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A - CASTANHEIRA - NEVES Teoria Do Direito
A - CASTANHEIRA - NEVES Teoria Do Direito
CASTANHEIRA NEVES
TEORIA DO DIREITO
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
1998
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I. INTRODUÇÃO
elementos bjectivos da mesma natureza. E de uma validade que terá o seu critério
fundamentante numa experiência objectiva (num certo tipo de experiência inter-
subjectiva) invocável numa intenção de comprovação – seja em termos positivos ou de
fundamentação por “verificação”, seja em termos negativos ou de crítica por
“falsificação” ou refutabilidade (POPPER) – mediante determinadas regras ou processos
metódicos definidos e aceites pela “comunidade de investigadores” (cfr. J. HABERMAS,
Erkenntnis und Interesse, Suhrkamp, 116, ss.; K.-O. APEL, Transformation der
Philosophie, Suhrkamp, Einleitung, 14, ss. – ambos em referência a PIERCE). É este o
zetético discurso teorético-explicativo de índole empírico-analítica e procedimental da
ciência moderna: as teorias são universais hipóteses explicativas operatório-
-metodicamente comprovadas e a explicação será a inferência dedutiva dessas teorias,
como explanans, para um concreto particular explanandum que se apresenta em certas
condições de facto – cfr. W. STEGMÜLLER, “Probleme und Resultate der
Wissenschaftstheorie und analytische Philosophie”, I, in Wissenschaftliche Erklärung
und Begründung, 72, s.).
) Ora, a teorética teoria do direito, que pretender ser teoria neste sentido, terá de
considerar-se o resultado evolutivo, e diferenciador, de outras teorias jurídicas que, a
partir do séc. XIX e com a intenção que sabemos, se começaram então a construir.
Referimo-nos às “teorias gerais do direito” (Allgemeine Rechtstheorie) que, produto do
positivismo jurídico de oitocentos, ainda hoje proliferam.
A “teoria geral do direito”, neste último sentido, propõe-se a determinação
teórico-conceituaL e sistemática da normatividade geral do direito – o seu objecto é
fundamentalmente o direito-norma, e pretende participar de certo modo ou a um certo
nível (ao nível já abstractamente generalizante, já analítica e criticamente formal-
-estruturante) na determinação global dessa sua normatividade. Pelo que podemos
considerá-la como o último estádio (o estádio justamente teórico-conceitual ou formal-
-estrutural, a ultrapassar o estádio normativo-doutrinalmente material) da dogmática
jurídica. É como que a dogmática levada à sua última abstracção e generalização ou à
sua constitutiva forma estrutural. Foram duas, com efeito, as suas direcções mais
características e importantes – ainda que a exigir a segunda, por sua vez, a diferenciação
dos dois sentidos diferentes que também assumiu. Assim, numa primeira direcção, há
que considerar a “teoria geral do direito” que levava à sua última sistematização as
“partes gerais” vs. “partes especiais” dos diversos domínios jurídicos, em ordem a
atingir também em geral os conceitos e os princípios dogmaticamente universais do
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direito positivo pressuposto. Tratava-se de uma teoria geral, com este conteúdo e
sentido, que se obteria por abstracção generalizante e indutiva do direito dogmática e
historicamente positivo – e podemos referi-la , entre outros, a MERKEL, BERGBOHM, etc.
Numa outra direcção, não já uma teoria condicionada por uma pressuposição
dogmática, mas universalmente teórica, tínhamos as teorias gerais do direito que
visavam os “conceitos jurídicos fundamentais” enquanto as estruturas e os conceitos
formais (as formas) de todo o direito possível – ou melhor, as estruturas conceitual-
-formalmente constitutivas do direito em geral. Só que agora ou segundo uma
perspectiva analítica ou segundo uma perspectiva crítica (crítico-transcendental ou no
sentido kantiano de “crítica”). Foram exemplares daquela primeira perspectiva a
Analytical School inglesa, com JOHN AUSTIN (Lectures on Jurisprudence or the
Philosophy of Positiv Law), e no continente a Juristische Grundlehre de SOMLÓ e a
Juristische Prinzipienlehre de BIERLING. Pretenderam todas elas elaborar a sua analítica
numa intenção positivo-empírica e a posteriori, quer a partir do direito positivo
historicamente determinado (em AUSTIN), quer inclusivamente numa base psico-
-sociológica (em SOMLÓ e BIERLING). E isso as distinguia das teorias gerais críticas
(transcendentalmente críticas), já que estas, orientadas que foram pelo neokantismo,
procuraram definir transcendentalmente e mediante distinções que se pretendiam
reflexivamente justificadas desse modo (fosse a distinção entre “matéria” e “forma” em
STAMMLER, fosse a distinção entre “ser” e “dever-ser” em KELSEN), os “conceitos
puros” e a priori do direito – o próprio conceito a priori do direito e o sistema das
formas conceituais puras do jurídico em geral. Era esse o sentido quer da Theorie der
Rechtswissenschaft de STAMMLER, quer as Reine Rechtslehre e Allgemeine Staatslehre
(na edição inglesa: General Theory of Law State) de KELSEN, e ainda a Allgemeine
Rechtslehre als System der rechtslichen Grundbegriffe de H. NAWIASKY, etc. O
objectivo comum de todas elas era o de garantirem um estatuto epistemologicamente
científico – o estatuto da “ciência” – ao pensamento jurídico, constituindo-o assim em
“ciência do direito” (quer num mediato intuito prático, como era o caso da teoria geral
dogmática enquanto a expressão última da Begriffsjurisprudenz, quer antes num intuito
estritamente teórico) e para que desse modo ele se pudesse equiparar, ou pelo menos
não se visse culturalmente diminuído – já o dissemos –, perante o paradigma da
validade cultural que o cientismo do tempo via exclusivamente na “ciência” (na ciência
positiva, decerto). Nesses termos, e em coerência com o positivismo jurídico de então,
se propunha ainda a “teoria geral do direito” superar a filosofia do direito. Pretensão que
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jurídicas, no fundo). Decerto que esta linha de orientação é, no plano cultural geral,
expressão tanto da analítica distinção entre “linguagem-objecto” e “metalinguagem” em
todos os domínios (no domínio prático, p. ex., a distinção entre ética e meta-ética) como
um fenómeno mais daquele cientismo, dominante num amplo sector do pensamento
deste século. Só que no plano directamente jurídico, ao volver a atenção do direito,
enquanto tal, para o pensamento jurídico ou a “ciência do direito” preocupa-se mais
com o conhecimento do direito do que com o próprio direito (consequência de que não
estava imune e se pode mesmo considerar particular característica da “Teoria Pura do
Direito”). O que implicará um desvio grave, como que num seu efeito perverso, pois
com atenção apenas para a verdade do conhecimento do direito e do pensamento
jurídico como ciência, esquece-se da validade (da “justiça”) do direito enquanto tal e da
intencionalidade normativa do pensamento jurídico chamado a pensar a sua
normatividade de direito. Ponto este – e mesmo sem discutir a viabilidade de uma total
autonomia, particularmente no domínio do pensamento prático, entre a linguagem-
objecto e a metalinguagem (p. ex., a pretensa neutralidade teórica da meta-ética
verdadeiramente oculta o compromisso intencional e uma prévia tomada de posição
prática quanto ao sentido da ética-objecto, numa cripto-ética ou criptofilosofia) – que
podemos de momento deixar de lado, já que é suficiente considerar que para nós o que
está em causa, como específico objecto de referência, é o direito e não a ciência do
direito, o jurídico não do “ponto de vista do conhecer”, mas do “ponto de vista do agir”
(MAIHOFER), i. é, o direito como princípio prático e no domínio prático-normativo da
acção. Ou, querendo manter a referência à “ciência”, o que importa não é o jurídico na
epistemológica perspectiva de uma “ciência de conhecimento” (do direito-objecto), e
sim na prática perspectiva de uma “ciência de acção” (do direito como normatividade):
um pensamento, pretenda-se ele embora científico, do próprio direito (da intencional
constituição do direito como direito, do direito como dimensão normativa da prática, do
“direito justo”, etc.). Com efeito, o que se pergunta é se o problema do direito, enquanto
tal, é susceptível de ser resolvido cientificamente por uma teoria, e não em que termos
teorética e epistemologicamente correctos deverá entender-se a ciência do direito que se
postula existente. É neste sentido que W. KRAWIETZ sublinha, com razão, que “a teoria
do direito não é teoria da ciência dogmática do direito, mas teoria do direito” –
querendo deste modo sustentar que o problema (postuladamente teórico) desta teoria
haverá de ser o próprio problema do direito enquanto tal. Com o que somos postos
perante uma terceira linha de orientação da “teoria do direito”.
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Aquela sua orientação e aquele seu entendimento que são afinal os decisivos, e
neste sentido: não se trata só de teorético-cientificamente estudar as dimensões
constitutivas do direito ou de epistemologicamente fazer a teoria do pensamento
jurídico como ciência (definindo a sua estrutura e as suas condições de cientificidade),
mas de teorético-cientificamente dar solução ao problema do direito, ao problema do
próprio direito. Só que nesta linha as perspectivas a considerar são várias.
Desde logo, atribui-se aí à “teoria do direito” a função de uma “teoria-quadro”
(Rahmentheorie) para o direito, e assim com o sentido de uma sua “teoria fundamental”
– já que seria nas coordenadas determinadas por essa “teoria-quadro” e tendo nelas a
sua base que o direito se podia e devia elaborar. Se interrogarmos, porém, esta
perspectiva quanto a saber de que teoria básica do direito verdadeiramente se trata – ou
melhor, de que projecto de teoria, pois os seus defensores não deixam de reconhecer que
ela ainda não existe –, apenas se obtém como resposta que será ela uma “teoria da
sociedade referida ao direito” (“Gesellschaftstheorie des Rechts”), uma investigação
“sobre a estrutura e a função do direito como fenómeno social”, ou porventura uma
consideração do direito com fundamento numa “teoria material da sociedade”. Em
último termo, portanto, uma teoria sociológica do direito – uma nova sociologização do
direito, ao fim e ao cabo. Desconsolador resultado este, pois há muito se sabe o que
podem e valem essas sociologizações: a socialidade do direito não permite só por si
compreender, nem reduz a sua normatividade, ao postular esta uma específica intenção
de validade transpositiva ou socialmente contrafactual e regulativa que lhe seja
normativamente constituinte. Se o social, na sua autonomia objectiva e referencial, é
condição estruturalmente constitutiva do direito, o normativo, na sua autonomia
fundamentante e regulativa, é a própria dimensão intencionalmente constituinte.
Estamos assim perante a “diferença entre sociedade e direito”, não obstante os seus
mútuos condicionamentos e recíprocas interferências, perante aquela “sociológica
diferença entre norma e factum”, justamente posta em relevo há muito e também, por
último e concludentemente, por MAIHOFER. Daí a concepção deste Autor, de uma
pluridimensional ciência do direito (ciência de acção e decisão) que, propondo-se ser
uma “teoria crítica do direito” ou uma “jurisprudência realística”, vemos pensada
todavia como “teoria para a prática” (a prática da constituição e da realização do direito)
chamada a garantir, numa particular articulação das suas dimensões sociológica,
dogmática, racional-analítica e filosófica, a racionalidade e intersubjectividade da
reflexão e argumentação materialmente jurídicas da jurisprudência (do pensamento
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tudo isto em que se poderá ver a síntese da crítica do Critical Legal Studies Movement,
de origem e expansão norte-americana e a que voltaremos. A inserção do direito no todo
da realidade histórico-social, globalmente considerada nos termos holístico-dialécticos
(e metodologicamente de uma interdisciplinariedade integrante) que já sabemos, para
ver nele uma expressão particular, mas de modo análogo ao antes aludido quanto à
ciência e à cultura em geral, da praxis histórico-social e que, por isso mesmo, só essa
praxis permitiria entender, do mesmo passo que ofereceria a perspectiva unicamente
válida da sua crítica. Crítica que se orienta num sentido todo ele crítico-ideológico, a
partir da qual se assume um outro e expressamente proclamado compromisso
ideológico-político (repúdio e superação da sociedade burguesa e defesa de uma
“ideologia progressista” que tem o socialismo como modelo) e que apontaria o
objectivo, “prospectivo” e transformador, a impor à juridicidade, o objectivo da
“emancipação” enquanto critério da “sociedade justa”. O que implicaria já uma “ciência
do direito” política e um “jurista político” (WIETHÖLTER), chamados a fazer assimilar
aquele compromisso ideológico-político na própria dogmática e no sistema jurídicos (v.,
p. ex., THOMAS WILHELMSSON, Critical Studies in Private Law, A Treatise on Need-
Rational Principles in Modern Law, 1972); já mesmo um “juiz político”, i. é, um juiz
que “tomasse partido”, que orientasse as decisões concretas no sentido daquela justiça
emancipadora, servindo-se embora até onde fosse possível das virtualidades e das
indeterminações da metodologia jurídica dominante – é este o expresso propósito de
uma das linhas da “teoria crítica do direito” que a si mesma se designa por “teoria do
uso alternativo do direito”.
) Tudo o que será retomado e melhor analisado criticamente ao considerarmos
o funcionalismo político, em todas as suas modalidades (“teoria crítica” do direito em
geral, Critical Legal Studies, Uso alternativo do direito) enquanto uma das expressões
do funcionalismo jurídico. Basta agora dizer-se porque não podemos fixar-nos nesta
alternativa da “teoria do direito”, sem minimizar embora a importância de alguns dos
seus contributos. Com efeito, no objectivo principal de negar a autonomia do direito,
fosse essa negada autonomia ontológica, axiológico-cultural ou outra, e assim de
recusar “o direito em si da dogmática tradicional”, para o ver de todo funcionalizado à
globalidade da praxis histórico-social, enquanto apenas, ou quando muito, na bem
relativa autonomia da super-estrutura ideologicamente explicável e genético-
-determinantemente redutível, a “teoria crítica” oscila, desse modo, entre um
sociologismo holístico (holismo de todo análogo ao que vemos próprio da sociologia
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court, embora possa resultar, e resulta efectivamente as mais das vezes, da conversão de
um projecto ou programa político geral aos limites e aos esquemas jurídicos – até
porque a elaboração de uma “política de direito”, particularmente a sua elaboração
sistemática, pressupõe e orienta-se sempre por um certo modelo de sociedade e tem
presente uma ideia de posição e função que o direito deverá ter nela. Anotar-se-á ainda
que a política do direito é pensada segundo diversas orientações predominantes. Ou com
uma índole mais científico-tecnológica, como uma “tecnologia social” (à concepção do
próprio direito e do pensamento jurídico como tecnologias sociais teremos ocasião de
voltar) de base psico-sociológica -v., assim, MARIA BORUCKA-ARCTOWA, Die
gesellschaftliche Wirkung das Rechts, I Teil, 20, ss.) –; ou, com uma índole de forte
dimensão axiológica, num compromisso com uma tábua de valores político-jurídicos e
político-sociais gerais a conjugar embora, numa perspectiva integrante, com particulares
objectivos práticos e técnicos (p. ex., uma técnica da legislação que teria de optar entre
o regulativo geral ou a casuística) – v. assim, L. LOMBARDI VALLAURI, Corso di
filosofia del diritto, 1981, 7 e passim, onde se discriminam a integrar “uma política do
direito cientificamente fundada”, a) “a elaboração crítica de uma tábua de valores
técnico-jurídicos gerais, i. é, uma filosofia”; b) “a elaboração crítica de uma tábua de
valores técnico-jurídicos específicos, necessários para a tradução do discurso político
em discurso de política do direito”; c) “a análise metódica do conteúdo social no qual
irão actuar aqueles valores, i. é, uma sociologia” –; A. ROSS, Diritto e giustizia, trad. it.
de G. GAVAZZI, 309, ss.; EIKEN v. HIPPEL, ob. cit., 18, ss., 44, ss. –; ou também de
índole crítica-ideológica, que acaba por confundir-se com uma teoria crítica do direito.
Por outro lado, não desconhece também uma tendência de especialização – é, p. ex., de
todos conhecida a actualmente insistente referência à “política criminal ou penal”.
Nem poderá deixar de referir-se ainda a filosofia do direito, a distinguir tanto da
dogmática e da teoria do direito como da política do direito – embora se reconheça que
muitos dos modelos da teoria do direito, quer na perspectiva teorética, quer na
perspectiva crítica, nem sempre claramente se diferenciem da “filosofia do direito”, ou
melhor, o que esses modelos acabem verdadeiramente por ser são filosofias do direito.
É certo que a filosofia em geral, e decerto também a filosofia do direito, se tornou
fortemente problemática no nosso tempo, já quanto à validade do seu sentido
tradicional, já quanto à sua temática, já quanto à índole da sua reflexão, etc. – daí que o
problema de “o fim da filosofia” (HEIDEGGER) e a exigência de “a transformação da
filosofia” (K.-O. APEL), se não mesmo o seu “sem-sentido” (CARNAP) ou a sua
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CAPÍTULO I
O NORMATIVISMO
the law has been whally changed, the fiction is that it remains what it always was”. Pelo
que se poderá dizer, afinal, que os dois pensamentos a que nos referimos, o romano e o
da common law, se pretendiam ser intencionalmente cognitivos, efectiva e juridicamente
caberão melhor no jurisprudencialismo que infra consideraremos especificamente.
Aliás, o postulado de uma objectiva e pré-subsistência do direito, a permitir um
intencional cognitivismo, foi uma característica originária e secularmente mantida – não
decerto por acaso, mas pelas razões que irão ser aduzidas – no pensamento jurídico
tradicional. Foi assim também, por exemplo, que na concepção pré-moderna da própria
lei sempre se tendeu a ver nesta uma função normativo-jurídica declarativa – v. O
instituto dos “assentos”, 514-519; para uma confirmação, v. agora MARIA DA GLÓRIA
F. P. DIAS GARCIA, Da Justiça administrativa em Portugal, Cap. I. O cognitivismo
normativo jurídico tornar-se-ia, no entanto, expresso por diversas formas. Já como a
expressão de uma essencial ou ontológico-substancial normativa institucionalidade
inferível de uma humano-social “natureza das coisas” (no ontológico-metafísico
jusnaturalismo clássico) ou de uma racional “natureza do homem” (no onto-
-antropológico jusnaturalismo moderno); já como uma cultural objectivação textual que
hermenêutico-dialecticamente, e no contextual horizonte daquele clássico “direito
natural” que a recta ratio convocava, se convertia numa dogmática (no pensamento
jurídico medieval); já como sistema normativo-dogmático que racional-
-axiomaticamente se deduzia, i. é, se “descobria” (no pensamento jurídico moderno); já
como pressuposição histórico-cultural em que se manifestava um comunitário
Volksgeist (na Escola Histórica); já simplesmente como positivas prescrições
legislativas de um poder politicamente legitimado para as criar e impor (no legalismo
pós-revolucionário); etc.
Cognitivismo normativo esse, não obstante toda esta diversidade de
determinações, que persistiu dominante até quase aos nossos dias, ainda que durante
séculos – pode dizer-se, até ao “científico” positivismo jurídico do séc. XIX – como
quadro de inteligibilidade e fundamento de uma filosófica razão prático-jurídica
dogmática e jurisprudencialmente constitutiva na sua função explicante, e só a partir
daquele positivismo identificado como o projecto epistemológico de uma também
positivística "ciência do direito" estritamente hermenêutico-dogmática. E tem a explicá-
-lo decerto factores múltiplos ao longo dessa sua larga história, de que destacaremos
apenas três, porventura os mais relevantes.
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excelência para o jurídico. Texto que o direito canónico, no corpus iuris canonici, e o
direito estatutário só complementariam.
A segunda ideia foi o resultado de uma certa perspectiva e de um particular
tratamento dogmático desse direito postuladamente dado nos seus textos de autoridade,
e em que o direito como que se revelaria em último termo, posto que sob o modus de
norma ou regra quanto ao entendimento da juridicidade, como um doutrinal “direito de
juristas”: se o direito romano legado e recebido se constituíra como um direito de
actiones, em paralelo à constituição da common law mediante a concessão de writs – e
assim dirigido à tutela de interesses e controvérsias bem determinados e
especificamente concretos em que os aspectos materiais e processuais entre si se não
diferenciavam –, só uma abstracção generalizante desses critérios jurídicos permitiria
que eles pudessem ser invocados para interesses e controvérsias diferentes daqueles a
que iam originariamente referidos e com que outras sociedades e outro tempo histórico
passaram a confrontar os juristas. Abstracção generalizante que estes realizaram
autonomizando justamente a dimensão material dos momentos processuais, ou o critério
jurídico-material, enquanto tal, do caso ou possíveis casos a que pudessem aplicar-se, e
isso através de uma doutrinal reelaboração constitutivo-dogmática que concluía por ver
nesses critérios regras gerais, i. é, normas jurídicas.
A terceira ideia foi um simples corolário metódico-jurídico das duas ideias
anteriores, pois o direito pressuposto não era agora um conjunto delimitado de meios
concretos de tutela jurídica que permitia, e exigia, por essa sua mesma limitação, uma
ampla actividade jurisprudencial autónoma, era antes uma totalidade de normas
jurídicas, regras materiais abstracto-gerais – totalidade que se postulava virtualmente
completa na definição do direito e normas que assim se haviam sempre de convocar
como fundamento das decisões concretas, ao mesmo tempo que essas decisões deveriam
resultar da aplicação dedutiva desses fundamentos normativos gerais.
Deste modo e por todas estas razões, poderá ainda concluir-se, com EHRLICH,
que “pela primeira vez se depara à humanidade que todo o direito é composto
exclusivamente de normas jurídicas” e se fixaria ainda “o pensamento, dominante até
aos dias de hoje, de que uma decisão judicial que não seja obtida através de uma norma
jurídica nada mais será do que puro arbítrio” (p. 177, ss.). Sendo essa a “lógica
jurídica”, que tanto é dizer o modelo da racionalidade jurídica desde então adquirida.
E todavia, sem deixar de ser tudo isto exacto, há um ponto mais, de não menor
importância, para que importa chamar também a atenção. Trata-se do modo-de-ser
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apogeu em A. THON (Rechtsnorm und subjektives Recht, 1978: “o direito todo de uma
sociedade não é senão um complexo de imperativos” – pág. 106) e foi decerto
potenciada pelo legalismo, pela identificação do direito à legislação estadual, uma vez
que desse modo o direito seria simplesmente uma certa expressão prescritiva de um
poder (desse mesmo poder estadual). Prescindiremos neste momento da nossa
consideração crítica sobre este imperativismo (pode ver-se, para essa crítica,
A.CASTANHEIRA NEVES, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, in
R. L. J. [1993-1994], n.°s 3836 e ss.). Há apenas que atender aos pontos seguintes.
Já aludimos a um possível entendimento também normativista do legalismo –
desde que a legislação criada e vigente seja dogmaticamente compreendida e tratada em
termos de ver nela a expressão de uma imanentemente constitutiva racionalidade
normativa, por ex., nos termos, também já aludidos, como o positivismo dogmático ou
“científico” (o positivismo da pandectística Begriffsjurisprudenz) reelaborou o direito
positivo vigente, segundo um sistema normativo-dogmático que encontraria o seu
último sentido normativo nessa sua específica racionalidade dogmático-normativa, um
sistema jurídico dogmaticamente autónomo e subsistente na sua própria e constitutiva
racionalidade. Depois, norma (jurídica) e imperativo (jurídico) não se identificam, nem
aquela é redutível a este – como parece sustentar, p. ex., e por todos OLIVECRONA
quando afirma nas normas jurídicas uma “forma imperativa” e as considera sempre
segundo a imperatividade (ob. cit., 23, ss.) –, já que, se só temos verdadeiramente um
imperativo jurídico quando lhe é determinante a imputação-vinculação a uma potestas
que invoca uma legitimidade prescritiva, e de tal modo que a sua juridicidade, com a
validade intencionalmente implicada, se entende sustentada unicamente por essa
imputação legítima (que tanto é dizer a juridicidade como expressão de um auctoritas:
auctoritas, non veritas facit legem), já a norma jurídica, enquanto norma, refere a sua
jurídica normatividade, com a respectiva validade também implicada, a uma específica
e fundamentante racionalidade constitutiva, e neste sentido a uma veritas – aquela
racionalidade-veritas que nunca deixou de ir implícita no normativismo. O que não
exclui uma possível relação entre imperativo e norma jurídicos, sendo certo que o
imperativo jurídico (sobretudo na forma lex) pode ser a fonte ou estar na génese jurídica
da norma – no modo daquela relação fonte/norma já antes considerada –, mas sem que
ainda assim a norma jurídica deva a sua normatividade a essa imperatividade e não
antes à constitutiva racionalidade normativa em que funda especificamente a sua
juridicidade (a sua válida juridicidade). E continuando, por um lado, deste modo distinto
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que da realidade conceitualizada pela norma e tal como ela ia aí conceitualizada (em
virtude, naturalmente, do juízo axiológico prévio) fizesse a condição de que apenas
dependia o efeito normativo. Embora na ordem axiológico-normativa a norma surgisse
como o resultado de uma certa posição ou juízo de valor, convertia-se agora – nesta
perspectiva dogmática – numa definição normativa implícita, num postulado mediante o
qual uma relevância jurídica ia ligada “por definição” (por definição dogmática) a um
determinado objecto relevante.
Daí que ao pensamento jurídico bastaria conhecer o objecto relevante, a
realidade tal como viera a ser conceitualizada através daquele prévio juízo de
relevância, para lhe poder logicamente impor as consequências normativas. E se deste
modo o conteúdo significativo da norma ia entendido tão-só como a definição
conceitual do pressuposto objectivo que justificaria sem mais o efeito jurídico, não só o
jurista podia supor que julgava conhecendo, que decidia juridicamente limitando-se a
conhecer a conceitualização normativa e através desta a realidade conceitualizada, como
vinha ainda a imputar ao próprio direito – identificado como as normas definitórias –
uma verdadeira dimensão gnoseológica. Se o pensar e decidir jurídicos vinham a
reduzir-se, em último termo, à cognitiva determinação da realidade mediante uma certa
conceitualização – aquela conceitualização que o direito já em si oferecia –, também o
direito se revelava afinal tão gnoseologicamente conceitual como a ciência dele.
Devendo observar-se ainda que, não obstante esta referência conceitual à
realidade, não seria a realidade no seu autónomo conteúdo e existência prática que
interessaria ao pensamento jurídico; este apenas directamente se ocuparia da
conceitualização dela que as normas enunciem. Sem dúvida que as normas só poderão
aplicar-se a uma realidade efectivamente existente, mas para que a aplicação se
houvesse de considerar válida bastaria averiguar se aquela realidade pensada na norma,
e tal como aí vai pensada, se tinha ou não verificado; e como esta verificação se reduzia
a um juízo de existência ou de não existência da realidade conceitualmente pensada, não
afectaria ela em nada o conteúdo material que a conceitualização ou significação
normativa em si mesma, ou independentemente dessa verificação, desde logo formulava
– esse momento de verificação (a aplicação normativa) seria, pois, um momento
secundário, “meramente prático”, que deixava intocado e se passava de todo à margem
dos conteúdos jurídicos, oferecidos única e totalmente pelas normas. Quer dizer, por
este outro lado era da própria realidade (histórico-social), enquanto tal, que o
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conexão com normas no mesmo plano lógico), fosse ela unidade vertical ou
hierárquica/gradual (normas como pressuposição e fundamento de normas: ex.: na
Stufenbau de MERKL e KELSEN). No primeiro caso, a unidade racional terá por
fundamento constitutivo a identidade formal e conceitual, no segundo caso a redução a
um único fundamento ou última norma (Grundnorm). Sempre, no entanto, um sistema
constituído e subsistente dogmaticamente numa lógica racionalidade e apenas nela.
) Tendo presentes as categorias de inteligibilidade próprias do normativismo,
para que chamámos a atenção, fácil é concluir que o tipo de racionalidade assumido
pelo mesmo normativismo é manifestamente o de um racionalismo que o remete para a
razão teórica. A razão jurídica seria assim, ou nessa perspectiva normativística, uma
modalidade racionalística da razão teórica: objectivo-cognitiva na referência e
sistemático-construtivística, lógico-conceitual e formal-dedutiva na intencionalidade –
como, aliás, o modelo metódico a considerar a seguir bem irá confirmar.
E desse modo se pensava ainda garantir ao pensamento jurídico o estatuto
científico. O pensamento jurídico constituir-se-ia como uma dogmática “ciência do
direito”, porque o direito era pensado através de um pensamento sistemático que
procedia em termos rigorosamente lógico-racionais. E nem a pressuposição, nem a
intencionalidade dogmáticas implicadas pela vinculação normativa fariam obstáculo à
cientificidade, uma vez que o dogmático se submetia, nos termos que vimos, a uma
conversão conceitual que permitiria a elaboração lógico-sistemática.
Sem deixar ainda de anotar que essa índole teórica, com que a juridicidade é
assimilada pelo normativismo, se afirmava também com um particular relevo prático –
sobretudo assim no sistemático normativismo horizontal. A sua racionalidade (a sua
construção e o seu desenvolvimento racionalmente subsistentes, em último termo, numa
lógica identidade) garantiria a objectividade (a imparcial transubjectividade imposta
pela sua estrutura objectivo-racional), a segurança (a certeza ou a previsibilidade
oferecida pela sua imanente coerência), a igualdade (imediatamente implicada pela sua
constitutiva identidade lógica) e a plenitude e suficiência (o sistema jurídico pensava, na
sua logicidade, uma normatividade virtualmente conclusa) à juridicidade que
determinantemente manifestava. No sistemático normativismo vertical, já as coisas
poderiam ser diferentes, uma vez que, se cada nível da estrutura hierárquica
condicionava e fundava a normatividade de nível imediatamente inferior, não a
determinaria totalmente e antes se exigiria sempre um acto normativo relativamente
autónomo e de índole não racionalmente teorética numa intenção especificadora-
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) Tudo isto quanto ao sistema das normas, que o direito seria, e à sua aplicação.
Mas uma outra nota se terá de considerar ainda. E que é esta: a realidade histórico-social
da aplicação do direito vai concebida como uma realidade analisável em termos de
factos (como “meros factos” – observa também CARL SCHMITT, ob. cit., 18), como um
conjunto de factos autónomos entre si e correlativos à racional abstracção das normas
ou como a correlativa factualidade (empírica) da idealidade lógica (racional) das normas
(da sua lógico-conceitual representatividade e previsibilidade normativo-regulativa).
Ora, a realidade histórico-social não se oferece fenomenologicamente desse
modo, como um conjunto aleatório de “factos” discretos, mas em unidades de
acontecimentos histórico-socialmente estruturados, em especificados casos prático-
-sociais em que se polariza a inter-acção. Pelo que essa forma de ver a realidade traduz
uma analítica decomposição dessas unidades e desses casos em meros elementos
empíricos diferenciados uns dos outros, e isso assim porque era igualmente própria dos
racionalismos moderno e epistemológico-positivista, em que o normativismo encontrou
a sua possibilidade epistemológica e metodológica, uma análoga dicotomia razão
(lógica)-factos (empíricos) – dicotomia que o pensamento jurídico normativista se
limitou a converter na sua dicotomia normas-factos. (Para um desenvolvimento deste
ponto, v. A. CASTANHEIRA NEVES, Matéria de direito – matéria de facto, in RLJ, 129.°
Ano (1996-1997), ps. 130, ss., 162, ss.).
Por outro lado, reconhecer-se-á ainda que desse modo a realidade prática (a
praxis) histórico-social, que a coerência do sentido prático-normativo do direito
60
implicará que nele se considere – porque é essa realidade, com os problemas também
práticos que suscita, a exigir a normatividade jurídica como indispensável regulativo de
validade e é nessa mesma realidade que o direito se projecta como dimensão
constitutiva (o direito como dimensão da prática humana) –, é ignorada no que
especificamente a caracteriza e substituída por uma realidade tão-só empírica – com a
mesma só empiricidade com que os “factos” são referidos pela lógica e aplicação das
normas. O que, por sua vez, é a consequência do fechamento do pensamento
normativista no mundo lógico-sistemático das normas, nos termos que vimos, já que
isso o leva a abstrair da intenção prático-normativa da juridicidade e correlativamente
da tensão problemática de validade própria dessa intenção e em que haveria de atender,
num diálogo prático-normativo, também à problemática específica da realidade prática
– aquela realidade, repita-se, que nessa sua problemática solicita o direito como solução
e dimensão constitutiva. Resultado, pois, do alheamento do normativismo perante a
realidade, que já havíamos sublinhado, ao considerar apenas a conceitualização que dela
fazem as normas. O que significa, afinal, que mesmo quanto à realidade do
cumprimento do direito o normativismo não vai além das normas, que mesmo nesse
ponto se mantém nelas enclausurado.
sua constituição. Por ambas estas notas, o direito seria, tal como vimos, “o direito que
é”.
Ora o certo é que a experiência que dele temos não no-lo revela como objecto
(numa mera transcendência objectiva), mas como problema: como uma
intencionalidade normativa problematicamente aberta, porque a referir uma
normatividade também problematicamente constituenda na sua própria realização; e daí
que o pensamento jurídico não possa assumir a juridicidade, na tarefa da sua realização,
sem assumir o próprio problema prático-normativo do direito enquanto tal (i. é, sem o
assumir constitutivamente “por dentro”).
Observe-se, com efeito e quanto ao primeiro dos dois pontos aludidos, que ao
pretender ser o direito uma ordem de validade para a prática histórico-social, decerto
que enfrentará o dinamismo problemático-jurídico dessa mesma prática e tanto basta
para compreender que o direito constituto se revele sempre como uma ordem normativa
aberta e irredutivelmente constituenda – com o só limite nos limites da própria intenção
de direito e bem assim do seu específico espaço intencional de realização, ou seja, com
os só limites da juridicidade em si mesma (sobre este ponto de importância
fundamental, mas que nos limitamos aqui a aludir, v. Metodologia Jurídica, 206, ss.).
Assim, pode aceitar-se que o sistema jurídico objectivado começa sempre por
delimitar e pré-determinar o campo e o tipo dos problemas no começo de uma
experiência problemática – posto que, obedecendo a problemática, pelo menos neste
domínio, ao esquema de pergunta-resposta, os problemas possíveis começam, de um
lado, por ser aqueles que a intencionalidade pressuposta no sistema (com as
possibilidades interrogativas dos seus princípios) admita, e os modos de os pôr serão, de
outro lado, aqueles que sejam correlativos das soluções (respostas) que o sistema
também ofereça –, já não é lícita a unilateral sobrevalorização do sistema
objectivamente pressuposto que se traduza no axioma de que os problemas a emergir
dessa experiência serão unicamente os que esse sistema suscite e no modo apenas por
que os aceite. Isto porque a experiência problemática, enquanto também experiência
histórica, vem sempre a alargar-se e a aprofundar-se, em termos de exigir novas
perguntas (problemas) e outro sentido para as respostas (implicadas em novas intenções
que entretanto, e através dos novos problemas, se vão assumindo). E perante ela a
normatividade sistematicamente prévia traduz apenas a assimilação intencional (em
termos de respostas constituídas) de uma certa experiência feita e é correlativamente
limitada por essa experiência. O que ocorre então é que o “sistema” (a normatividade
62
prática humano-social, transforma a juridicidade em direito. “Só a ordem que tem força
conformadora da realidade – considera analogamente WELZEL, Naturrecht und
materiale Gerechtigkeit, 4.ª ed., 165 – é direito, e a ordem ideal que não possui essa
força, não preenche esse elementar pressuposto do conceito de direito”.
E que a realização do direito exige que se ultrapasse constitutivamente (em
termos normativamente constitutivos) um qualquer sistema abstracto de normas, que
portanto o direito realizando não coincida com o oferecido na abstracta autonomia desse
sistema e será antes função da problemática concreta dessa realização, é o que também
se compreenderá tendo em conta três pontos.
Se voltarmos a ter presente que a historicidade da problemática normativo-
-jurídica implicada pela realização concreta do direito obriga o pensamento jurídico a
dar-se conta de todos os limites normativos, já atrás aludidos, da normatividade
objectivamente pressuposta para cumprir a intenção do direito que a ordem jurídica
postula, logo se concluirá pela necessidade de um contínuo desenvolvimento
constitutivamente integrante daquela normatividade jurídica pressuposta. O que obriga,
com efeito, à referência a outros critérios e fundamentos que dêem validade a essa
constitutiva integração, para além daqueles que imediatamente ofereça a disponível
normatividade positiva. Obriga, em último termo, à contínua referência àqueles mesmos
valores e princípios normativos (princípios transpositivos e mesmo suprapositivos,
como se verá a propósito do jurisprudencialismo) que, sendo os fundamentos
regulativos da ordem jurídica e do seu sistema normativo, hão-de ser também os últimos
e decisivos fundamentos-critérios de realização do direito.
Em segundo lugar, há que atender à indivisível solidariedade, verdadeiramente
unidade normativo-metodológica entre a “interpretação” e a “aplicação” – tomadas estas
categorias nos termos por que foram discriminadas pela metodologia jurídica
normativística. Pois também aqui há muito se sabe que “a interpretação é o resultado do
seu resultado” (G. RADBRUCH), que não é ela uma determinação a priori, seja exegética
ou analítica, de uma normatividade subsistente em abstracto ou em si, sendo pelo
contrário constituída pela relação hermenêutico-normativa entre a norma e o caso
concreto, e relação essa que não só integra a realidade social, que o caso manifesta, no
processo normativo da realização do direito e assim a revela um momento constitutivo
da própria normatividade jurídica (ponto este especialmente analisado por F. MÜLLER,
Normstruktur und Normativität, 77, ss., 184, ss., e passim, ID., Juristische Methodik, 6.ª
ed., 138, ss.), como obriga ainda a concluir que a interpretação apenas se consuma na
66
O que faz também com que estes três momentos, logicamente distintos em abstracto,
sejam metodologicamente indescerníveis em concreto, já que todos eles se integram no
mesmo objectivo prático-normativo: a válida ou “justa” (com justeza material)
realização do direito através da mediação que ofereça (enquanto e no grau em que a
ofereça) o pressuposto direito positivo.
Numa palavra, o sistema normativisticamente positivo acaba por ser apenas um
conjunto de formais critérios jurídicos utilizados ao serviço de uma intenção normativa
que o ultrapassa. O que do mesmo passo significa que o direito histórico-socialmente
realizado é bem mais vasto e rico do que aquele que apenas pela normativa legalidade
se define no seu corpus formalmente prescrito.
E se com isto se põe directamente em causa o autonomismo abstracto do
normativismo (o direito existiria objectivamente no sistema abstracto das normas) é esta
uma conclusão que também já hoje geralmente se reconhece. Consideremos esta
expressiva formulação de P. NERHOT (Interpretation in legal sciences. The notion of
narrative coherence, in P. NERHOT (ed.), Law, Interpretation and Reality, 197), entre
inúmeras outras que podiam ser citadas: “By defining the law as a „system of norms‟
one is in fact entering a complete blind alley as to what the law might be.”
) O racionalismo não é menos nessa expressão errada da racionalidade jurídica.
A razão jurídica não pertence à “razão teórica”, mas à “razão prática” – só a razão
prática pode assumir a intenção prático-normativa da juridicidade, ainda que não
importe saber neste momento que modalidade particular da razão prática lhe é
especificamente própria, se a racionalidade hermenêutica, a racionalidade tópico-
-retórica ou argumentativa, a racionalidade teleológica ou porventura uma racionalidade
prática especificamente jurídica (sistemático-problematicamente normativa e
dialecticamente judicativa) – sobre este ponto, pode ver-se desde já, Metodologia
jurídica, 70-81, 155-159).
E será ilusório pensar que através de uma conceitualização dogmática se
lograsse converter essa racionalidade prática numa racionalidade só teorético-cognitiva
– como vimos ter sido uma tentativa particularmente caracterizadora do normativismo.
Tal só seria possível, como também já pudemos compreender, se a objectiva
normatividade jurídica se fechasse sobre si própria num sistema dogmático de todo
alheado do diálogo problematicamente normativo com a realidade prática que solicita o
direito e em que ele se deverá realizar, se fosse, pois, o direito essencialmente uma
lógica sem sentido prático (e “prático” qua tale, a implicar a validade axiológico-
68
-normativa referida à acção e a exigir justeza judicativa na acção) – que tanto é dizer, se
a normatividade jurídica renunciasse a ser normatividade do direito, se o direito
deixasse afinal de ser direito.
Nem por outra razão a própria intenção dogmática do pensamento jurídico foi
chamada a uma índole também prática – ponto este já antes referido – ao compreender-
-se que a “dogmática” jurídica não poderia ser simplesmente conceitual (sistemático-
-conceitual) e antes de uma intencionalidade normativamente prática – através da
elaboração problematicamente reflectida de orientações ou modelos normativo-jurídicos
para a concreta realização do direito, pois de contrário deixaria mesmo de ter hoje
sentido (v. U. MEYER-CORDING, Kann der Jurist heute Dogmatiker Sein?, 20, ss., e
passim).
Por outro lado, também os valores em que o racionalismo jurídico dogmático-
-conceitual e sistemático-dedutivo poderia unicamente pensar, e que seriam tão-só os
valores formais da objectividade-segurança e da igualdade lógico-formal, se mostravam
insuficientes e superados nesse seu sentido. Pois é actualmente irrenunciável a
referência do direito a valores e princípios (normativo-materiais) que lhe assimilam, por
um lado, uma intenção de “justiça material” e, por outro lado, lhe garantam uma
realização de justeza concreta, em que a igualdade deixa de ser apenas formal para ser
também de sentido material. Nem é com outro sentido (de uma intenção normativo-
-material) que se pensa nos nossos dias inclusive a constitucionalidade (v., por todos,
GREGÓRIO PECES-BARBA, Los valores superiores, 1986; GUSTAVO ZAGREBELSKY, Il
diritto mite, passim).
) O atomismo abstracto-analítico e aproblemático com que o normativismo
pensava a realidade social da aplicação do direito não é menos fortemente criticável. E
essa crítica está feita, ao termo-nos dado conta de que a consideração apenas empírico-
-analítica dessa realidade, vendo nela tão-só “factos” discretos e por exigência de uma
estrita perspectiva lógica da referência das normas (também apenas lógico-
-conceitualmente entendidas) a essa realidade, abstraía da verdadeira realidade que
solicita o direito e em que ele é chamado a realizar-se: a realidade prática da inter-acção
comunitária, a manifestar-se em acontecimentos prático-sociais de uma unidade também
prático-significante e de que emergem os concretos problemas jurídicos (casos
jurídicos) decidendos. Casos jurídicos esses que, sendo embora a decisiva polarização
da referência prática do direito, o normativismo é insusceptível de pensar, preso como
está à sua estrita redução dicotómica de apenas normas/factos. Pelo que a abstracção
69
CAPÍTULO II
O FUNCIONALISMO
permitir inclusive a ironia dos filósofos para com a filosofia tradicional e os seus
poderes (“O Sol, a nossa terra e o vosso pensamento não terão sido mais do que um
estado espasmódico de energia, um instante de ordem estabelecida, um sorriso esboçado
pela matéria a um canto do cosmos (...) O cataclismo da matéria. Concordem que esta é
uma grande divergência entre o nosso pensamento e o pensamento clássico e moderno
do Ocidente (...)” – J. F. LYOTARD, L’Inhumain. Causeries sur le temps, 1988, cap. I).
Ser, pois, que, nessa sua energia criadora transformadora e evolutiva, excluía a
referência que apenas compreendesse o “ser enquanto ser” (ARISTÓTELES) para lhe
substituir – e é este um ponto de importância capital – uma sua consideração sobretudo
pelos resultados que produzisse ou pela possibilidade de efeitos que oferecesse. O que
significava, e é a conclusão relevante, que a compreensão do ser, e com ela a de tudo,
adquiria um sentido funcional e se via submetido ao tipo de razão que HORKHEIMER
designou por “razão instrumental” (HORKHEIMER, Zur Kritik der instrumentellen
Vernunft, 2.ª ed.).
Assim como o homem, a estrito nível antropológico e numa directa correlação
com essa compreensão do Ser, deixou de ser um homem simplesmente contemplativo
que procura a verdade e que no conhecimento teórico da verdade absoluta teria a sua
plena realização e a sua felicidade (refira-se de novo ARISTÓTELES), para se assumir
como um homem agente capaz de numa intenção de mobilização criadora que a própria
ciência, projectada no Gestell da técnica (HEIDEGGER), permitiria – recorde-se o scientia
propter potentiam de F. BACON e que teve a sua expressão forte (e também ingénua,
sabe-se igualmente hoje) na fé iluminista na razão-ciência e no “progresso” que ela
parecia prometer; e não menos, ainda que com a intervenção também de outros
pressupostos, na mutação de sentido proposta pelo marxismo e enunciada na conhecida
tese XI sobre FEUERBACH (“os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de
diferentes modos, e trata-se agora de o transformar”). Um homem, pois, senhor do seu
destino (daí resultou, em perspectiva religiosa, a secularização) que é o construtor do
seu mundo, que vive exclusivamente na história (o imanentismo metafísico de acabada
expressão em HEGEL) e como ser histórico ou da história (mais do que como ser de uma
“natureza”) e que a orienta funcionalmente segundo a opção dos seus projectos.
Corolários de tudo isto, pela mediação da autonomia desse homem moderno e da
convocação da sua subjectividade como fundamentante última em todos os domínios: a
libertação da política, o pragmatismo filosófico, o utilitarismo social (esta consequência
também da libertação do económico). Depois, já no nosso tempo, as formas radicais do
73
se tivessem por relevantes e bem assim a sua ordenação numa estrutura, num sistema de
organização e contrôle eficientes.
Com o que afinal a relação entre estrutura/sistema e função se inverteria: não
seria a estrutura/sistema a determinar a função ou funções, mas a funcionalidade
reflexiva de um ponto de vista de referência e de objectiva relevância a determinar a
estrutura/sistema que seria correlativamente adequado. O que imporia que a uma
perspectiva “estrutural-funcional”, em que o conceito de estrutura se pré-ordena ao
conceito de função e se pergunta pelas prestações funcionais que o sistema exige, se
substituísse uma perspectiva “funcional-estrutural”, em que o conceito da função se
pré-ordena ao conceito de estrutura e que permitirá “perguntar pelas funções de
estruturas sistémicas sem ter de pressupor uma integrante estrutura de sistema como
ponto de referência” e assim problematizar também o próprio sentido da formação do
sistema. Aquela primeira perspectiva terá sido a do pensamento sociológico de
PARSONS, esta segunda a que LUHMANN adopta e lhe contrapõe (v., deste último A.,
Soziologie als Theorie sozialer Systeme, in Soziologische Aufklärung, cit., 113, ss.).
Inversão de perspectiva de cujo relevo para entender o funcionalismo jurídico nos
daremos conta.
E não terminaremos esta determinação conceitual sem uma última observação.
Se acabamos de ver a fungibilidade e a equifinalidade a caracterizarem o conceito mais
funcionalístico de função, também sempre e em geral, como podemos compreender por
tudo o que foi dito, esse conceito excluirá uma qualquer reductio ad unum, um qualquer
monismo e mesmo uma qualquer linearidade de determinação e de consequência, pois
que a possível variação das referências, dos contextos sistemáticos e dos objectivos o
que implicará é antes um irredutível pluralismo funcional. Daí a conclusão de que não
há um só funcionalismo, que este se traduz sempre em possíveis funcionalidades
diversas, pelo menos em diferentes modalidades de um funcionalismo global –
exactamente o que se verificará no funcionalismo jurídico.
muitos outros, o tomo XVII (1973/1974) do Anuario de Filosofia del Derecho, com as
Comunicaciones al IV Congreso Mundial de Filosofia Jurídica y Social dedicadas
exclusivamente ao tema das funções do direito sob diversos ângulos – “A função do
direito e as ideologias jurídicas”, “A função do direito e o sentido da normatividade”,
“As funções do direito nas sociedades”, “As funções do direito do ponto de vista do
homem” –; ARSP, Beiheft N. F. n.° 8 (1974), dedicado a Die Funktionen des Rechts;
Die Funktion des Rechts in der modernen Gesellschaft, in Jahrbuch für
Rechtssoziologie und Rechtstheorie, B. I (1970); N. BOBBIO, Verso una teoria
funzionalistica del diritto e L'analisi funzionale del diritto: tendenze e problemi, in
Dalla struttura alla funzione, Nuovi studi di teoria del diritto, 1977; ÁNGEL SÁNCHEZ DE
LA TORRE, Sociología del Derecho, 2.ª ed., 75, ss.; R. ZIPPELIUS, Grundbegriffe der
Rechts- und Staatssoziologie, 2.ª ed., 50, ss.; VICENZO FERRARI, Funzioni del diritto, 2.ª
ed.; GREGORIO ROBLES, Sociología del derecho, 1993, 141, ss.; ELÍAS DÍAZ, Curso de
Filosofia del derecho, 1998, 127, ss.; N. LUHMANN, Das Recht der Gesellschaft, 1995,
124, ss.).
Só que – e é este um ponto para nós fundamental – se é este um tema suscitado
pela perspectiva funcionalista, o certo é que nem sempre o vemos considerado
funcionalisticamente – e só esta última consideração nos importa em referência ao
funcionalismo jurídico. Com efeito, o direito não será tratado funcionalisticamente
quando simplesmente se lhe reconhecem funções ou se quer vê-lo a cumprir a “sua
função” e sim quando é convocado para certas funções que se pretende que ele realize –
quando não é visto em si mas como elemento numa relação ou num contexto
sistemicamente funcional. Só assim o direito será submetido a uma perspectiva
funcional e com a consequência decisiva de os objectivos ou os fins, os resultados ou os
efeitos relevantes não serem também em si jurídicos, mas transjurídicos, sejam eles
políticos, sociais, económicos, etc. (“certain non juridical purposes” – V. E. HOMMES),
posto que visados e porventura realizáveis do modus jurídico, através do
(funcionalmente ou instrumentalmente pelo) direito.
Distinção que se ignora quando, ao reflectir sobre as “funções do direito”, se põe
em dúvida a novidade e mesmo o interesse do tema (SÁNCHEZ DE LA TORRE), quando se
pergunta criticamente se “le droit a-t-il une fonction propre?” (SERGIO COTTA) e se
acaba por responder que a função do direito, a função específica e diferenciadora do
direito como direito, não é senão a de mobilizar o sentido do seu sein, “realizar a justiça
enquanto modo específico de ultrapassar a insegurança existencial” (assim, SERGIO
81
COTTA, ob. loc. cits.; em termos análogos, entre outros, LEGAZ Y LACAMBRA – ambos in
Die Funktionen des Rechts, respectivamente, pp. 113, ss., e 1, ss.). Do mesmo modo que
as duas perspectivas – de um lado a analítico-positiva e a reflexiva, de outro lado a
funcionalística – continuamente se cruzam ou se associam sem diferenciação em grande
parte dos autores, na sua enumeração, análise e comentário das “funções do direito”.
São inúmeros os contributos oferecidos nesta linha, sem que todavia muito se distingam
uns dos outros: seriam essas funções as de “certeza e segurança, e simultaneamente a
possibilidade de alteração, resolução dos conflitos de interesses, organização,
legitimação e limitação do poder político” (L. RECASENS SICHES); de “composição de
conflitos, regulação dos comportamentos, organização e legitimação do poder na
sociedade, estruturação das condições de vida na sociedade, administração da justiça”
(K. L. LLEWELLYN); de “orientação social, resolução de conflitos, legitimação de
poder” (V. FERRARI); funções para com a “sociedade global”, as de conservação da
colectividade, do seu desenvolvimento e da sua segurança, funções relativamente ao
“indivíduo”, as de racionalização como factor da personalização, de segurança, de
orientação acerca de muitos dos seus interesses, funções perante o Estado, as da sua
legitimação, de disciplina, de especializações de competências (A. SÁNCHEZ DE LA
TORRE); de “entre as funções sociais mais importantes do direito como sistema (ou
subsistema...) institucional”, destacar-se-iam “a função de delimitação de subsistemas
sociais, a função de manutenção da paz social, a função da legitimação do sistema social
e a função comunicacional” (GREGORIO ROBLES); as funções que lhe caberiam enquanto
“sistema de organização social”, seriam as de estabelecer e impor uma ordem social,
realizar a justiça, promover o controle social, e bem assim a integração, a informação e
a segurança, e por outro lado as funções que lhe corresponderiam também como “factor
de libertação e de mudança social” (ELÍAS DÍAZ); as funções de integração, de
estabilização, de resolução de conflitos, de racionalização (R. ZIPPELIUS); etc., etc.
Já diferente e, terá de dizer-se, mais esclarecida é a posição daqueles autores
que, pressupondo expressamente o sentido da distinção que enunciámos e não menos
conscientes das suas consequências, ou se opõem a uma compreensão finalística do
direito ou vêem nessa compreensão uma alteração fundamental da perspectiva que a
realidade sócio-jurídica imporia e o pensamento jurídico deveria assumir. Podemos
referir como eloquente exemplo da primeira atitude HANS RYFFEL (“Funktion” oder
“Aufgabe” des Rechts in der Gesellschaft?, in Anuario, cit., 119, ss.): o direito teria
uma tarefa específica a realizar na existência humana, mas não uma função; o conceito
82
Recht, in ARSP, 95 (1970), 197, ss.), só desse modo as valorações seriam susceptíveis
de uma verdadeira racionalização que as subtraísse à irracionalidade emotiva. Tal como
já hoje se pretende também na ética, a prática jurídica haveria nestes termos de assimilar
a racionalidade consequencial.
porque, mas para que”). Distinção que seria retomada por muitos outros
(inclusive por R. STAMMLER, posto que no quadro do seu neokantismo
formal, v. Theorie der Rechtswissenschaft, 2.ª ed., 30, ss.; Lehrbuch der
Rechtsphilosophie, 3.ª ed., 56, ss.) e que implicava uma clara concepção
funcionalmente instrumental da acção (“A satisfação que espera aquele
que quer é o fim do seu querer. Nunca a acção em si mesma é um fim,
mas simplesmente um meio de o atingir. Em verdade, aquele que bebe
quer beber, mas só quer beber para alcançar o resultado que desse facto
espera. Por outras palavras, em cada acção nós queremos não essa acção
mesma, mas somente o efeito que dela nos resulta” afirmava IHERING, e
de modo análogo oporia STAMMLER à “forma de pensamento” da “causa
e efeito” no mundo natural a de “fim e meio” no mundo prático da
vontade, Ibid. 30). E com base nela, entendia IHERING que a lei de
finalidade se “deveria aplicar ao direito e para ser ele pensado em termos
finalísticos” (“o direito não exprime a verdade absoluta, a sua verdade é
apenas relativa e mede-se pelo seu fim”; “no domínio do direito nada
existe senão pelo fim e para o fim, todo o direito não é mais do que uma
criação do fim...”) e a postular, por sua vez, uma concepção
funcionalística não menos clara do próprio direito (“Qual é o fim do
direito?... podemos dizer que o direito representa a forma da garantia das
condições de vida da sociedade, assegurada pelo poder de coacção de
que o Estado dispõe”). Finalismo que haveria de ter, todavia, uma
particular conversão metodológica na “Jurisprudência dos interesses” –
posto que declaradamente ela se dissesse, por HECK, inspirada em
IHERING –: por um lado, ao “fim” visado substituíram-se os “interesses”
reconhecidos ou reconhecíveis pelo direito e este seria chamado, não a
garantir de forma geral as “condições de vida da sociedade”, mas a
decidir valoradoramente “conflitos de interesses”; por outro lado, os
interesses a considerar seriam aqueles que o direito considerasse
relevantes e assim, como que numa “interiorização” dos interesses pelo
jurídico, o prius continuava a poder ver-se neste, nas normas que
previamente decidiam dos conflitos de interesses; desse modo o
finalismo via-se amortecido ao deixar de avultar no primeiro plano a
favor de uma hermenêutica teleológica do direito vigente, e isto graças à
simultânea relevância, nota bem característica da “Jurisprudência dos
interesses”, dada ao Gebotseite e ao Interessenseite. (Sobre este ponto, v.
“Jurisprudência dos Interesses”, in Digesta, II, 225, ss.) já que o
funcional finalismo se via como que neutralizado ao submeter-se assim
ao que se dirá uma sua legitimação jurídica. Não do mesmo modo no
“direito livre”, na “jurisprudência sociológica”, etc., em que o prius era já
visto manifestamente nos fins, nos interesses sociais a impor ao direito e
em ordem aos quais ele deveria ser funcionalmente pensado e realizado.
E foi para esta contraposição que H. KANTOROWICZ chamou a atenção
(recorde-se que KANTOROWICZ foi um nome importante no “movimento
do direito livre”, tendo sido mesmo o autor do que se pode considerar o
seu manifesto, o ensaio Der Kampf um die Rechtswissenschaft) através
da distinção entre dois tipos básicos que se teriam de reconhecer no
pensamento jurídico, o tipo do pensamento jurídico formalístico (no qual
“se parte de uma formulada norma jurídica, a maioria das vezes um texto
legal, e se pergunta: „como se deve interpretar este texto a fim de que se
92
planification, loc. cit., passim; para uma tentativa de repensar o problema das “fontes do
direito” segundo uma teoria dos “modelos jurídicos”, v. do mesmo Autor O direito
como experiência, Ensaio VII, 147, ss.); etc. Não é impossível designar aquelas
prescrições e regras também por “normas” – o conceito amplo de norma, sabemo-lo,
não deixa de o admitir. Simplesmente, não confundindo também o que há de diferente
no sentido de normatividade constitutiva do conceito específico de “norma”
relativamente à racional funcionalidade que aqui está tão-só em causa – não normas a
definir uma normatividade que se pretende vinculante e imediatamente aplicável, mas
normas a orientar, num plano intermédio, a racional realização de uma finalística
programação ou planificação de objectivos.
Num plano intermédio, acabamos de dizer, pois que ao plano dos critérios terá
de acrescentar-se o plano da realização – e este também com especificação categorial.
Que, aliás, se reduz a uma categoria fundamental – a categoria de decisão. E
considerada esta no seu sentido específico, o acto com efeitos exteriores determinado
por um núcleo irredutível de voluntas e a traduzir-se materialmente, ou quanto ao
conteúdo, na opção entre alternativas possíveis. Pelo seu momento nuclear de voluntas,
a decisão será insusceptível de uma total redução racional que exclua o factor pessoal e
infungível do decidente; não admite nunca a sua determinação por necessidade lógica,
ou em termos de pensar-se ela uma mera “aplicação” dedutiva de premissas, embora
seja objecto de formas de racionalização (pela “teoria racional da decisão”, que iremos
referir) através da conjugada atenção dada aos objectivos, aos critérios-regras e aos
efeitos previsíveis – o que todavia será sempre um contrôle só exterior, insusceptível de
anular aquele núcleo determinante último do seu conteúdo. A significar isto que à
decisão corresponde uma autonomia também irredutível, não obstante aquele contrôle.
Autonomia que o funcionalismo não recusará, pois vai ela decerto na sua própria lógica:
sem essa autonomia do decisor no caso concreto e nas circunstâncias da decisão ficaria
impossibilitada a adequada realização dos fins/objectivos nessas mesmas circunstâncias,
nas quais, e pelos efeitos que aí provoquem, aqueles unicamente se poderão ver ou não
logrados. Pelo que os três planos considerados, o da programação finalística, o dos
critérios e o da realização por decisão se nos ofereçam numa diferenciação insusceptível
de uma qualquer reductio ad unum, de um qualquer monismo determinante – o
programa/planificação, os critérios e a decisão são todos complementarmente
necessários e cada um na sua especificidade. A ter de reconhecer-se assim que o
funcionalismo é categorialmente de uma muito particular complexidade.
95
diversas e possíveis acções por certos critérios ou regras determinados por um princípio
de optimização na realização de um certo objectivo (cfr. B. SCHLINK, “Inwieweit sind
juristische Entscheidungen mit entscheidungstheoretischen Modellen theoretisch zu
erfassen und praktisch zu bewältigen”, in Jahrbuch f. Rechtssoz. u. Rechtstheorie, II, p.
322 ss.; T. WÄLDE, Juristische Folgenorientierung, p. 40 ss. e 45; ROMERO MORENO,
ibid., passim). Enquanto “acção”, também nesta perspectiva, é um comportamento
objectivamente determinável de alguém (ou uma pluralidade planificadamente
associada de pessoas) com previsível (ou pelo menos de qualquer modo estimável)
efeito social – J. M. PRIESTER, “Rationalität und funktionale Analyse”, in Jahr. f.
Rechtssoz. u. Rechtstheorie, I, p. 468. E “decisão”, na mesma linha e como também já
atrás foi aludido, “é a escolha finalística entre diversas possibilidades de acção” tendo
em conta os efeitos de cada uma dessas possibilidades ou alternativas relativamente ao
fim ou fins pretendidos – ou seja o acto que supera um estado de ambiguidade,
produzido por uma série de opções alternativas, através da selecção entre essas
alternativas orientada por um certo fim ou objectivo – v., entre a já hoje inabarcável
bibliografia, H. RAIFFA, Decision Analysis; BRUNO FINETTI, “Decisão”, in Enciclopedia
Einaudi, 15, p. 411; PRIESTER, ob. loc. cits., p. 468; T. W. WÄLDE, ob. cit., 8, p. 40;
ROMERO MORENO, ob. cit., p. 10. Neste sentido “decisão” e escolha entre alternativas
são sinónimos (cfr. GÄFGEN, Theorie der wirtschaftlischen Entscheidung, apud W.
KILIAN, Juristische Entscheidung und elektronische Datenverarbeitung, p. 163, n.° 48),
e a “teoria da decisão” tem por objectivo a definição de regras e modelos estratégicos de
decisão, com base numa investigação teórico-analítica da acção finalizada (nos seus
pressupostos e condições, nos seus fins, nas suas possibilidades e efeitos, nos seus
factores determinantes). Teoria que opera num quadro de racionalidade formal
(analítico-funcional) e mobiliza amplamente as estruturas e os modelos do pensamento
matemático (particularmente o “cálculo de matrizes”), numa contínua tendência a
converter o qualitativo em quantitativo, e que por isso se poderá dizer a tentativa de um
cálculo da acção e da decisão. Como pensamento teórico-analiticamente estratégico, o
que o determina não é a “decisão enquanto a decisão „justa‟ ou „verdadeira‟, mas
simplesmente a decisão óptima em dadas condições” (cfr. KILIAN, ob. cit., p. 151), e
optimização que se pretende, pois, funcionalmente ou tecnologicamente calculável. Ter-
-se-ia assim como que a última expressão da “ideia viva no racionalismo clássico (da
razão como cálculo, de HOBBES, à mathesis universalis de LEIBNIZ) de tornar calculável
a prática humana” (SIMONA MORINI, “Teoria Prática”, in Enc. Einaudi, 10, p. 334).
100
numa certa analogia – se é lícito invocar aqui essa analogia – que no primeiro caso o
modelo será o de uma “ética (prática) de convicção” e no segundo caso o de uma “ética
(prática) de responsabilidade”.
4) Um outro ponto metódico em que o funcionalismo muito particularmente se
manifesta, na sua opção pelos efeitos v.s fundamentos, é o do relevo dos resultados da
decisão para a orientação da própria decisão e como seu critério. Tendo em conta os
efeitos político-sociais, estritamente sociais, económicos, etc., que previsivelmente, e
mediante hipóteses alternativas de resultados, a decisão possa provocar, assim esta, no
espaço de autonomia que se lhe reconhece, deverá ser uma ou outra, aquela que permita
ou impeça os efeitos desejáveis ou indesejáveis – a decisão, no seu próprio conteúdo,
deverá ser função dos seus possíveis efeitos. Cânone metódico consequencialista que,
aliás, também hoje tende a generalizar-se no pensamento jurídico (v. Metodologia
jurídica, 190. ss.).
Diferente, mesmo contrária, é a atitude metódica do funcionalismo sistémico,
pelo menos na versão radical que dele propõe N. LUHMANN, como seu caput scholae.
Assim, importaria distinguir o “método funcional”, que seria próprio do funcionalismo
sociológico – e que afinal o funcionalismo jurídico material, como temos visto, acaba
por assimilar –, do método da “decisão jurídica”. Pois tal como tínhamos visto, a
propósito das “funções do direito”, que este devia ser funcionalmente desonerado do seu
compromisso com fins incontroláveis num futuro aberto – o que podendo ser problema
para uma perspectiva sociológica não poderia ser problema para o ponto de vista
jurídico –, também a decisão jurídica excluiria metodicamente a referência a fins/efeitos
como seu critério para se estruturar antes no modo de um Konditionalprogramm, ou em
termos de as expectativas normativas, que ao sistema jurídico funcionalmente
competiria definir, se vissem afirmadas e salvaguardadas em concreto mediante uma
decisória aplicação submetida ao esquema metódico condicional-hipotético (se/então),
mediante uma “decisão condicionalmente programada”. A “estrutura final” seria
porventura relevante na criação e na interpretação das “normas”, não na decisão jurídica
da sua aplicação – “uma fundamental ponderação dos efeitos da sua decisão não
pertence ao programa dos juristas” (v. N. LUHMANN, Funktionale Methode und
juristiche Entscheidung, in Archiv des öffentlichen Rechts, 94 (1969), 1, ss.). E se
perante o “paradigma da aplicação”, próprio do normativismo, não é isto novidade
nenhuma, as diferenças do funcionalismo sistémico não as teremos, na verdade, aí, no
modelo metódico da decisão jurídica, mas no seu entendimento, apenas socialmente
105
como que uma exigência sociológica ou imposta sociologicamente pela actual mutação
político-social das sociedades contemporâneas, e, por último, uma directa determinação
político-ideológica.
1) Por determinação metodológica, queremos referir o que se implicaria nas
consequências do pós-positivismo. O pós-positivismo metodológico, ao manifestar o
compromisso normativo-jurídico constitutivo (“criador”) e teleológico-material da
realização do direito, teria convertido a política, a intenção e os critérios políticos, numa
dimensão indefectível dessa realização e, assim, do pensamento jurídico enquanto tal.
Isto, nos termos seguintes.
α) Sabe-se que o positivismo jurídico, com o normativismo com que era
pensado, se oferecia bifronte como Janus: à reconhecida imperativa criação política do
direito, nas fontes estaduais e fundamentalmente legislativas, contrapunha uma
pretendida apoliticização no método jurídico (na determinação e na aplicação desse
direito politicamente criado). Não obstante a criação política do direito, a metodologia
dos juristas, enquanto juristas, seria puramente jurídica, não política.
Com efeito, se para o positivismo jurídico o direito era só o direito positivo, com
exclusão assim do “direito natural” ou de qualquer juridicidade transpositiva – “sob
positivismo jurídico, compreende-se aquela teoria do direito, acentuava KELSEN (Was
ist juristischer Positivismus?, in Die Wiener Rechtstheoretische Schule, I, 941), que só
concebe o direito positivo como „direito‟ e que a qualquer outra ordem social, embora
designada na linguagem como „direito‟, assim particularmente o „direito natural‟, recusa
que possa valer como „direito‟” –, e se o “direito natural” acabava por se identificar com
o direito posto (im-posto) pelas prescrições do órgão ou órgãos político-socialmente
legitimados para tanto, isto significava que o direito era entendido como criação
autónoma do legislador político, segundo a sua teleologia político-social, e variável em
função das circunstâncias histórico-sociais condicionantes dessa mesma teleologia.
Uma vez, porém desse modo criado e posto, o direito passaria a ser objecto de
um pensamento que se pretendia puramente jurídico e assumido assim pelo “jurista
enquanto tal” (“Jurist als solche”: WINDSCHEID), pois que o seu objectivo metodológico
seria exclusivamente cognitivo (a analítico-interpretativa reprodução e conceitualização
dogmática desse direito positivo, não de qualquer modo a reconstituição ou coprodução
da sua normatividade) e a sua intenção noética estritamente formal – se o legislador cria
o direito positivo, o jurista com o seu pensamento exclusivamente jurídico conhece-o na
sua estrutura lógico-formal e aplica-o também lógico-formalmente ou lógico-
108
lois, Liv. XI, cap. VI), mas numa sua paráfrase) e apenas a “boca da lei” (“la bouche de
la loi”). No momento intencional prático-normativo, a nota do prático-teleológico e do
“finalismo” que também intencionalmente caracterizam o político – o compromisso
prático-estratégico das suas opções (cfr., quanto a este segundo momento, os
desenvolvimentos de G. HAVERKATE, Gewissheitsverluste im juristischen Denken, 112,
ss.).
Foi assim que generalizadamente se passou a dizer que “toda a criação do direito
é política”, seja essa criação legislativa ou judicativa (v., por todos, R. RHINOW,
Rechtsetzung und Methodik, 16, s.; R. DREIER, Zum Selbstverständnis der Jurisprudenz
als Wissenschaft, in Rechtstheorie, 1971, 46, s., 52, s.; R. WASSERMANN, Der politische
Richter, 29, 39, s., 42, s., e passim; W. ZÖLLNER, Recht und Politik, Zur politischen
Dimension der Rechtsanwendung, in Fest. f. Fritz v. Hippel 70, G., 131, ss.; MAYER-
-MALY, ob. cit., 74, ss.; Jurisprudenz und Politik, loc. cit., 108, ss.; MARIO SBRICCOLI,
L'interpretazione dello statuto, 10, 11, 112, ss.; L. PRIETO SANCHÍS, Ideologia e
interpretazione giuridica, passim); que nas dimensões da “ciência do direito” ou da
“jurisprudência” se veio a incluir, a mais possivelmente das suas dimensões
estritamente teorético-descritiva e dogmática, uma terceira dimensão ou função política
(R. DREIER, ob. loc. cits., 38, ss., esp.te 46, ss.; G. TEUBNER, Folgenkontrolle und
responsive Dogmatik, in Rechtstheorie, 1975, 190, s., e passim); que a “política do
direito” (que é política e referindo a “concepção da alterabilidade do direito através da
conformação política”) se entendeu como disciplina fundamental do pensamento
jurídico e decisiva dimensão “do carácter dinâmico do direito moderno”
(R.WASSERMANN, Vorsorge für Gerechtigkeit, Rechtspolitik in Theorie und Praxis, 11,
ss., e passim; EIKE v. HIPPEL, Rechtspolitik: Ziele, Akteure, Schwerpunkte, passim). Por
tudo o que, e numa formulação de U. SCARPELLI (apud E. PATTARO, Il realismo
giuridico come alternativa al positivismo giuridico, in Riv. Int. Fil. d. Diritto, IV Série,
XLVIII (1971), 111), o pensamento jurídico teria deixado “o universo da ciência pelo
universo da actividade política”.
) Conclusões todas elas, e enquanto acabam por identificar a intenção
normativamente constituenda e constitutiva do jurídico à intenção política, só possíveis
porque comungam também todas elas num tácito e acrítico pressuposto – o pressuposto
da ausência de uma intencionalidade normativa autónoma no direito. O direito não teria
outros valores constitutivos, outros princípios fundamentantes e outros fins
determinantes do que aqueles que numa perspectiva política (estratégico-
113
deixou de se referir a uma material axiologia pressuposta, que seria em último termo
expressão metafísica, para se assumir como tarefa da liberdade e da sua autonomia
constitutiva assumidas pelo político. No plano específico do jurídico, o resultado foi a
imputação do direito exclusivamente à legitimação política – antes de mais legitimação
contratualística, como postulava a liberdade e, com esta, não menos a igualdade – a
implicar assim que a sua normatividade deixasse também de se aferir por uma validade
material (por uma exigência de fundamento ao nível do conteúdo intencional) e passasse
antes a bastar-se com uma validade formal (simplesmente com a legitimidade de um
certo poder e a exigência de uma certa forma e processo), e validade formal que viria a
identificar-se com a legalidade (com a “forma legal”). Deste modo se pensou moderno-
-iluministicamente resolver em termos jurídicos o problema político.
Ora, ultrapassada que fosse a “forma” jurídica – quer a forma legal, quer a forma
dogmática –, como vimos que veio a acontecer, convocando uma intenção material para
além dela, bem se compreende que essa intenção se procurasse no político. É que o
domínio prático-material passaria a ser o domínio do político, abandonada que fora a
filosofia prática metafísica, ou jusnaturalística – e não podendo juridicamente bastar-se
já com a “forma”, único modo de se converter o político ao jurídico e de assim
autonomizar este daquele, o pensamento jurídico seria naturalmente, inevitavelmente,
remetido para o político.
exigência essencial de garantia que o direito nele deverá instituir. E em dois sentidos.
Exigindo que as decisões jurídicas concretas correspondam ao direito vigente e que elas
sejam proferidas segundo um processo previamente ordenado. Para tanto, e como
principal “contra-meio” (Gegenmittel) a opor à total contingente politicização das
decisões jurídicas – outro “contra-meio” seria a própria “explicitação” e crítica
científica daquela geral dependência –, se convocaria a “metódica jurídica”,
criticamente reelaborada, para ser, como contrapólo do direito enquanto expressão
racional da política, a “expressão racional do direito”. Isso através da definição
metódica de um esquema do decidir jurídico e das suas regras em concreto, esquema e
regras que permitissem a revisibilidade, a discutibilidade e a regularidade desse decidir,
e assim a sua consensual racionalidade. Metódica que, centrando-se no reconhecimento
da vinculação jurídica do texto legal – o texto como quadro de possibilidade e limite – e
determinando os elementos cientificamente controlados da concretização das normas
jurídico-legais, e assim da formação das concretas “normas de decisão” (no que vai
apenas aludida a proposta metodológica de F. MÜLLER e por ele desenvolvida
especialmente em Juristiche Methodik, 6.ª ed., e Strukturierende Rechtslehre, 1984),
desenvolveria a função de um padrão crítico e de contrôle (uma “norma” ou dever-ser,
um “Soll-Zustand” a opor ao real e descrito decidir jurídico, no seu Ist-Zustand, e
retirando assim a este a sua impune “efectividade” ou tornando-o “disfuncional” perante
o sistema global). Deste modo, se “o direito é também um instrumento de domínio”, a
sua realização racionalmente metódica seria simultaneamente um “instrumento de
limitação do domínio”.
Temos, porém, as maiores dúvidas de que os antídotos possam ser apenas
metodológicos e sobretudo se referidos a uma metodologia que centre a autonomia do
jurídico, ainda que actuada por uma particular racionalidade metodológica de
concretização, no texto legal (cfr., sobre este ponto, a nossa Metodologia jurídica, 115,
ss., 127, ss., 144, ss.), além de que seria isso manter afinal um dos elementos capitais do
positivismo metódico já sabidamente insustentável. O problema é mais fundo. Tem a
ver, e decisivamente, com a diferenciação, e portanto autonomia correlativa, entre as
intencionalidades política e jurídica materialmente consideradas. Uma vez afirmada e
viável essa diferenciação, terá de definir-se então, mas só então, o modus de a preservar
e realizar – o que não deixará de ser decerto uma implicação metodológica do sentido
mesmo da diferenciação. Se, pelo contrário, houver ela de negar-se, também não terá a
metodologia possibilidade de a recuperar, pois seria sempre política a intencionalidade
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