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REQUALIFICAÇÃO, CULTURA E PATRIMÔNIO DA FEIRA DE SÃO

JOAQUIM: Estratégias de Salvaguarda da maior feira livre da Bahia.

Fragmentos

Heloísa Falquete
Cientista Social pela UNESP - Araraquara/SP
Mestranda no Programa de Pós-graduação em
Planejamento e Análise de Políticas Púbicas na UNESP - Franca/SP
heloisa.falquete@unesp.br

Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa


Pós-doutorado em Administração das Organizações pela FEA-RP-USP,
Doutora e Mestre em História pela UNESP - Franca/SP;
Docente convidada do Programa de Pós-graduação em Planejamento
e Análise de Políticas Púbicas na UNESP-Franca/SP.
lilian.rosa2010@gmail.com

RESUMO

Local de intercâmbio de folhas e ervas ritualísticas, de comércio varejista, de aromas variados,


do dendê, dos camarões e dos colares de contas em homenagem a Santos e Orixás: a Feira de
São Joaquim, um dos interpostos comerciais mais tradicionais da cidade de Salvador e do
recôncavo baiano, insere-se enquanto campo de pesquisa deste artigo. Localizada no bairro do
Comércio e banhada pelas margens da Baía de Todos os Santos, constitui laços de continuidade
com o passado mercantil, com as atividades portuárias e com os fluxos e refluxos dos navios e
saveiros. Retrato do passado em constante disputa no presente, a Feira mantém-se no tempo
enquanto referencial cultural dos sentidos de baianidade. No exercício de reconhecer o papel
histórico desempenhado pela Feira e seus sentidos e significados para a memória da cidade de
Salvador, emergem as estratégias de salvaguardar seu espaço e dinâmicas: em 2005 foi
realizado o pedido de Registro da Feira enquanto Patrimônio Imaterial brasileiro, que se
encontra em situação de instrução pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPHAN. Paralelamente, em 2011, iniciou-se a implementação do Projeto de Requalificação da
Feira de São Joaquim a fim de realizar reformas em sua estrutura física. O objetivo deste artigo,
portanto, é trazer apontamentos e discussões realizadas no âmbito do Programa de Pós-
graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da UNESP de Franca (SP), no qual
tem sido desenvolvido o projeto de pesquisa que busca responder quais os impactos advindos da
Requalificação de São Joaquim conforme a percepção dos feirantes. As discussões levantadas
neste artigo partem das observações preliminares obtidas no trabalho de campo. Dessa forma,
espera-se contribuir para as discussões do Congresso a fim de pensar possiblidades de
enfrentamento das problemáticas que perpassam o tema das políticas públicas de preservação
dos bens culturais no Brasil.
Palavras-Chave: Feira de São Joaquim, Requalificação, Salvaguarda Cultural.

ABSTRACT

A place of exchange of ritualistic leaves and herbs, retail trade, various aromas, dendê palm
oil, shrimp and beaded necklaces in honor of Saints and Orishas: the Feira de São Joaquim,
one of the most traditional commercial places in the city of Salvador and in the Bahian
Recôncavo, is inserted as the research field of this article. Located in the neighborhood of
Comércio and bathed by the water of the Baía de Todos os Santos, it constitutes bonds of
continuity with the mercantile past, with the port activities, and with the ebb and flow of ships
and schooners. Portrait of the past in constant dispute in the present, the fair remains in time as
a cultural referential of the senses of Bahianness. In the exercise of recognizing the historical
role played by the Fair and its senses and meanings for the memory of the city of Salvador,
strategies to safeguard its space and dynamics emerge: in 2005 the request for registration of
the fair as a Brazilian Intangible Heritage was made, which is under instruction by the Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN. At the same time, in 2011, the
implementation of the Requalification Project of the São Joaquim Fair was initiated in order to
carry out reforms in its physical structure. The objective of this article, therefore, is to bring
notes and discussions held in the context of the Programa de Pós-graduação em Planejamento
e Análise de Políticas Públicas of UNESP Franca (SP), in which the research project has been
developed that seeks to answer which are the impacts resulting from the Requalification of São
Joaquim, according to the perception of market vendors. The discussions in this article are
based on preliminary observations obtained in the fieldwork. Thus, it is expected to contribute
to the discussions of the Congress in order to think about possible ways of dealing with the
problems that permeate the theme of public policies for the preservation of cultural property in
Brazil.

Keywords: Feira de São Joaquim, Requalification, Cultural Protection.

1. Introdução

Localizada na cidade de Salvador, capital da Bahia, está a Feira de São Joaquim, a


maior feira livre do estado, distribuída em uma área de 38 mil metros quadrados
conforme os dados da CONDER (Companhia do Desenvolvimento Urbano do Estado
da Bahia). Às margens da Baía de Todos os Santos, a Feira mobiliza centenas de
cidadãos diariamente. A dinâmica de São Joaquim integra parte de um fenômeno de
longa data, da manifestação de elementos do passado colonial, dos fluxos e refluxos
portuários e da diáspora africana. Este trabalho visa adentrar o espaço simbólico da
Feira de São Joaquim e pensar suas estratégias de salvaguarda, objetivando elucidar os
impactos advindos do Projeto de Requalificação (2011 – 2016) para a manutenção de
sua complexidade cultural e material.

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A primeira etapa da Requalificação, ocorrida entre 2011 e 2016, propunha em seus
objetivos realizar reformas nas estruturas físicas de São Joaquim a fim de trazer
melhorias na qualidade do trabalho dos feirantes, na infraestrutura – cujas metas
envolviam contemplar a parte de energia elétrica, gás encanado, proteção contra
incêndios, distribuição e tratamento de água e esgoto, etc. – e no circuito econômico e
comercial, conforme os dados ofertados pelos relatórios da CONDER. Ao decorrer das
reformas, parte dos feirantes teve de ser deslocada para o pavilhão provisório e a
estratégia da requalificação, que inicialmente buscava realizar melhorias em toda a
extensão da Feira, enfrentou diversos desafios ao decorrer de sua implementação,
finalizando a primeira etapa em 2016 com 20% da área contemplada.

Para além, o cenário posterior à requalificação parece ter gerado duas realidades
distintas: a parte requalificada, atrativa para turistas e beneficiada pelas mudanças na
infraestrutura, e a parte não requalificada que continua acometida por problemáticas na
estrutura física, à margem do projeto de manutenção do espaço enquanto referencial
cultural da cidade de Salvador. Dessa forma, este trabalho visa discutir quais os
impactos advindos pelo Projeto de Requalificação e seus limites enquanto estratégia de
salvaguarda da Feira de São Joaquim.

2. Breve histórico acerca da Feira de São Joaquim

A região da “Cidade Baixa” historicamente protagonizou o embarque e o desembarque


dos navios, da produção agrícola do Recôncavo baiano e os fluxos e refluxos da
população africana escravizada. Espaços como o Cais da Cidade Baixa, a Rampa do
Cais ou a Rampa do Mercado, constituíram o aparecimento de uma “paisagem própria”
de trocas comerciais (SANTOS, 2008, p.75) e do surgimento, aos arredores da atividade
portuária, das feiras livres e do comércio ambulante varejista.

A predominância da população negra em tais espaços – transformando-os também em


espaços simbólicos de trocas – revela as características da história da cidade de
Salvador em função do processo de diáspora africana (VERGER, 1987, p. 513). O
protagonismo das feiras livres pode ser pensado a partir da Feira de Água de Meninos
que, nas décadas de 1940 a 1960, correspondia a um dos principais polos de
abastecimento da cidade de Salvador. Paralelamente, tornou-se também local

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indissociável aos intercâmbios simbólicos da cultura afro-brasileira, tendo sido retrata
nas artes plásticas, na literatura, na fotografia e no Cinema Novo.

Entretanto, em Setembro de 1964 a estrutura física de Água de Meninos foi acometida


por um incêndio repentino. Após o incêndio, emerge da resistência dos feirantes a Feira
de São Joaquim: o nome da feira faz referência à Igreja e ao Clérigo dos Órfãos de São
Joaquim, localizados em frente à enseada na qual a Feira se reorganizou e continuou
realizando o abastecimento de alimentos da cidade, da mesma forma em que continuou
abastecendo a cultura, às manifestações ligadas ao Candomblé, às manifestações
musicais e a oferta de artesanato, sobretudo da cerâmica e da cestaria (BRASIL, 2010,
p. 11-12).

Figura 01: Filhas de Santo de Obaluayê em Água de Meninos.

Fonte: Fotografia. VERGER, Retratos da Bahia (1956 a 1952).

A Feira enquanto local de saberes, trocas e práticas culturais resguarda componentes da


história e da memória da cidade de Salvador, bem como os elementos da cultura da
população negra afro-brasileira que sempre ocupou os mais diversos postos nos portos,
nas feiras livres e no comércio ambulante da Cidade Baixa no pré e no pós-abolição.
Contudo, os projetos de modernização e as medidas urbanísticas, de caráter higienista e
discriminatório, historicamente conflitaram com a ocupação da feira livre e seus
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intercâmbios culturais ligados à capoeira, ao samba de roda, ao Candomblé e aos
saberes populares. Ainda, as tentativas de reorganização dos espaços urbanos de
Salvador, sobretudo no século XX, estenderam-se às festividades religiosas, às
expressões culturais, às feiras livres, aos hábitos e as crenças, ampliando o “projeto
modernizador” à questão de raça e classe.

Conforme Edilece Couto (2015, p. 129), o século XX foi marcado por tentativas de
“modificar e controlar o uso do espaço urbano, promover a moralização dos costumes e
a desafricanização das ruas” soteropolitanas, visto que o projeto modernizador assumiu
caráter social, cultural e religioso a partir da premissa de que para atingir a “civilidade”
era preciso reorganizar Salvador e seus espaços. A Feira de São Joaquim pode ser vista
como a resistência do que o projeto modernizador não conseguiu controlar: feirantes,
consumidores, Babalorixás e Ialorixás unidos por um espaço simbólico e por suas
interações e trocas que perpassam o tempo e o espaço.

3. Requalificação e Patrimônio Cultural: estratégias de salvaguarda de São


Joaquim

Considerada um dos locais mais tradicionais do ponto de vista comercial da cidade para
os soteropolitanos, a Feira de São Joaquim de hoje corresponde e se mantém enquanto
referencial cultural mesmo diante das novas dinâmicas e padrões de consumo da
modernidade radicalizada. Embora atualmente sua ligação estreita e direta com o
Recôncavo não seja expressiva, São Joaquim conserva seu papel de abastecimento de
caráter informal. Paralelamente, permaneceu enquanto local de abastecimento de ervas,
folhas, animais vivos e demais produtos para os diversos terreiros de Candomblé
existentes na cidade que é marcada pela presença do povo de Santo: Salvador conta com
mais de mil terreiros registrados, destes, seis tombados pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN enquanto patrimônios culturais.

No sentido de reconhecer a importância das relações sociais, econômicas e culturais que


envolvem a Feira de São Joaquim, emergem as estratégias de salvaguarda de sua
complexidade: o processo de Registro enquanto patrimônio imaterial brasileiro, iniciado
em 2005 e em atual situação de instrução de registro pelo IPHAN. Paralelamente, o
Projeto de Requalificação, executado parcialmente entre 2011 e 2016, a partir da
parceria entre o Governo Federal e secretarias do Governo do Estado da Bahia, tendo

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como agente responsável de supervisão e orientação das obras o IPAC (Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia).

Figura 02: Pavilhão principal após o Projeto de Requalificação.

Fonte: Fotografia. Trabalho de campo: Feira de São Joaquim, Janeiro de 2021.

A amplitude do debate acerca das Políticas Públicas de Cultura é capaz de englobar


diversos conceitos, paradigmas e tipologias, relacionando-se, dentre outros aspectos, à
garantia dos direitos culturais, aos direitos difusos, às questões do urbanismo e os
limites que o tombamento pode impor à propriedade privada. Assim como em outras
áreas de pesquisas em políticas públicas, as Políticas Culturais perpassam a
multidisciplinaridade intrínseca ao campo, visto que seus impactos envolvem as inter-
relações entre Estado, política, cultura e sociedade. A atuação do Estado no ambiente da
Feira a fim de garantir a manutenção material e imaterial de suas dinâmicas culturais
torna-se essencial para a estruturação de estratégias de salvaguarda de São Joaquim.

A ferramenta da requalificação apresenta, conforme Sotratti (2015) “propostas


alicerçadas na recuperação e na valorização das origens e das verdadeiras
representações sociais, humanizando e controlando o sistema de exclusão das cidades
contemporâneas”, agregando novos significados aos locais cujas identidades são
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produzidas sócio e culturalmente. A requalificação em função do patrimônio deve
considerar o peso simbólico do bem cultural em questão previamente à definição das
ações de intervenção no espaço. A história, a memória, a estética arquitetônica, os
saberes e os modos de interação e a funcionalidade econômica devem ser respeitados
estratégias dos planos de requalificação. No caso de São Joaquim, são nítidos os
benefícios que a requalificação proporcionou ao espaço da feira e ao trabalho dos
feirantes. Entretanto, é preciso identificar seus limites para a preservação da Feira.

Preliminarmente, o Projeto de Requalificação parcial parece ter gerado duas realidades


distintas no ambiente da Feira de São Joaquim: a parte minoritária, contemplada pela
requalificação, vista como “higiênica”, “limpa”, “iluminada”, “arejada”, contando com
a presença de energia elétrica, rede de esgoto e proteção contra incêndios. E a parte não
contemplada, ambiente majoritário, à margem da infraestrutura. Dessa forma, o objetivo
geral deste trabalho é compreender os impactos decorrentes do Projeto de
Requalificação da Feira de São Joaquim para a preservação e manutenção das dinâmicas
culturais do local, bem como identificar seus limites enquanto estratégia de salvaguarda
da maior feira-livre da Bahia.

Figura 03: Rua não contemplada pela primeira etapa do Projeto de Requalificação.

Fonte: Fotografia. Trabalho de campo: Feira de São Joaquim, Janeiro de 2021.


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A entrega da primeira etapa da Requalificação, segundo os dados fornecidos pela
CONDER, contemplou oito mil metros quadrados, cerca de 20% da área total da Feira.
Tendo sido marcado por imprevistos e atrasos, a requalificação – essencial para a
manutenção do espaço material – parece revelar também os seus limites para a
salvaguarda do patrimônio de São Joaquim. A título de exemplo, podemos mencionar o
caso do Samba da Feira: evento que ocorre há décadas no ambiente de São Joaquim, aos
domingos, e inicia-se no período da manhã, estendendo-se até a noite. Mobilizando
feirantes e tornando-se o momento de sociabilidade por entre os mesmos, o Samba da
Feira não é mencionado nos documentos da Requalificação enquanto parte do projeto de
das reformas. Após a entrega, os feirantes realizaram a ocupação do píer e, pela ação
dos mesmos, inauguraram o espaço do Samba da Feira a partir da ocupação. Esta ação
demonstra e exemplifica os limites da requalificação enquanto estratégia de
salvaguarda.

Vale ressaltar que esta pesquisa condiz ao desenvolvimento do Mestrado Profissional


Interdisciplinar do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas
Públicas, no eixo de Políticas Públicas de Cultura e Patrimônio Cultural, no âmbito da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. As impressões
prévias coletadas, bem como os registros fotográficos, correspondem às idas ao campo
realizadas entre 2019 e 2021 no espaço da Feira de São Joaquim. As percepções
também advêm através do diálogo com feirantes, das trocas e percepções observadas em
campo. A aplicação das técnicas de coleta de dados está prevista para Janeiro de 2022.

4. Expectativas, objetivos e questões metodológicas: trabalho de campo e


delimitações.

Este artigo compõe parte das discussões e considerações obtidas no desenvolvimento do


curso de Mestrado, como já mencionado acima. O objetivo do trabalho, que encontra-se
em desenvolvimento, é o de identificar os impactos do Projeto de Requalificação da
Feira de São Joaquim (2011 – 2017) enquanto estratégia de salvaguarda para a
manutenção da Feira de São Joaquim, buscando responder a seguinte questão: Quais os
impactos e os limites do Política de Requalificação (2011 – 2016) enquanto estratégia
de salvaguarda cultural da Feira de São Joaquim conforme a percepção dos feirantes?

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Dessa forma, no âmbito do desenvolvimento do Mestrado, espera-se delimitar: a) as
intenções de ação presentes nos documentos da CONDER e do IPAC acerca do Projeto
de Requalificação da Feira; b) os impactos da Requalificação conforme as impressões
de consumidores. Ainda, tratando-se de um Mestrado Profissional, será apresentado o
produto que consiste na realização do Relatório de Análise Política da Implementação
do Projeto de Requalificação da Feira de São Joaquim (BA).

Para cumprir com os objetivos do trabalho, a metodologia adotada consiste, na primeira


etapa, na pesquisa bibliográfica e de análise documental a fim de extrair dados de dois
documentos: o relatório produzido pela Conder-Ba, intitulado “Apresentação do Projeto
de Requalificação da Feira de São Joaquim” e o documento “Projeto de Requalificação
da Feira de São Joaquim: Referencial, Cultura E Resistência”, produzida pelo IPAC.

A segunda etapa metodológica consiste no trabalho de campo previsto para Janeiro de


2022, visando identificar os impactos causados pela requalificação da Feira de São
Joaquim conforme a percepção de feirantes. O trabalho de campo objetiva a coleta de
dados por meio de entrevistas abertas e semiestruturadas, recorrendo à amostragem por
conveniência na seleção dos sujeitos, uma vez que se torna relevante selecionar
feirantes da parte contemplada pela requalificação e feirantes da parte não contemplada.
Pretende-se entrevistar cerca de seis indivíduos, submetendo as gravações à prescrição
que passarão pela análise qualitativa de dados de entrevista.

O trabalho de Mestrado em desenvolvimento, que possibilitou a escrita deste artigo,


parte das seguintes hipóteses: o Projeto de Requalificação teria gerado dualidades e
contrastes no espaço da Feira de São Joaquim: a parte reformada e a parte majoritária, à
margem das melhorias; A Requalificação proporciona benefícios na infraestrutura do
espaço, mas apresenta limitações no que diz respeito à Salvaguarda das dinâmicas
culturais e simbólicas.

5. Considerações preliminares: os limites da Requalificação.

As formulações e ações desenvolvidas pelo Estado visando promover intervenções na


sociedade civil por meio da cultura correspondem à complexidade da junção de dois
amplos conceitos, o de Cultura e o de Política. Conforme Teixeira Coelho (1997), as
iniciativas dos agentes, por meio das políticas culturais, é o de “promover a produção, a
distribuição e o uso da cultura, a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o
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ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável” (p. 292), sendo a forma
mediadora entre o que é produzido e vivido pela sociedade civil e o Estado. Dessa
forma, espera-se enfatizar a importância da preocupação com a manutenção das
tradições enquanto direito das demandas culturais e dever do Estado em promover a
continuidade de espaços simbólicos a partir dos dispositivos legais de salvaguarda,
requalificação, registro e patrimonialização.

Atualmente, a Feira de Joaquim, enquanto referencia cultural da cidade de Salvador,


passa pelo processo de reconhecimento enquanto Patrimônio Cultural brasileiro, em
processo de instrução pelo IPHAN ao ser indicada para Registro no Livro dos Lugares
do Patrimônio Imaterial. Entretanto, o processo iniciado em 2005 continua em análise
pelo Instituto, enquanto o ambiente de São Joaquim ressignifica suas estratégias de
permanência, visto que a feira não é imune às transformações sociais e econômicas da
cidade de Salvador, bem como à especulação imobiliária, o turismo e demais categorias
que continuam modificando a paisagem da Cidade Baixa.

A Constituição Federal de 1988 prevê a obrigatoriedade do Estado em zelar pelos bens


culturais de natureza material e imaterial. Ainda, estabelece ao Estado brasileiro o dever
de proteger os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, etc., garantindo a todos o pleno exercício dos direitos culturais e a
proteção às manifestações das culturas populares, destacando a cultura afro-brasileira.
(Art. 215 e 216 da CF/88). O que se observou na trajetória histórica brasileira em
relação à proteção dos bens patrimoniais é que, até a década de 1980, houve a
prevalência de uma noção de cultura e patrimônio branca, monumental e arquitetônica.
Tornava-se, então, necessário pensar e formular uma política de preservação que fosse
culturalmente abrangente a fim de representar a multiplicidade da cultura brasileira,
afastando-se daquela visão elitista e monumental.

Na década de 1990, o Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial e a Comissão de


Assessoramento ao Grupo de Trabalho, orientados pelo então Ministério da Cultura,
encarregaram-se da elaboração de novos instrumentos jurídicos capazes de atender às
especificidades do patrimônio imaterial, previsto constitucionalmente. Foi, então, no dia
4 de agosto de 2000 em que ocorreu a assinatura do decreto nº 3.551, que instituiu o
Registro de Bens Natureza Imaterial, criando o Programa Nacional de Patrimônio
Imaterial. A partir dos meios jurídicos e legais, o Registro se tornou o instrumento de
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proteção ao patrimônio imaterial brasileiro. O Registro, diferentemente do que
usualmente ocorre com o Tombamento, envolve a participação social dos agentes
envolvidos no bem cultural em questão, autorizando a catalogação, a filmagem, os
registros e, a partir do diálogo, a traçar um plano de ações também previsto
constitucionalmente, o Plano de Salvaguarda, responsável por traçar quais serão as
metas emergenciais, de curto e médio prazo para realizar a salvaguarda do bem em
processo de Registro.

Ainda, pensando a categorização de feira imaterial e a possibilidade de Registro da


Feira de São Joaquim enquanto Patrimônio Imaterial brasileiro, pode-se recorrer à
Márcia Chuva (2012), em que a autora defende que se torna necessário “estimular o
desenvolvimento e a proposição de projetos integrados e integradores da noção de
patrimônio cultural” (p. 147), afastando-se da rígida divisão entre bem material e
imaterial, visto que o processo de registro de um bem imaterial também envolve
delimitações no tempo e no espaço, dos atores sociais envolvidos na construção e na
perpetuação das práticas culturais. Conforme a autora, a divisão entre bem material e
imaterial é enganosa frente ao fato de que qualquer intervenção em um bem material
envolve, também, sua imaterialidade. Ainda, podemos pensar que:

Os sujeitos produtores de sentidos são vários, diferenciados e deveriam ser


confrontados em fóruns de discussão. Nas ações de proteção e salvaguarda,
os sujeitos a que nos referimos são aqueles cujas relações estabelecidas com
os bens culturais os tornam constituintes e constituídos por tais bens, numa
dialética construção de identidades por meio de elos comuns ao grupo. Por
haver uma concorrência para a atribuição de valores por grupos que se
diferenciam por interesses diversos, as políticas públicas de patrimônio
precisam, portanto, explicitar quem são os sujeitos que estão sendo
privilegiados, para que não se tornem políticas “lobistas”. (CHUVA, 2012,
p. 163)

No caso do Projeto de Requalificação da Feira de São Joaquim, correspondente a um


bem cultural em processo de tombamento, esta pesquisa espera enfatizar a importância
da atuação do poder público em espaços culturais, desde que operados a partir de ações
estratégicas para a manutenção das dinâmicas características da Feira, priorizando a
tradição cultural, os saberes e modos de fazer, determinando também os limites e os
desafios da requalificação para a salvaguarda da Feira imaterial e material.

Conclusão:

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Pensando na proposta de Grupo de Trabalho intitulado “Fragmentos” no qual este artigo
busca contribuir para as discussões, podemos elucidar a constatação realizada por
Walter Benjamin (1987), que destaca que “a cada geração foi-nos concedida uma frágil
força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser
rejeitado impunemente.” (p. 222). As inquietações que motivam a pesquisa no ambiente
da Feira de São Joaquim vão justamente ao encontro do sentido de Benjamin: o apelo
do passado que não pode ser rejeitado. Dessa forma, ao buscar analisar a Requalificação
e seus efeitos podemos destacar os possíveis malefícios que ainda acometem a “parte
velha” da Feira, bem como o contraste existente em relação à “parte nova”, a ausência
de infraestrutura, proteção contra possíveis incêndios, acidentais ou ilegais, incêndios
estes que já destruíram suas feiras antecessoras, a Feira do Sete e a Feira de Água de
Meninos.

Entende-se, portanto, que a Requalificação possibilitou inúmeros benefícios no


ambiente da Feira, mas apresenta limitações para a real salvaguarda de seu espaço,
sobretudo quando pensada sob a égide de tornar São Joaquim um local mais atrativo
para turistas, subordinando as expressões culturais à lógica turística. A partir da
indicação ao Registro enquanto Patrimônio Imaterial brasileiro abre-se a possiblidade da
preservação do espaço de São Joaquim em sua totalidade simbólica. Dentre as funções
legais do instrumento jurídico do Registo está a obrigatoriedade, por parte do Estado, a
construir um plano de salvaguarda, o que, em termos práticos, o Tombamento não faz.
A partir das discussões e diagnósticos envolvendo a comunidade em torno do bem
cultural, o plano de salvaguarda deve apontar quais serão as metas e as ações a serem
desenvolvidas em curto, médio e longo prazo.

Para além, pensar sobre o ambiente de São Joaquim também traz reflexões sobre as
possiblidades de pensar novos paradigmas no que diz respeito à proteção e salvaguarda
do Patrimônio Cultural brasileiro que possam ofertar a partir de uma noção de
patrimônio cultural integradora (CHUVA, 2012, p. 147). Isto porque a trajetória
realizada no campo do patrimônio no Brasil, uma vez que levou à divisão dicotômica
entre os âmbitos material e imaterial, também os separou em metodologias distintas de
procedimentos de reconhecimentos, como é o caso do Tombamento (de bens materiais)
e do Registro (de bens imateriais). Na literatura recente sobre patrimônio cultural
podemos afirmar que tal distinção é falaciosa, uma vez que o um bem cultural envolve

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sujeitos, sentidos e significados adquiridos no tempo e no espaço, não sendo possível
separar o simbólico do material.

Retomando Benjamin, “irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao


presente, sem que esse presente se sinta visado por ela” (BENJAMIN, 1987, p. 222).
Podemos afirmar que o passado não está petrificado ao passo que se torna disputa no
presente. Discutir e analisar as reais condições de manutenção da Feira de São Joaquim
implica em olhar para o seu passado, para as tentativas de expulsão da feira e de sua
população. Implica, também, em pensar condições de melhorias para os feirantes na
edificação de políticas públicas que garantam cidadania para aqueles que trabalham e
produzem o espaço da feira e suas teias simbólicas e modos de fazer sem perder a
dimensão da identidade, da história e da cultura que São Joaquim carrega. Para
continuar existindo no tempo-espaço, a Feira de São Joaquim depende de reais
estratégias de resistência.

REFERÊNCIAS

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da Requalificação da Feira de São Joaquim. 2018. Disponível em:
<http://www.conder.ba.gov.br/biblioteca/requalificacao-da-feira-de-sao-joaquim>.
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