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Dossiê

CARTOGRAFIA CULTURAL DA REGIÃO DA LAGOINHA, BELO


HORIZONTE - MG: um processo participativo de mapeamento de
referências culturais

Cultural cartography of the Lagoinha region, Belo Horizonte - MG: a participatory


process of mapping cultural references

Raul Amaro de Oliveira Lanari


Débora Raiza Carolina Rocha Silva
Guilherme Eugênio Moreira
Hugo Mateus Gonçalves Rocha*
Úrsula Viana Mansur 

RESUMO: O artigo tem o objetivo de apresentar os resultados do projeto Cartografia Cultural da


Região da Lagoinha, realizado sob supervisão da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em 2019. Com a presença de agentes mobilizadores locais e
oficinas participativas de elaboração de mapas de percepção, identificou-se diversas referências culturais
associadas a nove áreas temáticas, como religiosidade, música, lugares, ofícios e expressões artísticas,
principalmente nas regiões do bairro Lagoinha, das vilas Pedreira Prado Lopes e Senhor dos Passos e
segmentos dos bairros São Cristóvão, Bonfim, Concórdia, Aparecida e Santo André. Discorre-se sobre a
região do bairro Lagoinha, a configuração da pesquisa e as potencialidades da metodologia de mapas de
percepção para a identificação de referências culturais. Ademais, analisa-se a diversidade dos resultados
obtidos, que demandou a operacionalização de noções ampliadas de território e referências culturais.
Apresenta-se finalmente medidas de salvaguarda voltadas para o apoio às demandas locais apresentadas
por interlocutores/as da pesquisa.

Palavras-chave: Cartografia cultural; Referências culturais; Lagoinha.

ABSTRACT: The article aims to present the results of the project Cultural Cartography of the Lagoinha
Region, carried out under the supervision of the sector of Cultural Heritage and Public Archive of the
Municipality of Belo Horizonte in 2019. With the presence of local agents and participatory workshops
for the elaboration of perception maps, several cultural references were identified and associated with
nine thematic areas, such as religiosity, music, places, traditional craftsmanship and artistic expressions,
mainly in the regions of Lagoinha, Pedreira Prado Lopes, Vila Senhor dos Passos and sections of Bonfim,
Concórdia, Aparecida and Santo André neighborhoods. One discusses the history of Lagoinha region, the
research process, and the potentials of perception maps as a methodology for the identification of cultural
references. Furthermore, one analyzes the diversity of results, which demanded broader notions of
territory and cultural references. Finally, one presents safeguarding measures, aimed at supporting local
demands presented by research interlocutors.

Keywords: Cultural cartography. Cultural references. Lagoinha.


Doutor em História (UFMG). Professor do Departamento de História do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). E-
mail: ralanari@gmail.com

Mestre em História (UFMG). Gerente de Patrimônio Cultural Imaterial no IEPHA/MG. Coordenou a produção da Cartografia
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Cultural da região da Lagoinha. E-mail: deboraraizarocha@gmail.com



Mestre em Antropologia (UFF). Pesquisador do Na Rua/UFF. E-mail: guilherme.gem@gmail.com
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*
Mestre em História (UFMG). Sócio-Diretor da Peixe Vivo Histórias – Memória e Patrimônio. E-mail: hugogrocha@hotmail.com

Mestre em Educação (UEMG). Professora do Ensino Fundamental. E-mail: ursula.vianam@gmail.com

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513
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Introdução

A região da Lagoinha, em Belo Horizonte, é um lugar privilegiado de


manutenção da tradição e de resistência cultural. Na localidade, a formação do território
e de territorialidades é perpassada por dimensões que mesclam público e privado,
individual e coletivo, lugares e movimentos, marcos edificados e naturais, espaços
simbólicos e utilitários. É, assim, uma região que congrega vivências de pessoas,
processos históricos, sociais, econômicos, morfológicos e ambientais. Essas relações
formam combinações particulares, configurando um território que se distingue no
contexto geral do município.
Na busca por ampliar o conhecimento sobre a região e construir políticas
públicas que dialoguem com a realidade local, a Fundação Municipal de Cultura de
Belo Horizonte, por meio da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público
(DPCA), contratou a produção de um mapeamento cultural da região. Seguindo a
orientação da DPCA, a equipe técnica1 responsável pela execução do projeto, intitulado
Cartografia Cultural da Região da Lagoinha, buscou mapear as referências culturais da
região, descrevê-las em fichas e propor medidas para a continuidade dos modos de vida
e práticas culturais locais. Além disso, buscou identificar políticas públicas e iniciativas
privadas associadas à Assistência Social, Saúde e Educação, indicando ações a serem
desenvolvidas na região de forma intersetorial e articulada às referências culturais
locais.
Durante as atividades, realizadas entre abril e agosto de 2019, dois pontos de
atenção foram importantes: afastar-se da noção oficial dos limites do bairro da Lagoinha
e compreender de maneira ampliada o conceito de cultura e, consequentemente, de
referências culturais. Essas noções serão abordadas de forma mais aprofundada ao
longo do artigo, que apresentará a metodologia aplicada, o histórico da região e os
dados obtidos. Ademais, discutirá os conceitos de território, territorialidades e
referências culturais, além de tecer apontamentos sobre as políticas públicas que
atendem a região. Por fim, serão apresentadas proposições elaboradas a partir dos
trabalhos realizados.

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A equipe técnica foi composta por dois antropólogos, três historiadores e uma geógrafa com experiência em mapeamentos e
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inventários culturais que atuam principalmente na área de Patrimônio Cultural. Também compõe a equipe uma pedagoga com
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experiência na área de educação, sobretudo em temáticas como violência na escola, adolescência, juventude e segurança pública.

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Lagoinha: entre a memória e as lutas sociais do presente

Belo Horizonte foi construída no final do século XIX, inspirada pelas doutrinas
científicas que defendiam o planejamento das cidades como forma de saneamento das
relações entre as pessoas. No projeto de Aarão Reis, a cidade foi dividida em três zonas:
urbana (delimitada pela Avenida do Contorno), suburbana e de sítios. Com a
consolidação da nova capital, o custo de vida nas áreas dentro da Av. do Contorno não
permitia o estabelecimento das populações trabalhadoras, que tiveram de buscar abrigo
nas “franjas” da cidade. Núcleos de ocupação não planejada surgiram em regiões que
permitiam o deslocamento para o trabalho nos limites da cidade. A região da Lagoinha é
um exemplo desse processo observado nos primeiros anos de Belo Horizonte.
A ocupação da região deu-se em conjunto à execução do projeto da nova capital,
nos entornos das fazendas do Pastinho e dos Menezes. Sabe-se ainda que havia uma
área pantanosa na região marcada por grandes vales entre morros, nos quais ocorria o
acúmulo de água dos diversos córregos que a atravessavam, entre eles o Córrego
Lagoinha. Segundo Abílio Barreto (1997, p. 94), a denominação do bairro surgiu de
suas características topográficas e hidrográficas, visto que a área era caracterizada por
pequenos alagados, “lagoinhas” drenadas para a construção da nova cidade. Os
relatórios de administração municipal identificaram em suas análises a condição de
estabelecimento das populações na região da Lagoinha: “Grande parte da 6 secção
suburbana (Lagoinha) está ocupada por habitações provisórias, construídas sem licença
da prefeitura” (BELLO HORIZONTE, 1922, p. 51 apud FREIRE, 2011, p. 115).
Devido à sua localização, entre o centro e a colônia agrícola Carlos Prates, a
região da Lagoinha inicialmente participou do fornecimento de alimentos para a
população da nova cidade. Entre 1899 e 1900, foi construído o primeiro Mercado
Municipal da capital, situado próximo à Estação Ferroviária. Na primeira década do
século XX, foram fornecidos aos moradores iluminação e, especialmente, transporte,
com a criação da linha de bondes que passava pela Rua Itapecerica, uma das principais
vias locais. Na década de 1920, foi inaugurada a Igreja de Nossa Senhora da Conceição,
na Rua Além Paraíba, e instalado um serviço de ônibus que atendia a região. O serviço
de abastecimento de água, contudo, foi criado somente em 1930, em substituição aos
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chafarizes públicos existentes.

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Ainda no início do século XX, a ocupação da Lagoinha cresceu para as áreas


conhecidas como “Pedreira Prado Lopes” e “Buraco Quente”, atual Vila Senhor dos
Passos. A Pedreira Prado Lopes foi uma das primeiras vilas urbanas de Belo Horizonte
e foi ocupada por pessoas que vinham de diferentes lugares do país. Segundo o
Relatório de Prefeito dos anos de 1940 e 1941, a localidade era associada a pessoas de
menor poder aquisitivo: “em vários anos sucessivos, a dois passos da cidade se vinham
localizando classes de menos capacidade econômica, operários e até mendigos, na área
conhecida pela designação de Pedreira Prado Lopes” (ARROYO, 2010).
A ocupação do chamado “Buraco Quente” tem seu primeiro registro datado de
1914 (SANTOS, 2006). Próxima às colônias agrícolas Carlos Prates e Córrego da Mata
(posteriormente Américo Werneck), a área fazia parte de uma fazenda da família Mata
Machado que, segundo a literatura, teria sido doada à Igreja Católica e, mais tarde,
incorporada à região suburbana de Belo Horizonte, passando ao domínio do poder
público municipal (URBEL, 2000 apud MAIA, 2017; AGUIAR, 2006). Existem ao
menos duas versões para a origem do nome. A mais difundida conta que o topônimo
derivou dos conflitos com as mulheres da vila, que, segundo a narrativa oral, se
envolviam em brigas frequentes. Algumas variações falam que as brigas eram
motivadas por ciúmes, enquanto outras contam que aquelas mulheres saíam em defesa
de seus maridos e filhos. Ricardo de Moura, sacerdote da Casa de Caridade Pai Jacob do
Oriente, contou, em entrevista realizada para o projeto, que nas primeiras décadas do
século XX muitas famílias negras se instalaram na região em busca de trabalho nas
áreas agrícolas e na pedreira da Lagoinha, onde hoje se encontra a Pedreira Prado
Lopes. Segundo Pai Ricardo, “as mulheres da favela, elas eram aguerridas com o
território delas” (DPCA, 2019). A segunda versão a respeito do nome “Buraco Quente”,
menos difundida, relaciona o nome às investidas policiais que já aconteciam na época,
pois criminosos usariam as áreas de vegetação densa como esconderijo (SANTOS,
2006).
É importante dizer que, na década de 1920, a Pedreira Prado Lopes e o “Buraco
Quente” formavam um território contínuo. Nos dias atuais, quando contam a história de
crescimento da favela nesse período, muitos moradores relembram que “era tudo
Pedreira”. Foi apenas na década de 1940, com a abertura da rua Pedro Lessa para a
passagem da linha do bonde, que a região se dividiu.
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Na década de 1930, a região da Pampulha recebeu investimentos para a


construção do primeiro aeroporto da cidade, inaugurado em 1933, com acesso garantido
pela “Estrada Velha da Pampulha”, que cortava a Lagoinha e recebeu calçamento em
1937 (FREIRE, 2011). Com isso, a vida social da região da Lagoinha ganhou
vitalidade, aproveitando-se da proximidade do centro da cidade e de bairros como
Floresta e Concórdia. Até a década de 1950, a Lagoinha foi um dos principais pontos de
encontro de sambistas, seresteiros, dançarinos e amantes da noite de Belo Horizonte.
Conviviam com o comércio, com botequins sempre abertos e cheios nas imediações da
Praça Vaz de Melo, com pensões, o Ribeirão Arrudas, o mercado, o barulho do trem do
subúrbio, os cinemas Paissandu, Mauá e São Geraldo. Os moradores encontravam-se no
antigo campo do Pitangui para ver jogos entre os times locais, como Fluminense e
Terrestre. Nos primeiros meses do ano, aconteciam os preparativos para o desfile de
carnaval do bloco “O Leão da Lagoinha”, fundado em 1949 (PIROLI, 2003).
A população na região cresceu entre as décadas de 1940 e 1950 e a atual Vila
Senhor dos Passos, limitada a norte pela rua Pedro Lessa, cresceu rumo à Rua Além
Paraíba. Esse período foi marcado também pela construção do Conjunto Habitacional
do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), projetado em 1942
pelos engenheiros White Lírio da Silva, José Barreto de Andrade e Antônio Neves,
durante a gestão do então prefeito Juscelino Kubitschek (COSTA, 2011). Parte dos
moradores da Pedreira Prado Lopes, então a maior favela da capital, foi desalojada para
dar lugar ao primeiro conjunto habitacional voltado para operários da cidade. De acordo
com Juliana Nery (2016), a construção do IAPI insere-se em um contexto de
agravamento dos problemas urbanísticos da capital mineira causado pela atração de
indústrias para Belo Horizonte. Sua implantação foi apresentada pela administração
pública como parte da solução para a crise habitacional, posto que a cidade teve um
rápido crescimento populacional, passando de 13.472 habitantes em 1900 para 116.981
em 1930.
A construção do IAPI demandou novas estruturas de apoio, como o ambulatório
do Hospital Municipal Odilon Behrens, inaugurado em 1944, o Mercado da Lagoinha,
cuja construção foi iniciada em 1949, e o Colégio Municipal que, devido à mobilização
de moradores da localidade, foi transferido para o Bairro São Cristóvão em 1954. As
décadas seguintes continuaram sendo marcadas por novos empreendimentos públicos e
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privados. Houve a edificação, por exemplo, da Paróquia São Cristóvão e da Escola


Municipal Honorina de Barros, ambas localizadas no entorno do IAPI.
Alterações estruturais responsáveis por mudanças significativas no modo de vida
dos moradores da região ocorreram desde muito cedo. A primeira deu-se no final dos
anos de 1940, com a construção do túnel Lagoinha-Concórdia (Túnel Souza Lima),
concluído apenas em 1971, que ligou o centro à região Noroeste (FREIRE, 2011).
Também em 1971, foi inaugurado o Terminal Rodoviário de Belo Horizonte no local
onde anteriormente se localizava a Feira de Amostras, próximo aos limites da Lagoinha.
Tais modificações acabaram por transformar a paisagem da região de forma
irreversível. A Praça Vaz de Melo, lugar privilegiado de encontros, foi demolida, dando
lugar a viadutos, avenidas e ao metrô de superfície. Com o tempo, muitas das
edificações da região se deterioraram e vieram a desabar. Após a demolição da Praça
Vaz de Melo, a sociabilidade tradicional se dispersou e a intensidade comercial
diminuiu, especialmente nas imediações da Avenida Antônio Carlos. A antiga Lagoinha
recebeu diversas homenagens como a canção Adeus Lagoinha do músico e poeta
Gervásio Horta, em parceria com Milton H. Horta, marcada pelos versos: “Adeus
Lagoinha, adeus/estão levando o que resta de mim/dizem que é a força do progresso/um
minuto eu peço, para ver seu fim”.
Nos anos de 1980, a região do chamado “Buraco Quente” recebeu a Capela
Senhor dos Passos, subordinada à Paróquia Nossa Senhora da Conceição, que passou a
dar nome à região. A partir dessa década, a Vila testemunhou uma sequência de
intervenções urbanísticas que visavam promover a regularização fundiária e o
ordenamento do uso do solo. Nesse contexto, foram realizadas as primeiras instalações
das redes de água e esgoto, postes de eletricidade e pavimentação de ruas e becos. Em
1996 e 1997, ocorreram obras de infraestrutura e construção de vias para pedestres e
automóveis, além da contenção de encostas. Tais intervenções implicaram nas primeiras
desapropriações e na construção de 18 unidades habitacionais na rua Sargento João
Beraldo para o reassentamento daquelas famílias. No ano de 1996, também se iniciou o
processo de regularização fundiária da Vila junto à Companhia Urbanizadora de Belo
Horizonte – URBEL (SANTOS, 2006). Novas intervenções para pavimentação e
alargamento de importantes vias de acesso e circulação na Vila foram realizadas entre
1997 e 1999 no Programa Pró-Moradia, com a remoção de novas famílias, a derrubada
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de 46 domicílios e a construção de 16 unidades habitacionais na rua Prado Lopes. Pai

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Ricardo de Moura, em entrevista, lembra desse período como a “entrada do concreto”


na Vila, evidenciando as benesses vindas com a oferta de serviços, mas também
chamando atenção para os conflitos que começaram a se desenrolar, advindos das
intervenções planejadas e executadas sem a participação dos moradores (DPCA, 2019).
No que se refere à Pedreira Prado Lopes, na década de 1990 foi aprovada a
política de Orçamento Participativo relativa à região, com duas diretrizes base:
abordagem integrada dos eixos físico, jurídico e socioeconômico; e participação dos
moradores durante todo o seu desenvolvimento. A instalação dos prédios do Programa
Vila Viva foi um resultado da política, mas com a interrupção das ações do Orçamento
Participativo, as ações necessárias para a garantia de direitos não tiveram continuidade.
No caso do antigo núcleo da Lagoinha, entre as ruas Itapecerica, Além Paraíba e
Pedro Lessa, observou-se as primeiras medidas de preservação ao longo da década de
1990. Para a comemoração do centenário da cidade, foram criados a comissão “BH cem
anos” e o “Projeto Lagoinha”, uma proposta de revitalização do bairro com atenção às
suas práticas tradicionais e à qualidade de vida da população local. Contudo, das
iniciativas previstas para o projeto, apenas a restauração do Mercado Popular da
Lagoinha foi levada adiante, entregue à população em 1998 para a comemoração do
Centenário.
Após relativa paralisação, intervenções viárias atingiram novamente a região,
com a duplicação da Avenida Antônio Carlos, projeto lançado na esteira da escolha do
Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014. Em 2010, a avenida começou a ser
ampliada, passando de três para quatro faixas, algumas delas exclusivas para ônibus.
Desta feita, também foram construídos viadutos ao longo da avenida, como na rua
Formiga, próxima ao IAPI (DEER/MG, 2010). Com a duplicação da Avenida Antônio
Carlos e a instalação do MOVE/BRT, a Lagoinha passou a ser dividida por viadutos,
gerando desarticulação do núcleo de ocupação original e uma maior diferenciação entre
os territórios nos lados opostos da avenida (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE,
2011).
Esse panorama é o que persiste até os dias atuais na região do bairro Lagoinha e
suscita críticas dos moradores locais com relação à necessidade de diálogo com a
comunidade para transformações dessa magnitude. Assim, observou-se nos últimos
anos um maior esforço dos poderes públicos para a aproximação com a comunidade, de
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forma a reconhecer suas demandas e valorizar suas formas de associação e

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manifestações culturais. É importante ressaltar que, a despeito de todas essas mudanças


e intervenções abruptas, a população da região da Lagoinha mantém, também em
processo dinâmico, diversas tradições, tais como ofícios, práticas religiosas, bares e as
matrizes do samba.
Toda essa dinâmica vivenciada por moradores/as da região refletiu-se tanto nos
mapas de percepção, como nas entrevistas e nas discussões feitas ao longo da
cartografia. Assim, o levantamento das referências culturais existentes na região foi
marcado por um olhar do presente, mas por uma insistente lente de um passado que não
passa. Essas marcas da memória, por vezes traumáticas, por vezes envaidecidas,
poderão ser mais bem compreendidas nos tópicos seguintes.

Metodologia de levantamento das referências culturais

O projeto contratado pela prefeitura de Belo Horizonte teve como objeto a


produção de uma cartografia. É preciso dizer que o vocábulo “cartografia” é
polissêmico, sendo utilizado em distintas áreas do conhecimento. A cartografia possui
uma conceituação técnica-científica que a define como um:

(...) conjunto de estudos e operações científicas, artísticas e técnicas, baseado


nos resultados de observações diretas ou de análise de documentação, com
vistas à elaboração e preparação de cartas, projetos e outras formas de
expressão, assim como à sua utilização. (IBGE, s.d.). 2

Conforme aponta Carvalho e Araújo (2011, p. 28), as operações cartográficas


têm o objetivo de “(...) representar o espaço concreto ou abstrato em suas múltiplas
feições”. A bibliografia que trata da elaboração de mapeamentos aponta que produzir
mapas não é uma tarefa imparcial, muito menos inocente, pois mapear é, também,
“colonizar” e “dominar”. Ao longo da história, a produção de mapeamentos foi utilizada
para localizar, navegar, definir limites, compreender o mundo físico, difundir ideias
sobre lugares, entre outras aplicações. Em muitos casos, esses mapas produziram
apagamentos, exclusões e negações, apontando a incapacidade para o diálogo entre
diferentes partes do mundo. Por outro lado, a operação de mapear, em outros momentos,
gerou a possibilidade de tornar visíveis pessoas e grupos sociais excluídos, sobretudo
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Definição da Associação Cartográfica Internacional (ACI) em 1966, ratificada pela UNESCO no mesmo ano.

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porque aqueles que antes não apareciam passaram a ser considerados nas relações
geopolíticas no mundo.
Assim, no projeto, foi estabelecida como proposta metodológica a identificação
dos atores sociais que estariam envolvidos e a realização dos primeiros contatos; a
aplicação de oficinas de mapas de percepção com moradores/as da região; o trabalho de
campo com elaboração de entrevistas com referências de diferentes temas e áreas; o
acompanhamento de atividades; “andanças” mediadas e não mediadas pela região; a
catalogação, análise e consolidação dos dados em planilhas e gráficos; e a validação e
identificação de localizações e trajetos com mediadores locais.
Na perspectiva de que a própria comunidade é detentora dos conhecimentos e,
portanto, agente legitimado para falar de seu lugar, ao mesmo tempo que o
conhecimento de um povo sobre seu território é partilhado e diverso, buscou-se ouvir
moradores/as de distintos lugares sociais e culturais da localidade. Tendo como
premissa legitimar os resultados obtidos, buscou-se a plena participação das lideranças
tradicionais reconhecidas dentro do contexto comunitário, mas também da juventude e
dos agentes culturais locais.3
Além disso, à equipe técnica que executou o estudo, foram incorporados dois
mediadores locais, que contribuíram tanto na articulação com a população como na
identificação da localização das referências culturais da região. Na seleção dos
articuladores, buscou-se garantir que ambos fossem pessoas com envolvimento local,
reconhecidas e legitimadas pela comunidade.4
Algumas instituições atuantes no território foram fundamentais para a
mobilização e articulação na comunidade. Entre as entidades, destaca-se o Centro
Cultural Liberalino Alves de Oliveira (CCLAO), que possui um importante trânsito com
moradores/as da região, além de articular-se de forma muito próxima com os coletivos e
lideranças locais. Alguns equipamentos da rede de atendimento público também foram
importantes no mapeamento das atuais políticas públicas em execução no território,
bem como na construção das proposições que compõem o relatório final do projeto.5

3
Os mestres que colaboraram no processo de mapeamento estavam, em sua maioria, ligados à religiosidade, a associações
comunitárias ou a movimentos sociais e culturais.
4
Uma das mediadoras é moradora da Vila Senhor dos Passos e atuante na área cultural na região, principalmente através da dança e
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da música e o outro, publicitário, produtor cultural e morador da Rua Itapecerica.


5
No campo das políticas de Assistência, destaca-se o CRAS Vila Senhor dos Passos, o CRAS Pedreira Prado Lopes e a Diretoria
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Regional de Assistência Social da Regional Noroeste. No campo das políticas de saúde, o Consultório de Rua. Já no campo das
políticas de educação, a Escola Municipal Belo Horizonte e a Escola Estadual Silviano Brandão.

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Identificados e contactados os agentes locais, foram realizadas as oficinas de


mapas de percepção. Recorrente em distintas áreas do conhecimento, essa ferramenta
permite que os sujeitos detentores possam espacializar e desenhar em um papel a
realidade vivida no espaço ao qual pertencem. Possibilita, portanto, o aparecimento das
diferenças, dos movimentos e da subversão das fronteiras e dos marcos fixos.
As oficinas de mapas de percepção, nesse caso, consistiram em reunir
coletividades específicas, dividir-lhes em grupos, entregar-lhes frações de papel em
branco e pincéis atômicos, e estimular-lhes a inserir de forma escrita ou desenhada suas
referências culturais. Ao longo da execução do projeto, foram elaboradas três oficinas
com diferentes grupos focais: uma com as lideranças locais, outra com alunos de ensino
médio da Escola Estadual Silviano Brandão e, por fim, com moradores em geral.
A mobilização para a realização das oficinas deu-se de formas diferentes.
Inicialmente, buscou-se identificar as referências locais junto ao CCLAO e realizar a
oficina com esse grupo de pessoas. Essa estratégia de iniciar o diálogo com as
lideranças reconhecidas pela comunidade funcionou tanto como forma de adentrar o
território de forma respeitosa como para fazer ressoar a nossa presença na região, uma
vez que as lideranças propagariam a informação e, assim, potencializariam a
mobilização para as próximas oficinas. As oficinas seguintes foram feitas com pessoas
de diversas faixas etárias, distintas localidades da região e de variadas classes sociais e
vínculos culturais. Ao todo, participaram da realização dos mapas de percepção mais de
cem pessoas. Concomitantemente ao período de realização das oficinas, foram
realizadas entrevistas com cerca de 20 pessoas, por meio da metodologia de História
Oral, com roteiros temáticos semiestruturados e preparados de acordo com as
especificidades dos atores sociais entrevistados, em sessões que variaram entre 40
minutos e quatro horas.6
Os sujeitos e instituições que participaram e apoiaram a execução das oficinas
de mapas de percepção possibilitaram, a partir de seus olhares, memórias e vivências
como moradores/as desse território, a identificação de 394 referências culturais. Elas
foram agrupadas por tipo: pessoas, lugares e práticas; por temporalidades: passado e
presente; e em nove grandes áreas: Atividades produtivas e comerciais, Equipamentos e
serviços públicos, Esporte e lazer, Expressões artísticas, Lugares, Música, Ofícios,
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As entrevistas foram todas gravadas em áudio e transcritas integralmente e compõem o acervo do projeto, disponível na DPCA.

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Organizações sociais e Religiosidade. Na análise, foram consideradas todas as


referências, algumas citadas por várias pessoas. Nos mapas, por sua vez, foram
consideradas 317 referências.7
Por fim, após a validação das referências e das suas localizações, foram
realizados o georreferenciamento dos itens e a produção dos mapas. O conjunto de
informações foi espacializado em Sistemas de Informações Geográficas, utilizando-se
de dados provenientes do Cadastro Territorial Multifinalitário gerido pela Empresa de
Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte (Prodabel) e distribuídos por
meio da plataforma BHMap. Também foi produzido um geocodificador para cada item,
no software ArcGIS, a partir dos pontos de endereço.8
Foram elaborados um mapa geral das referências e nove mapas temáticos,
considerando as áreas citadas acima. Em área, as referências foram agrupadas em
categorias de acordo com suas especificidades.9 Além disso, foram representados os
trajetos das festas, as ruas e as praças indicadas como referências culturais.
Ainda tratando da metodologia, destaca-se as ações desenvolvidas no sentido de
construir proposições de políticas públicas a partir de uma percepção intersetorial. Essa
construção partiu sobretudo da demanda da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
uma vez que a contratação do projeto visava a identificação de espaços e iniciativas
atuantes na região, bem como a proposição de políticas públicas que envolvessem
diálogos com os setores que trabalhavam políticas de Assistência Social, Saúde e
Educação na região. Assim, estabeleceu-se interlocução com os equipamentos e
serviços que atendiam a população, sobretudo com aqueles identificados como
referência nas oficinas de mapas de percepção e no trabalho de campo da equipe
técnica. Para tanto, foram realizadas entrevistas com os gestores dos espaços
identificados, a fim de compreender seu funcionamento, apresentar a Cartografia
Cultural e pensar coletivamente em proposições de políticas públicas que funcionassem

7
Os itens não espacializados relacionam-se a referências do passado que já não existem mais (67), pessoas importantes, mas que
não moram mais na região (4), itens cuja localização não foi possível (2) e atividades consideradas ilegais pelo poder público (4).
8
Todo o mapeamento foi produzido em sistema de coordenadas UTM, fuso 23S, datum SIRGAS-2000, em atendimento à resolução
IBGE n.º 1/2005. Nos casos em que a única referência informada era o nome do bairro ou da rua, foi inserido um ponto aleatório no
25

centroide dos respectivos vetores – polígono ou linha.


9
Por exemplo, a grande área Música foi dividida nas categorias: artistas e grupos musicais; blocos carnavalescos e escolas de
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samba; canções; e eventos musicais. A geógrafa responsável pela produção dos mapas e do georreferenciamento foi Clarice Murta
Dias.

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como garantidoras de direitos, a partir do fortalecimento dos serviços já previstos e dos


equipamentos em funcionamento.10

Trânsitos para além de fronteiras: territorialidades culturais da região da


Lagoinha

A percepção da heterogeneidade de territorialidades que conformam a região da


Lagoinha, para além de suas fronteiras oficiais, e as relações estabelecidas com
moradoras/es no decorrer da pesquisa trouxeram à equipe do projeto os desafios de
operacionalizar uma noção mais abrangente de “cultura”. Essa noção precisaria
considerar, mas também ultrapassar, as categorias previstas nas políticas de patrimônio
cultural. Desde a reunião inicial com a coordenação do Centro Cultural Liberalino
Alves de Oliveira e a condução da primeira oficina de mapas de percepção, percebeu-se
a pluralidade de atividades, espaços e eventos que eram identificados pelos participantes
como elementos que faziam parte da(s) cultura(s) da Lagoinha.
A literatura hegemônica e as agências de patrimônio brasileiras convencionaram
apresentar as inflexões advindas com a definição mais ampliada de patrimônio cultural
na Constituição Federal de 1988 e, mais tarde, a regulamentação dos chamados
patrimônios imateriais nos anos 2000 como se informadas por uma concepção
antropológica de cultura. Pode-se dizer, entretanto, que essa imagem em si não diz
muita coisa, pois a Antropologia acumulou nos últimos séculos noções concorrentes
sobre cultura, que dependem de posicionamentos ético-políticos, premissas
epistemológicas e escolhas analíticas (MOREIRA, 2020).
O conceito de “referências culturais”, por sua vez, visa privilegiar o caráter
relacional e referencial das práticas de uma coletividade, considerando como tal aquilo
que interlocutores/as afirmam ser importante para a continuidade de suas vidas
(FONSECA, 2001). Uma investigação do trabalho cotidiano de reconhecimento de
patrimônios imateriais, porém, demonstra a tendência de se compreender cultura como
um conjunto de traços diacríticos que configuram uma totalidade, através da
catalogação de indumentárias, instrumentos musicais, canções, ritos, hábitos
alimentares, em detrimento da compreensão mais densa das relações cosmológicas,
26
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10
Entre os equipamentos públicos, foram feitos diálogos com o CRAS Vila Senhor dos Passos, o CRAS Pedreira Prado Lopes, a
Diretoria Regional de Assistência Social Noroeste, a Escola Municipal Belo Horizonte e a Comissão de Gestão Territorial.

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políticas e territoriais. Esse deslizamento aproxima-se da ideia de cultura de Edward


Tylor, do início do século XX e julgada na academia há muito ultrapassada
(MOREIRA, 2020).
No processo de sistematização das informações das oficinas, a fim de evitar os
riscos de simplificar a complexidade encontrada em campo, a equipe assumiu a postura
de levar a sério o que moradores/as haviam inscrito nos mapas de percepção. Entendeu-
se cultura de uma maneira mais ampliada, como um processo discursivo de objetivar
maneiras de ver e interpretar o mundo (WAGNER, 2014). Logo, cultura foi entendida
como aquilo que as/os participantes das oficinas desenharam, escreveram e relataram e,
assim, foi possível operacionalizar com maior densidade a ideia de referências culturais.
Tal premissa revelou a insustentabilidade de operar a análise apenas com as quatro
categorias previstas pelas políticas de patrimônios imateriais – Celebrações, Formas de
Expressão, Lugares e Saberes. As informações reunidas atravessavam tais
enquadramentos, mas terminavam por extrapolá-los.
Esse olhar ampliado permitiu chegar às nove áreas temáticas que orientaram a
produção da cartografia cultural, aqui apresentadas pela distribuição de referências
associadas, em ordem decrescente: Religiosidade (80 itens; 23,81%); Música (54 itens;
16,07%); Lugares (48 itens; 14,29%); Ofícios (39 itens; 11,61%); Atividades produtivas
e comerciais (28 itens; 8,33%); Organizações sociais (27 itens; 8,04%); Expressões
artísticas (22 itens; 6,55%); Esporte e lazer; e Equipamentos e serviços públicos (ambas
com 19 itens; 5,65%)11. Cabe destacar, por exemplo, a consideração de equipamentos
públicos e organizações sociais como referências culturais, uma vez que se percebeu
que tais instituições e iniciativas eram compreendidas por habitantes da Lagoinha como
marcos de referência da região e de suas biografias, espaços de convívio e sociabilidade,
além de promotoras de eventos culturais e oficinas artísticas.
A partir da identificação e espacialização dessas referências culturais, o território
da Lagoinha, para fins do projeto, foi se conformando. Embora a decisão técnica de
delimitar o território da região a partir das referências dos moradores fosse uma certeza
para a equipe, a produção da representação cartográfica do território foi um desafio.
Encontrou-se diferentes interpretações sobre os limites do território, tanto por parte de
27
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Optou-se pela utilização das palavras em maiúscula quando se referem às áreas temáticas da pesquisa.

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moradores/as como do poder público, em diferentes esferas que, por vezes, não
dialogam.
Como define Milton Santos (1996), território é um espaço socialmente
construído, possuidor de recursos naturais e detentor de uma história construída por
aqueles que nele habitam, através de convenções de valores e regras, arranjos
institucionais que lhes conferem expressão e formas sociais de organização da
produção. Como espaço social, o território é espaço de conflito e tensões, sendo ao
mesmo tempo lugar de produção cultural e econômica, configuração de sociabilidades e
formas de ação.
Em consideração a essa compreensão, do mesmo modo que se precisou ampliar
o conceito de cultura para se apreender quais eram as referências culturais da Lagoinha,
foi preciso congregar as diferentes delimitações oficiais das políticas urbanas de Belo
Horizonte com as noções de moradores/as. Dessa forma, a delimitação geográfica12
aplicada no mapeamento da Cartografia Cultural da Região da Lagoinha abrangeu
integralmente o bairro Lagoinha, a Pedreira Prado Lopes e a Vila Senhor dos Passos e
seções dos bairros São Cristóvão, Bonfim, Santo André, Concórdia e Aparecida,
conforme se verifica no Mapa 01.13

12
É importante ressaltar que a delimitação proposta na Cartografia Cultural possui semelhanças com as projeções oficiais e que, no
âmbito do georreferenciamento e do geoprocessamento dos dados, utilizou-se tanto das percepções comunitárias sobre o espaço que
ocupam, circulam e rememoram como das definições oficiais de arruamento e confrontações de limites. Ressalta-se, ainda, que não
era pretensão do projeto modificar definições governamentais, mas propor que as políticas públicas para aquela região considerem a
percepção da localidade de quem ali reside.
13
As referências identificadas extrapolam esses limites, indicando que a territorialidade se alarga e seus fluxos se estendem para
trechos nos bairros Colégio Batista, Concórdia e Nova Esperança. Percebeu-se que, especialmente na área de Religiosidade, as
fronteiras físicas são rompidas, pois grande parte dos que estão na área delimitada nessa cartografia e dos que estão nas
28

proximidades definem-se como moradores/as da Lagoinha. Assim, considerando as referências indicadas e a noção socialmente
construída desse pertencimento, optou-se por apontar no mapa as citações mencionadas pela comunidade local a fim de apresentar
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as relações existentes entre as localidades. Justifica-se que os bairros onde apareceram apenas alguns pontos não foram delimitados
como região da Lagoinha porque não houve aprofundamento das referências nessas localidades.

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Mapa 01: Referências Culturais da região da Lagoinha.

Fonte: Projeto Cartografia Cultural da Região da Lagoinha – relatório final (2019).


Elaboração: Clarice Dias Murta.

A distribuição dessas referências no mapa mostrou a fluidez dos limites e das


confrontações do bairro Lagoinha e colocou-se como possibilidade de compreender os
processos sociais que sustentam as referências culturais dessa localidade. Ademais,
permitiu identificar a configuração de territorialidades culturais, através das dinâmicas
de espacialização das referências, com concentrações em certas áreas e vazios em
outras. Por exemplo, os itens reunidos na área de Lugares foram mais identificados no
bairro Lagoinha. Ali se encontra a maior parte das ruas e praças onde acontecem festas,
procissões, blocos de carnaval e outras práticas que ocupam os espaços públicos. O
bairro também reuniu a maioria das Atividades produtivas e comerciais, muito
vinculadas à história de instalação dos comércios e serviços, que informa o
desenvolvimento da região e mostra suas continuidades. Inversamente, os Ofícios
levantados estiveram mais presentes na Pedreira Prado Lopes e na Vila Senhor dos
Passos.
Na Pedreira, concentraram-se as referências associadas ao Esporte e lazer, com a
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maior presença de itens associados ao futebol. Foi possível identificar também a maior
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concentração e a coincidência de Organizações sociais e Equipamentos e serviços


públicos no bairro Lagoinha e na Pedreira Prado Lopes, em detrimento de presenças
relativamente menos expressivas na Vila Senhor dos Passos e IAPI. O gráfico 01
representa a distribuição das áreas temáticas por localidade, o que permite visualizar as
dinâmicas aqui relatadas. Para fins de análise, explora-se mais detidamente a seguir as
dinâmicas socioculturais da Religiosidade e da Música, áreas que foram as mais
expressivas no levantamento das referências culturais.
Gráfico 01 – Distribuição das áreas temáticas segundo localidade

Legenda: PPL - Pedreira Prado Lopes. Conjunto Habitacional IAPI - Instituto de Aposentadoria e
Pensões dos Industriários
Fonte: Projeto Cartografia Cultural da Região da Lagoinha – relatório final (2019).

A área da Religiosidade concentrou o maior número de referências levantadas


(23,81%), o que indicou sua centralidade entre os/as participantes da pesquisa.
Identificou-se uma relativa pluralidade religiosa na região da Lagoinha, com a presença
de pessoas, práticas e lugares associados às religiões afro-brasileiras, católica,
evangélicas, kardecista e ortodoxa síria. Foi possível reunir algumas tendências
socioespaciais. As referências associadas às religiões afro-brasileiras reuniram 50,0%
dos itens levantados na região, se concentrando na Vila Senhor dos Passos (80,0% dos
40 itens). Por outro lado, as referências às religiosidades católicas, também
relativamente expressivas (36,25%), distribuíram-se por todas as localidades: bairro
Lagoinha, IAPI, Pedreira Prado Lopes e Vila Senhor dos Passos. Além disso, as
referências evangélicas concentraram-se no bairro Lagoinha e na Pedreira, muito devido
à presença da Igreja Batista da Lagoinha e as ações de assistência social realizadas na
comunidade.
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Pode-se atribuir a expressividade de referências culturais de religiões afro-


brasileiras à importância que os terreiros possuem nas dinâmicas sociopolíticas da
região. Além de reunir o corpo mediúnico e frequentadores que buscam assídua ou
esporadicamente orientações espirituais, as casas de candomblé, omolokô e umbanda
historicamente atuaram como centros de saúde e assistência social, mediação de
conflitos e mobilização política, uma vez que os serviços públicos municipais eram
ausentes ou insuficientes, principalmente na Pedreira Prado Lopes e Vila Senhor dos
Passos. Até os dias de hoje, esses espaços organizam eventos de distribuição de
alimentos, doação de roupas, oficinas, entre outras atividades. Segundo conversas com
moradoras, a concentração de terreiros na Vila pode ser atribuída aos processos de
ocupação da localidade desde inícios do século XX, com a migração de famílias
predominantemente negras que já pertenciam ou mesmo eram chefes de terreiros em
suas terras de origem.
Importa destacar que as dinâmicas das casas de religiões afro-brasileiras
contribuem expressivamente para a fluidez das fronteiras da Lagoinha. Pessoas de
diversas regiões de Belo Horizonte e municípios vizinhos participam de suas atividades
e, além disso, os terreiros configuram redes de famílias de santo, trocas e visitas que
estendem as percepções sobre a delimitação do território até os bairros Aparecida,
Concórdia, Nova Esperança e Santo André (Mapa 01). As festas em homenagem aos
orixás extrapolam os limites físicos dos terreiros e ocupam os espaços públicos, na
forma de cortejos e outros eventos, o que também contribui para as percepções da
Lagoinha como um território vivo e rico em práticas culturais.
A distribuição das referências católicas em todas as localidades, por sua vez,
evidencia as redes de atuação das paróquias presentes nos bairros. Encontram-se igrejas
e capelas, festas e procissões por toda a região, mas é possível notar a centralidade do
bairro Lagoinha e do Conjunto IAPI devido à presença do Santuário Nossa Senhora da
Conceição e da Igreja de São Cristóvão, respectivamente. São nos entornos dessas
igrejas que acontece a maior parte das festas, das quais se destacam as comemorações
da Semana Santa e as festas de padroeiro, marcadas pelos trânsitos de fiéis e
organização de procissões que circulam entre Lagoinha e Vila Senhor dos Passos, por
um lado, e IAPI e Pedreira Prado Lopes, por outro.
A festa de Nossa Senhora da Conceição, no dia 8 de dezembro, é um exemplo de
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celebração que extrapola os territórios da Lagoinha e atrai milhares de pessoas de

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diversas regiões da cidade. Ao longo das décadas, tais festas testemunharam momentos
de maior efervescência, participação da população e apoio da paróquia, mas,
atualmente, em entrevistas realizadas com moradores/as, notou-se que as mudanças
sucessivas dos párocos responsáveis e o falecimento de pessoas que eram importantes
para a continuidade das práticas culturais provocaram a diminuição do engajamento
local.
A área da Música foi aquela que reuniu o segundo maior número de referências
(16,07%). Desse universo, mais da metade estava associada ao samba (62,0%), o que
permite indicar sua relevância nas experiências culturais da região da Lagoinha. O
samba está relacionado a diversas dimensões da vida coletiva, como nos ambientes
familiares, religiosidades e momentos de sociabilidade, o que se traduziu no
levantamento expressivo de sambistas, escolas de samba, blocos de carnaval, samba-
canções, afoxés, casas de samba, bares e botequins. Essas pessoas, lugares e práticas
estão concentradas principalmente na Pedreira Prado Lopes e, em seguida, no bairro
Lagoinha.
A Pedreira é conhecida como o berço do samba em Belo Horizonte – não por
acaso, a maior parte de referências reunidas na localidade está relacionada à música
(25,29%). Essa notoriedade deve-se, sobretudo, à fundação da Escola de Samba
Pedreira Unida na década de 1930, nesse espaço que é marcadamente pobre e negro e
contribuiu para a configuração do imaginário belo-horizontino sobre uma Lagoinha
boêmia, malandra e festeira. O que informou sócio-historicamente um olhar externo
pejorativo sobre a região é motivo de reconhecimento e valorização para seus
moradores e moradoras, que mantêm ativas as experiências do samba no território e
contribuem para sua continuidade e transmissão às novas gerações.
A Pedreira Unida encerrou suas atividades, mas hoje seus antigos membros
estão reunidos na Escola de Samba Unidos Guaranis, que desfilou no carnaval de 2019
tendo como samba-enredo sua própria casa: “Pedreira: a favela encantada”. Além disso,
a Velha Guarda da Unidos Guaranis costuma promover encontros mensais nas
dependências da Escola Municipal Belo Horizonte para revisitar os antigos sambas e
compor novas canções. Na localidade, vivem compositores e sambistas de referência,
como Iolanda Alves Guerra, por muito tempo porta-bandeira da antiga Unidos da
Pedreira e atualmente integrante do grupo ConverSamba.
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Percebe-se que o samba está diretamente associado aos blocos de carnaval, cujos
trajetos ocupam importantes ruas do bairro Lagoinha. Esse é o caso de “O Leão da
Lagoinha”, que desfila pela rua Itapecerica e é o bloco mais antigo da cidade, fundado
em 1947 e retomado na última década. Ademais, o Mercado da Lagoinha e o CCLAO
tornaram-se uma centralidade na realização de atividades, como os ensaios e
apresentações do ConverSamba. O grupo surgiu em 2015 com a proposta de valorizar o
gênero musical e sua história na região da Lagoinha. Reúne pessoas da velha guarda,
como dona Iolanda, Mestre Conga, Mestre Lagoinha e Ronaldo Coisa Nossa, além de
sambistas mais jovens, contribuindo para a atualidade do samba no território.

Políticas públicas intersetoriais e a interlocução com as referências culturais

Ao longo do projeto, foram identificadas possibilidades de ações dos poderes


públicos na área da assistência social voltadas para as juventudes, para os usuários de
álcool e outras drogas e para as populações em situação de rua, tendo como motor as
referências culturais locais.
Os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) executam os serviços
da proteção básica no território e são a porta de entrada para a política de Assistência
Social. A região da Lagoinha possui dois CRAS, o Vila Senhor dos Passos e o Pedreira
Prado Lopes. Ambos estão funcionando com equipe reduzida e em espaços cedidos por
outros equipamentos, o que compromete a oferta de todos os serviços e o espaço físico
para a realização das atividades. O CRAS Pedreira Prado Lopes conta com a execução
do ProJovem, um programa unificado voltado para as juventudes em situação de
vulnerabilidade social. O programa prevê a realização de ações artísticas, culturais e
sociais no período do contra turno escolar dos jovens. A instituição de tais parcerias
mostra-se importante para o funcionamento da política, bem como apresenta aspectos
positivos para as juventudes. Verificou-se que o CRAS Vila Senhor dos Passos, por sua
vez, não possui a oferta do ProJovem e de outras atividades voltadas para as juventudes.
Trata-se, portanto, de medida de grande importância e efetividade reconhecida pela
comunidade e pelos poderes públicos, visto que a existência dos CRAS nas duas
favelas, contudo, demonstra que o poder público reconhece essas localidades como
33

espaços de vulnerabilidade e risco social. A realização recente de projetos de


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intervenção artística na região, como o projeto Cura.Art, voltado para a instalação de

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murais em empenas de edificações, mostra a potencialidade de políticas que dialoguem


com as linguagens artísticas utilizadas pelas juventudes na região.
A presença do Centro de Prevenção à Criminalidade (CPC) e a continuação do
Programa Fica Vivo! na Pedreira são exemplos de iniciativas para a redução das taxas
de criminalidade e desigualdade social naquele território. O Programa Fica Vivo!
pertence à política estadual de defesa social e foi institucionalizado em 2003 como
Programa de Controle de Homicídios. Os atendimentos dão-se a partir da oferta de
oficinas, entendidas como possibilidades de aproximação com os jovens no contexto da
localidade. No campo da oferta de oficinas, também foi identificada a Escola Aberta da
E. M. Belo Horizonte, que ministra oficinas de artes marciais, circo, informática, teatro,
vôlei, esportes, samba e dança. A escola ainda cede seu espaço para eventos da
comunidade e mantém a biblioteca em funcionamento durante os três turnos escolares.
A identificação dessas iniciativas e serviços locais apresentou-se como indício
de que essas estratégias geram impactos sociais relevantes para a comunidade. As
juventudes participantes da construção dos mapas de percepção, as lideranças
comunitárias e os servidores dos equipamentos perceberam que a oferta desses serviços
é compreendida como positiva e eficaz pelos habitantes da Lagoinha. São interseções de
interesses sociais: a oferta de atividades que garantem aos jovens o direito
constitucional à cultura, ao esporte e ao lazer; o afastamento das juventudes das
atividades infracionais e criminais; a problematização em relação a essas atividades; o
referenciamento dos jovens e de suas famílias na rede; e a criação de novas estratégias
de construção social.
Assim como no campo das juventudes, a oferta dos serviços para as pessoas em
situação de rua comprova o conhecimento do poder público em relação à existência e à
necessidade de acolhimento e atendimento desses indivíduos. Durante as atividades do
projeto com moradores/as, foi possível identificar uma percepção de aumento das
pessoas em situação de rua no território. A política de assistência oferta os serviços na
perspectiva de inserção desses sujeitos na rede de atendimento e na realização dos
encaminhamentos que se fizerem necessários para isso. No caso do Serviço
Especializado para Pessoas em Situação de Rua, o acesso dá-se na forma de demanda
espontânea por parte dos usuários e a partir de encaminhamentos do Serviço
Especializado em Abordagem Social, de outros serviços socioassistenciais, das demais
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políticas públicas setoriais e dos demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos. O

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atendimento é realizado no edifício da Regional Noroeste, no bairro Carlos Prates.


Neste quesito, além da necessidade de pessoal técnico especializado, faz-se necessária
maior aproximação como iniciativas já existentes e realizadas por Associações e Igrejas,
como a Paróquia Nossa Senhora da Conceição e a Igreja Batista da Lagoinha.
No que se refere às pessoas usuárias de álcool e outras drogas, a oferta dos
serviços de atendimento demanda um trabalho articulado e integrado entre as políticas
públicas de diversas áreas. Essa é uma diretriz já em funcionamento pelos equipamentos
que oferecem os serviços, contudo atravessada pelos entraves do sucateamento e das
próprias políticas públicas. A região da Lagoinha conta também com a oferta do serviço
do Consultório de Rua, lotado no Centro de Saúde Pedreira Prado Lopes e vinculado à
Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde via Coordenação de Saúde Mental. O
Consultório de Rua possibilita que o atendimento se dê no território onde os usuários
estão, na tentativa de criação de vínculos e de ampliação do acesso às demais políticas.
Construído na perspectiva da redução de danos14, o Consultório de Rua
estimula, em outras políticas públicas, a percepção da necessidade de cuidados das
pessoas em situação de rua ou que fazem uso de álcool e outras drogas. Desde 2012, o
Consultório de Rua tem a equipe formada por motorista, enfermeiro, psicólogo,
assistente social, redutor de danos e arte-educador. A atuação no Centro de Saúde
Pedreira Prado Lopes dá-se em um território que vem experienciando o cenário do uso
de drogas há, pelo menos, uma década. Inserido nesse contexto e entre outras diversas
ações, destaca-se o trabalho executado pelo arte-educador desse serviço, na perspectiva
de perceber o estabelecimento de um vínculo direto entre a oferta do serviço de saúde e
práticas artísticas ou culturais. São propostas construídas para estabelecimento de
vínculo com os usuários e para que eles sejam vistos pelas políticas públicas e pela
sociedade a partir de uma perspectiva diferente da criminalização e do encarceramento.
É importante ressaltar que todos esses equipamentos e serviços públicos foram
identificados pelos que participaram das oficinas de mapas de percepção, sobretudo
pelos adolescentes e jovens, como referências culturais. São, portanto, os locais em que
produzem a cultural local em oficinas de dança, capoeira e arte, entre outras, oferecidas

14
De acordo com Garcia (2017, p.16), “Na perspectiva da saúde mental, o uso abusivo de drogas é um sintoma e não a causa do
sofrimento do usuário, por isso a importância do protagonismo do sujeito no seu tratamento, a fim de dar o suporte para ele
ressignificar o seu desejo. A lógica da Redução de Danos é voltada para aqueles que não podem ou não conseguem parar de usar
35

drogas. Por isso, é diametralmente oposta à lógica da abstinência, que trabalha na expectativa em que o sujeito queira e possa parar
de usar radicalmente as drogas. Isso se dá, muitas vezes, mediante práticas biologicistas que defendem o protagonismo da
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substância em detrimento do contexto sociossimbólico do usuário”.

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nas escolas e nos CRAS, ou em eventos oferecidos nas ruas e centros culturais. Além
disso, cabe pontuar que, para além de serem compreendidas como referências culturais,
esses locais têm a potencialidade de agregar pessoas e de valorizar expressões artísticas
e seus mestres, como é o caso dos CRAS, onde há mestres artesãs como oficineiras, ou
do CCLAO, que regularmente faz ações de valorização dos mestres sambistas. Nesse
sentido, as medidas voltadas para a Assistência Social são indissociáveis das Políticas
de Patrimônio Cultural, uma vez que estabelecem vias para a transmissão de saberes
locais, para a valorização das pessoas e locais de referência para a comunidade e para o
exercício pleno da cidadania.

Considerações finais: proposições para a valorização das práticas e


manifestações culturais da região da Lagoinha

Os dados levantados ao longo do projeto demonstraram a existência de ricas e


diversas práticas culturais no território da Lagoinha. Pode-se dizer que muitas têm sua
continuidade ameaçada, como é o caso do bloco O Leão da Lagoinha, sobretudo por
questões de fomento e valorização. Enquanto isso, outras já se encontram em processo
de desaparecimento, como é o caso do Congado da Vila Senhor dos Passos, que não
encontrou atores sociais necessários para sua continuidade. Existem, contudo, várias
outras práticas culturais que não enfrentam riscos iminentes e estão vivas e pulsantes.
Ao longo da pesquisa, observou-se forte vitalidade de determinadas expressões, às quais
distintas pessoas dedicam suas vidas, apesar das limitações socioeconômicas
enfrentadas. Nesse âmbito, inserem-se, por exemplo, o samba, as casas e terreiros de
matriz afro-brasileira, a Festa de Nossa Senhora da Conceição e o futebol amador.
Entendeu-se, ao final da cartografia, que havia, portanto, a necessidade de que o
poder público conhecesse a realidade local mais a fundo e voltasse seu olhar para a
existência dessas práticas culturais. Compreende-se que existe ali uma efervescência de
expressões artísticas, lúdicas e tradicionais, entre outras que compõem um conjunto de
elementos conformadores das identidades da região da Lagoinha. Viu-se, assim, que era
preciso retirar do olhar tanto a lente do passado, que faz crer que a cultura da Lagoinha
se perdeu no tempo, como a lente do preconceito, que impede a contemplação da região
como um poderoso núcleo de resistência cultural.
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A partir dessa compreensão, obtida com o levantamento participativo de


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referências culturais, afirmou-se, no relatório final da Cartografia Cultural, que a região

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da Lagoinha é um território dinâmico que tem a potencialidade de manter suas práticas


culturais, ainda que tenha que lidar com agentes externos e internos de desarticulação.
Em vista de seus potenciais e das demandas apresentadas pela comunidade local ao
longo da pesquisa, construiu-se uma série de proposições para a salvaguarda da cultura
da região da Lagoinha. Entre elas, destaca-se a indicação de proteção, por meio do
registro como patrimônio cultural, de práticas tradicionais na região; a construção de um
programa de valorização da cultura afro-brasileira presente na Lagoinha; aplicação de
recursos para o fomento de expressões artísticas locais; mapeamento das casas de samba
da Lagoinha e criação de circuito musical na região; inventário dos ofícios tradicionais
da Lagoinha, tais como relojoeiros, sapateiros, barbeiros, entre outros saberes
artesanais.15
As proposições de políticas públicas da Cartografia Cultural da Lagoinha foram
construídas em uma perspectiva intersetorial, que compreende a garantia dos direitos
humanos a partir do diálogo de todos os segmentos do serviço público e que, por outro
lado, valoriza as referências culturais locais. Entre as propostas de ações, estão o
fortalecimento das políticas já existentes; a garantia de espaços adequados e de recursos
humanos para os serviços ofertados; ampliação do serviço de acolhimento institucional,
sobretudo para as mulheres; criação de ações de inserção das pessoas em situação de rua
no mercado de trabalho, em articulação com os ofícios locais, entre outras.
Por fim, entende-se que a produção da Cartografia Cultural da Região da
Lagoinha reproduziu em textos e mapas aquilo que desde o início da pesquisa se ouviu
de interlocutores/as: a região do bairro da Lagoinha conforma territorialidades
dinâmicas, com fronteiras fluidas e trânsitos constantes entre diversas localidades e
outras regiões da cidade. Abrir-se para ouvir o que moradores/as contavam exigiu
flexibilizar as noções estanques de território e cultura previstas pelas legislações e
teorias, de maneira a abranger dinâmicas socioespaciais para além da delimitação oficial
de um bairro e experiências culturais para além das políticas de patrimônio.
A cartografia informou que no território da Lagoinha encontram-se vidas,
mobilizações políticas e engajamentos; fervilham pessoas, lugares e práticas que
contestam as visões descuidadas que atribuem à região uma retórica saudosista presa ao
passado. Além disso, expôs os desafios, mas também as possibilidades, de se
37
Página

15A lista completa de proposições pode ser acessada no documento Cartografia Cultural da região da Lagoinha – Relatório final
(2019), disponível na DPCA.

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operacionalizar ações e políticas públicas intersetoriais abertas e democráticas que


contemplem as demandas locais advindas da diversidade de pessoas que ocupam um
mesmo território.

Referências

AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Vastos subúrbios da nova capital: formação do espaço urbano na
primeira periferia de Belo Horizonte. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
ARROYO, Michele Abreu. A diversidade cultural na cidade contemporânea: o reconhecimento da
Pedreira Prado Lopes como patrimônio cultural. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Pontifícia
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