo [p. 24] colarinho
comer (realizar refeição a meio do dia) [p. almoçar
133, 137]
comida [p. 148] almoço
costa [p. 127] encosta
curioso (limpo e ordenado [um espaço]) [p. arrumado
138]
deseguida logo; depois
despachar [p. 9] vender
despacho [p. 100] gabinete
doada (adj.) [p. 118] fácil
enxoitar [p. 92, 128] secar
estancia [p. 91] aposento
estar (+ topónimo) [p. 54] ficar (estar situado)
estufa [p. 130] lareira

65 Nestecaso, bodega foi mantido, acrescentando a necessária nota de rodapé, por se tratar de um rótulo que o
protagonista lê enquanto passeia por uma rua de Paris.

163
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
faro [p. 118] farol
febre (adj.) [p. 92] débil
feito [p. 89, 124, 138] facto
feitura [p. 133] forma
ficar (haver ainda) [p. 125] restar
folión [p. 96] folia
fraco [p. 37, 91] magro
ilusión66 [p. 64, 79, 138] esperança, sonho
logo (adv.) depois
mais ben [p. 109] antes
mancar [p. 15] magoar
marchar [p. 127] partir, ir-se embora
marco [p. 108, 149, 150] moldura
monte [p. 67, 89] mata (terreno com árvores silvestres)
mostrador [p. 16] balcão
nao [p. 97] nau
nota [p. 80] factura
patrón de pesca [p. 43] mestre de pesca
pillar (ser contagiado por) [p. 13] apanhar
pipa [p. 135] cachimbo
piso [p. 139] apartamento
porto (ponto baixo entre dois picos que passo
permite passagem) [p. 84]
preto (adv.) [p. 82] perto
procurar [p. 118] tentar
raro [p. 24] esquisito
rasurado [p. 115] barbeado
revolta [p. 21, 27] curva
taller [p. 45] oficina
tenda (pequena mercearia) [p. 138] venda
trunfar [p. 85] triunfar
vaso [p. 151] copo

66 Usada também na página 150 com o sentido de “engano, miragem, quimera”.

164
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
verba67 [p. 85, 101, 122, 124, 133] palavra
xantar [p. 11, 14, 15, 25, 34, 37, 45, 67, 70, almoçar, almoço
73, 122]
xente (em a xente) [p. 88, 114] as pessoas

Com os falsos amigos logo e deseguida, o contexto é fundamental para interpretar o


sentido. Este advérbios apareceram em muitas ocasiões ao longo de todo o romance.
Deseguida teve por vezes um sentido de imediatez que em português se traduz por “logo”.

Alguns pares de falsos amigos não se estabelecem entre galego e português mas entre
castelhano e português. São casos de evidentes castelhanismos que Otero Pedrayo incluiu na
sua escrita:

Texto-fonte Texto-alvo
pobo [p. 52, 92, 94, 97, 142] aldeia
roxo [p. 15, 16, 48, 86, 88, 95] vermelho
vila68 (povoação de grande tamanho) [p. 105. cidade
107]

3.5.2. Falsos amigos oterianos em Arredor de si

Os falsos amigos oterianos têm relação com as escolhas lexicais realizadas pelo autor,
motivados pela evitação do castelhano em muitos casos.

campía [p. 36, 52, 57, 96, 103, 143] campo


campías da Francia [p. 17] campinas de França

Campía parece ser um termo diferencialista: evita-se usar campo e campiña, que
coincidiriam com o castelhano. O termo campía é utilizado repetidamente e nem sempre com
o valor de “grande extensão de terreno desprovida de árvores”. Numa ocasião foi traduzido
por “campina” visto que o contexto oferecia esse sentido.

67 Otero Pedrayo também utiliza ocasionalmente o substantivo palabra.


68 Possível influência do castelhano villa ou do francês ville.

165
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

cangado
cangado (padre idoso) [p. 35] curvado
cangado (idoso) [p. 37] dobrado
cangado (idoso) [p. 42] dobrado
cangado (padre idoso) [p. 62] curvado
cangada (mulher) [p. 114] dobrada
cangados (homens) [p. 132] vergados
cangada (rês) [p. 59] cangada

Otero usa bastantes vezes cangado (literalmente “carregado com canga”) com um
sentido figurado. As soluções de tradução adoptadas foram diversas, consoante o contexto,
recorrendo também à sinonímia. No último caso indicado acima, o adjectivo é aplicado ao
substantivo rés (“rês”), embora toda a expressão seja usada metaforicamente para se referir a
uma pessoa.

deixado69
deixadas (casas grandes) [p. 26] abandonadas
deixado (muiño) [p. 87] abandonado
deixados (parques reales) [p. 110] abandonados
deixado (pazo) [p. 116] desmazelado70
deixado (pazo) [p. 143] abandonado

Deixado tem sempre o sentido de “abandonado”, que Otero costuma relacionar com
uma construção ou um espaço como uma casa, um moinho, um parque ou um paço.

ditoso [p. 15, 35, 46, 61, 66, 111, 117, 135, feliz
137, 152]

Otero utiliza de forma muito constante ditoso em todo o romance. Registei felices
apenas na página 86.

empardecer71
empardeceres [p. 13] crepúsculos
empardecer [p. 31] entardecer
empardecer (tristeiro) [p. 41] entardecer
un empardercer (valor circunstancial) [p. uma tarde
148]

69 Otero recorre também a abandoar-abandoado (sic).


70 Neste caso utilizo um sinónimo devido a que, poucas linhas mais à frente, o texto fala de umas “residenzas
reás abandoadas”.
71 Outros termos de significado próximo usados por Otero Pedrayo são serán, com género feminino, e o

adjectivo tardeiro.

166
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

figurar [p. 37, 51, 57, 72, 85, 87, 93, 104, parecer
105, 115, 122]
figuranza [p. 110] similitude

franquear72 [p. 20, 39, 43, 60, 72, 96, 106, abrir
117]

A substantivação do verbo empardecer e os verbos figurar e franquear, muito


repetidos, permitem a Otero evitar palavras do castelhano (atardecer, parecer, abrir),
seguindo a sua estratégia diferencialista. Na tradução, utilizamos os termos mais correntes em
português.

gostar (um coquetel) [p. 23] degustar

O verbo gostar com sentido de “degustar” é utilizado em uma única ocasião.

infindo
sucos infindos [p. 7] sulcos infinitos
infinda riqueza [p. 8] infinita riqueza
infinda piedade [p. 38] infinda piedade
infindas e dubidosas arelas [p. 75] infinitas e duvidosas ânsias
infindos e sagretos praceres [p. 76] infindos e secretos prazeres
infindas equivocaciós [p. 100] infinitos enganos
infindos perigos [p. 143] infinitos perigos

O adjectivo infindo é mantido de forma constante por Otero Pedrayo. O que se nota
novamente é mais um uso diferencial do autor. Em português, existem “infindo” (menos
frequente) e “infinito” (mais frequente e pertencente à língua comum). Alguns contextos
possibilitaram que na tradução se usasse “infindo”.

invernía73 (subs.) [p. 40, 132, 150], Inverno


invernizo [p. 51, 99] invernal

A designação da estação mais fria como inverno é usada abundantemente em Arredor


de si. Junto com esta, o autor recorre ocasionalmente a invernía e ao adjectivo invernizo.

72 Também é usado abrir na página 58.


73 Também é usado inverno às paginas 33, 34, 35, 36, 37, 42, 51 e 70.

167
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

inzar
inzar ô misticismo [p. 13] espalhar
inzaríase de rayolas [p. 15] encher-se-ia de raios de sol
inzar (scherzos, risadas, fugas, tonos) [p. 27] elevar
inzado (bacelos) p. 60] povoado
se inzou na terra mudéxar (religião) [p. 85] se propagou pela terra mudéjar
inzar d'eucaliptus [p. 89] encher de eucaliptos
izábanse74 (de livros) p. 116] amontoavam-se
inzaríase d'herbas bravas [p. 147] inçar-se-ia de ervas bravas

Tanto o galego inzar como o português inçar têm um sentido negativo relativo a
animais ou plantas que se propagam e enchem um espaço. Otero retira a carga semântica
negativa deste verbo, ficando apenas com a de “aumentar em número, propagar-se”. De forma
muito singular, utiliza inzar até para assinalar o aumento do volume de voz de um pássaro na
página 27.

labio75
labio da xiñebra [p. 25] travo
labio fresqueiro e garimoso do outono [p. 61] sabor

mácio76 [p. 40, 42, 44, 65] pálido

Labio (“sabor”) e mácio não são palavras correntes no galego actual. A acentuação
ortográfica do segundo termo poderá ter ocorrido por influência do português.

noxo77
noxentas (falas) [p. 9] nojentas
noxo (carne e tomate) [p. 10] nojo
noxento (ref. sexual) [p. 28] asqueroso
noxento (ref. sexual) [p. 30] nojento
noxo (sentido figurado) [p. 38] nojo
noxo (olhares, mãos sujas, hálitos) [p. 41] asco
noxo (ideias) [p. 44] repugnância
noxo (sotaque) [p. 55] repugnância
noxento (pretexto) [p. 59] asqueroso
noxo (sentido figurado) [p. 74] repulsão
noxo (vida moderna) [p. 82] asco
noxenta (noite) [p. 93] nojenta

74 Provável gralha por inzábanse.


75 Otero também usa sabor na página 137.
76 Acentuado no original.
77 Otero recorre à ideia de náusea ou repulsão também por meio do adjectivo fedefondo (p. 15), decalque do

cast. hediondo.

168
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

noxento (pobo) [p. 107] nojenta [aldeia]


noxenta (relação amorosa) [p. 117] asquerosa
noxenta (pândega) [p. 144] abjecta
noxo (gardar noxo a alguén) [p. 148] desprezo

Noxo e noxento são termos muito repetidos em Arredor de si sem que tenhamos
encontrado uma justificação clara para isto. No romance encontram-se muitas referências
sensoriais e talvez noxo fosse usado também de forma diferencial a respeito do castelhano
asco. Noxo apresenta o sentido de “impressão desagradável” tanto no sentido material quanto
no psicológico e abstracto. Na tradução julguei mais conveniente diversificar as formas
utilizadas por meio dos diversos sinónimos de que dispõe o português a fim de não criar uma
sensação de repetição injustificada e devido a que em vários contextos “nojo” não é a
expressão mais correntemente utilizada em português.

testa78 cabeça
testa [p. 11]79 cabeça
testa deitada nas maus [p. 38] cabeça entre as mãos
probe testa mácia [p. 44] pobre cabeça pálida
testa de frade [p. 52] cabeça de frade
testa de enano [p. 61] crânio de anão80
testas apostólecas [p. 62] cabeças apostólicas
testa xa griseira [p. 63] cabeça já grisalha
testa pr'arregrar o pano [p. 88] cabeça para compor o lenço
testa núa [p. 90] cabeça nua
testa murcha da irmán [p. 91] cabeça murcha da irmã
testa do sobriño [p. 91] cabeça do sobrinho
testa núa [p. 93] cabeça nua
testa [p. 96] cabeça
testa [p. 97] cabeça
testa románteca [p. 105] cabeça romântica
testa alongada [p. 110] cabeça alongada
testa de gato [p. 113] cabeça de gato
testa valeira [p. 122] cabeça vazia

Testa em Otero Pedrayo tem sempre como referência toda a cabeça, seja no sentido
físico ou no figurado, e mesmo quando lhe é aplicado um adjectivo incomum como

78 Testa denota sempre “extremidade superior da corpo humano” e outros sentidos derivados deste. Otero
parece utilizá-la para evitar cabeza, forma coincidente com a castelhana, o que não consegue fazer de forma
constante pois esta é utilizada às páginas 11, 13, 48, 61, 142 e 149.
79 Em linhas consecutivas, o autor utiliza cabeza e testa, criando uma dificuldade na tradução dificilmente

ultrapassável neste contexto, tendo que recorrer à repetição de “cabeça”.


80 No contexto diz-se: “en figura de cabeza, de testa de enano”. Para evitar a repetição, utilizamos “crânio” na

tradução de testa.

169
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

apostólecas ou románteca. Em duas ocasiões, às páginas 11 e 61, testa e cabeza são usadas
muito próximas uma da outra, sem que tivéssemos conseguido observar diferenças
semânticas.

3.5.3. Falsos amigos de uso

O que aqui designo como falsos amigos de uso não tem relação com o significado
básico dos termos, o qual é partilhado por galego e português. O que diferencia este tipo de
falsos amigos são leves matizes semânticos ou a frequência de uso do termo em questão. A
partilha de sentido genérico pode levar o tradutor a obviar pequenas (ou até grandes) nuances.
Enganado pelas formas e sentidos similares em galego e português, o tradutor pode ocasionar
leituras levemente diferentes e sensações de estranheza. Tentar evitá-las sem domesticar
excessivamente o texto-alvo é uma das maiores dificuldades numa tradução literária galego-
português.

Reconhecer qual é a frequência de uso destas palavras em galego e em português


(europeu, neste caso) não é fácil. Existem pares que defino como falsos amigos de frequência
inversa, isto é, o termo habitual numa língua não o é na outra e vice-versa. São casos como
ga. voda-casamento / pt. “casamento”-“boda” ou ga. bailar-danzar / pt. “dançar”-“bailar”.
Noutros casos, é apenas a forma escrita a que apresenta maior ou menor frequência numa
língua ou na outra, sem repercussões semânticas, como em ga. angusteoso / pt. “angustiante”
ou ga. viaxeiro / pt. “viaxante”.

A tradução do ga. sinxelo pelo pt. “singelo” teria produzido uma estranha sensação,
visto que é muito mais frequente “simples”. Já com o ga. protesta, a manutenção do género
feminino levaria a uma sensação de incorrecção linguística, mesmo que o sentido fosse
transmitido.

aixiña [p. 17, 131] depressa

Existe em português o advérbio “asinha”, de uso muito raro e arcaico.

anaco [p. 12, 19, 26, 33, 34, 48, 52] pedaço

“Naco” em português é frequentemente associado a um pedaço de alimento, por

170
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

exemplo, de pão, carne, bacalhau, atum, vitela, novilho ou chouriço.

angusteoso [p. 140] angustiante

O par anterior difere apenas na frequência de uso em galego e português.

apalpar
sadisfaceón de s'apalpar no curazón de palpar
España [p. 26]
pra que palpase o corpo [de uma galinha, p. palpasse
61]
âs palpadelas [p. 67] às apalpadelas
palpábase cósmicamente animal [p. 111] sentia-se
Adrián apalpouse un valor de trunfo [p. 120] sentiu ser
Agora apalpa a grande Xermania muscular palpa
[p. 125]

Otero utiliza palpar e apalpar indistintamente. Em português, “apalpar” pode ter uma
conotação sexual, como em “às apalpadelas”.

beilada, beilado, bailado, baile


beiladas de vésporas [p. 36] dança de vespas
bailado dos cirios [p. 41] dança dos círios
beilado do corazón no peito [p. 44] dança do coração no peito
beilado do lume [p. 96] dança do fogo
bailes negros [p. 124] danças negras
beilar (bailar)
Paris bailaba [p. 117] dançava
a onda está sempre disposta a beilar [p. 135] dançar

Otero também usa danza, embora com menor frequência em Arredor de si:

Danza da Vida [p. 17] Dança


Danza da Morte [p. 17] Dança
Danza [p. 17] Dança
unha lonxana mocidade [...] danzáballe [...] lhe bailava
ao redor do leito [p. 61]

Os pares ga. bailar-danzar e pt. “dançar”-“bailar” têm frequencias de uso inversas.


Com os substantivos baile, bailado e danza, os contextos são fundamentais para poder
traduzir correctamente.

balneario [p. 103] termas

171
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Em português “balneário” tem predominantemente o sentido de “vestiário”.

beizos [p. 37] lábios

O pt. “beiço” é visto como forma popular com sentido pejorativo para se referir a um
lábio grosso ou feio.

casa: “da casa” (do lar próprio) [p. 33, 42, de casa
45, 94, 138, 149]

Podem produzir-se compreensões erradas se o tradutor não atentar para o matiz de “lar
próprio” que se comunica por meio do artigo definido em galego.

casamento [p. 149] casamento

A palavra casamento surge apenas uma vez. Preferimos manter o termo mais habitual
em português, embora este não o seja em galego.

chamada (“acção de chamar”) [p. 80, 133, chamamento


149]

Otero Pedrayo utiliza também chamamento duas vezes na página 130 com o mesmo
sentido que chamada. Na tradução usamos apenas a forma “chamamento”.

debullar
debullar (livros) [p. 31] devorar
debullar (dinheiro) [p. 63] esbanjar
debullar (viandas) [p. 111] atacar
debullar (George Sand, escritor) [p. 116] devorar
debullar (dias) [p. 117] sorvidos

Debullar é usado em contextos diversos e inesperados. Dado que estamos a falar de


sentidos derivados e usos invulgares, tentei manter alguma leve originalidade na tradução com
as escolhas que realizei.

dona
[p. 9] senhora
[p. 116] esposa
[p. 117] senhora
[p. 132] mulher

172
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Dona não é uma forma de tratamento. Trata-se de um substantivo para designar


“mulher respeitável”. Note-se que Otero Pedrayo também utiliza muller com diversos
sentidos e conotações.

dormiñento [p. 140] adormecido


durmirse [p. 140] adormecer

Em português, o verbo “dormir” não apresenta reflexividade.

esguello: de esguello [p. 117] de soslaio

A literalidade “de esguelha” em português ter-nos-ia levado para um nível de língua


informal que não se adequaria ao contexto.

fermoso [p. 9, 21, 28, 37, 42, 54, 58, 76, 89, belo, bonito
98, 100, 114]
fermosura [p. 36, 59, 72, 75] beleza
fermoso [p. 23, 43, 111] formoso

Se ben que menos abundantes, Otero também utiliza bonito (p. 14, 71), belo (p. 122)
guapo (p. 26) e beleza (p. 10, 89, 111, 117, 144) em Arredor de si. Contrariamente ao par
anterior, a tradução literal de fermoso por “formoso” seria sentida, por vezes, como uma
elevação poética desnecessária que o autor não transmitia no original. No entanto, houve
alguns contextos mais sugestivos onde o uso de “formoso” foi pertinente.

frente [p. 21, 24, 35, 54, 57] testa


fronte [p. 119]

Frente é castelhanismo. O português “fronte” tem um uso mais restrito do que “testa”.

gostoso
[medo, p. 117] prazeroso
[fruto, p. 123] gostoso
gostosamente [p. 138] gostosamente
gostosidade (subs.) [p. 17] gosto

O adjectivo pt. gostoso poderia resultar inadequado em função dos contextos, visto
que transmite principalmente as ideias de “saboroso” ou, de um modo informal, “fisicamente

173
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

atraente”.

home [p. 20, 62, 65, 66, 113, 116] marido

“Home” em português transmitiria uma impressão de língua incorrecta ou descuidada,


imprópria do contexto literário, a não ser que existisse essa intenção, que não é o caso.

labrego (subs.)
labrego [p. 79] camponês
labrego [p. 85, 143] lavrador
labrego (adj.)
labregas [angueiras, p. 90] campestres
labrego [crego, p. 100] camponês
labregas [coores, p. 137] campestres
labregas [casas, p. 138] camponesas
labrego [camiño, p. 140] campestre
labrega [señora, p. 141] do campo

“Labrego” em português é um termo depreciativo para um trabalhador rural.

lediza81 [p. 34, 40, 42, 45, 75, 142] alegria


ledicia [p. 51] alegria
ledo [p. 31, 54, 61, 105, 123] alegre
ledamente [p. 65, 134] alegremente

Lediza, ledicia (cujo equivalente literal em português é “ledice”) e ledo serão


dificilmente compreensíveis para o leitor médio de língua portuguesa. Talvez apenas os muito
cultos possam compreender estes termos, associando-os à língua literária.

lixo [p. 83] lixo


lixo [p. 15] sujidade
lixar [p. 133] sujar
lixado (adj.) [p. 51, 59] sujo
lixadura [p. 99] sujidade
lixadura [p. 44] imundície

Somente em uma ocasião o galego lixo coincidiu no seu uso com o português. No caso
de lixado, os contextos originais diziam: “fica lixado de terra” (um diamante, p. 51) e “mans
disformes e lixadas” (p. 59). O verbo “lixar” e o seu adjectivo “lixado” em português têm um
uso informal sinónimo de “tramar, prejudicar” que os tornam improcedentes na tradução.

81 Otero também utiliza alegria (p. 91) e legria (p. 98).

174
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

medrar [p. 80, 96, 111, 116, 132, 151] crescer

“Medrar” é usado de forma menos generalizada em português.

namorado (subs.) [p. 132] apaixonado


namorado (adj.), ficar namorado de [p. 83, apaixonar-se por
98]
namorado de (adj.) [p. 118] apaixonado por

“Namorar” e “namorado” em português fazem pensar numa relação sentimental entre


duas pessoas. O arrebatamento amoroso ou gosto exacerbado por uma pessoa ou coisa
relacionam-se com o apaixonamento e daí “apaixonar-se por”, “ficar apaixonado por”.
Repare-se na preposição por que rege estas construções.

oco (subs.) [p. 140] vazio

piso (pavimento de uma sala) [p. 118] soalho


piso (unidade residencial de um prédio) [p. apartamento
139]

Na primeira acepção, o original fala de “botar un piso novo na sala do sul”. Embora
tivesse sido também correcto manter “piso” em português, por meio de “soalho” realizámos
uma explicitação e tornamos o contexto inequívoco.

posesión [p. 132] posse

No contexto original da posesión da dona elegante e mundana, lê-se claramente um


sentido de propriedade. Daí o uso de “posse” em português. “Possessão” em português
relaciona-se com territórios dominados ou com a condição de estar imbuído por um espírito.

primaveiral [p. 40, 45, 137] primaveril

Deixando de parte a ditongação de Otero, o par anterior difere apenas na frequência de


uso em galego e português.

protesta [p. 71, 98, 123] protesto

No par acima, a diferença reside no diferente género gramatical.

175
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

pulo [p. 14] ânimo


pulo [p. 60, 121] impulso
pular [p. 57] palpitar

O “pulo” português tem um sentido físico, é o “movimento de um salto”, enquanto que


o pulo galego denota o impulso que se toma antes desse salto ou, em sentido figurado, o
ânimo que se ganha antes de realizar um acção qualquer.

sendeiro [p. 135] trilho

Em português, o termo “sendeiro” para se designar um caminho campestre é menos


usado do que “trilho”, que se oferece para reforçar a idiomaticidade do texto-alvo.

sinxelo [p. 43, 49, 52, 65, 81, 111, 122, 152] simples
sinxelamente [p. 115] simplesmente

“Singelo” é de uso raro em português, tal e como simple é o termo menos frequente
em galego. Trata-se de um par de frequência de uso inversa, razão pela qual convém escolher
a forma mais idiomática para o texto-alvo.

sobrepasado [p. 132] ultrapassado

No contexto fala-se em cousas sobrepasadas, esquencidas, portanto, coisas que


ficaram para trás.

sombroso [p. 142] sombrio

Novamente, a diferença neste par é marcada pelos sufixos.

tolleito [p. 91, 141] entrevado

Embora “tolheito” exista em português, não é de uso tão frequente como “entrevado”.

verdecente [p. 41, 137] verdejante

O par anterior difere apenas na frequência de uso em galego e português.

viaxeiro [p. 9, 127] viajante

Com sufixos diferentes, a diferença reside na frequência de uso em cada língua mais

176
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

uma vez.

xeito [p. 79, 150] modo

No português europeu, “jeito” denota um modo particular de agir ou uma certa


habilidade na realização de determinadas tarefas.

xogar [p. 101] brincar


xogo (dos cisnes) [p. 130] brincadeira

Em português “jogar” e “jogo” estão associados a uma actividade lúdica com normas,
instruções e objectivos que há que conseguir numa competição, enquanto que “brincar” e
“brincadeira” ligam-se a diversão e entretenimento. No primeiro xogar (p. 101) o contexto
diz: E o vento da Europa xogáballe neno nas primeiras cañas das tempas cavilosas. Portanto,
é o vento que brinca com os cabelos brancos.

3.5.4. Casos especiais

baril
anacos bariles [p. 48] pedaços excelentes

TF: Pra eles os anos son sólidos, enteiros, comâ xamós n'os que curtan anacos bariles,
roxos e densos [...]
TA: Para eles os anos são sólidos, inteiros, como presuntos em que cortam pedaços
excelentes, vermelhos e densos

Em galego e português as ideias associadas a baril são positivas. Em galego e no


género masculino pode associar-se a “forte, robusto, varonil”, e no feminino a “bonita”.
Diferentemente, em português é uma palavra da língua informal e de todo inadequada neste
contexto.

auto, coche, automóvil / automóvel carro, automóvel, táxi / camioneta,


autocarro / coche

Estas palavras resultaram especialmente difíceis de traduzir. O seu significado nem


sempre fica claro, pois Otero Pedrayo não as usa de forma inequívoca. Esta aparente confusão
de usos provém, em minha opinião, do momento histórico e tecnológico: Arredor de si foi
escrito em 1929 tendo como provável referência os anos da década de 1920, quando os

177
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

veículos motorizados se introduziram massivamente na sociedade espanhola e europeia em


geral.

Eis as páginas onde são usadas no texto original:

auto, autos: páginas 12, 21, 45, 54, 60, 67, 79, 115, 138, 146.
coche, coches: páginas 10, 21, 26, 55, 60, 63, 69.
automóvil, automóviles, automóveis82: páginas 64, 69, 138.

Recorremos a cinco termos conhecidos na actualidade em português que serviram para


a nossa tradução: “coche” (carruagem de tracção animal antiga e rica), “carro” (veículo
motorizado particular), “autocarro” (veículo motorizado colectivo urbano), “camioneta”
(veículo motorizado colectivo interurbano), “carreira” (veículo motorizado colectivo que
realiza viagens periódicas, autocarro da carreira) e “táxi” (automóvel de aluguer para
transporte de passageiros). De acordo com o contexto, os termos galegos foram traduzidos
para português de uma forma ou de outra.

Alguns contextos especiais foram os seguintes:

TF: Algús días soaban na carretera trompas mañanceiras d'auto. O Xacobe xa listo e
bañado de yalba e d'auga fría do tanque despedíase c'un bico da nai e con outro da
aboa, e corría car'o coche que levaba o equipo algareiro. [p. 60]
TA: Alguns dias soavam na estrada buzinas matinais de autocarro. Xacobe, já pronto e
banhado de alvorada e de água fria do tanque, despedia-se com um beijo da mãe e com
outro da avó, e corria para a camioneta que levava a equipa alvoroçada.

Alude-se claramente a um veículo colectivo capaz de transportar pelo menos onze


pessoas juntas (uma equipa de futebol). Recorremos à sinonímia parcial de “autocarro” e
“camioneta” para evitar a repetição.

O seguinte contexto situa-se em Madrid e menciona-se explicitamente o tempo em que


os veículos de motor triunfam sobre os de tracção animal:

TF: Os dous señores galegos rubían d'a pé o paseo dos coches. Quizáis sentindo un pouco
de saudade diant'o trunfo dos automoveis. No seu tempo cando eles chegaron, un
longo rolar de coches enchía o parque. [p. 69]

82 O uso do sufixo de plural -eis parece devido a influência da língua portuguesa.

178
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TA: Os dois senhores galegos subiam a pé o passeio dos coches. Talvez sentindo um pouco
de saudade perante o triunfo dos automóveis. No seu tempo, quando eles chegaram, um
longo rolar de coches enchia o parque.

A seguir a estas linhas, a palavra coche (carruagem antiga) é utilizada outras cinco
vezes, aparecendo também designações específicas: berlinas, cupés, victorias.

No penúltimo capítulo do romance, Adrián regressa da sua viagem pela Europa e


chega por via marítima à Corunha:

TF: Ardía por abrazar a nai e non querendo agardar pol'o tren colleú un automóvil. [p.
138]
TA: Ansiava por abraçar a mãe e, não querendo aguardar pelo comboio, apanhou um táxi.

Logo depois deste trecho são narrados alguns pormenores da viagem nocturna que o
motorista e Adrián realizam no auto (p. 138), traduzido aqui por “carro”. A narração da
viagem deixa bem claro que não se trata de um veículo colectivo e que a viagem é realizada
de madrugada. Apontamos também que o termo taxi já foi utilizado antes nas páginas 10 e
110.

camiño
de camiño [p. 149] a caminho

A expressão idiomática a camiño, com o sentido de “em direcção a um lugar” deve ser
traduzida em português por “a caminho”.

gozo
cara de gozo [p. 48-49] cara de satisfação

A expressão cara de gozo poderá facilmente ser interpretada em português como “cara
de brincadeira, de quem está a brincar” em um nível informal de língua. No entanto, no
contexto do romance, trata-se de um catedrático e juiz que sente satisfação por fuxir da
provincia e quizáis da familia. Uma tradução literal produziria uma incoerência e, assim, uma
compreensão errada.

cativa vida [p. 82] tacanha vida

No romance fala-se da cativa vida moderna das cibdades castelás. O adjectivo galego

179
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

cativo transmite aqui o sentido de algo que é “mesquinho, limitado, estreito, de visão
limitada”.

coidar
Adrián sempre se coidaba na Europa [p. 152] Adrián julgava estar sempre na Europa

Em português “cuidar-se” também significa “ter-se por, considerar-se”, normalmente


acompanhada por um sintagma nominal ou um adjectivo qualificativo. Aqui aparece ao lado
de uma locução que exprime uma noção espacial. Por este motivo, achei melhor explicitar o
sentido da oração.

despachar
Xa estaba despachada. [p. 147] Já tinha a última bênção.

Despachar significa aqui “receber os últimos sacramentos antes da morte”, isto é,


“estar pronto para morrer”. Mesmo que não se dê nenhum sacramento católico em sentido
estrito, ao optar na tradução por “bênção” produz-se uma neutralização.

fato [p. 45, 119] grupo

Em galego fato é um conjunto de animais, pessoas ou coisas 83. Se bem o contexto da


página 119 é o de um falso amigo comum, na página 45 lemos: Pasaban pr'o taller pimpantes
fatos de costureiriñas, pelo que o termo fato se torna ainda mais falso devido ao seu
significado em português em relação com as costureiriñas.

furar no meu propio mistereo [p. 101] penetrar

Furar tem um uso demasiado corrente em português, sendo mais conveniente o


sentido figurado de “penetrar” neste contexto.

graza
facía moita graza ô Adrián [p. 84] tinha muita graça para Adrián

“Fazer graça” em português é agir para provocar o riso. O contexto diz: Había un
capelán mozárabe que lle facía moita graza ô Adrián. Resultaria no mínimo esquisito ler que

83 Encontra-sedicionarizado este sentido também em português, limitando-se a “rebanho de cabras” e “bando


ou quadrilha de malfeitores”.

180
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

um padre fazia palhaçadas ao protagonista.

morno estanque enlazado [p. 122] calmo lago congelado


lazos [p. 107, 129] gelos

Singular contexto é o que reproduzo a seguir:

TF: Chegaban frases enteiras nas que alternaban verbas duras, fortes, verbas en figura
sonora de bala, de zeppelin, de trabe de ferro, con outras, pouquiñas, cuaseque
mimosas, c'un mimo nordesio de abeto verdecido acarón do morno estanque enlazado.
[p. 122]
TA: Chegavam frases inteiras nas quais alternavam palavras duras, fortes, palavras em
figura sonora de bala, de zepelim, de trave de ferro, com outras, pouquinhas, quase
meigas, com um mimo nórdico de abeto verdejante ao lado do calmo lago congelado.

Os significados mais correntes em galego de morno e enlazado, comuns ao português,


não servem para interpretar correctamente o trecho. Optar por uma tradução literal,
considerando poética e imaginativa a descrição, pareceu-nos uma opção tentadora mas que
produziria uma incoerência ou até uma deformação do significado do texto-fonte. O ga. lazo
(“gelo”) também foi usado em outras duas ocasiões (p. 107 e 129).

nada
a velliña nada na aldea [p. 61] A velhinha, nascida na aldeia,
a yauga virxe apenas nada [p. 114] a água virgem, assim que nascia,

O uso de nada como adjectivo sinónimo de “nascida” é comum a galego e português.


A ausência de vírgulas, a idêntica forma gráfica com o pronome nada e, na página 114, a
coincidência com outro falso amigo (apenas) torna estas duas passagens de difícil
interpretação. Para além disto, o uso do adjectivo “nado/nada” em português é muito menos
habitual do que “nascido/nascida”.

Nadal
No Nadal [p. 146] Em Dezembro

Na página 76 e 86 são mencionados o mes de Sant-Iago (“mês de Julho”) e o San


Xohan (“mês de Junho”) respectivamente. Na página 147 lê-se No Xaneiro (“Em Janeiro”) e,
na anterior, Nadal não indica a celebração do dia 25 de Dezembro mas todo o último mês do
ano.

181
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

pousada d'estudantes [p. 139] residência de estudantes

Uma “pousada” em português é uma estalagem, hospedagem ou albergue. Os


estudantes alojam-se frequentemente em residências.

trabuco [p. 122] tributo

Galego e português partilham os significados de trabuco relativos a “antiga máquina


de guerra similar a uma catapulta” ou “tipo de arma de fogo” (bacamarte). No entanto, pagare
o trabuco a Paris deixa claro que se trata de um imposto.

3.5.5. Falsos amigos gramaticais

O chegar ô Anxel Caído sentáronse. [p. 69] Ao chegarem

A tradução resulta mais esclarecedora, enriquecedora e também idiomática recorrendo


ao infinitivo conjugado, que no contexto é possível utilizar.

onde sexa [p. 65] lá onde for


vivir o mellorciño que se poida [p. 149] puder

O recurso ao futuro do conjuntivo nestas orações é mais frequente em português do


que o presente do conjuntivo.

presidir presidir a
Presidían algús ocos escuros as panzas dos As panças dos pipotes presidiam a alguns
pipotes. [p. 140] espaços escuros.

A reordenação lógica da oração e a tradução com a correspondente regência


preposicional tornam mais claro o contexto.

Por último, em certas ocasiões traduzi o pretérito mais-que-perfeito simples do galego


(foran) pelo pretérito mais-que-perfeito composto do português (“tinham sido”) para obter
algum equilíbrio linguístico visto que este último tempo verbal é muito mais habitual no
português comum. Mesmo assim mantenho a forma simples em muitos contextos por se tratar
de uma forma compreensível e utilizada igualmente na literatura escrita em português. Em
outras ocasiões, o mais-que-perfeito galego foi traduzido pelo pretérito perfeito simples

182
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

português como em “Fora pol'o inverno” (p. 117, “Foi pelo Inverno”) ou “a primeira ves que
tiña entrado”84 (p. 46, “a primeira vez que entrou”).

3.6. Estrangeirismos

Devem diferenciar-se dois tipos de estrangeirismos em Arredor de si: o estrangeirismo


de uso consciente e deliberado e o estrangeirismo não consciente, isto, é a interferência de
outra língua sem que o autor se aperceba. Normalmente esta língua é o castelhano.

O estrangeirismo usado de forma deliberada funciona em Arredor de si como elevador


do estatuto social e literário da língua galega, visto que esta aparece a par de outras línguas
europeias de reconhecido prestígio.

Diferenciei dois grupos de estrangeirismos:


1. Palavras e expressões breves integradas no texto galego;
2. Breves textos ou passagens em línguas estrangeiras (versos de poemas, breves frases).

Vejamos quais são os estrangeirismos do primeiro grupo, palavras e expressões breves.


Mantenho as tipografias do original e da tradução proposta:

Texto-fonte Texto-alvo
«a contrapelo» [p. 111] «A contrapelo»
a rebours [p. 12] à rebours
«A rebours» [p. 111] À rebours
ad pedem litterae [p. 50] ad pedem litterae
bock [p. 123] bock
bouquet [p. 110] buquê
bouquet [p. 115] buquê
bouquets [p. 45] buquês
«Cité» [p. 106] Cité
coktail [p. 23, 25] coquetel
cocktail [p. 106] coquetel
cocktail (ideas cocktail) [p. 124] ideias-coquetel
course [p. 103] course
dancing (múseca de dancing) [p. 118] dancing
Dancings [p. 124] dancings
demimondaines [p. 122] demi-mondaines
84 Otero Pedrayo utiliza aqui a forma do pretérito mais-que-perfeito composto do castelhano.

183
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
demodé [p. 105] demodé
dilettantismo [p. 109] diletantismo
«Dining car» [p. 9] dining car
expréss [p. 120] express
express85 [p. 124] express
fatum (históreco) [p. 151] fatum
Grand Siécle [p. 103] Grand Siècle
Gulf-Stream [p. 130] gulf stream
hall [p. 79] hall
Herr Profesor [p. 122] Herr Professor
inlandsis [p. 129] inlandsis
«jungle» [p. 125] jungle
«le fière espagnol» [p. 118] «le fier espagnol»
magazines [p. 116] magasins
Nôtre-Dame [p. 118] Notre-Dame
overtura [p. 50] abertura
Palas [p. 124] palaces
parisien [p. 107] parisien
pas encore [p. 14] pas encore
pelouse [p. 16] pelouse
per accidens [p. 23] per accidens
Piazza (de Florenza) [p. 23] Piazza
pronunciamiento [p. 12] pronunciamiento
Slavia [p. 127] Eslávia
slavo [p. 120] eslavo
slavo86 [p. 128] eslavo
sport [p. 58] desporto
sport [p. 115] desporto
sport [p. 128] desporto
Sport (Evanxeo do Sport) [p. 59] Desporto
sportiva [p. 60] desportiva
sportiva (vida sportiva) [p. 60] desportiva
sportivas (augas preguizosas, sportivas) [p.
103] desportivas
sportivo [p. 58] desportista
sportivo (mociño sportivo) [p. 128] desportista
sportivo (traxe seriamente sportivo) [p. 93] desportivo

85 Na página 125 é usado espresos.


86 Na mesma página é utilizado eslava.

184
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-fonte Texto-alvo
sportivos (coores sportivos) [p. 60] desportivas
Sub lobium [p. 104] Sub lobium
superbos (paxaros) [p. 129] soberbos
tennis [p. 16] tennis
toilette [p. 123] toilette
trottoir [p. 105] trottoir
«trouvaille» [p. 119] trouvaille
wiking [p. 111] víquingue
xente bien [p. 9] gente fina
xente bien [p. 16] gente fina

A primeira edição de Arredor de si foi pouco cuidadosa com as palavras e expressões


estrangeiras: umas vezes são marcadas por meio de negrito, outras vezes entre aspas e outras
ainda sem qualquer marca diferenciadora. Por exemplo: “xente bien” (p. 9, sem negrito) e
“xente bien” (p. 16, com negrito), “a rebours” (p. 12, parcialmente em negrito, do francês à
rebours).

Também devo destacar algumas incorrecções ortográficas na escrita destes


estrangeirismos. Indico entre parênteses a expressão correcta: a rebours (à rebours), coktail
(cocktail), expréss (express), Grand Siécle (Grand Siècle), Herr Profesor (Herr Professor), le
fière espagnol (le fier espagnol), Nôtre-Dame (Notre-Dame), Palas (palaces). No caso de
magazines, decidi utilizar na tradução o termo francês magasins. O contexto fala de uma
mulher que percorre os comércios parisienses. No entanto, no original resulta estranha a
morfologia do plural, mais próxima do galego ou do castelhano. O tradutor deve prestar
atenção a estes possíveis lapsos.

Resulta impossível transmitir na tradução o valor prestigiante que Otero tentou


conferir à língua galega por meio dos estrangeirismos. Também não são traduzíveis pequenas
nuances de negatividade para com a língua castelhana (que é possível entrever,
compreendendo o contexto de “xente bien” na página 9, por exemplo). O destinatário da
tradução poderá interpretar que o autor tenta mostrar erudição ou marcar estilisticamente a
narração por meio de outras línguas.

Na tradução foram respeitados e mantidos os estrangeirismos, exceptuando-se aqueles


que no português actual têm um equivalente literal próximo com o mesmo sentido. Foi o caso

185
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

das seguintes traduções: “buquê”, “diletantismo”, “ideias-coquetel”, o termo musical


“abertura”, “desporto”, “desportista”, “desportivo”, “eslavo”, “Eslávia”, “soberbos” e
“víquingue”.

No que diz respeito à língua castelhana, operámos da seguinte maneira: xente bien foi
traduzido por “gente fina”, mas pronunciamiento (com negrito no original) foi mantido na
tradução. Otero Pedrayo incluiu três breves intervenções de personagens em castelhano:
“digo, dice, digo, dice” (p. 13), “Galleguito listo” (p. 26) e “¡Ay, Noya de mi alma!” (p. 72).
Estas foram mantidas87 por serem de fácil compreensão nos seus contextos. Nos restantes
casos de uso do castelhano, Otero Pedrayo parece utilizá-lo de forma inconsciente ou não
figuram marcas distintivas.

Em duas ocasiões Otero Pedrayo galeguiza expressões procedentes de outra língua:


com “Nosa Señora” (p. 106) em referência à catedral de Notre-Dame, que no contexto não é
totalmente evidente; e com “ante-eirexas” (p. 115), as anteiglesias bascas, que são antigas
formas de governo municipal, conhecidas em basco pelo nome de elizate. Na tradução
optámos por reintroduzir as palavras em língua estrangeira:

Nosa Señora [p. 106] Notre-Dame


ante-eirexas [p. 115] anteiglesias

Do ponto de vista do receptor da tradução, também devemos levar em conta os termos


culturais galegos preservados, doze no total, junto com as correspondentes notas de rodapé
(ver secção 3.8, Notas do tradutor).

O segundo grupo de estrangeirismos, como mencionámos no início desta secção, é


composto por breves textos ou passagens em línguas estrangeiras como versos de poemas e
breves frases procedentes de outras obras literárias. Ocupar-nos-emos destes ao falar da
intertextualidade (secção 3.7).

O castelhanismo assimilado pelo autor exige ao tradutor conhecer também essa língua
e as complexas relações estabelecidas entre as duas. Alguns exemplos dos decalques que o
autor realiza são os seguintes:

- ortografia: Egipto, egipcia (p. 108), exegesis (p. 106);

87 Na tradução foi eliminado o ponto de exclamação invertido do castelhano e foi corrigido o topónimo (Noia).

186
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

- género gramatical: longos viaxes (p. 116), ô marxe (p. 116), seus oríxenes lonxanos (p. 126);

- estruturas gramaticais: bebéndose as palabras (p. 112), impresionoulle (p. 119), chamoulle,
(p. 119);

- léxico: aceras (p. 10, “passeios”), acianos (p. 45, “lóios”), alonxaban (p. 119, “afastavam”),
botijos (p. 84, “moringas”) carbonilla (p. 9, “fuligem”), carretera (p. 115, “estrada”), curdas
(p. 25, “beberrões”), doña (p. 116, “senhora”), juergas (p. 25, “farras”), moitedumes (p. 131,
“multidões”), solano (p. 118, “soão”), roxos (p. 116, “vermelhos”), taraceados (p. 35,
“marchetados”), terciopelo (p. 24, “veludo”), voluntade (p. 118, “vontade”).

Otero Pedrayo também integra no seu galego alguns lusismos, não aparecendo
marcados de nenhum modo especial no original. Na tradução muitos tiveram de ser alterados
ou corrigidos: alem-coba (p. 59, “além-túmulo”), automoveis (p. 69 “automóveis”), cauda (p.
115), chemineia (p. 115, “chaminé”), “d'iste [...] balcón” (p. 100, preposição de com sentido
de ponto de procedência), eleito (p. 96), Faculdade (p. 24), feia (p. 12), fica (p. 128), fita (p.
35), freiras (p. 84), gostaba de (p. 89, “gostava de”), gosto (p. 62, subs.), meia (p. 15), na
meia tarde (p. 27, “a meio da tarde”), meiodía (p. 8, “meio-dia”), nubens88 (p. 58, “nuvens”),
paseios89 (p. 23, “passeios”), poeirenta (p. 59), prazer (p. 9), procurar (p. 11), procuróu (p.
12, “procurou”), procuraban (p. 101, “procuravam”), tería de (p. 108, “teria de”), vítima (p.
89).

É salientável o uso da epêntese, como em feia, meia e passeio, que se torna extensível
a outra palavras como *chemineia e *meiados, formas inexistentes quer em galego quer em
português. Algumas grafias, como as de posse90 e prazer, são muito chamativas em galego,
tendo uma provável origem no português. Algumas das palavras mencionadas acima (fica,
fita, freiras, gostaba, gosto, poeirenta) existem em galego, mas têm um uso muito pouco
frequente, enquanto que em português são correntes. Deduzimos que existia uma vontade de
se distanciar de formas castelhanas por aproximação às formas do português, embora de modo
intermitente ou ocasional.

O que fica bastante claro é que a relação de Otero Pedrayo com castelhano e português

88 Na página 9 utilizou nube, o que torna o plural nubens um claro lusismo.


89 Também é utilizada paseos nas páginas 77 e 87.
90 Otero grafa posse para se referir a “pose” (postura corporal).

187
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

não é a mesma que tenta estabelecer com outras línguas estrangeiras. Daí o diferente
tratamento que deve ser dado na tradução a umas e outras e a especial observação dos valores
que o autor pretende associar a estas.

3.7. Intertextualidade

Limito aqui o conceito de intertextualidade à presença de textos procedentes de obras


de outros autores e autoras em Arredor de si. Foram onze breves trechos os encontrados e que
analisamos a seguir.

TF: L'avara povertá di Catalogna» [p. 29]


TA: «L'avara povertà di Catalogna»

Trata-se de um verso de Dante, incluído na Divina Comédia (parte terceira O Paraíso,


canto VIII, verso 77). Em Arredor de si foi utilizado acento agudo em povertá e faltam as
aspas que abrem a citação.

TF: «Prima luce, cum summus mons a Labieno tener etur»… [p. 36]
TA: «Prima luce, cum summus mons a Labieno teneretur…»

Esta frase latina pertence a um trecho do parágrafo XXII do livro primeiro da obra De
Bello Gallico de Júlio César. Foi corrigida a última palavra e foram incluídas as reticências
dentro das aspas.

TF: «Non teñades ouro, nin prata, nin bronce nas vosas bulsas.» Mateo, X, 5, 10. [p. 39]
TA: «Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos.» Mateus 10, 9.

Nesta citação bíblica há um erro na indicação dos versículos, pois não são vários mas
apenas o versículo nove. É o único trecho de uma obra alheia que figura em português91.

TF: «No me mueve mi Dios para quererte


El cielo que me tienes prometido
Ni me mueve el Infierno tan temido
Para dejar por eso de ofenderte
.. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. » [p. 39]

91 Foiutilizada a tradução da Nova Bíblia dos Capuchinhos para o Terceiro Milénio da Encarnação (1998),
Lisboa: Difusora Bíblica.

188
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TA: No me mueve, mi Dios, para quererte


El cielo que me tienes prometido,
Ni me mueve el Infierno tan temido
Para dejar por eso de ofenderte

Estes poemas conformam o quarteto inicial de um soneto anónimo espanhol. Na


tradução foram eliminadas as aspas e os pontos debaixo do quarto verso. Foi respeitado o
alinhamento centrado na página e os versos foram grifados. O mais importante aqui é a
deficiente pontuação no original, o que impede a compreensão dos mesmos no contexto
correspondente.

TF: «Robur Hispaniae» [p. 50]


TA: “Robur Hispaniae”

“Robur Hispaniae” foi uma designação dada aos Celtiberos pelo historiador romano
Lúcio Aneu Floro no seu Epitome Rerum Romanorum. Devido a que esta frase está inserida
numa reflexão de várias linhas do protagonista, reflexão esta que se abriu antes com aspas
latinas, decidi utilizar aqui as aspas curvas. As aspas resultam importantes dado que não se
trata apenas de uma expressão latina qualquer, mas uma citação de um historiador romano que
é referido no contexto.

TF: «posadas de Esquivías, Salas, Madrigal, Olmedo!» [p. 80]


TA: «posadas de Esquivías, Salas, Almazán, Olmedo!»

Esquivías, Salas (de los Infantes), Almazán e Olmedo são nomes de vilas espanholas.
Aparecem num dos versos do poema Desde mi rincón (1913) de Antonio Machado, que elogia
a publicação da obra Castilla de Azorín. O texto do poema em questão diz: “¡Mesón de los
caminos y posada / de Esquivias, Salas, Almazán, Olmedo!” A memória prega uma partida a
Otero Pedrayo, que cita Madrigal em vez de Almazán.

TF: «siempre sobre la madera de mi wagón de tercera» [p. 80]


TA: «siempre sobre la madera de mi vagón de tercera»

A frase anterior corresponde a dois versos do poema El tren de Antonio Machado: “—


siempre sobre la madera / de mi vagón de tercera—”. Otero Pedrayo grafa wagón, o que
mudámos na tradução para vagón.

189
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: «Qui non vidit Coloniam, non vidit Germaniam» [p. 123]
TA: «Qui non vidit Coloniam non vidit Germaniam»

Esta frase, atribuída a Antonio de Beatis, secretário do cardeal Luís de Aragão, é uma
referência à importância da cidade de Colónia na altura. Antonio de Beatis escreveu a crónica
da viagem que ambos realizaram por diversos territórios europeus em 1517-1518. No texto
original foi incluída uma vírgula que desaparece na tradução.

TF: «Wie sind' ich des Mondes—Herrlichen Schein so süss! er ist der Klar heit des Tages
gleich» [p. 124]
TA: «Wie find' ich des Mondes / Herrlichen Schein so süß! er ist der Klarheit des Tags
gleich»

A citação anterior pertence a dois versos de Hermann und Dorothea, poema épico de
Goethe. Foram corrigidas algumas palavras e utilizada a barra inclinada para indicar o fim de
um verso.

TF: «Santo Cristo do Fisterra—Santo da Barba Dourada—Dáme vento pra pasar—A laxe
de Touriñana» [p. 137]
TA: «Santo Cristo do Fisterra / Santo da Barba Dourada / Dáme vento pra pasar / A laxe de
Touriñana»

TF: «Lanchiña que vas en vela—Leva brusas e refaixos—Para a miña Manoela» [p. 137]
TA: «Lanchiña que vas en vela / Leva brusas e refaixos / Para a miña Manoela»

Nas duas citações anteriores estamos perante versos de cantos de tradição popular e
marinheira galega. Os versos foram separados por meio de barras.

Salientável é a forma imprecisa ou até incorrecta de citar que o autor utiliza às vezes:
ortografia, pontuação e conteúdos de outras fontes aparecem levemente alterados em Arredor
de si. Isto exige atenção ao tradutor, que não pode confiar unicamente no critério de Otero
Pedrayo. Lembremos também que os seus lapsos de memória são frequentes.

A intertextualidade, entendida como citações de outros autores introduzida no corpo


do texto, que vimos até aqui, ou como referências indirectas a outras obras e autores (menos
relevante para a nossa tradução mas de grande interesse para a crítica literária), é uma
característica de Arredor de si. Otero chega ao ponto de escrever, no interior do romance, um

190
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

breve conto (Nosa Señora das Lavercas, p. 94-100) que é atribuído, na história narrada, ao
personagem principal, Adrián.

3.8. Notas do tradutor

Seria muito pouco recomendável, além de impossível, desejar transmitir todas as


informações que o romance Arredor de si contém devido às inclinações eruditas e
hiperreferenciais do seu autor. A quantidade de 'setas' e chamadas a serem indicadas
transformaria o romance, já de si de leitura dificultosa, num texto sem qualquer fluência com
uma sucessão aparentemente interminável de explicações, muitas das quais relevantes apenas
para aqueles que viveram no momento em que foi escrito, como sucede com as referências a
personalidades políticas da altura.

A minha estratégia inicial foi situar nas páginas finais do texto traduzido toda uma
série de abundantes notas que julgava serem necessárias para uma melhor compreensão do
romance. A leitura da narração efectuar-se-ia limpamente, surgindo apenas no corpo do texto
a indicação “NT” (nota do tradutor) junto com o algarismo correspondente. O número total
das notas chegava quase às duas centenas.

Desejava inicialmente ser tão informativo como fosse possível, embora tivesse sempre
em conta que os elementos a explicar seriam apenas aqueles alheios à cultura receptora e
específicos da cultura de origem. Mesmo assim, senti que persistiam os efeitos contrários a
uma leitura fluente, objectivo prioritário de toda a obra narrativa, visto que o elevado número
de chamadas às notas finais seria sentido como um empecilho. Não considerei em nenhum
momento que o 'leitor comum' fosse menos apto para a compreensão da obra, mas as notas
também poderiam ser vistas, pelo menos de certo ponto de vista psicológico, como um alarde
de superioridade do tradutor como leitor privilegiado (Ribelles 2004: 391).

Como já indiquei, não considerei as possíveis opiniões de um hipotético editor que


pudessem vir a limitar as minhas opções tradutórias. Estas opiniões também constam dos
textos que teorizam sobre o uso das notas do tradutor. Porém, sim tive em conta as normas
(Toury 1995: 56-57) imperantes na sociedade receptora: em Portugal, as edições de traduções
de romances e de narrativa de ficção em geral apresentam, na actualidade, um número exíguo
de notas de qualquer tipo, exceptuando-se a produção académica e científica.

191
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

De Lyra (1998: 12) resume muito bem a relação mantida com as notas no Brasil: os
tradutores são flexíveis; os editores e críticos, reticentes; os leitores, inflexíveis. De Lyra
também refere a 'tentação' do tradutor de acrescentar ou inserir, de alguma forma, a marca da
sua presença, considerando que as notas são “o ato maior de autoridade do tradutor sobre o
texto” (idem).

A introdução de notas pode condicionar o leitor na realização de novas e originais


leituras de uma obra literária. O próprio caso da interpretação de Arredor de si é
suficientemente ilustrativo: foi lida como obra com elementos biográficos de Otero Pedrayo
(Casares 1981: 109), como biografia de uma geração literária (Risco 1933: 122) e como obra
de carácter didáctico com intervenção em um debate ideológico da altura (Allegue e
Fernández 2014: 13-14), sem que nenhuma destas leituras excluísse as outras.

Julgo que Otero Pedrayo desejava dar à luz um romance tendo em mente diversos
objectivos e seguindo um projecto literário preestabelecido. Resulta importante para o
tradutor ter em conta estas ideias e leituras autorais, da crítica e a sua própria, mas muito mais
difícil é saber quais notas devem aparecer explicitamente no texto traduzido.

A necessidade de notas do tradutor baseia-se no suposto desconhecimento da língua do


original e das referências culturais que surgem no texto traduzido. Donaire (1991: 84) afirma
que as notas fornecem chaves de leitura (claves de lectura) de três tipos: 1. Intervenções
eruditas, 2. Conotações culturais e linguísticas não interpretáveis pelo leitor do texto
traduzido, 3. Conotações culturais e linguísticas que se perdem na tradução.

Optei, em primeiro lugar, por não introduzir nenhuma nota erudita explicativa de
aspectos culturais que figurassem clara e explicitamente no texto e que pudessem ser
identificados ou pesquisados sem dificuldade pelo leitor, nem sequer as referidas à Galiza, a
Espanha ou a qualquer outro país ou cultura alheios à cultura receptora 92. Uma hipotética
selecção de notas eruditas estaria baseada num critério pessoal, tendo como ponto de vista a
minha leitura e os meus conhecimentos na actualidade, que podem divergir de forma radical
dos conhecimentos de muitos leitores.

Quanto às referências culturais indirectas, de difícil compreensão e acesso para leitores


92 Diversasedições galegas de Arredor de si acrescentaram uma grande quantidade de notas eruditas devido a
que os destinatários são maioritariamente adolescentes do ensino secundário. A meu ver, algumas destas
notas são totalmente prescindíveis enquanto que muitas outras que deveriam aparecer não foram incluídas.

192
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

da tradução e, até, para leitores nativos (não interpretáveis pelo leitor), interpolei algumas
poucas palavras no corpo do texto narrativo sempre que possível, desde que não supusessem
uma desvirtuação da intenção, do estilo ou da língua do autor. Recorri a esta estratégia de
adição em quinze ocasiões. A seguir sublinho as palavras acrescentadas:

TF: sabios cuia sona non pasaba de Cacheiras. [p. 11]


TA: sábios cuja fama não passava da aldeia de Cacheiras.

TF: Noites do vello Fornos. [p. 12]


TA: Noites do velho café de Fornos.

TF: en Gobernaceón [p. 15]


TA: no Ministério da Governação93

TF: ouvir as campás dende Santa Leocadia [p. 27]


TA: ouvir os sinos da igreja de Santa Leocádia

TF: ir pol'a mañá ô Prado [p. 28]


TA: ir de manhã ao museu do Prado

TF: Alboradas do Retiro. [p. 29]


TA: Alvoradas dos jardins do Retiro.

TF: Pensaba no esforzo de Bonilla, un levantino, erguendo a cultura hispáneca. [p. 29-30]
TA: Pensava no esforço de Adolfo Bonilla, um levantino, erguendo a cultura hispânica.

TF: estaría na Estrada, no Carballiño, en Frómista de Campos [p. 30]


TA: estaria numa vila, na Estrada, no Carballiño, em Frómista de Campos

TF: Das hortas da Barbaña e dos salgueiros do Miño [p. 41]


TA: Das hortas do rio Barbaña e dos salgueiros do Minho

93 Neste caso acrescentei ainda uma nota final indicando a designação desta instituição em espanhol.

193
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: ventiño curtante da Brújula [p. 51]


TA: ventinho cortante do passo da Brújula

TF: canles en procura do Arlanzón [p. 52]


TA: canais à procura do rio Arlanzón

TF: O chegar ô Anxel Caído sentáronse. [p. 69]


TA: Ao chegarem à rotunda do Ángel Caído, sentaram-se.

TF: E Sully prantaba [p. 103]


TA: E o duque de Sully plantava

TF: van ô Louis le Grand. Outros ô Condorcet. [p. 107]


TA: vão para o liceu Louis-le-Grand. Outros para o Condorcet.

TF: hastra o coto de seixo da ermida de Nosa Señora dos Remedios e logo seguía hastra os
Miragres, hastras a Virxe da Franqueira [p. 114]
TA: até ao cume de pedra da ermida de Nossa Senhora dos Remédios e depois continuara
até à Nossa Senhora dos Milagres, até à Virgem da Franqueira

É importante destacar que a maior parte destas referências do autor são


geográfico-espaciais, exceptuando-se “Bonilla” e “Sully”, que são apelidos de personalidades
históricas. Para Otero Pedrayo, especialista em História e Geografia, eram informações
evidentes, mas para muitos leitores não o são.

As restantes referências culturais, muito tangenciais, foram incluídas nas notas finais,
que ascendem a quarenta e uma, compreendendo as seguintes temáticas: letras e literatura (22
notas), geografia (7 notas), história e política (6 notas), artes (5 notas), ciência (1 nota). O
estilo das notas é muito breve, oferecendo apenas as informações que servem para tornar clara
a referência cultural em questão. Uma das notas, a número 38, é ambígua, dado que remete
para uma personalidade que no original surge simplesmente como “Herrera”. Poderá ser uma
referência ou a um poeta ou a um arquitecto que viveram no século XVI. Na nota escrevo:

194
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

“Referência a Fernando de Herrera (1534-1597), o Divino, poeta petrarquista espanhol; ou


bem a Juan de Herrera (1530-1597), arquitecto e matemático renascentista, criador do estilo
herreriano.” Dado que Otero Pedrayo não apresentava especial inclinação pela arquitectura e
sim pelas letras, julgo mais provável que fosse Fernando de Herrera. Além deste motivo, o
Herrera poeta sofreu a influência de Petrarca, que também é mencionado no romance à página
150.

Estas notas finais são as que julguei pertinentes para uma melhor compreensão do
romance. Não quis que tivessem carácter infantilizador ou didáctico nem que se associassem a
um afã de intromissão ou posse do texto por parte do tradutor. Todavia, reconheço que existiu
uma selecção e interpretação pessoal dos contextos em que se inserem, baseado também em
leituras de outros críticos e edições de Arredor de si. Esforcei-me por torná-las tão sucintas
quanto me foi possível.

Para além das notas finais, também introduzi doze notas de rodapé de carácter
linguístico e uma de carácter cultural indirecto. São as seguintes, por ordem de aparição no
romance:

Texto-alvo Nota do tradutor


[pág. do original]
señorita Tratamento respeitoso dado à filha de uma família abastada.
[p. 15]
de pandeireta A expressão, que remete para um verso de Antonio Machado, alude a
[p. 16] uma Espanha atrasada.
tostado Vinho produzido a partir de uvas passificadas.
[p. 19, 21]
chulo Figura estereotipada de homem madrileno, vaidoso e bem vestido.
[p. 29]
carnote Variedade de uva tinta.
[p. 36]
señorito Tratamento respeitoso dado ao filho de uma família abastada.
[p. 59]
alalá Canto popular galego.
[p. 61]
filloa Iguaria similar ao crepe, podendo elaborar-se também com o sangue da
[p. 71] matança do porco.

195
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Texto-alvo Nota do tradutor


[pág. do original]
quatro vadios da Referência às Irmandades da Fala, movimento galeguista (1916-1931).
Corunha [p. 73]
institucionista Adepto da Institución Libre de Enseñanza.
[p. 94]
migueletes Membro da milícia foral de Guipúscoa no século XIX.
[p. 103]
A contrapelo Em português, «ao arrepio» ou «às avessas».
[p. 111]
Bodega Em português, «adega», «taberna», «tasca».
[p. 111]

Não existem equivalentes exactos em português para as palavras e expressões originais


que motivam a introdução destas notas de rodapé linguísticas. A sua tradução por termos
próximos ocasionaria dificuldades tradutórias, se não deficientes significados para o leitor em
português. É o caso mais claro de necessidade de notas do tradutor uma vez que confluem
“opacidad lingüística y [...] idiosincrasia cultural” (Donaire 1991: 87).

Deixei em pé de página uma nota de carácter cultural indirecto devido a que remete
para uma instituição, as Irmandades da Fala, de grande transcendência para a língua galega no
contexto histórico em que se insere Arredor de si. As Irmandades da Fala têm também relação
com um dos objectivos primários do romance, que foi o uso normalizado da língua galega.
Foi a única intromissão como tradutor-leitor privilegiado que realizei conscientemente. Uma
nova referência a estes homens que “falan i-escriben en galego” aparece mais tarde na página
149 do original em conversa entre o protagonista e o seu irmão. Nas duas ocasiões estamos
perante breves diálogos de personagens que contêm avaliações negativas dos utilizadores da
língua galega, contraponto da tese defendida por Otero Pedrayo e das suas ideias
sociolinguísticas.

As treze notas de rodapé são indicadas por meio de asterisco no texto traduzido e
figuram na mesma página, enquanto que nas notas finais recorri à numeração por meio de
algarismos arábicos. Desta forma reduzi consideravelmente o impacto visual e a interrupção
da leitura, priorizando a fluência e a ilusão de se estar a ler o original. O receptor poderá
realizar a sua leitura-interpretação pessoal, sem sentir que está a ser guiado forçosamente por

196
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

uma visão intermediária que pode não desejar que exista ou até julgar uma intromissão em um
'diálogo' a dois (autor-leitor).

Não introduzi notas relativas a palavras, expressões ou breves trechos de textos


noutras línguas estrangeiras. No romance são usados alemão, espanhol, francês, inglês,
italiano e latim, para além do galego. Aparentemente, Otero Pedrayo não quis fornecer
explicações aos seus leitores e leitoras sobre o significado destas expressões estrangeiras e,
como já foi visto, utilizou outras línguas para elevação do estatuto do galego num contexto
europeu e universal.

Quando é indispensável uma nota de tradutor? As visões e opiniões são relativas e


diferentes, dependendo de momentos históricos, estilos, normas sistémicas, regras editoriais,
objectivos concretos e gostos pessoais. Entre tradutores não há uma opinião maioritária e a
casuística leva a tomadas de decisão que divergem bastante.

3.9. Deslocamentos

Entendemos por deslocamentos as alterações de elementos significativos no


texto-fonte que se vêem reflectidos de um modo diferente no texto-alvo: eliminação/omissão,
substituição, generalização, neutralização ou atenuação. Comento a seguir os deslocamentos
mais importantes efectuados na tradução.

Um elemento que permeia integralmente o romance e que dificilmente pode ser


vertido na tradução é o efeito da própria língua utilizada por Otero Pedrayo. A estranheza para
um receptor galego da altura, com a primeira edição, está totalmente ausente na leitura
realizada em português na actualidade: não há vacilações de ortografia, morfologia ou léxico,
os parágrafos são distribuídos de forma regular, palavras e frases em línguas estrangeiras
aparecem marcadas tipograficamente. Portanto, a língua do texto traduzido fica mais próxima
do destinatário de hoje por se acomodar ao padrão linguístico vigente. Este deslocamento
global não tem relação com um nível mais ou menos formal de língua nem com o estilo
literário de que Otero Pedrayo desejava revestir o seu texto. Nas edições galegas mais
recentes de Arredor de si, já não é tão evidente esta ausência de familiaridade que ocasionou a
primeira edição devido à regularização a que foi submetido o original.

A seguir, apresento mais exemplos de deslocamentos:

197
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: sport [p. 58]


TA: desporto

TF: Evanxeo do Sport [p. 59]


TA: Evangelho do Desporto

TF: sport [p. 115]


TA: desporto

TF: comunidade sportiva [p. 58-59]


TA: comunidade desportiva

TF: coores sportivos [p. 59]


TA: cores desportivas

TF: traxe seriamente sportivo [p. 93]


TA: fato seriamente desportivo

TF: augas preguizosas, sportivas [p. 103]


TA: águas preguiçosas, desportivas

TF: foot-ball94 [p. 89]


TA: futebol

Os termos “desporto”, “desportivo” e “futebol” são correntes na actualidade em


português, enquanto que a forma estrangeira no texto original atrai a atenção do leitor. Teria
sido possível procurar um equivalente em português ou manter as formas estrangeiras sport e
football do inglês para oferecer um matiz arcaico à tradução. No entanto, como já apontámos
na seccção 2.1.3, não foi esta a nossa escolha e mantemos os usos actuais. No caso do
adjectivo sportivo, o seu uso frequente, grafado em redondo no original, dá a entender que o
autor não lhe dá valor de estrangeirismo.
94 Mantivemos a tipografia original nos anteriores pares e no seguinte (magazines).

198
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Noutro caso, mantivemos o estrangeirismo, corrigido e grifado, devido a que havia


uma clara conotação:

TF: magazines95 [p. 116]


TA: magasins

O narrador está a descrever a relação entre Florinda e o marido, o marquês de


Portocelos: ela, cosmopolita, gosta de passear pelos “asfaltos da Europa” e ir às compras,
enquanto que ele permanece no hotel a descansar, apenas satisfeito com o seu “hourizonte
miñoto” (p. 116). Esta oposição é útil para a caracterização da personagem de Florinda e para
o fim que persegue Otero Pedrayo com o seu romance.

TF: farturentos bacelos [p. 60]


TA: fartos bacelos

TF: farturenta [p. 87, referência a uma horta]


TA: farta

TF: rayolante ronselar [p. 97]


TA: radiante esteira

TF: xa tardeira, a parexa [p. 123]


TA: já tarde, o casal

TF: viaxatas [p. 141]


TA: viagens

Nos anteriores quatro pares há pequenas atenuações de expressividade ou significado


derivadas das escolhas marcadas pela língua do autor. O sufixo -enta/-ento que exprime
fertilidade, abundância; a substantivação do verbo ronselar, criado, por sua vez, a partir de
ronsel; o sufixo -eira, diferenciador com o castelhano e traduzido, com transposição, pelo
advérbio “tarde”, com a consequente eliminação da referência ao casal; o sufixo -ata que

95 Otero Pedrayo engana-se ao escrever a palavra em francês. Figura sem itálico ou negrito no original.

199
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

confere ao termo viaxata o sentido de “viagem recreativa”.

TF: Estado Español [p. 152]


TA: Estado espanhol

Trata-se de uma designação que pode ser vista como uma afirmação de consciência
política, que surge na penúltima página do romance. Não sendo específica de Otero Pedrayo,
sim tem relação com o momento histórico que se vive em 1930 e com o nascimento do
galeguismo político. É uma expressão carregada de diferentes significados e valores, ainda
hoje em dia de uso corrente, e que dificilmente poderá ser compreendida sem o conhecimento
social ou histórico necessários.

Algumas diferenças gramaticais também levaram a pequenas omissões,


nomeadamente relativas aos dativos de solidariedade e de interesse galegos. No entanto, dado
que estes dativos surgem em intervenções dialogadas das personagens, o próprio contexto age
como elemento compensador, sem que exista a necessidade de adicionar ou intensificar outros
segmentos.

Usos do dativo de solidariedade:

TF: xa ch'imos vellos [p. 33]


TA: já estamos velhos

TF: ténche razón [p. 65]


TA: tem razão

TF: éche [p. 66]


TA: é

TF: Eche [p. 66]


TA: é

TF: ténche razón [p. 66]


TA: tem razão

200
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: ll'están [p. 67]


TA: estão

TF: sónlle [p. 67]


TA: são

TF: sonlle [p. 73]


TA: são

TF: éche [p. 85]


TA: é

TF: non che sei [p. 122]


TA: não sei

TF: sônche [p. 149]


TA: são

Usos do dativo de interesse:

TF: non te me poñas pesado [p. 122]


TA: não me chateies

De modo global, a maior parte dos casos de deslocamento na tradução tiveram relação
com termos culturalmente específicos que não puderam ser vertidos para português com um
sentido exactamente idêntico:

TF: bocarribeiras [p. 113]


TA: vertentes

201
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: bocarribeira [p. 114]


TA: extensão da vertente

Na página 113, bocarribeiras aparece oposta a monte no seguinte contexto: “[..] outo
monte pai de máinas bocarribeiras. Elas baixan [...]”. Na página 114, este termo opõe-se a val:
“Era cuaseque no val e sobretodo na bocarribeira [...]”. É uma palavra oteriana, que já aparece
descrita pelo autor em 192296: amplas extensões de terreno que transitam suavemente da
montanha até ao rio. Desconheço se existe um termo equivalente em português.

TF: canellas [p. 90]


TA: vielas

Canella em galego pode ser uma “ruela” ou uma “corredoura”, via estreita e baixa ou
murada por onde passam os carros puxados por bois. Na tradução escolhemos “vielas”, termo
mais genérico em português. Produz-se uma pequena generalização, pois canella é de curso
muito raro em galego.

TF: cegamaridos [p. 71]


TA: lombinho de porco

O cegamaridos é uma parte do porco próxima da últimas vértebras. Existia a


superstição de que, caso um homem comesse a carne dessa parte, ficaria cego. O termo surge
num contexto claro, onde se fala do porco, da matança, da montanha, da pança e das filloas,
esta última palavra explicada em nota de rodapé na tradução. Com “lombinho de porco”
optámos pelo uso de um termo genérico na tradução, compensando com o uso do diminutivo
dado o contexto coloquial e admirativo de quem sente saudades da gastronomia galega.

TF: coartillas [p. 17]


TA: folhas de papel

TF: brancas coartillas [p. 79]


TA: brancas folhas
96 Otero Pedrayo, Ramón (1922): “Encol da aldeia”. Nós, nº 14: 4. O autor grafa neste texto boca-ribeira, com
hífen e itálico, o que nos indica que não é uma palavra generalizada na língua comum.

202
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Uma coartilla ou cuartilla designa uma quarta parte de uma folha de papel. No
contexto da página 17, faço uma pequena amplificação com “de papel” para explicitar o tipo
de folhas de que se está a falar. Na página 79, o adjectivo “brancas” desambigua o significado.
Nos dois casos, a tradução não informa acerca do tamanho da folha de papel, dado que é
irrelevante nestes contextos.

TF: Xa estaba despachada. [p. 147]


TA: Já tinha a última bênção.

Despachar tem o significado de “receber um católico os últimos sacramentos do


sacerdote antes da sua morte”. No contexto do romance, a avó de Adrián, já desorientada nos
seus últimos dias de vida, confunde a visão do neto com a do seu filho falecido há anos.
Segundo o narrador, este era o seu último desejo antes de morrer. Todo o contexto é
claramente religioso, o que justifica termos optado por “bênção”.

TF: espadañas [p. 62]


TA: campanários

Uma espadaña é um campanário de uma única parede onde se situa o sino. Não
consegui encontrar um equivalente em português, o que me levou à escolha de um termo
genérico.

TF: estadea de lembranzas [p. 13]


TA: assombração de lembranças

O autor utiliza estadea como sinónimo de Santa Compaña, que na tradição galega é
uma procissão de almas penadas que percorrem os caminhos à noite. No entanto, uma estadea
é propriamente uma única alma fantasmal que vaga. Perante a falta de um equivalente
conhecido em português, optei na tradução por “assombração”.

TF: estanque [p. 122]


TA: lago

203
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Um estanque designa um lago artificial. Desconheço se existe em português um termo


específico e adequado ao contexto que transmita essa ideia.

TF: señoritos flamencos [p. 82]


TA: señoritos fanfarrões

Flamenco é usado com o sentido de “pedante, presunçoso, gabarolas”. Estabelece-se


uma associação preconceituosa de elementos, pois flamenco também remete para o povo
cigano, em Espanha assentado sobretudo na Andaluzia. Esta última conotação vê-se eliminada
na tradução.

TF: frouma [p. 113]


TA: ramagem

Frouma refere-se especificamente à ramagem dos ciprestes, no contexto da página


113, onde se menciona a pecha frouma (“cerrada ramagem”). Noutra ocasião, à página 138,
também aparece frouma sendo traduzida por “caruma”, a agulha de pinheiro. Neste caso
mantive o hipónimo, mas não no primeiro.

TF: froles os mangados nos brazos nús [p. 116]


TA: flores aos montões nos braços nus

A melhor expressão equivalente teria sido “às braçadas”, mas foi evitada a repetição
posterior de braços por meio de “aos montões”, locução equivalente e de utilidade no
contexto.

TF: xogando ô monte [p. 82]


TA: a jogarem às cartas

Novamente, um termo específico, neste caso um jogo de cartas, é traduzido de forma


genérica, embora sem relevância no contexto ou para o conjunto do romance.

TF: lanzalidade [p. 98]


TA: esbelteza

204
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Lanzalidade remete para “lança”. O adjectivo lanzal é utilizado várias vezes por Otero
Pedrayo. Produz-se a neutralização desta imagem de lança.

TF: unha solaina de pedra [p. 60]


TA: uma sacada de pedra

TF: solâina [p. 100]


TA: sacada

TF: unha solaina [p. 113]


TA: uma sacada

TF: a solaina [p. 115]


TA: a sacada

TF: nas solainas [p. 140]


TA: nas sacadas

Uma solaina é uma sacada onde dá o sol, típica nas casas solarengas galegas. Com
“sacada” na tradução neutralizamos a noção de exposição ao sol. Paralelamente é usada
também por Otero Pedrayo balcón, que foi traduzida como “varanda”. Na página 100, as duas
palavras aparecem no mesmo parágrafo para se referirem à mesma realidade.

TF: cúpulas xamonas, a xamona [p. 29]


TA: cúpulas bonitonas, a bonitona

Xamona é a forma galeguizada do castelhano jamona. Na actualidade, tem o sentido


de “mulher de corpo sensual e atraente” e está associado a um uso coloquial, se não vulgar.
Julgo que no romance de Otero tinha outro sentido diferente, que se encontra dicionarizado:
“mulher que já passou a sua juventude e que apresenta certo volume corporal, sobretudo nas
extremidades inferiores”. Com ambos os sentidos está presente uma imagem claramente
erótica. O que complica mais a tradução é o contexto, pois o autor realiza um jogo de

205
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

palavras: “Cando chegaba â pradeira de San Isidro, Madrí, o goyesco, coor de carne no sôlpor
arquiteiturizabase en cúpulas xamonas. A xamona parecíalle ô Adrián a muller de Madrí, un
símbolo, un pecado atraente” (p. 29).

Estamos perante uma imagem pictórica (goyesco), sensual e cálida (coor de carne no
sôlpor) de Madrid na qual as suas cúpulas resultam, aos olhos do narrador, xamonas. Note-se
também a complicada estrutura oracional e a mudança de nível linguístico para chamar a
atenção do leitor para o adjectivo xamona. Pensei que uma solução aceitável teria sido
“cúpulas voluptuosas”, “a mulher voluptuosa”. Manter-se-ia a carga erótica, omitir-se-ia a
intenção linguística (jogo de palavras). No entanto, finalmente inclinei-me por “cúpulas
bonitonas”, “a mulher bonitona”. Por um lado, a carga erótica é muito menos explícita, mas
logo a seguir o próprio contexto compensa isto ao se mencionar o pecado atraente. Por outro
lado, ganha-se na expressividade introduzindo uma expressão muito mais coloquial. Com
qualquer das duas opções esvai-se a carga pictórica, isto é, a imagem do xamón, as pernas de
formas arredondadas e sensuais de uma mulher.

A mesma tradução foi utilizada também na página 10, onde o ambiente também é
erótico, embora linguisticamente mais simples:

TF: xamonas floridas [p. 10]


TA: bonitonas floridas

3.10. Explicitações, amplificações, adições

Utilizo os termos explicitação, amplificação e adição de forma genérica, entendidos


como o acréscimo de palavras que foi efectuado no texto-alvo com a finalidade de transmitir
melhor o sentido do texto-fonte, devido a necessidades sintácticas e expressivas do português
ou como procedimento de compensação. As explicitações realizadas têm relação com
aspectos de coerência e coesão textuais.

TF: Ainda queda o esprito, todo do organillo». [p. 29]


TA: Ainda resta o espírito, todo ele do realejo.»

206
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: éralle indefrente de todo [p. 89]


TA: ela era-lhe indiferente de todo

TF: Nin pudo salferirse i-esquencerse en bágoas. [p. 90]


TA: Nem sequer pôde apaziguar-se e esquecer-se de tudo entre lágrimas.

TF: Gardaba de seus orixe [p. 116]


TA: Ela guardava das suas origens

TF: Beberon n'unha granxa [p. 124]


TA: Beberam um copo numa fazenda

TF: ilusiós d'unha priguiza [p. 150]


TA: ilusões surgidas de uma preguiça

As anteriores explicitações são de tipo semântico, isto é, explicam mais claramente


como compreender um trecho. Senti que eram necessárias para que a compreensão do texto
não fosse ambígua ou incompleta. Devem ser consideradas nos contextos respectivos da
história narrada.

TF: o velliño [...] tirouse do leito [p. 90]


TA: o velhinho [...] atirou-se do leito abaixo

TF: descolga aquil mapa grande [p. 91]


TA: traz para baixo aquele mapa grande

Nos dois pares anteriores, há em português a necessidade de acrescentar uma ideia de


movimento e direcção que acompanha os verbos “atirar-se” e “trazer”.

TF: E o vento da Europa xogáballe neno nas primeiras cañas das tempas cavilosas [p.
101]
TA: E o vento da Europa brincava, qual menino, com os primeiros cabelos brancos das suas
têmporas pensativas.

Otero Pedrayo usa neno como atributo de vento ou com um valor adverbial (como un
neno), criando uma oração com alguma licença poética. A solução de tradução foi introduzir a
conjunção “qual”, criando uma comparação e alterando a pontuação. Também eliminámos o
complemento indirecto, compensado com a introdução do pronome possessivo “suas”.

207
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: muros entoxados [p. 140]


TA: muros cheios de tojos

Suprimos a inexistência do verbo entoxar em português com uma expressão


explicativa.

TF: Parecíalle vivir [o mapa] [p. 100]


TA: Parecia ter vida

TF: Beberon n'unha granxa [p. 124]


TA: Beberam um copo numa fazenda

Nestes dois últimos pares, observámos a necessidade de realizar pequenas


explicitações para acomodar melhor o sentido às formas expressivas em língua portuguesa.

Por último, relembramos todas as explicitações de tipo pragmático-cultural efectuadas


no corpo do texto, similares à seguinte, que já foram comentadas ao falar das notas do
tradutor (secção 3.8):

TF: Baixo as arcadas de Rivoli [p. 111]


TA: Sob as arcadas da Rua de Rivoli

Arredor de si não contém grande número de diálogos, mas sim bastantes reflexões
interiores nas quais surgem perguntas que são expressadas como se se tratasse de intervenções
orais, mesmo não havendo resposta de um interlocutor. Em muitas destas perguntas foi
praticada uma amplificação por meio da locução “é que”, com o intuito de tornar mais
idiomática a expressão em língua portuguesa:

TF: Porque nascín fidalgo? [p. 43]


TA: Porque é que nasci fidalgo?

TF: ¿Porqué o Ateneo garda a Galería de Retratos? [p. 48]


TA: Porque é que o ateneu guarda a galeria de retratos?

208
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: ¿Quen fala do frío de Madrí? [p. 70]


TA: Quem é que fala do frio de Madrid?

TF: ¿E logo de donde sacoú qu'o gallego é unha lingoa? [p. 73]
TA: Ora donde é que tirou que o galego é uma língua?

Neste mesmo sentido, algumas vezes foi introduzido o advérbio lá com valor
expletivo, em função do contexto, com a intenção de realçar esta particularidade expressiva
do português:

TF: Fôra [...] debruzábase un longo sôlpor [p. 12]


TA: Lá fora [...] debruçava-se um longo pôr-do-sol

TF: Na horta, xogando, o rapaz [p. 57]


TA: Lá na horta, a jogar, o rapaz

TF: Primeiro n'un Banco ou onde sexa [p. 57]


TA: Primeiro num banco ou lá onde for

3.11. Normalização estilística

Em muitas ocasiões e ao longo de todo o romance, Otero Pedrayo toma uma palavra
ou expressão e repete-a com uma diferença de poucas linhas. Deconheço o motivo
(linguístico, estilístico, ideológico) que o levava a proceder deste modo, mas teve uma
implicação clara na tradução: estas repetições próximas seriam sentidas em português como
um elemento de estilo negativo ou até como erros da tradução. Apresentamos alguns
exemplos das repetições evitadas e das decisões tradutivas tomadas:

quizáis [p. 100] talvez / quiçá

O advérbio quizáis aparece repetido duas vezes muito perto. Recorremos à sinonímia
para evitar a repetição. Lembremos que a palavra quizáis é muito utilizada por Otero. Em
português “talvez” tem uma frequência de uso muito superior ao sinónimo “quiçá”.

209
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

equivocouse de porta [...] Equivocado [p. enganou-se de porta [...] Equivocado


108]

Repete-se o lexema equivoc- num trecho breve. Não parece haver intencionalidade
estética ou de outro tipo. Na tradução recorremos primeiro a “enganou-se” e depois a
“Equivocado”.

lembrábase [...] lembrara [p. 109] lembrava-se [...] recordava

Produz-se a repetição de lembr-, idêntica ao caso anterior, com uma gralha em


lembrara onde se deveria ler lembraba para que tenha sentido no contexto.

donas [p. 112] mulheres / senhoras

Otero repete dona três vezes em poucas linhas. Esta é outra palavra que utiliza em
abundância. O contexto leva-nos a recorrer ora a “mulher” ora a “senhora” para evitar
repetições.

Indico também algumas outras palavras que aparecem repetidas duas ou mais vezes e
as correspondentes páginas do original: a medias / as medias (p. 26), miseria / miserabres (p.
41), cousa (p. 42), sportivo (p. 60), lonxe / lonxanas (p. 66), angueiras (p. 74-75), tristeza (p.
86), rapaza-rapariga-moza (p. 88-89), volta / voltiña (p. 94), esgrevio (p. 95), rexo (p. 95),
precisión (p. 103), primeiro (p. 106-107), figura (p. 113), coto (p. 113), mimo / mimosas (p.
122), campesío (p. 135), estrano (p. 139), fiestra (p. 139), pequena (p. 143), agardar (p. 151),
pensar (p. 151).

Destaco aqui também o caso de esgrevio, adjectivo de uso abundante em Arredor de si


e que foi necessário traduzir de diferentes maneiras consoante o contexto:

esgrevio97
esgrevio leito [p. 27] tosco leito
esgrevios mobles [p. 44] toscos móveis
homes esgrevios [p. 95] homens tenazes
esgrevia cortesanía de pastores [p. 95] rude cortesania de pastores
esgrevios soldados [p. 115] tenazes soldados
esgrevios cereales [p. 129] grosseiros cereais

97 CarballoCalero (1976: 42) julga que Otero Pedrayo faz um uso de esgrevio fundamentalmente nas acepções
de “escabroso, áspero”.

210
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

esgrevia novidade [p. 133] intensa novidade


carballeiras esgrevias [p. 146] carvalheiras cerradas

Parece ser do gosto de Otero Pedrayo o uso de uma estrutura oracional menos
frequente e que pode ser sentida como marcada: no início de um período, o autor situa o
sujeito posposto ao verbo. No romance, a estrutura não marcada, isto é, sujeito antes de verbo,
é a mais frequente, sendo precisamente isto o que me levou a questionar se haveria alguma
intenção estilística. No entanto, acho que se trata de uma simples questão de preferência, pois
em nada se altera o estilo, o sentido ou o contexto onde é usada. Apresento abaixo alguns
exemplos ilustrativos:

TF: Fuxe o seu recordo [p. 19]


TA: A sua lembrança foge

TF: Parecíalle a natureza nova [p. 36]


TA: A natureza parecia-lhe nova

TF: Iban os internos â tribuna. [p. 41]


TA: Os internos seguiam para a tribuna.

TF: Saían os internos de paseo. [p. 41]


TA: Os internos saíam para passear.

TF: Logo foi ganando a Adrián outro desexo [p. 48]


TA: Depois, outro desejo já experimentado foi ganhando a Adrián

TF: Pouco sadisfeito [...] deixábase Adrián [p. 53]


TA: Pouco satisfeito [...], Adrián deixava-se

TF: Recorrendo o mosteiro [...] disfroitaba Adrián unhas horas [p. 54]
TA: Percorrendo o mosteiro [...], Adrián desfrutava de uma horas

TF: Decoraban as paredes carteles d'Olimpiada. [p. 60]


TA: Cartazes de olimpíada decoravam as paredes.

211
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: Seguiú latricando o barqueiro. [p. 67]


TA: O barqueiro continuou a tagarelar.

TF: Tiña Adrián o soficiente bon sentido [p. 76]


TA: Adrián tinha o suficiente bom senso

TF: Dubidaba Adrián do seu entendemento [p. 77]


TA: Adrián duvidava do seu entendimento

TF: Chegaba doña María c'o abade. [p. 77]


TA: A senhora María chegou com o abade.

3.12. Correcções

Quanto às correcções que tive de realizar, estas tiveram relação com as línguas
estrangeiras, como já vimos na secção 3.6, ou com as citações de outros autores ou obras.
Algumas correcções que realizei são as que apresento abaixo:

Mateo, X, 5, 10 [p. 39] Mateus 10, 9

Mudo o formato da citação bíblica e corrijo também o número do versículo (é apenas


um) que aparece justo antes no romance.

Appiano [p. 50] Floro

Corrijo o nome do historiador romano que escreveu “Robur Hispaniae” em referência


aos Celtiberos (ver secção 3.7).

Sacré Coeur [p. 50] cemitério do Père-Lachaise

Corrijo uma referência a um lugar de Paris onde esteve Rastignac, personagem do


romance Le Père Goriot de Balzac.

Gründiss [p. 78] Grundriss

Corrijo a ortografia de uma referência a uma célebre obra filológica alemã, Grundriss
der romanischen Philologie de Gustav Gröber, publicada em 1888. Em negrito no texto-fonte.

212
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Madrigal [p. 80] Almazán

Corrijo o nome de uma vila citada em um verso do poema Desde mi rincón (1913) de
Antonio Machado.

sub lovium [p. 112] sub lobium

Corrijo a ortografia latina que explica a origem do apelido Solovio do protagonista.

3.13. Dificuldades de interpretação

Os casos que comentaremos neste último ponto têm relação com interpretações do
texto-fonte realizadas pelo tradutor e as tomadas de decisão subsequentes. Começaremos
referindo-nos mais uma vez à grande quantidade de gralhas que permeiam toda a primeira
edição. Além de incomodativas, suscitaram muitos problemas de compreensão durante a
tradução.

Gostaria de citar aqui Clifford E. Landers (2001), tradutor de literatura brasileira para
inglês, que fala da sua experiência com as gralhas:

When dealing with a classic, oft-reprinted work, the translator should always entertain the
possibility of corruption in the text. [...]
Searching for the Urtext is frustrating sometimes, for even first editions contain errors, often
(specially where the author is deceased) perpetuated in later printings. Viruslike, the typo once
introduced tends to displace the original word and reproduce itself in subsequent editions, which
frequently are made from the same plates. (2001: 114)

Landers também refere casos concretos em que teve de lidar com gralhas sem saber
realmente que o eram. Julgo que em Arredor de si há alguns casos similares, ainda que tive
uma clara consciência de que havia algum elemento que não estava certo. Apresento apenas
os casos simbólicos, mas há na primeira edição muitos outros que suscitaram menor grau de
conjectura por parte do tradutor.

TF: Tennedt a pequena pobración de Novalis [p. 126]


TA: Tennstedt, a pequena povoação de Novalis

Este é um caso claro de uma gralha que jamais foi verificada por nenhum editor.
Permanece em todas as edições galegas de Arredor de si que pude consultar e até na tradução
em inglês, Circling, de Kathleen March. Teria sido fácil verificar que Tennedt não existe e que

213
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

Novalis, poeta romântico alemão, morou e trabalhou em Tennstedt, cujo nome oficial hoje é
Bad Tennstedt.

TF: Améreca [...] mais unha virxe sosáina e seiva [p. 149]
TA: América [...] mais uma virgem insulsa e sem seiva98

O problema aqui reside em tentar adivinhar o que quer dizer seiva. Na primeira edição,
esta palavra aparece translineada assim: se- / iva. Elucubrando sobre quais seriam as
hipotéticas gralhas do original, pensei que poderia haver dois sentidos no contexto dado:
“virxe sosáina e sen seiva” ou “virxe sosáina e serva”. Com ambas as interpretações, Otero
transmite uma visão paternalista a respeito da América em comparação com outros países ou
povos, sobretudo europeus. Escolhemos a interpretação de sen seiva porque nos pareceu mais
convincente por diversos motivos: a translineação teria sido diferente (ser- / va), a relação
semântica entre sosáina e sen seiva é clara e, por último, o termo seiva (ou saiva) era
conhecido e usado por Otero Pedrayo99 e os membros da geração Nós.

TF: esprimentábase posto dinamecamente no deveñir do Cosmos desque descobrira a


propia realizada aliada a outra realidá da Galicia. [p. 150]
TA: experimentava-se situado dinamicamente no devir do cosmos desde que descobriu a
própria realidade aliada à outra realidade da Galiza100

Trata-se de mais um caso de interpretação derivada do que julgo ser uma clara
vacilação morfológica, típica de Otero Pedrayo, junto com uma gralha ortográfica. Havendo
poucas alternativas a esta leitura, esta foi a decisão que tomámos.

Alguns casos de interpretação propriamente dita são os que menciono a seguir. Não há
aparentemente gralhas nem um contexto ambíguo. O difícil é saber o sentido preciso que
Otero Pedrayo queria transmitir.

TF: burgués de vivir rematado, de curva pechada. [p. 46]


TA: burguês de viver consumado, de curva fechada.

98 Tomoesta interpretação da 7ª edição (1991) de Arredor de si.


99 Consultado lema “seiva”: Santamarina, Antón (coord.): Tesouro informatizado da lingua galega. Santiago
de Compostela: Instituto da Lingua Galega. <http://ilg.usc.es/TILG/> [Consultado: 1 de agosto de 2015].
100Tomo esta interpretação da 5ª edição (1985) de Arredor de si.

214
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: Adrián albiscando unha eirexa románeca traballaba com'un buxo campesío. [p. 104]
TA: Adrián, ao avistar uma igreja românica, sentia-se como um buxo campestre.

TF: Tecendo ideas arredor de Mad. Stäel [...]. Adrián trazaba as duas fuxidas opostas: [p.
121]
TA: Tecendo ideias à volta de Madame de Staël [...], Adrián traçava as duas fugas opostas:

TF: o que sentira baixo si a curva latexante do millor anaco do praneta [p. 149]
TA: o que sentira sob si a curva latejante do melhor pedaço do planeta

No primeiro e no último caso, mantenho uma tradução literal. Não saberia explicar o
sentido exacto de curva pechada no primeiro, mas é possível ver-se uma referência às 'curvas
da vida', como se para um burguês a vida fosse já muito previsível. No último par, intuo que
curva seja “terra, território”, aqui com maior clareza. No caso de traballaba com'un buxo
campesío, traduzi o verbo por “sentia-se”, porque o contexto informa a seguir: Lembrouse do
seu apellido románeco: Solovio. Uma possível interpretação estabeleceria uma relação entre a
igreja românica, o buxo e o apelido românico: a igreja e o apelido estão ligados pela
referência a um passado latino e espiritual, os quais também se podem relacionar com o buxo,
arbusto de crescimento lento que produz uma madeira nobre de grande dureza, símbolo de
força e permanência. Também percebo que esse traballaba é metafórico e não literal. Otero
refere-se a um trabalho interior, mental e emocional, do personagem que se esforça por se
vincular à sua identidade galega. Por último, em Tecendo ideas, par já comentado antes
(secção 3.2), interpreto um ponto como uma vírgula, formando uma única oração.

Numa outra passagem diferente, Otero está a caracterizar os dois irmãos, Adrián e
Xacobe, personagens antagónicos no romance. Xacobe é desportista e moderno, enquanto que
Adrián era estrano e sofrente.

TF: Non xogaba com'os nenos. [p. 58]


TA: Não jogava como os rapazes.

A meu ver, o contexto não é o da infância de Adrián e Xacobe, mas o do presente


narrativo de dois jovens de 25-30 anos e 17 anos respectivamente. O verbo xogaba também é
conflituoso: pode ser traduzido como brincava ou jogava (referido a “jogar futebol”, desporto
mencionado antes). Pensei na hipótese de traduzir “Nunca tinha brincado como os meninos”,

215
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

onde se poderia perceber que já na infância Adrián não se tinha conseguido adaptar à vida
rural. No entanto, nada no contexto leva a pensar assim, a não ser a palavra nenos, que parece
não encaixar com a idade do jovem Adrián do relato. Resolvi este problema traduzindo
literalmente, excepto nenos que passei para “rapazes”.

Já foi comentada na secção 1.3.1 a interpretação de “Xa nin zume” (p. 29), onde zume
é entendido como “essência”, “substância”. Outro termo, illó, também levantou dúvidas:

TF: Un illó de sombra cobria unha pequena praza escura. Un illó de sombra entr'as rúas
alombadas [p. 30]
TA: Uma ilha de sombra cobria uma pequena praça escura. Uma ilha de sombra entre as
ruas alombadas.

Interpretamos simplesmente illó como “ilha” (pequena), o que parece encaixar no


contexto de forma metafórica, embora não deixe de ser uma interpretação nossa. Illó também
se encontra dicionarizado com o significado de “pântano”, mas essa acepção não parece ser a
que aqui é utilizada.

As edições galegas mais recentes de Arredor de si têm mantido um erro de


interpretação derivado de uma gralha da segunda edição:

1ª ed.
de cando o lobo tivo rubido ô albre o señor Cremente qu'entón era un mociño riseiro
[p. 20]

2ª ed.
de cando o lobo tivo rubido ao albre, do señor Cremente que entón era un mociño
riseiro
5ª ed. de cando o lobo subiu á árbore do señor Clemente que entón era un mociño riseiro

7ª ed.
de cando o lobo estivo subido á árbore do señor Clemente, que entón era un mociño
riseiro
Online de cando o lobo estivo subido á árbore do señor Clemente, que entón era un mociño
2012 riseiro

TA:
de quando o lobo obrigou o senhor Cremente a ficar em cima de uma árvore, ele que
naquela altura era um mocinho risonho

A oração da primeira edição não parece muito bem ordenada. Se a restruturarmos e


pontuarmos, o sentido da oração fica bem mais claro: de cando o lobo tivo o señor Cremente,
qu'entón era un mociño riseiro, rubido ô albre. Portanto, quem sobe à árvore é o senhor
Cremente, para fugir do lobo. A segunda edição é a que menos adaptações realiza a partir do

216
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

texto original de 1930. Porém, neste caso cria uma confusão: pelo menos as edições 5ª, 7ª e a
electrónica para leitura online de 2012, todas da editora Galaxia, perpetuam uma gralha e
tentam reinterpretar tivo rubido de diferentes maneiras.

Se me fosse permitido opinar acerca de algum aspecto estilístico mais fraco do


romance, do ponto de vista do tradutor, este seria a indefinição que por vezes observei entre as
vozes do narrador omnisciente e do protagonista, Adrián. Tive a impressão de que o narrador
se imiscuía no relato, lançando piscadelas ao leitor, como opiniões dissimuladas. Do ponto de
vista da crítica, esta ingerência faz todo o sentido, pois o triângulo narrador-protagonista-autor
tem sido uma das chaves para a interpretação deste romance mais estendidas. Mas para o
tradutor representa um problema intepretativo mais. Por meio de um uso mais preciso, ou até
sagaz, das aspas para indicar os pensamentos interiores do protagonista, o resultado poderia
ter ganhado muito em clareza e perspicácia. Vejamos alguns exemplos:

TF: ¿Porqué o Ateneo garda a Galería de Retratos? Un cemiterio. [p. 20]

O narrador faz uma pergunta retorica a si próprio e a seguir atreve-se a comentar,


revelando uma opinião sobre os retratos do ateneu de Madrid. O tradutor não pode fazer nada
aqui senão respeitar o original.

A certa altura o narrador diz: Aquila noite Adrián maxinaba outra Francia. E começa
a tecer considerações sobre a França e o seu racionalismo: Razonalismo da Revolución e do
Imperio: da Enciclopedia.

Pois aquila figuranza fuxía: un bouquet de frores e de follas púñase no seu lugar. [p.
TF:
110]

O uso da conjunção pois neste contexto confere ao narrador um certo carácter


opinativo e coloquial, que não julgo compatível com a função do mesmo no conjunto do
romance, até sendo um narrador omnisciente. A decisão tomada foi a de traduzir pois por “no
entanto”, onde se realça mais o sentido adversativo. Otero Pedrayo utiliza este pois em mais
ocasiões, nomeadamente na página 145, onde aparece duas vezes.

Num momento sumamente importante, a poucas linhas de finalizar o romance, onde se


apresentam aspectos narrativos e ideológicos transcendentais, o narrador exclama:

217
Estudo descritivo da tradução para português de Arredor de si

TF: ¡Que uso cróneco e crudel se fai da palabra fermosa entre todas, de nación! [p. 151]

À partida, resulta surpreendente esta tomada de posição do narrador, mas na realidade


não sabemos se é o narrador, se é o autor ou se é o protagonista quem exclama. As aspas
deixariam tudo mais claro.

Por último, gostaria de justificar a interpretação e escolha do título dado à tradução:


“Ao redor de si”. O romance termina assim no original: Pois a Galiza [...] deixoú de andar,
com'unha cega, arredor de sí. A expressão arredor de si pode ser lida em sentido literal
(“dando voltas em torno de”) como em sentido figurado (“pensando, magicando, cismando”).
A partir do reconhecimento literário dado a este romance de Otero Pedrayo, a locução galega
arredor de adquiriu grande presença social e uso. Assim, em referência ao romance oteriano,
Camilo Gonsar publicou em 1995 Arredor do non. Esta mesma locução aparece como título
de trabalhos académicos em galego com um sentido figurado, sinónima de “acerca de, sobre”.
A expressão galega tem associado, portanto, um peso e significado sociocultural importante,
ausente em português. A locução prepositiva portuguesa “à volta de” (sinónima de “ao redor
de”, “em redor de” e “em torno de”) talvez tenha maior frequência de uso em português do
que estas últimas. No entanto, sendo possível, como de facto é, manter este elo referencial,
julguei que seria sensato utilizar “ao redor de”, estabelecendo uma ponte que permita ligar a
tradução ao original e, assim, caso algum leitor ou leitora tenha interesse, poder aprofundar e
compreender melhor a cultura galega em toda a sua extensão e diversidade.

218
4. CONCLUSÕES
Conclusões

Ramón Otero Pedrayo, nascido em 1888, é um dos vultos da literatura galega do


século XX. Quando tudo estava por fazer, este intelectual ourensano decide dedicar-se de
corpo e alma às letras em galego, atingindo os cimos de uma narrativa que, com ele,
conseguia sair das trevas. Após o seu ingresso nas Irmandades da Fala em 1917, não deixará
de escrever e participar na vida cultural e política do seu tempo até 1936, quando começa a
Guerra Civil espanhola.

Traduzir Arredor de si (1930) para português teve como implicação lógica ter um
conhecimento aprofundado acerca do autor. No primeiro capítulo desta tese apontámos os
aspectos mais relevantes da vida, obra e pensamento do autor, destacando as coincidências
que levaram a crítica a destacar o carácter autobiográfico do romance, mas também
mencionando outros que nenhuma relação têm com a biografia do autor.

Consciente das carências linguísticas e literárias galegas, Otero empenha-se em erigir


uma obra pessoal para a qual escolhe por ferramenta uma língua diferencialista a respeito do
castelhano, tratando de salientar tudo o que julga específico do galego. Otero recorre a
diferentes estratégias: a criação de palavras inexistentes na língua comum, o hipergaleguismo,
o vulgarismo, a sufixação diferencial, metáforas, arcaísmos e lusismos, entre outros. Apesar
de usar uma expressão muito rica e enxebre, foram feitas muitas críticas às suas carências
formais, aos seus lapsus calami e à ausência de revisão das suas obras. Apresento também a
hipótese de que a língua de Otero possa partilhar características com a de outros autores do
primeiro terço do século XX, embora se trate de um estudo por fazer.

Em opinião de Venâncio (2007), o diferencialismo linguístico, que deixou uma forte


pegada nas décadas de 1920 e 1930, pervive ainda hoje na pena de muitos escritores e das
pessoas que se preocupam pela expressão em língua galega, mesmo existindo uma norma
linguística mais definida. Este facto tem muita importância do ponto de vista tradutológico,
dado que o tradutor ou tradutora deve ser conhecedor desta complexa relação linguística e
sociolinguística entre galego e castelhano, tentando desemaranhar fios estreitamente
enredados. A inexistência desta consciência diferencialista nas sociedades lusófonas torna a
percepção da nossa tradução muito mais neutra.

Para a minha tradução para português foi fundamental obter o maior número de dados
relativos a Arredor de si: conhecer as interpretações que foram feitas até ao dia de hoje e

221
Conclusões

entender o estilo lacónico deste romance lírico, tudo o qual contribuiu para abrir portas à
compreensão do mesmo. Também foi essencial ter consciência de que houve várias e
diferentes edições deste romance, bem como uma tradução para inglês publicada em 2007.
Circling foi o título que a sua tradutora, Kathleen March, lhe deu.

A análise de aspectos de língua específicos de Arredor de si foi fundamental para a


tradução e pode ser de utilidade para qualquer leitor, estudioso, crítico ou tradutor de Otero,
dado que muitas das características apontadas se repetem em outros textos seus. Nesta análise
observámos o diferencialismo, o castelhanismo, as vacilações, o dialectalismo e outras
características. Do seu diferencialismo salientámos o léxico diferencial, as hipercorrecções, os
vulgarismos e a ortografia divergente. Apesar de querer desmarcar-se do castelhano, são
abundantes as palavras e expressões importadas desta língua. Listámos também os termos em
que há vacilação, sendo utilizadas duas ou mais formas no romance. Por último,
mencionámos a escassez de marcas dialectais e outras características como o uso do sufixo
-eiro, a substantivação de infinitivos, o uso do dativo de solidariedade e as repetições lexicais
em contextos próximos.

Comecei o segundo capítulo apresentando a questão da necessidade da tradução


galego-português para, logo a seguir, realizar uma descrição tradutiva de algumas páginas das
adaptações em língua portuguesa de Sempre en Galiza de Castelao (1944) e de Os Probes de
Deus de Amado Carballo (1925). Concluímos que nestas versões em português existe uma
tendência para se manter o mais perto possível do texto-fonte, concentrando-se, portanto, no
pólo da adequação, em termos de Toury (1995), e atribuindo ao texto-alvo um cariz
funcionalista. No entanto, por vezes houve distanciamentos desta matriz inicial: foram
realizados deslocamentos tradutivos relativos a questões culturais, lexicais e estruturais,
operações que estão mais próximas do pólo da aceitabilidade.

A minha tradução de Arredor de si deu prioridade à recepção na cultura-alvo, sem


considerar a língua-fonte elemento prioritário ou condicionante. Quanto à questão da distância
temporal do texto-fonte, a língua galega que foi usada no início do século XX obriga o
tradutor de hoje a decidir se deve ou não manter um matiz arcaico na sua tradução. A nossa
escolha na tradução foi recorrer a uma língua portuguesa da actualidade. Estas decisões estão
ligadas à conveniência da tradução da narrativa galega, expressada por diversos autores
(Venâncio, Viale Moutinho, José Saramago), a fim de que os destinatários aceitem melhor o

222
Conclusões

texto final. Se a base da funcionalidade para realizar as versões em português de Sempre en


Galiza e Os Probes de Deus foi tornar explícito o forte elo linguístico-textual entre a escrita
em galego e a portuguesa, a nossa concepção alicerçou-se na aceitabilidade e na fluência de
leitura, realizando as operações tradutivas necessárias para atingir este objectivo.

Em uma análise polissistémica da tradução galego-português, fica patente que, em


grande medida, as obras do sistema literário galego são, na actualidade, mediadas pelo
sistema espanhol: a literatura galega perde a sua identidade referencial e cultural e, em muitas
ocasiões, o castelhano serve de língua-ponte. Argumentamos que seria muito benéfica uma
relação intersistémica directa com qualquer um dos diferentes polissistemas lusófonos, sem a
mediação de outros, para a valorização mútua das culturas e para os receptores de língua
portuguesa. A hipótese que defendemos, para a qual apresentamos argumentos de diversos
autores, é que, por meio de traduções que privilegiassem a aceitabilidade, poderia ser
suscitado e aumentado o interesse de outros sistemas literários pela literatura galega, o qual,
por sua vez, poderia servir também para uma nova releitura galega.

Em termos de Venuti (1995), a estratégia que adoptámos é relativamente


domesticadora: desejamos que a tradução seja aceite em um polissistema com uma tendência
para a domesticação no século XXI, mas ao mesmo tempo esperamos que se mantenham
referências à procedência de uma constelação linguístico-cultural complexa do primeiro terço
do século XX. Deparámo-nos com aspectos culturais de difícil tradução e com passagens que
foi necessário interpretar. Sob esta focagem, fazemos com que uma obra literária como
Arredor de si possa ser questionada de um novo ângulo e favorecemos o surgimento de
leituras modernas de autores clássicos galegos, visto que a sua interpretação não será a mesma
nos diferentes territórios lusófonos ou na Galiza. Os procedimentos explicitadores tiveram
relação com as notas do tradutor e com a interpretação de certas passagens, como, por
exemplo, saber se há uma intervenção do narrador ou do protagonista devido às múltiplas
gralhas tipográficas e às ausências de aspas. Os procedimentos de normalização foram
variados: pontuação, construção oracional, léxico com diferente frequência de uso e
repetições em contextos próximos. Julgo que em nenhum momento se altera a mensagem
literária de Otero Pedrayo nem os seus valores estilísticos, pelo menos de uma forma
relevante.

A tradução, segundo Snell-Hornby (1988), pode ser definida como uma interacção

223
Conclusões

entre duas culturas. Este diálogo intercultural vê-se muito influído pelos interesses comerciais
e as fronteiras políticas, esquecendo muitas vezes que o produto não é o único importante. Os
sujeitos, as pessoas que efectivamente recebem estes produtos culturais, devem ocupar uma
posição central. A ideologia é um dos aspectos capitais da cultura: por exemplo, as diferenças
ideológico-ortográficas na Galiza não coincidem com as existentes em Portugal no momento
presente. O apelo à ética do tradutor tem grande influência sobre a sua forma de interpretar e
traduzir as obras de uma determinada literatura. Muitos autores afirmam que, de uma forma
ou de outra, o tradutor aparece sempre por trás do texto traduzido. Neste diálogo entre
culturas, a nossa posição baseia-se na centralidade do receptor e da leitura que este realiza,
oferecendo um texto-alvo tão espontâneo e fluente quanto possível.

Na minha proposta de tradução de Arredor de si não tive em conta possíveis


constrangimentos editoriais. Ao traduzir, tive sempre em mente os objectivos literários de
Otero Pedrayo e os receptores da cultura-alvo de língua portuguesa. Contrastei soluções
tradutivas com Circling, a tradução em inglês do romance, havendo algumas divergências,
nomeadamente no uso das notas do tradutor. Uma importante diferença reside em que a
tradução para inglês se baseou na segunda edição de Arredor de si, de 1970. A tradutora,
Kathleen March, concentrou-se na transmissão da mensagem acerca da busca de uma
identidade, sem sentir a necessidade de produzir uma tradução domesticadora.

Julgo que muitas das dificuldades do processo de tradução são compartilhadas com as
hipotéticas dificuldades de recepção do texto traduzido: língua e estilo do autor,
hiper-referencialidade, distância cultural, distância temporal, estranheza linguística e literária.
Os destinatários da tradução poderão sentir dificuldades também em dois âmbitos: as
diferenças entre sistemas literários e o desconhecimento da sociedade galega por parte de
leitores em língua portuguesa. Já para o tradutor, outros entraves acrescidos foram os
seguintes: a fase por que estava a passar a língua e literatura galegas, a compreensão e
interpretação de certas passagens e os problemas derivados de diferentes edições do texto
original.

Desde o início, determinei que a primeira edição, de 1930, seria tomada como
texto-fonte para a tradução, o que resultou ser uma decisão transcendental dado que foram
praticadas muitas alterações ao texto de Arredor de si nas edições seguintes. Para uma
compreensão global do romance foram essenciais também outras obras narrativas de Otero

224
Conclusões

Pedrayo e ensaísticas, como a de Villares (2007), baseada na figura de Adrián Solovio, ou a de


Quintana e Valcárcel (1988), sobre o conjunto de vida, obra e pensamento oterianos, sem se
circunscrever à figura do Otero literato.

As ideias e experiências que apresento poderão ser de utilidade para outras possíveis
traduções. Refiro-me especificamente às traduções para português que têm como texto-fonte
autotraduções que autores galegos realizam para castelhano. O texto-alvo produzido através
de traduções mediadas será inevitavelmente uma visão parcial, pelo que se poderão perder
muitos dos matizes do original galego.

No que diz respeito aos referentes culturais, optámos por três soluções em função de
diversos factores: conservação (por exemplo, tostado, tipo de vinho), tradução (p. ex., estadea
> pt. “assombração”) ou uma posição intermédia (p. ex., praza d'Oriente > “Praça de
Oriente”), onde um elemento é traduzido e o outro não. As referências religiosas também
foram abordadas com especial cuidado: Otero Pedrayo teve o catolicismo como fulcro da sua
ideologia e em Arredor de si o protagonista, Adrián Solovio, também procura a sua identidade
por meio da religião e de figuras e pensadores do cristianismo.

As menções de uma sociedade onde os veículos a motor já imperam são frequentes ao


longo de toda a obra. No entanto, os usos linguísticos do autor colocam dúvidas, como o seu
uso de coche, auto e automóvil com diferentes sentidos. Estas referências estão inseridas
numa época histórica concreta que difere muito do presente. Para compreender melhor os
possíveis sentidos e valores sociais da década de 1920 na Europa foi essencial o uso das
tecnologias da informação e comunicação, entre muitas outras utilidades que teve.

No capítulo terceiro abordei o estudo descritivo das questões mais relevantes da


tradução de Arredor de si: pontuação, divisão em parágrafos, antropónimos, topónimos,
formas de tratamento, fraseologia, falsos amigos, estrangeirismos, intertextualidade, notas do
tradutor, deslocamentos tradutivos, explicitações, normalização estilística, correcções e
dificuldades de interpretação.

Em primeiro lugar, quero apontar que as gralhas presentes na primeira edição


suscitaram muitas e diferentes dúvidas que afectaram de diversas maneiras à tradução. A
pontuação foi uma delas, visto que é bastante precária e leva a confusões. A estratégia seguida
foi simplesmente a de interpretar o sentido do texto-fonte e pontuar de acordo com as regras

225
Conclusões

da língua-alvo. A maior parte dos casos levou à inclusão de sinais de pontuação ou à alteração
dos sinais utilizados pelo original. Vírgulas, aspas e travessões foram os sinais mais
frequentemente afectados.

A primeira edição não realiza uma divisão em parágrafos moderna. Muitas páginas
apresentam moles de texto corrido que tratam assuntos diversos sem qualquer separação
gráfica. A segunda edição realizou uma divisão do texto em parágrafos que serviu de
referência para todas as posteriores edições galegas. Guiei-me pelas divisões da edição de
1991, mas houve algumas ocasiões em que discordei das mesmas.

Quanto aos antropónimos, mantive os nomes de personagens utilizados pelo autor,


unificando em alguns casos aqueles para os quais se empregavam variantes: Xacobe / Xaboco,
Florinda / Frorinda / Frolinda. As primeiras formas foram as escolhidas. No que diz respeito
às personagens históricas, optei pelas designações tradicionais em português como Carlos
Magno ou Filipe II. Outros nomes, grafados erradamente, foram simplesmente corrigidos.
Com os topónimos, mais abundantes no romance, procedemos da mesma maneira, desde que
houvesse tradição em português europeu: Amberes (“Antuérpia”) ou Rhin (“Reno”).

Os nomes de arruamentos, a maior parte dos quais pertencentes à cidade de Madrid,


deram lugar a uma estratégia tradutiva intermédia: por exemplo, rúa de Peligros foi traduzida
como “Rua de Peligros”. O primeiro termo é vertido para português e o segundo, identificador
do topónimo, mantido como no original. Otero Pedrayo galeguiza apenas o nome de uma rua:
calle do Desengano, que foi traduzida como “Rua do Desengaño”. Por outro lado, também se
verificam vacilações na designação de arruamentos, como o castelhano calle de que convive
com rúa de.

O uso do artigo definido com antropónimos e topónimos é totalmente assistemático.


Dado que não conseguimos interpretar nenhum significado nestas vacilações contínuas,
optámos pelo uso corrente em língua portuguesa: por exemplo, Galiza sempre com artigo
definido feminino e os nomes de personagens sempre sem artigo, se fazem parte do texto do
narrador omnisciente. Em um único contexto, uma intervenção dialogada de um personagem,
é utilizado na tradução “o Adrián”.

As formas de tratamento também foram traduzidas consoante o contexto: don e doña


tiveram traduções diversas. Señorito e señorita são formas de tratamento que, devido aos

226
Conclusões

contextos, podiam levar a ambiguidades, pelo que preferi mantê-las acrescentando uma nota
de rodapé na primeira aparição de cada uma delas.

Otero Pedrayo não utilizou provérbios em Arredor de si, mas recorreu em muitas
ocasiões a unidades fraseológicas diversas, bastantes provenientes do castelhano, as quais
galeguizou. Na tradução, tentei fazer uso de expressões idiomáticas com a mesma frequência
que no romance, ainda que nem sempre foi possível.

Quanto aos falsos amigos, o seu número foi muito abundante, como era de esperar.
Reuni-os em cinco grupos: comuns, oterianos, de uso, casos especiais e gramaticais. Os falsos
amigos comuns são os mais conhecidos e esperáveis. Se o contexto é claro, as soluções
tradutivas são fáceis, como no caso de verba (“palavra”). Os falsos amigos oterianos em
Arredor de si têm relação com as escolhas lexicais do autor: campía (“campo”) ou figurar
(“parecer”) são opções diferenciais com as quais Otero tenta evitar um uso demasiado
próximo do castelhano. Alguns destes falsos amigos resultaram muito problemáticos, como
noxo e noxento. Os falsos amigos de uso costumam ser palavras em que o sentido genérico é
partilhado mas a sua frequência de uso ou certos matizes levam a compreensões diferentes.
Um caso típico é o de fermoso, cujo uso habitual em galego o aproxima mais de “bonito” ou
“belo”, consoante o contexto, ficando distante de um “formoso” poético. Os casos especiais
têm a ver com falsos amigos que não se incluem nas restantes categorias ou que se
apresentam em contextos específicos. Por último, os falsos amigos gramaticais estiveram
relacionados com o infinitivo conjugado, o futuro do conjuntivo, os pretéritos mais-que-
perfeitos, o pretérito perfeito simples e a regência verbal.

O uso de estrangeirismos foi uma questão complexa: diversas línguas estrangeiras


(alemão, francês, inglês, italiano e latim), diversos significados associados às mesmas e
diversas tipografias, além de gralhas, vacilações e incorrecções no original. O estrangeirismo
é usado deliberadamente pelo autor como elevador do estatuto social do galego, sentido que é
impossível de transmitir na tradução. Exceptuam-se castelhano e português, que são
integrados na língua do autor, quer consciente quer inconscientemente. Os lusismos, em
alguns dos quais se advertiram erros, foram escassos.

A intertextualidade foi entendida aqui como a presença de textos de outras obras que
são utilizados no romance. Das onze ocorrências, dez foram mantidas nas suas respectivas

227
Conclusões

línguas, como figuravam no original, e apenas a citação de um versículo bíblico foi traduzido
para português.

A problemática à volta das notas do tradutor foi a de mais difícil solução, do meu
ponto de vista. Isto foi devido ao carácter erudito da prosa oteriana em Arredor de si:
abundantes e contínuas referências culturais, algumas de interesse apenas para as pessoas que
viveram na época histórica em que o romance veio a lume, outras que servem de chave para
uma compreensão aprofundada da mensagem do romance e do pensamento do autor. Tendo
como base o critério da aceitabilidade, em termos tradutológicos, e levando em linha de conta
as normas (Toury, 1995) da hipotética cultura-alvo (Portugal), fiz uso do menor número
possível de notas: em rodapé nos casos de opacidade linguística e idiosincrasia cultural
(Donaire 1991), no fim do romance nos casos de referência cultural muito indirecta,
dificilmente decifrável por parte de um leitor. Em quinze ocasiões foi possível explicitar
algumas referências culturais no corpo do texto, como em de Cacheiras (“da aldeia de
Cacheiras”). O número total de notas (13 em rodapé e 41 finais) é indício de que a solução
adoptada foi a de uma via intermédia entre a escassez absoluta e a profusão explicativa.

No respeitante aos deslocamentos tradutivos, estes relacionam-se com os sentidos


dados à língua galega por Otero (valor do estrangeirismo e do diferencialismo), impossíveis
de transmitir na tradução. Noutros casos, é o próprio sentido de algumas expressões, como
Estado Español, que, por meio de uma simples tradução literal, não carrega o mesmo peso
histórico-político para o leitor em língua portuguesa que para o leitor galego. Também não foi
possível verter em português os dativos de solidariedade e de interesse do galego, embora
estas omissões estivessem claramente compensadas pelos contextos em que aparecem.
Igualmente, recorri à generalização, atenuação ou neutralização com alguns termos culturais
específicos que foram traduzidos de forma mais genérica e menos conotativa, tendo uma
importância limitada no conjunto do romance.

As explicitações e amplificações realizadas prendem-se com contextos ambíguos ou


com as necessidades da língua portuguesa de realizar ajustes lexicais (p. ex., muros
entoxados, “muros cheios de tojo”), estruturais (p. ex., Porque nascín fidalgo?, “Porque é que
nasci fidalgo?”) ou enfáticos (p. ex., onde sexa, “lá onde for”).

Os procedimentos de normalização estilística tiveram relação com as repetições

228
Conclusões

lexicais do autor que julguei injustificadas. Estas repetições não seriam sentidas como
escolhas adequadas no texto-alvo, o que me levou a evitá-las tanto quanto me foi possível.
Também tive de alterar uma estrutura oracional (sujeito posposto ao verbo principal) que
Otero utiliza de forma abundante sem lhe acrescentar um valor especial.

As correcções que realizo estão vinculadas aos estrangeirismos, como já foi indicado,
e às referências culturais que Otero menciona confiando na sua memória, sem as confirmar
posteriormente. Lamentavelmente, são erros que permanecem em todas as edições galegas do
romance.

Por último, abordo a questão das interpretações que, como tradutor, tive de realizar.
Tiveram relação com gralhas, expressões crípticas, termos ou contextos pouco claros bem
como a sobreposição das vozes do narrador, do protagonista e do autor. Por último, justifico a
escolha do título dado à tradução: “Ao redor de si”.

À guisa de resumo, julgo humildemente que a presente tese poderá ter diversas
utilidades e repercussões, como as seguintes:
• são realçadas as particularidades da narrativa e da língua oteriana, oferecendo novos
dados à crítica literária,
• é destacada a qualidade e a especificidade da literatura e da língua galega,
nomeadamente a do primeiro terço do século XX,
• realiza-se um novo contributo para os estudos de tradução, nomeadamente os
descritivos, apoiados em Toury,
• contribui-se para os estudos de tradução entre línguas próximas no âmbito das
literaturas de expressão galega e lusófona, sendo identificadas dificuldades tradutivas
no par de línguas galego-português (por exemplo, os falsos amigos, o uso de notas de
rodapé ou os deslocamentos tradutivos realizados),
• contribui-se para o ensino-aprendizagem de galego e/ou português oferecendo uma
análise de uma tradução literária onde ficam patentes diferenças linguísticas (por
exemplo, na fraseologia ou nas formas de tratamento) e de uso (por exemplo, em
tempos verbais como o futuro do conjuntivo ou o pretérito mais-que-perfeito; os falsos
amigos com frequências de uso inversas),
• contribui-se para o debate linguístico e cultural na Galiza (por exemplo, no que diz

229
Conclusões

respeito à interferência do castelhano na escrita literária galega) como também na


Lusofonia (o grau de proximidade linguística entre galego e português ou o grau de
intercompreensão entre falantes ou leitores de galego e de português),
• são questionadas certas práticas editoriais de tradução da literatura galega,
nomeadamente as que se baseiam em traduções mediadas pelo castelhano, que
invisibilizam a autêntica procedência cultural de obras literárias,
• são questionados os procedimentos de autotradução de galego para castelhano, uma
vez que os seus produtos, saídos da pena dos próprios autores, podem vir a ter maior
difusão e relevância do que os próprios originais em galego, sendo assim integrados na
literatura espanhola e em espanhol de forma genérica,
• contribui-se para a divulgação da literatura e cultura galegas em Portugal e no resto
do mundo lusófono.

A publicação da tradução traria benefícios evidentes, colmatando uma lacuna de


conhecimento da literatura galega do século XX, de um autor e de uma obra fundamentais. A
sua circulação em novos territórios, visando novos destinatários, constitui um contributo para
o diálogo entre os sistemas literários lusófonos receptores e o da cultura de partida.
Outrossim, na sequência desta hipotética publicação, poderá surgir uma nova, necessária e
saudável análise descritiva, estudando e questionando as soluções tradutivas oferecidas e
descritas nesta tese.

230
5. BIBLIOGRAFIA
Bibliografia

ALLEGUE LEIRA, Alberto e Carme FERNÁNDEZ PÉREZ-SANJULIÁN (2014): “Á volta


do cosmopolitismo: unha lectura de Arredor de si como intervención”. Madrygal (Madr.) , 17:
13-25.

ALONSO MONTERO, Xesús (2004): “O escritor galego e o problema da lingua”. Álvarez


Blanco, Fernández Rei e Santamarina (eds.), A lingua galega: historia e actualidade. Actas
do I Congreso Internacional, Santiago de Compostela, 16-20 de setembro de 1996. Santiago
de Compostela: Consello da Cultura Galega - ILG, vol. II: 9-24.

ÁLVAREZ BLANCO, Rosario (1988): “Escribir en galego: Otero Pedrayo”. Otero Pedrayo
na Revista “Nós” 1920-1936 (Escolma). Santiago de Compostela, Servicio de publicacións e
intercambio científico da Universidade de Santiago de Compostela: 9-23.

ÁLVAREZ BLANCO, Rosario (2002): “O don da palabra”. Xunta de Galicia - Consellería de


Cultura, Comunicación Social e Turismo, Dirección Xeral de Promoción Cultural, Xornadas
sobre Otero Pedrayo. Santiago de Compostela, Tórculo Artes Gráficas: 201-215.

AMADO CARBALLO, Luís (1925): Os Probes de Deus. Corunha, Lar.

AMADO CARBALLO, Luís (1970): Os Probes de Deus. Vigo, Edicións Castrelos.

AMADO CARBALLO, Luís (2002): Os Probes de Deus. Vigo, A Nosa Terra.

AMADO CARBALLO, Luís (2011): Proel e O Galo. Sant Cugat del Vallès, Edições da
Galiza [Adaptação em ortografia portuguesa de Isabel Rei Samartim].

BALIÑAS, Carlos (1991): Descubrindo a Otero Pedrayo. Santiago de Compostela,


Fundación Universitaria de Cultura.

BALTRUSCH, Burghard (2008): “Tradución e nación. Galicia entre a lusofonía e o


posnacionalismo”. Grial n.º 179: 60-67.

233
Bibliografia

BALTRUSCH, Burghard (2010): “A para/tradución cultural: Galiza e a Lusofonía”. Burghard


Baltrusch, Gabriel Pérez Durán, Kathrin Sartingen (eds.), Soldando Sal: Galician Studies in
Translation & Paratranslation. Munique, Martin Meidenbauer Verlag: 53-72.

BASTIN, Georges L. (2009): “Adaptation”. Mona Baker (ed.), Routledge Encyclopedia of


Translation Studies. Londres e Nova Iorque, Routledge: 3-6.

BAXTER, Robert Neal (2004): “«Não te falo como um irmão» ou a nec(ess)idade da tradução
intralinguística: o caso do galego-português”. Carlos Garrido (org.), Ferramentas para a
traduçom. Ourense, Associaçom Galega da Língua: 127-141.

BOURDIEU, Michel (1991): “Le champ littéraire”. Actes de la recherche en sciences


sociales. Vol. 89: 3-46. Em: <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/
arss_0335-5322_1991_num_89_1_2986> (Consulta: 03/03/2015).

CARBALLEIRA, Juan (1930): “Panorama Intelectual de Ramón Otero Pedrayo”. El Pueblo


Gallego, 02/03/1930. Em: <http://galiciana.bibliotecadegalicia.xunta.es/gl/publicaciones/
numeros_por_mes.cmd?idPublicacion=215&anyo=1930> (Consulta: 14/07/2015).

CARBALLO CALERO, Ricardo (1976): “Sobre el uso literario de la palabra esgrevio”.


Verba, nº 3: 35-44. Em: <https://dspace.usc.es/bitstream/10347/3001/1/pg_037-046_
verba3.pdf> (Consulta: 31/07/2015).

CARBALLO CALERO, Ricardo (1977): “Otero Pedrayo: unha visión de Galicia”. Grial, n.º
56: 133-141.

CARBALLO CALERO, Ricardo (1981): Historia da Literatura Galega Contemporánea


1808-1936. Vigo, Editorial Galaxia.

CARDWELL, Richard (1990): “A traducción de Ulysses de Ramón Otero Pedrayo. A


Xeración Nós e a rexeneración cultural galega”. Anxo Tarrío Varela (coord.), Actas do
Simposio Internacional Otero Pedrayo no panorama literario do século XX. Corunha,

234
Bibliografia

Consello de Cultura Galega: 15-26.

CASARES, Carlos (1981): Otero Pedrayo. Vigo, Editorial Galaxia.

CASTELAO, Alfonso Daniel R. (2010): Sempre em Galiza. [Versão em português: Fernando


Vasquez Corredoira]. Associaçom Galega da Língua.

CASTELAO, Alfonso R. (1986): Sempre en Galiza. Vigo, Editorial Galaxia.

CASTRO DE MURGUÍA, Rosalía (2013): Cantares Gallegos. Xunta de Galicia, Parlamento


de Galicia, Consello da Cultura Galega. [Edição fac-similar da edição de 1863].

CUNHA, Celso e Lindley CINTRA (1990): Nova Gramática do Português Contemporâneo.


Lisboa, João Sá da Costa.

DASILVA, Xosé Manuel (2008): “Competencia bilingüe e autotradución en Galicia - Algúns


apuntamentos”. Idem, O alleo é noso. Contribucións para a historia da tradución en Galicia.
Noia: Toxosoutos, 379-393.

DASILVA, Xosé Manuel (2008): O alleo é noso. Contribucións para a historia da tradución
en Galicia. Noia, Toxosoutos.

DOMÍNGUEZ PÉREZ, Mónica (2008): Las traducciones de literatura infantil y juvenil en el


interior de la comunidad interliteraria específica española (1940-1980). Santiago de
Compostela, Universidade de Santiago de Compostela. [Tese de doutoramento]

DONAIRE FERNÁNDEZ, Mª Luisa (1991): “(N. del T.): Opacidad lingüística, idiosincrasia
cultural”. M.ª Luisa Donaire e Francisco Lafarga (eds.), Traducción y adaptación cultural:
España-Francia. Oviedo: Universidad de Oviedo, Servicio de Publicaciones: 79-91.

EVEN-ZOHAR, Itamar (1990): “Polysystem Studies”. Poetics Today, Vol. 11, n.º 1.

235
Bibliografia

EVEN-ZOHAR, Itamar (1997): “Factors and Dependencies in Culture: a Revised Outline for
Polysystem Culture Research”. Canadian Review of Comparative Literature, XXIV, 1: 15-34.

FERNÁNDEZ DEL RIEGO, F. (2000): Un epistolario de Ramón Piñeiro. Vigo, Editorial


Galaxia.

FERNÁNDEZ FREIXANES, V. (1976): Unha ducia de galegos. Vigo, Editorial Galaxia.

FERNÁNDEZ PÉREZ-SANJULIÁN, Carme (2003): A construción nacional no discurso


literario de Ramón Otero Pedrayo. Vigo, Edicións A Nosa Terra.

FERNÁNDEZ ROCA, X. A. (1976): “Algunhas anotacións pra un estudo crítido de Arredor


de si”. Grial n.º 52: 249-257.

FERNÁNDEZ RODRÍGUEZ, Áurea (2013): “A tradución do galego-portugués-galego a


debate. O intercambio cultural, unha fonte de riqueza necesaria”. Xesús M. Mosquera
Carregal (ed.), Lingua e Tradución: IX Xornadas sobre Lingua e Usos. Corunha, Servizo de
Normalización Lingüística, Servizo de Publicacións da Universidade da Corunha: 183-196.

FERNÁNDEZ VALDEHORRAS, Camilo (2001): “Cronobiografía (1988-1976)”. La Voz de


Galicia, 01/02/2001, Especial: 25 anos da morte - Ramón Otero Pedrayo - Arredor de sí.

FILGUEIRA VALVERDE, X. F. (1990): Con Otero Pedrayo. Vigo, Edicións do Patronato da


Fundación Otero Pedrayo.

FURUNO, Yuri (2005): “Translationese in Japan”. Eva Hung (ed.), Translation and Cultural
Change. Amsterdam-Philadelphia, John Benjamins: 147-160.

GARCÍA SENDÓN, Inma e Manuel GARCÍA SENDÓN (1991): “Edición, introdución e


notas”. Ramón Otero Pedrayo, Arredor de si. Vigo, Editorial Galaxia: 7-44.

GILLIES, Mary Ann (1996): Henri Bergson and British Modernism. Montreal, McGill-

236
Bibliografia

Queen's University Press.

GONÇALES BLASCO, Luís (1994): “Estudo crítico do léxico da ediçom [de] Os Camiños
da Vida”. Agália, n.º 39: 269-295.

GONÇALES BLASCO, Luís (1997): “A ediçom de Os Camiños da Vida feita por Ramón
Mariño Paz: como se destroça umha obra literária”. Agália, n.º 52: 387-413.

GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Manuel (1990): “A lingua de Otero Pedrayo”. Tarrío Varela, A.


(coord.) Actas do Simposio Internacional “Otero Pedrayo no Panorama Literario do século
XX”. Corunha, Consello da Cultura Galega: 345-348.

HERNÁNDEZ GUERRERO, María José (2002): “De la temporalidad en traducción”.


Sánchez Trigo, E. e Díaz Fouces, Oscar (eds.), Traducción & comunicación. Vigo,
Universidade de Vigo, Servizo de Publicacións: 67-88.

HONGWEI, Chen (1999): “Cultural differences and tanslation”. Meta: journal des
traducteurs / Meta: Translators' Journal, vol. 44, n.º 1: 121-132.

HURTADO ALBIR, Amparo (1990): La notion de fidelité en traduction. Paris, Didier


Érudition.

HURTADO ALBIR, Amparo (2011): Traducción y Traductología. Introducción a la


Traductología. Madrid, Cátedra.

KATAN, David (2009): “Culture”. Mona Baker (ed.), Routledge Encyclopedia of Translation
Studies. Londres, Routledge: 70-73.

LANDERS, Clifford E. (2001): Literary Translation: A Practical Guide. Clevedon,


Multilingual Matters.

LAVIOSA-BRAITHWAITE, Sara (2001): “Universals of translation”. Mona Baker (ed.),

237
Bibliografia

Routledge Encyclopedia of Translation Studies. Londres, Routledge: 288-291.

LEFEVERE, André (2003): Translation/History/Culture: A Sourcebook. Londres e Nova


Yorque, Taylor&Francis e-Library.

LÓPEZ SÁNDEZ, María (2008). “A importancia dos fenómenos de recepción para o impacto
social do texto literario. Dous casos paradigmáticos da literatura galega: Rosalía de Castro e
Otero Pedrayo.” Liquids: revista d'estudis literaris ibèrics, n.º 2.

LOURENÇO, Frederico (2013): A Odisseia de Homero adaptada para jovens. Lisboa,


Edições Cotovia.

LOUSADA DIÉGUEZ, Antón (1929): “Encol da prosa galega”. Revista Nós n.º 73: 2-8.

LYRA, Regina Maria de Oliveira Tavares de (1998): “Explicar é preciso? Notas de tradutor:
quando, como e onde”. Fragmentos, vol. 8, n.º 1: 73-87.

MANDIÁ, Diana (2010): “Éxito galego no Curdistán”. El País, 02/10/2010. Em:


<http://elpais.com/diario/2010/07/02/galicia/1278065909_850215.html> (Consulta:
11/04/2015).

MARCH, Kathleen (1983): “La conflictividad lingüística en Arredor de si de Ramón Otero


Pedrayo”. Cuadernos de Estudios Gallegos n.º 99: 363-390.

MARCH, Kathleen (1996): “Traducir Arredor de si”. Viceversa n.º 2: 189-194.

MARCH, Kathleen (2007): “Translator's Note”. Ramón Otero Pedrayo, Circling. Santiago de
Compostela, Amaranta Press: 7-9.

MARIÑO PAZ, Ramón (1994): “Edición, introducción e notas”. Ramón Otero Pedrayo, Os
Camiños da Vida. Vigo, Editorial Galaxia: 7-72.

238
Bibliografia

MEDEIROS, António (2006): Dois lados de um rio: nacionalismo e etnografias na Galiza e


em Portugal. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.

MONTEAGUDO, Henrique (2015): “Meu querido amigo e irmán: cartas de Castelao a Otero
Pedrayo”. Grial, n.º 205: 51-63.

OGANDO VÁZQUEZ, X. F. (2002): “Otero Pedrayo, orador”. Xunta de Galicia - Consellería


de Cultura, Comunicación Social e Turismo, Dirección Xeral de Promoción Cultural,
Xornadas sobre Otero Pedrayo. Santiago de Compostela, Tórculo Artes Gráficas: 255-280.

OTERO PEDRAYO, R. (1922): “Encol da aldeia”. Nós, nº 14: 1-7.

OTERO PEDRAYO, R. (1930): Arredor de si. Corunha, Nós.

OTERO PEDRAYO, R. (1953): O libro dos amigos. Buenos Aires, Ediciones Galicia do
Centro Galego de Buenos Aires.

OTERO PEDRAYO, R. (1970): Arredor de si. Vigo, Editorial Galaxia.

OTERO PEDRAYO, R. (1985): Arredor de si. Vigo, Editorial Galaxia.

OTERO PEDRAYO, R. (1990): “Unha confesión autobiográfica”. X. F. Filgueira Valverde,


Con Otero Pedrayo. Vigo, Edicións do Patronato da Fundación Otero Pedrayo: 12-17.

OTERO PEDRAYO, R. (1991): Arredor de si. Vigo, Editorial Galaxia.

OTERO PEDRAYO, R. (2003): Contos do camiño e da rúa. Mos, Editorial Galaxia.

OTERO PEDRAYO, R. (2007): Circling. Santiago de Compostela, Amaranta Press. [Trad.


Kathleen March].

PATTERSON, Craig (2006): Galician cultural identity in the works of Ramón Otero Pedrayo.

239
Bibliografia

Lewiston, Queenston e Lampeter, The Edwin Mellen Press.

PATTERSON, Craig (2004): “Da lámpada severa á escuridade mollada. O diálogo


diferencialista entre Nós e o 98.” Anuario de estudos literarios galegos, 2004: 66-85.

PENAS, Miguel R. e Suso SANMARTIN (coords.), (2010): Sempre Castelao, Associaçom


Galega da Língua.

PENAS, Silvia (2013): “Otero, poeta”. Ramón Otero Pedrayo, Xeórxicas do pan. Vigo,
Editorial Galaxia: 9-16.

PERES RODRIGUES, José Henrique (2000): “Especificidades do Galego-Português como


Língua-Alvo da Traduçom na Galiza”. José Luís Rodríguez (ed.), Estudos dedicados a
Carvalho Calero. Volume I. Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de
Compostela - Servicio de Publicacións e Intercambio Científico.

PIÑEIRO, Ramón (1958): “Carta a Leonor e Francisco da Cunha Leão (sobre a personalidade
e a obra de Otero Pedrayo)”. Homaxe a Ramón Otero Pedrayo no LXX aniversario do seu
nacimento. Vigo, Editorial Galaxia: 183-198.

POCIÑA LÓPEZ, Andrés José (2008): “Portugal en la obra de Eduardo Pondal”. Ángel
Marcos de Dios (ed.), Aula ibérica: actas de los congresos de Évora y Salamanca (2006-
2007). Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca: 219-229.

PÚBLICO (2015): “Los 10 vídeos más vistos de la historia de YouTube en España”. Público,
18/05/2015. Em: <http://www.publico.es/sociedad/10-videos-mas-vistos-historia.html>
(Consulta: 18/05/2015).

PYM, Anthony (2010): Exploring Translation Theories. Oxon e Nova Iorque, Routledge.

QUINTANA, X. R. e Marcos VALCÁRCEL (1988): Ramón Otero Pedrayo: vida, obra e


pensamento. Vigo, Ir Indo Edicións.

240
Bibliografia

QUIROGA, Carlos (2013): “Tradução e Jogo de Tronos - entre Culturas de Falares


polissimétricos”. Xesús M. Mosquera Carregal (ed.), Lingua e Tradución: IX Xornadas sobre
Lingua e Usos. Corunha, Servizo de Normalización Lingüística, Servizo de Publicacións da
Universidade da Corunha: 203-215.

RABADÁN ÁLVAREZ, Rosa (1991): Equivalencia y Traducción. Problemática de la


equivalencia translémica inglés-español. Zamora, Heraldo de Zamora.

RABADÁN ÁLVAREZ, Rosa e Raquel MERINO (2004): “Introducción a la edición


española”. Gideon Toury, Los Estudios Descriptivos de Traducción y más allá. Metodología
de la investigación en Estudios de Traducción. Madrid, Cátedra: 17-33.

RIBELLES HELLÍN, Norma (2004): “Las notas a pie de página en las versiones al español
de las novelas de Patrick Modiano: «la honte du traducteur»?”. Anales de Filología Francesa
n.º 12: 385-394.

RISCO, Vicente (1933): “Nós, os inadaptados”. Nós n.º 115: 115-123.

SALGADO, Xosé M. (1990): “Don Ramón dende dentro. Algunhas claves para a
interpretación da súa obra”. Tarrío Varela, A. (coord.), Actas do Simposio Internacional
“Otero Pedrayo no Panorama Literario do século XX”. Corunha, Consello da Cultura
Galega: 155-182.

SALGADO, Xosé M. (2004): “O estranxeirismo léxico na obra narrativa de Ramón Otero


Pedrayo”. Álvarez Blanco, Fernández Rei e Santamarina (eds.), A lingua galega: historia e
actualidade. Actas do I Congreso Internacional, Santiago de Compostela, 16-20 de setembro
de 1996. Santiago de Compostela, Consello da Cultura Galega - ILG, vol. III: 685-706.

SALGADO, Benigno F. e Henrique MONTEAGUDO (1993): “The Standardization of


Galicia: The State of The Art”. Portuguese Studies, vol. 9: 200-213.

SANTAMARINA, Antón (coord.): Tesouro informatizado da lingua galega. Santiago de

241
Bibliografia

Compostela, Instituto da Lingua Galega. <http://ilg.usc.es/TILG/> (Consulta: 01/07/2009)

SCHÄFFNER, Christina (2009): “Functionalist approaches”. Mona Baker (ed.), Routledge


Encyclopedia of Translation Studies. Londres e Nova Iorque, Routledge: 115-121.

SNELL-HORNBY, Mary (1988): Translation Studies: An Integrated Approach. Amsterdam,


John Benjamins. Edição revista de 1995.

TARRÍO VARELA, Anxo (1988): “Otero Pedrayo e a renovación da novela no século XX”.
Otero Pedrayo na Revista “Nós” 1920-1936 (Escolma). Santiago de Compostela, Servicio de
publicacións e intercambio científico da Universidade de Santiago de Compostela: 25-46.

TARRÍO VARELA, Anxo (1998): Literatura Galega - Aportacións a unha Historia crítica.
Vigo, Edicións Xerais de Galicia.

TORRES FEIJÓ, Elias J. (2004): “Contributos sobre o objecto de estudo e metodologia


sistémica. Sistemas literários e literaturas nacionais”. A. Abuín González e A. Tarrío Varela
(eds.) Bases metodolóxicas para unha historia comparada das literaturas na península
Ibérica. Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de Compostela - Servizo de
Publicación e Intercambio Científico, 423-444.

TORRES FEIJÓ, Elias J. (2005): “Sistemas emergentes, intersistemas culturais: o estudo do


mundo lusófono no sistema literário galego”. R. Zilberman (coord.), Actas VII Congresso da
Associação Internacional de Lusitanistas. Providence, Brown University, CD-ROM.

TOURY, Gideon (1995): “The Nature and Role of Norms in Translation”. Idem, Descriptive
Translation Studies and Beyond. Amsterdam-Philadelphia, John Benjamins: 53-69. Em:
http://www.tau.ac.il/~toury/works/gt-norms.htm (Consulta: 31/03/2015).

TOURY, Gideon (2004): Los Estudios Descriptivos de Traducción y más allá. Metodología
de la investigación en Estudios de Traducción. Madrid, Cátedra. [Tradução e edição de Rosa
Rabadán e Raquel Merino].

242
Bibliografia

VASQUEZ CORREDOIRA, Fernando (2010): “Prefácio à versão em língua portuguesa do


Sempre em Galiza”. Miguel R. Penas e Suso Sanmartin (coord.), Sempre Castelao,
Associaçom Galega da Língua: 11-16.

VENÂNCIO, Fernando (2007): “Palavras doutra tribo. Sobre traduções de literatura galega”.
Viceversa n.º 13: 25-54.

VENTURA RUIZ, Joaquim (2006): “Libros y autores gallegos en un canon literario


europeo”. Sociedad Española de Literatura General y Comparada, Mil seiscientos dieciséis.
Anuario 2006. Vol. XI. Universidad Complutense de Madrid, 189-196. Em:
<http://www.cervantesvirtual.com/obra/libros-y-autores-gallegos-en-un-canon-literario-
europeo-0/> (Consulta: 01/02/2015).

VENUTI, Lawrence (1995): The Translator's Invisibility: A History of Translation. Londres e


Nova Iorque, Routledge.

VERDINI DEUS, Xoán C. (1983): “«Os Eoas» à luz de «Os Lusíadas»”. Grial n.º 79: 1-22.

VIDAL FIGUEROA, Tiago (1995): “Presuntos Falsos Amigos entre Portugués e Galego. I”
Viceversa n.º 1: 145-151.

VILA BARBOSA, Maria Magdalena (2011): “Primeira aproximación á tradución da literatura


galega en Brasil e Portugal”. Tradução e comunicação n.º 23: 21-57.

VILAR PONTE, Ramón (1997): “A Unificación da Lingoa - Unha preocupación


inxustificada.- Espello en que fitarnos”. Sanmartín Rei, Goretti (ed.), Prosa didáctica (1916-
1936) Antoloxía. Vigo, Asociación Socio-Pedagóxica Galega: 89-97.

VILLAR PONTE, Antón (1930): “Novela gallega magistral”. El Pueblo Gallego, 20/08/1930.
Em: <http://www.galiciana.bibliotecadegalicia.xunta.es/gl/catalogo_imagenes/grupo.cmd?
path=1106814> (Consulta: 17/07/2015).

243
Bibliografia

VILAVEDRA, Dolores (1999): Historia da Literatura Galega. Vigo, Editorial Galaxia.

VILLARES, Ramón (2007): Fuga e retorno de Adrián Solovio, Sobre a educación


sentimental dun intelectual galeguista. Mos, Editorial Galaxia.

244
6. ANEXO: TRADUÇÃO DE ARREDOR DE SI
Ramón Otero Pedrayo

AO REDOR DE SI

Tradução de Felipe Domínguez Presa

Nascia, com a manhã, a terra de Ávila. Luz estranha aos


sulcos infinitos, geados. Brilhar livre do dia. Dois choupos
esquemáticos: a ideia do choupo. Puro pensamento
materializado na manhã. Pesadelo de uma misticidade
obrigatória. Desejo de cavalgar todo o dia por aquelas chãs,
bebendo luz, sentindo o sangue correr pelo corpo. Elevação
azul da serra na planície. Sobem e descem os fios do telégrafo.
Contraste da quentura, um pouco de alcova de doente, de noite
atulhada e sonolenta da carruagem, com o brilhar do dia. Viaja
a noite colada às malas, às caras, às mãos, à lâmpada. Há uma
lembrança dos brancos faróis, de Leão, de Venta de Baños, de
Medina, da respiração dos depósitos das máquinas. Aquele jota
espanhol cortante ouvido em Medina. Chamavam pelas
carruagens de um comboio misto: «Pepe, Pepe!». Havia uma
longa saudade do ele solto em Castela quando o moço cantava:
«Portugal!». A carruagem vibrava com os golpes que davam os
moços do percurso.
Adrián, no corredor, sentia a barba crescida, muito frio,
um desejo de se banhar no sol. Àquela hora sairiam os bois do

- 247 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

curral. Névoas baixas no vale e a sombra no jardim. Os buxos


estavam sempre frios até ao meio-dia. Badaladas miúdas.
Adrián lembrava as suas primeiras viagens, em estudante. Em
terceira classe. Nessa altura tomava nota dos estados de
espírito. Cada hora tinha uma infinita riqueza. Há na mocidade
uma época de introspecção ardente. E a dor de sentir a
impressão literária, fatal, sobrepondo-se, traidora, à nova e
pessoal. Esta impressão pessoal sempre nevoenta, muitas vezes
calada. Dificuldade de abrangê-la na sua vitalidade mutável.
Um cansaço. O melhor é deixar-se afundar no latejar de cada
instante. Não são de temer os longos exames de consciência.
Há, no entanto, surpreendentes relâmpagos comparativos. O
que sonhava e o que viveu: projectos e realidades. E aquele
sentimento leve da juventude fugindo, como a água das mãos.
Com o passar dos anos, Adrián ia sabendo para já uma
coisa: não se deve pensar a vida. Quiçá —para que tantos
quiçás?— fosse melhor para ele demorar-se na aldeia, até sentir
uma chamada urgente do mundo. Agora numa paisagem
anatómica, geológica, Ávila. Nome curvo, rápido, esguio.
Ponta de lança, brilho de estrela, proa de nau, sangue de casta,
rapto místico, fuga. Adrián pensou no grosso livro de Gabriela
Cunninghame Graham1 quase sem ler. Sabia pouco inglês.
Outro desespero. Qualquer intérprete de hotel sabia mais de
línguas modernas. Dor de se ver aprisionado no circo da
cultura espanhola. Talvez o cerne dela tivesse sido Ávila. Pedra
e luz. Demasiado cerebral. Que ignorada realidade teria para os
camponeses castelhanos? Com certeza Santa Teresa não
pensava na paisagem nem na misticidade da vila. Faria a
mesma coisa em qualquer outra aldeia sem coroa de muros.
Vaidade do cerebralismo moderno teimando em entender os
místicos.

- 248 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Adrián, chegando ao restaurante, deu-se conta da hora.


Chegavam viajantes insuspeitos. Uma bonita senhora com duas
crianças. Gente fina. Da Corunha. «Não lhe ensinaram, senhora
fidalga, que a Corunha era uma pequena Madrid? Diziam-to
teu pai e tua mãe e teu tio, o coronel do Estado Maior. Pois
chegarás em breve a Madrid. Já não ouvirás nojentas falas
galegas. Terás de dissimular o sotaque. Em Madrid todos falam
com aquele sotaquezinho tão lindo do namorado da tua prima.»
Os viajantes vão chegando com cara de manhã em casa
sem água corrente. Os gabões e os casacos fazem de camisas
de dormir e pijamas. Olhos ferozes brilham num cerco de
fuligem. Mãos de terceira classe assustam as limpas mesas do
dining car… O comboio corre num raio de luz e de granito
azul da serra. Homens de cachecol aquecem-se num lume de
caixotes nas estações onde o comboio não pára. Adrián jamais
os entenderá. Donde vem este desejo de compreender tudo? De
longínquos estudos ainda tingidos de idealismo. Agora os
jovens não pensam. Bem feito. São fortes, confiantes, seguros.
Mocidade, objectivo pensável, não pensante. O Escorial.
Algum cavalheiro compõe o gesto obrigatório. Admiração,
espanholismo. Prazer de comprar o ABC na estação do
Escorial. Adrián sorriu com uma imaginação de criança: Filipe
II vendendo livros de propaganda turística.
O olhar de Adrián cingiu-se à figura —mantó, palidez,
voltaicos olhos— de uma mulher. Madrid. Elegância do nome.
Um trepar nervoso de pezinhos de senhora. E ideias como
pezinhos. Madrid. Uma nuvem no azul do arco de Alcalá.
Adrián, acendendo um cigarro, quer precisar os seus
pensamentos. Não o deixa a senhora corunhesa. Está de costas.
Sente-se banhada, beijada, pela luz. Adrián conhece de vista
esta mulher. Agora parece-lhe um pouco baixa, cruel na sua

- 249 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

beleza que desperta erotismo. Uma antecipação do ambiente


madrileno. Bonitonas floridas pela Rua de Sevilla.
No seu compartimento interessam a Adrián os jornais
amarfanhados. Um diário de Vigo. Guarda-o por exotismo. E
pensa um instante em como este nome é estranho: Santiago.
Era o título de uma secção de notícias. Catedráticos
encartolados, sábios cuja fama não passava da aldeia de
Cacheiras. Morte. Chuva. Badaladas. Farras de estudantes.
Já a entrar na estação, Adrián olhava com alegria as
grandes carruagens do Sud-Express. Paris-Madrid. Goya
parecia meter-se nas plataformas: ciprestes dos fuzilados da
Moncloa como formação de pompons de barretinas ou
escovilhões de artilharia. Igreja de Santo António, o lisboeta.
Dor de subir a Encosta de San Vicente, sozinho, no táxi.
Outros, à segunda viagem, têm gente e carros galonados a
aguardá-los. Magoante sentido, insuspeito, do fracasso em
Madrid: chegar sempre, como no primeiro dia, à procura de
pensão.
No táxi outro despertar. Fadigoso, com o corpo vencido.
Longe a gloriosa luz de Ávila. Nesta hora na Rua da Luna, na
do Desengaño, pedem o chocolate os hóspedes fixos. Soldados
de capote. Padres. Moços de fretes de camisa. Geada nas ruas e
um nojo de carne e tomate na montra de uma tasca. Ar de
Madrid. Ar de zarzuela. Demasiado afastado, já farto de sol, o
granito azul do Guadarrama. Muitas casas remoçadas. A aldeia
de Mesonero Romanos quer ser um pouco a cidade de Ortega2.
Velhos bem-postos a atravessar os passeios com luvas
amarelas. Surpresa, em chegando a Madrid, de encontrar um
florescer de velhos, rijos, espertos, alvejantes, com os olhos
aprisionados na hora, no sol, na rapariga, que passam. As
primeiras faces conhecidas. O senhor que sai cedo para

- 250 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

comprar o jornal e pára no candeeiro da Porta do Sol. Asfaltos


regados. O senhor importante que se conhece, de vista, há
anos: cabeça histórica. Um conde-duque de gabinete a mover a
cabeça por cima da gente. Um ponto de referência na rua, no
teatro, na lembrança.
Adrián, olhando para um cartaz de espectáculos, pensou
que as estreias já não têm a importância de outro tempo. Há
que apanhar as matizações fugitivas do viver social. Um
enterro. O Levante. Um arrepio. Umas páginas de La Voluntad
de Azorín. Cheiro de guisado das Ventas3, regato Abroñígal.
Por falar nisso, Azorín passa. Desemboca na Rua de Peligros.
Frio, bem acabado, fora do ambiente, com o seu impermeável
por agasalho. Este germano do Sul é ditoso. Sente Espanha
como uma objectividade. Soube demarcar-se e tem o sonho de
sentir claramente as coisas. Pouca paixão. Classificada.
Quadrícula de observações miúdas. Um espelho pequeno,
articulado. Azorín peneira a realidade num crivo que tem a
figura de Castela e do Levante.
A manhã vai subindo desde o café com meia torrada até
ao vermute. O aperitivo organiza a nova jornada e instala no
viver os que chegam pelas três da manhã. Dúvida de se deitar
ou não. Egoísmo de almoçar no café; prazer de estudante com
dinheiro. Há que procurar os amigos. Tem muitos. Adrián
pensa carinhosamente neles. Por enquanto, ainda sem se lavar,
o telegrama para casa, para a estação mais próxima da aldeia.
Donde vem esta recordação em que Adrián parece
comprazer-se? Homem de trinta anos feitos, não pode esquecer
grandes sombras do século XIX. Árvores de pôr-do-sol.
Amadas. Prolongamento da vida ao revés. Pois dizem que os
pais se prolongam nos filhos. Também os filhos vivem à
rebours grandes pedaços de horizontes e pequenas paisagens

- 251 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

do viver dos pais. Sempre que Adrián entrava no comboio ou


na carreira representava para si as viagens de seu pai. A
diligência, e todo o longo tempo em que o comboio era uma
novidade. Estrada de Samora. As Portillas 4. As longas fileiras
de presidiários abrindo o caminho. Noites do velho café de
Fornos. O pronunciamiento de Villacampa5. Vasculhando nos
cafés, Adrián ainda encontraria velhos generais esclerosados
que tinham sido capitães com Peña Plata6.
A Galiza longínqua. A Província. Palavra feia,
guedelhuda. Adrián sentia-se mais novo e mais velho. Ficava
longe a verde solidão de aldeia. Não a entendia. Não a
entenderia nunca. Uma vez ou outra quis viver nela com o
espírito posto na Europa. Livros. Revistas. Lá fora, indiferente
a toda a novidade de artigo ou de livro, debruçava-se um longo
pôr-do-sol outonal. Tristeza e prisão das manhãs molhadas.
Tinha medo na aldeia: do mistério do campo e de deixar
esvaziar-se um viver disposto para outra coisa. Pisando os
asfaltos, um pouco enjoado pelo tráfego da gente, Adrián
tentava firmar-se num plano. Cedo viria a Primavera. Livros
novos. Relações. Tudo por motivo de um concurso público.
Buliam pelos passeios esplendores de Madrid e das
províncias. Um senhor que tinha visto no comboio atravessou a
rua todo barbeado e vestido de novo. «Já me vou instalando»,
pensava Adrián alegremente. Procurou a Gran Vía. As obras
avançavam. Destruíam ruas inteiras e exibiam as entranhas das
casas, como consciências dolorosas, ou simples. Pobres casas,
pobrezinhas vidas. Por ali vivera Adrián, em estudante. Via-se
velho e fracassado ao passar pela Rua da Luna. Iguais lojas.
Bares. A brasa de porteira da casa onde vivera era agora uma
velha desfeita, com um carrapito no alto da cabeça. Mau génio.
Adrián lembrava como o feria o parolar do povo de Madrid e

- 252 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

das criadas da Alcarria e da Mancha: «Digo, dice, digo, dice».


Sofria naquela altura crepúsculos mais dolorosos que os da
aldeia. Mas era Madrid. O que importavam uns erros? Ele
chegaria a entender Kant em alemão. Perseguido por uma
assombração de lembranças metia-se de novo pela Gran Vía. E
pensou atinar com a significação da nova artéria. «Esta rua
— pensava gozosamente— fez-se para levar ao cerne burguês
de Madrid o ar da serra. Todos os ventos da velha Castela, do
planalto frio e duro furam em direcção ao Sul pela depressão
de Ávila. E Madrid, pela Gran Vía, recebe aquela energia da
terra castelhana no seu centro urbano. Por isso se apanham aqui
tantas constipações. Espanha vive do grande ar da terra que às
vezes mata. Vive mais de bofes do que de cérebro e estômago.
Talvez o vento ajude a espalhar o misticismo.»
Adrián sentiu um doloroso relâmpago: «Jamais hei-de
entender os místicos espanhóis.» Mas antes que o vencesse
outro desalento, surgiu outro amigo. Alberte. Bem-parecido.
Pálido. Um pouco morto nos olhos. Livros debaixo do braço.
Adrián lembrava nevoentamente as irmãs de Alberte. Moravam
na Rua das Infantas. Ali sofrera da sua timidez nas reuniões dos
domingos. Aquelas meninas, com certeza, já teriam tido
namoros escaldantes. Alberte olhava para qualquer brasa das
que passavam de vento em popa. Das que vão atiçando uma
labareda em cada homem. Um tormento para os espíritos finos.
Os da Institución7 pensam sempre em Marburgo8 quando
atravessa uma real mulher. Ao sair com o seu amigo de um
desses redemoinhos que se fazem nos passeios — instantâneos
pontos de condensação de matéria humana—, Adrián
experimentava o prazer daquele herói de Balzac: o homem
livre, na rua, protegido pela polícia e por muitos séculos de
experiências. Dinheiro na carteira. Almoçar onde quisesse.

- 253 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Todo o dia enorme, insuspeito, ondulante, só para ele.


Alberte acabava todas as questões rapidamente. Pronto.
Dava-se conta da posição do homem de Madrid diante do que
chega da Galiza. Sem o querer conscientemente, esta relação
estava mudada havia alguns anos. Adrián dava-se conta da
mudança falando com Alberte e depois com outros amigos.
Antes: piedade e ilustração, no melhor caso, para os chegados.
Agora: até um certo sentido de pedir licença por viver em
Madrid. Espanha fez-se maior e mais funda. O mar ruge mais
perto da Porta do Sol. Talvez, da parte dos madrilenos, seja
uma posição defensiva contra possíveis críticas. «Madrid tem
sido muito caluniada. Pío Baroja tem razão: é um dos lugares
mais bonitos do mundo. Certo que Bergson disse no seu quarto
do Palace Hotel: ainda não é uma capital europeia, pas encore.
Mas Baroja está certo.» Adrián riu como uma criança
lembrando Silvestre Paradox9. Mas Alberte não se interessava
por Bergson nem pelo senhor Silvestre.
«Estarei demodé» —pensava Adrián. Também para a
sua idade era demodé (tão-pouco se usava já a palavra) prestar
concurso. Para ele aquilo não era tiro e queda. Como todas as
suas ideias, era uma coisa nebulosa. Adrián sofria da fatal
vaguidade e falta de ânimo próprio. A sua atitude: a mão a
tentar, angustiosamente, apanhar alguma coisa que borboleteia
e foge. Tudo lhe fugia. Nesta manhã de Madrid mais do que
antes. Tinha o convencimento de não ser capaz de organizar a
sua vida. Não o confessava para si por um instinto defensivo
perante ele próprio. Tinha vindo à procura de um sentido. E
encontrava-se levado de rastos por coisas hediondas e
burlescas. Subiam-lhe à tona do espírito as sujidades da
mocidade. Fracassos. Nas esquinas das ruas, nos espelhos dos
cafés, na montra das livrarias, branquejavam cadáveres de

- 254 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

projectos.
Flanando com o amigo, via passar uma mulher que ele
amara. Estava envelhecida, meteorizada pelo ambiente da
grande capital, solteira. Olhou para Adrián como a dizer: «Com
que baleia de señorita* de aldeia casaria este galego?» Nos
olhos guardava um fogo fixo, determinado, cruel. Passeio da
Rua do Arenal: aqueles quadrados do asfalto que lhe
magoavam os pés quando chegava com sapatos novos de
estudante. Os seus trinta e poucos anos retrataram-se no
espelho de uma loja. O mesmo que o reflectira novinho,
esperançado, estudante terno. Sem o querer, lembrava Adrián o
deixado sossego da aldeia. Ainda a defender-se desta tentação,
pensava já num sol primaveril, passareiro, menino de escola.
Encher-se-ia de raios de sol a velha araucária. Como andaria o
governo das terras? Remorso de dever não cumprido. Estariam
a cortar-lhe carvalhos novos e a cruzar a mata. Ele, o homem
da casa, deixava a mãe só contra a raposeira hidra camponesa.
Mais uma ditosa fome. Era uma e meia no Ministério da
Governação10. E amoleceu para almoçar no divã vermelho,
desvertebrado, calvo, de um café.
Velho café desacreditado pela literatura, sempre
carinhoso e tolerante como a camilha, as pantufas, o lenço ao
pescoço, o levantar-se tarde. O café de que fogem a moda e os
metodistas da Institución. O café vulgar em que se fez política
arbitrária. O café cheio de pecados espanhóis, estranho à
Europa, luxuoso como uma pobre Veneza decadente. Dão-lhe
eternidade os jovens mais velhos que guardam força de
senhores rurais das terras verdes. Café dos mil espelhos
mágicos de lonjuras de lembranças. Calma da humilde e
germinal filosofia dos descobridores de mediterrâneos. Lar de
* Tratamento respeitoso dado à filha de uma família abastada.

- 255 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

quem não tem. Ilusão de independência. Luz quebrada nas


esferas de metal que, ao abri-las, riem sem dentes como
grossos guizos.
Agora Adrián, aconchegado na esquina, atrás da coluna
estriada de ouro, olhando de soslaio para a formidável
segurança do balcão, lendo a lista de pratos e vinhos em que há
sempre um escólio preciso, tem a certeza de ressurgir. Tudo
aquilo fora uma preparação. Juventude é igual a crença no
ressurgimento. Somente precisava de um método para ressurgir
bem. Ovos com tomate. Vermelho e amarelo. Colorismo de
Zuloaga. Espanha de pandeireta*. Adrián gostava mais das
cinzas espanholas. Pensou com emoção no quente silêncio de
Toledo. Ali queimou-se muito: hereges, ferros, almas. O bairro
de Antequeruela sob o luar. Imaginava o senhor Santiago
Rusiñol, barbas de lua, barbas de água barroca, chegando-se
aos pálidos Grecos. Fosforescência dos Grecos. Bem. Agora o
peixe. Salmonete do Levante, ruivo como algumas barras de
nuvens no pôr-do-sol. Adrián estivera havia pouco na
beira-mar pontevedresa, com amigos, gente fina. Para fora da
pelouse do tennis espalhava-se o mundo fechado, estranho,
inquietante, dos camponeses e marinheiros. Tristeza resignada
e verde da paisagem galega. Terra mole. Amigos moles. Os que
tinham triunfado subiam para continuar a trabalhar mais e
mais. Adrián tinha conhecido muita gente. Vidas. Formiguejar
e relampejar de vidas. Dança da Vida mais terrível do que a
Dança da Morte. Esta Dança ficou esquecida depois de Verdun.
Um calafrio. Para recompor-se, o bife e os grandes goles de
Rioja bebidos com a confiança de ter notas no bolso interior do
colete. Lembrava-se de casa enquanto comia geleia de cerejas
* A expressão, que remete para um verso de Antonio Machado, alude a
uma Espanha atrasada.

- 256 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

numa concha de cristal.


Fumegando um grosso charuto, caminhava farto e
cansado para o hotel. Um vento frio galgava pelas ruas cheias
de coisas que passam sem que nenhuma fique. Pareceu melhor
a Adrián o quarto do hotel. Tudo no seu sítio. O cobertor
cansado de vir enrolado esticava-se sobre o leito feito e limpo.
Escrivaninha e tinteiro. Sonhava um feixe de folhas de papel
cobrindo-se depressa de escrita fina. Faltavam-lhe livros. Sair
para comprá-los? Não. Tinha areia nos olhos e sentia
demasiado a presença do corpo. Para esquecer o corpo o
melhor é dormir. Talvez, quando se levantasse ao anoitecer,
viesse a aventura. Depois teve vergonha desta velha mania. Já
Adrián na cama. Tudo fechado. Gosto de lembrar a viagem
para folgar e esticar-se melhor. Prazer da viagem. Quem lhe
dera no dia seguinte atravessar num expresso as fartas
campinas de França, Garonne, Blois, Amboise, Chenonceaux.
Céu interno das pálpebras: noite polar iluminada por novos
parasselénios.
Já não há Adrián. Há um corpo livre com um mundo de
representações que não é deste mundo. As pessoas que pensam
em Adrián mantêm-no como uma individualidade ao longo das
horas de sono.

- 257 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

II

A casa da aldeia. Da janela traseira um ventinho leve


parece engrandecer o estreito horizonte, empurrando as
montanhas e lavando as grossas encostas inclinadas. Borbulha
o rego nos lameiros. Treme a aveia no chão enxuto das vinhas
como uma verdejante carícia. Já têm rebentos as hortênsias do
passeio da parreira e uma longa hora duvidosa cobre a
paisagem daquele pedaço de ribeira.
A mãe, ainda nova, azafama-se em casa. Sobe, desce,
berra com as criadas, conta e reconta as galinhas tão inquietas
que nunca se sabe quantas são. Nunca mais acaba o romance.
O que ela fez para se acostumar! Agora dá-se conta, com amor,
sem resignação nem melancolia, de como aquele viver de
aldeia é o seu, o imposto pelo dever. Já não lhe interessa a
cidade, onde tem família e amigos, onde deixou a sua esbelta
juventude.
A sua lembrança foge como uma valsa que vai
morrendo com a luz do dia. Porém, sempre, com a partida de
Adrián —todos os outonos, todas as primaveras— a casa, a
paisagem, parecem inimigos e indiferentes como os primeiros
dias da viuvez. A senhora María entra na alcova da velhinha.
Dantes fazia-lhe companhia. Agora não se pode levantar. Está,

- 258 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

desde há três anos, entrevadinha. Dantes, todas as tardes,


vinha-lhe fazer tertúlia seu irmão, o padre. Agora já não pode
vir. Está como um rei no seu gabinete da casa da outra beira do
rio. Tem um dossel de uvas murchas para o tostado*. Lê algum
velho in-fólio, em pergaminho, de clara letra. Barbeia-se na
janela do norte, e todos os dias, laboriosamente, vai investigar
no seu arquivo.
A velhinha dói-se muito de não se erguer por duas
coisas: pelas laranjas do jardim e pela brisca, pois não a
entusiasma jogar às cartas na cama e não a deixam refrescar a
garganta com o alegre sumo dos frutos de ouro. A ela, a avó,
chamam-lhe a señora, e à nora, a señorita. A senhora María
tem para com a sogra muita bondade e consideração. Mas às
vezes diz que a gente da aldeia é ruim. Desagradecida,
murmuradora, faladeira, avarenta, mentirosa. Terá ou não terá
razão. Contudo, há coisas que não se devem dizer. Pelo menos
isso pensa a velhinha nascida e criada na aldeia. Lembra-se de
quando se abriu a estrada, dos últimos frades do priorado, de
quando o lobo obrigou o senhor Cremente a ficar em cima de
uma árvore, ele que naquela altura era um mocinho risonho,
recebendo um jornal de três reais, e que morreu há poucos
anos, bem rico e sempre alegre, a rir com os olhos, com a face
enrugada, com a boca sem dentição. Se se duvida da raça, que
grande confiança pode haver no resto da vida?
A señorita anda pela casa. Foge dos olhos vivos da
velhinha. Tem medo de que lhe pergunte por Adrián
chamando-lhe seu filho. Pois com esta transposição de tempos
surgem duas dores: a lembrança do marido morto e o papel
dela na casa. A senhora algumas, poucas vezes, a considera
com amor, mas como se não se desse bem conta de quem fosse.
* Vinho produzido a partir de uvas passificadas.

- 259 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Entrando no quarto de Adrián, a senhora María


começou a chorar. Quietinha. Pouquinho. Um consolo. No
gabinete pequenino, fresco, com uma janela gradeada, estão as
obras do Padre Feixoo e também muitas fileiras de livros
novos. Uns dizem «Alcan», outros, «Mercure» 11. Há alguns de
rija encadernação em alemão. Muitos têm notas à margem.
Escrita de Adrián que a mãe beija à socapa. «A esta hora
quanto terá andado por Madrid! Falaria com os amigos. Não
convém deixar as amizades. Cumpre-lhe um posto no mundo.»
A senhora María calcula as rendas, as terras, o dinheiro do
banco. Ali está o dote dele, inteirinho. «Ele não nasceu para a
aldeia. Levou o colete de agasalho. Sim. Levou tudo. Como é
tão desleixado, de certeza que lhe roubarão o bonito cachecol
tecido. Levou também as garrafas de tostado e a do licor de
café.»
Um longo raio de sol parece aumentar a solidão do
gabinetezinho. A mãe passa a outro quarto. Lindo, claro,
simples. Uma cama de ferro. Tudo disposto e limpo. Talvez
chegue na carreira da tarde, amanhã. Foi-se-lhe embora um
filho. Vem-lhe outro. Adrián levava cabelos brancos nas
têmporas. Xacobinho trará os caracóis mais louros. Rufa uma
camioneta pela estrada. Não se deteve na curva. Já está escura a
sala. Mas ainda brilha o lustre de cristal e a testa do retrato do
defuntinho. Um frio e leve vento de Março bate contra as
vidraças. Nele vem, cavalgando, a Primavera.

- 260 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

III

Quatro livros sobre a mesinha-de-cabeceira. Amanhã


serão seis, oito, dez. Não se esquecer de comprar Die Woche
nos quiosques da Rua de Alcalá. Depois de tomar o
pequeno-almoço andou muito Adrián. Agora sente novamente
o vivo ar da manhã de Madrid. Esteve na universidade, passou
em frente ao ateneu. Ao sentar-se cansado no Fornos para
degustar um coquetel, notava-se um pouco tristonho e distante.
Porém, recuou diante de uma análise severa. Fazendo um
cigarrinho, pensou nos dedos sujos pelo tabaco. «Mão de
catedrático velho». Boa distracção optimista. Passava pela sua
imaginação a teoria dos catedráticos velhos. O professor
Platón. Pois só professava o latim per accidens. A sua
personalidade foi de helenista. Quando dizia num andaluz
tartamudo «Parménides», «Empédocles de Agrigento»,
«Luciano de Samosata», parecia desfazer-se-lhe na boca um
figo açucarado. Tinha uma filha miúda e linda, um pouquinho
envelhecida, cheiinha, de falar de passarinho mimoso. De
tempo em tempo publicava um folhetinho. Nem que se tratasse
do Corpus Inscriptionum Latinarum pelo tempo que lhe
dedicava e pelo mimo da edição. Satisfeito, voltava à cátedra e
aos passeios solitários pela Moncloa, sorrindo com orgulho

- 261 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

amargurado pela indiferença do público. Humanidades. Palavra


longínqua e formosa como um grupo escultórico da Piazza de
Florença.
O professor Antonio tinha os dedos sujos pelos charutos
mata-ratos de soldado ou contrabandista dos bons tempos e
sobre a eterna capa levava os estratos geológicos de muitas
refeições. Espírito entusiasta, amigo das tertúlias das boticas e
da brava paisagem andaluza, estava sem dúvida pesaroso de ter
deixado a Faculdade de Letras de Granada. Fora mestre de
Ganivet e com ele provara a água da fonte do Avellano 12.
Gastava chapéu de coco cor-de-chocolate como os eleitoreiros
republicanos da Rua do Calvario, como o senhor Rodrigo
Soriano, como o elegante senhor Práxedes Zancada, esperança
da democracia espanhola. E tinha na testa um disforme inchaço
que lhe sustentava o chapéu como um caniço.
A palavra dificultosa e ardente como a terra das
Alpuxarras, do professor Antonio, ressoava na lembrança de
Adrián. Preguiçosamente passaram por ela outros catedráticos.
Algum dia falaria dela. Um livro-verdade sobre a
Universidade. Frios corredores do casarão da Rua de San
Bernardo13. Nem os professores mais afamados como
tribunícios políticos, nem as greis de estudantes, puderam
alegrar aquele ar de noviciado dos jesuítas. Ainda se fosse dos
beneditinos, dos cisterciences! Mocinhos bem comportados, os
de Direito. Capas azuis ou cinzentas com golas de veludo,
chapéu de coco, colarinho duro e alto, gravata de plastrão,
botins. Nem a Universidade influía neles, nem eles podiam
levar um espírito à Universidade.
Na aula de filosofia mais originalidade. Pelo menos
levantavam-se grandes problemas. Havia tipos esquisitos, de
talento, de pequeno génio: o anarquista, o sábio, o modernista

- 262 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

de avançada, o perdido, também sábio, apaixonado por outra


Dama Miséria bem diferente da franciscana. Aflição das longas
horas vazias das aulas, daquele colega de colarinho de
celulóide. Fazia no restaurante oriental um almoço de hospital
e foi ao longo de dois anos a sombra de Adrián.
No segundo sorvo de coquetel —o travo a gim sabia-lhe
a porto inglês, germânico, norueguês, onde ele, entre a névoa
livre, sonharia— sentiu a precisão de esquecer aquilo tudo.
Peso morto, como um tumor nas pernas, da juventude vazia.
Não era capaz. Parecia-lhe que teria de caminhar até às aulas.
Pisar outra vez uma lousa da Rua do Desengaño, do lado do
alfarrabista, uma lousa que soava oca. Tristeza da Rua da
Estrella e da do Marqués de Leganés: casas de decoração de
Arniches14, uma varanda imaginada por um pintor cenógrafo
com sombras e tudo, onde sempre eram onze da manhã de
Abril; chão de seixos duros, magoantes, como de vedação de
quinta da Sagra15; cheiro de anis de uma loja carregada de
ideias de tristes farras e de trágicos beberrões solitários, cheiro
a esterco de um curral do tempo das seges.
Havia certamente uma esperança nas manhãs de geada.
Na Rua Ancha, luminosa, prazer de se aproximar de um
torrador de café na rua. A luz varonil lavava a vadiagem da
noite. Lições do professor Miguel Morayta com as séries de
dinastias egípcias, indigentes, indemonstráveis e sem interesse
nas aulas, soando a deuses de pedra de pesadelo. Os berros dos
trapeiros soluçantes desesperados. Algum rebelde como que
chamando à revolução proletária. Depois, nos seguintes anos,
Adrián mudou de rua e acordava-o sempre um terrível
cornetim destemperado tocando Alma de Dios16: era um cego
que ele tardou três anos a conhecer pois vinha cedinho
espantar-lhes o sono das primaveras. Também havia as suas

- 263 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

alegrias. Humildes, à margem da vida. O prazer de perder-se na


selva humana das ruas, a tinta fresca dos jornais, o Prado com
as fontes prestigiosas e o rolar dos carros brilhantes sobre a
Castellana regada, limpa, europeia. Agora não sentia a
satisfação de se palpar no coração de Espanha. Seria talvez a
primeira impressão.
O segundo dia é mais doloroso que o da chegada. Ia
começar novamente a luta de sempre. Conquistar-se e
conquistar um pedaço de vida sua. Não se acostumava aos
quatro muros do quarto. As criadas passavam a ferro no fundo
de um corredor. Belas raparigas. Alguma galega. Ao passar, via
braços nus. Tentação de estudante tímido ou de velho
imaginativo.
Havia muitos galegos no hotel. A Adrián jamais lhe
prouveram os galegos em Madrid. Notava-os demasiado vivos,
sempre atentos ao lado prático das coisas. «Galleguito listo».
Eram mais ou menos tolerados, sem o apreço que
conquistavam os aragoneses, por exemplo. A respeito dos
galegos, Adrián tinha uma opinião, ainda que escuramente
sentisse que não podia ser a última. Expusera-a em conversas
de café e de ateneu com brilho, mas no fundo ficava sempre
satisfeito apenas em parte com ela. «Os galegos são espertos,
trabalhadores, dados. Bolem muito em Espanha —aqui
sustentava o seu pensamento com as greis de ministros,
magistrados, comerciantes e peixeiros galegos, mas não os
citava para não se envergonhar de um argumento vulgar.— Não
sabem reger postos directivos. Talvez Espanha tenha sido
deitada a perder pelos galegos. Pois são como os mordomos
nas casas grandes abandonadas pelos senhores. Sempre
subalternos com mando. Os senhores velhos —o tipo Greco
enfebrecia o fundo do seu pensamento — que passeiam nas

- 264 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

alamedas, olmedais e choupais de Burgos, de Toledo, de


Salamanca, de Medina, não governam porque não querem.
Vivem um sonho estático de senhores e deixam os homens
espertos, de repartição, de antessala, criados nas câmaras
municipais da Galiza, mandarem.»
Adrián enfeitava a teoria de mil maneiras. Sobretudo
quando voltava de uma viagem a Toledo para ouvir os sinos da
igreja de Santa Leocádia ou dormir no tosco leito do Mesón del
Sevillano17. Agora, a meio da tarde, em frente dos livros novos,
Adrián fez um esforço. Para se orientar tinha a obrigação de
colocar a si próprio o problema do seu viver nos últimos anos.
Os melhores. Os que criam carácter. Era-lhe preciso obrar por
eliminação para não cair outra vez. Devia passar pela
Universidade para copiar o questionário do concurso. Teve
medo dos frios claustros e do saguão com os quadros de
cátedras e anúncios de bolsas. Haveria ainda o anúncio da
cátedra de Filosofia krausista fundada por Sanz del Río? Na
tarde já longa brilhavam cúpulas de bancos. «Tenho que me pôr
cara a cara comigo mesmo» —disse para si. E saiu sem rumo,
mas de imediato uma saudade de horizontes levou-o em
direcção à Praça de Oriente.
Lá, na ribeira galega, depois de dois dias de vento do
Sul emborralhou-se o céu. No ar quente pareciam crescer os
rebentos das cepas. Donde será que vem este recender
insuspeito na volta de um caminho? A acácia toda vestida de
ouro vegetal não tinha medo dos bamboleios do vento. Já está a
chuviscar. Repenica nos vidros da casa de Adrián. Parece
amolecer os penedos da costa e crescer o cachão de água do
rio. O mundo aguardava a chuva. Bem o sabia o melro do
jardim. Pois toda a noite ensaiava scherzos e risadas, fugas e
tons, baixinho, quase sem os elevar, em jogo ofegante. Enchia a

- 265 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

presença do pássaro a escuridão molhada e qualquer um que


andasse pela noite se daria conta de algo novo e latejante, como
se um enorme ninho se tecesse nas trevas. Chegou o dia
traduzido em subtis nevoeiros volúveis, como se o sol tivesse
medo de ferir a coisa delicada que se ia produzindo. O alvor
surpreendeu o pomar todo vestido de branco e o melro, já
valente, cantou a canção da Primavera. Talvez ela chegasse
também, a generosa Primavera, na tarde desse mesmo dia.
Adrián mal se apercebia do seu longo passeio. Esteve
na Praça da Armería. Galgou o seu olhar, um pouco angustiado,
o perfil da serra azul. Ela, como uma faca de pedra e luz, corta
todos os dias a hidra de sujidade, a serpente renascente e
articulada de podridões que cria toda a grande cidade na
paisagem. Um destino pomposo e pobremente trágico nos
bosques do Pardo. Porque desejava Adrián o arvoredo azul e
espesso da paisagem da Madalena de Correggio? Tomou a
decisão de ir de manhã ao museu do Prado para estabelecer
uma série de comparações. Desceu até à señora doña Puente
Segoviana18. Nas esferas de granito desenhavam-se os
continentes em que mandava Filipe II. Arrependia-se do seu
desprezo pelo Escorial. «Talvez não esteja preparado. Há que
se desprender da muita terra molhada que me suja o espírito»
—pensava. Só um instante. Logo depois, apanhado no
pitoresquismo goyesco, sentia-se gasto, fracassado.
Pela estrada da Estremadura chegava um ar vibrante de
antenas. Atravessava um rancho de raparigas. Palavras de
gatinhas. Fala requintada. Luzimento dos braços entrelaçados e
do corpo sexual. Crueldade de alguns olhos bonitos. «São o
mais positivo e asqueroso. Lamberiam um bom guisado de
taberna com uma garrafa de vinho de Méntrida. Depois, no

- 266 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

baile, ir-se-iam embora com o primeiro chulo*. Ainda resta o


espírito, todo ele do realejo.» Esteve prestes a mover as mãos
para espaventar bandadas de lembranças. Romantismo de
estudante e de costureira. Merendas. Alvoradas dos jardins do
Retiro. Asneiras que muito o fizeram sofrer. «Eu devia ter
estudado numa pequena universidade: em Salamanca com
Unamuno.»
Quando chegava à Pradera de San Isidro, Madrid, o
goyesco, cor-de-carne no pôr-do-sol, arquitecturizava-se em
cúpulas bonitonas. A bonitona, julgava Adrián, era a mulher de
Madrid, um símbolo, um pecado atraente. Paixão de
estudantes, de funcionários, de toureiros. Chegava a ser injusto.
Já não se afastava perante nenhuma consequência. «Não, eu ou
sou parvo ou estranho. Para o caso é igual. Jamais entenderei
Espanha. Não serei nada nela. Levo um viver de estudante
aplicado e apaixonado, de pureza e honestidade mental. Faço o
que posso, mas foge-me a realidade do misticismo; adormeço a
ler Calderón; sinto o mudéjar ruinoso e queimado pelo sol que
alabara as sepulturas. Ou estou eu morto ou é a Ibéria a que
está morta. Já nem suco resta. Todos os meus companheiros se
especializam com alegria: uns em Luís Vives, outros nas leis
das Índias, em Séneca, em Goya. Com certeza o professor
Marcelino19 enganou-se ao escrever para todos os espanhóis.
Quem não seja castelhano não pode sentir a realidade e o
império da tradição cultural que se chama espanhola.»
Assustou-se um pouco da terrível consequência e, pensando
um momento na Catalunha, doeu-se de mal ter conhecimento
dela. Os catalães eram-lhe tão antipáticos como Royo
Vilanova. Já o disse Dante: «L'avara povertà di Catalogna».
Pensava no esforço de Adolfo Bonilla, um levantino, erguendo
* Figura estereotipada de homem madrileno, vaidoso e bem vestido.

- 267 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

a cultura hispânica. «Não, a culpa está em mim. Tenho que me


refazer.» No pior caso o melhor é seguir calado, vivendo
escuramente, de reflexos não sentidos. Seria um pequeno
catedrático de filosofia num liceu de província, tal como se
pode ser capitão no centro de recrutamento de Teruel, de Jaén.
Tanto faz! Sempre lhe fora antipático Clarín20: agora o tipo
aquele do Zurita21, o manso desenganado da filosofia,
parecia-lhe de um acerto incomparável.
Atordoado pela gente das ruas do centro, pelas luzes,
foi Adrián um pobre homem vazio, desfeito, esgotado. Tudo
lhe fugira. Se se tivesse dedicado ao Direito, estaria numa vila,
na Estrada, no Carballiño, em Frómista de Campos, gordo e
confiante, esperando melhorar no notariado. A mãe estaria
contente do aproveitamento do filho e ele sentir-se-ia
respeitado na aldeia. Valente loucura a de levantar problemas a
si próprio! Esteve prestes a se afundar num consolo. Procurar
uma mulher. Qualquer uma. Melhor quanto maior a vileza.
Sentir-se a viver ao menos como um corpo, esgotar-se,
esmaecer-se num leito mercenário. Estava determinado.
Duvidava entre uma morena ardente ou uma loura branca e
sabida. Pintou-se-lhe na face um sorriso que a ele próprio lhe
parecia nojento.
Uma ilha de sombra cobria uma pequena praça escura.
Uma ilha de sombra entre as ruas alombadas. Passavam grupos
chamativos de mulheres. Mas, de súbito, umas sinetas de
Páscoa badalaram-lhe na alma. As árvores escuras salpicavam
um leve cheiro de Primavera. Sentia-se levado do sítio e posto
no decorrer cósmico do mundo. Viu janelas abertas sobre o
campo, livros novos, novos amores, um latejar de vida
esperançada. Escutando um andante beethoviano surgiu-lhe a
doce paisagem do vale, já no entardecer iluminada por uma

- 268 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

grande estrela, atravessando pela saudade de uma cantiga. Foi


um instantinho. Viu-se menino em tardes semelhantes
devorando os primeiros livros, chorando diante das primeiras
injustiças percebidas. Fendendo as pessoas como uma proa,
foi-se alegre e novo para o hotel. Jantou bem com o cansaço do
passeio. Deitou-se cedo, abrindo um livro, com todo um plano
de trabalho disposto para amanhã.

- 269 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

IV

—Senhor, por enquanto não se podem plantar os


bacelos. A terra está feita uma lama podre. O senhor bem sabe
que as raízes apodrecerão.
O camponês teimava em amolecer o senhor, mas este,
rijo, com um pensamento determinado, não se deixava
convencer...
—Já to disse, Pascoal. Quero ver um novo pedaço posto
na vinha. Percebes? Senão para que encomendei os bacelos a
um amigo meu? E mandar mandou dos melhores, escolhidos.
Além disso, sinto uma coisa… Olha, homem, já estamos
velhos… E posso morrer qualquer dia. Quantos anos tinha o
senhor Brais da Burata? —disse mudando de tom. Estivera a
igreja a badalar todo o dia. Chegava molhado o seu pranto
funerário.
O padre Bernaldo. Um senhor bem alquebradinho.
Passou quase todo o Inverno sem deitar o bico fora de casa.
Sempre encorreado no seu pequeno quarto de clérigo, ainda
que a casa fosse grande e bem mobilada. Parecia um convento
no meio do lugar de carreiros enlameados ou estradas de tojo.
O padre Bernaldo tinha que passar por elas indo para a vinha
ou para a horta.

- 270 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Era rico e fidalgo. Mas guardava os costumes de


quando servia os curatos da montanha. Missava cedo na
paróquia distante, pouco, do lugar, para grande satisfação do
abade, que tinha no padre Bernaldo um generoso coadjutor.
Contudo, os dois religiosos tratavam-se politicamente. Eram de
formação dessemelhante.
Este ano o padre Bernaldo missava poucas vezes. Antes,
depois de almoçar, descia por entre os terrenos e nabais até ao
rio. Olhava sempre com alegria para aquela paisagem. O rio
fazia uma reviravolta calmosa e clara. No Verão verdejava com
a sombra dos salgueiros. No Inverno, por entre os ramos
direitos e nus, o padre olhava para a encosta do outro lado do
monte remendado por pedaços de vinhas: no alto luzia um
troço de estrada e durante todo o tempo se iam afiando os
ciprestes da casa da irmã. A casa patriarcal. Atravessava o rio
na barca deixando a mão pendurada sobre a corrente. Depois
subia a encosta devagarinho. Para trás ficava o seu lugar.
Parava para o considerar, ali, afundado na quebrada, entre os
espessos pinhais.
Atravessava a estrada e entrava com certa emoção na
casa onde nascera. Frescor do pátio sob a parreira e aquela
alegria do jasmineiro enquadrando as janelas. O forte dos
medos de criança. A irmã aguardava com o baralho disposto e
passavam as horas a jogar. Às vezes até discutiam. Então vinha
a senhora María para lhes dar um bocado de conversa. O padre
perguntava pelos estudos dos rapazes. Considerava Adrián com
maior simpatia: julgava-o de sentimentos, idealista;
entristecia-se reflectindo nas desgraças que o aguardavam no
mundo. Por outro lado, se não apreciava tanto o engenho do
pequeno, comprazia-se vendo-o forte e certo de que teria um
viver saudável e vulgar. Mas não lhes aconselhava nada.

- 271 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Tomando o chocolate, gabava sempre a água da casa. Cristalina


e fina, não tinha comparação com a de outra parte. Não era o
mesmo sol nem a mesma terra. Agora estava o padre Bernaldo
bem alquebradinho. Dois anos antes do começo desta história
adoeceu de reumatismo quase ao mesmo tempo que a irmã
ficava entrevada no leito. No segundo inverno quase não saiu à
horta nem a missar. Já não atravessava o rio.
O amor dos dois irmãos cresceu com a comum doença
e, sem se visitarem, pensavam um no outro: os seus
pensamentos cingiam-nos sobre a indiferença do rio que os
separava. Mas também se produziu no ser dele uma mudança e
uma nova paixão animou-lhe os anos da caduca velhice. No
leito e no pequeno quarto de doente andava sempre a porfiar. A
ama não entendia aquelas palavras estranhas do seu senhor.
Ainda lhe metiam mais medo os longos silêncios com os olhos
colados às vigas do tecto.
Em meados de Fevereiro um alegre raio de sol entrou à
procura dos pés marchetados do leito. Na cerejeira do carreiro
cantava um passarinho. Chegavam gritos loucos de crianças. O
padre Bernaldo ergueu-se laboriosamente da poltrona, pegou
no pau e, curvado, abrindo portas gemedoras, foi-se para o
escritório. Teve uma emoção. Os livros grandes como portas
estavam brancos, tomados de bolor. Dos cartapácios saía um
cheiro de velhice. O velhinho agarrou um livro e, voltando ao
seu quarto, mandou que lhe chegassem a poltrona à janela e
que para a noite lhe dispusessem um braseirinho. Já não se
deitou e foi ditoso o seu viver. No livro havia um feixe
apertadinho de cartas atadas com uma fita azul descolorida.
Desde aquela noite houve luz até bem tarde na casa grande do
lugar. De manhã o padre Bernaldo tinha a testa e os olhos
lavados pelo decorrer das lembranças. Eram longínquas as

- 272 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

datas das cartas: 1856, 58, 60. Umas eram originais; outras,
cópias com a letra miudinha, clara, simpática, do clérigo.

Ourense, 26 de Setembro de 1856


Meu querido filho:
Suponho que receberias os livros que te mandei
pelo próprio. São um Virgílio completo, as Odes de
Horácio e outro livrinho mais pequeno por que deves
começar. São as Guerras das Gálias de César. Com o
que sabes de gramática e com a tua feliz disposição
para as letras suponho que pelo menos poderás ir
adiantando no César. Agora no tempo das vindimas
obedece em tudo a tua mãe. Não comas muitas uvas
nem vás com o resto dos rapazes para a mata. Neste
Inverno, se Deus o mandar, hás-de ganhar prática no
latim. Bem sabes que é o meu desejo. Quero fazer de ti
um padrezinho virtuoso e sábio, que seja a gala da
nossa família. Eu, pelas obrigações de morgado, não
me pude dedicar aos estudos. Tu serás feliz se te
souberes afastar das glórias do mundo enganoso. Rogo
todas as manhãs a Deus que me deixe os aninhos
suficientes de vida para te beijar a mão na tua primeira
missa. Espero estar em casa antes de domingo. Recebe,
meu querido filho, a bênção do teu amante pai.

O padre ficou muito tempo a sonhar com a carta na


mão. Depois surpreendeu-se da claridade e fundura do céu, da
beleza da cerejeira florida. A natureza parecia-lhe nova, até
perigosa. A tentação do mundo igual a quando era estudante.
Era menino, pernas leves, um desejo louco de saltar. Andava às

- 273 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

uvas nas parreiras baixas da trajadura e do carnote*. Da terra de


saibro, das ladeiras, dos muros cheios de vespões vinha um
bafo de calor. Dança de vespas ao redor dos espessos cachos
pendurados. Sobre o banco de pedra estava aberto o livro:
«Prima luce, cum summus mons a Labieno teneretur…». A
frase latina flutuava como um raio de sol no campo e umas
vezes surgia clara, precisa, luminosa. Outras, o sentido fugia
como água nos lameiros entre a vegetação cerrada de gerúndios
e particípios. Por todo o livro (aqui o velho punha na infância
um pensamento de homem) latejava um poder misterioso de
raça ancestral, de deuses escuros dos penedos e das
carvalheiras. Pelo caminho dos postes de pedra chegava seu pai
devagarinho. Corpo esguio, um pouco dobrado, barba branca,
desfiada, que ele penteava longamente com a mão longa e
magra atravessada por grossas veias. Observava com fingida
severidade a face do menino. Depois pegava no livro
respeitosamente. Ele não pudera adquirir aquela cultura, mas
sabia que naquelas páginas faltava o Deus dos cristãos, e um
pouco de tristeza se juntava à sua admiração.
Um dia chegou a cavalo o professor de latim. Vestia
uma grande levita. Era branco como trabalhado em pau de
buxo. Branco, velho, rijo, madrugador, tabagista, cortês, fino
conversador. Em poucos meses de Inverno o rapaz adiantava
firme no latim. Até se impôs falá-lo. Tremia de emoção quando
não lhe saía a palavra precisa e a frase pendurava frouxa nos
lábios. Inverno curto. Nevoeiros. Latim. Um Verão de revisão e
de oração. Todas as manhãs bem cedinho a missa na paróquia.
O professor tinha um belo livro. Na capa, desenhadinhos, cada
um no seu quadro de arquitectura mística, havia duas dúzias de
santos da ordem de São Bento. O rapaz perguntava coisas ao
* Variedade de uva tinta.

- 274 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

professor: «Olha, meu filho, quando os Franceses entraram em


Santiago, todos os monges cantaram as horas como se nada
acontecesse. Eu estava no escritório. Parecia que as torres
compostelanas não badalavam como noutros dias. Sentimos
passar pelos claustros grandes oficiais. Houve no refeitório um
grande almoço. Alguns monges teimavam em ocultar o brilho
dos olhos. Depois ouviram-se cargas cerradas. Quando o
general Martín de la Carrera entrou22, todos corremos às
janelas. Levava um grande sabre curvo e caracolava o cavalo
por baixo do arco do paço arcebispal.»
O exclaustrado despediu-se chegado o Outono. Chorou
o menino. Agora, em velho, remexendo nos papelórios,
procurava uma cartinha: «Meu querido Bernaldo: Sei que estás
para entrar no seminário e mando-te a minha bênção. Bem
pouco vale a de um pobre monge exclaustrado, mas nela vão
os meus melhores votos. Tenho afecto por ti e pela casa… Se
Deus me der alguns anos de vida de maneira que te alcance
feito um homem e ordenado sacerdote, hei- de fazer-te a
confissão de um segredo que considero importante para a tua
paz espiritual. Não deixes de afinar na construção; para ser
bom latino é preciso não se precipitar…» Seguiam-se outros
conselhos.
De súbito, as lembranças do padre Bernaldo saltaram
por cima de uma enorme extensão de águas mortas de tempo.
O tempo do seminário. Agora não pensava nele. Falava outra
carta, de data posterior. Falava como no dia em que foi escrita:
«Ontem estive no provisorado. Bem sabes com que nojo subo
aquelas escadas. No paço és visto com maus olhos. Tratam- te
de rebelde. Eu, na tua pele, mudava de diocese.» Seguiam-se
falatórios de companheiro franco. O padre Bernaldo teve a
mesma impressão de havia quarenta e tantos anos. Como então

- 275 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

ajoelhou-se ao pé do crucifixo, como quem teima em


mergulhar num mar de infinda piedade. «Senhor, Senhor,
porque afastais de nós o cálice do sacrifício?» Já não sentia o
reumatismo e as lágrimas não eram azedas. Destilavam calmas
dos olhos purificados. Para o padre Bernaldo, com a cabeça
entre as mãos, fugira o quarto caiado e a paisagem ribeirinha da
janela. No seu lugar abriu-se uma grande varanda de pedra em
cima da praia guedelhuda de sargaços onde um mar verde se
desfazia em espumas borbulhantes. Negrejava um Cristo de
pau sobre a mesa-livraria. O rosário envolvia, como ao redor
do punho de uma espada, o livro dos evangelhos, uma pequena
edição aberta pela página onde Jesus dizia: «Não possuais
ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos.» Mateus 10, 9.
Num papelinho colado com obreias na negra porta
liam-se os versos:

No me mueve, mi Dios, para quererte


El cielo que me tienes prometido,
Ni me mueve el Infierno tan temido
Para dejar por eso de ofenderte23

«Porquê, Senhor, consentis que a Igreja não cumpra?»


Assim um e outro ano. O tempo a gear sobre um ardente
entusiasmo. Perdeu a cura das almas. De volta a casa
instalou-se no vale nativo na outra banda do rio. Fez-se um
fidalgo que missava com a alvorada e gastava o dia no viver
folgazão de senhor de aldeia. Aquela sombra cortesã do
provisor de Santiago! Agora, já perto da morte, não se atrevia a
ser acusador. Nem a clarear um antigo pensamento seu: para se
ter paz na Igreja é preciso renunciar ao Evangelho?
Ele não veria renovados os bacelinhos novos. Pensou

- 276 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

até às últimas estrelas nos três grandes momentos críticos da


sua vida com estranha lucidez de luz de gruta.
Fora a primeira dúvida. Já nos tempos do seminário.
Começava a frequentar as aulas de filosofia. Nas cátedras
muitos graves mestres ensinavam a pensar. Tudo neles e nos
livros procurava igual fim radiante: a verdade do cristianismo,
dentro do cristianismo da Igreja e até na Igreja da doutrina de
São Tomás. O estudante confiante, cândido, bom por natureza,
experimentava primeiro uma surpresa: para que cingir com
tanto aparato a indiscutível verdade? Nas carvalheiras
primaveris, nas espessas nuvens do Inverno, na alegria da alma,
no desespero morno presidia sempre a divina vontade. Não
estava a lei claramente escrita no Evangelho e no coração? O
menino —ainda era um menino— chorava de vergonha: se lhe
espreitassem o fundo da consciência, talvez não estivesse
pronto para chegar-se à comunhão. Preparava-se para ela com
longas meditações. O director espiritual do seminário de
Ourense era um sacerdote pálido, virtuoso, elegante latino. Era
reputado como um sábio na moral. A maior parte dos
estudantes punham cara de mocetões estranhados ou trocistas
perante a longa exposição dos casos de consciência. O director
espiritual tinha o estilo dos teólogos formados na universidade.
Mais que de padres sabidos, aristocracia um pouco orgulhosa,
do espírito, precisava-se de soldados fortes, disciplinados, que
não impusessem medo de jansenismo aos bispos nem de
superioridade intelectual às novas gerações de lojistas e ricos.
O director espiritual demorava-se com prazer de bom psicólogo
no estudo dos pecados. Para os outros professores era um
pouco perigoso abrir indirectamente os olhos aos estudantes,
quase todos de origem camponesa. Mantinha-se no seu cargo
pelo afecto que o prelado lhe tinha. O padre Bernaldo pensava

- 277 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

com emoção naquele homem que depois se afundou com todo


o seu saber no silêncio de uma paróquia camponesa. Depois
imaginava os longos corredores num triste entardecer.
Os internos seguiam para a tribuna. Subia da igreja um
bafo de friagem; nas trevas queimava-se, como uma alma na fé,
a luzinha do sacrário. Rezavam o rosário. Às vezes, no centro
da nave havia um morto de corpo presente. A dança dos círios
deixava entrever a face misteriosa, estranha, do cadáver,
amortalhado no hábito de São Francisco. Chegavam Abril e
Maio. Os internos saíam para passear. Das hortas do rio
Barbaña e dos salgueiros do Minho subia a primeira cantiga
amorosa do rouxinol. Os estudantes externos tinham
namoradas, costureirinhas ou criadas, e viviam a enganar, com
as farras, serenatas e falcatruas, a sua grande pobreza em
pousadas miseráveis. Nas cátedras o rapaz sentia com asco os
olhares mundanos, as mãos sujas do tabaco, os hálitos
avinhados. Perdeu a pureza pouco depois de começar a
frequentar as aulas de teologia. Foi levado por maus
companheiros. Pensava que morria. Durante muito tempo não
foi capaz de aturar a vista de uma mulher jovem.
Na aldeia, o seu quarto caía por cima do tanque de
lavar: braços nus entre as espumas de sabão, cantigas, risos,
frases desfiadas, ardentes… Todo o feitiço sensual da mulher
reflectido na água sob a sombra verdejante dos pâmpanos. O
estudante fugia: nas horas de calor aguentava a soalheira num
pequeno pinhal pedregoso. Parecia-lhe casto aquele local:
ramagem ogival, cantar litúrgico do vento, pedras penitentes.
Não quis voltar para Ourense. Os pais mandaram-no para
Santiago. Lá chegou a ser famosa a grave religião do pálido
seminarista ourensano.
Vivia numa casinha, de grande terraço, pequena, caiada.

- 278 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Lembrava uma casa marinheira de Pontevedra ou de Padrón.


Acordava muito antes das badaladas das torres. Agora —ramos
floridos de Abril a baterem nos vidros do velho— representava
para si aquelas horas de silêncio. Um banho de penitente
juventude. No recolhimento da alvorada teimava em dar forma
aos seus pensamentos sobre os mistérios divinos. Movia-se
facilmente na expressão latina das coisas mais subtis. A chuva
alongava o reinado da noite. Vozes na rua, coro de
campanários. Sentia, conforme chegava a manhã, como fugiam
as belas consciências teológicas da noite. No claustro, nas
aulas, era um calado estudante, cobrindo com o seu grande
estudo um fundo de angústia. Uma carta de casa. Trouxe-lha
um arrieiro quando saiu da lição de Lugares Teológicos. Essa
trágica carta que faz de um menino um homem.
Quando chegava à casinha da ribeira, já voltavam os
pobres e os padres do enterro do pai. Era pelo tempo do
Inverno. Já cresciam os dias e não lhe tinha passado a
influência da primeira dor soluçante. Julgava apertar nos
braços o corpo já murcho e dobrado do pai. Chegou, uma noite,
a duvidar da misericórdia de Deus. Então escutou o desejo da
mãezinha. Era também a própria salvação.
—Não quero morrer sem te ouvir missa, meu filhinho.
Não houve inconveniente para a ordenação. Havia
precisão de sacerdotes. Acabaram os estudos mal foi degustado
o mel do ensino superior.
Logo depois, outro papel vinha enlaçar as lembranças
do padre Bernaldo. Umas folhas de carteira. Reviu-as com
amargura e alegria a um só tempo. Diziam: «Quis erguer o
sentimento cristão da Galiza. Juntar todo o esforço dos
galegos para fundar um reino. Nenhum Rei da Terra. A Nossa
Nação somente presidida por Jesus. Voltar a um cristianismo

- 279 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

simples guiado pelos grandes taumaturgos do bom tempo: São


Martinho de Dume, São Frutuoso, São Rosendo. A insígnia dos
concílios de Lugo. Uma nação toda camponesa e marinheira,
inimiga da riqueza. Uma nação que cantasse na formosa
língua dos campos, com a glória do trabalho, a glória de
Deus. Tive este anseio. Prediquei, escrevi, juntei vontades.
Ameaçaram- me com a paulina. Chamavam-me louco os
colegas. Nas festas afastavam- se de mim com se fosse um
gafeirento. Havia gente que me seguia. Não tive valor. Venceu
sem luta o escritório do provisorado. Demiti o meu benefício.
Choravam alguns velhos mestres de pesca. Vim-me para casa.
Ano de mil oitocentos e… Havia uma cruz. Significava o
enterro de um viver.»
O padre Bernaldo estranhava que fossem tantos os anos
decorridos. Eram disformes e retortas as primeiras cepas que
ele procurou. O padre Bernaldo era um olhar ansioso para o
céu de Abril. O derradeiro para ele. Porque renunciara tão cedo
ao seu sonho? Agora podia reflectir nisso serenamente. Não
duvidava às vezes em considerar aquela submissão um pecado.
«Porque é que nasci fidalgo? Filho do povo, teria lutado. A
casta, o medo ou a repugnância do escândalo detiveram-me.
Foi um sentimento de elegância moral», pensava. Cabeceando
na poltrona, mais com o peso das lembranças do que com o
sono, ainda sonhava: «Essa Galiza está disposta para um
porvir. Chegará. O Santo Apóstolo veio para algo mais que
matar mouros.» Uma noite decidiu-se a abrir a gaveta mais
guardada da cómoda. Ali estavam os folhetos de propaganda.
Não tinham chegado a ser impressos. Tocando-os, o padre
Bernaldo teve um medo e uma repugnância: naquele tempo o
seu arcipreste tinha-lhe dito de olhos espaventados:
—Queima-os, queima-os. Lembram-me as proposições

- 280 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

de Lutero.
O velho arcipreste, chorando, pôs-se a seus pés
pedindo-lhe pelo pai, pela mãe, por Nossa Senhora do Carmo,
padroeira das marinhas, que privasse a Galiza da imundície de
ser mãe de um cismático. O padre Bernaldo teimava em sorrir
para acalmar a dança do coração no peito. A serviçal, ouvindo
gemidos, espreitou pela fechadura. O padre Bernaldo,
ajoelhado diante do Cristo, chorava a fio e batia com a pobre
cabeça pálida na beira da mesa.
Foi a última trovoada. Erguendo-se com trabalho,
porém determinado, ainda pensou: «Se os deixasse ao meu
sobrinho… Não. Troçaria de mim. Tolices e vaidades… Pobre
ser humano! Cedo vais morrer, cortiça velha… Não verás os
bacelos novos… Nem sequer a vindima deste ano.» Pediu com
grandes gritos que lhe trouxessem mais lume. Depois, trazendo
o feixe de papéis, sem os olhar, foi-os deitando no braseiro.
Considerava como se queimavam sem chama, torcendo-se,
negrejando: ainda viviam, em cinza negra. O inferno, as
escritas das laudas. De manhã seriam espalhadas pelo vento.
Desde aquela noite já não se levantou o padre Bernaldo em
toda a Primavera.

- 281 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Adrián não tinha guarda-chuva. Gostava da chuva e dos


asfaltos brilhantes. As vendedoras ofereciam buquês de lóios e
de cravos. Adrián enchia-se de alegria, como uma árvore
primaveril com a chuva, diante das livrarias. A Europa
assomava à Rua de Alcalá, mas a Rua de Alcalá não parecia
aperceber-se bem da presença da Europa. Já era Maio e o
concurso não chegava. O que responder às cartas de casa? A
culpa não era dele… «Tarde de ateneu», pensou. Depois de
almoçar seguiu em direcção à Rua do Prado. A hora dos
grandes charutos. Qualquer pessoa que julgasse a Ibéria por ela
acharia que Espanha é a terra das boas e luxuosas digestões. O
odor de bom havano dominava o do asfalto molhado e o
preguiçoso cheiro de primavera e de mulher. Seguiam para a
oficina garbosos grupos de costureirinhas. O orvalho acharoava
os automóveis. Adrián dizia para si: «Se eu, em estudante,
tivesse tido essas notas no bolso… Naquela altura descobri
Madrid como um argonauta.»
Agora uma névoa de secreto desespero tamisava-lhe a
visão da longa tarde que o aguardava. Era preciso enchê-la de
um alto trabalho mental, procurar que não chegasse a noite sem
uma afirmação de personalidade. Era, para ele, problema de

- 282 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

vida ou morte. Fazendo concessão ao luxo e à preguiça do


ambiente, comprou um charuto na tabacaria da Rua de Alcalá.
Escolhido longamente nos molhos e nas caixas. Fino, cheiroso,
elástico. Já não havia a pequena chama que era noutro tempo o
candeeiro ritual das tabacarias. Demasiado charuto para um
intelectual espanhol. Não quis completá-lo bebendo um copo
num café do centro para não ostentar perante si próprio o
carácter de um burguês de viver consumado, de curva fechada.
Caminhou para o ateneu. Tinha sonoridades de rua
andaluza a do senhor Ventura Rodríguez. Alguma porta
inquietante. A grave montra da Librería Académica. Títulos em
alemão. Em estudante sentia-se fracassado. Agora que os
entendia, quase não lhe propiciavam satisfação. Na galeria do
ateneu, um frescor antecipando o Verão. Assustou-o a preguiça
dos divãs dos salões de conversa. Foram a perda de muitos
exames e concursos. Foram o só luxo de muitos literatos. Em
contraste com os toscos móveis das casas de hospedagem,
ofereciam aos corpos um ditoso folgar em cumplicidade com
as árvores do jardim de Allende-Salazar. Alguns estudantes
olheirentos, remexendo devagar os seus cafezinhos, fitavam
aquelas pequenas arquivoltas de luz vegetal. Jardim fechado
entre as casas. Morto como um jardim da universidade. Apenas
atraente para espíritos de frade ou de enxutos senhores tipo
neo-Greco.
Adrián sofria da tristeza dos jardins académicos de
Madrid. Reinava sempre no chão um outono mesmo que os
ramos verdejassem no alto no ar novo de Abril. Adrián
afundou-se cansado e feliz —influência da digestão e do tabaco
— num cadeirão de palha. Estava no centro da intelectualidade
espanhola. As ideias deviam de andar por ali soltas, vestidas de
luz. Pelo menos Adrián aferrava-se a estas esperanças.

- 283 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Lembrava a primeira vez que entrou na biblioteca. Senhores


mal trajados roendo os livros como cães com ossos. Numa
vitrina os livros novos despertando tentações como as montras
do restaurante Lhardy. O livro-bife, o livro-bombom, o livro-
sopa-de-rabo-de-boi, denso e fundo, o livro-fruta-da-época, o
livro-mostarda…
Adrián sofria de não poder devorar todos os livros
novos. Naquela altura considerava-o necessário para ser um
homem em dia. Alguns fizeram-no sofrer muito. Lembrava
uma soberba edição latina de Giordano Bruno. Sonhava com
dedicar-lhe uma temporada inteira. Pois ele contentava-se
então com a cultura em dia. Era-lhe urgente ocupar a sua
luxuosa torre de ideias. Muito tempo duvidara sobre o estilo da
torre. Filosófica, literária, ensaísta, crítica. Tradição espanhola,
finas e raras gemas da pedreira metafísica, paisagens dos
cancioneiros ou uma província de espírito cultivada por
romancistas e poetas. E dentro dela um jardim selecto:
paisagem da Itália renascentista, do Grande Século de
Versalhes, do Romantismo. Procurando neles a sombra de uma
ideia, ou melhor, de uma paixão estudada e abrangida com
enganosa objectividade de psicólogo. Adrián recordava as suas
tentativas. Muitas horas triunfantes de estudo e meditação
cortadas e, no fim, cobertas pelas águas mortas da vulgaridade.
Umas vezes os apontamentos de Direito Civil: papel de
embrulho, letra miserável, hospital de conceitos. Outras a vida
das ruas, os longos dias de desespero, de aborrecimento, ou de
viver mecânico. Primavera, filosofia, amor e o fugir livre e
indiferente do tempo.
Agora Adrián concentrava-se na frescura da galeria, no
fumo do charuto, todas as essências dos seus anos de Madrid.
Os seus anos de homem. Porque no que diz respeito à Galiza…

- 284 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Paisagem. Invejava os homens instintivos ou também


simplesmente inteligentes que sabem encher todas as estações
do ano e da vida, sem dúvidas. Para eles os anos são sólidos,
inteiros, como presuntos em que cortam pedaços excelentes,
vermelhos e densos, de proveito e de segurança. Adrián via
entrar algumas celebridades. Todos envelhecidos, tanto os
juristas como os poetas, tanto os teósofos como os
matemáticos. Teve uma satisfação ao constatar a heroicidade de
um intelectual farrapento. Conhecera-o sempre igual.
Atravessava o pós-guerra24 com a mesma capa azul; a mesma
inocência nos olhos avaros de aprender e as calças livres de
toda obrigação de estrutura adquiriam uma fácies orgânica, a
que na arte se representa na coluna salomónica, vegetal,
arquitectural, e qualquer coisa de serpente que goza nos
movimentos musculares, voluptuosos, de larva.
Porque é que o ateneu guarda a galeria de retratos? Um
cemitério. Deviam estar num pátio quadrado. No centro a cruz.
Uma triste, pesada, decorativa, simbólica cruz do século XIX,
qualquer coisa como a cruz da Praça de Puerta de Hierro. Nos
seus passeios pelos bairros, à noite, Adrián cismava com fugir
dela. Sempre lhe saía ao encontro no final de uma rua, de
repente, numa esquina, estragando-lhe o doce vagar lunático.
Todas as cabeças de moderados e progressistas, de
republicanos, de economistas, académicos, generais, poetas
davam-lhe a ideia de uma Espanha que se tinha perdido nos
começos do século XIX e que lutava cega, porém debilmente,
por se encontrar, por vir a si. Pelos caminhos da imitação e
pelos da tradição.
Depois, outro desejo já experimentado foi ganhando a
Adrián: ler todo Stendhal na sólida e clara edição que está no
armário em frente da primeira sala, pois quase não passara de

- 285 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Le Rouge et le Noir e de alguns esquemas de viagens. Estava


esquecido do questionário e do concurso público. Subindo à
biblioteca cruzou-se com um senhor. Catedrático e membro do
júri. Cara de satisfação por fugir da província e talvez da
família. O senhor também olhou para Adrián, como que
adivinhando nele um candidato ao concurso.
Na biblioteca —sempre que chegava depois de uma
temporada longa entrava nela com emoção— uns olhos
francos, brilhando na face barbada, pousaram-se em Adrián:
Matías. Apertaram-se fortemente nos braços falando baixinho.
É sempre doce falar na biblioteca do ateneu. Dizem-se coisas
que não nos ocorrem nos lugares feitos para conversar. Matías.
Adrián sentia quase ternura por aquele homem bom que, à
força de simples, dava a impressão de encarnar toda a bondade,
sincera, humana, que anda espalhada por Madrid. Sempre
fumegando, tipo de senhor de aldeia muito estranho à cidade.
Um pouco guiador e mordomo dos rapazes inteligentes de
cujos triunfos se alegra como um tio carnal, ou como o melhor
amigo da casa. O ideal de Matías: ter uma biblioteca no meio
de uma plantação de tabaco e ao lado do melhor engenho do
trópico para servir aos amigos os melhores livros com os
melhores charutos.
Adrián iniciava a tarde com o livro stendhaliano De
l'amour. Depois das primeiras páginas começaram os saltos de
pensamento. O amor. Suficiente para caracterizar um povo. O
senhor Francisco Silvela —o político mais pulcro do dezanove,
adaga florentina, um segundo apelido francês, banho diário,
elegante, céptico de mão rija— iniciara uma história das ideias
éticas em Espanha. Adrián pensava ideias, não livros. Senso
popular, não sistemas. Senso admitido, vivente, não teoria. Na
história das ideias estéticas sobram os livros; pelo contrário,

- 286 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

não há uma citação de arte popular. Adrián sentia o


contentamento de ter tomado uma atitude. Dedicar a Primavera
ao estudo do amor castelhano. Um motivo. Todo o espírito de
Castela: honra, religiosidade, trabalho, tradição. O amor, um
motivo para viagens, averiguações, leituras. Era preciso desatar
a espigar pela descoberta Castela. Ao menos não destoar. E
sobretudo evitar uma tentação: os autores do Século de Ouro
tomados ad pedem litterae. Por baixo deles lateja outra força.
Por baixo, antes e depois. Em Lope, em Calderón, em
Cervantes, alambica-se demasiado um espírito que é necessário
apanhar na fonte. Adrián pensava logo: Burgos. O poema do
Cid. A escola de Menéndez Pidal já trabalhava em carne viva
de tradição e de paisagem. Adrián olhou para o relógio. Foi
para o hotel dispor a mala. Sempre desejara fazer aquela
viagem. Agora seria como uma abertura. Talvez o seu grande
erro fosse não partir pela Espanha fora em lugar de perder-se
nas aulas e depois nos anos vazios —dos vinte aos trinta— de
intelectual com gosto por tudo. Ainda tinha tempo para se
vertebrar.
À noite saía para Burgos no expresso de França. No
comboio, Adrián pensava: «Na Galiza sou um corpo vegetal da
qualidade mais inferior. Como as criptogâmicas coladas às
pedras. Só me sinto vertical aqui, em Castela. Fui injusto com
ela. Influência do verdor e da materialidade mole da Galiza.
Tenho que me pôr no fio da corrente que assenta no Mio Cid.
Se calhar, antes. Numância. A Celtibéria. “Robur Hispaniae”,
disse Floro. Toda a nova geração trabalha: uns na escultura
funerária, outros na fonética, na geografia, na etnografia.
Começa-se a saber um castelhano de origem. Já não estamos na
Espanha solene e teológica de Menéndez y Pelayo. Castela: um
dos poucos diamantes puros do mundo. Brilhou esfregado por

- 287 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

espessos sangues em certos tempo; noutros fica sujo de terra.


Tem arestas de espada e os seus raios atravessam o mar sem se
molharem nele. Amarelo e azul. Sublimação das regiões mais
puras da alma. Precisaria de um ascetismo como preparação.»
Adormeceu um pouco.
O comboio corria, talvez levando à Europa muitas
esperanças. Adrián pensava: «Deviam ir reformados às
pequenas povoações de Castela, do Pirenéu; deviam educar os
pequenos nas aldeias alabaradas de Campos.» Burgos, no
amanhecer friorento. Ouviu tocatas de quartel, chegaram-lhe
cheiros de pão quente. Flanando todo o dia, Adrián sentia a
planície sempre presente, apesar das elevações dos outeiros.
Respira com alegria o ar ainda invernal.
Os catorze quilómetros de passeios desde o fundo da
Quinta até ao pé da Cartuxa deixavam passar um ventinho
cortante do passo da Brújula. As torres pareciam, de certos
pontos, dois choupos mais altos e desenhados. Por trás deles
um pequeno bosque de ciprestes: os pináculos da capela do
condestável: «Este ogival de Castela —dizia Adrián para si— é
já maturidade. Não nasceu aqui. Eu procuro uma Castela
anterior. Sem ogivas. As ogivas são a lança decorativa.»
Gostou do túmulo do bispo Dom Maurício e da igreja de Santo
Estêvão. Tempos do pequeno luxo românico. Imaginava uma
igreja a surgir, toda nova e trabalhada como uma jóia, de uma
grei de casas de servos.
Terra. Longe do mar, a terra de Castela chega a ser
imperial e manda até no céu. Terra que se não deixa amolecer
pelas chuvas, que as não quer por femininas e cantareiras.
Entretanto recebe com fronte submissa o grave e branco
conselho da neve. Percorrendo o passeio dos Cubos, onde
tomam o sol do Inverno os cónegos e os mendigos, imaginava

- 288 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

as manhãs claras e frias da Idade Média. Cavaleiros para a


cavalgada, monges para a oração. Do outeiro calvo do castelo
via pedaços azuis de serra ainda salpicados de neve. Serra dura
que as torrentes racham com esforço, como serras cortando o
coração da azinheira. Adrián fazia anotações: trechos de
conversas, respostas e ditados de mulheres no mercado.
Aprazia-lhe a vida séria, singela, de pouco luxo, bem
ordenada, da cidade. Sabia o grande número de conventos. E
também estranhava que não se tivessem sobreposto em massas
de arquitectura, de costas para o século. Os monumentos
navegavam como navios de alto bordo ideal no arquipélago de
classe média da cidade administrativa e militar. À tarde, depois
de um pequena sesta, encontrou uma praça sem carácter.
Presidia um moderno edifício gótico de marcenaria. Passava
um grande cónego. Face de camponês castelhano bem mantido,
de inchadas bochechas redondas, barbeado duramente, todo
poliédrico na sua forte e pequena estatura. Rijo, dogmático,
homem de letras. Orgulho imperial. Lembrou-lhe uma cabeça
de frade que ele havia visto nos ornamentos do sepulcro de
Ordonho II na catedral de Leão. «Bom seria vê-lo na sua aldeia
de adobes enxutos, tiranizando a família, obrigando os
sobrinhos a um estudo de gramática e moral utilitárias para
ganhar o curato e o céu.»
Adrián, escrevendo à mãe, teve uma pungente sensação
de distância ao escrever no envelope: Galiza… «Estarei doente
da ridícula saudade? Ainda tenho muito que refazer em mim.»
Saindo apanhou uma rua que depois da praça de touros se
desvanecia num campinho de choupos atravessado por canais à
procura do rio Arlanzón. Seguindo uma estrada, a de Santander,
logo chegou ao campo. Em cima de alombados terrenos, as
agulhas da catedral vigiavam como periscópios. Terras de pão,

- 289 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

onduladas, verdejantes. A Cartuxa na sua lomba, palácio dos


ventos frios; e mais longe arvoredos em perspectiva de Claude
Lorrain graças a uma capa de ouro de sol. Grandeza. Contudo,
um desenho demasiado rígido.
«O castelhanismo exige uma paixão a que se poderia
chamar matemática.» Há que chegar a uma norma de formas
rematadas de pensamento para logo saltar além. Boa terra para
ler Kant. Experimentava certa vergonha secreta Adrián
pensando que jamais lera inteira a Crítica da Razão Pura. Ele,
aspirante a professor de filosofia. Por muito que fosse o
desapego do mundo em Kant — o maior desapego possível e o
mais consciente— não se pode esquecer que Kant era
prussiano. E assim Adrián foi traçando um paralelo entre a
Prússia e Castela.
Numa curva da estrada, à direita, encontrou um
pequeno belveder carinhoso e sério. Classicismo e bucolismo
castelhanos. Um banco semicircular de pedra, a fonte e uma
comunidade de velhos choupos. Na fonte uma pedra com a
data e o nome do rei Fernando VII. Adrián considerava o
renque de árvores da estrada de França: por ali tinha passado
Napoleão. Por ali chegavam as ideias depois de ter falado com
o porteiro carlista das Vascongadas, como escreveu Fígaro25.
Teve por um instante a visão de Larra morrendo da secura do
espírito circundante. Chegava a rematar: «Larra morreu de
sede. Vivendo num porto teria sido um grande europeu. O que
prova que não teve força suficiente para ser um grande
castelhano, um grande espanhol.»
Pouco satisfeito com este pensamento inquietante,
Adrián deixava-se dominar pela paisagem. Ao seu pé, num
grande campo, trabalhavam em fila cerca de dezoito mulheres.
Adrián esteve ali quase uma hora. As mulheres não falavam,

- 290 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

nem riam, nem cantavam. Um homem vigiava o trabalho.


A viagem de Adrián fora apenas para estar à altura das
circunstâncias. Não dispunha de tempo para ir a Santo
Domingo de Silos, onde os monges, na solidão românica e
litúrgica de serra e frio, trabalham as fontes da história de
Castela e cantam aqueles admiráveis serviços que converteram
Huysmans. Também não podia ir a Espinosa. Nem a Sedano,
onde se enruga nos montes cântabros a testa de Castela. Nem a
Lerma, nem a Roa ou Aranda, terras de fortes vinhos como
virtudes teologais. Mais perto ficava Fresdelval. Adrián sentiu
neste nome qualquer coisa de amoroso e recendente a écloga
casta.
De manhã foi até lá de camioneta. Percorrendo o
mosteiro ogival convertido em paço e a igreja de belos
sepulcros, Adrián desfrutava de umas horas proveitosas e
alegres. Fazia de cicerone a filha do mordomo, um camponês
cor de terra e ovelha de rígidas falas clássicas. A mocinha fina
e esbelta, vestido modesto, olhos fundos e ardentes, tinha
qualquer coisa de espada e de trigo. Como um aço bem
temperado que se brandisse. Gentil palha de trigo já branco de
pão. Lembrava-lhe algumas empregadas de hotel, ou melhor, as
enfermeiras que, com as suas toucas, têm qualquer coisa de
monjas. «Ela gostaria de ser tirada desta terra. Talvez não.»
Mostrou-lhe o ninho da cegonha. Contou-lhe que no paço
passara muitas temporadas o doutor Víctor Balaguer. A
lembrança daquele senhor era uma tradição na família dos
mordomos. Tinha deixado ali um pouco de alegria do Levante,
da raça privilegiada e sensual.
Adrián sentia-se apaixonado. Preso no seu falar
cristalino, imaginava outros nomes: Ximena, Berenguela,
Beatriz. Flor de geada e de sulco, de ferro numantino, de

- 291 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

paixão. Com um pouco mais, Santa Teresa. Clara, precisa.


Génio das raças que sabem o que hão-de fazer e não duvidam
jamais. Teve repugnância do sotaque galego e não se atreveu a
dar-lhe uma gorjeta. Ali ficava ela acenando-lhe quando se foi
na camioneta. Naquela noite escrevia Adrián a um amigo:
«Encontrei a serrana26 do Marquês. A fontainha feita mulher, a
Primavera das altas chãs.» E começou a escrevinhar as
primeiras folhas de um romance: «Nossa Senhora das
Lavercas.»
De volta a Madrid, na noite seguinte Adrián fugia da
gente e das ruas para se debruçar sobre o viaduto 27 e penetrar
nas trevas adivinhando a calada palpitação do campo. Mancha
e Serra cingiam sob as estrelas o formigueiro de Madrid. Ele,
Adrián, começava a arar aquelas terras. Não madrileno,
castelhano. Julgava ter conquistado a fórmula salvadora. Mas
teve frio e foi refugiar-se nas luzes de um teatro da moda.

- 292 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

VI

Com Xacobe entrava na casa uma esperança nova.


Parecia que todas as coisas palpitassem a um ritmo mais vivo.
Madrugava. Educava o cão. Com um olhar preciso, o rapaz
deu-se conta da horta, da vinha, da paisagem. Os criados e
jornaleiros ouviram uma voz precisa e ordenadora. Trazia uma
autoridade. Vinha do corpo forte, educado, disposto. Dezassete
anos. Depressa para os dezoito, como água casta, cristalina,
correndo nesse tempo que se fecha com as badaladas dos vinte
anos, que são como a badalada do meio-dia no campo.
A mãezinha, na manhã cheia de sombras ainda frias,
arrumando os quartos, afofando a lã dos colchões, deitava uma
olhadela pela janela: no lameiro ao pé das árvores de fruto,
Xacobe jogava à bola. Havia uma luz verdejante que vinha da
relva, das folhas mudas de paisagens não avistadas. Um verdor
novo, trémulo, esperançado e um pouco petulante, como se o
mundo fosse pouco para ele, indiferente à dor e ao sentir dos
seres humanos. A mãe sabia que o filho mais velho do senhor
Xohán da Lomba andava em namoros escaldantes. Ela também
se lembrava muito do seu defuntinho. Na sala, o retrato —
barbas castanhas, óculos de ouro velando olhos cansados e
verdes, testa com entradas, gravata esvoaçante sobre a vastidão

- 293 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

do peito, colete de veludo— parecia triste e desenganado.


Naquela manhã a natureza parecia à mãe algo frio,
cruel, mesmo burlesco, que não percebia das dores humanas.
Lá na horta, a jogar, o rapaz desportista jamais daria pela
tragédia da vida. A mãe cismava. Adrián na aldeia era sempre
um ser estranho e sofredor. Não jogava como os rapazes. Não
sabia falar com os camponeses: diante deles sofria sempre de
uma timidez invencível. Como se tivesse vergonha da própria
superioridade intelectual. Sabia que Adrián não abriria caminho
na vida. Isto fazia crescer a sua ternura pelo filho distante. Pelo
contrário, Xacobe só havia que vê-lo. Por aqueles olhos não
podia passar nem a mais leve sombra de dúvida, de
perplexidade ou de sonho. Jogando à bola era metódico,
exacto; cada vez que punha a bola no ar e se banhava de sol
havia nos olhos do rapaz uma luz de inteligência satisfeita. Pela
mesma idade, os olhos de Adrián eram exaltados e sonhadores
ou angustiados e abatidos. Nunca tiveram aquela serenidade
clara e precisa do irmão. A mãe contentava-se, ainda que no
fundo do coração havia uma calada e saudosa homenagem
dedicada à melancolia e senhoril espiritualidade de Adrián.
Com Xacobe imperava na casa da aldeia uma velocidade:
aproveitava todas as horas do dia para a maior glória, gozo e
saúde do corpo triunfante. Nos ramos das fortes pereiras uma
cama de rede baloiçou: não para sonhar e afundar-se na
infinidade de azul atravessada por asas e nuvens como faria
Adrián, homem de pensamentos em agulha gótica, em cúpula
pensativa, em cipreste, em cume de serra, mas sim para se
deixar meteorizar pelo sol e pelo ar, para instalar no centro da
paisagem o seu corpo de rei. Antropocentrismo do desporto. O
corpo bem cuidado, mimado, exaltado pela harmoniosa
escolástica da ginástica. Demarcado como um belo sistema de

- 294 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

forças gozosas e livres sob a condição de estarem disciplinadas


e ordenadas.
Adrián não sabia até onde chegava o seu corpo. Era um
asqueroso pretexto. Vivia esquecido dele. Por um lado,
inteligência e espírito; pelo outro, o corpo instintivo,
desprezado, tolerado. O que não quer dizer que não mandasse
muito, pois quando mandava era com o sentido da saturnal
antiga: o escravo não esquecia ser escravo na festa triunfante.
O corpo de Xacobe, regido por uma cuidada inteligência,
dinamizava o viver um pouco parado do paço. Em poucos dias
já tinha organizado um onze com os rapazes de aldeia. Se
Xacobe meditasse, o seu pensamento dir-lhes-ia: «Trago-vos o
Evangelho do Desporto que ainda não vos foi por ninguém
predicado. Têm-vos falado na redenção da alma, na divindade
do trabalho: uns querem fazer de vós bons cristãos com a
esperança posta no mundo de além-túmulo, outros querem
dar-vos os direitos de homens livres para que sejais os donos
da terra. Nem eles nem eu podemos libertar-vos do trabalho do
campo ou da oficina; mas eu venho redimir esse corpo. Já
cansado e deformado pela enxada e pelo sacho, não se
derrubará como uma ferramenta poeirenta nas horas de folga;
já não será aos domingos um rústico espantalho de mãos
disformes e sujas, nem rês cangada com o fato de festa. Agora
com o meu ensinamento o corpo será, para além de forte,
elegante, limpo, harmonioso. Trago-vos a redenção e a
limpeza. Trago-vos uma consciência de dignidade e beleza que
não despertaria jamais entre vós. Podereis luzir nus sob o sol
ou na água do rio. Sou o apóstolo da liberdade do corpo.»
Os onze jogavam sob a sombra do pomar; pelos muros
espreitavam rostos curiosos de crianças. Os rapazes de aldeia e

- 295 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

o señorito* juntavam-se numa comunidade desportiva. Já não


era o vínculo do respeito social, da gratidão, do medo, da
tradição; outra figura de sociedade fazia os seus primeiros
ensaios na aldeia.
Alguns dias soavam na estrada buzinas matinais de
autocarro. Xacobe, já pronto e banhado de alvorada e de água
fria do tanque, despedia-se com um beijo da mãe e com outro
da avó, e corria para a camioneta que levava a equipa
alvoroçada. Resplandeciam as brilhantes cores desportivas e os
rapazes da aldeia já invejavam aquela glória dos jogadores. Iam
a outra capital luzir sob o sol justo do estádio, conquistar a
fama desinteressada e inocente.
A mãe também se deixava levar pelo impulso da nova
ideia da vida. Cartazes de olimpíada decoravam as paredes. E
em casa uma terceira forma de actividade dominava: o pai fora
caçador e preguiçoso sentimental; Adrián, vagaroso, reflexivo e
apaixonado, interpretava a vida em função do espírito; Xacobe
trazia, sem a definir, a singela ideia da vida desportiva.
Entretanto, decorria paralelamente, sem remédio em direcção à
cova, o viver dos dois irmãos.
A avó entrevadinha na limpa cama de buxo. Parecia
uma santinha com o cabelo ainda grisalho e encaracolado sobre
a brancura litúrgica das roupas e sob a cabeceira lavrada como
a primavera de um altar. Havia nas paredes quadros bordados
em sedas de cores. Antigas imaginações representando aves e
frutas dos trópicos longínquos. No arcaz guardavam-se os
linhos brancos e puros como o luar e as maçãs da última
colheita. A alcova abria-se a uma sacada de pedra com os
balaústres em madeira. O maior gozo da velhinha era olhar o
pedaço de vale e de encosta todo povoado de fartos bacelos e
* Tratamento respeitoso dado ao filho de uma família abastada.

- 296 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

de milharais de regadio. Ela só desejava uma coisa: que


chegasse o sabor fresco e carinhoso do Outono e lhe cobrissem
a varanda com as ruivas espigas escolhidas e com os montões
de disformes cabaças. Havia-as lisas e amarelas, estriadas e
corcovadas, pintadas de verde ou burlescas em forma de
cabeça, de crânio de anão, de penha coberta de líquenes, de
frutos bons para sobremesa de um gigante risonho.
A velhinha, nascida na aldeia, tinha desfrutado de muito
ditosos e senhoris anos do viver da cidade. Mas agora, já perto
de fechar os olhos, toda uma longínqua mocidade de campo, de
horta e de vindima lhe bailava carinhosamente ao redor do
leito. Por um interessante fenómeno, a derradeira vitalidade da
senhora refugiava-se nas cores camponesas. Gozava com a
vista de um cacho de uvas, de uma galinha poedeira que lhe
traziam ao leito para que palpasse o corpo latejante sob a
plumagem quente, dos frutos simples, dos pedaços de cantigas
e disputas, do lavar de roupas, do soar de carretas que lhe
entravam pela sacada. Nas noites sem pregar olho aguardava o
cantar do rouxinol; seguia, ao longe, ao longo dos caminhos
emparreirados, o caminhar de um alalá* tunante; contava
durante horas e horas as notas espaçadas e regulares da flauta
da coruja. Alegre, um pouco parvinha, perguntava por Adrián
pensando que estava em Santiago a acabar o seu curso e
parecia indiferente à desperta mocidade de Xacobe. E nem um
dia se passava sem perguntar pelo irmão: «Preguiçoso, não
quer vir jogar às cartas comigo. Andará metido nos seus
endiabrados latinórios de letra antiga.»
Às vezes cabeceava a meio do dia e sonhava. Sonho
primitivo e barroco que lhe pintava na tábua da imaginação um
tríptico divino. Primeiro, por um caminho florido ia ela,
* Canto popular galego.

- 297 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

rapariga nova vestida de noiva, para a igreja casar-se. O seu


esposo, o valente capitão, ia a par dela. Badalavam os
campanários e, em redor do grupo de convidados, todos
cavalheiros e damas distintos, apertava-se o povo camponês
vestido de mil cores. Em seguida um triste e pungente quadro:
no meio da sala o corpo morto do seu marido no caixão.
Mulherzinhas murchas e raparigas soluçantes, velhos de
cabeças apostólicas e rapazes temerosos rezavam o rosário que
guiava o seu irmão, o padre Bernaldo, curvado e triste. Pelas
janelas abertas entrava uma tarde de Outono atravessada pelos
toques a defuntos. Um menininho —seu filho— espreitava pela
porta com cara de curiosidade e estranheza. Por fim o terceiro
quadro trazia-lhe um consolo. Ela, já com anos andados,
vestida de gorgorão preto e mantilha, descia as escadas de um
grande pórtico, do braço de um moço esbelto, o seu filho.
Vinham de dar graças ao Santo Apóstolo por ele ter terminado
o curso com felicidade. Um sol alegre, um cantar de água na
fonte, uma hora dada pelo relógio harmonioso da torre, sobre o
fundo das Pratarias de Compostela.
A velhinha gozava e sofria. Chorando e berrando
acordava: «Meu filho, onde está o meu filho!» Ela, que tão
bem, tão cruelmente olhara para o seu marido morto, não podia
imaginar que o filhinho também tivesse morrido. A pessoa e o
amor do filho viviam sobrepostos à pessoa de Adrián, o neto.
Ainda havia pouco tinha estado ele em casa. Chegava a dar-lhe
um beijinho e aguentava com gosto as suas longas lengalengas
de velha… Então chegava a nora para a acariciar. Falava-lhe de
que o filho andava longe, bem longe, nos seus assuntos. Até
fingia cartas dele, sofrendo a pobre de uma dupla dor. A velha,
às vezes, ficava extasiada diante da nora como se dissesse:
«Quem é esta mulher?» Mas, logo a seguir, agora sem falar,

- 298 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

com um par de grossas lágrimas penduradas nos olhinhos


murchos, puxava para si a cabeça já grisalha da nora e
beijava-a. Parecia pedir-lhe perdão e reconhecer uma
implacável fatalidade. A dor das duas viúvas tornava-se a
mesma dor.
Xacobe não parecia pensar no seu porvir. A mãe quase
não se atrevia a falar-lhe nisso. Já entrado o Verão, o rapaz,
muito determinado, surpreendeu-a com um plano de vida. A
mãe admirou-o e ao mesmo tempo teve um pouco de medo e
estranheza. O rapaz, lápis em mão, demonstrou-lhe que os
guias ancestrais de governo da casa não levavam a nada de
bom. Eram ridículos os produtos da terra. Trabalhar as vinhas
todo o ano para que no fim o mais luzido da venda do vinho
voltasse às mãos dos jornaleiros. Cuidar matas e bosques para
vender por uns poucos tostões um corte extenuante ou a poda
de trinta carvalhos.
O rapaz, aprumado, lápis em mão, demonstrava que o
sistema ancestral da casa era uma rotina antiquada. Ele também
não se dedicaria a tirar nenhum curso. Que tinha sido seu pai?
Um triste médico rural sempre ao serviço dos camponeses,
metido na política, que não ganhou nem para fazer uma casa na
cidade ou comprar um bom carro. Que pensava de Adrián?
Esbanjava o melhor do dinheiro da casa em Madrid, em
estudos e viagens, e não era capaz de ganhar um centavo. Seria
um professor em qualquer província para ganhar quatro mil
pesetas depois dos trinta e cinco anos.
A mãe, um pouco surpreendida, sentia também um
medo e uma estranheza; o medo dos antigos burgueses aldeões
e fidalgos que, ao abandonarem o ritmo marcado das sazões e
das colheitas, com todo o governo da economia antiga fundada
nos frutos da terra, pensam que se vai à ruína e a uma sorte de

- 299 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

imoralidade. Por muito tempo o dinheiro sem terra, o viver


fundado no dinheiro livre foi considerado perigoso, tentador,
privado da raiz religiosa e cósmica do campo. A este
acrescentava-se outro sentimento na mãe de Xacobe: um ar de
fidalguia ofendido por todo o projecto de negócio. Mas o rapaz
não compreendia o mundo aquele da casa de aldeia, como
também não o compreendia Adrián. Trazia outro sentido da
vida.
A mãe assustava-se de que um mocinho, quase uma
criança, falasse com tanto conhecimento. Ela vivia bem longe
das novas gerações da vila. Xacobe, criado com amigos
empregados nas casas de banca, louco pelo automóvel, sem
problemas, a não ser os do viver diário asséptico, preciso,
elegante e rápido, acabou por mostrar a sua ideia: ou a mãe lhe
dava o dinheiro preciso para montar um negócio de automóveis
ou recorreria a uma instituição bancária. Tinha relação com
empregados dela, filhos dos chefes. Precisava do
consentimento e da fiança da mãe. Tristonha, como sentindo no
fundo das suas esperanças um minguamento, a mãe escreveu e
assinou dali a poucos dias os papéis necessários. Logo a seguir
experimentou um sentimento de alívio. Menos um problema.
Uma vida resolvida. O menino colocado no mundo. Que
depressa se traçam os caminhos nestes tempos!
O rapaz não desfrutaria dos anos duvidosos,
imaginativos, fartos de experiências e de esperanças, da
estudantina, dos livros, das amizades escolares, que ela estava
acostumada a considerar como a flor da vida dos homens. Já
era um homem. Porém, assim tão depressa parecia-lhe que era
decotar de repente, cruelmente, uma árvore nova, impondo-lhe
para sempre a figura demarcada, a forma rígida.
A senhora María foi consultar o caso com o padre

- 300 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Bernaldo. Falaram muito tempo. A senhora, antes de ir para


casa, deu algumas disposições competentes para o arranjo da
do clérigo. Tudo nela — as roupas, os móveis, a cozinha, os
livros— era de uma velhice sem remédio, inimiga, marcada.
Abertas as janelas, o ar quente espaventou a friagem da sala do
norte, sempre fechada e cujas tábuas pareciam estalar com o
passear de fantasmas de outro tempo.
O padre Bernaldo no leito era branco, pálido; as grenhas
alvas, ainda crespas, davam-lhe a semelhança com um patriarca
dos bons tempos. Só a sua fala era mais preparada e desperta,
com uma lucidez de espírito que meteu medo à senhora.
Estranhada, reparou em como as ideias de Xacobe eram as
mesmas que as do velhinho.
—Desengana-te, mulher. O rapaz tem razão. Sabe ver a
vida com olhos saudáveis e íntegros. Somos de outro tempo,
morto por desgraça ou por fortuna. O teu marido também foi.
Mas ele era céptico enquanto eu guardei a fé. Agora nós não
compreendemos a vida. Tu também não, porque, mesmo que
tenhas sido mulher citadina, señorita da cidade, sofreste a
influência do teu marido, romântico às avessas. Hoje na vida
não se pensa, faz-se. Toda a hora pede um facto. Uma
realidade. Há que ser jovem, ter dinheiro, ter saúde. Os de hoje
resolveram todos os problemas pelo sistema mais simples: não
pensando neles. Deixa que o rapaz se dedique aos negócios.
Primeiro num banco ou lá onde for. Depois terá ideias próprias.
Será rico, quer dizer, gerirá dinheiro, alegremente, sem pensar
se o granizo arruína a colheita ou se os rendeiros estão ou não
conformes com pagar o foro. Para que preparar-se anos e anos
numa faculdade? Já está preparado para viver, e trabalhando
há-de se lhe afinar este sentido. Por outro lado, que queres que
te diga? O Adrián será sempre pobre e triste pois nem saberá

- 301 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

governar os bens nem chegar a uma boa posição. Na família é


o derradeiro da minha casta e do teu marido, o último
romântico. Por isso eu o amo mais. É uma inteligência
destinada a sofrer. Só lhe restava um modo de conseguir ser um
pouco feliz. Não te rias do que te digo: ir para frade e
dedicar-se ao estudo. A remexer em bibliotecas velhas com o
pãozinho sempre seguro, tranquilo e considerado, bem com
Deus e somente prezado por pessoas sabidas e finas. Segue a
ideia do mais novo. Digo-to com tristeza, mas também
sentindo que por ele fala a verdade triunfante de hoje: tem
razão.
A senhora María, voltanto para casa, cismava num
sonho esborralhado. Ela queria um médico na família. Para
continuar a tradição do pai. Ela faria os maiores esforços para
que estudasse no estrangeiro, se fosse preciso. Parecia-lhe algo
de obrigação de consciência. Ao atravessar o rio chegaram,
miudinhas, longínquas como pingos de orvalho musical, as
badaladas do meio-dia nas igrejas distantes. Sempre a
montanha é mais madrugadora. Logo se deram conta as igrejas
da ribeira e badaladas grossas, como nascidas no seio de uma
cuba, encheram o vale e correram sobre as correntes
remansadas do Minho que nem um bando de grossos pássaros
optimistas.
Na beira, longe, onde o rio cachoa nos moinhos, havia
gente. Umas señoritas vestidas de claras cores, braços nus,
sentavam-se na areia fina e luzente. Ao pé delas, deitado, um
rapaz queimado pelo sol e amorenado pela água, de fato de
banho, dizia-lhes coisas que as faziam estourar de rir. Algumas
graves vacas amarelas desciam para beber e ficavam quietas,
extasiadas, diante do milagre daquela coisa brilhante que corria
cheia de luz do sol.

- 302 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Às perguntas da senhora, o barqueiro de colete amarelo


pôs uma cara pícara.
—Então, não conhece essa gente, senhora? Pois todas
as manhãs estão para aí. Hoje são outros os tempos. A
mocidade sabe divertir-se. Olhe bem, senhora María. Então não
está a ver o seu menino Xacobe e as filhas do Azeiteiro? Não, a
mãe delas é que não andava tão finamente. Quantas vezes,
sendo rapazes, andámos eu e ela às apalpadelas na mata e nas
vindimas!
O barqueiro continuou a tagarelar. A senhora María,
como vencida, tardava muito a chegar a casa. Atravessando a
estrada, assustou-se com um toque de buzina: o automóvel do
Azeiteiro vinha disparado. A senhora María, sentada na
varanda aguardando por Xacobe para almoçar, sentiu-se um
pouco ultrajada, mas pensou que era melhor não falar no
assunto. E uma grande alegria fê-la correr à porta. Chegava o
carteiro e dizia-lhe o coração que trazia carta de Adrián.

- 303 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

VII

O Retiro à hora do pôr-do-sol. Maio. As grandes massas


de arvoredo quase não peneiravam o ruivo trigo do poente. Já
negrejavam os ciprestes pondo nas frondes um pouco de
ordenação mística. Os azulejos dos bancos e as roseiras
emparreiradas espalhavam uma esperança de noite do Sul. Os
dois senhores galegos subiam a pé o passeio dos coches. Talvez
sentindo um pouco de saudade perante o triunfo dos
automóveis. No seu tempo, quando eles chegaram, um longo
rolar de coches enchia o parque. Berlindas, cupés, vitórias.
Coches ducais, coches burgueses. O coche do político, do
advogado famoso, do general de quem se esperava o golpe de
Estado. O coche da dama, linda, sozinha, estranha, com o seu
cãozinho e o imponente cocheiro. O coche sorridente e irónico
das pecadoras também se compassava ao ritmo do passeio.
Toda Madrid. Nessa altura contemplava-se de uma só vista de
olhos. Dos tempos cavalheirescos restavam os troncos
escolhidos. Girar de rodas, bater de cascos.
Os dois senhores, conforme ganhavam anos, tinham
mais ar de fidalgos galegos. Apesar do tempo que levavam em
Madrid. E nos olhos a mesma satisfação do primeiro dia em
que conquistaram um lugar na hierarquia: a de se sentirem em

- 304 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Madrid, longe da terra. Subiam devagar. Ao chegarem à


rotunda do Ángel Caído, sentaram-se. Bem se apercebiam de
serem tidos por gente de peso. Havia comprovincianos seus
que os olhavam com respeito. Depois chegaram os restantes
amigos e dispôs-se em roda uma tertúlia de cerca de uma dúzia
e meia. Todos galegos.
Além dos calados por natureza ou consideração para
com os outros, havia ali ex-ministros, senadores, deputados,
conservadores de registo, um notário, magistrados, um médico
afamado e uma personalidade política chegada da Galiza
naquela manhã. Tinha os pés cheios de bolhas. Tinha visitado
antes de almoçar quatro ministérios. Almoçou num café
sufocante pagando seis ou sete talheres aos compatrícios
recolhidos pelo passeio da Rua de Alcalá. Aturara um concerto
de sinfónica por comprazer uma elegante parente sua. Agora
esticava as pernas pensando em como, depois do jantar, se
colocaria um agudo caso de consciência: escolher entre
deitar-se cedo ou deixar-se levar por aquele fedorzinho de
pecado que andava solto pelas ruas e que na noite brilhante se
vestiria de tentações talvez invencíveis. O tom galego
envolveria as frases castelhanas deitadas com a dignidade de
gente bem posta e emprestar-lhes-ia uma musicalidade
ingenuamente irónica. Falavam da Terra. Juntavam-se
apreciações de ordem prática com fugas de sentimentalidade ou
precisas lembranças de pessoas e coisas.
Um senador:
—Quem é que fala do frio de Madrid? Eu nunca passei
Inverno tão bom. Este frio dá forças e depois há esta alegria do
céu e da rua. Em Janeiro todas as manhãs percorria a
Castellana. Dava gosto o sol. Lembrava-me de como estariam
por lá, a tremelicar com o nevoeiro, sem poderem tirar a

- 305 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

humidade ao ar de um quarto. A última vez que estive em


Pontevedra contei centenas de reumáticos.
Um notário:
—Tudo o que o senhor quiser, mas no Inverno sabe
quando é que me lembro eu da Galiza? Ao passar diante de um
talho e ver um porco aberto de alto a baixo. Este porco daqui,
todo gordura, não me agrada nada. O que eu daria por uns dias
de matança lá na montanha lucense! Aquelas filloas*, aquele
lombinho de porco, até da pança eu gosto —e lampejavam-lhe
os olhos, sentimental.
Um registador:
—Ó homem, e vires tu dar-nos lições de bom comer em
nome da Galiza… Foste sempre um regionalista raivoso! Eu
sustento que em Madrid se come melhor do que em qualquer
outro sítio. Aqui todos somos galegos e podem as coisas ser
ditas sem que se ofenda a Terrinha. Ela é bonita e nós somos de
lá, mas em porca, atrasada e murmuradora não há região de
Espanha que lhe ganhe. E quanto ao comer, o que valem as
pavias do Ribeiro face aos pêssegos de Aragão ou de Aranjuez!
E a carne? Melhor que a dos pastos de Ávila não há no mundo.
Deixa de ser tão melindroso. Madrid é Madrid. E, tendo
dinheiro, há aqui tudo o que se possa desejar. Quanto a mim, se
me perder, procurem-me na Moncloa ou na Rua de Alcalá. Por
alguma coisa somos os mais desprezados dos espanhóis.
Alguma coisa deve ter a Galiza.
Houve no ajuntamento os seus movimentos de protesto.
«Ora, nem tanto assim; Há que ser justos; Como a paisagem
das Rias Baixas não há outra em Espanha; E no tocante às
mulheres, as de Ferrol; Para saber o que vale a Galiza há que
* Iguaria similar ao crepe, podendo elaborar-se também com o sangue da
matança do porco.

- 306 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

dar uma voltinha por lá todos os verões: já não há aqueles


guarda nocturno a cantar a hora, nem aquelas carretas, nem as
pensões cheias de moscas; Em Vigo fazem-se casas que é uma
maravilha; E, quanto à inteligência, vejam como raciocinam
bem os nossos paisanos…»
Um ex-ministro dos que subiam a passear devagarinho
fez o resumo, sendo escutado com respeito pela reunião:
—Senhores, a Galiza é a Galiza, uma das boas terras de
Espanha. O que acontece é que muita gente ainda está nos
tempos bárbaros e não sabe olhar mais além do horizonte do
campanário do seu lugar —sinais de aprovação do ajuntamento
diante da beleza da frase—. Por lá têm de abrir os olhos e
seguir as sendas do progresso —mais topetadas aprobativas—.
Cumpre aproximar a Galiza da Porta do Sol para que Madrid
aprenda a aproveitar a beleza e a riqueza da Galiza. Estradas e
caminhos de ferro. Escolas, muitas e boas escolas. Levar às
últimas vilas e aldeias o sentimento da grandeza da Pátria.
Fomentar o turismo no Verão. Explorar as minas. Que os
jovens possam estudar aqui facilmente. Muitas vezes tenho
exposto estas ideias no Conselho de Ministros —um
movimento de respeito e curiosidade contida—. Mas no
proceloso mar da política têm naufragado os melhores
propósitos —alegria da reunião ao se sentir aberta aos altos
segredos do Estado—. E há que deixar-se de tanto
regionalismo reaccionário em que parece abundar o senhor
notário —este aguenta, um pouco corado, os olhares severos da
assembleia—. O qual não é óbice para que se admirem as
nossas paisagens e se ouçam as nossas canções populares e se
recitem as poesias de bom fundo escritas no doce dialecto da
Terrinha… As poesias de… e de… às vezes enchem os olhos
de lágrimas —grande emoção. Até o registador vira os olhos ao

- 307 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

passeio para dissimular—. Voltando ao tema sério, as Rias


poderiam…
Um senhor, até então calado e pensativo, exclama:
—Ay, Noia de mi alma!
Todos ficam a sonhar. Um longínquo cantar de gaita
ecoa naquelas almas. Algum já pensa em propor um almoço
castiço quando duas novas personagens se juntam à tertúlia.
Um é jornalista e escritor de fama. O outro, Adrián.
Apresenta-o. Adrián recebe olhares protectores e experimenta
uma leve aflição.
O registador:
—É coisa esquisita. Os galegos, para se fazerem
homens, têm de sair da Galiza. Todos melhoram. Igual aqui que
na América. O que seria Carracido28 em Santiago? Não passaria
de auxiliar da Faculdade ou de boticário em Padrón ou em
Ordes por causa das intrigas locais. Para mim o expoente do
que vale a Galiza é o grande número de políticos e magistrados
e homens de ciência que lá se têm criado… Mas todos
precisam de vir aqui ao centro, ao coração da Península.
O escritor escutava regozijado. Vinha naquela tarde
com vontade de brincar. Após umas poucas falas suas houve na
tertúlia faces de espanto, vozes e trejeitos de escândalo. A
bengala do registador batia com fúria no chão e, com olhos
ferozes e falando com mais sotaque galego do que nunca,
gritava indignado:
—Mas como é que se podem consentir essas ideias?
Pobre Espanha! Ingratos filhos tem! De maneira que, segundo
o senhor, a Galiza devia seguir a guia da Catalunha? Será um
ramo desleal da árvore de Espanha! Não sei como se pode
ouvir com tranquilidade certas coisas! A não ser que o senhor
esteja de brincadeira, mas são pesadas as desta classe… Ora

- 308 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

donde é que tirou que o galego é uma língua? Eu não sei para
que serve a esperteza a algumas gentes. Bem sei que por lá
andam alguns doidos com essas endróminas… Quatro vadios
da Corunha* que teimam em fazer o ridículo…
O jornalista desfrutava. Adrián, inquieto, desejava
caminhar. O ministro envolvia os dois num longo olhar de
superioridade compassiva. E para acabar disse:
—Ora, não sabia que o senhor comerciava géneros da
Catalunha!
—São pitorescos estes nossos conterrâneos —dizia o
escritor já no eléctrico—. Fauna velha. E no entanto, galegos
até aos miolos. Raposeiros e interesseiros. Não perdem um
grão de renda nas terras que lá têm e mandam os caseiros
feirarem as vacas, daqui de Madrid. O ministro fartou-se de
abrir portas falsas nos tribunais para todos os seus parentes. E
quanto a serem uns forretas? Algum, podre de dinheiro, prepara
a comida num fogareiro e a outros não há empregada capaz de
lhe surripiar um tostão. Já vê como falam da Galiza. Pois veja
bem, alguns deles são dirigentes do Centro Galego.
Adrián entristecia-se a falar da Galiza. Compreendia
escuramente que ela ocupava, para o bem ou para o mal, um
grande espaço no seu espírito. Nunca parara para pensar no
talento e na virtualidade da sua Terra. Às vezes, num instante
de repulsão ou de desassossego, outras vezes conscientemente,
queria deitá-la para fora de si. Hoje, voltando para casa, pela
primeira vez era colocada como um problema, mais um dentre
os muitos que estava obrigado a resolver. Assustado com esta
nova inquietação, Adrián afastou-a de si. Tinha outras coisas
mais urgentes; precisava perfilar o seu estilo de vida. E este,
traçado já desde aquela tarde que precedeu a viagem a Burgos,
* Referência às Irmandades da Fala, movimento galeguista (1916-1931).

- 309 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

também se achava impedido por outros afazeres. Para o dia


seguinte estava assinalado o primeiro exame do concurso. Ali,
em cima da mesinha, estava o questionário. Adrián,
folheando-o com uma atenção forçada, foi caindo num
amargurado exame de consciência. Porque é que queria ser
professor de filosofia? E desta pergunta foram surgindo outras
e outras até que, esquecido o questionário, se sentiu apanhado
noutro, mais extenso e vital, como se nele estivessem a pedir
resposta todos os temas constituintes da sua vida.
Adrián, com alegria um pouco amargurada, voltava aos
primeiros resplendores de alvorada espiritual. Tinha acabado o
liceu. Era pela altura do Verão e sobre a paisagem de colheitas
voavam as infinitas e duvidosas ânsias do seu porvir. Um
mundo trémulo como uma carvalheira atravessada por
sendeiros, amolecida por sombras ditosas e mananciais frescos,
também salpicada de penedias bravas, de misteriosa dureza
inquietante. O mocinho não tomava um caminho determinado.
Não sabia qual era o seu trabalho no bosque. Outros lavravam
penedos, desbravavam porções de mata, decotavam ou
cortavam árvores. Era nevoenta, porém, dominadora, a paixão
de Adrián pelas ideias puras, livres. Precisava de uma
generalidade com que alentar o espírito.
Levado pela beleza do título «Filosofia e Letras»,
inscreveu-se neste curso. Logo se apercebeu de que não servia
para isolar os factos miúdos que é necessário esgotar num
estudo esforçado e completo. O documento histórico ou
linguístico dava-lhe uma sensação de enjoo e de tristeza.
Alguns companheiros afundavam-se nos arquivos com uma
paciência de monges beneditinos. Gastavam anos no estudo
metódico das fontes de uma questão. Adrián não servia para
um trabalho de arquivo ou de experiência. Passava negras

- 310 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

horas na sala de Antropologia; jamais soube estudar


tecnicamente uma coisa. As longas fileiras de caveiras olhavam
para ele com vazios olhares e ele fugia dali espaventado sob o
peso de um morto passado de humanidade.
Refugiado na literatura e na arte, o espírito de Adrián
movia-se com brilhantez, apresentava sintomas, traçava
sínteses. Ansiava um jogo soberano das essências da alma.
Deste modo percorria, aventureiro, as filosofias antigas e
modernas, na medida em que lho permitia a sua cultura: um
pouco de grego e latim, ultimamente um pouco de alemão
laboriosamente aprendido, às escondidas dos amigos, como
tapando a vergonha de não saber a língua inicial da filosofia
moderna.
Adrián tinha o suficiente bom senso para se aperceber
de muitas tristes realidades. Por exemplo, alguns dos que
prometiam muito no Ateneu e nas escolas nem sabiam mais do
que ele, nem desfrutavam daquela bela paixão que lhe dera os
dias luminosos do viver. Mas eles tinham ambição e sabiam
administrar brilhantemente os seus conhecimentos.
A ambição do rapaz galego era demasiado grande e
pura: mais que ambição, um elevado orgulho de pensamento e
dignidade espiritual que de nenhum modo se podia compassar
com a vaidade de outros. Alguns com um resumo, com uma
crítica, com os extractos de um bom manual, faziam carreira e
ganhavam fama. Adrián julgava uma indignidade falar de
Platão baseando-se em prólogos e críticas. Só o satisfazia
sentir, perante si, os glaciares brilhantes e poderosos do
pensamento. Frente a frente a sua humildade honrada e a
grandeza deslumbrante dos cumes. Com este método
desfrutava infindos e secretos prazeres misturados com
humilhações ultrajantes. É dificultoso respirar na atmosfera

- 311 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

superior e, quando uma pessoa parece estar a ela acostumado,


logo se debilita a força do pensamento.
Adrián escrevia num caderninho algumas notas, como
etapas de rota. Uma dizia: «Ainda estou bem longe da pureza e
disciplina do pensamento. Medito mal e pouco. Todo o mundo
variado e sugestivo me afasta de mim mesmo.» Isto
aconteceu-lhe de uma forma impiedosa com o estudo de
Spinoza. Porque é que vinculava, numa relação inexplicável, a
doutrina da ética com a música de Bach? Não o saberia
explicar. Por outra parte, teimava em fugir das comparações,
pois após um tempo dedicado ao filósofo holandês, não se
sentia capaz de fazer uma síntese clara da doutrina. Ele vivera,
ou lhe parecera viver, livremente nela. Não podia explicá-lo.
Ficou nele um grande prazer espiritual, a lembrança de
algumas páginas, a impressão de um sonho metafísico
impossível de guardar no espírito.
Adrián duvidava do seu entendimento e caía numa
tristeza vã ou começava a mordiscar a côdea de um grande
fruto filosófico que ele encontrava nos seus imaginativos
passeios. Deste modo, após Platão e Spinoza vieram Descartes,
Hegel, Schopenhauer, Bergson. Como todos os preguiçosos e
voluptuosos do pensamento, Adrián amava Nietzsche, cujas
páginas eram para ele como os beijos de uma brilhante e
melancólica Safo, cujo amargor o fazia gozar mais fortemente
que os açucarados sucos do pensamento vencedor. Adrián
sentia a falta da suficiente energia de meditação. Era sempre
chamado pelo mundo: jamais Ego, era sempre Diálogo na sua
alma. Outra nota: «Esta minha honradez será a morte aparente
e a vida salvadora para mim.» Jamais saberia filosofia:
«Alguma vez serei admitido na conversa olímpica dos filósofos
e darei a minha intuição.»

- 312 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Por caminhos estranhos, lendo Bergson, encontrou um


consolo. A evolução do seu pensamento poderia
esquematizar-se assim: “Não é pecado, pelo contrário,
necessidade, deixar-se levar pela vida. A vida em que quero
latejar é a vida do pensamento espanhol. Há que vivê-lo
primeiro na história, na arte, na paisagem, no povo”.
Agora Adrián estava alegremente metido no trabalho.
Da inquisição do que fora o amor castelhano passaria pouco a
pouco ao que fora o amor das ideias em Castela. Chegaria a
caminhar pelos adarves e escadas interiores do paço interior da
alma. Adrián necessitava resolver nas suas fontes o problema
do pensamento espanhol antes de seguir adiante. Hoje,
descendo às tolas realidades do viver, constatava como, depois
das suas ardentes noites de pensamento, não era homem para
responder a muitas perguntas do questionário do concurso.
Faltava-lhe a ciência do Grundriss. E Adrián, por dignidade
espiritual, por não desfazer o seu sonho interior, por elegância,
não quis concorrer ao primeiro exame do concurso.

- 313 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

VIII

Toledo. Adrián, cansado, queimado pelo sol, fuma no


hall. De manhã atravessou de autocarro a Sagra. À tarde, dando
longas pernadas sem fôlego pelas ruas toledanas,
ressurgiam-lhe as primeiras impressões de estudante e
delineavam-se-lhe ideias novas, logo idas, como espectros de
cavalos a fugir pelo chão poeirento. Depois de jantar
aguardavam-no as brancas folhas. Preguiça. Vinha o tempo
solene do Corpo de Deus. A gente rica caminhava até às festas
de Granada. Ali, os arvoredos da Alhambra e a noite recendente
a cravos peneiravam —pandeiro cigano a peneira— as
sinfonias de Beethoven. E a seguir a fuga para norte. Adrián,
quando via a estação do Norte no princípio do mês de Julho,
pensava na transumância espanhola. Era pelo tempo de voltar à
Galiza. Sempre com uma perda de esperança. O que estaria a
fazer a mãezinha àquela hora? Talvez tivesse sofrido alguma
desavença com os camponeses. Andaria daqui para acolá a
cuidar da avó, afanando-se por administrar bem.
Orvalharam-se-lhe os olhos. A seguir um remorso: «Que direito
tenho eu a gastar deste modo o dinheirinho?» Pelo menos havia
a justificação —sua mãe seria a primeira a lha conceder— de
lutar por criar uma sua personalidade. E não era tudo ideais

- 314 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

livres. Com os livros chegariam a fama, o dinheiro, a cátedra.


Agora sentia era uma outra vergonha. Adrián viajava de
automóvel, fumegava bons tabacos, espargia gorjetas, pousava
num hotel bom. Quando é que se viu um pesquisador da alma
espanhola com facturas de hotéis elegantes no bolso? Deveria
caminhar a pé como noutro tempo o doutor Francisco Giner,
como Frei Francisco Jiménez de Cisneros, ou pelo menos de
comboio misto e caleça como Azorín. Parar nas hospedarias de
almocreves e carregadores, «posada de Esquivías, Salas,
Almazán, Olmedo!», disse Machado, acostumado a viajar
«siempre sobre la madera de mi vagón de tercera»; falar de
amores com raparigas de aldeia e señoritas de boa casta
arraigadas na terra do trigo, do forte vinho, das oliveiras
centenárias.
Adrián pensava nos esquemas do seu primeiro livro: no
princípio foram dois; sem o querer iam-se juntando num só.
Paralelamente decorriam pelas páginas duas correntes da
mesma fonte, porém, depois desviadas por terrenos
dessemelhantes. O solo cársico, enxuto, com lagos sob a terra,
vales precisados de observação, esquemática vegetação
stendhaliana de um Ensaio sobre o Amor Castelhano... A terra
de bom cereal, patriarcalizada pelas antigas azinheiras —os
juízes de Castela dentre as árvores—, aberta na aba das serras
primaveris, onde em menina brincava a rapariga de Fresdelval:
a Nossa Senhora das Lavercas. Livros ainda distantes,
sensitiva matéria vivente, sem esqueleto e sem pele, exposta a
ser queimada pelo sol ou pela geada. Tudo pendia do seu
trabalho esforçado.
Depois do jantar, Adrián foi andar outra vez por Toledo.
O luar pendurava panos de chamamento misterioso nas torres
do castelo de San Servando; crescia o duro fugir do Tejo na

- 315 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

foice de pedra, consolava os calvos cimos da outra beira da


Vega abrasados pelo sol. Torres mudéjares, raparigas que de
noite vão à fonte com elegância semítica, agora veladas pelos
panos do luar. A abside do mosteiro de San Juan de los Reyes,
navio de alto bordo que já sonha com a rota das Américas.
Luxo de prelado ainda um pouco matinal e feudal já vestido de
novo à italiana, a fachada do Hospital de Mendoza. Mistério da
catedral cingida de ruas, mostrando a porta teologal dos
Evangelistas e o triunfante goticismo de Reconquista da porta
dos Leões. Imperialismo do alcácer, primeiro esquema do
Escorial. Adrián pensava em Bécquer, em Maurice Barrès.
Bécquer gozava como um descobridor. Aquela alegria, uma das
poucas do seu viver pobre, não voltará a repetir-se. Barrés
também desfrutou de uma felicidade: homem de cultura
confiada, feita, dominadora, gozava de Toledo objectivamente,
como mais uma experiência. Encontrava, em carne de
edifícios, em paixão, em terra e sangue, um dos seus sonhos de
egotista, como um cheiro gostosamente trágico que não lhe
fazia minguar a vital energia interna, cruzada pelas águas
eternas da Lorena.
Adrián, no entanto, tinha de conquistar heroicamente a
sua personalidade, ali, no cerne de Espanha. Uma obra de
Reconquista. Sem ajuda do apóstolo Santiago, pois do que se
tratava era de vertebrar com osso e miolo espanhol a mole
matéria galega. Estava a escolher bem o caminho? Talvez fosse
melhor para ele viver algum tempo na terra burgalesa. Toledo
estava demasiadamente abrasada por sóis triunfais ou críticos.
Sol do Império, sol da Inquisição, luzeiro severo da Geração de
98. Mas antes, e no seu interior, sabia também, ali em Toledo,
outra coisa. Nela encontraria Adrián a sua confiança. A mesma
coisa simples, forte e eterna que desde os amanheceres do Mio

- 316 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Cid corria até ao cantar das lavercas todas as manhãs. Dono


dela, chegaria a adoptar uma posição filosófica e a perceber o
mundo. Adrián descia para a Vega. «Há demasiado sol em
Castela e na história de Espanha —reflectia—. Este luar dá
calor e uma outra profundidade interior para avaliar as coisas».
Adrián não sentia asco pela tacanha vida moderna das
cidades castelhanas. «Tinham sido injustos Baroja e, sem
dúvida, Blasco Ibáñez. Há muito mais do que padres a jogarem
às cartas e señoritos fanfarrões. Estamos num tempo de
trânsito. Do tempo das ruínas para o tempo do trabalho. Não
sei como é que se tem dito que neste chão e sob este céu não se
pode desenvolver uma forte vida moderna. Castela parece
morta porque o seu pensamento está adormecido, à espera de
pôr a tradição outra vez na corrida do mundo».
Chegando perto da igreja de Santa Leocadia, Adrián
apercebia-se de uma presença desconhecida na cidade para os
turistas. Ele sentia-a e servia-lhe de guia. A presença visigótica.
Os Visigodos tinham sido sempre simpáticos para Adrián. Se
calhar, por um longínquo influxo da filosofia germânica. Logo
souberam estruturar um direito. Criaram uma ideia de Estado.
Deram-se conta da figura de Espanha, coisa a que não
souberam chegar os Romanos. Com eles nasceu a primeira
ideia imperial. E trabalharam com amor a Terra de Campos.
Wamba foi um verdadeiro castelhano, um dos primeiros
castelhanos históricos.
Em Toledo bastam algumas pedras das muralhas, algum
capitel, para manter viva a ideia de um Recesvinto. Rosa real29
de Toledo. Adrián tinha passado muitas muitas horas a
acompanhar o fino trabalho artístico às portas de bronze da
catedral. Voluptuosidade igual à de considerar as guardas de
uma espada na qual se enrola um rosário... Adrián via nisto o

- 317 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

equivalente do tirso dionisíaco: o tirso místico... Aquela mão


toledana educada por Romanos, por Godos, por Francos, por
Árabes, por Judeus, por Italianos sobre o tema da espada
ibérica e da ornamentação das cerâmicas dava à cidade a
verdadeira, indiscutível soberania. Virtuosidade semelhante à
de Florença. Contudo, virtuosidade antiga.
O que está vivo nesta Toledo estratificada? Adrián
assombrava-se da força e naturalidade do mudejarismo. Não há
estilos. Há terras. E reflectia, no entanto: «Talvez seja a morte
o que se tem, equivocadamente, por alto viver toledano.»
Adrián teria gostado de entrar de noite na igreja de São Tomé e
no Hospital de Afuera. Dois enterramentos: o Conde de Orgaz30
e o Cardeal Tavera31. Adrián não duvidava em estabelecer um
paralelo entre a obra de El Greco e a obra de Cervantes. Dois
soberbos funerais com grande orquestra. Com capela de música
italiana. Cervantes apaixonou-se pela vida livre da Itália. Terra
de caminhos, passageira. Por Castela, no seu tempo, não
passava ninguém. Saía-se em voos de açor em todas as
direcções da Rosa dos Ventos. Tudo cristalizava em poliedro de
cortantes fios e luzentes superfícies. Limpava-se o lixo da
vegetação e o lixo dos mouriscos. Deveria ser escrita uma
Crítica da Razão Teologal. O sol do meio-dia, fixo, no cume
do céu, matava o sol duvidoso, molhado de mar de alvorada do
Amadis. Simbolismo do coto do braço do senhor Miguel. Para
ser do seu tempo, chorando enterrou a Dom Quixote. Porém,
ficou-lhe para sempre no coração o braço amputado. Pois não
há emblema heráldico mais significativo do que o braço —a
mão— a sair de um coração. Também El Greco enlouqueceu
por ter de enterrar a armadura do conde de Orgaz. No quadro já
não há morto: dá-se terra a uma armadura simbólica, como
enterravam as bandeiras os terços dissolvidos.

- 318 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Adrián não escreveu uma linha naquela noite. Sentia-se


estranho e percebia a estranheza de Toledo. Considerava-se
bem longe da Europa. «Com que estilo espanhol conto para
atravessar os passos do Pirenéu?» Pois nem por um instante se
lembrou de que há, para caminhar a Europa, os caminhos do
mar. Barcelona, e sobretudo Bilbau, a Corunha.
Nos dias seguintes, Adrián procurou pousada baratinha
e encontrou-se melhor. O quarto, pequeno, abria-se para uma
rua sombreada pelos muros de um convento de freiras. Sem
importância, sem monumentalidade e, por isso mesmo, mais
aconchegante. Com certeza, naquele fechado e humilde
remanso brilhava a confiança de Santa Teresa. Acordavam-no,
cedinho, as badaladas simples, como de ermida rural.
Conforme avançava o dia, o sol ia cozendo os tijolos e a
sombra era azul. O cantar do vendedor de moringas tinha uma
antiga cadência de mourama, uma lembrança de oásis. Às
vezes, a Toledo abrasada pelo sol do mês Junho parecia uma
ruína deserta como Palmira. Mas, em vez de colunas que se
acrescentam, estranhas ao deserto, toda Toledo surgia da
entranha da Terra e dela sugava os sucos do viver. Na
pensãozinha havia empregados; um comissionista catalão,
grande falador, bebia o vinho de Yepes por um jarro de bico à
maneira do Levante. Esses orientais de Espanha estão sempre
dispostos a marchar: um esguicho de vinho para se beber, de
pé, num descanso da jornada. Havia um capelão moçárabe que
tinha muita piada para Adrián. Ser oficiante de um rito morto
era como ser um fóssil curioso na liturgia. Mais adiante Adrián
foi pensando que o moçárabe fora o verdadeiro rito da cidade e
de Castela inteira. Pelo menos da Nova Castela, vencedora dos
conquistadores do Norte, a Castela de corpo gracioso que leva
um jarro de Talavera ou estende a saia bordada da Andaluzia,

- 319 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

toda ornamentada de motivos africanos e asiáticos.


Algumas tardes Adrián passeava com um seu antigo
condiscípulo, arquivista toledano, grande erudito. Era um rapaz
triste, fino, de poucas palavras. Tinha irmãs freiras e outras
solteiras e um pai ainda forte, de brancas barbas, com falar
grave de lavrador de Sonseca, que ouvia sempre a primeira
missa na catedral. Adrián passava algumas horas no pátio, de
azulejos e flores, com um grande piano preto, da casa do seu
amigo. O pai parecia triste. Talvez a escura dor do chefe da
tribo a olhar para os filhos afundados num morto viver de
erudição e beatice.
Adrián expunha ao seu amigo as ideias que Toledo lhe
despertava. Dizia-lhe, enquanto passeavam e ao passar por
diante daquela casa que levava o estranho rótulo «Posada del
alma de Lucas Moreno32»:
—Desengana-te. Aqui o que está vivo não é o alcácer,
nem a catedral. São as portas de Bisagra e do Sol, todo o
mudéjar e moçárabe. Tudo o mais foi um grande sonho
adjectivo. A sinagoga é aqui tão do país como a igreja. Por isso
a outra Castela parece uma terra incompleta. A Cantábria quis
conquistar e foi ao contrário. Por alguma coisa o Cid,
puramente castelhano, querendo fugir do semitismo, procurou
por Valência uma saída ao mar. E Afonso VI, angustiosamente,
afinal rei de Leão, menos semita, quis fortificar-se com a ajuda
de Roma. Triunfou a teologia católica. Mas também ela se
propagou pela terra mudéjar. Não dês voltas à cabeça: há que
se apresentar à Europa como um bloco do Sul, erguido em
mesetas e serras para se purificar do Islão. Pelo menos eu sinto
Espanha desta maneira...
Adrián dizia isto com tristeza e estranhava-se desta.
Para se ser europeu, será que haverá que que renunciar a

- 320 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Toledo, a Sevilha, a Granada?... O amigo reprovava aquelas


sínteses aventuradas. Andava a estudar a dramaturgia de Rojas
e a história de El Greco. Vasculhava os arquivos. Dava a
sensação de um homem encadeado a um passado. Passando a
ponte de San Martín, a cidade parecia afundar-se um pouco no
vermelho e magnífico pôr-do-sol sob o pesar do alcácer.
Adrián, mesmo a sofrer, vivia dias felizes. Já tinha o esquema
completo do livro da «Nossa Senhora das Lavercas». Nos fins
do mês de Junho era chamado por uma carta da mãe. O padre
Bernaldo, o tio, estava a morrer. Adrián, como que a acordar de
um sonho, ainda teve, nas poucas horas que se demorou em
Madrid, outro despertar de grande importância para a sua vida.

- 321 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

IX

A horta da casa dos Solovio na ribeira do Minho não era


das maiores. Jeitosa, alegre e farta como era, não tinha inveja
de nenhuma. Depois de um pedacinho de jardim de buxos,
roseiras e laranjeiras, descia em dois planos até à mesma beira
do rego da Millarada. No primeiro cruzavam-se dois passeios
emparreirados, com postes de pedra a demarcar quatro quadros
de horta e batatas sombreados por algumas dúzias de árvores
de fruto. No centro ficavam o tanque de lavar e a fonte, que
vinham do mesmo manancial da fonte e lavadouro da aldeia,
posto ao pé da cerca do caminho. Fora obra de um antepassado
da casa e levava a data: 1792. No ano do Terror, o fidalgo
ribeirinho ocupava-se em canalizar as finas águas da encosta.
Um tema para o precoce espírito reflexivo do Adrianzinho
menino.
A segunda e mais baixa metade da horta também tinha
os seus passeios de vinhedo e toda ela era dedicada ao cultivo
de milho. Pela parte mais baixa tornava-se lameiro, sempre
verde, atravessado por um sendeirinho branco, companheiro
das águas correntes do regato. Ali, acarinhado por salgueiros de
tenro verdejar, amigos dos pássaros e sensíveis ao primeiro
sopro outonal, havia um moinho abandonado desde que foram

- 322 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

feitas as novas azenhas do Minho. Tinha a sua casinha, e as


pedras cobertas de musgos pareciam chorar pela ausência das
raparigas loiras e enfarinhadas de outro tempo. Xacobe não era
um espírito sentimental. Mas pela hora da sesta descia até
aquele lugar. Aguardava por algo que seguramente chegaria. E
chegou.
Xacobe, pelos começos do mês de Junho, foi à missa da
paróquia. No adro, falando com as filhas do Azeiteiro, não
parava de observar as pessoas que entravam. Depois, da pia de
água benta, durante a longa discursata do abade contra as
modas das mulheres, não fazia senão olhar para o lado do
altarzinho dourado e antigo que está ao lado do evangelho.
Entre a cerrada vegetação de lenços brancos, pretos,
vermelhos, amarelos, rameados, movia-se graciosamente o
lenço amarelo da filha do destilador das Bouzas. Deixava
vislumbrar uns louros caracóis e uma fronte branca. As
mãozinhas pequeninas andaram muitas vezes pela cabeça para
compor o lenço e, em duas outras, um olhar verde — verde de
lameiro orvalhado sob o raio do novo sol— foi procurar a pia
de água benta. Ora, a rapariga apareceria. E apareceu. Xacobe
tinha falado com ela em algumas ocasiões nos caminhos. Todas
as moças gabavam a lhaneza e o porte do señorito mais novo.
Era amigo de todos os mocetões, jogava à bola com eles como
companheiro. Boa diferença com o outro señorito soberbo e
calado, que até lhe custava trabalho falar com as pessoas!
Nessa mesma tarde de domingo, Xacobe ia com as do
Azeiteiro a falar e barulhar pela estrada. De repente, avistou a
rapariga loira. Ia por uma corredoura funda. Xacobe,
afastando-se um instante da companhia, saltando muros,
saiu-lhe ao caminho. Sem mais nem mais, abraçando-a,
estalou-lhe dois beijos nas faces:

- 323 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

—Não te esquecerás, minha jóia. —disse-lhe ao ouvido.


A rapariga, um pouco espaventada, diante da grande
mocidade de Xacobe, quase que uma criança, sentiu
remanescer um pouco de consciência moral e espetou-lhe:
—O menino Adrián é muito mais educado do que você;
ele jamais se atreveria a fazer uma coisa assim.
Rindo, fugiu enquanto acenava a Xacobe com a
cabecinha: «Não, não». E lá se foi a rapariga.
Juntavam-se no moinho com naturalidade completa,
como belos pássaros novos e livres. Nem ele se sentia um Dom
Juan ou conquistador do tipo gavião, nem ela vítima enganada
ou pomba submetida pela serpente. Nem literatura nem moral.
O claro juízo de Xacobe não dava mais importância a isto do
que ao facto de trincar uma boa fruta. Quase não dissimulavam.
E fora dos instantes dos encontros, ela era-lhe indiferente de
todo. Brincava, nadava, corria e passeava com as señoritas do
Azeiteiro, planeavam viagens para o Verão: iriam merendar aos
arvoredos mais espessos, não perderiam nas cidades as partidas
de futebol.
Xacobe, desde o Outono, entraria com um bom posto na
casa bancária da capital ourensana. Tencionava encher de
eucaliptos todas as matas e colinas da casa, instalar a luz
eléctrica para levá-la às adegas, fazer vinho segundo
procedimentos novos que ele estudaria.
A mãe, satisfeita, tinha somente duas preocupações
acerca da maneira de ser de Xacobe. As amizades com a gente
do Azeiteiro e o juízo que tinha de Adrián. Quando se falava
deste, havia, talvez, um sorriso nos lábios do irmão. Não dava a
mínima olhadela aos livros. «Alcan» e «Mercure», castelhano,
latim e alemão eram-lhe de todo indiferentes. Não gostava de
passear longamente pela sala nem de se sentar, pensativo, à

- 324 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

sombra das roseiras, nem chamava a mãe para lhe assinalar,


emocionado, a beleza de um instante de tarde ou de luar. E
quando chegou aos ouvidos da senhora María a história dos
amores do rapaz, sentiu assombro e uma dor insuspeita, uma
coisa que não podia conceber, que saía de todas as normas da
sua experiência, das suas ideias de honestidade e decoro. Ficou
atordoada por algumas horas, após as quais parecia ter
envelhecido muitos anos. De tal modo que a velhinha, de lá da
cama, fitando-a com olhos de espavento, lhe perguntou pela
desgraça que caíra sobre a casa e a família. A senhora María,
fugindo-lhe com um beijo na testa, fechada no quarto, explodiu
em soluços sobre o leito. Nem sequer pôde apaziguar-se e
esquecer-se de tudo entre lágrimas. Chegaram batendo à porta
com urgência. O padre Bernaldo encontrava-se à beira da
morte.
O grande sol do mês de Junho afundava o verde brilhar
das vinhas, desenhava em ouro o galgar dos pinhais pelas
encostas, tremeluzia no cachão do rio. Tempo de esperanças já
calhadas, de maturidade de Primavera, de torrão ainda fresco
sob os longos dias triunfantes.
Na aldeia da outra margem badalavam os sinos. As
fainas campestres paravam um instante e a notícia ia a correr
pelo vale: o padre Bernaldo está a morrer. A procissão do
viático descia pelas vielas do lugar. O mordomo do doente, o
senhor Pascoal, tão velho como ele, ia, de cabeça nua, de olhos
molhados, a tocar a campainha. As salas e os corredores da
casa enchiam-se de uma multidão ajoelhada. A senhora María
tinha tudo dispostinho: brancos panos sobre as mesas, acesas as
lâmpadas das imagens. O dia parece mais radiante, mais fundo
e puro o azul do céu. Cantam os passarinhos como aqueles que
estão engaiolados na dourada capela do Cristo de Ourense.

- 325 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Quando Nosso Senhor chegou à alcova, todas as faces


se viraram para o chão e no silêncio ouvia-se o tremor dos
corações: o velhinho desfeito e caduco, tão pertinho da morte,
atirou-se do leito abaixo sem que houvesse forças para o reter;
puseram-lhe por cima um velho mantéu e, ajoelhado no meio
do aposento, com os braços em cruz, comungou santamente. A
senhora María chorava a um canto. Depois o padre Bernaldo
sentiu-se melhor. Abençoou longamente a senhora María e
Xacobe. Traçou no ar uma cruz com a mão enrugada e serena.
Aquela bênção voou como uma pomba sobre o rio, indo pousar
sobre a cabeça murcha da irmã entrevadinha. Quando falou foi
para perguntar por Adrián.
Decorreram cerca de dois dias calados, fundos, atentos
ao mais pequeno movimento do doente. A senhora María só
deixava a casa para ir um instante beijar a velhinha.
Contava-lhe piedosos enganos. Até lhe disse que o padre
Bernaldo desejava um docinho de ginjas, que havia em casa. A
senhora María fitava, fria e desconhecida, Xacobe, sem lhe
dizer palavra.
Ao anoitecer do segundo dia, chegou Adrián vindo da
estação. Vinha mais magro, desfeito por causa da viagem. A
mãe, refugiando-se no seu peito, chorou por fim lágrimas
consoladoras. A derradeira inquietude fugia da face do doente e
a sua mão acarinhava a cabeça do sobrinho ajoelhado. De noite
ficaram sós. Então o doente falou a Adrián:
—Meu filho, vai ao gabinete e traz para baixo aquele
mapa grande... Quero vê-lo antes de morrer.
O sobrinho, com a ajuda do senhor Pascoal, trouxe à
alcova o mapa de Fontán. Penduraram-no na parede. Os olhos
do doente reviveram. A mão parecia assinalar horizontes. Uma
pura alegria animava a face murchinha e branca. Adrián, com

- 326 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

uma vela na mão, ia iluminando os lugares que o velho dizia


com voz longínqua: Corme, Laxe, Camariñas, Niñóns... Adrián
nem sempre sabia encontrar os sítios. O doente falava:
—Não, à direita, à esquerda, um pouco mais a norte.
A vela iluminou longamente um nome e o sítio de
Compostela. Adrián lia nomes de montes, de rios, de aldeolas,
de ermidas. A luz ia seguindo os percursos dos caminhos.
Naqueles instantes estranhos e fundos, pareciam luzir no mapa
campos amarelos de centeio, ermos vestidos de flores de tojo e
de piorno, serras escarpadas, campanários barrocos, gente que
vai pelos sendeiros aos moinhos e às feiras, verdejar de
cemitérios, fugir de águas, praias douradas, galgar de ondas nos
farelhões, velas que saem esteirando o mar, orvalheiras sobre
os arvoredos espessos, ruas de velhas cidades, solidões de
esquecidos mosteiros.
Adrián sentia-se comovido até ao mais fundo do seu ser.
Tremendo-lhe a mão, foi iluminando todo o caminho de
Santiago, a terra de Ourense, as duas aldeolas gémeas do vale
onde eles estavam, parou um instante como um círio funeral no
nome do lugarejo onde o padre Bernaldo estava a agonizar e
depois foi percorrendo todo o desenho das fronteiras e costas
da Galiza. O padre Bernaldo já não falava. Sorria. Grossas
lágrimas queimavam as faces de Adrián. Teve de sair à sala e
libertar os seus soluços na janela, para a noite. A seguir,
atendendo aos sinais do doente, pôs-lhe o crucifixo nas mãos.
Já não o afastava dos lábios.
A senhora María chegou com o abade. Um débil
suspirar fugia veloz do leito. O clérigo murmurava as orações
de agonia. Um rumor como o da derradeira água de uma fonte
que se seca. O padre Bernaldo morria docemente e uma negra
sombra desdobrava-se sobre o mapa da Galiza.

- 327 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Adrián partira triste de Toledo. Tinha acordado de um


sonho, talvez demasiado crítico. Saía sem chegar a ser dono da
segurança que almejava. Fugia-lhe o poderoso convencimento,
a energia de que precisava. Sobre o alcácer, uma nuvem de
trovão dispunha um céu como o do quadro de El Greco. «Será
necessário» —reflectia Adrián a pensar no quadro— «olhar
para Toledo lá das nuvens». A noite de Madrid foi nojenta,
ansiosa, cheia de pesadelos. Pareceu-lhe indigna a Porta do Sol,
artificiais as alegrias das verbenas. Espanha já não sabia
confessar a sua dor. Eram preferíveis os frades predicando nas
ruas e as procissões de disciplinantes.
Com a manhã chegou um descanso e uma pureza.
Talvez naqueles instantes o padre Bernaldo estivesse a morrer.
Adrián não queria pensar em sua casa. Teria tempo. Tremia
perante a necessidade de se portar como homem de governo e
disposição. Cedinho, para enganar a impaciência, foi chamado
por um homem que, cabeça nua, de fato seriamente desportivo,
descia dos altos do hipódromo. Um amigo de elevada
dignidade na Junta33 e na Institución. Falaram, aproveitando o
tempo. Primeiro Adrián respondeu a um inteligente
interrogatório. Com algumas honradas reservas mentais,

- 328 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

assegurou dominar o grego. Faltava-lhe alguma prática no


alemão. O outro apontava tudo depressa num pulcro
caderninho de notas. Não estimava grande coisa as
preocupações e angústias filosóficas de Adrián. Adorava, pelo
contrário, que mostrasse interesse pelo ensino da filosofia nos
liceus.
Da rápida conversa —o homem era aguardado por uma
grande camioneta com estudantes para uma excursão às aldeias
da serra— resultou a precisão absoluta de que Adrián fosse
para a Alemanha estudar o dito ensino nos ginásios. Mas antes
convinha-lhe dar uma passeio por lá, no Verão. Ele tinha
dinheiro, não tinha? Quanto é que lhe produziam as terras
arrendadas? O amigo institucionista* calculava: um tanto para
viagem, outro tanto para pousadas. Em terceira classe. Sem
vinho. Ser-lhe-ia de grande proveito. Adrián comprometeu-se.
Uma volta à Europa. Ele conhecia somente um pouco de Paris.
Isto não interessava ao outro. Para o Inverno de certeza que
contaria com a bolsa de estudos. Agora era dar uma voltinha
durante o Verão. Despediram-se.
Adrián, sossegando um pouco por um comunicado
chegado de casa, —o padre Bernaldo ainda se iria aguentando
— passou as horas, até apanhar o expresso para a Galiza, num
café sob a ventoinha, revendo e corrigindo o manuscrito. Era,
em substância, a seguinte história:

NOSSA SENHORA DAS LAVERCAS

No peito e coração da Velha Castela, os chãos


trigueiros alongavam-se até aos cabeços do oeste, por onde o
sol se punha. Pelo norte, azuis e brancos percorriam os dentes
* Adepto da Institución Libre de Enseñanza.

- 329 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

das serras cântabras; a sul, o chão não tinha mais lindes que
as nuvens às vezes paradas no seu vagaroso caminhar, mas,
por onde nasce o sol, uma serrinha baixa, dura, erguia dentes
pedregosos e fazia sossegar, ao seu pé, pequenos vales onde a
neve fazia bulir regatos cantadeiros. Um ambiente de cristal,
com fios do vento sempre a afiar os perfis dos homens tenazes
e das velhas azinheiras, conselheiras que fazem rodas de
sombra para que os anciões do conselho se juntassem para
governar.
Por ali tinha cavalgado o Campeador34, de olhar
agudo, e tinham passado queimando os restolhos, como que
levados pelo quente soão, os esquadrões dos alarves. Mas
todos os conquistadores se quebravam, como lanças contra um
muro, no peito rijo daquela terra onde o falar grave e as
maneiras de rude cortesania de pastores mostravam o fundo
de rija virtude cristã e uma imorredoura e calada esperança
sob as tormentas de branca neve e sob a longa labareda do
sol.
Ali não havia sentido da história. Todos os tempos
eram iguais a si mesmos. A ermida românica ainda luzia a sua
branca pedra sem que um manto de musgos a cobrisse. Azul
do céu, branco de neve, amarelo dos trigos, sangue das
papoilas nas curtas primaveras: A sombra de um homem
agigantava- se no pôr-do- sol vermelho e, de noite, no silêncio
geológico, as estrelas queimavam-se em ardente espera pelo
milagre. Pelo milagre quiçá acontecido noutro tempo
longínquo ou futuro.
De manhã bem cedinho, a menina, fria de sono e de
noite, tinha medo dos píncaros do vermelho luar minguante.
Logo lhe fugiu este medo. Tinha dois amparos: a casa dos pais
e a ermida da Virgem. A casa colava- se como um caracol a um

- 330 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

pedaço do velho muro do tempo dos homens vestidos de ferro.


Parecia feita de ossos. A ermida branca, ascética, nua, bebia
sol, ar, geada, neve; bebia almas, posta num arredondado
picoto onde terminava a ondeante maré dos trigais.
A menina considerava o nascente. Ficou- lhe daquilo
uma gravidade no olhar, uma fundura sob a rija tona de luz
dos seus olhos. Tanto poderia sair o anjo vermelho do inferno,
o que lhe piscava os olhos na dança do fogo e no avermelhar
das papoilas, como um anjo de luz. A voz da mãe mandava-a
ir buscar água à fonte. Uma fonte que, depois de surgir, se
deitava, silenciosa, em fundo remanso, em vez de humedecer o
sedento torrão dos campos. Mas a seguir soava a cristalina e
pura folia das lavercas, acordando a voz pequena e
consoladora dos sinos. A partir de então, os medos fugiam.
A rapariga, Teresa, gastava as horas em companhia
das brancas ovelhas. Freiras que tinham por porteiro o cão
vestido de saial. Escravas, mansas, nos olhos qualquer coisa
que se não sabe se é doçura ou bestialidade sonolenta. Teresa
crescia como palha de trigo. Às vezes a neve fazia- a vergar a
cabeça. A sua fala, banhada no ar frio. A sua cintura, recta e
esbelta como uma afirmação. Tinha catorze primaveras
quando em casa dos pais veio demorar-se um homem que
parecia tecido de esparto e de enxutas raízes de giesta: levava
um hábito remendado, queimado pelos ardentes sóis de
Castela e a barba como poeirenta vegetação do alqueive.
Falava do pecado e da tentação e dizia:
—Tem os olhos verdes e nasceu do mar. Sabe pintar o
mundo de arvoredos e lameiros, de vinhas e de águas. Manda
na terra que está mais além daqueles montes azuis. Para ser
eleito do Senhor, jamais abra o místico cinturão que cinge,
como um voto, estas terras de Castela, deixando espaço

- 331 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

suficiente para que a alma se recreie na largura dos horizontes


como disciplina que dispõe para o Céu.
Teresa, que, entretanto, passava a mão pelo lombo da
ovelha mais mimosa, tinha aberto um livro de devoção.
Sonhava que a vara de pastora se tornava em báculo abacial
de uma confraria de freiras. Outras vezes, deixando os olhos
voarem e queimarem- se nos clarões cor-de-rosa do
pôr-do- sol, sonhava com ela própria a borrifar gotas de
sangue expiatório sobre a enriçada silva do pecado. Tinha o
olhar tão agudo e magoante como uma flecha e os rapazes do
lugar baixavam a cabeça diante dela, sabendo- se vigiados nos
seus pensamentos. Quando a negra cruz da missão abria os
longos braços desesperançados no Calvário, Teresa
ajoelhava- se ao seu pé sempre que podia e as mulheres, ao
passarem, diziam:
—Lá está a nossa freirinha, a nossa santa, a rezar.
Vieram anos de pobreza. A flor dos trigais não trouxe
espigas. O vento bufava, ria endemoniado e trazia a peçonha
matadora das ovelhas, uma atrás da outra. Nada conseguia
amolecer por meio de lágrimas a limpa secura dos olhos de
Teresa. Sustentava a vontade e a fé hesitante dos vizinhos. Até
ela mesma quis sofrer com seriedade o castigo de Deus. E foi
servir.
Saiu da limpa paisagem de dureza claustral e foi para a
beira-mar servir num grande sanatório. Nem a surpreendia o
mundo brilhante e novo, nem deixava que os olhos
procurassem a radiante esteira das naus viajantes. Parecia
uma freira com a farda de enfermeira. A superiora de todas as
outras. Os doutores do corpo e o capelão tinham em Teresa
uma incomparável ajuda, pois diante daquele olhar havia
poucos doentes que se atrevessem a se queixarem. «É uma

- 332 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

doutora em Teologia, fria e dominadora como um padre de


Trento», disse dela uma senhora um pouco literata, de Madrid.
O sanatório dispunha de grandes passeios de
eucaliptos e roseiras, de pinhais soluçantes e de águas onde
navegavam as folhas murchas do Outono. Foi pelo Outono
quando chegou o senhor Fernando. Vinha doente do peito. Era
bonito e falador. Suspirava por brilhantezes longíquas e
saltava em poucos instantes de um abatimento morno à mais
hilária e palradora alegria. Falava sempre das suas viagens:
das ansiosas travessias nocturnas, cortando a dupla treva
calada da noite e do mar, com o pensamento posto na doçura
do porto. Portos molhados de nevoeiro, esmaltados de luzes de
álcool e de loiras tranças; portos dourados em que as
mulheres com flores no cabelo descem para apanhar marisco
nos recantos da costa; portos humildes onde é delicioso ouvir
toda a noite o galgar disforme das ondas; portos gelados, que
aprisionam os barcos como braços nus e brancos de
valquíria...
O senhor Fernando não podia passar sem a companhia
da enfermeira. Ela teimava em acender no peito doente e
fatigado pelas rotas uma chama de amor de Deus. O senhor
Fernando ria com um riso que logo se tornava protesto
demoníaco sob a argumentação de Teresa. Todo o sol místico
de Castela falava pela boca da enfermeira para secar aquele
salgado estourar de oceano rebelde que era o génio do senhor
Fernando. E conforme melhorava — o longo sono, acalentado
por rumores de arvoredos e por calmos passos de sanatório, já
lhe aquecia o esguio corpo trabalhado— o senhor Fernado
deixava- se levar pelo mistério dos olhos serenos, desejava com
toda a força acender neles um fogo ou provocar um orvalho de
lágrimas. O mestre de amores tinha-se apaixonado. Todas as

- 333 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

artes aprendidas em cinco continentes caíram como redes


mortas ao pé daquela finura e esbelteza de trigo burgalês. Até
que, uma noitinha, surgiu nele o marinheiro de braços como
cábreas e olhos de genebra. E beijou-a loucamente junto dos
brancos eucaliptos do jardim invernal.
A mulher já não foi senão vingança. Uns dedos de ferro
assinalaram a face do marinheiro. Um raio de soberano
castigo queimou-lhe o coração. O senhor Fernando tremeu a
noite inteira; consoante ia vindo o dia, a honra de cavalheiro
mordia- o, implacável. Ele não suportaria a luz do sol.
Afastara-se para sempre do mistério daquele amor desejado.
Se tivesse morrido no naufrágio dignamente! Não, não era
merecedor disto. Ali estava a pistola. E não hesitou em a
apontar contra o peito desonrado.
Até o capelão do sanatório suplicou a Teresa que não
negasse a quem estava para morrer o derradeiro consolo do
perdão. Ordenou-lhe. Ela não quis obedecer. Nem a morte
poderia limpar a sujidade atirada sobre o corpo enxuto
dedicado a Deus. O senhor Fernando pôs como condição para
se confessar um só olhar piedoso de Teresa. Voavam as horas e
a morte batia à porta. Ela não quis. A tentação acendera-lhe a
gelada pele e o tentador devia ser queimado no inferno. Tinha
os olhos verdes e era filho do mar. Razão tinha o monge da sua
infância. O senhor Fernando morreu sem confissão.
Teresa saía do sanatório, sozinha, sem que ninguém se
despedisse dela. Por entre os ramos despidos luzia um
vermelho pôr- do-sol. Teresa já nem voltava a vista atrás de si.
Aguardava pelo comboio da noite nas tábuas da sala de
espera. Na manhã seguinte já lhe entrava na carruagem a livre
luz castelhana. Os dentes da serra estavam vestidos de neve.
Ainda não se tinham pintado de azul quando Teresa, Sóror

- 334 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Teresa, professou singelamente no convento da pequena cidade


episcopal. Os sinos tocaram o dia inteiro e as roseiras eram
vermelhas como as chagas do Crucificado. A mão de Sóror
Teresa passava devagarinho as brancas folhas dos livros de
oração. Parecia a regra encarnada numa freira.
O senhor bispo passeava, com respeito e emoção, à
sombra dos pobres muros do convento. Viver sem tempo,
sempre com a mesma tensão de aço. Nem um olhar sequer
para fora das grades. Somente certa melancolia, logo
corrigida, quando o ar da manhã trazia um longínquo cantar
de lavercas, e uma esperança e um medo: a esperança de
visitar outra vez a Virgem da sua ermida dos tempos de
pastora, e o medo inconfesso de que talvez a santa imagem de
olhos de alvorada não lhe sorrisse como outrora e ficasse,
quiçá, chorosa perante aquela brancura, mais branca e mais
fria que os nevões de Janeiro.

Adrián, na casa da aldeia, não quis, por enquanto,


corrigir o manuscrito da sua narração. Deixou-o dormir numa
gaveta do escritório. Ele retomaria o tema. No tocante às notas,
esquemas e determinantes sobre outros assuntos, ainda tinha
muito que pensar e observar. Com alegria deixou tudo.
Passeando pela sacada, mordiscando o charuto, não se
ia da imaginação o momento da morte do tio. Muitas vezes por
dia olhava para o grande mapa de Fontán. Parecia ter vida
desde que se tinham afundado nele as derradeiras e amorosas
miradas do velho. «Agora — pensava— lamento não ter
aprofundado no viver do meu tio. Um dos meus infinitos
enganos. Qual era a ardente paixão que se queimava sob a
cinzenta velhice do padre camponês? Belo e novo tema
psicológico. Portanto, era do meu sangue. Não sei muito do

- 335 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

meu pai. Nos últimos tempos parecia-me de um cepticismo


absoluto. Contudo, lembro-me bem: desta mesma varanda, os
seus olhos procuravam o horizonte de um modo, talvez,
apaixonado. Fui um parvo. Ter-me-iam ajudado a penetrar no
meu próprio mistério». Adrián tinha lágrimas nos olhos.
Graças a Deus, nem teve vagar para se deixar amolecer
por esta nova inquietude. Era preciso dispor a viagem. A
senhora María vencia a intensa dor e considerava-o com
entusiasmo:
—Estuda, meu filho. Faz-te um homem. Não percas
nenhuma ocasião para brilhar pela inteligência. A tua mãe está
aqui para cuidar de tudo. Nada te faltará.
Xacobe estranhava aquela linguagem jamais ouvida,
aquelas palavras: inteligência, sacrifício, estudo.
Adrián, ao passar a fronteira, latejava de emoção: ia
desposar-se com uma nova realidade, talvez a sua. E o vento da
Europa brincava, qual menino, com os primeiros cabelos
brancos das suas têmporas pensativas.

- 336 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

XI

Adrián roda no comboio pela descoberta França.


Descoberta também Castela. Mas em França parecem realidade
o desenho e a cor dos mapas, sem curvas de cotas. A crista
espumosa da onda pode, sem esforço, salpicar os chãos do
interior. A eles colam-se nevoeiros e orvalhos, sem precisão de
se destilarem em nuvens decorativas, como na alquitara dos
montes cantábricos, ibéricos. Modernidade, pré-história —
pré-espanholismo— dos Bascos. Honradez das boinas
vermelhas dos migueletes*. Terra de homens, falar da Idade da
Pedra, que refresca os civilizados das cidades tanto como as
termas e põe a descoberto esse intenso sentido do mundo que
levamos em nós.
Paris, durante muito tempo, recolhia os meridianos
como as bridas da quádriga europeia, da course mundial. Hoje
outras mãos agarram bridas em corridas divergentes. Contudo,
Paris, à força de experiências, criou um estilo. Precisão de o
definir. Com ele vai uma definição da Europa. Não da de hoje,
inteiramente. O luar vaga silencioso, calçado com botins à Luís
XV de senhora pelo campo francês. Arvoredos da Turena,
águas preguiçosas, desportivas, sem sentido industrial. Toda a
* Membro da milícia foral de Guipúscoa no século XIX.

- 337 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

actividade fica tingida de agricultura. Tremor dos bosques,


talvez à espera da trompa de caça matinal. O burguesismo
francês, burguesismo como remate de antiga épica. Diz-se que
o academismo do Grand Siècle não se apercebia da paisagem.
E o duque de Sully plantava pereiras nos caminhos para fazer
de todo o país um parque. E Voltaire conta como, para
satisfazer um desejo de paisagem de Luís XIV, certo cortesão
cortou, para alegria do monarca, toda uma fileira de velhas
árvores. A lua nos vidros das grandes granjas navegadoras, ao
longe, nas colheitas. Maturidade. Depois da colheita, ouro nos
bosques e germinação calada nos sulcos.
Adrián, ao avistar uma igreja românica, sentia-se como
um buxo campestre. Lembrou-se do seu apelido românico:
Solovio. Sub lobium, a primeira cultura do medievo a arar a
terra antes a monte, nome de uma igreja de Compostela.
Sentia-se mais moderno, mais poroso, desde que os vermelhos
de fogo do mudéjar não lhe feriam mais os olhos. Mais
húmido. Mais curvas do que arestas, mais matiz do que cor,
longos crepúsculos e minguante valor do sol do meio-dia. Em
Poitiers uma data. A batalha que deteve a invasão do Sul. Pela
primeira vez a Europa frente a África. Agora uma questão de
método. Deveria parar na província.
Porquê França igual a Paris? Ideia demasiado feita para
ser verdadeira. Enquanto bebia, o vinho tinto da Borgonha
parecia-lhe um borbulhar de alegria. Vinho cantador, grossa
essência do torrão, não a paixão calada, temerosa quando
estala, do vinho castelhano. Pelo contrário, uma brandura.
Faltava na paisagem aquela energia da serra e do chão, o
espírito talvez ficasse enredado na tona aconchegante do
mundo. Adrián abrandar-se-ia. Amoleceria a verticalidade
adquirida na disciplina de Castela. Escolástica de Suárez,

- 338 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

escolástica de Fénelon. Já preguiçoso no fim da viagem.


Voltaria para estudar o ensino da filosofia na escola
secundária... Agora deixar-se levar pelo vento e pela graça da
Europa.
Adrián pensava na sua emoção da guerra. Talvez fosse
demodé falar e pensar nela. Uma nova geração bulia pelas ruas.
O tempo aqui corre bem depressa. Os cemitérios já são terra
velha, para nova sementeira. Pisando o chão de Paris, um
estremecimento de prazer: as pernas e o dinheiro levá-lo-iam a
tantos lugares, todas as horas ocupadas e longas de lembrança.
Fortalecia-se o seu sentimento da injustiça com que a França
era tratada. Diderot foi algo considerável, a Europa não se
podia explicar sem a Enciclopédia e sem Rousseau. «Não há
que ter vergonha da cultura francesa». Sentiu-se um pouco
incomodado por alguma branca estátua de parlamentar na rua.
Parecia apanhar o trottoir para continuar até ao Palais Bourbon.
Adrián afundava-se na selva humana pelo prazer de se
perder e descobrir. Um alegre cansaço. As arcadas de Rivoli.
No tempo de Chateaubriand ainda se estavam a erguer e pela
Praça da Concórdia ecoava a machadada final 35. Castanheiros
que deram sombra à cabeça romântica de Michelet. Adrián,
grande leitor de Balzac, compreendia o assombro e o interesse
da Comédia Humana. A grande cidade era então coisa nova.
Napoleão movera grandes exércitos e ainda tinha memória
suficiente para conhecer o rosto de cada um dos granadeiros da
Velha Guarda. Balzac manipulava multidões e ainda podia
conhecer todos os banqueiros e todas as mundanas de Paris.
Hoje há que proceder por nações, e por continentes. No
entanto, a síntese não pode abranger todas as particularidades
de um modo satisfatório. E até que ponto é que o Paris
arquitectural respondia aos anseios de hoje?

- 339 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Adrián reflectia: «O fio não está quebrado na aparência


como em Espanha. Lá há que saltar falhas. A água oculta-se às
vezes sob enxutas tonas do chão histórico. Aqui há uma
continuação... Porquê o academismo das cúpulas? Porque a
doutrina da Ciência tem de ser universal. O academismo tão
amaldiçoado foi o só sentido ecuménico que se seguiu ao
ecumenismo da Igreja.» Adrián via nas lojas as pequenas
tartarugas que se criam para a mesa. Sempre a presença de um
elemento oceânico. Este Sena, licor de suicidas, espelho de
pálidos fracassados, coquetel que alaga todas as degradações,
experimenta, caladinho, a injecção poderosa da maré crescente.
A ilha da Cité vai soltar amarras rumo aos largos do Atlântico.
Paris, criado num chão filho das águas —cobertura
terciária como Londres— não perde a lentura. Castela, por obra
do sol, fez-se sólida cerâmica. Daí que o viver adquira em
Espanha um carácter sem remédio. Qualquer facto fica
desenhado na dura superfície. Não é esquecido pelo natural
decurso da vida. Tem precisão das enxurradas de lágrimas e de
sangue da penitência.
Adrián andou no primeiro dia até ao Jardim das Plantas.
Sentia-se ali uma doce velhice professoral. As árvores de todos
os climas tinham aprendido educação pois tinham sido trazidas
por exploradores de casaca e colarinho de renda. O primeiro
cedro plantado por De Jussieu. Génio francês capaz de fazer as
coisas com a naturalidade de um espírito educado. Aquele
cedro abriu uma das portas do Oriente, ajudando a
compreender uma outra exegese bíblica, como La Pérouse que,
percorrendo o Pacífico, saudava os reis das ilhas de coral com
um movimento versalhesco e deixava atrás de si uma etiqueta.
Não quis entrar, no primeiro dia, na Notre-Dame. Um
pouco tristes as torres. Quis, antes de mais, sentir em

- 340 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Saint-Denis o primeiro florescer ogival. A aldeia feia e nojenta


com tanto burguês e tanta pêra, tanto leitor de L'Intransigeant,
e um monumento ao descobridor de um produto industrial
qualquer, talvez o carbeto de cálcio, pois Adrián já não se
lembrava bem passados poucos instantes. Com o seu olhar, sem
fadiga nem esforço, do fundo dos bosques —o sol arranhava os
troncos como um gamo de ouro— seguia o mesmo tema até ao
lançamento das agulhas. Já não dava ao gótico um génio
heróico e combativo. Não falava em genealogia, mas sim no
espírito da terra. Sem violência, sem aspereza, a igreja parecia
alongar pelo cerne dos terrenos as suas raízes vivedouras. A
Ilha de França tinha andado a gaguejar escuramente até ao
século XII ao redor de um tema que sentia mas não podia
explicar nem cobrir de carne aparente. Houve um instante.
Juliano36. O primeiro parisien. No seu tempo, pelo rio abaixo,
os gelos do Inverno lavavam-lhe os olhos, acostumados à
ardente pele de fera dos montes da Anatólia.
Adrián imaginava todo um Inverno em Paris. Sair
cedinho. A grande cidade começa de novo a luta diária com a
indiferença da natureza. Rapazes de olhar esperto, de
cartapácio sob o braço, vão para o liceu Louis-le-Grand. Outros
para o Condorcet. Em Paris, a tragédia é mais precoce: são
tratados no liceu os temas que em Espanha surgem na
universidade. Talvez saia destes rapazes a fórmula humana —
humanística— do comunismo. Viver um Inverno em Paris.
Castidade ardente como a salamandra no fogo. Aulas na
Sorbonne. Gozar com calma a biblioteca de Santa Genoveva. Ir
traçando uma tese: Juliano, o primeiro europeu. E, como toda a
ideia da Europa, encontra a morte nos limites da Ásia. Para se
ser europeu há que se refazer, passar de uma para outra fé. A
que é que Adrián teria de renunciar?

- 341 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Uma tarde, indo para o Louvre, enganou-se de porta.


Tencionava tactear a ideia tornada sólido nas disformes
escultura assírias. Demasiado geometrismo o do Egipto. Talvez
no Eufrates, a célula vital, a matéria colóide do espírito,
paralela e estranha à cristalização egípcia. Por engano, foi dar
ao salão central de pintura. Era chamado por muitos
pores-do-sol, por leitos fundos onde se debatiam as deusas, por
arvoredos esquecidos pelo prestígio da figura central, por
teologias ardentes ou triunfantes. Só parou diante da fundura
das Virgens das Rochas37. Ali, um mesmo anseio saía da cena e,
abrangendo a paisagem, fazia a trágica e libertadora unidade da
pintura. Porquê planos de diferente categoria? Tudo são
instantes do mesmo. O problema: ter asas para penetrar nas
atmosferas diferentes da matéria e, com um esvoaçar,
escorregar sobre a moldura entre o espírito e o não-espírito.
Leonardo.
A ideia da Europa passa por muitos prismas. A
Antiguidade não soube criar uma Europa. A primeira, a de
Carlos Magno. A Europa escolástica. A do Renascimento já
conquista outros continentes para melhor se aperceber da sua
essência. Depois seguem-se outras. A de Rousseau, a de
Goethe, a de Nietzsche, a de Renan. Europas que vivem
confiantes, ou então latejantes, recriando-se, e com a prosa a
olhar para o porvir. Paris —depois de Aquisgrana, depois de
Florença — foi a que lutou mais por ser um cerne da Europa.
Agora, talvez um pouco cansada, deixa que a corrida das folhas
outonais se prolongue, ditosa, pelos livros, pelos parques, pelas
arquitecturas.
Hoje, depois do largo calor em que as cúpulas pareciam
amadurecer e de se contentar o obelisco da Concórdia, surgiam,
tacteando, orvalhos campestres e marinhos. Amolecimento

- 342 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

vital. Esses orvalhos jamais curavam feridas sangrentas dos


muros de Toledo, nem amoleciam o enxuto barroco de Madrid.
Talvez neles estivesse a razão de se renovar da Europa. Adrián
ainda caminhava com o olho castelhano ajuizador e valorativo.
Paris, flor rara e prodigiosa, mimada por todos os Heine, todos
os Turguenev, todos os Rilke. Não havia substantividade mas
diletantismo. Qualquer dia poderia fugir como as perspectivas
de um sonho. Bloco castelhano talhado em luz de almas.
Adrián lembrava-se de uma pintura de cujo autor não se
recordava: O Espanhol em Paris. Grande barba de pastor,
dureza de quem conquistou a verdade, consciência de se saber
estranho, tirando deste isolamento um princípio imorredouro de
confiança. Mas a energia dele durava-lhe pouco. Com dor,
experimentava como esta era antes fruto de um esforço. «Se
fosse natural — reflectia— nem duvidaria como duvidava em
Madrid, em Burgos, em Toledo, nem sequer teimaria em a
explicar. Jamais Hernando de Acuña, ou Filipe II, ou Herrera38,
ou Menéndez Pelayo pensaram em fundamentar um
espanholismo.»
E Adrián, outrora levado águas abaixo, sentia o desleixo
de ser cosmopolita, homem de sensação, de rua, de hotel, de
novidade, grande egoísta sensitivo, filho de leituras, de dúvidas
e de intensa desesperança quase não confessada no sorriso
satisfeito. Fidalguinho galego, somente por casualidade devia à
casta e à terra aquela moleza; comichara-lhe o sinapismo da
mística e do torrão espanhol e agora, seguindo a sua lei,
deixava-se moldar pelas mãos de mulher da Europa da grande
rua.
Falou duas ou três vezes com um colega da
universidade. Trabalhava como técnico em hispano-
americanismo numa grande editora. Uma tarde, entre a correria

- 343 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

de automóveis que vinham do Bois —já o Arco se afirmava


orgulhoso para fazer a guarda nocturna à chama do soldado
desconhecido— apontou-lhe num táxi o passar de uma cabeça
alongada, sonhadora, talvez teimosa, demasiado
angustiosamente tendida a um porvir: Maurice Barrès. Adrián
invejava a segurança do escritor. Orgulho chateaubrianesco,
longa experiência de Nietzsche como ensaio de valores, para
além da fortaleza de ser francês. Mas, que significa ser francês?
Na editora conheceu e ouviu falar, bem pouco tempo,
um dos novos mestres. Delineava-se já com uma forma de
personalidade dominante. Valéry Larbaud. Falava de França.
Da província. Porém, nos seus lábios não eram palavra
substantiva mas qualquer coisa provisória, necessária para se
entender com os parisienses.
Aquela noite, Adrián imaginava outra França. O mapa
desenhava de fronteira a fronteira, de mar a mar, do Reno aos
Pirenéus, o tecido de uma colmeia, a estrutura geométrica,
sólida, do insecto racionalista entre todos, mais racionalista que
o Homem. Racionalismo da Revolução e do Império: da
Enciclopédia. No entanto, aquela similitude fugia: um buquê de
flores e de folhas punha-se no seu lugar. Sob o traçado
poligonal, tremiam as grandes rosas não geométricas. Elas
viviam. Elas tinham um génio essencial, imorredouro. A
Normandia, a Bretanha, a Lorena, a Turena, a Provença, a
Borgonha... Cada uma a sua capacidade, o seu estilo, o seu
matiz. Quantos parques reais abandonados nas províncias!
Barrès loreno, como Chateaubriand bretão, como Lamartine do
Jura, como Mistral do quente e preciso Midi. Paris não era
nenhum denominador comum. A unidade francesa desfazia-se
num coro. A própria Paris cresceu mais do que as outras
árvores do jardim por recolher os ares da Europa, mas as suas

- 344 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

raízes eram da Ilha de França.


Na prosa e no verso dos melhores franceses, Adrián
divisou agora um estilo das terras originárias. E respirava
longamente o ar de França. No seu quarto de hotel havia
dourados do tempo luisino e a escada monumental
desenrolava-se com movimentos harmoniosos. Levava quinze
dias em Paris. Teria gasto docemente toda a juventude.
Justificava com novos passeios e novos problemas a propria
irrealidade sem cura. Gostava do seu francês, desfiado, verde,
duvidoso. Não o disciplinava. Ele ir-se-ia talhando,
amadurecendo, afinando no vasto viver cheio de passados e de
futuros. Sentia-se a caminhar com o passo do mundo.
Voluptuosidade. Já não a egoísta e trágica da ilha individual.
Precisava de um formoso ser feminino que lhe materializasse o
novo sentido da vida decorrente. E o feminino surgiu. Com
graça e beleza incomparáveis.
Uma noite Adrián lembrou-se de umas páginas do À
rebours de Huysmans. Deveria ser traduzido em castelhano por
«A contrapelo»*. Teve a mesma fome de vida inglesa, salgada e
forte, do víquingue dono das esteiras do mar. Sob as arcadas da
Rua de Rivoli, o letreiro «Bodega»** arredondava-se grosso e
cheio, seguro e feliz como um tonel. Instalado a um canto,
Adrián atacava as fortes viandas, sentia-se cosmicamente
animal. Uma senhora loira, simples no seu outono, sentava-se
em frente. Na face maquilhada, os olhos verdes de lameiro
despertaram-lhe um conhecimento. Ela também logo se
lembrou dele. Adrián voltava a sentir-se um espanhol
conquistador da Flandres e de mulheres. Ela voltou ao gesto de
mulher madura e livre, recordando-se da inexperiência de um
* Em português, «ao arrepio» ou «às avessas».
** Em português, «adega», «taberna», «tasca».

- 345 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

intelectual sensível.
Falaram muito, bebendo as palavras, como se
quisessem agarrar e aproveitar um longo tempo perdido. E
como dois estudantes, a Marquesa de Portocelos e Adrián
Solovio atravessavam, na noite de Paris, as pontes românticas
do Sena.

- 346 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

XII

Na ribeira do grande rio galego, não longe da aldeia dos


Solovio, a suave curva de um meandro demarca a extensão e
fartura da veiga chã de fundo torrão, filho do rio, presidida a
leste pelo levantamento azul do picoto da Bidueira. Tem as
abas vestidas de pinhais em crescimento e peito sulcado pelas
enxurradas invernais. Os ribeirinhos chamam-lhe picoto com
um sentido de amor, como coisa mimada, presente em todas as
horas das suas sazões, e vêem-no como algo vivente, pois o
cume tem a forma de uma cabeça de gato ou de mocho, e até
parece, com certos ventos e certos sóis, acenar com as
orelhinhas bem-feitas. E bem sabem que se trata de um alto
monte, pai de suaves vertentes que descem esmaltadas por
campanários de igrejas, de famílias de terras e rodas de
castanheiros senhoriais até acabar na faixa baixa e quente das
vinhas.
No último estribo do picoto, postos como uma sacada
para vigiar as curvas do rio, o decorrer do comboio e da
estrada, as conversas dos serpenteantes caminhos campestres e
o nascimento dos preguiçosos nevoeiros outonais, os seis
ciprestes do paço de Portocelos endireitam-se para o céu. Os
dois mais velhos, já amarelos, mal são visitados por alguns

- 347 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

pássaros melancólicos que dali bebem, no bico e nos olhos, o


último sol. A cerrada ramagem dos outros apazigua, até no
cerne do Inverno, um chilrear de chios, um adejo alegre e
gozoso. Os primeiros foram plantados, segundo diziam os
velhos, pela famosa Senhora Dona Elisa. No vale e sobretudo
na extensão da vertente, era quase uma lembrança santificada.
Em seis igrejas ainda pareciam sorrir, alegre ou gravemente, as
santinhas e os barbudos patriarcas dos altares em buxo e em
pereira que tinham feito, por encomenda sua, os melhores
artistas do pôr-do-sol barroco. Já ninguém sabia as histórias do
tempo do andaço. As pessoas morriam pelos caminhos, os
mortos apodreciam nos campos, deixados a monte. Lenda
arrepiante. Castigo de Deus, que mal foi perdoado graças às
virtudes da Senhora Dona Elisa.
Contavam que com os pezinhos despidos e sangrentos
subira na manhã duvidosa, toda enregelada pelos soluços dos
sinos, até ao cume de pedra da ermida de Nossa Senhora dos
Remédios e depois continuara até à Nossa Senhora dos
Milagres, até à Virgem da Franqueira, dobrada como uma
pobre sobre o cajado dos caminhantes, e acabara por entrar
bem de manhã na catedral de Santiago. Mirradinha e trémula,
apenas lhe ardia nos olhos a luz da confiança. Pregava pelas
aldeias, pela ribeira, pela montanha. Voz do país galego. Voz da
raça ferida pela justiça do céu.
A voz e o pranto foram ouvidos. Com o cantar do cuco
chegou a saúde rindo nos bacelos, nos soutos e nos milharais.
Coisas do tempo velho. A Senhora Dona Elisa tinha feito a
grande sala do Norte e tinha lavrado com pedras escolhidas do
picoto a fonte do jardim. Não havia outra em muitas léguas à
volta. Um monge de Samos disse que não tinha comparação
com ela a famosa fonte chamada das Sereias do seu mosteiro. A

- 348 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

de Portocelos recolhia a água virgem, assim que nascia, em


cinco belas conchas de vieira sempre transbordantes e
cantadeiras, que a seguir, ainda escumante e brincalhona, era
deitada para o ar para quebrar o sol no septimino do arco-íris
pelas bocas de um circo de tritões de longa cauda hirsuta e
retorta. Bons tempos aqueles!
Adrián, caminhando nervoso com um renascer de
horizontes e de longínquas estrelas da manhã, lembrava a
estrada graciosa. Subia devagar para se tornar campo de
castanheiros em frente do paço. Adrián lembrava a sacada
tecida de pedras e de buxos, lembrava um senhor todo
barbeado afundado na grande poltrona ao lado de um lume de
cepos de torgal. Pela chaminé ordenavam-se os ramos da
árvore genealógica cujas raízes afundavam simplesmente no
tempo dos reis suevos de bárbaras nomeadas. Os fidalgos de
Portocelos foram carlistas, sonhadores e de fino senhorio.
Guardavam cartas do senhor Dom Carlos e retratos em que
Dona Margarida curava as feridas de tenazes soldados de
Navarra e das anteiglesias de Biscaia.
Sendo Adrián ainda menino, correu pelo vale a notícia
de que o senhor tomava estado. Foi papagueado por todos os
sinos do vale e estalaram os foguetes da festa. A noiva vinha de
terras longínquas. De grande cidade e boa casta. Ela, novinha,
trajando à moda, mais parecia a filha do que a mulher. «Onde é
que a tinha conhecido?», falavam os clérigos nas festas. Alguns
consideravam-na como uma perdição para o grave senhorio do
fidalgo e da tradição. O amor da roseira garrida com o velho
torreão. Um ar de desporto e de novidade corria sob as
carvalheiras de Portocelos. As folhas outonais voavam ao redor
da jovem amazona levada num livre galopar. Ela guiava o
automóvel pelas estradas da montanha e surgia nas misinhas

- 349 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

aldeãs rezadas devotamente nas igrejinhas românicas toda


recendente a modernidade e curiosidade turística. Um buquê de
rosas de França desfolhava-se no grave jardim do paço. Livros
amarelos, verdes, vermelhos de Alcan, de Kra, da NRF 39.
Amontoavam-se ao lado dos pergaminhos teológicos e
jurídicos.
O mesmo fidalgo parecia remoçado; até jogava ténis no
verde lameiro do pomar. Dois invernos. Longas viagens pela
Europa. Florinda, a senhora marquesa, aspirou as brisas
geladas do Báltico e viu-se reflectida nas águas de Veneza.
Tremeluzente imagem florida nos ouros bizantinos e trágicos.
O fidalgo só estava satisfeito nas viagens quando, na curva de
uma estrada, do belvedere de um parque ou da janela de algum
desmazelado paço real, lhe surgia um pôr-do-sol semelhante ao
do seu horizonte minhoto. Às vezes, esquecido do vagar
turístico, deixava crescer as barbas e demorava-se no hotel
enquanto a esposa percorria os magasins e pisava os asfaltos da
Europa com flores aos montões nos braços nus. Ela guardava
das suas origens americanas uma beata admiração pela Europa.
O seu marido, um pouco aflito em frente dos livros franceses
que ele não entendia, sentia a dor de ver tantas residências reais
abandonadas.
A monarquia fugia da Europa. Somente sossegava em
nações pequenas, tranquilas, situadas à margem do viver
directivo do mundo. Ele chorou ao saudar, em Frasdorf, Dom
Jaime de Bourbon. A mão do seu rei pousou-se-lhe no ombro
como uma despedida. No corpo do fidalgo envelhecido, toda a
sua casta soluçou com inútil fidelidade. A marquesa Florinda,
pelo contrário, deixava-se levar pelo ritmo da Europa. Amava
as mulheres literárias. Devorava George Sand. Teria desejado
fazer do paço galego uma residência semelhante a Nohant.

- 350 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Faltava-lhe um artista. Apareceu em Paris. Poeta, americano


ele, parente distante. Adrián recordava aquele homem moreno,
de olhar reluzente e estrofe requintada, nas festas da ribeira.
Depois o fidalgo morria.
Foi pelo Inverno. Chegaram ao enterro parentes de toda
a Galiza. Alguns já muito à moderna; outros, afundados na
pobreza em aldeias longínquas, falavam dos antepassados,
remoçavam velhas lembranças de direitos, pleitos e
pergaminhos enquanto olhavam de soslaio para a polposa e
elástica beleza da marquesa, radiante sob os lutos decorativos
da viuvez. Parecia mais perigosamente loira. «Quantos amantes
teria?», pensava Adrián. «Eu quis escrever a estética do amor
castelhano, ela tem profunda experiência dos amores da
Europa.»
Adrián tinha medo, um medo prazeroso de intelectual
afastado da sociedade das senhoras superiores. Afundava-se
neste medo salvador e saía dele adornado com um novo
prestígio insuspeito. Quanto o invejariam os professores e os
literatos seus amigos! Entrava na Europa com o pé direito.
Abria-lhe as portas a vénus cosmopolita, com cheiro a
extractos de cultura, madura e sábia como correspondia a uma
plenitude de vida. Ora, já não duvidava de ser amado por ela.
Talvez o ser analítico de Adrián precisasse de uma realidade
asquerosa: a marquesa exercitaria nele, como em incomparável
matéria virgem de paixão, as subtis artes do laboratório
amoroso.
Logo se deixou amolecer. No centro do seu amor havia
uma grande pureza, um gosto de rejuvenescimento. Paris
dançava através de novos prismas. Foram quinze, vinte dias,
longos, felizes, sorvidos, como frutos. Cada hora deixava um
fundo dourado e a esperança radiante do dia seguinte. Nem

- 351 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

sequer faltava o amargo travo dos ciúmes. Adrián era mais


fidalgo espanhol, o seu olhar mais concentrado, quando
Florinda libertava a pirotecnia do seu riso. Entravam os dois
nos cafés literários, visitavam as exposições, ouviam as
grandes missas de Notre-Dame e de Saint-Sulpice.
Chegavam da ribeira galega as cartas da senhora María,
repletas de pequenas ocorrências de aldeia: o soão queimava as
vinhas, o preço dos jornais aumentava, seria preciso pôr um
soalho novo na sala do sul, o Xacobe andava apaixonado pela
filha do Azeiteiro, um ultraje para a limpeza da casta... Adrián,
sorrindo, deixava as cartas sem resposta fácil. Escrevia
generalidades: anunciava à mãe um grande porvir. E corria para
a beira da marquesa.
Juntos andaram as praias normandas. Falavam de
Proust. Na multidão cosmopolita, Adrián era mostrado pela
marquesa um pouco como «le fier espagnol». Adrián, à noite,
fumando um cigarro, ouvindo uma música de dancing que
chegava a cavalo das ondas, fazia equilíbrios de vontade.
Apenas nos primeiros dias da ilha de Calipso se tinha
esquecido da análise interior. Agora o isócrono piscar do farol
da Mancha penetrava-lhe, impiedoso, no cerne da
personalidade. Como é que se tinha quebrado aquele severo
método —severo e apaixonado— de introspecção? O Verão
perdia a característica urgente de salvação. «Ainda estou a
fazer experiências elementares. Sempre longe e ao redor de
mim», reflectia. De todos os anteriores ensaios, apenas um
tinha um pouco de eixo rijo. Apenas a ele podia apelar para se
sustentar no chão da Europa: o eixo castelhano, espanhol. Seria
somente uma pose adjectiva? Teve medo de ficar sem o último
amparo se tentava averiguar a verdade. A luz do farol
alanceava a noite. Adrián sentia-se prodigiosamente só. E

- 352 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

correndo foi adormecer no único aconchego que tinha: a


marquesa. Para ele, o génio da Europa.
Os seus amores eram uma estranha mistura de paixão e
castidade, de sensualidade e idealismo. As primeiras
experiências ingénuas de um homem formado no estudo e na
reflexão, as últimas ingenuidades de longas experiências por
parte da marquesa. O Outono logo se pintaria nos parques; para
ela, insuspeitamente, seria uma nova Primavera. As amigas
francesas, americanas, espanholas, da marquesa pensavam que
ela acarinhava o melancólico espanhol como uma trouvaille
rara nestes tempos. Ela, mulher de arte e cultura à tona da pele,
surpreendia-se da tragédia interior, da estranha dinâmica do seu
amante. Às vezes, bem poucas, parecia de súbito envelhecida e
acariciava, como a um menino, o esbelto espanhol. Mas
duravam pouco estes instantes. Eram confissão de caducidade
inevitável. Jamais falavam da Galiza, do paço de Portocelos, da
ribeira minhota. Ainda nos momentos de arrebatada paixão,
caíam os dois, primeiro Adrián, a seguir Florinda, em silêncios
que se afastavam paralelamente. Não tinham valor para
traçarem um seu futuro.
Uma noite Adrián vagava sozinho pelas ruas de Paris.
Cruzava a Praça de Saint-Sulpice. Impressionou-o o cantar da
água da Fonte dos Quatro Bispos. O forte valor moral de
elegância do espírito, simbolizado no silêncio do bairro,
bateu-lhe na testa como um vento do largo. Entrando numa
pequena cervejaria, amargurado, Adrián comprouve-se ao
encontrar um carácter jansenista e sentou-se perto de um grupo
de rapazes. Tomavam notas de livros, discutiam serenamente
alguns nomes de filósofos franceses, comentavam uma lição de
H. Bergson.
Aquela serenidade dos estudantes acusava Adrián como

- 353 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

um remorso. «Eu, fidalgo espanhol!» —pensava— Valente


ironia! Para o ser devia, desde o primeiro instante, ter
trabalhado pela salvação da Florinda. Já que a quero, a minha
obrigação é dar-lhe à sua, à nossa vida as asas da salvação. A
culpa é apenas minha. A Florinda é boa, inteligente e sensível;
aguarda pela mão que a liberte do servo viver da moda e da
tona da alma». Adrián, já gozoso, começou a pensar numa
estratégia. Tirá-la de Paris. Despertar nela a fibra romântica
sempre adormecida na mulher.
Na manhã seguinte, no Jardim do Luxemburgo,
Florinda quase se debruçava sobre Adrián:
—Meu amor, tu, no fundo, sentes desprezo por mim.
Ou senão, que querem dizer esses teus olhos carregados de
noite?
Adrián jamais lhe ouvira tais palavras. Um orgulho da
sua juventude. Um orgulho de ser amado no Paris dos sonhos
adolescentes. Ele não subiria ao cemitério do Père-Lachaise
como Rastignac para lançar à cidade um desafio de conquista.
Porém, no jardim prestigioso onde cada sombra guardava um
esvoaçar romântico ou parnasiano, Adrián sentiu ser um valor
de triunfo. Mais para a frente, pensar o futuro. Para já,
afundar-se no amor da Europa e da marquesa.
Ela recebeu com alegria a ideia de Adrián. A viagem do
Reno. Weimar. As pequenas vilas sonoras de músicos e
filósofos. Grande indústria: um pouco de americanismo do
Norte no cerne da envelhecida Europa. Novidade de Berlim,
nome sempre um pouco de guerra, de marca do Ocidente
contra o mistério eslavo. E apanharam o expresso de Colónia
como uma fuga libertadora.

- 354 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

XIII

Noite no comboio. Um bocado de noite, pois as tiradas


inteirinhas são próprias da Península e, embora contra as
aparências, não tiveram o seu reflexo num superior
desenvolvimento da introspecção na raça. Por causa de um
peso explicável de formação, Adrián lembrava-se de Madame
de Staël e do seu livro sobre a Alemanha. Outro motivo de
sofrimento para Adrián. Porquê dar tanto valor aos livros e aos
problemas dos começos do dezanove? Se calhar por uma
dignidade já um pouco heróica pelo tempo decorrido, de tal
forma que o romântico se tornava clássico e formativo.
Também a Ilíada, concebida romanticamente, foi, ao longo dos
séculos, a palmatória senhora das escolas. Ou então era que
havia pouca capacidade para sentir o impulso trágico do
momento presente.
Nas viagens procuram-se mais ruínas do que
sementeiras. Daqui a inferioridade actual dos homens da
cultura em comparação com os homens da economia. Estes,
pelo menos, sabem pisar numa certa actualidade, ver um
pequeno futuro e até dominá-lo. A marquesa levava um plano
turístico: agulhas de Colónia, Sanssouci, noite de Valburga,
Tiergarten. Que não lhe falassem no Báltico nem na árvore

- 355 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

florida que nos meses tépidos assombrava o quarto onde Kant


estudava.
Tecendo ideias à volta de Madame de Staël —recender
de um pecado inteligente, novidade relativa, rebeldia contra o
imperador, dela só, de uma mulher—, Adrián traçava as duas
fugas opostas: para norte e para sul. Muito mais do que
turismo, ou, por outras palavras, turismo transcendental. Dois
eixos dinâmicos do viver da Europa não tão levianos e simples
como parecem numa síntese de caminho de ferro, à noite, ao
lado de uma bela mulher sensível envolta em peles de alto
preço. Ela não podia conter um desassossego nervoso, ouvindo
as falas germânicas. Chegavam frases inteiras nas quais
alternavam palavras duras, fortes, palavras em figura sonora de
bala, de zepelim, de trave de ferro, com outras, pouquinhas,
quase meigas, com um mimo nórdico de abeto verdejante ao
lado do calmo lago congelado. Símbolo provisório da
Germânia: no meio da névoa filosófica, um arvoredo de
chaminés.
A marquesa, turista, parecendo um pouco mais velhota
depois de uma horas de comboio, perturbava Adrián com os
seus comentários pouco respeitosos. Adrián, se calhar um
pouco abatido pelo amor, experimentava uma grande
necessidade de se ajoelhar, de se submeter a uma superior
categoria do espírito. Deveria passar o Reno, directamente,
desde Castela. Mas todo o espanhol há-de pagar o tributo a
Paris, ainda que agora não esteja na moda confesá-lo. Dizia-lhe
a marquesa:
—Meu Adrián, pelo amor de Deus, não me chateies
com filosofia. Entre o almoço com sebo e o pão de aveia,
vais-te encadernar em Herr Professor. Eu não sei outra
filosofia senão a aprendida numa lição de Bergson na

- 356 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Sorbonne: aprazia-me o frescor dos grandes pátios de pedra. As


demi-mondaines inclinavam a cabeça vazia recebendo a
bênção das mãos deformes do mestre. Que pensa o meu fidalgo
calderoniano?
A ligeireza da marquesa arreliava Adrián apenas por um
instante. Ora, então não era verdade que ele tinha conseguido
uma farta conquista que mal podiam imaginar os seus amigos
ao entrever a roupa interior de alguma vadia? Nenhum
intelectual do seu tempo mordera um fruto tão açucarado,
saboroso e moderno.
Sob o esqueleto inteligente da ponte dos Hohenzollern,
o Reno parecia duro e disciplinante. Sobre as ruas assépticas,
brilhantes, como peças de uma máquina, pairava dubitativa
uma sombra de renda da catedral. Ainda era noite. Halos nos
lampiões e cansados piscares de estrelas. Já no hotel, a silhueta
de Florinda, cuidadosa com a toilette na casa de banho, fez
estourar Adrián numa gargalhada: valente vida esta de jovem
filósofo! Florinda envolveu-o numa saraiva de beijos. O grande
bock de cerveja preta —o sonho dos neokantistas espanhóis—
tinha na chaminé uma pudicícia teológica. De teologia
protestante.
No dia seguinte, pelas ruas, já tarde, o casal espanhol
não podia, no começo, ocultar certo ar de protesto: uma
concessão ao Sul. Visitaram a catedral. Demasiado cuidada.
Adrián lembrava a liberdade do arvoredo de ciprestes da capela
do Condestável de Burgos. «Qui non vidit Coloniam non vidit
Germaniam». Mas Adrián imaginava-as ainda demasiado
latinas. Viena e Colónia. Duas marcas do latinismo. Somente
os Romanos puderam inventar nomes como estes: «província»,
«colónia». Sentiram —nisto, o único povo do mundo— a
instituição jurídica como qualquer coisa de jovem, novo,

- 357 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

alegre. Adrián apontava no seu caderninho de notas: juventude


do Direito em Roma; já não percebida desde Augusto.
A marquesa queria fazer a viagem do Reno, que a
Adrián parecia vazia, teatral, turística. Talvez tivesse o remorso
de não a fazer com uma lourinha jovem. O rio e as lembranças
que navegam sobre ele como cisnes impõem uma certa
virgindade feminina. Fizeram um pouco de «Hermann und
Dorothea» descendo por socalcos de vinhas entre rochedos
numa tarde de profunda luminosidade. Adrián dizia
trabalhosamente alguns versos goethianos: «Wie find' ich des
Mondes / Herrlichen Schein so süß! er ist der Klarheit des Tags
gleich».
Beberam um copo numa fazenda e, à noite, um pouco
tristes, afundaram-se no luxo de um cabaré cosmopolita. Os
ombros da marquesa floresciam melhor à luz artificial e na
banalidade das danças negras. Cosmopolita! Adrián sofria com
o significado oco desta palavra que nos lábios de Florinda
espumava como o vinho triunfal e superior da cultura. Seria
possível que o esforço secular dos homens apenas tomasse
corpo na sociedade dos express, dos palaces e dos dancings?
Consideremos também uma ideia de arte, de literatura, de
curiosidade e até de paixão: o último livro, a múmia do Nilo, o
mistério dos conventos budistas, as máscaras dos selvagens da
floresta amazónica, toda uma superfície de factos e de
ideias-coquetel, adquiridos sem esforço, sentidos sem febre,
privados de esperança. Tona turística sobre o planeta. Cultura
dos que têm medo de ficar sozinhos com um livro ou sem livro
perante a interrogação interior.
Adrián julgou-se conquistado por aquela cultura. Que
era, senão, a sua pequena experiência espanhola e francesa, a
sua reflexão filosófica? Com suficiente dinheiro chegaria, pela

- 358 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

lei natural da própria debilidade formativa, a ser mais um


turista na grei dourada. Viajaria para ver o silencioso
florescimento da aurora boreal, o despertar da besta na jungle,
a nova organização de um soviete nas montanhas do Cáucaso.
Adrián não era um espanhol. Se o fosse, não lhe bastaria gozar
como turista das essências espanholas. Também não era
ocidental. Que é que significa isso de ser ocidental? A catedral
gótica, o sulco aberto no torrão, o aço dominado por uma
vontade, o livro que venceu o complô pelo menos durante uns
quantos anos, todos tinham sido criados por homens que não
pensavam no vago Ocidente. Serviam a tradição e o espírito de
uma pátria. A ideia de um Ocidente, de uma Europa alpina, por
exemplo, era uma síntese, feita de muitas, de todas as possíveis
pátrias espirituais. Para figurar no coro havia que sentir em si
uma tradição. E Adrián não respirava em nenhuma. Por aquele
caminho chegaria a velho sem que as mãos fossem usadas
participando de um trabalho unânime, criador... Estaria
condenado à mesa do restaurante da chamada cultura
cosmopolita. Restava, vendo bem, uma curta e pequena
esperança. Aquela eterna pergunta sobre o ser da Galiza, que
ele, por medo ou por snobismo, não deixara sequer ser
formulada claramente.
Parado um instante na prodigiosa estação de Leipzig,
Adrián dizia: «Agora palpa a grande Germânia muscular». Os
aços, os vidros, os faróis, os fumos, as sirenes tremiam com a
mesma vibração metódica. As locomotivas chegavam afiadas
da velocidade, usadas e subtilizadas de vencer a resistência do
ar e do caminho. Os expressos do norte e do sul, do oriente e
do ocidente, cruzavam-se, obedientes à inteligência que regia o
relógio infranqueável. Aproveitando as meias horas, os
minutos, os segundos, essas pequenas categorias de tempo

- 359 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

chegam a ter volume e densidade particular. Para vencer a


morte, os homens souberam dividir e valorizar cada pequeno
segmento do tempo concedido. «Não vês que ela, a Germânia,
remonta às suas origens longínquas? Goza e sofre o destino de
ser o cerne geográfico de um pequeno continente inteligente e
apaixonado. Foi, no começo, nómade e migradora. Pelo ferro,
quis fazer de toda a Europa um bosque salpicado de clãs
germânicos. Os bárbaros levavam o ferro das lanças e
deixavam atrás de si o fumo das aldeias queimadas, como
contava o nosso compatriota, o bom bispo Idácio de Águas
Flávias. Os bárbaros pararam no mar, como parou o império
dos Hohenzollern. A Germânia tem que mandar ou ser
mandada. Hoje trabalha superiormente a cultura e a máquina.
Sabe ser jovem. Esquece a ideia um pouco cavalheiresca do
Sacro Império. Republicana e burguesa, não sabe folgar na
ventura da paz. Dispõe a guerra económica. Os seus novos reis
da indústria desfrutam como os antigos bárbaros bebendo
hidromel antes da conquista.»
Adrián teria desejado outro plano de viagem. Conhecer
a fundo pelo menos alguma pequena pátria alemã. Demorar-se
duas semanas em Tennstedt, a pequena povoação de Novalis.
Chegar a passear pelos caminhos. Relaxar ao lado de um
pequeno vale, talvez apoiado na mesma sebe onde Novalis teve
a revelação da chave de Fichte. Uma dessas puras alegrias,
sentimentais, inteligentes, que por muito tempo luzem como
um amanhecer sobre as almas. Chegando a Berlim, um grande
e pálido luar vagava, cego e estranho, sobre o pesadelo da
Europa adormecida.
Não ouvia a serenata do pastor de Leopardi. Também na
Ásia os pastores receberam a ordem de partir. Os viajantes
europeus encontravam monges mongóis e tibetanos ao

- 360 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

atravessarem a noventa por hora os desertos onde se levantou a


poeira da cavalaria de Gengis Khan. O luar já não tem lugar na
enorme Eslávia, demasiado preocupada com uma actividade
que não é a própria da calma vida da semente sob a terra nem
da dinâmica milagreira da alma russa. Perde-se nas ruas
pequenas e afundadas de Nuremberga, nas quais o jovem
Wagner assistiu a uma discussão pitoresca, inspiração para os
Mestres Cantores, mas já nas sábias lembranças da Teutónia
não é associada pelos camponeses às sazões da vegetação nem
à conveniência das colheitas. Tantos arquipélagos de cidades
luzem no cerne europeu que o luar mal se atreve a tactear
alguma vidraça de mansarda e a escorregar pelas encostas do
Fichtelgebirge. Há que chegar à beira-mar para que a Lua tenha
vida nas vidas dos homens. Na Europa inteligente e mecânica
já foi suprimida. Chamaram-lhe «frio sepulcro» os românticos.
Para os burgueses modernos está abolida. Não tem radiações
aproveitáveis.
Em Berlim, porque é que Adrián se achava como que
debruçado numa varanda sobre o desconhecido? Falsa
segurança das arquitecturas neoclássicas. Um barroco bem
diferente do enxuto e cozido de Castela, do molhado e
malacológico da Galiza e de Portugal, do feminino e cortesão
de França, do católico de Itália e de Viena e da Baviera. Um
barroco decorado pelos jogos da geada, vital, à sua maneira. E
a luzente geometria do moderno —geometria não euclidiana—
alegre como um mocinho desportista que com o desporto
procura uma segurança transitória, pois sabe que as eternas
perguntas voltarão a ressoar urgentes. «Apesar da poderosa e
vazia segurança da nossa grande burguesia, do pós-guerra, há,
na Berlim curada pelo marco de ouro, muitas sondas lançadas
ao obscuro porvir.» Uma ansiedade. Valente e confiante,

- 361 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Berlim faz ensaios com a matéria expressiva do futuro. Ainda


se não pode calcular nem o tom da resposta.
Logo depois, Adrián foi com Florinda para Potsdam.
Voltaram ambos tristes, aflitos. O Versalhes de Frederico II
cheirava a morto vaidoso. Adrián comparava os destinos, em
grande parte paralelos, de Berlim e de Madrid. As duas cidades
novas, administrativas, de planície. Mataram os velhos centros
orgânicos. Guardaram em museus os restos do saque. A
diferença estava no volume de força. Berlim, obra de uma
enérgica monarquia nova, podia fazer despertar novidades e
jamais chegou a matar o elã tradicional dos antigos centros.
Madrid, criação de uma monarquia já velha e, seguramente,
consciente do seu fracasso, secou a fonte de Toledo, de
Medina, de Segóvia, de Salamanca. Aliás, Berlim foi salva por
guardar sempre uma posição combativa, de marca, face ao
mundo eslavo. O mesmo nome «Berlim» é de raiz eslava. Fica
em terra conquistada pelo germanismo. Para ganhar a guerra —
diziam os velhos técnicos— há que principiar por atar os
cavalos às árvores do país inimigo.
A marquesa desfrutava dos primeiros dias com o ar de
novidade de Berlim. Nenhuma ilustre velhice se intrometia nas
perpectivas urbanas. Bem dessemelhante da multidão de
lembranças que em Paris andam a passear, de braços dados
com os mais indiferentes. O verdejar dos arvoredos tinha um
brotar alegre e leve de Primavera no cerne do Verão e pelos
lagos do Tiergarten navegavam os soberbos pássaros do Norte.
Para Adrián, o símbolo vivente e emocionado do hemisfério
desde a latitude do Reno.
A Prússia lacustre, terra trabalhada pelo glaciar
quaternário —rochas velhas riscadas pelo gelo como que por
uma escrita rúnica; chãos de moreia, novos e abundosos para

- 362 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

os grosseiros cereais do Norte; paisagem caótica—, soube fazer


nos lagos e arvoredos do Tiergarten o jardim próprio. Tudo o
contrário das imitações versalhescas de Potsdam. Na Prússia
não se percebe Descartes, formulador do classicismo; manda o
dinamismo de Leibniz. A grande pureza polar do Norte —
auroras, icebergues, parasselénios, a virgindade da pedra gasta
pelo manto do inlandsis; a vegetação, toda cor, vivendo uns
curtos dias num raio de sol horizontal; as arquitecturas góticas
e barrocas dos gelos— impõe um fundo, mais ou menos
distante, às ideias, às artes e à poesia do Norte. Os grandes
escandinavos —Ibsen, Grieg, Selma—, quando se apaga a luz
dos seus interiores espirituais, ficam iluminados por um vago
resplendor dos campos gelados. Igual ao que luz no fundo dos
olhos dos marinheiros e dos exploradores polares. Sentir a
natureza árctica é tornar-se um pouco vizinho do universo
estelar e do mundo das ideias puras, sentidas como algo
presente e necessário. O deserto vermelho e quente foi pai do
monoteísmo, disse Renan. Poder-se-ia acrescentar que o
deserto árctico cria a tendência para as filosofias do absoluto.
Abstracção e idealismo. Também a Finlândia, a Germânia, a
Rússia, a Polónia, a Inglaterra e a Holanda têm um pouco de
paisagem espiritualmente árctica. Todas elas sentiram o
chamamento do pólo como a Ibéria o chamamento dos mares
de coral e dos bosques de canela e de cânfora.
Adrián reflectia nestas coisas —de um modo que ele
não duvidaria em qualificar de musical— considerando as
brincadeiras dos cisnes e dos marrecos nos lagos do parque.
Havia poucos. Todas as tribos aladas estavam no pólo, a
estriarem com asas e berros a friagem das paisagens brancas.
No Inverno vinham para o Sul, trazendo nas finas cores do
peito e do pescoço as gemas do sol das meias-noites e o verde

- 363 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

dos fundos marinhos. Nas vastas salas dos contos de


Hoffmann, das lembranças de Rilke e de Kierkegaard, corre um
vento polar: fala e queixa-se na chaminé, chora no violino e na
harpa, scherza nos cordames dos navios-fantasma e nos
potentes álcoois marinheiros. Pequena Europa hercínica e
alpina que se aquece como um intelectual impenitente na
lareira do gulf stream; também varre o seu jardim outro vento
frio, este de planaltos e de estepes, de neve seca, continental e
imenso na fatalidade: o vento da Ásia.
Adrián dizia à marquesa:
—Não caias na pirosice de chamar novidades às da
Rússia bolchevique. Que encontras de original no século XX?
Quando muito uma aplicação em grande volume e velocidade
das ideias do século XIX, do estúpido século40. Ora pois, o
formigueiro russo regido pelo livro mais à século XIX que se
podia imaginar: O Capital de Marx. A Europa aburguesada e
socialista aplicando os princípios de 1830, de 1848. Só com
melhor técnica. O mesmo fanatismo pela cultura. A ciência
apenas é popular e respeitada desde que seja capaz de ser
aplicada para um maior conforto de vida. Há hoje uma ciência
superior cujos elevados trabalhos serão sempre um segredo
para as multidões cultas, uma ciência que já não pode fazer
nenhuma revolução. A física do XVIII e do XIX traduzia-se
depressa em saber geral, em forma social e política. Os seus
resultados logo eram aprendidos. Foram populares Lavoisier e
Laplace. Eles desterravam a cosmologia folclórica e também a
religiosa. A grande arma da burguesia e do povo
revolucionário, o senso comum, vinha armado de ciência. Hoje,
para entrar na ciência, há que deixar fora o senso comum. Já
dois mais dois não são quatro, nem as leis da gravitação se
cumprem como regulamentos de um universo superiormente

- 364 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

inteligente e organizado. O obscuro Heráclito volta a ser


inconscientemente o númen-filósofo do nosso tempo. Essa
nova ciência exotérica somente pode influir quando outra
república de um novo Platão governar o mundo.
Adrián falava deste modo, como que a monologar. Com
uma mulher amada não teria tido esta linguagem nem se
sentiria tão duramente ferido pelo desespero e pela paixão. Um
desespero e uma paixão, estados vizinhos, geradores um do
outro, que poderiam chamar-se metafísica se a luz do problema
em liberdade não surgisse entre os arvoredos de paisagens,
individuais, da tragédia pessoal de Adrián, Solovio. O amor, ou
pelo menos a posse da mulher elegante e mundana, figurava de
um modo nebuloso, porém necessário, no programa de Adrián,
o qual tinha traçado, entre imitações e anseios verdadeiros,
para chegar a esculpir o seu carácter. Conquistada, aos vinte
dias de Alemanha já a considerava fora de si. A marquesa ia
caindo, para o rapaz galego, na categoria das coisas
ultrapassadas, esquecidas. Viviam juntos como dois
apaixonados enquanto crescia, hora após hora, até se fazer
planetária, a distância que os afastava. A marquesa
apercebia-se, sem demasiada dor, ou melhor, com certa plácida
melancolia, de duas coisas: que Adrián pensava demais para ser
o amante derradeiro e que ela ia ficando velha sem cura.
Uma manhã, em que um vento do Báltico fazia
insuspeitos remoinhos invernais tornando severas e duras as
colunatas clássicas e angustiosas as arquitecturas novas, à hora
do aperitivo, o necessário amigo americano da marquesa fez a
sua aparição. Homem maduro, bem-posto. Parecia um tanto
cozido pelo sol dos Incas, um tanto cerâmica acobreada na
louridão de Berlim. Estava um pouco estranhado, pois havia
pouco que a Germânia entrara no círculo das viagens

- 365 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

ultramarinas: obrigações da moda. Pela primeira vez Florinda e


Adrián falaram longamente da Galiza, perante o sorriso do
americano. Tiveram um diálogo que logo se tornou num duelo
relampejante de intenções e lembranças dolorosas como
estoques.
—A tua terra —dizia Florinda— foi a maior vergonha
da minha vida. Nasceu para serva. Basta ver pelas estradas os
homens vergados. Lá a porcalhada faz parte integrante da
paisagem. Talvez sirva para fazer algum turismo no dia que
houver hotéis com água corrente em Santiago e em algum
canto das rias. Não me fales da tua ribeira, não comeces com a
pirosice do teu minguar do Outono nas vinhas e nos pinhais.
Jamais serás um europeu, um homem moderno. Tudo, lá no
paço do meu marido, que Deus o tenha na sua glória, fedia a
uma velhice e a um provincialismo arqueológico.
Conforme falava, na alma de Adrián iam-se desenhando
as formas e os nomes do mapa de Fontán, como as tinha visto
na agonia do tio Bernaldo, e outras coisas com que ele mesmo
se admirava ao senti-las surgir em si com tanta força e intensa
novidade. Disse palavras sem cálculo nem medida, obedecendo
ao novo poder insuspeito. Foi fino e cruel ao atirar à cara da
marquesa que toda a sua riqueza, e nome, vinham de uma
limpa casta de carlistas galegos. Deles fizera a marquesa uma
carta de corso.
No desprezo de Adrián havia também um anseio de
liberdade, de ser outra vez o livre intelectual errante. Já não
almoçaram juntos. Florinda quis chorar. Com certeza choraria,
à noite, sozinha, no quarto. Pois Adrián era, talvez, a derradeira
antilha de amor que ela perdia. Solovio afastava-se sabendo
que mais adiante reservava para Florinda um pouco de piedade
e uma lembrança melhor. Agora não tinha tempo. Bastava-lhe o

- 366 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

sentimento de não se ter sujado. Ainda tinha dinheiro para


viajar na terceira classe e beber a clara cerveja dos estudantes.
Sozinho, a respirar em liberdade na sistemática circulação
humana de Berlim, Solovio ouvia uma chamada. Havia que
fugir do cerne do bloco continental fechado pelo triste Báltico
mediterrânico e pela terrível indiferença dos chãos orientais. Lá
do céu, era acusado por uma nuvem do Oeste. O Atlântico, as
Finisterras, a Galiza. E alegremente, sem volver a vista para a
pálida árvore kantiana em cujos ramos se pousam os pássaros
das categorias, apanhou, com bagagem leve, o comboio para
Antuérpia.

- 367 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

XIV

Adrián Solovio esteve uns poucos dias na Bélgica. De


Antuérpia fez algumas viagenzinhas às vilas ilustres e no
grande porto embarcou para a Corunha. Desfrutava com o
aspecto de fidalgos rurais dos senhores, de barba loura, olhos
no longe e cachimbos fumegantes. Impressão de boa gente,
apaixonada, capaz de grandes erros e de fortes reparações,
gente que não tem medo do remorso e assiste com emoção ao
desenrolar das pitorescas procissões campestres pelos trilhos
verdes ou à beira dos canais adormecidos.
O tabaco da Batávia enchia-lhe o cachimbo e, em meio
ao seu fumo, comprazia-se com ideias de sossegada futuridade
e com uma esperança, cada dia mais forte, de salvação. Tremia
temendo não ser homem para a suster, a dominar, deixando-se
guiar por ela. Para se contentar, bastava-lhe sentir como a maré
subia bonançosamente pelos canais do Escalda. Pensava nas
poderosas vilas criadas pelo Atlântico. Este mar, o mais
generoso dentre todos, sempre cantadeiro e delfínico, cuja onda
está sempre disposta a dançar e a estourar, sobe pelos grandes
rios e consola-os da sua morte doando-lhes nova vida ditosa.
Solovio, na noite tremeluzente no ar e na água das luzes
do porto e das luzes vagarosas dos barcos, passeava pelos cais

- 368 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

e reconhecia as docas variadas: a de Bonaparte, a de Willem, a


de Kattendyck, a das Madeiras; as que levam os nomes
enormes apenas familiares para os marinheiros dos continentes:
Ásia, América, África; pela do Canal, pela dos Tijolos, do
Carvão e dos Veleiros. A massa prodigiosa das mercadorias e
madeiras das ilhas rosas da Sonda, marfins da África, negra
esfinge entalhada em rocha, lãs da Austrália, peles da
Argentina, aromáticas construções de sacos de café, de chá, de
cacau... não davam a Adrián a sensação de um poder
cosmopolita. Pelo contrário, afirmavam a vitalidade de uma
pequena pátria, luminosa de espírito, necessária na economia
do mundo.
Apenas nas margens atlânticas podem viver os
pequenos povos, livres, talvez, precisamente por estarem no
centro das correntes do mundo. Deixando o cerne da vila,
brasão triunfal do heroísmo burguês, municipal e corporativo, a
Praça Verde e a glória de Rubens, o Waterhuis, Solovio
procurava, à noite, as águas negras e vibrantes na escuridão dos
cais. Chegavam vozes de um coro esquisito, numa língua não
ouvida, áspera e rude, mas também estranhamente doce e
distante, como se fosse uma língua banhada na origem
longínqua e mitológica de qualquer coisa que vivia na alma de
Adrián. Eram marinheiros galeses e, no seu cantar, Solovio
julgava apreciar a eterna juventude da onda saltando na costa,
um delírio de luar, um luzir de lar étnico.
Lembrava-se do celtismo de alguns escritores galegos
que o emocionavam, em menino, no último ano do liceu. Mais
para a frente teve vergonha daquela ideia provinciana e
antiquada. Agora dizia para si: «Tinham razão. Começo a
aperceber-me do que há de diferente em mim e nos galegos.
Porque é que não fui cidadão das culturas sobre que dissertei,

- 369 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

porque é que achava os galegos inferiores e desgraçados.» Uma


grei de pensamentos pessimistas galopava implacável pelo
cérebro de Solovio. «É muito tarde. Estou e está condenada
sem remédio.» Pela primeira vez referia-se à personalidade da
Galiza. Longe dela, lembrando-se das paisagens familiares e da
morte do padre Bernaldo, apenas tinha sido capaz de ver o
pedaço verdejante de terra. Agora, na noite antuerpiana, já lhe
concedia um espírito magoado, dorido, sem cura.
Voltava mais triste do que nunca quando, de um barco
submerso na noite negra, surgiu um cantar: «Santo Cristo do
Fisterra / Santo da Barba Dourada / Dáme vento pra pasar / A
laxe de Touriñana». De uma proa invisível respondia uma voz
de velho, cheirando a todos os álcoois dos portos: «Lanchiña
que vas en vela / Leva brusas e refaixos / Para a miña
Manoela». Como nas Cousas de Castelao.
O que é que estava a acontecer com o inteligente
europeu? Adrián sentiu os olhos queimados por lágrimas de
menino e anulada toda a capacidade reflexiva. Ao se deitar,
aquelas lágrimas tinham um sabor a perdão. E, feliz,
afundou-se no sono.
Adrián comeu numa cervejaria de Gante cujos vidros
luziam com o perfil familiar de um Carlos V mais aberto, mais
jovem e subtil do que o imaginado na escada triunfal do alcácer
de Toledo. Na catedral de São Bavão, visitou o «tríptico» dos
Van Eyck: cores campestres lavadas pelo orvalho primaveril e
todos os símbolos teológicos expressados com a graça e o
frescor da lenda no espírito das crianças.
Em Bruges, os salgueiros-chorões eram uma névoa
verde por sobre os trágicos canais de água quieta, como se o
carrilhão cantasse sempre à mesma hora.
Foi apanhado em Santa Gúdula de Bruxelas por um

- 370 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

pôr-do-sol que lhe pareceu estranhamente outonal e demorado,


mistura de sol no Atlântico com o vermelho das praias e o
verdejar das colheitas flamengas, preso entre os braços
levantados das ogivas.
De Antuérpia à Corunha, fizeram-lhe companhia os
faróis da Mancha e quase nem se tinha esquecido ainda da
palpitação do mar na rocha de Ouessant quando uma harmonia
semelhante vestia de espuma os cabos galegos: Ortegal e Prior.
Ansiava por abraçar a mãe e, não querendo aguardar pelo
comboio, apanhou um táxi.
Ainda o sol não tinha raiado no vale quando Adrián
batia à porta da casinha da Ribeira. Abraços, beijos, choros. Ali
estava o seu quartinho arrumado, aguardando por ele sem um
remorso, com os seus livros e os sonhos e desesperos dos
primeiros estudos. Quando a doce mãezinha o deixou no leito,
a luz de Setembro, luz de vindimas, desenhava nas madeiras da
janela pontos e traços de luz. Alegres passos caladinhos
andavam pela casa e lá de longe chegava um longo lamento de
uma carrada de caruma. Adrián julgava não se ter movido
jamais de casa e prazerosamente revia as imagens da viagem da
noite anterior.
Ficam para trás as luzes da Corunha. O carro afunda-se
na noite de pinhais, pequenas luzes de vendas, às vezes luzem
energicamente, sob a lançada dos faróis, um rebanho de casas
camponesas ou a doçura de uma igreja calada. A noite galega
lateja de imorredouras escusas que a noite industrializada de
outras terras não tem. Em Carral um monumento. Adrián
lembrava-se vagamente. «Ali, sim, uma revolução galega.
Pelos meados do século. O padre Bernaldo e algum outro velho
têm-me falado em fuzilamentos. Heróis românticos. Agora me
recordo como o meu pai —sei-o pelas conversas da minha mãe

- 371 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

— ficava pálido ao falar da sangrenta bandeira de Carral. Se


tivesse sido um facto acontecido na Europa Central, haveria
nos museus litografias dos heróis generosos e uma citação nos
mármores da História. Passou-se na Galiza. Terei de estudar o
assunto.»
Depois as estrelas piscam por sobre a vastidão das
planícies. Os faróis apenas apanham segmentos de tojeiras e de
urzais. Cavalgam ventos monteses. Algumas récuas de
arrieiros. Fosforecem à luz, estranhamente, os olhos dos
machos. Adrián vai comparando o viver profundo, calado, das
aldeias, remansos de futuridade, com o das vilas como Ordes,
dispostas ao correr das estradas. O chofer vai-lhe dizendo por
onde passam, pois é a primeira viagem de Solovio pelo coração
da Galiza. A ponte Sigüeiro. Mais adiante o chofer anuncia-lhe
Santiago. Emoção e sobretudo curiosidade de Adrián. Ele
nunca estivera em Santiago.
Algo estranho, talvez uma desilusão, se prepara.
Orvalhou calmamente e ainda estavam molhados os passeios.
Enfiadas de casinhas baixas, pobres, misteriosas. Um pórtico
barroco. Pedras cobertas de líquenes. A esquisita encosta das
Rodas. Janelas iluminadas na noite. Janelas à século dezanove.
De residência de estudantes, de clérigo rezador, de avarento, de
fidalgo que tem o seu apartamentozinho em Santiago e, à noite,
acende a luz e abre os vitrais para se aperceber de não estar
sozinho no campo. Janelas de sala de velório de defuntos, de
casinha marota de mocinhas e velhas complacentes. Uma das
impressões de Santiago, à noite: um jogo de janelas
iluminadas, algumas como que abertas bem por cima do céu.
O chofer mete-se pela Rua das Casas Reais, a Praça do
Pan, a Acibechería, a Praça do Hospital, a Rua Nova para sair à
estrada de Ourense. Adrián jamais sentira um avassalamento

- 372 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

igual. As grandes lajes, as disformes arquitecturas na noite, um


cantar de fontes, a fuga de ruas embuçadas em trevas, tudo lhe
produzia um deslumbramento, uma vertigem grave, de
grandeza infinda e ao mesmo tempo familiar. Adrián
apercebia-se de que forma se preenchia no seu ser um vazio até
então angustiante, agora cheio de segurança e esperança. Na
grande praça deteve-se um instante. Adrián conta a sucessão
das arcadas do Paço de Raxoi. Adivinha qualquer coisa de
maravilhoso no Obradoiro: a face esculturada misturava-se e
erguia-se sem termo com arquitecturas de noite e de estrelas.
As panças dos pipotes presidiam a alguns espaços escuros.
Adrián sonha com dormir numa daquelas casas de ilustres
ferros barrocos nas sacadas para aguardar pela manhã e fazer,
ele sozinho, sem a tagarelice do chofer, a descoberta de
Compostela. Qual é a coisa enorme, solene, vibrante de serena
eternidade que enche a noite? Adrián manda parar até que o
toque morre calmamente. A voz harmoniosa do relógio de
Compostela. Na cama, Adrián procura o ecoar incomparável.
Depois lembra um tremeluzir de estrelas no Ulla, vilas
adormecidas, um ar mais tépido ao chegar às zonas ribeirinhas.
Os cachos apertados, assomando sobre os muros cheios de
tojos, estavam maduros. Quando pisou a terra do caminho
rural, as rodeiras dos carros deram-lhe uma segurança que não
encontrava nos asfaltos brilhantes da Europa.
Pouquinho a pouco adormece. Pensa que já não é
necessário aquela paixão por estudar e analisar, fibra a fibra, o
seu espírito. Adivinha um pensar de acordo com uma coisa
realizada ainda não bem determinada. Um coro de
vindimadores nos primeiros véus do sono. Ao acordar, já
entrada a tarde, e ao se sentar à mesa limpa, Adrián sente a
certeza de ter ultrapassado um período de ensaios e bebe em

- 373 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

grande goles o vinho da Ribeira.


Dias dourados, profundos, da vindima. De manhã,
Solovio sente como um leve nevoeiro se cola curioso à janela.
Antes de se lançar pelos campos afora, faz uma visita à
entrevadinha e bebe um chocolate com ela. A avó já vive num
tempo indeterminado. Fala de saraus, de viagens a cavalo aos
paços da montanha, de senhores provectos, corteses e elegantes
no salão, valentes no Norte e nos caminhos contra os ladrões e
os lobos. Adrián vai recebendo o alento do século XIX, história
viva, e sob ela a tragédia da Galiza vai-se-lhe definindo.
Quanta energia gasta debalde! De que servia à Galiza ter o mar,
a raça e o espírito? Depois assiste à vindima. Com o último
cesto cingido de vespas e de cantigas, começam a tactear pela
vinha os dedos murchos do Outono.
Cada hora e cada dia vão deixando em Adrián uma
esteira diferente. À mesa e ao anoitecer, perto do candeeiro a
petróleo, conta as histórias da Europa. A mãezinha escuta
pasmada.
—Agora —diz-lhe o filho— começarei a ser homem.
Deixe-me passar um aninho inteiro na aldeia. Depois, já
veremos. Será que lhe vai parecer que estou a matar a minha
carreira? Não pense isso. Vou salvar a minha alma. Depois de
tudo, não poderia viver tranquilo, aqui, em casa, com a
produção das terras?
A mãe, há uns anos, teria respondido que não; ter-lho-ia
impedido como uma parvoíce e uma renúncia. Agora a
señorita fez-se senhora rural. A onda vibrante do campo foi-lhe
dando inspiração, dia após dia, sazão após sazão, outra ideia da
vida. Que outra forma mais digna e cristã? Que produtos mais
seguros? Começou a desprezar os trabalhos e as obrigações
asquerosas, mecânicas, da cidade que torna os homens servos.

- 374 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

—A casa bem guiada dará para te manter, ainda que


tomes estado e cries família. Podes viver como um senhor sem
dever um tostão a ninguém. Para já, um aninho comigo, que
melhor alegria para mim? — dizia-lhe, agradecida, enquanto
beijava a cabeça já grisalha do filho.
Adrián, por muito tempo, não abriu um livro. Nem tinha
interesse pelo correio que lhe trazia jornais, revistas e livros.
Guardava tudo para mais adiante. Nas salas da casa, na
varanda, no leito, caminhando pelos sendeiros das vinhas,
subindo os cumes dominadores do vale, Adrián raciocinava às
vezes com paixão, outras serenamente. As horas em que se
deixava levar pela vida não eram as menos frutíferas para a
nova formação que lhe renovava a carne e o sangue do espírito.
Ele tinha dissertado acerca de muitas culturas, variadas
disciplinas. Naquele Outono já era pelo menos dono de um
caminho. Caminho de carros de bois, sombrio, alegre,
enlaçando rosários de aldeias dos vales. Sendeiros de montanha
cingidos às duras abas das serras, perdidas nos planaltos.
Adrián não se afastava de nenhum problema. Entrava em
alguns e apenas encontrava penedias desertas. Mas levava uma
segurança e sabia aguardar que o ermo se cobrisse de flores.

- 375 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

XV

No quartinho, chamado desde os tempos do pai «o


gabinete», havia umas dúzias de livros galegos oitocentistas.
Primeiras edições, ingénuas de formato e decoração, saídas das
gráficas escuras de Ourense, de Santiago, de Ferrol. Solovio
imaginava a tarde de um Inverno galego de Oitocentos. Já
tinham partido os lavradores, saindo cedo por medo aos
infinitos perigos da noite. Lousas molhadas. Clérigos que vêm
do coro. Na esquina, sob um pórtico do paço abandonado, um
carpinteiro arranca ritmicamente espumas de branca madeira a
uma tábua de carvalho. Outros rumores de ofícios. Pesa no ar
chovediço a ideia fatalista da província. Todos os senhores
querem imitar no casino a vida de Madrid.
A cidade parece duplamente estranha: ao passado e ao
campo. Parece não se aperceber da energia criadora de outros
tempos agora desprezados por bárbaros e incultos; também não
se apercebe da vida do campo. Desconhece, teme e despreza o
lavrador. Mas numa ruela trabalha uma gráfica pequena,
humilde. O homem que a dirige, apesar da sua barba de erudito
renascentista e da pureza do seu viver, não ocupa nas

- 376 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

hierarquias da cidade um lugar distinto. Está triste. Tem de


imprimir um jornal em que os liberais insultam os
conservadores ou o contrário; tem de imprimir um «diário
oficial» e os anúncios do Teatro Principal quando vem
«companhia de verso» ou «companhia de canto». O velho
somente é consolado por um trabalho que faz pouco a pouco,
com amor, cuidando de lhe dar maior dignidade e beleza
tipográfica: um livro de versos galegos. São tristes,
melancólicos, desesperançados os mais; apenas afirmam com
energia duas realidades: a beleza da paisagem e a beleza da
história.
Que efeito produziriam, directamente, no público os
livros dos poetas oitocentistas galegos? No meio da geral
indiferença, da fatalidade acolhida como qualquer coisa sem
cura da vida provinciana, devem ter despertado primeiro uma
surpresa, depois uma esperança. Poucos se aperceberam de ser
aquilo um caminho de redenção e não um simples virtuosismo
literário ou também, às vezes, uma abjecta concessão ao vulgar
estilo da pândega. Adrián lia, novamente, os poetas que em
miúdo o tinham feito chorar, não sabia porquê. Depois, em
Madrid, teve vergonha daquelas lágrimas. Agora Solovio sabe
muito bem a razão das lágrimas e não tem de se envergonhar
delas.
À noite, à luz de uma vela, acompanhado pela música
da chuva nos vidros, Adrián percorria um por um os poemas
dos Queixumes. Na Europa, em quartos confortáveis, ao pé das
ruas onde se faz a actualidade do mundo, Adrián lera os poetas
novos. Não lhe produziam a impressão do pequeno livro
esquecido na alcova da casa velha, perdida no campo galego.
Surgia uma afirmação de raça e de língua.
O Inverno corria e Adrián falava sempre em galego com

- 377 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

os lavradores. Desfrutava com as discursatas do senhor Bieito


de Medelo particularmente. Era um velho, morava numa
casinha limpa e térrea situada a um canto, o mais escondido do
vale, entre penedos e pinheiros. Nas rochas ásperas ainda
vegetavam retortas cepas velhas. Ao pé da casa, sob um
pontilhão feito de lajes usadas, bulia um regueiro no Outono
avançado. Trazia à margem um fresco cantar da montanha. O
homem tinha uma fala aparentemente rude e longínqua e nela
as palavras perdiam individualidade na rija fábrica das frases.
Mas logo se advertia a beleza e o tino dos vocábulos, simples,
expressivos, pitorescos, uns de um sintetismo completo, outros
feitos de matizes, incomparáveis para expressar os momentos
passageiros e fugitivos da vida e do mundo.
Algumas vezes Adrián julgava ouvir um baixo-latim
cheio de mocidade e de futuridade. No comércio com os
lavradores, o acordado senso crítico de Solovio aprendeu bem
cedo a falsidade de uma afirmação em que ele, por costume ou
preguiça, participara: a de ser o galego uma língua velha, uma
ruína, inapta para conter ou fecundar uma ideia moderna,
imprópria para a técnica e para a filosofia, por exemplo.
Porém, desde que Adrián falava galego, sentia todo o seu ser
renovado, não tinha de lutar contra a língua demasiado acabada
e trabalhada que lhe impunha uma retórica, muitas vezes
esgotante, ao livre nascer do pensamento. Na própria indecisão
havia uma garantia de juventude. Também não via a morte
diária do galego nos lábios dos camponeses que falavam
castelhano por influência da cidade e da América. Era um
castelhano exterior e falso. Na construção da frase, no sotaque,
na alma das palavras falavam galego disfarçado de outra coisa
transitória.
Ora, Adrián, com o seu novo e alegre sentimento e

- 378 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

percepção, julgava não pousar-se sobre velhas ruínas


procurando uma postura cómoda e finamente melancólica para
despedir a juventude e justificar os fracassos das passadas
experiências. Ardentemente desfrutava da nova vida e traçava
esquemas para a desenvolver na filosofia, na história, no
ensaio. Foi-se dando conta de não estar sozinho na Galiza: uma
falange dispersa em aparência, unânime no anseio, trabalhava
em diferentes terras da Galiza. A maior porção daqueles
homens e jovens, que Adrián foi pouco a pouco conhecendo e
valorizando, renunciavam às glórias da moda e do tempo; o seu
reino não era o deste mundo presente e fugitivo mas o de uma
Galiza que, pela justificação última dos tempos, devia luzir
num futuro, talvez não tão longínquo.
Em Dezembro, a névoa amortalhava o vale durante dias
inteiros. Estouravam os paus na lareira e as conversas sobre o
vinho novo e a chegada dos arrieiros. Alguns dias, Adrián, com
o cajado e o cão, subia o caminho empedrado e empinado que a
margem logo deixa para subir em trechos pacientes até à
montanha. A névoa amolecia o latejar de vida da ribeira: o
martelo do ferreiro, as badaladas das torres, a buzina dos
carros, todos vinham calmos, fantasmais, longínquos, tacteando
a cega saudade do nevoeiro. Numa curva, depois de um trecho
de encosta, verdejavam, sob outra luz, luz do sol, alguns
esbeltos pinheiros. A névoa levantava e os seus vagos giros
prendiam-se nos tojais dos cumes. A seguir eram o grande sol,
o horizonte extenso, demarcado pela pureza azul das serras —
algumas das quais enfarinhadas de neve—, o paladar fresco,
cheirando a ouriços e folhas de souto, a centeios novos, a
carvalheiras cerradas que sabem guardar a folha acobreada. A
montanha.
Aos pés de Adrián, a névoa, calcada nos terrenos mais

- 379 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

baixos, desenhava a topografia do vale, parecendo uma baía


articulada, outra «ria baixa» de sonho, uma nova Arousa no
cerne das terras. Os ciprestes do Paço de Portocelos montavam
guarda à casa deixada em mãos de mordomos. O prolixo
desenho dos sendeiros do jardim inçar-se-ia de ervas bravas e
as azáleas pônticas, cobertas de silveiras, não exibiriam na
Primavera o seu vestido cardinalício, solene e petulante, no
jardim de buxos. Para Adrián aquele paço era um símbolo: por
causa dos galegos toda a Galiza esteve prestes a ser um jardim
a monte ou, o que com certeza seria pior, um parque moderno
de vila imitadora.
Em Janeiro, os pés da desgraça fizeram ranger as tábuas
do piso. Pelo tempo da poda, com manhãs de geada e um
pôr-do-sol já um pouquito demorado no poente, a avó ficou
muito doentinha. Seria questão de dois dias. Rezavam com ela
o rosário. De súbito, deteve-se e perguntou pelo filho, quando é
que ele vinha de Santiago. Adrián chegou-se ao leito. A
velhinha olhou para ele satisfeita. Julgava acarinhar o filho
com o derradeiro lumezinho dos olhos. Já tinha a última
bênção. Durante toda essa noite, enchida com uma maré de
orações dos velhos e velhas da aldeia guiados pela senhora
María, Adrián esteve a considerar o imenso vazio que aquela
pobre entrevadinha de oitenta e tal anos deixava. Pensava no
falecimento do padre Bernaldo. A Galiza camponesa e senhoril
do XIX, ainda unida à tradição ancestral, já não tinha
representantes na casa.
Adrián acompanhou o ofício e a missa na pequena
igreja; havia clérigos velhos que punham nos responsórios e no
Dies irae um acento de gravidade pungente e serena, pois
rogando pela velhinha talvez rogassem também um pouco por
si próprios. Desde então, na casa a mãe de Adrián foi chamada

- 380 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

señora. Antes era a señorita. E teve de cuidar da roseira de


outra sepultura. Os túmulos do padre Bernaldo e da sua irmã
continuavam separados e cingidos pelo correr do rio, tal e
como tinham sido as suas fidalgas e caladas velhices.
Mal os passos da morte deixaram de soar nas salas da
casinha dos Solovio, Adrián teve outra pena. Ia passeando uma
tarde pelo caminho da beira do rio quando lhe surgiu uma
rapariga. Loira, precocemente envelhecida, cheia de
determinação nos olhos.
—Sabe bem quem sou, menino Adrián. Mas não tenha
medo de que eu vá pedir um tostão a si ou à senhora María. O
Xacobe foi meu namorado. Deixou-me por uma rica. Que lhe
hei-de fazer! Depois de tudo, o mundo é bem vasto. Vou para a
América. O que tiver de ser. Diga apenas ao seu irmão que não
lhe guardo desprezo. Sem o pensar, abriu-me os olhos. Boa
noite e que se conservem todos tão bonzinhos como aparentam.
Era a filha do destilador das Bouzas. Adrián sabia do
nascimento e da morte do filho de Xacobe. Eram outros os
tempos. Tiveram os seus amores livres e alegres como
pássaros, sem nenhuma consequência. As raparigas já não
davam berros de tragédia. De certeza que não custou a Xacobe
a mais pequena reflexão.
Adrián confessava não perceber o seu irmão. Estava na
cidade, numa casa bancária, tão novinho a remexer-se na vida
com mestria e simplicidade. Veio à Ribeira pouco tempo depois
do enterro da avó. Não mordia a língua para dizer como
encontrava Adrián envelhecido e depois, já no almoço,
apresentou as coisas claramente. Ele, para já, não reclamava
herança alguma. O Azeiteiro ia pôr na cidade um negócio de
automóveis; ele, casado com a filha, poderia desenvolver as
suas actividades económicas.

- 381 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

—Logo serei rico, mamã. Já vai ver que boa casa,


moderna e confortável, teremos na cidade para que passe
temporadas da sua velhice.
A mãe não quis opor nenhuma consideração. Como que
vencida, dava-se conta de que estaria a fazer uma triste figura
se dissesse ao filho: «És muito novo; as do Azeiteiro são
inferiores a ti na casta», etcétera e etcétera.
À tarde, os dois irmãos foram ver a alcova da avó. A
caminho Adrián falou da Galiza, da salvação do seu magoado
espírito desde que sentiu a presença imortal da Terra. Xacobe
não percebia nem queria perceber nada daquilo.
—Sim, há alguns que falam e escrevem em galego.
Ninguém lhes dá ouvidos. O que é que ganham com isso? Hoje
há que trabalhar muito e viver o melhor que se puder,
percebes? Tu deves sabê-lo melhor do que eu, pois viajaste
pela Europa. Não sei como é que aturas esse fedor a esterco do
curral lá de casa e essa labuta do vinho. Que velharias! Já vi
que tens muitos livros de alta cultura. Deves ter a cabeça bem
forte para não enlouquecer.
E ria-se com os dentes novos e brancos, e os olhos
simples e luminosos, ainda de menino.
O casamento do irmão, Xacobe, ligava mais fortemente
a mãe ao filho. O filho à Terra. O europeu, o que desde
novinho se sentira aprisionado até abafar pela moldura das
janelas familiares, a moldura do horizonte do vale e as
pequenas modorras da província; o que subira à meseta ibérica
à procura de uma limpeza e uma ginástica para libertar as setas
da acção; o que sentira sob si a curva latejante do melhor
pedaço do planeta, a Europa. Para ele a América continuava a
ser a «Virgen del mundo, América inocente»41, mais uma
virgem insulsa e sem seiva. Ele apenas experimentava o

- 382 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

chamamento, impossível de responder, do Oriente, do


longínquo: ganhava pele nova, experimentava-se situado
dinamicamente no devir do cosmos desde que descobriu a
própria realidade aliada à outra realidade da Galiza. Aquelas
molduras eram tristes ilusões surgidas de uma preguiça.
Pela Galiza e na Galiza, Adrián era europeu e
planetário. Já podia dirigir as suas setas a um alvo. Foi obra
alegre e rápida, como toda a libertação. Fê-la por meio da
meditação apaixonada, servida pela experiência dos ensaios
fracassados e pela amorosa descoberta da Terra. Mais adiante,
Solovio comprazia-se em lembrar sem propósito pedagógico,
como exemplo e ensinamento para os mais, as etapas do seu
itinerário de perfeição. No decurso de um ano fez várias
viagens: Costa Brava, Santiago durante um mês. No Verão, de
cajado e bornal, andou a pé grandes pedaços de serra onde se
demora sempre um odor e uma elegância invernal. Deste modo
foi sentindo a história vivente da Galiza e pôde meditar na sua
projecção no porvir.
No porto, as falas cantadeiras e as ondas no branco cais
levaram-no a amar o mito simbólico do Amadis. Toda a poesia
dos cancioneiros fazia-o reviver, enquanto olhava para as
laranjeiras de ouro entre as névoas e o fugir, sob o novo sol,
das velas pescadoras. Comparada com aquela radiante
claridade, a descoberta da natureza de Petrarca parecia-lhe
falsa, maciça. A Galiza, privada, por fortuna para ela, do peso
equilibrador do classicismo, gozou na sua língua do fruto
temporão de uma invenção maior do que a da América feita por
Colombo. Um tremor e um gozo que não se perdem nos velhos
pergaminhos nem na vaga tradição erudita: está viva no povo,
sempre pronta a pular no riso, no pensamento, na festa e na
meditação. Se não foi recolhida por grandes individualidades

- 383 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

na filosofia panteísta e corrente, está no povo, aguardando por


uma exaltação triunfal.
Adrián tinha por tópico o desamor dos Galegos pela
filosofia. O seu tempo ainda não era chegado por causa das
sucessivas escolásticas —tão inimigas a de São Tomás como a
de Kant—, que interpuseram as suas lentes deformadoras.
Solovio considerava a consciência galega livre e imaginava,
como flor desta, um pensador um tanto semelhante a um
Spinoza animado pela alegria de um Joyce. A novidade da
Europa, a que ela aguarda, a que a justificará para sempre no
mundo, não é nem a fórmula política aplicada em sentido lato,
a mesma do XIX, nem a técnica, mas sim a descoberta e a
maioridade de todos os povos que a compõem, o surgimento de
todas as almas colectivas, nacionais. Que uso tão crónico e
cruel se faz da palavra mais bela dentre todas: «nação»! Por
causa do transitório fatum histórico, identificou-se com um
imperialismo que, por ser pequeno, é visto como desprezível e
mortal. Ora bem, havia mais liberdade na ideia imperial de
Dante do que no conceito do equilíbrio europeu, por exemplo.
Adrián, sentado na pequena pensão do porto diante de
um copo de batoca branco, imaginava o futuro mapa da
Europa. As fronteiras não eram linhas de alfândegas mas zonas
vitais de transição entre as harmoniosas consciências dos
povos. A voz das terras do Reno não precisava de passar pela
Prússia para ser ouvida no mundo. O alpino do lago de Como
não se ligava ao ardente calabrês sob a mesma etiqueta do
Estado. Melhor do que Estado, cada terra era um livre conjunto
de municípios e ninguém dominava ninguém. Como
consequência natural, logo pararia o crescimento monstruoso e
contranatura das grandes cidades. A catolicidade cristã foi
muitas vezes errada e quebrada nas políticas dos Estados. Para

- 384 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

ser verdadeira, eficiente, teria de abranger um mundo de clãs


modernos, já superada a superstição da mecânica, da economia,
do poder, numa fraternidade de pequenos povos felizes, de vida
simples, talvez governados por uma casta de filósofos da qual
alguns antigos —o manto face à toga— e alguns modernos
poderiam ser considerados como uma antecipação imperfeita.
Em Santiago, Adrián julgava estar sempre na Europa e
ser mais galego do que nunca. A sensação do Estado espanhol
estava, para ele, ausente da cidade. Liberdade das praças sem
lojas nem quiosques, liberdade e cosmopolitismo do capitel
românico feito para o povo e trabalhado numa linguagem que
adopta o falar de cada pátria. Compostela não merece o seu
título de apostólica apenas pela relíquia do apóstolo, mas
também por um apostolado universal de cidade franca.
Adrián sonhava que nas cátedras e nos púlpitos voltaria
a soar a voz de todos os mestres do mundo e, antes que outras,
as vozes galegas que germinavam sigilosamente na Galiza.
Eles libertariam o espírito da Terra. Adrián, num jubiloso
estado de posse de si próprio, considerava, sem antipatia, as
outras terras ibéricas, mandava cumprimentos ao pequeno lugar
burgalês onde conheceu a ermida de Nossa Senhora das
Lavercas e à trágica paixão de Toledo. De igual para igual,
Adrián pensava ser o modelo de uma geração e, com
optimismo, julgava que nesse mesmo Inverno outros galegos,
todos os bem-intencionados, todos os que expressassem
lealdade, chegariam à sua libertação, que era a libertação da
Galiza para o bem da Europa, do Mundo, do Espírito
Imorredouro.
Aqui acaba o primeiro, longo e trágico estádio do viver
de Adrián Solovio. A sua vida desde agora identifica-se com a
vida da Galiza; já não é romance, nem experiência psicológica.

- 385 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Já é história. Pois a Galiza também começa a ser outra vez


história, desde que aprendeu os caminhos para encontrar a sua
consciência e deixou de andar, como uma cega, ao redor de si.

TERRA, A NOSSA!!

Ourense, Janeiro de 1930

- 386 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

Notas do Tradutor:
1 Autora do livro Santa Teresa being some account of her life and times,
publicado em 1894.
2 Ortega y Gasset (1883-1955), filósofo e ensaísta espanhol.
3 Las Ventas del Espíritu Santo, bairro madrileno.
4 Passos de montanha entre a Galiza e a Meseta Central peninsular.
5 Líder do levantamento militar de 19 de Setembro de 1886.
6 General espanhol (1833-1906).
7 Institución Libre de Enseñanza (1876-1939).
8 Universidade alemã que influenciou a Institución Libre de Enseñanza.
9 Personagem de dois romances de Pío Baroja.
10 Em espanhol, Ministerio de la Gobernación.
11 [Éditions F.] Alcan e Mercure [de France] são editoras francesas.
12 Local em Granada onde tinham lugar tertúlias literárias.
13 O “casarão” albergava a Universidad Central.
14 Comediógrafo espanhol (1866-1943).
15 Região da província de Granada.
16 Canción húngara (também conhecida por Canción del vagabundo ou
Canta, mendigo errante) interpretada no final da zarzuela Alma de Dios.
17 Pousada onde Cervantes escreveu a novela La ilustre fregona.
18 Ponte de Segovia, em Madrid.
19 Marcelino Menéndez Pelayo (1856-1912), intelectual espanhol.
20 Pseudónimo de Leopoldo Alas (1852-1901), escritor espanhol.
21 Personagem principal de um dos contos do livro Pipá de Clarín.
22 A 27 de Maio de 1809, após derrotar as tropas francesas de Napoleão.
23 Quarteto inicial de um famoso soneto anónimo espanhol.
24 Pós-guerra da I Guerra Mundial.
25 Pseudónimo de Mariano José de Larra, escritor romântico espanhol.
26 Protagonista das serranillas do Marquês de Santillana (1398-1458).
27 Viaduto de Segovia, em Madrid.
28 José Rodríguez Carracido, farmacêutico e bioquímico (1856-1928).
29 Referência à rosácea da Porta dos Leões da Catedral de Toledo.
30 Referência ao quadro Enterro do Conde de Orgaz de El Greco.
31 Referência ao sepulcro deste cardeal (1472-1545), situado no Hospital
de Tavera.
32 Personagem da novela Los tres maridos burlados (1621) de Tirso de
Molina.

- 387 -
Ramón Otero Pedrayo - Ao redor de si

33 Junta para la Ampliación de Estudios e Investigaciones Científicas


(1907-1938).
34 El Cid Campeador, cavaleiro lendário da Reconquista espanhola.
35 Alusão à decapitação de Luís XVI em 1793.
36 Imperador romano (332-363) que lutou na Gália.
37 As duas versões da Virgem das Rochas de Leonardo da Vinci parecem
estar expostas lado a lado.
38 Referência a Fernando de Herrera (1534-1597), o Divino, poeta
petrarquista espanhol; ou bem a Juan de Herrera (1530-1597), arquitecto
e matemático renascentista, criador do estilo herreriano.
39 Editoras francesas.
40 Referência a Le stupide XIXe siècle (1922) de León Daudet.
41 Primeiro verso do poema A la expedición española (1806) de Manuel
José Quintana y Lorenzo.

- 388 -
A presente tese de doutoramento foi
integralmente realizada utilizando o
processador de textos Writer
do pacote informático livre e gratuito
LibreOffice 4.2.

Você também pode gostar