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A.

CASTANHEIRA NEVES

TEORIA DO DIREITO

Lições Proferidas no ano lectivo


de 1998/1999

UNIVERSIDADE DE COIMBRA
1998
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I. INTRODUÇÃO

1. A actualidade da teoria do direito

A) A Teoria do Direito pretende oferecer-se como uma disciplina diferenciada


no universo global do pensamento jurídico – diferenciada no seu objecto específico, no
seu estatuto epistemológico e na sua temática. Todavia nem sempre vemos muito nítida
essa diferenciação ao nível das suas efectivas tentativas de realização, o que contrasta
bem manifestamente com o objectivo que lhe foi originariamente intencional. Há-de
reconhecer-se, com efeito e em virtude dos seus mais recentes desenvolvimentos, que a
Teoria do Direito hesita cada vez mais o seu lugar entre o regulativo normativo-jurídico
e a filosofia do direito (v., desde já e como exemplo, A. KAUFMANN, Rechtsphilosophie,
Rechtstheorie, Rechtsdogmatik, in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart,
6.ª ed., 1994, 1-29), por um lado, entre a sociologia jurídica e a política do direito (v.
infra, a propósito sobretudo da “Teoria Crítica do Direito”), por outro lado. No entanto,
na sua intenção originária, a partir da segunda metade do séc. XIX, tratava-se de
conferir um estatuto rigorosamente científico ao pensamento jurídico stricto sensu – i. é,
ao estudo jurídico (que não filosófico, histórico, sociológico, etc.) do jurídico ou à
consideração jurídica do direito – que lograsse elevá-lo ao nível de uma teoria em
sentido autêntico, o sentido que o cientismo do séc. XIX identificara com a ciência, tal
como esta também exclusivamente a entendia (o conhecimento teoreticamente objectivo
e racionalmente sistemático de um qualquer objecto) e na qual via o critério decisivo da
validade cultural. E isso por duas razões principais: porque também no pensamento
jurídico se haveria de assumir a intenção, própria daquele cientismo, de superar a
filosofia pela ciência (o especulativo “subjectivo” ou arbitrário pelo teorético objectivo)
e porque se duvidava que o tradicional pensamento jurídico normativo-dogmático ou
jurisprudencial (visto então apenas como prático-técnico) merecesse a qualificação de
“ciência”, de “teoria”, naquele sentido rigoroso que se pretendia. Daí a exigência de
uma teoria do direito – se não necessariamente em substituição, decerto para além
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daquele pensamento jurídico-dogmático – no próprio âmbito do estudo-conhecimento


jurídico do direito.
Decerto que no universo global do pensamento referido ao direito sempre se
distinguira e diferenciara a “filosofia do direito” (durante séculos identificada com o
“direito natural” e só no séc. XIX deste autonomizada) da dogmática jurisprudencial
específica dos juristas e se viria depois, a partir dos fins do séc. XVIII, a distinguir e a
diferenciar também a história do direito e no final do séc. XIX ainda a sociologia
jurídica. Só que eram esses domínios de estudo e reflexão, respectivamente, estudos e
reflexões filosófica, histórica e sociológica sobre o direito enquanto objecto, ou tendo o
direito como objecto de pensamentos em si não jurídicos, e não como a teoria do direito
se propunha ser, um estudo e reflexão teorético-jurídicos do direito qua tale ou na sua
juridicidade, uma teoria jurídica do direito. Se a história do direito e a sua sociologia do
direito (ainda a antropologia jurídica, a psicologia jurídica, etc.), a própria filosofia do
direito, enquanto investigações problemática e racionalmente livres e assim com uma
liberdade de juízo e de determinação que só a objectividade racional e metodológica
controlaria, se manifestavam por isso mesmo como investigações zetéticas, e o
pensamento normativo-jurisprudencial tradicional e comum se mantinha numa índole
dogmática (tal como a teologia), haveria que conferir um carácter também zetético ao
pensamento jurídico que o elevasse, repita-se, ao nível de uma verdadeira “ciência” e a
isso seria chamada a teoria do direito.

A distinção acabada de aludir, entre dogmática e zetética, para


que TH. VIEHWEG começou por chamar a atenção, tornou-se uma
referência recorrente no domínio da teoria ou teorias do direito, e por isso
é oportuna a sua exacta caracterização. “O pensamento dogmático pode
ser correctamente designado como pensamento segundo posições
(Meinungsdenken: pensamento de posições ou referências postuladas),
diz-nos VIEHWEG, porque é caracterizado pelo facto de, ao permanecer
numa posição fixada (Dogma ou Dogmata), põe-na, por um lado, fora de
questão e consagra-a, por outro lado, numa multiplicidade de modos (de
realização)”. Por outras palavras, dir-se-á que o dogmático postula um
qualquer sistema de referências fixadas, segundo as valências (valores,
princípios, soluções prévias de problemas, etc.) que a auctoritas do
sistema sustentaria, e como tal define os sentidos e as possibilidades
concretamente admissíveis da sua realização em coerência com os
dogmas definidos. “No campo do direito acontece isto, voltam a ser
palavras de VIEHWEG, com o fim de obter em grupos sociais mais ou
menos amplos um comportamento jurídico o mais possível livre de
perturbações assim como eliminar adequadamente as perturbações desse
comportamento”. Daí que tenha o pensamento jurídico-dogmático uma
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função social que pretende realizar, por um lado, fixando um núcleo


estável de pensamentos e referências que não serão discutidos
(Grunddogma ou Grunddogmata), por outro lado, admitindo uma
suficiente flexibilidade da determinação desses sentidos nucleares nas
diversas situações relevantes (interpretatibilidade, ponderabilidade). Pelo
contrário, “o pensamento zetético tem primariamente uma função
cognitiva, e esta função estrutura e determina esse pensamento. Não
permanece em posições fixadas ou dogmaticamente fora de questão,
abre-se antes ao problemático que orientará a investigação e
prescrevendo para ele soluções que só a livre justificação racional e
metodológica hão-de sustentar. Pelo que actua em termos de tentativa de
soluções sempre susceptíveis de serem postas em questão ou revisíveis e,
por isso, apenas com valor hipotético perante o desenvolvimento
problemático da investigação. Daí que o essencial do pensamento
dogmático esteja no dever-ser regulativo dos seus dogma ou dogmata e a
sua índole básica seja interpretação, enquanto o essencial do pensamento
zetético estará no problemático, nos problemas que livremente suscita, e
a sua índole básica seja investigação (sobre a distinção, v. especialmente
TH. VIEHWEG, Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung,
in Studien Wissenschaftstheorie, II; ID., Ideologie und Rechtsdogmatik,
in W. MAIHOFER (Herg.), Ideologie und Recht, 85, ss.; TÉRCIO SAMPAIO
FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, 1973, 99, ss.; L.
FERNANDO COELHO, Lógica Jurídica e Interpretação das leis, 1982, 241,
ss., 272, ss.).

Foi esta a origem e foram estes o objectivo e o sentido primeiros da Teoria do


Direito – nos termos que melhor ainda veremos. Só que “teoria” (identificadora de
“ciência”) com o seu sentido tradicional na cultura europeia (o sentido que lhe incutia a
fundação da ciência moderna, galileico-cartesiana ou objectivo-empírica e abstracto-
-sistemático-demonstrativa, e que se reconstituiria em termos mais empírico-analíticos e
hipotético-explicatívos ao longo do séc. XIX – particularmente com a epistemologia
criticamente lógico-analítica dos vários positivismos deste nosso século, desde o mais
radical da epistemologia própria do positivismo ou empirismo lógico do “Círculo de
Viena” até ao já nuanceado da epistemologia popperiana) viu-se submetida, na década
de 30 e a partir daí, a uma crítica profunda de inspiração marxista que repelia o
sistemático-dedutivo a favor do dialéctico-reconstrutivo e o abstracto-lógico e analítico
a favor do real histórico e holístico, fundando-se assim o que passou a designar-se por
“teoria crítica”. “Crítica” agora dirigida não só à epistemologia e ciência tradicionais e
à sua pretensa neutralidade objectivo-científica, como ainda à realidade histórico-social
existente, que essas epistemologia e ciência consideravam uma realidade estritamente
objectiva nessa sua existência e em que apenas seleccionariam os seus dados-objectos.
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E isso com vista a um compromisso transformador que permitisse a construção de uma


outra realidade histórico-social, de uma diferente comunidade humana. Foi assim que se
abriu o debate “teoria crítica” vs. “teoria tradicional” (v., como texto fundador,
HORKHEIMER, Traditionelle und kritische Theorie, I1 [1537], 137, ss.) que ainda hoje
persiste, ainda que com modalidades diversas. Devendo observar-se, contudo, que os
objectivos gerais do cientismo do séc. XIX e do nosso se mantinham: a identificação da
ciência com a teoria e a superação da filosofia, entretanto identificada à metafísica, pela
ciência-teoria. Só que o sentido e o conceito de “teoria” e, portanto, da ciência, seriam
agora outros, não aqueles tradicionais, mas aqueles novos referidos, que se diziam e
queriam críticos. Assim em geral e também no pensamento jurídico, pela recepção que
nele não tardou a fazer-se das mesmas intenções epistemológica e social (político-
social) críticas. Daí o aparecimento da “teoria crítica (ou teorias críticas) do direito”,
com o objectivo igualmente de conferir àquele pensamento uma índole
epistemologicamente crítica, convertendo o pensamento jurídico, e enquanto quisesse
ele ascender a um estatuto científico (que não apenas prático-técnico elementar), numa
ciência crítica do direito.
Simplesmente, nem entendemos que uma actual díferenciação válida da “teoria
do direito” tenha de se propor, ou tenha de continuar a propor-se, o objectivo primeiro
da sua originária diferenciação – constituir o pensamento jurídico numa “ciência”,
segundo o sentido epistemologicamente rigoroso desse conceito, e qualquer que ele
seja –, nem, e já por isso mesmo, consideramos como necessária a alternativa e,
portanto, a opção entre uma teoria (ciência) do direito em sentido epistemológico-
-teoreticamente “tradicional” e uma teoria (ciência) do direito em sentido
epistemólogico-dialecticamente “crítico”. Justifica-se uma “teoria do direito” que vise
menos a “ciência” (ou fundar uma ciência) em sentido estrito do que o “saber” que
permita compreender – que não se proponha fazer ciência do direito ou sobre o direito,
seja em termos “teoréticos”, e numa intenção só objectiva, seja em termos “críticos”, e
numa intenção já militantemente engagée, mas lograr compreender o direito que se nos
oferece ou pode oferecer na nossa experiência cultural e prático-histórica dele mesmo,
nos seus pressupostos constitutivos, no pensamento que o assume e manifesta, no modo
da sua realização. É “teoria”, porque tem uma intencionalidade meta-normativa, que não
imediatamente prático-normativa; e não deixa de assimilar uma específica
racionalidade, só que nem estritamente teorética, nem comprometida ou politicamente
crítica, e sim crítico-reflexiva – i. é, numa reflexividade que compreenda no direito o
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que pressuponentemente e constitutivamente o determina na sua manifestação histórico-


-cultural e permita atingir desse modo a possibilidade de uma crítica revisão
reconstituinte. No que vai um duplo sentido de “critica” que só num dos seus aspectos,
mas não já num outro, corresponde ao sentido da “crítica” próprio das “teorias críticas”.
Tudo o que foi dito muito em geral. Pelo que se impõe uma consideração mais
detida, e com os pormenores indispensáveis, dos vários tópicos que foram aludidos.

1) A teorética teoria do direito – a teoria do direito de intenção estritamente


teorética – pretende assumir a razão teorética que autonomizou a ciência moderna, e
moldou os seus desenvolvimentos posteriores, para se justificar também
epistemologicamente desse modo como uma verdadeira teoria. Com o objectivo capital
de dominar teoreticamente (em termos de teoria) o prático (o prático-normativo) do
direito – e esse objectivo, que veremos padecer de uma contradição básica, marcou o
seu destino que, como também veremos, foi de fracasso: no teorético recusava-se o
prático (prático-normativo), na sua especificidade e muito particular racionalidade, e no
entanto era o prático recusado o campo e a intencionalidade a assumir pelo teorético.
α) “Teoria” naquele sentido identificador de “ciência” pode definir-se como uma
“conexão de verdades” (conexão sistemática de proposições de verdade determinante)
em que se exprime uma “conexão de coisas” – aquela conexão é ideal, pertence ao ser
ideal do pensamento, e esta conexão seria real ou pertenceria à realidade do ser, que
tanto seria dizer que aquela primeira é elaborada pelo sujeito do conhecimento e esta
segunda oferece-se como objecto (dado-objecto) conhecido. Por isso as categorias
estruturantes do conhecimento e assim da teoria em que ele se manifesta temo-las no
dualismo de o sujeito e o objecto; depois, as conexões referidas “dão-se juntas uma e
outra e são inseparáveis a priori”, posto que esta “evidente inseparabilidade não é
identidade" (v., sobre tudo isto, E. HUSSERL, Investigaciones Lógicas, trad. esp., I, 232,
ss. – de quem são também as formulações reproduzidas).
Em termos epistemologicamente mais actuais e em que avulta o carácter
metodologicamente construtivo das teorias, diremos que “teoria” é um discurso
sistemático (um sistema) de enunciados racionais de universalidade explicativa – onde
cada elemento objectivo enunciativamente referenciado encontra a sua razão de ser ou
fundamento explicativo em outros elementos objectivos também referenciados, segundo
uma certa conexão e no todo da conexão que é o sistema explicativo, conexão ou todo
de conexão sistemática que se concebem universais e assim necessários para todos os
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elementos bjectivos da mesma natureza. E de uma validade que terá o seu critério
fundamentante numa experiência objectiva (num certo tipo de experiência inter-
subjectiva) invocável numa intenção de comprovação – seja em termos positivos ou de
fundamentação por “verificação”, seja em termos negativos ou de crítica por
“falsificação” ou refutabilidade (POPPER) – mediante determinadas regras ou processos
metódicos definidos e aceites pela “comunidade de investigadores” (cfr. J. HABERMAS,
Erkenntnis und Interesse, Suhrkamp, 116, ss.; K.-O. APEL, Transformation der
Philosophie, Suhrkamp, Einleitung, 14, ss. – ambos em referência a PIERCE). É este o
zetético discurso teorético-explicativo de índole empírico-analítica e procedimental da
ciência moderna: as teorias são universais hipóteses explicativas operatório-
-metodicamente comprovadas e a explicação será a inferência dedutiva dessas teorias,
como explanans, para um concreto particular explanandum que se apresenta em certas
condições de facto – cfr. W. STEGMÜLLER, “Probleme und Resultate der
Wissenschaftstheorie und analytische Philosophie”, I, in Wissenschaftliche Erklärung
und Begründung, 72, s.).
) Ora, a teorética teoria do direito, que pretender ser teoria neste sentido, terá de
considerar-se o resultado evolutivo, e diferenciador, de outras teorias jurídicas que, a
partir do séc. XIX e com a intenção que sabemos, se começaram então a construir.
Referimo-nos às “teorias gerais do direito” (Allgemeine Rechtstheorie) que, produto do
positivismo jurídico de oitocentos, ainda hoje proliferam.
A “teoria geral do direito”, neste último sentido, propõe-se a determinação
teórico-conceituaL e sistemática da normatividade geral do direito – o seu objecto é
fundamentalmente o direito-norma, e pretende participar de certo modo ou a um certo
nível (ao nível já abstractamente generalizante, já analítica e criticamente formal-
-estruturante) na determinação global dessa sua normatividade. Pelo que podemos
considerá-la como o último estádio (o estádio justamente teórico-conceitual ou formal-
-estrutural, a ultrapassar o estádio normativo-doutrinalmente material) da dogmática
jurídica. É como que a dogmática levada à sua última abstracção e generalização ou à
sua constitutiva forma estrutural. Foram duas, com efeito, as suas direcções mais
características e importantes – ainda que a exigir a segunda, por sua vez, a diferenciação
dos dois sentidos diferentes que também assumiu. Assim, numa primeira direcção, há
que considerar a “teoria geral do direito” que levava à sua última sistematização as
“partes gerais” vs. “partes especiais” dos diversos domínios jurídicos, em ordem a
atingir também em geral os conceitos e os princípios dogmaticamente universais do
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direito positivo pressuposto. Tratava-se de uma teoria geral, com este conteúdo e
sentido, que se obteria por abstracção generalizante e indutiva do direito dogmática e
historicamente positivo – e podemos referi-la , entre outros, a MERKEL, BERGBOHM, etc.
Numa outra direcção, não já uma teoria condicionada por uma pressuposição
dogmática, mas universalmente teórica, tínhamos as teorias gerais do direito que
visavam os “conceitos jurídicos fundamentais” enquanto as estruturas e os conceitos
formais (as formas) de todo o direito possível – ou melhor, as estruturas conceitual-
-formalmente constitutivas do direito em geral. Só que agora ou segundo uma
perspectiva analítica ou segundo uma perspectiva crítica (crítico-transcendental ou no
sentido kantiano de “crítica”). Foram exemplares daquela primeira perspectiva a
Analytical School inglesa, com JOHN AUSTIN (Lectures on Jurisprudence or the
Philosophy of Positiv Law), e no continente a Juristische Grundlehre de SOMLÓ e a
Juristische Prinzipienlehre de BIERLING. Pretenderam todas elas elaborar a sua analítica
numa intenção positivo-empírica e a posteriori, quer a partir do direito positivo
historicamente determinado (em AUSTIN), quer inclusivamente numa base psico-
-sociológica (em SOMLÓ e BIERLING). E isso as distinguia das teorias gerais críticas
(transcendentalmente críticas), já que estas, orientadas que foram pelo neokantismo,
procuraram definir transcendentalmente e mediante distinções que se pretendiam
reflexivamente justificadas desse modo (fosse a distinção entre “matéria” e “forma” em
STAMMLER, fosse a distinção entre “ser” e “dever-ser” em KELSEN), os “conceitos
puros” e a priori do direito – o próprio conceito a priori do direito e o sistema das
formas conceituais puras do jurídico em geral. Era esse o sentido quer da Theorie der
Rechtswissenschaft de STAMMLER, quer as Reine Rechtslehre e Allgemeine Staatslehre
(na edição inglesa: General Theory of Law State) de KELSEN, e ainda a Allgemeine
Rechtslehre als System der rechtslichen Grundbegriffe de H. NAWIASKY, etc. O
objectivo comum de todas elas era o de garantirem um estatuto epistemologicamente
científico – o estatuto da “ciência” – ao pensamento jurídico, constituindo-o assim em
“ciência do direito” (quer num mediato intuito prático, como era o caso da teoria geral
dogmática enquanto a expressão última da Begriffsjurisprudenz, quer antes num intuito
estritamente teórico) e para que desse modo ele se pudesse equiparar, ou pelo menos
não se visse culturalmente diminuído – já o dissemos –, perante o paradigma da
validade cultural que o cientismo do tempo via exclusivamente na “ciência” (na ciência
positiva, decerto). Nesses termos, e em coerência com o positivismo jurídico de então,
se propunha ainda a “teoria geral do direito” superar a filosofia do direito. Pretensão que
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numa evolução posterior deixou de alimentar, tendendo inclusivamente para um outro


tipo de teoria geral de sentido epistemologicamente menos rigoroso, com uma índole
mista ou eclética em que concorriam simultaneamente o tratamento das concepções
filosóficas do direito, a determinação dos conceitos fundamentais (do direito, da norma
jurídica, do sistema jurídico, etc.), a teoria das fontes, mesmo a metodologia jurídica,
etc., e considerada, não sem ironia, a “filosofia do direito dos juristas” (sejam exemplos
as “teorias gerais do direito” de J. DABIN, de P. ROUBIER, de F. CARNELUTTI, de A.
LEVY, de J. L. BERGEL, etc.) e que no espaço da cultura jurídica anglo-saxónica
tradicionalmente se designava por “Jurisprudence”. Como quer que seja, todas elas se
tinham por teorias do direito, por teóricas determinações dele na perspectiva da sua
imanência – ou seja, explicitações das estruturas e categorias, dos conceitos e dimensões
constitutivos da própria juridicidade.
Com um outro sentido, mas retomando não menos radicalizada aquela pretensão
de superação da filosofia do direito, há que considerar a diferente teoria do direito
(Rechtstheorie) dos nossos dias. Teoria que não se nos oferece, todavia, de uma total
univocidade, pois nem a vemos rigorosamente determinada no seu “objecto formal”,
nem é única a perspectiva que a orienta (tanto se pretende analítica como dialéctica,
tanto teorético-sistemática como crítico-reflexiva, tanto objectivo-teórica como
funcional-normativa), nem unívoco o seu sentido (estritamente teorética ou
comprometidamente crítica?). Não obstante, poderá dizer-se que se caracteriza
globalmente por um conjunto de estudos tematicamente muito diferenciados que se
propõem a investigação, quer metadogmática, quer pré-normativa (rectius,
protonormativa ou constitutiva), quer crítica do direito e assim considerado este ou
como objecto ou como objectivo de um pensamento com um estatuto seja
epistemológica e funcionalmente teórico, seja reflexiva e dialéctico-ideologicamente
crítico. Estudos e investigação para os quais, portanto, o direito já não interessa como
“norma”, mas como fenómeno-objecto, como objectivo prático-social, como realidade
humano-político-social.
αα) É neste sentido que a “teoria do direito” – consideramos agora só o seu
sector definido por uma por uma intenção estritamente teorética, deixando para depois o
seu sector de intenção dialéctica e ideologicamente crítica – se considera como “an
independent science with a pattern of problems entirely autonomous" (BRUSIIN), com o
propósito fundamental de constituir a “ciência básica da ciência do direito” e mesmo de
assumir a tarefa de explicar e orientar os actos constitutivos do próprio direito, na sua
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estrutura, na sua índole e nos seus objectivos, de um modo cientificamente adequado.


Ou seja, através dela seria concebível e possível uma “teoria do direito justo como
teoria científica”. E daí que, na linha geral da superação da filosofia pela ciência, se
pudesse dizer também a filosofia do direito superada pela “teoria do direito”. Ter-se-ia
finalmente logrado o positivístico philosophiam delenda (HÄGERSTRÖM) e haveria de
proclamar-se, com DREIER: “a filosofia do direito morreu, viva a teoria do direito!”
A mais elementar, e mesmo a historicamente primeira, atitude neste sentido
encontramo-la na mera (e dogmática) exclusão da filosofia, querendo substituir-lhe uma
atitude exclusivamente teorética. Foi a atitude que programaticamente tomou, p. ex., a
Internationalen Zeitschrift für Rechtstheorie, em que participaram KELSEN e DUGUIT (o
positivismo crítico-neokantiano daquele e o positivismo empírico-naturalista deste). A
“teoria do direito” deveria ser exclusivamente teoria (ou metateoria) do direito positivo.
Tratava-se da concepção positivista da teoria do direito que tinha um paralelo ainda
mais radical (ao nível epistemológico) no “realismo escandinavo” da Escola de Upsala,
com base no prejuízo de um acrítico cientismo também positivista de todo análogo ao
do positivismo e empirismo lógicos do “Círculo de Viena”. Positivismo e cientismo
acríticos já hoje decerto insustentáveis, e excluídos inclusivamente pela epistemologia
dos nossos dias.
Mais importante, no entanto, do que essa atitude ultrapassada, é a que sustenta o
projecto de uma teoria do direito naquele outro sentido já referido: os mais importantes
problemas, inclusivamente os problemas práticos, que tradicionalmente têm sido
remetidos para a filosofia do direito – assim o problema do direito justo, o problema da
adequação e justeza histórico-social do direito –, podem e devem ser tratados
cientificamente (como estritos problemas, pois, da teoria do direito), já que seria
concebível e possível, repita-se, uma “teoria do direito justo como teoria científica”.
Seria possível esta teoria, porque a intenção constituenda daquele direito mostrar-se-ia
hoje susceptível de se submeter à exigência da “racionalidade ou cientificidade”,
mediante uma discussão linguístico-conceitualmente clarificada (i. é, segundo um
discurso intersubjectivamente livre, comunicativo e racional) e materialmente
informada – uma coisa e outra graças ao desenvolvimento das ciências relevantes,
linguísticas e lógicas, sociais e políticas, antropológicas e da informação-comunicação,
etc. E essa teoria possível devia ser a única sede da resolução do problema do “direito
justo”, porque só a cientificidade-racionalidade, com a objectividade e a
intersubjectividade que lhe são próprias, poderia justificar o vínculo jurídico em
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sociedades plurais e em Estados democráticos – que tanto é dizer que unicamente a


teoria (na sua cientificidade) poderia hoje fundar a prática (a prática jurídica) ao mesmo
tempo que se desempenharia de uma “eminente função política”.
Só que, dito isto, há que fazer várias distinções para eliminar um grave equívoco
de que enferma esta posição, e do qual ela tira afinal a sua aparente concludência. Pois o
que a posição em causa sustenta não é apenas que a prática há-de encontrar os seus
fundamentos numa reflexão racional – ou, de outro modo, que a prática não pode, nem
deverá dispensar a reflexão racional, se tiver de responder ao problema da validade.
Ponto que hoje ninguém discutirá. Afirma sim, para além disso, que a reflexão
indispensável à prática do direito se deverá traduzir, e será de obter, numa teoria,
tomada esta no sentido epistemologicamente rigoroso do termo – numa teoria do direito
teorético-cientificamente conseguida. O equívoco reside na imediata associação (ou na
acrítica identificação) entre cientificidade e racionalidade, partindo daí para postular que
aquilo que deverá obter-se ao nível da racionalidade (ao nível da reflexão racional e
cumprindo as condições formais do estatuto da racionalidade em geral) implica já por
isso uma intenção e um pensamento que cumprem o estatuto específico da cientificidade
estrita (o estatuto próprio da cientificidade teorética) – e se só a teoria do direito cumpre
este último estatuto, a ela competiriam os próprios fundamentos do direito (os princípios
do direito justo), devendo assim resolver-se hoje cientificamente aquele antigo
problema filosófico. O que não é de modo algum exacto: a racionalidade e a
cientificidade são categorias distintas; e se esta exige decerto aquela, aquela não se
cumpre exclusivamente nesta.
A racionalidade, como a expressão da argumentação discursivamente explicitada
e intersubjectivamente comunicante, é decerto o pressuposto e a condição necessária da
validade de “discursos” diferenciados. Tanto do discurso dedutivo como do discurso
dialéctico; tanto do discurso teorético como do discurso prático. Quanto a esta última
diferenciação – aquela que a nós mais directamente importa –, não pode hoje, com
efeito, ignorar-se a recuperação da distinção entre a “ciência” e a “prudência”
(PERELMAN, VIEHWEG, BALLWEG, HABERMAS, KRIELE, etc.), a especificar a prática (na
interacção) de significante comunicação relativamente à técnica ou às objectivas
operatórias empírico-analíticas (HABERMAS), e bem assim, paralelamente, o que
distingue a hermenêutica do puro teorético (GADAMER) – distinções que radicam, em
último e decisivo termo, na diferenciação e relativa autonomia, antropologicamente
verificada, da humana autodeterminação significante, a projectar-se prático-
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-normativamente, perante a também humana instrumentalidade estrutural-funcional


referida ao mundo empírico.
Ora, a “teoria do direito”, naquele seu sector que continuamos só a considerar,
ao propor-se incutir cientificidade ao direito e ao pensamento jurídico, não lhes exige
apenas racionalidade, tem-lhes como possível e exige-lhes o estatuto do discurso
teorético, em ordem a que o direito e a sua normatividade encontrem os fundamentos de
inteligibilidade e constitutivos em conhecimentos e investigações teorético-científicos.
É, pois, sobre esta tese – a inteligibilidade científica do jurídico é possível e tem a sua
base fundamentante e constitutiva no domínio científico-teorético – que importa
reflectir.
) E se começarmos por perguntar o que efectivamente nos oferece a teoria do
direito orientada por esse objectivo, temos de responder que há nela três linhas
principais. Em primeiro lugar, vemo-la a conjugar a pluralidade das disciplinas já
referidas – desde a lógica à sociologia, da linguística à antropologia e à criminologia, da
ciência política à teoria dos sistemas, da informação à cibernética, etc. – que, como
conhecimentos de dimensões constitutivas do direito e do próprio direito como
realidade social (dimensão linguística, dimensão antropológica, dimensão social, etc.),
concorreriam para a cientificidade da “ciência do direito” em sentido estrito. O que, sem
mais, já nos diz que nesse sentido não supera, nem reduz o pensamento da
normatividade prática especificamente jurídica. Basta atender a que esse modo de
considerar aquelas dimensões, e o direito como a sua síntese objectivo-constituída,
refere o mesmo direito já como factum socio-lógico, já como factum lógico e
linguístico, já como factum político, já como factum sistémico, etc., e que assim nos
oferece estudos-investigações sociológicas, lógicas, semióticas, políticas, etc., sobre o
direito (ou considerado o direito como objecto), mas não do direito enquanto tal (i. é, da
sua normatividade enquanto normatividade e com um sentido específico na
intencionalidade da razão prática) – tendo, por isso, de todo razão H. P. SCHNEIDER
quando, ao chamar a atenção para o que acaba de sublinhar-se, conclui estarmos afinal
perante uma “teoria do direito sem direito”.
Uma segunda linha da teoria do direito compreende-a sobretudo como uma
metateoria (ou metalinguagem) da ciência do direito – como “a consciência científica da
ciência do direito”, como “a teoria do conhecimento do direito”, etc. É a sua orientação
sobretudo analítica (linguístico-lógico-epistemologicamente analítica) e que apenas nos
poderá dar uma teoria da ciência do direito (ou uma lógica ou uma epistemologia
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jurídicas, no fundo). Decerto que esta linha de orientação é, no plano cultural geral,
expressão tanto da analítica distinção entre “linguagem-objecto” e “metalinguagem” em
todos os domínios (no domínio prático, p. ex., a distinção entre ética e meta-ética) como
um fenómeno mais daquele cientismo, dominante num amplo sector do pensamento
deste século. Só que no plano directamente jurídico, ao volver a atenção do direito,
enquanto tal, para o pensamento jurídico ou a “ciência do direito” preocupa-se mais
com o conhecimento do direito do que com o próprio direito (consequência de que não
estava imune e se pode mesmo considerar particular característica da “Teoria Pura do
Direito”). O que implicará um desvio grave, como que num seu efeito perverso, pois
com atenção apenas para a verdade do conhecimento do direito e do pensamento
jurídico como ciência, esquece-se da validade (da “justiça”) do direito enquanto tal e da
intencionalidade normativa do pensamento jurídico chamado a pensar a sua
normatividade de direito. Ponto este – e mesmo sem discutir a viabilidade de uma total
autonomia, particularmente no domínio do pensamento prático, entre a linguagem-
objecto e a metalinguagem (p. ex., a pretensa neutralidade teórica da meta-ética
verdadeiramente oculta o compromisso intencional e uma prévia tomada de posição
prática quanto ao sentido da ética-objecto, numa cripto-ética ou criptofilosofia) – que
podemos de momento deixar de lado, já que é suficiente considerar que para nós o que
está em causa, como específico objecto de referência, é o direito e não a ciência do
direito, o jurídico não do “ponto de vista do conhecer”, mas do “ponto de vista do agir”
(MAIHOFER), i. é, o direito como princípio prático e no domínio prático-normativo da
acção. Ou, querendo manter a referência à “ciência”, o que importa não é o jurídico na
epistemológica perspectiva de uma “ciência de conhecimento” (do direito-objecto), e
sim na prática perspectiva de uma “ciência de acção” (do direito como normatividade):
um pensamento, pretenda-se ele embora científico, do próprio direito (da intencional
constituição do direito como direito, do direito como dimensão normativa da prática, do
“direito justo”, etc.). Com efeito, o que se pergunta é se o problema do direito, enquanto
tal, é susceptível de ser resolvido cientificamente por uma teoria, e não em que termos
teorética e epistemologicamente correctos deverá entender-se a ciência do direito que se
postula existente. É neste sentido que W. KRAWIETZ sublinha, com razão, que “a teoria
do direito não é teoria da ciência dogmática do direito, mas teoria do direito” –
querendo deste modo sustentar que o problema (postuladamente teórico) desta teoria
haverá de ser o próprio problema do direito enquanto tal. Com o que somos postos
perante uma terceira linha de orientação da “teoria do direito”.
13

Aquela sua orientação e aquele seu entendimento que são afinal os decisivos, e
neste sentido: não se trata só de teorético-cientificamente estudar as dimensões
constitutivas do direito ou de epistemologicamente fazer a teoria do pensamento
jurídico como ciência (definindo a sua estrutura e as suas condições de cientificidade),
mas de teorético-cientificamente dar solução ao problema do direito, ao problema do
próprio direito. Só que nesta linha as perspectivas a considerar são várias.
Desde logo, atribui-se aí à “teoria do direito” a função de uma “teoria-quadro”
(Rahmentheorie) para o direito, e assim com o sentido de uma sua “teoria fundamental”
– já que seria nas coordenadas determinadas por essa “teoria-quadro” e tendo nelas a
sua base que o direito se podia e devia elaborar. Se interrogarmos, porém, esta
perspectiva quanto a saber de que teoria básica do direito verdadeiramente se trata – ou
melhor, de que projecto de teoria, pois os seus defensores não deixam de reconhecer que
ela ainda não existe –, apenas se obtém como resposta que será ela uma “teoria da
sociedade referida ao direito” (“Gesellschaftstheorie des Rechts”), uma investigação
“sobre a estrutura e a função do direito como fenómeno social”, ou porventura uma
consideração do direito com fundamento numa “teoria material da sociedade”. Em
último termo, portanto, uma teoria sociológica do direito – uma nova sociologização do
direito, ao fim e ao cabo. Desconsolador resultado este, pois há muito se sabe o que
podem e valem essas sociologizações: a socialidade do direito não permite só por si
compreender, nem reduz a sua normatividade, ao postular esta uma específica intenção
de validade transpositiva ou socialmente contrafactual e regulativa que lhe seja
normativamente constituinte. Se o social, na sua autonomia objectiva e referencial, é
condição estruturalmente constitutiva do direito, o normativo, na sua autonomia
fundamentante e regulativa, é a própria dimensão intencionalmente constituinte.
Estamos assim perante a “diferença entre sociedade e direito”, não obstante os seus
mútuos condicionamentos e recíprocas interferências, perante aquela “sociológica
diferença entre norma e factum”, justamente posta em relevo há muito e também, por
último e concludentemente, por MAIHOFER. Daí a concepção deste Autor, de uma
pluridimensional ciência do direito (ciência de acção e decisão) que, propondo-se ser
uma “teoria crítica do direito” ou uma “jurisprudência realística”, vemos pensada
todavia como “teoria para a prática” (a prática da constituição e da realização do direito)
chamada a garantir, numa particular articulação das suas dimensões sociológica,
dogmática, racional-analítica e filosófica, a racionalidade e intersubjectividade da
reflexão e argumentação materialmente jurídicas da jurisprudência (do pensamento
14

jurídico) em ordem a um “controle do direito com vista à sua última justeza


(Richtigkeit) humana”. E se perguntarmos agora qual a dimensão fundamental, aquela
em que se há-de procurar a ultima ratio da juridicidade assim constituída, não
surpreende que a resposta aponte para as “estruturas axiológicas do direito”, para a
“dimensão filosófica”, enquanto aquela dimensão que é chamada a assumir e a projectar
criticamente o regulativo de “humanidade” no direito, i. é, a orientá-lo para o seu último
e fundamentante sentido humano. Quer dizer, não obstante continuar a falar-se aqui de
“teoria do direito”, do que na verdade se trata é de um pensamento jurídico que, ao
procurar assimilar numa racional reflexão global a normativa intenção do direito, é
conduzido a reconhecer para este um fundamento último, não objectivo-teorético, mas
justamente prático-regulativo só possível a uma reflexão transobjectiva, i. é,
“filosófica”.
Uma outra perspectiva, aparentemente mais lograda, concebe
interdisciplinarmente a “teoria do direito”, num sentido estrito da interdisciplinaridade
(que está decerto já implícito na posição de MAIHOFER acabada de referir): como um
conjunto de distintas “disciplinas” teóricas não-jurídicas a integrar mediante uma
dialéctica orientada pelo objectivo específico do direito (pelo objectivo da sua
constituição e realização social). Assim, de novo se convocariam a antropologia, a
sociologia, a economia, a ciência política (e/ou “filosofia política”), a linguística, a
teoria da decisão e da comunicação, etc., em ordem a determinarem-se os elementos, e a
funcional adequação deles, que a constituição do direito e a sua projecção humano-
-social haveria de relevar e de que dependeria. Nesta utilização das disciplinas não-
-jurídicas, a “teoria do direito não decide – digamo-lo com M. v. HOECKE – sobre
(essas) teorias não-jurídicas, aproveita-as só como hipóteses de trabalho, como um
enriquecedor instrumentariam, com o qual o teórico do direito pode chegar a uma
compreensão da realidade jurídica mais profunda do que a que teria se o não tivesse
utilizado” – podendo inclusive essa interdisciplinaridade traduzir-se numa “colaboração
entre juristas e especialistas das outras disciplinas”. A teoria do direito, neste seu
entendimento e através daquela dialéctica integradora das diversas disciplinas teóricas
não-jurídicas, como que seria uma “disciplina de função fronteiriça”
(Grenzpostendisziplin), um “filtro selectivo”. Só que então um problema capital se põe,
o problema do critério regulativo daquela interdisciplinar integração ou desta selecção:
“o problema, como considera DREIER, do tratamento das informações” oferecidas pelas
disciplinas não-jurídicas com vista à (e na) constituição do direito. Que o mesmo é
15

perguntar: como converter o “telos fáctico” (ELLSCHEID) das informações não-jurídicas


no telos normativo próprio do direito? E logo se reconhecerá que à “teoria do direito”,
se quiser ela ser fiel a um estatuto estritamente teorético (teorético-científico), não lhe é
possível uma resposta. Pois só de uma pressuposta compreensão do sentido do direito,
do seu sentido prático-normativo específico, se logrará obter o exigível critério
regulativo numa intenção como que “protojurídica”. Poderá assim falar-se aqui de um
caso particular da naturalistic fallacy, já que quaisquer que sejam os seus factores
objectivos pressupostamente relevantes, antropológicos, sociais, estruturais, analíticos e
funcionais – aqueles que a teoria do direito estuda – o direito nunca deixa de referir uma
normatividade própria, que aqueles factores sem dúvida condicionam, mas não
determinam, nem em si nem no seu sentido último. Sendo certo que essa normatividade
é a expressão de uma prática intenção regulativa que, como tal, não só transcende numa
intencionalidade axiológico-normativamente valoradora a objectividade cognitiva dos
factores e das situações relevantes (nos seus pressupostos e nas suas dimensões, assim
como nos seus resultados funcionais), como só numa compreensão autónoma do seu
próprio sentido se pode constitutivamente fundar. A normatividade do direito é função
constitutiva do sentido do próprio direito – daquele sentido que a poiesis reflexiva
assume compreendendo-o e constituindo-o através desse mesmo sentido como direito.
Pelo que o juízo global a proferir sobre esta linha da teoria do direito será
análogo ao que a multiplicidade das ciências do homem, na sua pretensão igualmente
redutivista, mereceu de K. JASPERS: cada uma delas estuda um aspecto limitado do
homem e da realidade humana, mas todas elas no seu conjunto deixam intocado o
problema fundamental do homem, pois conhecendo-o apenas como objecto ou
analisando simplesmente os elementos objectivamente constitutivos que nele
concorrem, abstrai do que ele essencialmente é, aquele sujeito de “excêntrico” ou
extraponente transcender que auto-compreende o sentido de si e que só nessa auto-
compreensão, não objectivante, de sentido é verdadeiramente o homem sujeito da sua
humanidade. Também o direito é problema e tarefa que o homem poiético-
-autonomamente se põe: se decerto na consciência dos seus pressupostos, no
conhecimento dos seus condicionantes e das suas dimensões e na atenção aos sesu
efeitos, não é menos certo que a consideração apenas desses pressupostos,
condicionantes e dimensões e da responsabilidade funcional pelos efeitos não resolverá
só por si o problema específico que o direito constitui no contexto geral da prática
humana. A prática humana e o direito nessa prática só encontram o seu sentido e os seus
16

fundamentos, especificamente compreensivos e constitutivos, na transobjectiva reflexão


do homem sobre si próprio quando convocado à prática existência comunitária –
enquanto sujeito criticamente reflexivo dessa prática.
Foi, aliás, o reconhecimento do frustrante fracasso da teoria do direito, na
direcção que temos estado a referir e com aquele seu impossível objectivo, que a leva já
a substituir a intenção estritamente teorética (“teorético-científica”) por uma intenção
normativa (prático-normativa), em que o decisivo deixa de pôr-se em analíticos
objectivos e na explicabilidade teórica e passa a pôr-se na compreensão do sentido da
prática e das suas axiologia e teleologia. É neste sentido que se diz agora “a teoria do
direito como protojurídica” (F. O. WOLF), se lhe atribui uma índole “normativo-
funcional” (H.-P. SCHNEIDER) de carácter ateoreticamente prático e argumentativamente
assumido numa “utopia imanente” (G. ELLSCHEID), se vê pensada, sentido este já
aludido, na complexidade de uma pluridimensionalidade constitutiva orientada
decisivamente pela axiologia da autocompreensão pelo homem da sua própria
humanidade, enquanto uma “utopia concreta” (W. MAIHOFER), etc. Com efeito, é
transpondo para a teoria do direito o modelo da “prológica” pensada por PAUL
LORENZEN – enquanto o “operar esquemático” ou a “acção” apoiada em calculi (formais
factores modulares) que lograria justificar a validade das regras lógicas, as regras
logicamente “admissíveis”, mediante um “processo de eliminação” de regras ou
desenvolvimentos lógicos desnecessários para atingir a certeza conclusiva da inferência
– que F. D. WOLF propõe uma “protojurídica”, com o sentido de uma compreensão
crítico-sistemática da praxis jurídica e que se traduziria na análise e reconstrução dessa
prática com intenção crítica e justificantemente normativa (normativamente
constitutiva) – prática como “prática de diálogo” já que sobre uma prática deste tipo se
formaria toda a argumentação jurídica – e cujo “operar esquemático” mobilizaria
argumentos lógicos, argumentos dogmáticos e processuais e argumentos sociais numa
“situação de deliberação” (Beratungssituation) a vários níveis críticos e de justificação
(construtivo-imanente, construtivo-transcendente e metódico-imanente). E se a este
modelo simplesmente formal, posto tenha já a prática jurídica e as suas exigências
normativas específicas como pressuposto referente, o quisermos enriquecer de
dimensões materiais, a tanto servirá a teoria do direito normativo-funcional sugerida por
SCHNEIDER – entendida igualmente como “análise sistemática da global prática do
direito” – que se construiria sobre “três planos”: um primeiro plano da “investigação
dos factos do direito” (Rechtstatsachenforsung), a investigação desde HÜBER assim
17

designada sobre as acções e os acontecimentos juridicamente relevantes referidos às


suas causas e bases sociais, políticas ou económicas; um segundo plano da
“consideração axiológico-jurídica” (Rechtswertbetrachtung) ou o plano da ordenação
sistemática do material oferecido e simultaneamente da valoração filosófico-jurídica,
segundo a intenção normativa do direito (a sua teleologia material, a garantia da paz, a
justiça social, etc.), tanto daquele acontecer prático como das alternativas pensáveis; e o
terceiro plano de uma crítica jurídica concreta possibilitada pelos resultados obtidos no
segundo plano, e dirigida quer à normatividade quer à funcionalidade e praticabilidade
do direito, crítica que permitiria a definição de directivas e de orientações prático-
-jurídicas. E uma proposta análoga, embora analítica e reflexivamente mais rica, é a de
MAIHOFER, com o sentido que já conhecemos e onde a perspectiva da “utopia concreta”
de uma evolutiva e sempre aprofundada crítica assunção da humanidade do homem
seria a base construtiva de uma “ciência do direito”, dirigida não somente à reprodução
do direito, mas à sua “produção cientificamente preparada e orientada”, dirigida não à
“verdade para trás”, mas à “verdade para a frente”, ou, por outras palavras, ao “novum”
constituendo – teoria do direito como uma “realística jurisprudência” voltada para a
“interpretação crítica do direito e da sociedade e a sua produtiva alteração para o melhor
direito de uma sociedade humana”.
Simplesmente, se perante esta mudança de sentido da teoria do direito, de que as
propostas referidas são apenas exemplos, perguntarmos se com ela não fica afinal
logrado o que com o seu sentido estritamente teorético não era possível, a resposta terá
de ser negativa – e de uma dupla negatividade. Por um lado, tornou-se evidente a aporia
básica da teoria do direito e que desde o início a condenava ao fracasso: a teorética
teoria do direito só pode atingir o direito enquanto tal, e assumir a sua constitutivamente
específica normatividade prática, convertendo o puramente teorético numa
intencionalidade prática, que tanto é dizer anulando-se a si própria como teorética,
renunciando à essência teorética que era o seu objectivo. O teorético metanormativo que
pretenda assumir o normativo terá, pois, que escolher entre o abandono do normativo e
o abandono do teorético. Por outro lado, e como no último evolutivo desenvolvimento
referido da teoria do direito igualmente se manifesta, a “teoria do direito” só poderá
assumir a normatividade prática do jurídico com mutação da própria concepção da
“teoria”. Ora, é isto mesmo, como sabemos, que propõe a “teoria crítica do direito” –
por que, aliás, aquele referido evolutivo desenvolvimento se mostra já influenciado.
18

2) A teoria crítica do direito propõe-se assumir uma bem diferente racionalidade


científica, aquela que corresponderia à “razão crítica” no muito específco sentido que
lhe define a “teoria crítica” e que, projectado no pensamento jurídico, converteria este
justamente numa “teoria crítica do direito”.
α) A “teoria crítica” deve a sua origem à “Escola de Frankfurt” (aos membros do
Institut für Sozialforschung: HORKHEIMER, ADORNO, F. POLLOCK, W. BENJAMIN, E.
FROMM, MARCUSE, HABERMAS, etc.), “Escola” que, numa base marxista, teve uma forte
repercussão no mundo intelectual europeu e americano, consequência decerto de dois
factores principais: a sua base proclamadamente marxista – embora numa expressão e
desenvolvimento neomarxistas, se não mesmo como “uma variante dissidente do
marxismo” (F. COLOM GONZÁLEZ) – e a circunstância de os seus principais fundadores
aparecerem “como continuadores da grande tradição filosófica alemã e como críticos
intransigentes da cultura e da civilização burguesas actuais” (JEAN-MARIE VINCENT). O
seu modelo de reflexão era, com efeito, a “crítica da economia política” de MARX e a
sua consequência na “crítica das ideologias” (sobre este ponto de importância nuclear
no pensamento moderno que referimos, v., quanto a MARX, WOLF PAUL, Marxistische
Rechtstheorie als Kritik des Rechts, 1974, quanto à “crítica das ideologias” em geral, K.
MANNHEIM, Ideologie und Utopia, 5.ª ed.) – crítica da realidade histórico-social pela
denúncia da “ideologia”, da falsa legitimação dos interesses da classe dominante, que
simultaneamente constituía e ocultaria o verdadeiro sentido dessa realidade, Crítica
ideológica que a “teoria crítica” acabava também por ser e numa intenção de
transformação dessa realidade, assim denunciada na sua injustiça, no sentido de uma
sociedade humanamente mais justa em que fosse possível a “emancipação” (a libertação
e realização) de todos os homens, e assim uma vida humano-social isenta de dominação.
E “teoria”, porque também ela reivindica e se define num estatuto epistemológico que
lhe conferiria o carácter de cientificidade, que lhe garantiria o carácter de “ciência” que
também se propunha ser. E “crítica” não já, como expressamente acentuava
HORKHEIMER, no sentido da “crítica idealística da razão pura” (“crítica” em sentido
kantiano) e sim para designar “uma qualidade essencial da teoria dialéctica da
sociedade”.
Quanto ao estatuto epistemológico, reconhecem-se duas linhas, ou, melhor, duas
acentuações. A teoria crítica de expressão francesa e a por ela influenciada procuram
apoio na epistemologia de BACHELARD (v. La formation de 1'esprit scientifique:
contribution à une psychanalyse de la connaissance objective, 1934, especialmente
19

quanto aos “obstáculos epistemológicos”, e ainda La philosophie du non: essai d’une


philosophie du nouvel esprit scientifique, 1940 – há trad. port.): o conhecimento
científico faz-se em ruptura com o conhecimento comum, na procura reconstrutiva do
que este oculta, com denúncia e superação dos “obstáculos epistemológicos”, que
impeçam esse saber, o que só seria possível a um “racionalismo integral” ou, mais
exactamente, a um racionalismo integrante de índole dialéctica (assim, para a teoria
crítica do direito, M. MIAILLE, Une introduction critique au droit – Introduction e pp.
31, ss.; F. OST/M. v. de KERCHOVE, Jalons pour une théorie du droit, 13, 25, ss.; LUIZ
FERNANDO COELHO, Une teoria critica del derecho, in Estudios de Filosofia del
Derecho y Ciencia Jurídica, em Memoria e Homenaje al Catedrático dom Luis Legaz y
Lacambra, 11, 5, ss.). Nesses termos o objectivo seria “de faire apparaître l'invisible (...)
en suscitant ce qui n'est pas visible pour expliquer le visible”, pelo que o pensamento
crítico “se refuse à croire et à dire que la realité est enfermée dans le visible: elle sait
que la realité est en mouvement, c'est-à-dire que toute chose ne peut être saisie et
analysée que dans son mouvement interne; il ne faut donc pas abusivement réduire le
réel à une de ses manifestations, à une de ses phases (...) et spécialement dans les
sciences qui se proposent l‟étude des hommes vivant en societé” (M. MIAILLE, 17, ss.).
Enquanto a teoria crítica de expressão alemã, a verdadeiramente fundadora, como se
viu, e ainda geralmente inspiradora, procura a sua directa inspiração epistemológica em
MARX, e por sua mediação decerto também em HEGEL, com a acentuação fulcral de
quatro pontos.
1) Um deles, que diremos material e se reconhecerá como fundamental,
considera que a realidade básica a que toda a experiência humana, sem excluir nela a do
pensamento e a da ciência em geral, iria referível seria a realidade histórico-social, que
só em função dessa realidade lograríamos a verdadeira inteligibilidade de tudo o que ao
homem importa – apenas no real processo constitutivo e evolutivo da sociedade
histórica o homem poderia compreender a realidade humanamente relevante e para
todos os efeitos. O próprio logos, pensado “eterno” e absoluto pela cultura clássica,
seria expressão, uma modalidade da construção racional, da praxis social, e esta a
manifestação do histórico trabalho do homem. Assim como o homem, na sua existência
presente e na perspectiva do seu futuro, só na sociedade histórica e pela mediação do
desenvolvimento da sua praxis económico-social, que a política explicitamente
assumiria, chegaria à consciência de si próprio. Realidade essa, e nessa sua prática, que
se deveria considerar – aspecto muito a sublinhar –, não como um qualquer acervo de
20

“dados” ou “factos” a objectivar externamente pelo sujeito cognoscente, tal como a


entendia o positivismo e a sociologia tradicionais, mas como um todo de
autosubsistência histórica, a compreender na sua estrutura e na sua dinâmica como
constitutivamente global ou holística. Seria este todo, este global holístico, não apenas o
último e decisivo “objecto” de todo o conhecimento como inclusive o autêntico
“sujeito” da história.
2) Um segundo ponto, que as próprias estrutura e dinâmica deste todo holístico
já em si implicariam, poderá dizer-se lógico ou metódico e afirma o carácter dialéctico
dessa realidade e correlativamente do conhecimento que a pretenda assumir – termos
estes em que é manifesta a influência de HEGEL ainda que, de novo se diga, pela
mediação de MARX. A realidade, a lógica e o pensamento seriam agora dialécticos, e
assim estes dois últimos haveriam de referir aquela primeira “não somente no seu estado
actual, mas na totalidade da sua existência, e assim, tanto no que a tenha produzido
como no seu devenir”, num processo constante de forças contrárias e de contínua
dinâmica de realização e compreensão globais – e daí que o próprio pensamento se
houvesse de ver “não só lógico, mas igualmente um processo histórico-concreto”
inserido no todo dialéctico da praxis histórica.
3) Depois – e é o terceiro ponto, a dizer epistemológico-crítico – este
pensamento que desse modo conhecia na sua imanência dinâmica a realidade histórico-
-social e dela participava, não só revelava o que de humanamente inaceitável (inumano
e injusto) ela manifestasse na sua actualidade, nas condições da sua existência actual,
como seria simultaneamente “um estimulante factor de transformação” com o objectivo
“de uma sociedade futura enquanto a comunidade de homens livres”. Daí o sentido de
“crítica”, na sua dupla “valência”: crítica, porque teoria dialéctica que atinge e assume a
dinâmica constitutiva e transformadora da própria realidade humano-social; crítica,
porque, ao ser teoria nesses termos, revela o repudiável e é factor de superação
transformadora. “Teoria crítica”, portanto, e como agora melhor se compreende –
“teoria”, já que “o pensamento crítico torna-se a lógica de uma teoria científica”;
“crítica”, já que ela como tal e nas “categorias críticas” que lhe correspondem (“praxis”,
“sociedade”, “ideologia”, “alienação”) se mostra um “instrumento teórico com que se
constrói o futuro a partir do presente”.
4) O último e quarto ponto é negativo, de um confronto negativo com a “teoria
tradicional” (a teorética teoria moderno-científica) e para a considerar superada através
da recusa, que os pontos anteriores justificariam, de todos os seus dualismos: entre
21

pensar e ser – e em termos de se admitir que a realidade pensada seria um “exterior” ao


pensamento que a refere, quando o próprio pensamento pertenceria afinal ã própria
realidade a pensar, e que no pensamento só viria à racionalizada consciência de si
própria –; entre a dimensão ideal do pensar-conhecimento e a dimensão real-dada dos
factos a conhecer – se aquela dimensão seria expressão de uma praxis, os dados-
-factos seriam resultados construídos por essa prática –; entre saber e acção – como iria
implicado já nas duas superações anteriores, não haveria saber sem as exigências
determinantes da acção, acção social, nos fins visados e nas relevâncias procuradas –
ou, numa síntese global, entre “sujeito” e “objecto” e entre “teoria” e “prática” – o
sujeito seria uma particular manifestação da realidade constitutiva do objecto e
concorreria, por sua vez, a constituí-lo. A teoria e a prática haveriam de reconhecer-se
numa unidade fundamental, que seria a própria unidade da praxis histórico-social. Pelo
que – de novo se diga, já que o ponto é decisivo – a realidade seria de uma global
dialéctica constitutiva e a pensar-conhecer dialecticamente: a realidade holística e o
pensamento dialéctico (sobre tudo isto, v. especialmente HORKHEIMER, Traditionelle
und kritische Theorie, cit., passim).
Tanto basta para uma compreensão essencial da “teoria crítica”, na sua
especificidade e na sua diferença, prescindindo, quer de maiores desenvolvimentos
certamente enriquecedores (nesse sentido, v., por todos, os estudos de MARTIN JAY, La
imaginación dialéctica, Una história de la Escuela de Frankfurt, 1974, reimpressão de
1989; JEAN-MARIE VINCENT, La théorie critique de l’école de Francfort, 1976;
FRANCISCO COLOM GONZÁLEZ, Las caras del Leviatán, Una lectura política de la
teoria crítica, 1973), quer da polémica epistemológica que se abriu entre ela e a
epistemologia teórica, especialmente na linha popperiana ou do “racionalismo crítico” e
portanto já para além do estrito positivismo empírico-analítico (v., a este propósito,
HERMANN LEY/ THOMAS MÜLLER, Kritische Vernunft und Revolution, Zur Kontroverse
Zwischen Hans Albert und Jürgen Habermas, 1971; TH. W. ADORNO e al., Der
Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, 6.ª ed., 1978 - há trad. francesa sob o
título De Vienne à Francfort, La querelle allemande des sciences sociales), mesmo de
um global juízo crítico que a tivesse por objecto (citar-se-á com esse objectivo o ensaio
de MICHEL THEUNISSEN, Gesellschaft und Geschichte, Zur Kritik der Kritische Theorie,
1969), que nos obrigasse a uma consideração geral do marxismo, na sua particular
concepção materialista da história e da sociedade, da sua antropologia e da sua
gnoseologia (para uma revisão crítica de alguns destes pontos, ainda que numa
22

perspectiva criticamente neomarxista, v. J. HABERMAS, Erkenntnis und Interesse, Mit


einem neuen Nachwort, 1979; v. ainda, para uma análise crítica da antropologia
marxista e a implicada concepção da cultura, CASTANHEIRA NEVES, A revolução e o
direito, in Digesta, I, 92-141).
Não prescindiremos, todavia, quanto a esse juízo global, desta observação
crítica, a apontar para uma contradição iniludível: a teoria crítica, no seu criticismo
radical, postula acriticamente um conjunto decisivo de pressupostos que são a sua
verdadeira base de sustentação, os pressupostos afinal do marxismo que ela, explícita ou
implicitamente, faz sem mais ou dogmaticamente seus; o que impõe se conclua que a
possibilitar e a dar sentido, específico sentido, à sua crítica está manifestamente um
dogma (aquele dogma que em tempos RAYMOND ARON pôde dizer, não sem ironia
justificada pela particular atitude da intelligentzia francesa do tempo, que era “L’opium
des intellectuels”; cfr. também para a denúncia de um dogmatismo na “teoria crítica”,
M. THEUNISSEN, ob. cit., 28, ss.).
De mais directo interesse para nós é a consideração, também crítica, da
projecção dessa “teoria crítica” no pensamento jurídico ou da sua pretensão de definir
uma “teoria crítica do direito”.
) Propõe-se ela trazer também para o universo jurídico, tanto no modo de ver e
pensar o direito como na sua mobilização transformadora e de concreta realização, o
sentido e o objectivo característicos da teoria crítica em geral. Daí os seus pontos mais
salientes e que serão sobretudo os seguintes.
Uma crítica desmitificante ou “desconstrutora”, e em recusa epistemológica, do
pensamento jurídico e da “ciência do direito” tradicionais: põe-se em causa a sua
pretensa axiologia e as suas categorias, que se traduziriam como que em “fórmulas
mágicas” (v. R. WIETHÖLTER, Rechtswissenschaft, 1970 – com trad. italiana sob o título
justamente Le formule magiche della scienza giuridica; MICHEL MIAILLE, Une
introduction critique au droit, cit.; e ainda em geral o Critical Legal Studies Movement,
a referir a seguir), denunciando em termos não menos radicais as suas pretensões de
objectiva validade e de justiça, e bem assim a falta de uma sustentável racionalidade de
fundamentação, a ilusória existência de uma pressuposta ordem axiológico-normativa
legitimante e fundamentante assim como as “contradições fundamentais” do seu
pseudo-sistema autónomo com as tácticas ideológicas e as sempre variáveis
justificações ad hoc, o que permitiria afirmar uma básica irracionalidade do direito em
geral, dominado em todos os níveis pelo jogo apenas dos interesses e dos seus poderes -
23

tudo isto em que se poderá ver a síntese da crítica do Critical Legal Studies Movement,
de origem e expansão norte-americana e a que voltaremos. A inserção do direito no todo
da realidade histórico-social, globalmente considerada nos termos holístico-dialécticos
(e metodologicamente de uma interdisciplinariedade integrante) que já sabemos, para
ver nele uma expressão particular, mas de modo análogo ao antes aludido quanto à
ciência e à cultura em geral, da praxis histórico-social e que, por isso mesmo, só essa
praxis permitiria entender, do mesmo passo que ofereceria a perspectiva unicamente
válida da sua crítica. Crítica que se orienta num sentido todo ele crítico-ideológico, a
partir da qual se assume um outro e expressamente proclamado compromisso
ideológico-político (repúdio e superação da sociedade burguesa e defesa de uma
“ideologia progressista” que tem o socialismo como modelo) e que apontaria o
objectivo, “prospectivo” e transformador, a impor à juridicidade, o objectivo da
“emancipação” enquanto critério da “sociedade justa”. O que implicaria já uma “ciência
do direito” política e um “jurista político” (WIETHÖLTER), chamados a fazer assimilar
aquele compromisso ideológico-político na própria dogmática e no sistema jurídicos (v.,
p. ex., THOMAS WILHELMSSON, Critical Studies in Private Law, A Treatise on Need-
Rational Principles in Modern Law, 1972); já mesmo um “juiz político”, i. é, um juiz
que “tomasse partido”, que orientasse as decisões concretas no sentido daquela justiça
emancipadora, servindo-se embora até onde fosse possível das virtualidades e das
indeterminações da metodologia jurídica dominante – é este o expresso propósito de
uma das linhas da “teoria crítica do direito” que a si mesma se designa por “teoria do
uso alternativo do direito”.
) Tudo o que será retomado e melhor analisado criticamente ao considerarmos
o funcionalismo político, em todas as suas modalidades (“teoria crítica” do direito em
geral, Critical Legal Studies, Uso alternativo do direito) enquanto uma das expressões
do funcionalismo jurídico. Basta agora dizer-se porque não podemos fixar-nos nesta
alternativa da “teoria do direito”, sem minimizar embora a importância de alguns dos
seus contributos. Com efeito, no objectivo principal de negar a autonomia do direito,
fosse essa negada autonomia ontológica, axiológico-cultural ou outra, e assim de
recusar “o direito em si da dogmática tradicional”, para o ver de todo funcionalizado à
globalidade da praxis histórico-social, enquanto apenas, ou quando muito, na bem
relativa autonomia da super-estrutura ideologicamente explicável e genético-
-determinantemente redutível, a “teoria crítica” oscila, desse modo, entre um
sociologismo holístico (holismo de todo análogo ao que vemos próprio da sociologia
24

global ou da “sociologia de profundidade” proposta, p. ex., por G. GURVITCH, La


vocation actuelle de la sociologie, I, 66, ss., ao convocar o “fenómeno social total”; e
que, entre nós, está também presente no “projecto social global” invocado por
ORLANDO DE CARVALHO, Jus-quod justum?, 10, ss., na linha da teoria crítica) e uma
politicização radical na sua consideração do direito, com sacrifício da compreensão da
sua normatividade enquanto tal, no sentido constitutivamente específico que lhe
corresponde, acabando por vê-lo tão-só como implicação social ou factor e instrumento
político. O que nos diz que a excessiva preocupação pelo todo integrante, e apenas
globalmente pensado, dificilmente evita o resultado que diremos de dissolução das
“essências”, i. é, a indiferenciação no global todo da especificidade de tudo; assim como
se reconhecerá que, antes da genética explicação e da final redução, há que
compreender primeiro na sua manifestação específica o que se pretende explicar e
reduzir depois. Pelo que é indispensável compreender o direito qua tale, ou seja na
normatividade constitutiva dele como direito – e a essa normatividade nos seus também
constitutivos pressupostos culturais, na sua intencionalidade normativa, no tipo da sua
racionalidade e no seu modelo operatório e de realização: no seu corpus, no seu telos
prático, na sua ratio e no seu modus operandi. Uma tal compreensão será
metanormativa, embora vise atingir a constitutiva imanência normativa; reflexiva,
porque assim imanentemente reconstitutiva, e nessa reflexividade também crítica, num
duplo sentido – no sentido transcendental de “crítica” (explicitante das condições de
possibilidade e constitutivas) que acaba por confundir-se com aquela reflexibilidade (e
que nesses termos se distingue do sentido de “crítica” da teoria crítica, tal como se
distingue o transcendental explicitante das condições do dialéctico de uma dinâmica
integrante), e no sentido mais comum do juízo ponderador, que, aliás, é possibilitado
pela própria reflexividade, já que ao reconhecer-se, nos termos indicados, o que dará
sentido constitutivo e operacional à normatividade do direito, fica-se em condições de
ajuizar sobre o seu verdadeiro sentido e assim sobre o que nela é ou não sustentável,
sobre o que a determinou e já não poderá porventura determiná-la, considerado que seja
nesse seu sentido implícito e nas suas consequências (sentido este de “crítica” que já se
aproxima do também segundo sentido da crítica praticada pela “teoria crítica”).
A esta metanormativa compreensão da normatividade por que se manifesta o
direito, designamo-la teoria crítica-reflexiva do direito – e será ela o objecto deste
curso.
25

b) Posto o que não é dificil definir a topografia desta teoria do direito no


universo das disciplinas jurídicas – e com isso confirmar o seu interesse no sillabus
cultural e universitário referido ao direito.
Assim, da dogmática jurídica (ou da comum “ciência do direito”, com todos os
domínios nela diferenciados, do direito privado ao direito público, do direito penal ao
direito processual, etc.), de uma intencionalidade prático-normativa – é a normatividade
jurídica, na especialização que lhe determinam os valores, os princípios e a teleologia de
cada um daqueles domínios, e na sua característica intenção hermenêutica sistemático-
dogmática, prático-judicativa e prático-realizanda, que aí se assume – distingue-se a
teoria do direito, no sentido indicado, pela sua intencionalidade de metanormativa
consideração da juridicidade em geral, assimilada directamente pela dogmática, com o
objectivo, já não imediatamente positivo-normativo que à dogmática corresponde, mas
de crítico-reflexiva compreensão dessa juridicidade em referência à concepção ou
concepções que lhe determinam o seu sentido e ao pensamento que a pensa – sabendo-
-se que são aquelas concepções que intencionalmente a constituem e é este pensamento,
como pensamento jurídico, que a projecta prático-normativamente. Pelo que se poderá
dizer que a perspectiva de normativa juridicidade, que é a pressuponente
intencionalidade da dogmática, se volve em objecto de crítica reflexibilidade na teoria
do direito.
Da teoria do direito se haverá de distinguir, por outro lado, a já hoje
autonomizada política do direito – autonomizada também como uma disciplina
particular e diferenciada por uma específica intencionalidade, embora sem unanimidade
quanto à definição dessa especificidade. Por “política do direito” em geral, entende-se a
intenção e a determinação do “direito ideal” ou do direito socialmente mais conveniente
(seja mais justo, seja socialmente mais justificado, seja praticamente mais oportuno,
etc.) e assim numa intenção prático-regulativa e programática – a implicar tanto uma
crítica reformadora do direito constituto como um projecto inovador de iure
constituendo – mediante a postulação dos objectivos práticos (valores e fins) que o
direito se deveria propor e simultaneamente a determinação técnica (técnico-jurídica)
para os realizar em termos normativa e institucionalmente adequados e eficazes. Ou,
numa formulação mais sintética, mas não menos ambiciosa, à política do direito
competiria “o esforço para a criação de uma ordem jurídica nacional e internacional
através de regulações jurídicas óptimas” (EIKE v. HIPPEL, Rechtspolitik, Ziele, Akteure,
Schwerpunkte, 1972). Política do direito que não se identificará com a política tout
26

court, embora possa resultar, e resulta efectivamente as mais das vezes, da conversão de
um projecto ou programa político geral aos limites e aos esquemas jurídicos – até
porque a elaboração de uma “política de direito”, particularmente a sua elaboração
sistemática, pressupõe e orienta-se sempre por um certo modelo de sociedade e tem
presente uma ideia de posição e função que o direito deverá ter nela. Anotar-se-á ainda
que a política do direito é pensada segundo diversas orientações predominantes. Ou com
uma índole mais científico-tecnológica, como uma “tecnologia social” (à concepção do
próprio direito e do pensamento jurídico como tecnologias sociais teremos ocasião de
voltar) de base psico-sociológica -v., assim, MARIA BORUCKA-ARCTOWA, Die
gesellschaftliche Wirkung das Rechts, I Teil, 20, ss.) –; ou, com uma índole de forte
dimensão axiológica, num compromisso com uma tábua de valores político-jurídicos e
político-sociais gerais a conjugar embora, numa perspectiva integrante, com particulares
objectivos práticos e técnicos (p. ex., uma técnica da legislação que teria de optar entre
o regulativo geral ou a casuística) – v. assim, L. LOMBARDI VALLAURI, Corso di
filosofia del diritto, 1981, 7 e passim, onde se discriminam a integrar “uma política do
direito cientificamente fundada”, a) “a elaboração crítica de uma tábua de valores
técnico-jurídicos gerais, i. é, uma filosofia”; b) “a elaboração crítica de uma tábua de
valores técnico-jurídicos específicos, necessários para a tradução do discurso político
em discurso de política do direito”; c) “a análise metódica do conteúdo social no qual
irão actuar aqueles valores, i. é, uma sociologia” –; A. ROSS, Diritto e giustizia, trad. it.
de G. GAVAZZI, 309, ss.; EIKEN v. HIPPEL, ob. cit., 18, ss., 44, ss. –; ou também de
índole crítica-ideológica, que acaba por confundir-se com uma teoria crítica do direito.
Por outro lado, não desconhece também uma tendência de especialização – é, p. ex., de
todos conhecida a actualmente insistente referência à “política criminal ou penal”.
Nem poderá deixar de referir-se ainda a filosofia do direito, a distinguir tanto da
dogmática e da teoria do direito como da política do direito – embora se reconheça que
muitos dos modelos da teoria do direito, quer na perspectiva teorética, quer na
perspectiva crítica, nem sempre claramente se diferenciem da “filosofia do direito”, ou
melhor, o que esses modelos acabem verdadeiramente por ser são filosofias do direito.
É certo que a filosofia em geral, e decerto também a filosofia do direito, se tornou
fortemente problemática no nosso tempo, já quanto à validade do seu sentido
tradicional, já quanto à sua temática, já quanto à índole da sua reflexão, etc. – daí que o
problema de “o fim da filosofia” (HEIDEGGER) e a exigência de “a transformação da
filosofia” (K.-O. APEL), se não mesmo o seu “sem-sentido” (CARNAP) ou a sua
27

superação pela terapêutica de análise da linguagem (WITTGENSTEIN) tenham passado


para a ordem do dia cultural. O que não invalida que se possa dizer, e para nós neste
momento é o que bastará, que a intencionalidade da filosofia do direito será, não
prático-normativa como a da dogmática jurídica ou prático-regulativa e programática
como a da política do direito, tão-pouco crítico-reflexiva como da teoria do direito, mas
reflexivo-especulativa – nem de uma imediata intenção prático-normativa, nem a
esgotar-se numa explicitação reflexiva da juridicidade que permita porventura um juízo
crítico, nem marcada por uma intenção de crítica ideológica ideologicamente orientada
que culmina num projecto político, mas uma reflexão que interroga, na intenção de um
último esclarecimento cultural, sobre o sentido do direito no mundo humano e para o
homem. Ou com o único interesse prático, mas fundamental, que resulta do
conhecimento que o homem obtenha de si próprio e da sua existência no mundo
histórico, e de que afinal, tudo o mais dependerá. (Para uma consideração da distinção-
-conexão entre dogmática jurídica, teoria do direito e filosofia do direito, posto que em
termos não inteiramente coincidentes com os que foram enunciados, v. T. H. VIEHWEG,
Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und
Rechtsdogmatik, in Estudios Jurídico-Sociales, Homenaje al Professor Luis Legaz y
Lacambra, I, 211, ss.; e também o ensaio já citado de ARTUR KAUFMANN,
Rechtsphilosophie, Rechtstheorie, Rechtsdogmatik, loc. cit.).
Uma palavra também sobre a metodologia jurídica: se a teoria do direito
resultou, como vimos, de uma certa disputa com a filosofia do direito numa tentativa de
superação, a metodologia jurídica autonomizou-se também da filosofia do direito numa
especialização análoga à que se verificou com a lógica perante a filosofia em geral; e
hoje pode considerar-se a metodologia jurídica como um ramo particular da teoria do
direito, embora mais próxima do pensamento jurídico stricto sensu, pois aquela
metodologia mais não é do que a auto-reflexão que este pensamento, enquanto
pensamento chamado à judicativa realização do direito, faz de si próprio.
E para sermos completos, no elenco das disciplinas do universo jurídico-cultural
terão de considerar-se também decerto a história do direito e a sociologia do direito. Só
que, quanto a elas, nada de particular há a convocar para o ponto que nos importa, a
autonomizante definição da teoria do direito.
28

2. A opção e o objecto do Curso

a) Justificado nos termos antes expostos, a uma “teoria do direito”


compreendemo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-reflexivamente
metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da
juridicidade, e do pensamento que o pensa. Sabendo-se que entre aquelas concepções e
práticas e este pensamento há uma unidade de incindível circularidade e que o direito,
na sua realidade histórica, não é senão a manifestação histórico-cultural dessa unidade:
o direito, como fenómeno humano-cultural que é, encontra como que a sua epifania na
objectivação de uma certa concepção de juridicidade na prática que a assume; e
objectivação (“o direito”), na concepção que intencionalmente a constitui e na prática
que objectivamente a realiza, só se torna explícita, numa sua auto-consciência, no
pensamento jurídico, o pensamento que especificamente a pensa; além de que é nessa
explicitação, ou no pensar do pensamento jurídico a juridicidade que a intencionalidade
desta encontra afinal a sua última determinação constitutiva.
Com o que fica também dito qual é verdadeiramente o objecto desta teoria
crítico-reflexiva do direito: o seu objecto não é o direito, como que hipostasiado num
em si e por si, mas as concepções práticas que o manifestam e os pensamentos que o
pensam, pois só na unidade histórico-cultural entre aquelas e estes o direito vem à sua
existência, à sua objectivação real e pode, já por isso, ser “objecto” de uma reflexão
teórica que nessa objectivação o queira compreender.

b) Na actual situação problemática do direito e do contexto cultural geral, com


toda a sua complexividade estrutural e a pluralidade das dimensões intencionais, são
reconhecíveis diversas perspectivas de consideração da juridicidade, com particular
acento no compromisso prático da sua realização. Daí que se nos imponha a
diferenciação dessas diferentes perspectivas, numa analítica determinação
compreensiva, através de uma sistemática explicitação crítica dos respectivos sentidos
constitutivos e dos seus modelos operatórios.
Só que, sabemos que o complexo é uma pluralização desenvolvida e uma
articulação sobredeterminada do simples. Pelo que a redução ao simples, sendo decerto
condição de coerência – previnem-se as ambiguidades e são denunciáveis as
anfibiologias –, não é menos pressuposto de concludência – o resultado é sempre
29

função, na sua viabilidade e na sua validade, do fundamentalmente constitutivo. É ainda


isso elementar exigência de propedêutica clareza: importa saber do que exactamente se
fala e como nisso de que se fala vai implicado o que se deve falar. É o que se propõem –
redução ao simples, tentativa de clareza – as análises que aqui se oferecem a diferenciar
as perspectivas (o mimetismo intelectual levar-nos-ia a dizer “paradigmas”) pelas quais
se oferece hoje a juridicidade. Fá-lo-emos referindo três perguntas, as três mesmas
perguntas a cada uma dessas perspectivas possíveis e diferentes, perguntas às quais elas
respondem diversamente, e por isso mesmo se diferenciam. As perguntas são: 1) com
que sentido ou de que modo intencionalmente constitutivo visam o direito e, em
consequência desse sentido e desse modus, em que termos fundamentalmente o
objectivam e compreendem?; 2) com que categoria ou categorias de inteligibilidade o
pensam e o determinam?; 3) como, em corolário operativo das respostas dadas às duas
perguntas anteriores, se estruturam metodologicamente, i. é, segundo que modelo
metódico o realizam e actuam?
Essas perspectivas – se quisermos considerar só as que no nosso tempo são
verdadeiramente relevantes e efectivamente convocáveis – são três: o normativismo, o
funcionalismo e o jurisprudencialismo.

Outras perspectivas diferentes tiveram a sua época. Assim foram


famosos e todos recordam os “três tipos do pensamento jurídico”
caracterizados por CARL SCHMITT, o “normativismo”, o “decisionismo”
e o “ordinalismo concreto” (Über die drei Arten des
Rechtswissenschaftlichen Denkens, 1934), e durante muito tempo
também os juristas se dividiram entre o “normativismo” e o
“institucionalismo” (cabendo neste último decerto a “ordem concreta”,
mas ainda todo o pensamento do direito como “instituição” – HAURIOU,
G. RENARD, DELOS, mesmo FORSTHOFF – e como ordenamento – SANTI
ROMANO). Assim como não são menos significativas as distinções, quer
de HERMANN KANTOROWICZ entre o “formalismo” e o “finalismo” ou a
“orientação finalista” do pensamento jurídico (v. Die Epochen der
Rechttswissenschaft, reproduzido por G. RADBRUCH, in Vorschule der
Rechtsphilosophie, 3.ª ed., 63, ss.), quer de ALVARO D‟ORS entre o tipo
dos juristas “ordenancistas” e o tipo de juristas “judicialistas” (v. in
Escritos varios sobre el derecho en crisis, 1973, 35, ss.). Sem excluir
ainda a distinção, que se oferece como o pano de fundo obrigatório, entre
o “jusnaturalismo” e o “positivismo jurídico”, a que terá de acrescentar-
-se já no nosso século o “realismo jurídico”. Decerto que todas estas
distinções são justificadas e referem linhas de compreensão e de
orientação do pensamento jurídico em toda a sua história, mas propondo-
-nos nós menos enunciar uma analítica completa do que ser actuais,
estamos em crer que a distinção em que nos fixámos é aquela pela qual
30

hoje as opções sobretudo se definem e os efectivos compromissos de


assunção e de realização do direito ou de praxis da juridicidade se
identificam e se reconhecem. Iremos comprová-lo – dizendo desde já
que, p. ex., o institucionalismo, com a sua oposição ao normativismo e
também ao estadualismo, cedeu hoje o lugar ao funcionalismo, sem que
com isso tenha decerto desaparecido o fenómeno e mesmo a
indefectibilidade da institucionalização, só que agora não em si ou
afirmando-se a instituição como um subsistente e antes vendo-se
também ela funcionalmente compreendida; e que o jusnaturalismo,
persistindo embora no quadro das reflexões da filosofia do direito, já não
é determinante e está mesmo definitivamente superado na prática
jurídica, e por uma razão última e decisiva: o essencialismo, qualquer
forma ou modalidade de essencialismo, é teoricamente insustentável (é
errada em teoria) e praticamente negado (é incompatível com o sentido
próprio da praxis), mas sem que desta conclusão se possam pensar mais
justificados ou o positivismo ou o realismo jurídicos. Depois, no
desenvolvimento explicitante da distinção que iremos considerar não
deixam de cruzar-se e de serem convocados no relevo que importe
muitas das distinções que ficaram aludidas.
Já outras distinções nos parecem menos relevantes, quer porque
não logram atingir o que de mais importante caracteriza a distinção que
enunciamos, quer porque estão longe de a poder substituir. Assim, p. ex.,
a distinção que MIGUEL REALE faz na sua consideração das fases que se
haveriam de reconhecer no direito moderno (Nova fase do direito
moderno, 1990, 93, ss.): uma primeira fase a corresponder à concepção
formal-exegética e conceitual-sistemática do direito – que, todavia, é só
uma das manifestações do normativismo, e sem a possibilidade de bem o
caracterizar –, uma segunda fase, que teria sido simultaneamente de
marcada perspectivação sociológica e de socialização do direito – e que
afinal mais não foi do que um momento percursor do funcionalismo, o
qual, implicando decerto uma socialização, veremos ter ido muito além
de um simples sociologismo –, e uma terceira fase, que seria a actual, em
que convergiriam a “descodificação ideológica”, a electrónica e
cibernética, a “jurisprudência da valoração” – o que, sendo exacto, é
certamente muito fragmentário e insuficiente para uma acabada
compreensão das perspectivas que hoje concorrem no pensamento
jurídico e que só a contraposição entre normativismo, funcionalismo e
jurisprudencialismo é susceptível de acabadamente atingir. Assim como
não será muito diferente o que havemos de dizer da caracterização de “os
modelos da ciência do direito” enunciada por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ
JR. (A Ciência do direito, 2.ª ed., 1986, 47, ss.), a distinguir uma
concepção analítica, uma concepção hermenêutica e uma concepção
empírica da ciência do direito ou do pensamento jurídico e que
pressuporiam, respectivamente, também diversas concepções
antropológicas, um homem “dotado de necessidades” que revelariam
interesses e a exigir a “sistematização de regras para a obtenção de
decisões possíveis”, um homem referido ao sentido ou para o qual o agir
tem significado e visa “um sistema compreensivo do comportamento
humano”, um homem “como um ser dotado de funções” e que entenderia
“o pensamento jurídico como um sistema explicativo do comportamento
31

humano enquanto conformado por normas”, concepções antropológicas


que implicariam assim, e ainda respectivamente, uma ciência do direito
como “teoria da norma”, como “teoria da interpretação” e como “teoria
da decisão jurídica” – é certo que a consideração dos pressupostos
antropológicos é da maior importância em qualquer entendimento da
juridicidade, mas a concepção analítica não se entenderá senão no quadro
mais compreensivo do normativismo, a concepção hermenêutica foi
sempre dimensão da dogmática jurídico-normativa em qualquer tempo e
é tópico que se reconhece, embora com alguma nuance, tanto no
normativismo como no jurisprudencialismo e não é capaz de distinguir e
caracterizar o que a diferenciação entre estes dois últimos implica, e a
concepção empírica se convoca e funcional em geral, e remete à
“decisão”, em sentido próprio, não é susceptível só por isso de nos fazer
entender o modo particular, de um muito específico e complexo
compromisso funcionalista, que depararemos no funcionalismo jurídico
dos nossos dias.
32

CAPÍTULO I
O NORMATIVISMO

a) O normativismo é uma das modalidades do objectivismo jurídico, e, dentro


deste, do cognitivismo normativo jurídico, que se tornou particularmente explícita e
dominante a partir do pensamento jurídico moderno, embora já insinuado, se é que não
terá mesmo obtido uma primeira expressão, no pensamento de legibus hermenêutico-
-lógico e abstracto-normativo e construtivista, dos juristas medievais e do direito
comum (sobre este ponto, v. E. EHRLICH, Die juristiche Logik, in Arch. f. civ. Praxis,
113, 172, ss.).
Em todo o objectivismo jurídico o direito vai pressuposto como objecto. Como
uma entidade objectivamente subsistente ou um “ente” (seja social, seja normativo-
-cultural) – e que, já por isso ou enquanto desse modo se postula como um “em si”
pressuposto, admite a interrogação (e a discussão) sobre o seu ser ou o seu modo-de-ser
– a interrogação “o que é o direito?” – e exige uma determinação conceitual, uma
denotação significante que se enuncie no seu conceito em resposta àquela interrogação.
Pode todavia especificar-se esse objectivismo, consoante a índole intencional da
sua referência for normativa ou empírica. Teremos um cognitivismo normativo, se o
direito-objecto for entendido segundo uma objectividade normativa, com uma
pressuposta normatividade e no sentido específico desta: um sentido de dever-ser ou
regulativamente “contra-factual”. Teremos um cognitivismo empírico, se o direito-
-objecto se postular num qualquer modo-de-ser empírico ou “factual” (“Law as fact” –
OLIVERCRONA): como uma factualidade psicológica, sociológica, inclusivamente
linguística (empírico-linguística) – embora esta última, através do prescritivismo que
predominantemente dá conteúdo a essa linguística factualidade, não deixe de certo
modo de pertencer também ao cognitivismo normativo-jurídico, pois se o direito é
empírico nos “factos linguísticos” da sua manifestação, é normativo (prescritivo) na
significação que esses “factos” exprimem.
O cognitivismo empírico em sentido estrito exclui-se decerto do normativismo –
é o caso do legal realism ou o “realismo jurídico americano” (v., por todos, G.
TARELLO, Il realismo giuridico americano, 1962; G. CASTIGNONE, Il realismo giuridico
33

scandinavo e americano, 1981). Ainda que possamos considerar um normativismo


empírico, posto que normativismo heterodoxo e mesmo anómalo, naquelas posições que
continuam a identificar o direito com “normas” (ou, talvez melhor e num sentido mais
amplo, com “prescrições” e “imperativos”), mas as têm, não como entidades de uma
específica racionalidade em que subsistam como normas e para o serem – característica
que iremos ver própria do normativismo stricto sensu e dominante – mas como
entidades também elas empíricas ou susceptíveis de uma tal redução empírica – é o que
se verifica justamente em OLIVECRONA, ob. cit., e em geral no “realismo jurídico
escandinavo” (v. S. STROMHOLM/H. VOGEL, Le “réalisme sandinave” dans la
philosophie du droit; J. BJARUP, Skandinavischer Realismus; W. KRAWIETZ, Juristische
Entscheidung und Wissenschaftliche Erkenntnis, 133, ss.; cfr. V. H. KEUTH, Probleme
des Normbegriffs, in ARSP, B. 13, 47, ss.
Dito isto em geral, há, porém, de considerar-se de modo especial dois pontos: 1)
o cognitivismo normativo-jurídico não é unívoco; 2) e só de uma particular
especificação desse cognitivismo resultou o normativismo.

1) Pode-se, desde logo, considerar um cognitivismo normativo apenas virtual


(ou imperfeito) naqueles pensamentos jurídicos em que concorre com a afirmada
intencionalidade objectivo-cognitiva uma marcada, e em último termo
fundamentalmente constitutiva, dimensão jurisprudencial. Assim, a referida e
pressuposta normatividade jurídica foi postulada como um comunitário consuetudo
sócio-cultural tanto pelos romanos como pela common law. Recorde-se, para os
primeiros, PAULUS, D. S0, 17, s.: “Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est
regula fiat” (sublinhe-se quod est); para a segunda tenha-se presente a tese, que por
muito tempo subsistiu e nunca deixou de discutir-se, do carácter só declarativo e não
criador-constitutivo do case law, apesar da sua criação jurídica “de facto” ser
indesmentível, e em termos de sempre se proclamar, embora com a oposição de HOBBES
e de BENTHAM, a “razão” (right reason), a “natureza das coisas” (“nature of the things”)
e a “experiência” (“experience”) como os verdadeiros fundamentos-fontes do common
law – “law is right reason”, “law is reason since it is experience” (O. WENDEL), “a
razão é a vida do direito, e assim a common law não é outra coisa que razão” (COKE).
Pressuposição que, todavia e como bem se sabe, só jurisprudencialmente (casuístico-
-decisoriamente) nos romanos e judicialmente na common law se ia manifestando e
explicitando – daí que para a segunda se pudesse dizer, com MAINE, que “the fact is that
34

the law has been whally changed, the fiction is that it remains what it always was”. Pelo
que se poderá dizer, afinal, que os dois pensamentos a que nos referimos, o romano e o
da common law, se pretendiam ser intencionalmente cognitivos, efectiva e juridicamente
caberão melhor no jurisprudencialismo que infra consideraremos especificamente.
Aliás, o postulado de uma objectiva e pré-subsistência do direito, a permitir um
intencional cognitivismo, foi uma característica originária e secularmente mantida – não
decerto por acaso, mas pelas razões que irão ser aduzidas – no pensamento jurídico
tradicional. Foi assim também, por exemplo, que na concepção pré-moderna da própria
lei sempre se tendeu a ver nesta uma função normativo-jurídica declarativa – v. O
instituto dos “assentos”, 514-519; para uma confirmação, v. agora MARIA DA GLÓRIA
F. P. DIAS GARCIA, Da Justiça administrativa em Portugal, Cap. I. O cognitivismo
normativo jurídico tornar-se-ia, no entanto, expresso por diversas formas. Já como a
expressão de uma essencial ou ontológico-substancial normativa institucionalidade
inferível de uma humano-social “natureza das coisas” (no ontológico-metafísico
jusnaturalismo clássico) ou de uma racional “natureza do homem” (no onto-
-antropológico jusnaturalismo moderno); já como uma cultural objectivação textual que
hermenêutico-dialecticamente, e no contextual horizonte daquele clássico “direito
natural” que a recta ratio convocava, se convertia numa dogmática (no pensamento
jurídico medieval); já como sistema normativo-dogmático que racional-
-axiomaticamente se deduzia, i. é, se “descobria” (no pensamento jurídico moderno); já
como pressuposição histórico-cultural em que se manifestava um comunitário
Volksgeist (na Escola Histórica); já simplesmente como positivas prescrições
legislativas de um poder politicamente legitimado para as criar e impor (no legalismo
pós-revolucionário); etc.
Cognitivismo normativo esse, não obstante toda esta diversidade de
determinações, que persistiu dominante até quase aos nossos dias, ainda que durante
séculos – pode dizer-se, até ao “científico” positivismo jurídico do séc. XIX – como
quadro de inteligibilidade e fundamento de uma filosófica razão prático-jurídica
dogmática e jurisprudencialmente constitutiva na sua função explicante, e só a partir
daquele positivismo identificado como o projecto epistemológico de uma também
positivística "ciência do direito" estritamente hermenêutico-dogmática. E tem a explicá-
-lo decerto factores múltiplos ao longo dessa sua larga história, de que destacaremos
apenas três, porventura os mais relevantes.
35

α) O sentido, na nossa cultura histórica, da inteligibilidade, tradicionalmente


objectivo-referencial e a convocar o Ser como o último e decisivo fundamento – sentido
em que a força do legado grego é evidente – e por isso o pensamento válido unicamente
aquele que de algum modo levasse referido um objecto (um ser-objecto) que
entitivamente seria. Sendo certo que já no nosso tempo, com BRENTANO e HUSSERL,
através da categoria da “intencionalidade”, se diria a referencialidade como a própria
estrutura constitutiva da consciência – referencialidade que o actual pensamento
analítico (analítico-linguístico) tão insistentemente considera – e profundamente analisa.
Isto, em primeiro lugar. Como foi nesses termos que milenarmente se entendeu que
pensar era conhecer, que conhecimento e pensamento se identificavam e que a
consciência (antes de ser só consciência ou “pura” razão em DESCARTES) era cognitiva,
segundo o esquema estrutural sujeito-objecto. Esquema em que sempre algo como
objecto ia pressuposto ou postulado e só seria pensado, validamente pensado, mediante
o conceito (modo da sua representação inteligível, i. é, da sua assimilação-determinação
racional). Pelo que o pensamento se deveria dirigir sempre à verdade (seria esse o valor
capital). A inteligibilidade definia-se pela verdade ou sendo verdade. E assim em todos
os domínios da razão, tanto da razão “teórica” como da razão prática. A epistéme, o
ideal epistémico no seu sentido greco-aristotélico, deveria orientá-las a ambas – nem foi
outro o sentido fundamental da tentativa do “direito natural”. E se é certo que em
divergência quanto à unicidade da dialéctica filosófica dirigida à verdade essencial da
eidos que PLATÃO opunha aos sofistas, ARISTÓTELES diferenciava a teoria-epistéme da
praxis-phronésis e admitia nesta a retórica, não o é menos que, podendo porventura
ver-se nisso só uma concessão, pelo reconhecimento aí dos limites de razão-verdade, o
ideal ético-antropológico continuava a ser veementemente a theoria, o conhecimento
puro (Ética a Nicómaco, 1, 4, X, 7). Por isso no “comentário” de S. TOMÁS,
distinguindo-se também a razão teórica e a razão prática, ambas vêm a convergir numa
intenção comum à verdade – na razão prática, a verdade dos seus últimos princípios
fundados na iluminação da criatura, que a sindéresis assimilava e a “razão” enquanto tal
era chamada a explicitar-determinar (v. O instituto dos “assentos”, 498 ss.). Assim
como é em termos de ciência da verdade absoluta enunciada pelo conceito determinante
da ideia, e em todos os domínios da fenomenológica manifestação e realização do
Espírito, que também em HEGEL – em intencional superação dos limites que, pelo
contrário, KANT já tinha reconhecido à razão teórica e da sua compreensão da razão
prática a culminar, não em verdades, mas em exigências condicional-postuladamente
36

transcendentais – se afirmava o sentido e a tarefa da filosofia, do pensamento final e


decisivo.
) Em segundo lugar, a ciência epistemologicamente específica que o
pensamento moderno instituíra e que no séc. XIX, já na sua estrita concepção
positivista, sucederia a (ou substituiria) HEGEL. Pensamento esse de “ciência” que,
extrapolando um cientismo que atingiria o nosso século, de modo diferente – não já
filosófico, antes justamente antifilosófico – continuava a identificar o pensamento
culturalmente válido com o conhecimento, ainda que agora o conhecimento científico:
conhecimento de um objecto positivamente pré-suposto para uma conceitualização e
explicação metodicamente sistemáticas. Factor que esteve já presente, embora com
influência também de KANT em SAVIGNY, na sua concepção da Rechtswissenschaft e de
toda a Escola Histórica e na sucessiva dogmática pandectística, assim como havia
sobretudo de ser determinante quer para o anglo-saxónico empirismo jurídico-analítico
de um AUSTIN, quer para o projecto epistemológico da Reine Rechtslehre, quer para o
objectivismo jurídico-empírico de todas as orientações psico-sociológicas da “ciência
do direito”, quer para a intenção teorética da teoria do direito, etc.
) Em terceiro lugar, o factor político que terá de ver-se no legalismo do Estado
pós-revolucionário, a implicar o direito exclusivamente como o dado legal, o normativo
objecto positivo postulado pela legalidade, assim referido enquanto o direito “que é”,
não como o direito que “deve ser” (distinção já explícita também em AUSTIN), e que foi
a base do positivismo jurídico – a versão “científico”-jurídica de um objectivismo
normativo- jurídico estritamente positivista.
E uma conclusão capital se haverá de tirar e importa sublinhar, numa reiterante
caracterização global dessas diversas expressões do cognitivismo normativo-jurídico:
através dele postulava-se que a juridicidade pertencia à razão teórica e se determinaria
em termos de verdade – o direito seria algo que se oferecia objectivamente e como tal
seria acessível a um conhecimento: numa objectividade ontológico-essencial ou
antropológico-natural, numa objectividade sócio-cultural e/ou histórico-cultural, numa
objectividade positiva, e para um conhecimento, respectivamente, teórico-especulativo,
jurisprudencial e dogmático, científico-analítico.

2) No quadro do cognitivismo normativo se especificaria o normativismo


jurídico, e para essa especificação foi, por sua vez, determinante a convergência de um
complexo de factores.
37

Pode dizer-se muito em geral que o normativismo é aquela perspectiva que


compreende o direito como um autonomamente objectivo e sistemático “conjunto de
normas” – não como um complexo casuístico de decisões concretas, não como uma
aberta e judicativo-doutrinal jurisprudência normativamente constitutiva, não como uma
determinável e estruturante instituição, etc. –, e nos termos exactos em que a resposta à
segunda pergunta melhor explicitará. Ora, só a particular conjugação de um bem
característico fenómeno histórico-cultural, como primeiro antecedente – o romanismo
medieval –, com um certo tipo de racionalidade – a racionalidade moderna assimilada
pela razão prática – e ainda com um determinado projecto político – o projecto político-
-jurídico já do estatismo jurídico, já do legalismo contratualista e dos Estados de
legalidade – possibilitou essa sua específica autonomização.
α) Com efeito, ter-se-á de ir atrás e ver o embrião do normativismo, naquele seu
sentido geral de referência do direito a prévias normas jurídicas vinculantes que o jurista
só haveria de conhecer e dedutivamente aplicar – tomadas de momento “normas”,
“prescrições”, “regras”, etc., como sinónimos – no pensamento jurídico medieval
romanista e do direito comum, em ambos os casos posto que aí ainda não de todo
explícito e menos ainda sistematicamente elaborado. Ofereceu-nos um contributo
concludente nesse sentido E. EHRLICH, na sua Die juristische Logik, já cit., p. 172, ss.
Aí se mostra que no romanismo medieval e do direito comum se formaram três
ideias novas para toda a história do direito até então e que constituíram os elementos
básicos do normativismo: a ideia de que o direito se manifestava ao jurista inteiramente
já dado numa objectivação normativa expressa, em primeiro lugar; que essa
objectivação pressuposta o era de uma totalidade absoluta de regras ou normas jurídicas,
em segundo lugar; que ajuizar e decidir juridicamente se traduzia na aplicação lógica
(dedutiva) dessas normas ou regras prévias a casos ou interesses particulares, em
terceiro lugar.
A primeira ideia era a própria expressão do modo como os juristas de então viam
os “livros do direito romano” e da importância que atribuíam à recepção deste – “O
pensamento determinante da recepção do direito romano, formado por inteiro segundo o
espírito medieval, era o de que o direito todo estaria contido sem lacunas nos livros
romanos do direito” (pág. 176). O que bem se compreende, se tivermos presente que, na
linha do “princípio da autoridade” que informava o espírito da cultura medieval, o
corpus iuris civilis era, tal como a Bíblia para a teologia, o “texto de autoridade” por
38

excelência para o jurídico. Texto que o direito canónico, no corpus iuris canonici, e o
direito estatutário só complementariam.
A segunda ideia foi o resultado de uma certa perspectiva e de um particular
tratamento dogmático desse direito postuladamente dado nos seus textos de autoridade,
e em que o direito como que se revelaria em último termo, posto que sob o modus de
norma ou regra quanto ao entendimento da juridicidade, como um doutrinal “direito de
juristas”: se o direito romano legado e recebido se constituíra como um direito de
actiones, em paralelo à constituição da common law mediante a concessão de writs – e
assim dirigido à tutela de interesses e controvérsias bem determinados e
especificamente concretos em que os aspectos materiais e processuais entre si se não
diferenciavam –, só uma abstracção generalizante desses critérios jurídicos permitiria
que eles pudessem ser invocados para interesses e controvérsias diferentes daqueles a
que iam originariamente referidos e com que outras sociedades e outro tempo histórico
passaram a confrontar os juristas. Abstracção generalizante que estes realizaram
autonomizando justamente a dimensão material dos momentos processuais, ou o critério
jurídico-material, enquanto tal, do caso ou possíveis casos a que pudessem aplicar-se, e
isso através de uma doutrinal reelaboração constitutivo-dogmática que concluía por ver
nesses critérios regras gerais, i. é, normas jurídicas.
A terceira ideia foi um simples corolário metódico-jurídico das duas ideias
anteriores, pois o direito pressuposto não era agora um conjunto delimitado de meios
concretos de tutela jurídica que permitia, e exigia, por essa sua mesma limitação, uma
ampla actividade jurisprudencial autónoma, era antes uma totalidade de normas
jurídicas, regras materiais abstracto-gerais – totalidade que se postulava virtualmente
completa na definição do direito e normas que assim se haviam sempre de convocar
como fundamento das decisões concretas, ao mesmo tempo que essas decisões deveriam
resultar da aplicação dedutiva desses fundamentos normativos gerais.
Deste modo e por todas estas razões, poderá ainda concluir-se, com EHRLICH,
que “pela primeira vez se depara à humanidade que todo o direito é composto
exclusivamente de normas jurídicas” e se fixaria ainda “o pensamento, dominante até
aos dias de hoje, de que uma decisão judicial que não seja obtida através de uma norma
jurídica nada mais será do que puro arbítrio” (p. 177, ss.). Sendo essa a “lógica
jurídica”, que tanto é dizer o modelo da racionalidade jurídica desde então adquirida.
E todavia, sem deixar de ser tudo isto exacto, há um ponto mais, de não menor
importância, para que importa chamar também a atenção. Trata-se do modo-de-ser
39

textual que, a partir igualmente da Idade Média, o direito assumiria ou se passou a


entender ser o modo essencial da sua manifestação. É que, com ser o direito texto ou
sendo dado em textos, o cognitivismo do pensamento jurídico não só adquiriu uma
intencionalidade hermenêutica (antes que imediatamente judicativo-decisória), como
tenderia necessariamente a estruturar-se de modo lógico (lógico-analítico e construtivo)
orientado por uma regulativa sistematicidade – o texto enquanto tal é, ou objectiva, uma
intencional significação implicante de uma auto-constitutiva coerência (v., por todos, D.
BUSSE, Recht als Text, 41, ss.: “a coerência como critério da textualidade”) –, ainda que
o “sistema” possa não ser efectivamente atingido ou não logre uma expressa
objectivação. E foi o ficar aquém de uma sistematicidade explícita e objectivamente
enunciada o que, na verdade, se verificou no romanismo medieval e do direito comum.
E isso porque a dimensão hermenêutica prevaleceu sobre o lógico-sistemático, mesmo
se ao serviço daquela se viu mobilizada a dialéctica escolástica. O pensamento jurídico
foi então, com efeito, hermenêutico-filológico com os glosadores e hermenêutico-
-dogmático (ou hermenêutico-construtivista) com os comentadores e com os juristas de
todo o direito comum. Hermenêutico-dogmático nestes últimos dois casos e ainda de
uma última intenção jurisprudencial (recorde-se o mos italicus) no seu esforço prático
da extensio continuamente exigida por um direito-texto formado de elementos diversos,
com um grande déficit de coerência e cada vez mais lacunoso com o desenvolvimento
dos tempos. Um pensamento jurídico, pois, que compreendia o direito como um
complexo de normas ou regras abstracto-gerais (o direito como lex e o jurista um
legista), a obter de textos jurídicos trabalhados em termos hermenêutico-
-dogmaticamente jurisprudenciais – pensamento jurídico que se dirá, assim, um
normativismo hermenêutico-dogmático.
) Mas em breve o pensamento jurídico se afirmaria num normativismo
sistemático explícito, em que a própria dimensão jurisprudencial se perde e a índole
hermenêutica de todo se secundariza, ao assimilar também ele a razão moderna, a
sistemática racionalidade moderna. Reproduzimos a este propósito o que em outra
oportunidade já escrevemos: “Com um primeiro impulso no humanismo – a proclamar a
libertação dos valores e a recuperar, contra a ontológico-predicativa dialéctica
aristotélica, o racionalismo clássico, tanto do idealismo platónico como do idealismo
estóico –, o sistema de pensamento que o homem moderno instituiu do séc. XVI ao séc.
XVIII radica o seu fundamento último no postulado da sua própria autonomia:
rompendo com a pressuposição de ordens sociais “naturais” e transcendentes – fosse a
40

ordem ético-ontológica da polis, fosse a ordem histórico-política da civitas, fosse a


ordem teológica-política da respublica christiana –, o homem moderno volve-se para si
próprio, postulando como valores decisivos os valores da sua plena realização temporal
e como fundamentos únicos, do seu saber e da sua acção, a razão e a experiência. Razão
cuja objectividade se viria a identificar com a sua subjectividade do principium
reddendae rationis em LEIBNIZ e que seria transcendentalmente constitutiva em KANT.
Ou seja, e em geral, a razão não seria já razão material (a intelligere o ser heterónomo) e
judicativa, no horizonte da ordinatio natural, mas a razão auto-fundamentada nos seus
axiomas ou verdades criticamente primeiras e sistematicamente constituinte nos seus
desenvolvimentos dedutivos (a razão cartesiana e base também da ciência moderna,
galileica ou físico-matemática e empírico-analítica). Não foi, na verdade, com outra
base antropológica e noutra perspectiva cultural que de GRÓCIO a PUFENDORF, LEIBNIZ,
CD. WOLFF e tantos outros se construíram sistemas de direito natural – mantendo-se
embora a expressão clássica, o sentido era agora bem diferente, pois tratava-se
verdadeiramente de um jusracionalismo (v., por todos, F. WIEACKER, ob. cit., 249 e ss.)
– elaborados a partir de evidências ou axiomas antropológicos (a “natureza do
homem”), em termos axiomático-sistematicamente deduzidos, e que se dualizavam
perante o direito positivo. E se, quanto a este último direito, se continuou no essencial a
metódica hermenêutica e dogmática do romanístico ius commune, o certo é que aquele
direito natural, que do direito positivo se distinguia como um direito superior, passou a
ser compreendido já como princípio e modelo, já como o último horizonte hermenêutico
do próprio direito positivo e não era outro, no fundo, o sentido do cânone, ao tempo
divulgado, da interpretação do direito positivo segundo a “recta razão”. Assim, o
jusnaturalismo ou jusracionalismo moderno, enquanto implicava que no “direito
natural” se haviam de procurar os fundamentos normativos da juridicidade, fazia, por
um lado, com que o direito se compreendesse em último termo como filosófico-
-especulativamente constituído – o direito como que era ele próprio uma filosofia
(decerto uma filosofia prática) – por outro lado, o pensamento jurídico ou a “razão
jurídica”, ao assimilar a axiomática razão moderna, tornou-se, como esta, um
pensamento ou uma razão sistematicamente dedutiva; por outro lado ainda, o direito
deste modo constituído e pensado adquiriu a índole de um sistema de normatividade
lógico-sistematicamente enunciado em proposições lógico-normativas (normas) que
permitiam e suscitavam um tratamento analítico-dedutivo. O direito passou a ser um
sistema de normas que se havia de cumprir positivamente numa legislação sistemática,
41

numa codificação – sabe-se como o pensamento jurídico moderno-iluminista culminou


efectivamente na codificação. Em conclusão, não já um conjunto de decisões
prudenciais ou sequer um sistema de critérios dogmáticos exegético-doutrinalmente
elaborados, mas um sistema lógico de normas a prescrever ou prescritas – o direito
como um sistema axiomaticamente enunciado de normas e o pensar juridicamente como
o analítico deduzir de soluções dessas normas. Tal foi o normativismo que o
pensamento jurídico moderno e a respectiva metódica instituíram.”
) A estes dois factores, que podemos considerar sobretudo de índole cultural,
afirmados em épocas diferentes – a textualidade do direito assumida numa hermenêutica
lógico-dialecticamente jurisprudencial, na Idade Média e na sua sequência do direito
comum, a racionalidade sistemática da juridicidade determinada pela razão moderna –,
há que acrescentar dois outros factores já mais directamente políticos (político-
-jurídicos), ainda que também eles potenciados por movimentos culturais: por aquele
mesmo racionalismo jurídico-sistemático de modernidade, um deles, e pelo
contratualismo iluminista liberal, o outro.
Referimo-nos, respectivamente, à codificação do “despotismo esclarecido”, que
foi a primeira projecção político-legislativa daquela moderna racionalidade jurídica
sistemática, e à legalidade (ao princípio da legalidade) dos novos Estados de legislação,
que foi, por sua vez, a projecção revolucionária ou pós-revolucionária daquele
contratualismo. Ambos foram a expressão da estadualização do direito através da sua
identificação à legislação, posto que a legislação de um Estado absoluto que assumia a
modernidade, num caso, e a legislação de um Estado demo-liberal, representativo e
estruturado segundo um princípio de separação de poderes, no outro caso. Trata-se de
fenómenos bem conhecidos, mas para cuja consideração se podem ver, por todos, G.
TARELLO, Storia della cultura giuridica moderna, I, Assolutismo e codificazione del
diritto, 1976, para o primeiro, e o nosso artigo Escola da exegese, in Enc. Polis, II,
1032, ss., para o segundo. E o que importa acentuar é que deste modo o normativismo –
o direito é um sistema de normas enunciado previamente para uma eventual “aplicação”
sucessiva e futura, subsistente no próprio sistema normativo dessa enunciação e assim
de uma juridicidade autónoma da sua concreta realização – só se viu reforçado ao
tornar-se assim um normativismo prescrito, não apenas um normativismo
metodicamente construído ou intencionalmente pensado, mas imperativamente imposto.
42

b) O normativismo não se constituiu, no entanto, só nesses termos, apenas com


esta resposta à primeira pergunta das três que formulámos. Para a sua acabada
formação, e muito particular especificação, concorrerá decisivamente a resposta à
segunda pergunta, resposta através da qual ele como que virá à explicitação e à
consciência de si próprio: que categoria ou categorias orientaram a sua inteligibilidade
do direito e pelas quais, consequentemente, ele assumiria a sua racionalidade e se
determinaria a si próprio?
α) Neste ponto, a resposta começa por ser inequívoca: o direito constituir-se-ia e
manifestar-se-ia mediante normas e deveria ser pensado como norma.
αα) “Norma” decerto enquanto objectivação de uma normatividade –
considerada esta no sentido preciso já atrás enunciado. Só que esse sentido pode ser
tomado em termos amplos e em termos estritos. Em termos amplos, abrangerá as
“prescrições”, as “regras morais”, as “leis”, etc., i. é, as proposições praticamente
regulativas (cfr. G. KALINOWSKI, Le problème de la verité en morale et en droit, 155,
ss.), mas sem deixar de exigir a sua distinção dos imperativos – embora também o possa
ser ou possa ter em imperativos a sua origem –, assim como não admitirá a sua confusão
simplesmente com “regra” – posto igualmente não lhe esteja excluído operar como tal.
“Norma” em sentido estrito implica uma intencional e constitutiva racionalidade
– norma é ratio, uma ratio que a sua normatividade assimilaria e ela exprimiria. Mostra-
-o, aliás, a história do direito e do pensamento jurídico, e fê-no-lo bem compreender
CARL SCHMITT (Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens, 1934, 13,
ss.): essa racionalidade exprimiria uma impessoal e objectiva normatividade (enquanto a
“decisão” já seria “pessoal” e a “ordem concreta” “sobrepessoal”), a permitir assim
porventura dizer-se que só a norma (norma-lex), não o poder ou os homens, dominaria
(teria força vinculante ou obrigaria) e naquele mesmo sentido que o clássico nomos
basileus exprimia. Sentido este em que lex seria já o único, já o último rex, e que ia
também ou foi retomado na aspiração fundadora dos constitucionalistas americanos a
um government of law not of men.
O que só poderá pensar-se se essa impessoal e objectiva normatividade tiver um
constitutivo fundamento também objectivo, que tanto é dizer subtraído quer ao arbítrio
decisório, quer à contingência finalística e à oportunidade estratégica. E podem referir-
-se, e têm sido referidas, três modalidades desse fundamento objectivo.
1) A objectividade sociológica da situação “normal” ou do tipo “normal” de
comportamento que a norma pressuporia e no fundo apenas exprimiria, se a sua
43

normatividade afirmasse a normalidade das situações e dos comportamentos como


padrões normativos (critérios de validade) das situações e dos comportamentos da
mesma índole (sobre este ponto, v., retomando a posição de DURKHEIM, Leçons de
Sociologie – Physique des moeurs et du droit, 1950; H. LÉVY-BRUHL, La morale et la
science des moeurs, 1955; ID., Aspects Sociologiques du Droit, 1961; e também CARL
SCHMITT, ob. cit., 22, s., embora na linha do seu ordinalismo; para uma consideração
crítica e a excluir decerto a possibilidade desse tipo do racional fundamento da norma,
v. H. KELSEN, Allgemeine Theorie der Normen, 3., s.). As normas jurídicas seriam
afinal um certo tipo das “normas sociais” (sobre estas últimas normas, v., por todos,
GREGORIO ROBLES, Sociologia del Derecho, 80, ss.).
2) A objectividade ontológica, onto-antropológica, mesmo axiológica (cultural-
-axiológica) referida, já à essencial teleologia constitutiva do Ser e dos entes, já à
intencionalidade normativa da concreta “natureza das coisas”, já à prático-teleológica
“natureza do homem”, já a uma axiologia culturalmente ou fenomenologicamente
pressuposta, etc., de que as normas deveriam ser explícitas determinações – tal como
acontecia em todas as modalidades do jusnaturalismo e bem assim em todas as
posições, já não necessariamente jusnaturalistas, que em termos especulativamente
filosóficos afirmam a “verdade” dos “juízos morais e jurídicos” ou a possibilidade do
“conhecimento prático” (“conhecimento intelectual prático”) enquanto “o conhecimento
[de normas] dirigido à acção do homem” (v. neste sentido, G. KALINOWSKI, ob. cit.,
passim, afirmando analogamente a norma como “um juízo” – ao contrário do que se
passaria com o “imperativo”, que já o não seria –, pois que exprimiria “um
conhecimento efectivo do espírito objectivo”, do objectivo espírito axiológico-
-normativamente comunitário; v. também VLADIMÍR KUBEŠ, Die Rechtsnorm, in
Theorie der Normen, Festg. f. O. Weinberger z. 85. Geb., 409, ss., e passim).
3) A objectividade, não sustentada por fundamentos “transcendentes”, como nos
dois casos anteriores, mas por um fundamento “imanente”, ou por uma veritas
constitutivamente imanente em que a racionalidade normativo-jurídica se manifestaria
como que em si mesma ou numa sua autoconstituição – será assim sempre que a
normatividade jurídica pensa a sua validade a sustentar-se numa unidade e
consistência/coerência sistemáticas, ou em termos de ela se afirmar autoconstituída pela
racional sistematicidade da própria normatividade.
Podendo, no entanto, esta auto-racionalidade ser considerada em dois sentidos
diferentes ou mais em sentido formal e lógico-sistemático, com acentuação assim da
44

consistência (da validade como consistência) e em que a estrutura da normatividade


seria uma estrutura sobretudo lógica (lógico-normativa) – posto que a distinguir ainda
aqui uma formal consistência lógico-sistemática ou de sentido dedutivo
(axiomaticamente dedutivo, a partir de axiomas ou premissas-fundamentos postulados)
de uma outra de sentido puramente sintáctico, na qual a consistência sistemática será
garantida pela sua própria estrutura ou apenas pela sistematicidade enquanto tal. Ou
mais em sentido materialmente intencional e fundamentante, se não mesmo
razoavelmente argumentativo, com acentuação por sua vez da coerência (da validade
como coerência) e em que a normatividade exprimiria regulativamente um todo de
material intencionalidade normativa. O exemplo mais acabado de um normativismo de
auto-racionalidade por consistência, e consistência axiomaticamente dedutiva por
referência a uma Grundnorm, temo-lo decerto no normativismo sistemático de KELSEN
(Reine Rechtslehre, 2.ª ed.; Allgemeine Theorie der Normen, 1979; há a considerar
também J. RAZ, The concept of a legal system, 1970, e CARLOS E.
ALCHOURRÓN/EUGENIO BULYGIN, Normative Systems, 1971; e com particulares
especialidades estruturais e analíticas, cite-se ainda HART, The concept of law, 1961,
com trad. portuguesa, 1961). Exemplo do normativismo de auto-racionalidade por
coerência – que tende a privilegiar-se, na actual reflexão sobre a racionalidade
normativo-jurídica, como pode ver-se, e por todos, em N. MacCORMICK, Legal
reasoning and legal theory. 1978, ID., Coherence in legal justification, in Theory of
Legal Science, ed. p. A. PECZENIK e outros, 1984; A. AARNIO, Denkenweisen der
Rechtswissenschaft, 1979; ID., The rational as reasonable – A treatise on legal
justification, 1987; A. PECZENIK, On law and reason, 1989 – diremos que o oferece
todo o positivismo dogmático (o “positivismo científico” – WIEACKER) do século XIX e
do nosso século, se ao seu conceitualismo não excluirmos uma qualquer densidade
normativo-material. Que o mesmo é dizer, o pensamento jurídico que até não há muito
foi largamente dominante (para uma tentativa particular e recente de pensar a
“coerência” como “critério de validade jurídica”, v. JOSÉ HERMANO SARAIVA, A
coerência, critério de validade jurídica, in Nomos, n.° 2 [Julho-Dezembro] de 1986, 8,
ss.).
E então, se só no último tipo de fundamento e de racionalidade normativo-
-jurídica se vê a norma como que a manifestar em si mesma a sua ratio, bem se
compreende também que apenas aí o normativismo se afirma puro, como puro
normativismo: a norma não refere nada para além da sua própria racional
45

normatividade. Os próprios “princípios”, que não deixam nunca de invocar-se na


aludida reflexão actual sobre a racionalidade normativo-jurídica, acabam por não
excluir um verdadeiro normativismo – ao contrário do que já acontece, p. ex., no
conhecido pensamento antinormativista e antipositivista de DWORKIN –, uma vez que
eles só relevariam numa sua assimilação pelas normas – assim, por todos, em A.
AARNIO, The rational as reasonable, cit., 65. Desse modo, o direito seria, na verdade,
pura e simplesmente um “sistema de normas”.
É certo que neste normativismo puro, ou normativismo tout court – só nele as
normas são pensadas em si numa autónoma normatividade e não remetem para algo que
as transcenda e que lhes confira constitutivamente a sua normatividade –, o fundamento
racional da normatividade, o fundamento que ela exibe na sua ratio constitutiva, se
manifesta na pressuposição das próprias normas ou postulando já a existência delas;
enquanto que relativamente aos normativismos referidos aos outros dois tipos de
fundamentos objectivos se haveria de ver nesses mesmos fundamentos também a
origem constitutiva das normas. Por outras palavras, aquele normativismo puro exige,
paradoxalmente, prévias fontes do direito que criem as normas, pois só uma vez elas
criadas se poderá atingir a sua específica normativa racionalidade. Daí que o
normativismo de uma estrita compreensão racional da normatividade das normas, e da
sua validade, possa ir simultânea com um radical voluntarismo, se não decisionismo,
quanto às suas fontes. É o que se vê expressamente em KELSEN, quando, ao sustentar
que “o dever-ser, a norma, é o sentido de uma vontade, de um acto de vontade”,
pretende com isso significar, por um lado, que as normas são a criação de um acto
natural ou empírico de prescrição e, por outro lado, que só no sentido do dever-ser que
manifestam se pode pensar a sua normatividade, aquela normatividade que adquire
“vigência” (Geltung) enquanto “a existência específica da norma” – vigência normativa
essa que, desse modo, “deve ser distinguida da existência dos factos naturais, e
especialmente da existência dos factos através dos quais ela foi criada” (Allgemeine
Theorie der Normen, cit., 2, ss.). Daí também que no legalismo, a postular sempre um
elenco de fontes em que se afirma a imperatividade do poder político, seja susceptível
de ser pensada, e tenha mesmo em geral sido pensada, a sua normatividade jurídica em
termos normativistas estritos.
) Tudo isto considerando a norma-prescrição num seu sentido estrito e
específico – como “norma” em sentido próprio, a implicar uma ratio constitutiva da sua
normatividade e que, pelo fundamento objectivo que essa ratio conferiria, lhe sustenta
46

ou fundamenta também a sua validade (validade normativa: a validade do seu jurídico


dever-ser). Mas a norma-prescrição poderá ser entendida com outro sentido – pelo
menos com dois outros sentidos –: como “imperativo” e como “regra”, tomadas estas
expressões, ou os conceitos que exprimem, também em sentido estrito. Imperativo
implica um poder e imputa a exigência ou imposição de um determinado
comportamento, que a sua prescrição enuncia, à voluntas de uma potestas (“nenhum
imperativo sem imperador” – cfr. V. KUBES, ob. loc. cits., 409). A significar também
que imperativo é um comando, uma ordem de uma determinada entidade, que se arroga
o poder para tanto, dirigido a certos destinatários, os quais se supõem no dever de lhe
obedecer. Mas já não tem de identificar-se a potestas, implicada pela imperatividade, a
um único poder ou a um poder qualificado, como será o do Estado, e isto mesmo
quando só considerados os imperativos jurídicos – contra o que sustenta o comum
imperativismo jurídico, o imperium jurídico não é exclusivo do Estado –, nem tem de
ver-se na sanção, ou na coercibilidade, elemento definidor do comando (assim
CARNELUTTI, Teoria generale del diritto, 1938; comando é “a ameaça de uma sanção a
quem tenha um determinado comportamento”), pois a sua imperatividade e o seu
comando têm a ver com a sua intencionalidade ou a índole da sua significação, não com
as condições exteriores da sua eficácia. Por outro lado, a voluntas da potestas não
haverá de ser tomada em sentido psicológico (empírico-psicológico), como vontade real
de alguém concreto – como é também comum na definição de imperativo e de
comando: “o imperativo propriamente dito é (...) adressado por um homem a um outro
homem ou por um homem a ele próprio” (G. KALINOWSKI, ob. cit., 256); “um
verdadeiro e próprio comando implica uma relação pessoal”, “um comando pressupõe
uma pessoa que comanda e uma outra a quem o comando é dirigido”, “o comando é um
acto mediante o qual o indivíduo procura influenciar a vontade de um outro” (K.
OLIVECRONA, ob. cit., 33, 38, 27) –, porquanto apenas exprime em geral o exercício
impositivo, qualquer que seja a sua forma, por que se manifesta sempre o poder; é o
que, aliás, acentua de modo especial a tese que afirma as normas jurídicas como
“imperativos independentes” (OLIVECRONA, in Jus, 1954, 460): as normas-imperativos
jurídicos “são operativos independentemente de qualquer relação com a pessoa que os
emite” – primeira ob. cit., 34).
Relevante é sobretudo a questão de saber se as normas jurídicas são afinal
imperativos ou admitem a sua relação a imperativos. A compreensão imperativa das
prescrições jurídicas remonta a HOBBES, foi repetida por JOHN AUSTIN, e teve o seu
47

apogeu em A. THON (Rechtsnorm und subjektives Recht, 1978: “o direito todo de uma
sociedade não é senão um complexo de imperativos” – pág. 106) e foi decerto
potenciada pelo legalismo, pela identificação do direito à legislação estadual, uma vez
que desse modo o direito seria simplesmente uma certa expressão prescritiva de um
poder (desse mesmo poder estadual). Prescindiremos neste momento da nossa
consideração crítica sobre este imperativismo (pode ver-se, para essa crítica,
A.CASTANHEIRA NEVES, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, in
R. L. J. [1993-1994], n.°s 3836 e ss.). Há apenas que atender aos pontos seguintes.
Já aludimos a um possível entendimento também normativista do legalismo –
desde que a legislação criada e vigente seja dogmaticamente compreendida e tratada em
termos de ver nela a expressão de uma imanentemente constitutiva racionalidade
normativa, por ex., nos termos, também já aludidos, como o positivismo dogmático ou
“científico” (o positivismo da pandectística Begriffsjurisprudenz) reelaborou o direito
positivo vigente, segundo um sistema normativo-dogmático que encontraria o seu
último sentido normativo nessa sua específica racionalidade dogmático-normativa, um
sistema jurídico dogmaticamente autónomo e subsistente na sua própria e constitutiva
racionalidade. Depois, norma (jurídica) e imperativo (jurídico) não se identificam, nem
aquela é redutível a este – como parece sustentar, p. ex., e por todos OLIVECRONA
quando afirma nas normas jurídicas uma “forma imperativa” e as considera sempre
segundo a imperatividade (ob. cit., 23, ss.) –, já que, se só temos verdadeiramente um
imperativo jurídico quando lhe é determinante a imputação-vinculação a uma potestas
que invoca uma legitimidade prescritiva, e de tal modo que a sua juridicidade, com a
validade intencionalmente implicada, se entende sustentada unicamente por essa
imputação legítima (que tanto é dizer a juridicidade como expressão de um auctoritas:
auctoritas, non veritas facit legem), já a norma jurídica, enquanto norma, refere a sua
jurídica normatividade, com a respectiva validade também implicada, a uma específica
e fundamentante racionalidade constitutiva, e neste sentido a uma veritas – aquela
racionalidade-veritas que nunca deixou de ir implícita no normativismo. O que não
exclui uma possível relação entre imperativo e norma jurídicos, sendo certo que o
imperativo jurídico (sobretudo na forma lex) pode ser a fonte ou estar na génese jurídica
da norma – no modo daquela relação fonte/norma já antes considerada –, mas sem que
ainda assim a norma jurídica deva a sua normatividade a essa imperatividade e não
antes à constitutiva racionalidade normativa em que funda especificamente a sua
juridicidade (a sua válida juridicidade). E continuando, por um lado, deste modo distinto
48

o imperativo, com a sua voluntas-poder, e a norma, com a sua ratio-dever-ser ou


normativa, e igualmente a imperatividade, a implicar auctoritas, e a normatividade, a
implicar veritas – numa negação portanto da hipótese redutivista – mas podendo haver
também, por outro lado, entre eles aquele tipo de relação pela qual as normas, não sendo
embora redutíveis aos imperativos, como que passam a constituir-lhes o seu conteúdo (o
seu conteúdo normativo), já se justifica a distinção, que vemos enunciada por
KALINOWSKI (ob. cit., 260, ss.) entre “imperativos-normas” e “imperativos
propriamente ditos” – sendo estes todos aqueles que nada permite pensar para além da
sua própria imperatividade, como será em geral o caso dos comandos ou ordens
singulares de relevo jurídico proferidos por autoridades actuando no terreno.
Por sua vez, “regra” é uma directiva para a acção, qualquer tipo de acção, que
nem se funda numa específica racionalidade ou a exprime (como a norma), nem é
imposta por um poder (como o imperativo), mas traduz uma mera convencionalidade e
na prescritividade dela resultante, esgota-se – convencionalidade, no seu sentido comum
e não no sentido com que hoje, depois de, KOHLBERG e outros, se fala de uma “ética
convencional”, ou seja, na pressuposição de uma ordem revestida de uma legítima
autoridade, a que se teria seguido no nosso tempo uma “ética pós-convencional”, de
“princípios” e racionalmente fundada. Naquele sentido se dizem “regras” os critérios de
um qualquer jogo para todos os que aceitam jogá-lo, pois participando nele
implicitamente todos convencionam entre si (aceitam uns perante os outros) a validade
dessas regras do jogo. Pelo que no universo jurídico só haverá lugar a falar de regras em
sentido próprio (“regras jurídicas”) para abranger as suas prescrições em geral ou todos
os seus critérios práticos, se a juridicidade remeter em último termo a uma
convencionalidade ou for compreendida como tal, e assim com o seu sentido último
num consensus. E podem invocar-se três hipóteses, pelo menos, nessa linha: pensando o
direito ou sustentado por um radical contratualismo ou como a inferência regulativa de
uma comunicativo-argumentativa discursividade prática (v., por todos, R. ALEXY,
Theorie der juristichen Argumentation, passim) ou compreendido na sua determinação e
na sua prática segundo o “paradigma do jogo” (sobre esta última hipótese, v. FRANÇOIS
OST, Entre ordre et désordre: le jeu du droit. Discussion du paradigme autopoiétique
appliqué au droit, in Arch. Phil. Droit, 31 (1986), 133, ss.; M. van de KERCHOVE/F.
OST, Le droit ou les paradoxes du jeu, 1992.
Em síntese: a “norma” será a expressão de um dever-ser racional (ou com uma
qualquer pretensão de objectiva racionalidade), referido a uma veritas-ratio; o
49

“imperativo” será a expressão de uma ordem prescritiva, referida à voluntas de uma


auctoritas-poder; a “regra” será a expressão de um regulativo convencional, referido a
um qualquer consensus de auto-determinação.
Há, no entanto, que acrescentar a esta diferenciação conceitual
duas notas. Em primeiro lugar, o sentido da “norma” enunciado, e que
temos pelo mais correcto, nem sempre é referido nestes exactos termos.
Podem, desde logo, citar-se duas outras definições não coincidentes. D.
BUSSE (Recht als Text, 279), diferenciando também “regras” ou
“convenções” de “normas”, considera que “um possível critério” de
distinção seria o da sanção: “A violação de normas é normalmente
sancionada em termos claramente negativos – deve pois falar-se de
normas só se houver também um sistema de sanções, que reage ao seu
não cumprimento. O não cumprimento de simples regras de acção, pelo
contrário, tem por efeito apenas a não realização dos fins sociais de
acção”. E A. ROSS (Directives and Norms, 34, e ss., 78, ss.) entende que
do conceito geral de directivas, a categoria linguística geral dos
enunciados prescritivos, se distingue o conceito de norma porquanto esta
seria, não um “fenómeno linguístico” como em geral as “directivas”, mas
um “facto social”, i. é, seria uma directiva com “existência
empiricamente estabelecida” ou a que se associa um cumprimento geral
pelos membros da sociedade, pelo que “uma norma há que definir-se
como uma directiva que corresponde, de um modo particular, a certos
factos sociais”. Em ambos estes conceitos não se dá relevo à específica
normatividade da norma, num caso porque o critério diferenciador é
externo a essa normatividade e de todo aleatório, no outro caso porque é
apenas a sociológica factualidade empírica e não a normatividade
enquanto tal que unicamente se convoca. Neste último caso estamos
perante uma perspectiva que na sua radicalização tentará excluir
totalmente a normatividade às normas pela redução delas a uma estrita
factualidade, querendo ver o seu conteúdo como puramente empírico –
projecção particular de uma intenção mais geral de reduzir as
proposições prescritivas a proposições descritivas. É esta uma outra nota
que, em segundo lugar, queremos fazer.
Começando por acentuar que a factualidade ou empiricidade em
causa não tem a ver com a origem ou a génese explicativa das normas,
mas unicamente com o seu conteúdo, pois só quanto a este se poderá
falar daquela hipotética redução. Nesse sentido, lê-se em OLIVECRONA,
ob. cit., 24: “O conteúdo das normas pode ser definido como um conjunto
de representações de acções imaginárias por parte de pessoas
determinadas (por exemplo, os juízes) em situações imaginárias”
(sublinhado do Autor). De maior importância se deverá considerar a tese
da redução do conteúdo das normas a uma alternativa empírica ou a uma
proposição empiricamente alternativa que descreveria dois
comportamentos, o comportamento do cumprimento da norma e o
comportamento da reacção sancionatória, se o primeiro se não
verificasse. “A eficácia da norma é assim determinada disjuntivamente,
sustenta TH. GEIGER, Vorstudien zu einer Soziologie des Rechts, 61, ss.,
65-72): consiste ela ou na realização do núcleo de norma ou num
comportamento da recusa com uma reacção social como efeito. O
50

conteúdo da norma, o seu conceito de violação, não é, porém,


determinado disjuntivamente, mas unitariamente. O conteúdo da norma
não é ou um ou outro dos comportamentos, mas o ou-ou, i. é, a
alternativa em si mesma” (itálico do Autor). Só que basta dizer – à parte
a errada convocação sempre de uma sanção no conteúdo da norma, que já
vimos não ser de todo necessária, e ainda outros possíveis e concludentes
argumentos críticos (p. ex., os enunciados por N. BOBBIO, Teoria della
norma giuridica, 92, ss.) – que uma coisa são os comportamentos que a
norma pode suscitar, outra coisa é o sentido e o conteúdo normativos da
norma enquanto tais, e que estes sentido e conteúdo, se provocam
porventura esses comportamentos, não se identificam com eles, tal como
os actos psicológicos da leitura de uma obra literária se não confundem
com o sentido cultural da obra lida. Tenham-se presentes, além do mais,
a distinção e a irredutibilidade entre os mundos físico-cultural,
psicológico-subjectivo e cultural-significante postas em evidência por
POPPER, com a sua teoria analítica dos três mundos.

) Feitas estas distinções conceituais, volvamos ao sentido amplo de norma,


integrante dessas diferentes modalidades prescritivas e com o qual opera efectivamente
o normativismo jurídico. É assim que “norma jurídica” e “regra jurídica” são em geral
tidos como sinónimos, ou sem que se possa dizer que na primeira expressão vai pensado
o conceito estrito de “norma” e com a segunda expressão o conceito estrito de “regra” –
apenas o uso daquela é comum nos autores alemães (por todos, U. MEYER-CORDING,
Die Rechtsnormen, 1971) e italianos (por todos, N. BOBBIO, Teoria della norma
giuridica, cit.) e o uso desta é comum nos autores de língua francesa (por todos, v. a
colectânea La règle de droit, p. p. CH. PERELMAN, 1971), enquanto os autores anglo-
-saxónicos, numa forma mais indiferenciada, falam de “rule”. E vemos não raro
substituídas ambas, também num processo de identificação politicamente condicionada
depois do legalismo, com a expressão e o conceito de “lei” (cfr. U. MEYER-CORDING,
ob. cit., §§ 1, 6 e 7), embora se possa observar que a pandectística e todo o positivismo
científico, ou sistemático-dogmático, intencionavam o conceito estrito de norma, que o
legalismo referia sobretudo o conceito de imperativo e que as perspectivas
argumentativas dos nossos dias tendem a privilegiar o conceito de regra. No pressuposto
desse conceito amplo em que a prescrição jurídica se diz tanto norma, como regra ou
lei, o que fundamentalmente preocupa a teoria do direito é a caracterização
diferenciadora ou o conceito específico dessa prescrição-norma perante outras
prescrições ou normas não-jurídicas – p. ex., PAUL FORIERS, afastando os critérios tanto
da “competência” (autoridade prescritiva ou qualificativa), como da sanção, vê o
critério da “regra jurídica” na “adesão” (na adesão à sua juridicidade, antes que na sua
51

eficácia institucional e social, “porque é a adesão que provoca a eficácia e não o


contrário”) dos que são chamados a aplicá-la ou a cumpri-la (Règles de droit, Essai
d'une problématique, in La règle de droit, col. cit., 7, ss.); o que permite também dizer a
PERELMAN que “a determinação da regra do direito não é uma questão de verdade, mas
de decisão” dos órgãos jurisdicionalmente qualificados (À propos de la règle de droit,
Reflexions de méthode, in col. cit., 315); enquanto que U. MEYER-CORDING afirma que
“o critério decisivo das normas jurídicas não é a sua origem no legislativo estadual, mas
a função social de servirem aos grupos e às instituições como elementos duradouros de
estruturação” (ob. cit., 25). O que são apenas modos distintos, mas análogos, de
caracterização das normas segundo uma perspectiva sociológica, entre muitos outros
que em perspectivas diferentes poderiam ser invocados e de que podemos prescindir.
O que importa acentuar é que o pensamento jurídico mantém-se normativista
usando embora esse conceito amplo de norma, porque com esse conceito amplo visa
uma racionalização de normatividade jurídica em tudo análoga à implicada no
normativismo puro e estrito (racionalização abstracto-sistemática), posto que não veja
sempre, como este, o fundamento dessa normatividade na ratio, numa veritas-ratio, mas
antes ou numa auctoritas-voluntas ou num consensus – a ratio e a racionalidade, se não
são de todo fundamento normativo, continuam a ser uma indefectível dimensão
dogmática.
) É operando nestes termos com um conceito amplo de norma que para o
normativismo a norma é vista como o prius jurídico. Ou seja, as normas serão o
categorial originarium constituinte da juridicidade do direito e também o ponto de
partida para além do qual nada mais há a interrogar. Pensar juridicamente será pensar
mediante normas. (Em oposição a este último ponto, tenham-se presentes, não só todo o
jusnaturalismo, como a compreensão axiológica da norma, p. ex. em HUSSERL, I.s L.s, I.
§ 14, e em SCHELER, Form. i. d. Ethik, II, P., IV, etc., a implicar a sua referência
fundamentante ao valor, enquanto que já em KELSEN, numa expressão rigorosamente
normativista, é, pelo contrário, a norma que funda ou permite pensar o valor – Reine
Rechtslehre, 2.ª ed., 16, ss.). E é entendendo a normatividade jurídica deste modo – o
direito constitui-se essencialmente, manifesta-se prioritariamente e pensa-se
exclusivamente em normas – que o pensamento jurídico é rigorosamente normativista.
) Só que o normativismo não opera apenas com a categoria “norma”, que
considerámos. Essa é, poderá dizer-se, a sua categoria substancial – o direito seria
substancialmente norma ou um complexo de normas. Uma outra categoria é já
52

estritamente lógica e por ela visa o domínio ou a determinação dogmática daquele


elemento substancial. Trata-se da categoria “conceito”, de um certo tipo de conceitos
pelos quais se realizaria a inteligibilidade dogmática das normas jurídicas pressupostas,
e em termos de a imediata intenção prático-normativa destas se converter numa
objectivação lógico-conceitual e por cuja mediação o pensamento jurídico passaria
exclusivamente a operar.
Assim, decerto que na génese das normas jurídicas há uma valoração prática
intencionando a “justiça” ou a “injustiça”, a validade ou a invalidade, etc., de certas
situações e comportamentos que sustentam o sentido regulativo que as normas
prescrevem para situações ou comportamentos futuros do mesmo tipo, mas o
característico da posição dogmática do normativismo está em pôr como que entre
parêntesis essa dimensão prático-normativa e substituí-la por uma conceitualização e,
desse modo, o sentido normativo stricto sensu por um sentido lógico – a estrutura
normativa por uma estrutura conceitual, o prático pelo lógico. E de dois modos
convergentes.
Por um lado, os conjuntos de normas em unidade regulativa pela referência a um
certo domínio prático formam o que se dizem os “institutos jurídicos”, susceptíveis
como tais de uma objectivação conceitualizável – p. ex., o conjunto de normas que
prevêem e regulam o acordo entre duas ou mais pessoas que reciprocamente se
autovinculam com vista a certos efeitos objectiva normativamente um instituto jurídico
que logicamente se representa e determina pelo conceito de “contrato”; as normas que
regulam uma particular relação das pessoas com as coisas com determinados efeitos da
disponibilidade e outros constituem o instituto que na sua objectivação prático-jurídica
se determinará logicamente pelo conceito de “propriedade”; e do mesmo modo os
institutos e os conceitos de “sociedade”, de “acto administrativo”, de “delito” (dos
vários tipos de delitos criminais), de “acções”, de “acusação”, etc., etc.
Conceitualização que analiticamente se desenvolve numa complexa e apertada teia
dogmática com que se pretende apreender lógico-conceitualmente toda a normatividade
jurídica vigente e que culmina, mediante ou uma abstracção generalizante ou uma
dedução transcendental que atingiria o a priori, a enunciação dos jurídicos “conceitos
fundamentais” de que se encarregariam as “terias gerais do direito” – os conceitos
fundamentais de “sujeito de direito”, de “direito subjectivo”, de “relação jurídica”, etc.,
e que o pensamento jurídico passaria a considerar como que analíticas “verités de
raison” do seu universo dogmático e das quais esse universo logicamente dependeria.
53

Com duas notas mais: a reelaboração lógico-conceitual das normas e os correlativos


institutos jurídicos, nos termos aludidos, considerava-se a tarefa dogmático-científica da
“construção” jurídica e a reflexiva recondução ou subsunção de uma qualquer entidade
jurídica aos conceitos dogmaticamente já adquiridos dizia-se a determinação jurídico-
dogmática da “natureza jurídica” dessa entidade. Tudo o que significava, pois, e como
já claramente se pode compreender, a conversão do prático-normativo ao lógico-
-conceitual – isto em obediência a uma estrita intenção dogmática que o cognitivismo
objectivista assimilado pelo normativismo exigia que tivesse essa expressão conceitual.
Por outro lado, as próprias normas eram entendidas de tal modo que permitiriam
a sua imediata tradução numa estrutura ou esquema lógico: a norma seria uma certa
forma de enunciar uma intenção normativa (prático-normativa) graças à qual poderia
abstrair-se na norma dessa intenção prático-normativa, que foi a sua causa ou o seu
fundamento, para ser considerada apenas na sua enunciação lógica, tão-só no seu
conteúdo lógico-apofanticamente enunciado. A expressão acabada desta atitude temo-la
na conhecida distinção teórica de KELSEN (v. Reine Rechtslehre, 2.ª ed., 73, ss.);
Allgemeine Theorie der Normen, 119, ss.) entre “norma jurídica”, enquanto a prescrição
prática, e a “proposição jurídica” (Rechtssatz) com que a “ciência do direito” conheceria
descriticamente aquela – proposição que, como “juízo lógico” e segundo o esquema
“se/então”, substituiria científico-dogmaticamente o acto prático-normativo da norma
enquanto tal. E o considerar as normas nessa sua autonomia formal por conversão
lógica, e não querer laborar senão com essa específica autonomia, é o que justamente
caracteriza dogmaticamente o normativismo.
O que só é pensável porque o sentido da norma deixa de ser entendido como um
princípio ou critério axiológico-normativamente prático – como tal implicaria, ou só
teria relevo numa tensão valoradora perante uma realidade autonomamente pressuposta
e actual –, e simplesmente como o conteúdo conceitual de uma determinação lógica de
realidade, como o enunciado descritivo-conceitual de uma certa realidade, que seria
imediatamente em si a condição (o “pressuposto”) de um efeito impositivo –
oferecendo-se assim a normatividade jurídica nos termos de um Konditionalprogramm
(N. LUHMANN). Decerto que a realidade aí pensada e determinada é aquela que uma
valoração prévia considerou normativamente relevante (e assim digna do efeito
prescrito), mas não será a ponderação desse juízo axiológico, nem uma sua qualquer
reconstituição também justificadamente fundada perante uma actual e autónoma
situação real, o que a norma cometeria ao seu destinatário; a este apenas lhe autorizava
54

que da realidade conceitualizada pela norma e tal como ela ia aí conceitualizada (em
virtude, naturalmente, do juízo axiológico prévio) fizesse a condição de que apenas
dependia o efeito normativo. Embora na ordem axiológico-normativa a norma surgisse
como o resultado de uma certa posição ou juízo de valor, convertia-se agora – nesta
perspectiva dogmática – numa definição normativa implícita, num postulado mediante o
qual uma relevância jurídica ia ligada “por definição” (por definição dogmática) a um
determinado objecto relevante.
Daí que ao pensamento jurídico bastaria conhecer o objecto relevante, a
realidade tal como viera a ser conceitualizada através daquele prévio juízo de
relevância, para lhe poder logicamente impor as consequências normativas. E se deste
modo o conteúdo significativo da norma ia entendido tão-só como a definição
conceitual do pressuposto objectivo que justificaria sem mais o efeito jurídico, não só o
jurista podia supor que julgava conhecendo, que decidia juridicamente limitando-se a
conhecer a conceitualização normativa e através desta a realidade conceitualizada, como
vinha ainda a imputar ao próprio direito – identificado como as normas definitórias –
uma verdadeira dimensão gnoseológica. Se o pensar e decidir jurídicos vinham a
reduzir-se, em último termo, à cognitiva determinação da realidade mediante uma certa
conceitualização – aquela conceitualização que o direito já em si oferecia –, também o
direito se revelava afinal tão gnoseologicamente conceitual como a ciência dele.
Devendo observar-se ainda que, não obstante esta referência conceitual à
realidade, não seria a realidade no seu autónomo conteúdo e existência prática que
interessaria ao pensamento jurídico; este apenas directamente se ocuparia da
conceitualização dela que as normas enunciem. Sem dúvida que as normas só poderão
aplicar-se a uma realidade efectivamente existente, mas para que a aplicação se
houvesse de considerar válida bastaria averiguar se aquela realidade pensada na norma,
e tal como aí vai pensada, se tinha ou não verificado; e como esta verificação se reduzia
a um juízo de existência ou de não existência da realidade conceitualmente pensada, não
afectaria ela em nada o conteúdo material que a conceitualização ou significação
normativa em si mesma, ou independentemente dessa verificação, desde logo formulava
– esse momento de verificação (a aplicação normativa) seria, pois, um momento
secundário, “meramente prático”, que deixava intocado e se passava de todo à margem
dos conteúdos jurídicos, oferecidos única e totalmente pelas normas. Quer dizer, por
este outro lado era da própria realidade (histórico-social), enquanto tal, que o
55

pensamento jurídico normativista se desinteressava. O direito seria para ele tão-somente


“um complexo de puras significações” oferecido pelas normas.
Vemos, assim, que se o normativismo pode conceber o direito deste modo e se
acaba por recolher-se a um plano de elaboração lógico-dogmática, só o consegue à custa
duma dupla demissão. Por um lado, alheia-se do juízo axiológico-normativo e prático,
aquele que verdadeiramente faz com que o direito seja direito, impondo em seu lugar
uma axiomática determinação conceitual; por outro lado, alheia-se da consideração
autónoma da realidade histórico-social que solicita o direito e perante a qual em último
termo ele se terá de justificar pressupondo essa consideração. Sendo certo, por último,
que aquela conceitualização dogmática e esta conceitualização metódica se articulavam
numa global coerência – esta segunda conceitualização seria o ponto de partida para
aquela primeira e acabaria, circularmente, por a possibilitar sistematicamente. Com o
que somos remetidos a um outro ponto, para a consideração de uma terceira categoria
do normativismo e bem essencial na sua inteligibilidade da juridicidade.
) Se o direito se oferece em normas e se determina conceitual-dogmaticamente,
nos termos que acabamos de ver, a racionalidade lógica que já assim se postula na sua
normatividade – se não forçosamente uma racionalidade constitutiva e fundamentante,
decerto uma racionalidade intencional de relevo determinativo e dogmático – exclui,
pela própria logicidade assumida, o que se poderia dizer uma qualquer pontualização ou
dispersão intencional e bem assim uma contingência de manifestação – dispersão e
contingência que permitiriam, ou não excluiriam necessariamente, incoerências
intencionais, antinomias normativas, insuficiências ou lacunas referenciais, etc.,
incompatíveis todas elas com essa racionalidade lógica postulada. Tanto é dizer que o
normativismo implica a ideia de sistema – é esta a sua terceira categoria fundamental.
Vimos já, aliás, como o normativismo sempre foi associado à ideia sistema, a
um qualquer modus sistemático, pois sem lograr atingir a unidade sistemática a
racionalidade intencionada seria precária e em último termo insubsistente. A
juridicidade seria, pois, sistemática – sistemática de sentido axiomático imediatamente
nas normas e sistemática de sentido abstracto-conceitual na sua dogmática – e as
normas, nessa sua determinação dogmática, totalizariam o direito num sistema
normativo dogmático que se diria o sistema jurídico. Depois, pela exclusiva referência a
normas que dogmático-conceitualmente se determinariam – tratar-se-ia de um sistema
unidimensional, um sistema constituído por normas relacionadas com normas num todo
racional-conceitualmente unitário de normas. Fosse essa unidade horizontal (normas em
56

conexão com normas no mesmo plano lógico), fosse ela unidade vertical ou
hierárquica/gradual (normas como pressuposição e fundamento de normas: ex.: na
Stufenbau de MERKL e KELSEN). No primeiro caso, a unidade racional terá por
fundamento constitutivo a identidade formal e conceitual, no segundo caso a redução a
um único fundamento ou última norma (Grundnorm). Sempre, no entanto, um sistema
constituído e subsistente dogmaticamente numa lógica racionalidade e apenas nela.
) Tendo presentes as categorias de inteligibilidade próprias do normativismo,
para que chamámos a atenção, fácil é concluir que o tipo de racionalidade assumido
pelo mesmo normativismo é manifestamente o de um racionalismo que o remete para a
razão teórica. A razão jurídica seria assim, ou nessa perspectiva normativística, uma
modalidade racionalística da razão teórica: objectivo-cognitiva na referência e
sistemático-construtivística, lógico-conceitual e formal-dedutiva na intencionalidade –
como, aliás, o modelo metódico a considerar a seguir bem irá confirmar.
E desse modo se pensava ainda garantir ao pensamento jurídico o estatuto
científico. O pensamento jurídico constituir-se-ia como uma dogmática “ciência do
direito”, porque o direito era pensado através de um pensamento sistemático que
procedia em termos rigorosamente lógico-racionais. E nem a pressuposição, nem a
intencionalidade dogmáticas implicadas pela vinculação normativa fariam obstáculo à
cientificidade, uma vez que o dogmático se submetia, nos termos que vimos, a uma
conversão conceitual que permitiria a elaboração lógico-sistemática.
Sem deixar ainda de anotar que essa índole teórica, com que a juridicidade é
assimilada pelo normativismo, se afirmava também com um particular relevo prático –
sobretudo assim no sistemático normativismo horizontal. A sua racionalidade (a sua
construção e o seu desenvolvimento racionalmente subsistentes, em último termo, numa
lógica identidade) garantiria a objectividade (a imparcial transubjectividade imposta
pela sua estrutura objectivo-racional), a segurança (a certeza ou a previsibilidade
oferecida pela sua imanente coerência), a igualdade (imediatamente implicada pela sua
constitutiva identidade lógica) e a plenitude e suficiência (o sistema jurídico pensava, na
sua logicidade, uma normatividade virtualmente conclusa) à juridicidade que
determinantemente manifestava. No sistemático normativismo vertical, já as coisas
poderiam ser diferentes, uma vez que, se cada nível da estrutura hierárquica
condicionava e fundava a normatividade de nível imediatamente inferior, não a
determinaria totalmente e antes se exigiria sempre um acto normativo relativamente
autónomo e de índole não racionalmente teorética numa intenção especificadora-
57

-concretizadora a esse outro nível. É essa expressamente, como se sabe, a posição de


KELSEN, com as também conhecidas implicações na sua “teoria da interpretação” e na
aplicação e execução concretas do direito.

c) Em resposta à terceira pergunta, o que há a dizer é que o normativismo nos


oferece um paradigma de aplicação – um esquema metódico de lógico-dedutiva
aplicação de normas pressupostas, enquanto o paradigma metodológico e o esquema
metódico para a operatória realização concreta do direito. O que é, com efeito, um
corolário metodológico das suas respostas aos pontos anteriores, mas importa bem
compreender pela acentuação de algumas notas mais.
α) Se o direito se constitui e se manifesta num sistema de normas – se ele é esse
sistema de normas e nele exclusivamente se objectiva –, então decerto que o direito é
pensado como um sistema autónomo perante a realidade histórico-social da sua eventual
realização, ou sem que, quer as exigências práticas provindas dessa realidade, quer a
problemática normativamente específica da sua concreta realização nessa mesma
realidade se reconheçam com qualquer influência codeterminante da sua sistemática-
-racional normatividade. É, pois, esta autonomia com que o normativismo pensa o
direito, ou o seu sistema abstracto-racional de normatividade, a primeira nota a
sublinhar – e o próprio pressuposto de uma segunda nota em que o paradigma da
aplicação estrita já claramente se define.
Com efeito, essa autonomia implica que na projecção do direito na realidade
histórico-social se exclua qualquer possibilidade juridicamente constitutiva; com
fundamento nela será antes necessário que o direito pressuposto nas normas e no seu
sistema, e tal como aí se manifesta e se objectiva pela sua determinação hermenêutica e
dogmática, apenas se repita na solução concreta. Que o mesmo é dizer que essa solução
deverá obter-se por mera aplicação, ou sem nenhuma mediação normativo-
- juridicamente constitutiva – pois de contrário o direito realizado não existiria
totalmente ou não estaria afinal de todo já existente e objectivado nas normas do sistema
(o direito “que é”). E se o objecto da aplicação ou decidendo se oferece, como tal, numa
particularidade concreta que o diferencia do geral-abstracto das normas, impõe-se então
que aquela “aplicação” opere segundo um esquema que garanta a relação entre este
geral e aquele particular sem implicações normativas, ou de modo que subsista uma
identidade entre o pressuposto aplicando e o resultado da aplicação. O que só a lógica
dedutiva (a relação lógico-dedutiva do geral para o particular) pode lograr. Foi o que
58

sempre se pretendeu através da convocação do silogismo e da subsunção (do silogismo


subsuntivo) enquanto esquemas metódicos da aplicação das normas jurídicas.
Com o que temos: 1) postula-se um “platonismo de regras” ou um platonismo de
normas, ao pensar-se que o direito existe inteiramente e em si no sistema das normas
jurídicas independentemente da sua realização concreta, da sua “aplicação” – esta nada
lhe acrescentaria de jurídica normatividade, nem mesmo verdadeiramente suscitaria
qualquer problema, na sua estrita logicidade ou dedutividade (ARTHUR BAUMGARTEN,
Die Wissenschaft vom Recht und ihre Methode, 1920, I, 202, ss.: “Das jus ist der
abstrakte Rechtssatz, das factum der konkrete Tatbestand an dem er sich verwiklicht. Ist
einmal über das jus und über das factum völlige Klarheit geschaffen, dann vollzicht sich
die Subsuntion des letzteren unter das erstere im normalen Denken ohne weiteres, die
nähre Analysierung dieses Vorgangs interessiert die Logik und die Psychologie; für die
allgemeine Rechtslehre bietet kein Problem”.) –; 2) pensa-se a sua realidade e modo de
existência como uma realidade e uma existência racional-abstracta – o direito é um
abstractum; 3) essa sua realidade pressuposta na abstracta idealidade sistemática das
normas, e que só nessa abstracção existe, é objecto do conhecimento jurídico (objecto
da “ciência do direito”). Segundo dois momentos metódicos diferenciados e sucessivos
– um primeiro momento hermenêutico (a interpretação das normas pressupostas, e que
para o legalismo se reduzia à “interpretação da lei”) e um segundo momento dogmático
(a construção conceitual e sistemática); 4) ao que se segue, por exigência prática, uma
sua aplicação ao concreto-particular da realidade histórico-social – ao prius da
subsistência do direito nas normas do sistema jurídico, e nela única e totalmente
conhecido, segue-se o posterius da sua aplicação. E isto se dirá o dualismo
normativista: ser do direito nas normas e conhecimento dele nestas, primeiro, e a sua
aplicação, depois – dualismo de entidades, de momentos, de actos; 5) e aplicação que
deverá ser lógico-dedutiva, nos termos já referidos.

Por tudo isto, uma implicação bem conhecida: a consideração


judicativamente decisória da especificidade do caso jurídico concreto, de
que se haveria de abstrair numa estrita aplicação lógica e genérico-
-abstracta das normas jurídicas, tomadas estas na sua normativística
racionalidade, não seria decisão “de direito”, mas decisão de “equidade”
e esta considerada assim como que uma espécie de antítese do direito qua
tale e da sua aplicação – p. ex. MANUEL DE ANDRADE, Fontes de direito,
vigência, interpretação e aplicação do direito (trabalho preparatório do
actual Código Civil), ao dizer, pág. 14, que “a equidade não constitui um
sistema normativo (um ordenamento), pois é tomada aqui no sentido (...)
59

de justiça do caso concreto”; e daí também a exigência de prévia


formulação de uma “norma” aplicanda pelo próprio julgador mesmo na
sua actividade de integração do direito para além da analogia (ob. cit.,
pág. 9, no enunciado do artigo 9.°, IV, desse trabalho preparatório e de
que resultou o n.° 3 do artigo 10.° do actual Código; cfr. pág. 15); e
OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 7.ª ed.,
quando considera: “A resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-
-se à resolução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e
haver equidade, quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução
legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular.”
(pág. 221) “(...) na equidade (...) não há por natureza aplicação da regra,
antes há uma criação para o caso singular” (pág. 222), e por isso a
“equidade” não seria fonte do direito: “Se fontes do Direito são os modos
de formação e revelação de regras jurídicas, a equidade, como critério
formal de decisão, está fora desta noção. Não só através dela não se
determinam regras, como a própria solução do caso não se faz através da
mediação de uma regra” (pág. 238).

) Tudo isto quanto ao sistema das normas, que o direito seria, e à sua aplicação.
Mas uma outra nota se terá de considerar ainda. E que é esta: a realidade histórico-social
da aplicação do direito vai concebida como uma realidade analisável em termos de
factos (como “meros factos” – observa também CARL SCHMITT, ob. cit., 18), como um
conjunto de factos autónomos entre si e correlativos à racional abstracção das normas
ou como a correlativa factualidade (empírica) da idealidade lógica (racional) das normas
(da sua lógico-conceitual representatividade e previsibilidade normativo-regulativa).
Ora, a realidade histórico-social não se oferece fenomenologicamente desse
modo, como um conjunto aleatório de “factos” discretos, mas em unidades de
acontecimentos histórico-socialmente estruturados, em especificados casos prático-
-sociais em que se polariza a inter-acção. Pelo que essa forma de ver a realidade traduz
uma analítica decomposição dessas unidades e desses casos em meros elementos
empíricos diferenciados uns dos outros, e isso assim porque era igualmente própria dos
racionalismos moderno e epistemológico-positivista, em que o normativismo encontrou
a sua possibilidade epistemológica e metodológica, uma análoga dicotomia razão
(lógica)-factos (empíricos) – dicotomia que o pensamento jurídico normativista se
limitou a converter na sua dicotomia normas-factos. (Para um desenvolvimento deste
ponto, v. A. CASTANHEIRA NEVES, Matéria de direito – matéria de facto, in RLJ, 129.°
Ano (1996-1997), ps. 130, ss., 162, ss.).
Por outro lado, reconhecer-se-á ainda que desse modo a realidade prática (a
praxis) histórico-social, que a coerência do sentido prático-normativo do direito
60

implicará que nele se considere – porque é essa realidade, com os problemas também
práticos que suscita, a exigir a normatividade jurídica como indispensável regulativo de
validade e é nessa mesma realidade que o direito se projecta como dimensão
constitutiva (o direito como dimensão da prática humana) –, é ignorada no que
especificamente a caracteriza e substituída por uma realidade tão-só empírica – com a
mesma só empiricidade com que os “factos” são referidos pela lógica e aplicação das
normas. O que, por sua vez, é a consequência do fechamento do pensamento
normativista no mundo lógico-sistemático das normas, nos termos que vimos, já que
isso o leva a abstrair da intenção prático-normativa da juridicidade e correlativamente
da tensão problemática de validade própria dessa intenção e em que haveria de atender,
num diálogo prático-normativo, também à problemática específica da realidade prática
– aquela realidade, repita-se, que nessa sua problemática solicita o direito como solução
e dimensão constitutiva. Resultado, pois, do alheamento do normativismo perante a
realidade, que já havíamos sublinhado, ao considerar apenas a conceitualização que dela
fazem as normas. O que significa, afinal, que mesmo quanto à realidade do
cumprimento do direito o normativismo não vai além das normas, que mesmo nesse
ponto se mantém nelas enclausurado.

Conjuguem-se as notas antes enunciadas, relativamente ao sistema das normas e


à sua aplicação, com a dicotomia norma/factos e a estrita empiricidade desses factos
acabados de referir, e teremos o que exactamente se deverá entender por paradigma da
aplicação, enquanto o paradigma metodológico do normativismo.

d) Compreendido o normativismo em todas as suas dimensões relevantes e


caracterizadoras, cabe finalmente perguntar, mas agora criticamente, pela sua validade
actual. Consideraremos para tanto cinco tópicos.
α) O objectivo-cognitivismo jurídico, de que o normativismo é uma modalidade
específica, implica o erro de entender o direito, por um lado, numa auto-subsistência
objectiva e nessa objectividade exclusivamente manifestado, e, por outro lado, de o
considerar assim, susceptível de um conhecimento pelo pensamento jurídico que, ao
visá-lo nessa sua objectividade, o determinaria numa estrita exterioridade cognitiva
(conhecê-lo-ia “de fora”), tal como sempre um qualquer conhecimento se dirige ao seu
objecto – o mesmo é dizer que o pensamento jurídico não concorreria em nada para a
61

sua constituição. Por ambas estas notas, o direito seria, tal como vimos, “o direito que
é”.
Ora o certo é que a experiência que dele temos não no-lo revela como objecto
(numa mera transcendência objectiva), mas como problema: como uma
intencionalidade normativa problematicamente aberta, porque a referir uma
normatividade também problematicamente constituenda na sua própria realização; e daí
que o pensamento jurídico não possa assumir a juridicidade, na tarefa da sua realização,
sem assumir o próprio problema prático-normativo do direito enquanto tal (i. é, sem o
assumir constitutivamente “por dentro”).
Observe-se, com efeito e quanto ao primeiro dos dois pontos aludidos, que ao
pretender ser o direito uma ordem de validade para a prática histórico-social, decerto
que enfrentará o dinamismo problemático-jurídico dessa mesma prática e tanto basta
para compreender que o direito constituto se revele sempre como uma ordem normativa
aberta e irredutivelmente constituenda – com o só limite nos limites da própria intenção
de direito e bem assim do seu específico espaço intencional de realização, ou seja, com
os só limites da juridicidade em si mesma (sobre este ponto de importância
fundamental, mas que nos limitamos aqui a aludir, v. Metodologia Jurídica, 206, ss.).
Assim, pode aceitar-se que o sistema jurídico objectivado começa sempre por
delimitar e pré-determinar o campo e o tipo dos problemas no começo de uma
experiência problemática – posto que, obedecendo a problemática, pelo menos neste
domínio, ao esquema de pergunta-resposta, os problemas possíveis começam, de um
lado, por ser aqueles que a intencionalidade pressuposta no sistema (com as
possibilidades interrogativas dos seus princípios) admita, e os modos de os pôr serão, de
outro lado, aqueles que sejam correlativos das soluções (respostas) que o sistema
também ofereça –, já não é lícita a unilateral sobrevalorização do sistema
objectivamente pressuposto que se traduza no axioma de que os problemas a emergir
dessa experiência serão unicamente os que esse sistema suscite e no modo apenas por
que os aceite. Isto porque a experiência problemática, enquanto também experiência
histórica, vem sempre a alargar-se e a aprofundar-se, em termos de exigir novas
perguntas (problemas) e outro sentido para as respostas (implicadas em novas intenções
que entretanto, e através dos novos problemas, se vão assumindo). E perante ela a
normatividade sistematicamente prévia traduz apenas a assimilação intencional (em
termos de respostas constituídas) de uma certa experiência feita e é correlativamente
limitada por essa experiência. O que ocorre então é que o “sistema” (a normatividade
62

pressuposta, com a sua previsão referencial) não absorve a nova problemática. O


problema deixa então de ser a expressão interrogante da resposta-solução já disponível,
ou a pergunta que antecipa e nos remete a essa resposta-solução, para ser uma pergunta
que ainda não encontrou resposta, uma experiência aporética que não foi ainda
absorvida por uma intencionalidade dogmática acabadamente fundamentante. Daí a
reconhecida insuficiência dos pressupostos critérios jurídicos positivos disponíveis,
sejam esses critérios positivos os critérios legais ou outros, para essa constituenda
realização histórico-social da juridicidade. Já noutra oportunidade pudemos analisar e
sistematizar as diversas expressões dessa insuficiência (O Instituto dos assentos, 198,
ss., 208, ss.). Por um lado, e como consequência daquela histórico-problematicidade
jurídica deparámos com uma correspondente historicidade normativa em que as suas
implicadas abertura e índole constituenda se manifestavam em termos já extensivos, já
intensivos, já reconstrutivos (Ibidem, 198-203), e evidenciavam, por outro lado e
correlativamente, limites objectivos, intencionais e mesmo de validade (Ibidem, 208-
217) às possibilidades normativas da lei (ou do conjunto dos critérios jurídicos
positivamente pressupostos) para a concreta realização histórica do direito. O que nos
impõe a conclusão de que o direito solicitado e realizando é mais, sempre mais, do que
o direito pressupostamente objectivado e que, por isso mesmo, este não pode só por si
identificar o direito que a prática jurídico-social exige, que para ela terá de ser a
juridicidade prático-normativamente a realizar. Já por aqui se vê, com efeito, que o
direito não pode ser compreendido pura e simplesmente como um objecto, já que se
mostra, ao contrário, como um problema (problema normativo) sempre em aberto.
Quanto ao segundo ponto, terá por sua vez de reconhecer-se, como vai já
implicado pela conclusão anterior, que, perante esse problema que o direito
fundamentalmente é, a atitude do pensamento jurídico na assunção e cumprimento da
juridicidade não pode ser a de se lhe referir “de fora”, postulando-a apenas como um
heterónomo objecto, pois que terá de a assumir “por dentro”, nessa problematicidade
que é o seu verdadeiro modo de ser e na intencionalidade normativa que a constitui
resolvendo esse seu problema – i. é, no contínuo normativo-jurídico constituendo que a
sua aberta problematicidade exige. O mesmo é dizer que a intenção e a tarefa práticas
(prático-normativas) do direito não podem ser postas entre parêntesis, para considerar,
nos termos conceitual-dogmáticos que vimos, apenas as objectivações em que se
tenham traduzido os resultados do cumprimento dessa intenção e tarefa práticas.
63

Só assim não seria se pudéssemos identificar de todo o direito com as soluções


normativas que o sistema jurídico positivamente ofereça e por essas soluções ele fosse
exclusivamente determinado – como na verdade pretendia o objectivismo dogmático do
normativismo. Com efeito, nesse caso como que bastaria atender apenas às soluções
objectivadas sem ter de considerar o problema ou os problemas que elas pressupõem –
vimos já de que modo lógico-conceitual e dogmático o normativismo quis que as coisas
se passassem efectivamente assim. Mas reconhecendo-se todos os limites normativos,
com as correlativas insuficiências jurídicas, que foram referidos, de novo se
compreende também que não se poderá assumir a normativa juridicidade do direito –
outra coisa seria a consideração do direito enquanto apenas objectivação e realidade
cultural – sem assumir igualmente, como se disse, a problematicidade normativo-
-jurídica implicada no próprio problema do direito, na sua intenção e tarefa práticas.
) O autonomismo abstracto, com o dualismo intencional e metódico implicado,
é uma outra característica essencial do normativismo que hoje já não pode sustentar-se.
Por outras palavras, o “platonismo de regras” por que o normativismo acaba por se
definir é de todo inaceitável. Conclusão que se fundamenta num ponto decisivo: a
realização do direito, de que o normativismo daquele modo se alheava ao reduzi-la a
uma mera aplicação lógica a posteriori sem significado normativo, é verdadeiramente o
momento nuclear da constitutiva manifestação normativa do direito, já que a
normatividade jurídica decisiva não se revela senão nesse momento e através dela.
Comprovamo-lo se tivermos em atenção as considerações seguintes.
Em primeiro lugar, há que ter em conta os resultados do movimento da revisão
crítico-metodológica em que o pensamento jurídico se empenhou desde a última década
do séc. XIX até praticamente aos nossos dias. Recordem-se todas as correntes
metodológicas que aí participaram – o “movimento do direito livre”, a “livre
investigação científica”, a “jurisprudência dos interesses”, a “jurisprudência
sociológica”, a “jurisprudência da valoração” – e podemos enunciar esses resultados
sinteticamente nestes termos (para maior desenvolvimento, v. Método jurídico, in
POLIS, 4, 247, ss.): o objecto problemático capital do pensamento jurídico deve deixar
de pôr-se na norma para se pôr antes no caso concreto decidendo, pelo que o essencial
está na decisão concreta, na judicativo-decisória realização do direito. E em ordem a ela
é repensado o próprio sentido da elaboração dogmática ou doutrinalmente dogmática do
direito positivo – a dogmática tem agora “uma tarefa pragmática (ou prática)”, propõe-
-se oferecer directivas ou modelos jurídico-normativos à realização do direito: “a
64

dogmática não é uma teoria de proposições apodicticamente verdadeiras, mas


fundamentação de decisões práticas” (F. WIEACKER, “Zur praktischen Leistung der
Rechtsdogmatik”, in Hermeneutik und dialektik. fest. für Gadamer, II, 312 e ss.; U.
MEYER-CORDING, Kann der Jurist heute noch Dogmatiker sein?, 20 e ss., e passim).
Este sentido e este compromisso prático-normativos do pensamento jurídico não
poderiam, por outro lado, deixar de implicar a convocação de fundamentos normativos
extratextuais (relativamente às positivas normas jurídicas), sejam eles interesses, fins ou
valores, enquanto factores decisivos quer da determinação do sentido normativo-
-jurídico das normas e do seu concreto cumprimento, quer da integração e do
desenvolvimento do sistema positivo que a referência à problematicidade concreta da
realização do direito revela continuamente necessário. Por tudo o que o pensamento
jurídico deixava de ser tão-só o analítico-teorético conhecimento (a “reprodução”) de
um direito pressupostamente constituído a que se seguiria uma mera aplicação, para
participar ele também na normativa constituição (na “produção”) do direito através da
sua problemático-concreta e judicativo-decisória realização histórica – e enquanto uma
tal realização exige já uma concretização, já uma integração, já um autónomo
desenvolvimento constitutivo do direito positivo. O pensamento jurídico revelava-se
assim normativamente constitutivo.
Aliás, não foram estes resultados mais do que o retomar de uma ideia capital
para a compreensão do verdadeiro sentido do direito e que o normativismo, na sua
intenção teorético-normativa abstracta e lógico-conceitual, minimizava. E que é esta: o
direito não o é antes da sua realização, pois só na sua realização adquire a sua autêntica
existência e vem à sua autêntica realidade. Já o disse expressivamente IHERING: “O
direito existe para se realizar. A realização do direito é a vida e a verdade do direito; ela
é o próprio direito. O que não passa à realidade, o que não existe senão nas leis e sobre
o papel, não é mais do que um fantasma de direito, não são senão palavras. Ao
contrário, o que se realiza como direito é o direito (...)” (L'Esprit du droit romain, trad.
franc., III, 16). E há uma razão essencial para que as coisas se compreendam assim. É
que também no direito – e sobretudo no direito como entidade prática – a determinação
da “essência” não comprova a “existência”: o direito não é (não é direito) sem se
manifestar na prática e como uma prática. Não temos direito só porque pensamos a
essência jurídica ou a juridicidade, ou porque construímos um sistema de normatividade
jurídica – teremos quando muito a possibilidade (ideal) do jurídico e nada mais. Só o
cumprimento histórico-concreto, que lhe permite afirmar-se como efectiva dimensão da
65

prática humano-social, transforma a juridicidade em direito. “Só a ordem que tem força
conformadora da realidade – considera analogamente WELZEL, Naturrecht und
materiale Gerechtigkeit, 4.ª ed., 165 – é direito, e a ordem ideal que não possui essa
força, não preenche esse elementar pressuposto do conceito de direito”.
E que a realização do direito exige que se ultrapasse constitutivamente (em
termos normativamente constitutivos) um qualquer sistema abstracto de normas, que
portanto o direito realizando não coincida com o oferecido na abstracta autonomia desse
sistema e será antes função da problemática concreta dessa realização, é o que também
se compreenderá tendo em conta três pontos.
Se voltarmos a ter presente que a historicidade da problemática normativo-
-jurídica implicada pela realização concreta do direito obriga o pensamento jurídico a
dar-se conta de todos os limites normativos, já atrás aludidos, da normatividade
objectivamente pressuposta para cumprir a intenção do direito que a ordem jurídica
postula, logo se concluirá pela necessidade de um contínuo desenvolvimento
constitutivamente integrante daquela normatividade jurídica pressuposta. O que obriga,
com efeito, à referência a outros critérios e fundamentos que dêem validade a essa
constitutiva integração, para além daqueles que imediatamente ofereça a disponível
normatividade positiva. Obriga, em último termo, à contínua referência àqueles mesmos
valores e princípios normativos (princípios transpositivos e mesmo suprapositivos,
como se verá a propósito do jurisprudencialismo) que, sendo os fundamentos
regulativos da ordem jurídica e do seu sistema normativo, hão-de ser também os últimos
e decisivos fundamentos-critérios de realização do direito.
Em segundo lugar, há que atender à indivisível solidariedade, verdadeiramente
unidade normativo-metodológica entre a “interpretação” e a “aplicação” – tomadas estas
categorias nos termos por que foram discriminadas pela metodologia jurídica
normativística. Pois também aqui há muito se sabe que “a interpretação é o resultado do
seu resultado” (G. RADBRUCH), que não é ela uma determinação a priori, seja exegética
ou analítica, de uma normatividade subsistente em abstracto ou em si, sendo pelo
contrário constituída pela relação hermenêutico-normativa entre a norma e o caso
concreto, e relação essa que não só integra a realidade social, que o caso manifesta, no
processo normativo da realização do direito e assim a revela um momento constitutivo
da própria normatividade jurídica (ponto este especialmente analisado por F. MÜLLER,
Normstruktur und Normativität, 77, ss., 184, ss., e passim, ID., Juristische Methodik, 6.ª
ed., 138, ss.), como obriga ainda a concluir que a interpretação apenas se consuma na
66

decisão concreta e que é o conteúdo normativo-jurídico assim constituído – segundo o


esquema do círculo hermenêutico, se quisermos – que acaba por imputar-se à norma
interpretanda, enriquecendo-a e determinando-a nessa mesma medida (v., para
desenvolvimento, Questão-de-facto – Questão-de-direito, 286, ss.; F. MÜLLER,
Normstruktur, cit., 192, ss. e passim). O que, conjugado com o ponto anterior, implica
ainda ter de concluir-se que nesta interpretação-realização a norma se vê duplamente
transcendida: não apenas pela realização do concretum decidendo, a exigir o
constitutivo desenvolvimento concretizador, mas ainda pela normatividade da
intencionalidade jurídica fundamentante, pelos princípios jurídicos em que se determina
o sentido do direito desde logo, e por isso a realização do direito, ao assimilar estas duas
dimensões translegais, embora porventura através da norma jurídica positiva, tem de
reconhecer-se com uma irrecusável autonomia constitutiva. E tudo isto, decerto, em
referência às próprias normas “determinadas”, pois quanto às prescrições
indeterminadas (com cláusulas gerais, conceitos indeterminados, conceitos de valor,
etc.), incompletas (p. ex., no caso dos “tipos abertos”) ou de discricionariedade, a
autónoma função constitutiva da realização do direito é a própria evidência.
Em terceiro lugar, e como resulta já dos dois pontos anteriores, não menos se
reconhece um continuum entre a interpretação e a integração – integração que se alarga
para além do domínio estrito das lacunas, o domínio das omissões intra-sistemáticas,
para abranger ainda a autónoma constituição normativa transistemática, como já no-lo
mostrou concludentemente LARENZ (v. Wegweiser zu richterlicher Rechtsschöpfung, in
Nikisch - Fest., 290, ss.; ID., Methodenlehre, 6.ª ed., 413, ss.), seguido de CANARIS (v.
Die Feststellung von Lücken im Gesetz, 2.ª ed., 129, ss., e passim). Ponto este que
também, desde que HECK para ele começou a chamar a atenção, é hoje um resultado
adquirido pelo pensamento metodológico, ao dar-se este conta de que o núcleo da
normativa realização do direito se revela na dialéctica entre um constituído (o critério
normativo pressuposto) e um constituendo (o normativo de contínua integração), e
constituendo que apenas se acentua à medida que o normativo constituído se vai
rarefazendo e mesmo formalmente desaparece, mas sem que esteja ausente em nenhum
momento ou acto da concreta realização jurídica. Que tanto é dizer que os limites entre
“o direito que é” e “o direito que deve ser” – distinção de que se alimentava, como
sabemos, o normativismo jurídico positivista – se esfumam, pois que é num dever-ser
assumido autonomamente pelo pensamento em termos fundamentantes e constituintes
que o direito positivo acaba por ter o critério decisivo da sua interpretação e integração.
67

O que faz também com que estes três momentos, logicamente distintos em abstracto,
sejam metodologicamente indescerníveis em concreto, já que todos eles se integram no
mesmo objectivo prático-normativo: a válida ou “justa” (com justeza material)
realização do direito através da mediação que ofereça (enquanto e no grau em que a
ofereça) o pressuposto direito positivo.
Numa palavra, o sistema normativisticamente positivo acaba por ser apenas um
conjunto de formais critérios jurídicos utilizados ao serviço de uma intenção normativa
que o ultrapassa. O que do mesmo passo significa que o direito histórico-socialmente
realizado é bem mais vasto e rico do que aquele que apenas pela normativa legalidade
se define no seu corpus formalmente prescrito.
E se com isto se põe directamente em causa o autonomismo abstracto do
normativismo (o direito existiria objectivamente no sistema abstracto das normas) é esta
uma conclusão que também já hoje geralmente se reconhece. Consideremos esta
expressiva formulação de P. NERHOT (Interpretation in legal sciences. The notion of
narrative coherence, in P. NERHOT (ed.), Law, Interpretation and Reality, 197), entre
inúmeras outras que podiam ser citadas: “By defining the law as a „system of norms‟
one is in fact entering a complete blind alley as to what the law might be.”
) O racionalismo não é menos nessa expressão errada da racionalidade jurídica.
A razão jurídica não pertence à “razão teórica”, mas à “razão prática” – só a razão
prática pode assumir a intenção prático-normativa da juridicidade, ainda que não
importe saber neste momento que modalidade particular da razão prática lhe é
especificamente própria, se a racionalidade hermenêutica, a racionalidade tópico-
-retórica ou argumentativa, a racionalidade teleológica ou porventura uma racionalidade
prática especificamente jurídica (sistemático-problematicamente normativa e
dialecticamente judicativa) – sobre este ponto, pode ver-se desde já, Metodologia
jurídica, 70-81, 155-159).
E será ilusório pensar que através de uma conceitualização dogmática se
lograsse converter essa racionalidade prática numa racionalidade só teorético-cognitiva
– como vimos ter sido uma tentativa particularmente caracterizadora do normativismo.
Tal só seria possível, como também já pudemos compreender, se a objectiva
normatividade jurídica se fechasse sobre si própria num sistema dogmático de todo
alheado do diálogo problematicamente normativo com a realidade prática que solicita o
direito e em que ele se deverá realizar, se fosse, pois, o direito essencialmente uma
lógica sem sentido prático (e “prático” qua tale, a implicar a validade axiológico-
68

-normativa referida à acção e a exigir justeza judicativa na acção) – que tanto é dizer, se
a normatividade jurídica renunciasse a ser normatividade do direito, se o direito
deixasse afinal de ser direito.
Nem por outra razão a própria intenção dogmática do pensamento jurídico foi
chamada a uma índole também prática – ponto este já antes referido – ao compreender-
-se que a “dogmática” jurídica não poderia ser simplesmente conceitual (sistemático-
-conceitual) e antes de uma intencionalidade normativamente prática – através da
elaboração problematicamente reflectida de orientações ou modelos normativo-jurídicos
para a concreta realização do direito, pois de contrário deixaria mesmo de ter hoje
sentido (v. U. MEYER-CORDING, Kann der Jurist heute Dogmatiker Sein?, 20, ss., e
passim).
Por outro lado, também os valores em que o racionalismo jurídico dogmático-
-conceitual e sistemático-dedutivo poderia unicamente pensar, e que seriam tão-só os
valores formais da objectividade-segurança e da igualdade lógico-formal, se mostravam
insuficientes e superados nesse seu sentido. Pois é actualmente irrenunciável a
referência do direito a valores e princípios (normativo-materiais) que lhe assimilam, por
um lado, uma intenção de “justiça material” e, por outro lado, lhe garantam uma
realização de justeza concreta, em que a igualdade deixa de ser apenas formal para ser
também de sentido material. Nem é com outro sentido (de uma intenção normativo-
-material) que se pensa nos nossos dias inclusive a constitucionalidade (v., por todos,
GREGÓRIO PECES-BARBA, Los valores superiores, 1986; GUSTAVO ZAGREBELSKY, Il
diritto mite, passim).
) O atomismo abstracto-analítico e aproblemático com que o normativismo
pensava a realidade social da aplicação do direito não é menos fortemente criticável. E
essa crítica está feita, ao termo-nos dado conta de que a consideração apenas empírico-
-analítica dessa realidade, vendo nela tão-só “factos” discretos e por exigência de uma
estrita perspectiva lógica da referência das normas (também apenas lógico-
-conceitualmente entendidas) a essa realidade, abstraía da verdadeira realidade que
solicita o direito e em que ele é chamado a realizar-se: a realidade prática da inter-acção
comunitária, a manifestar-se em acontecimentos prático-sociais de uma unidade também
prático-significante e de que emergem os concretos problemas jurídicos (casos
jurídicos) decidendos. Casos jurídicos esses que, sendo embora a decisiva polarização
da referência prática do direito, o normativismo é insusceptível de pensar, preso como
está à sua estrita redução dicotómica de apenas normas/factos. Pelo que a abstracção
69

dessa realidade implica o esquecimento do problemático diálogo de validade normativa


que o direito, enquanto direito, deve manter com a realidade social, para lhe substituir a
preocupação de garantir a lógica aplicação das normas. O seu universo é tão-só o
universo lógico das normas. Daí que uma das mais insistentes censuras ao pensamento
jurídico normativista, a sua alienação das exigências da realização normativa e
praticamente adequada (com problemática justeza material) do direito e assim dos
verdadeiros problemas normativo-jurídicos da prática jurídica, tem naquela
inconsideração a sua incontestável razão de ser.
) O logicismo metódico é, por último, um erro metodológico cuja crítica há
muito está feita e que já hoje se pode ter por definitivamente superado. Crítica e
superação que se reconhecem concludentes nos dois planos a que importa atender: tanto
“de facto” ou mostrado que a realização do direito nunca opera efectivamente segundo
um esquema só lógico-subsuntivo de aplicação, como “de iure”, ao concluir-se que a
realização do direito não deve orientar-se metodologicamente por esse esquema
metódico. Quanto ao primeiro ponto, há que ter presente todas as investigações que
tiveram por objecto a análise do efectivo proceder das sentenças judiciais (v. Método
jurídico, in Digesta, II, 309, ss.); quanto ao segundo ponto, dir-se-á que é nesse sentido
toda a actual reflexão metodológico-jurídica (v., Metodologia jurídica, passim). Por isso
se vê hoje o pensamento jurídico numa indesmentível situação “pós-positivista” (pós-
-positivístico-normativista) e justamente pelo reconhecimento de uma indefectível
mediação prático-normativa na concreta realização do direito.
70

CAPÍTULO II
O FUNCIONALISMO

O normativismo fechava a normatividade jurídica numa sua postulada


autonomia – aquela autonomia que um sistema lógico-conceitualmente dogmático de
normas constituiria e desenvolveria numa sua específica racionalidade. Racionalidade
que tendia a ser assim uma lógica de normas e que, como tal, pensava em último termo
o direito como uma juridicidade formal. Ora, querendo vencer esta autonomia lógico-
-dogmática e formal para passar a comprometer o direito com as exigências da realidade
prática (a realidade histórico-social, com as suas dimensões política, social em sentido
estrito, económica, etc.), querendo mesmo pensá-lo como função normativa dessas
práticas exigências contextuais, foi o que determinou a formação de uma outra
perspectiva da juridicidade, que se designará por funcionalismo jurídico.
É esta uma perspectiva complexa, em que teremos de diferenciar diversas
modalidades, podendo embora dizer-se em geral que a maioria dessas modalidades se
propôs aquilo que se tem designado por materialização da juridicidade (materialização
por referência social ou pela assimilação jurídica daquelas exigências da realidade
histórico-social, em oposição à formalidade jurídica normativista). Salvo, porém, quanto
à modalidade específica do “funcionalismo sistémico”, no qual uma intenção apenas de
estruturação de uma contingência prática materialmente de todo variável e irredutível,
que seria própria das sociedades contemporâneas, não deixa de ter também uma índole
só formal – posto que de uma formalidade sistémico-funcional decerto bem diferente da
que correspondia ao normativismo –, não comungando, portanto, naquela
materialização do jurídico, que tem mesmo por actualmente impensável. Tudo o que
veremos.
De momento, o que importa acentuar é que o funcionalismo jurídico será
também caracterizado pelas respostas, pelas suas diferentes e específicas respostas, às
três perguntas que conhecemos e foram enunciadas em geral. Só que aqui são
indispensáveis alguns esclarecimentos prévios, de que sumariamente nos temos
primeiro de ocupar.
71

1. a) Devemos, em primeiro lugar, considerar que o funcionalismo que nos


nossos dias está a atingir tão fortemente o pensamento jurídico, como que numa
diferente recompreensão do direito, não deixa de ser a expressão final, e justamente no
universo jurídico, de certa atitude da cultura europeia que se começou a forjar também
no pensamento moderno, em ruptura com o paradigma cultural clássico, e que se
radicalizou no nosso século. O pensamento clássico, com base platónico-aristotélica e
numa atitude teorética (contemplativa) perante o Ser ou a “ordem natural” de um
cosmos, tendia a pensar sempre em termos ontológicos, já mais substancialistas, já mais
essencialistas – posto que um ontológico a que seria imanente uma teleologia, a
teleologia da manifestação e desenvolvimento dos seres na sua específica perfeição e
assim na dinâmica de “potência” a “acto” (ARISTÓTELES). Saber, sabemo-lo e também
já o dissemos, era referir algo como ser-objecto, ou no modo de uma entidade que seria
em si, e determiná-lo categorial-conceitualmente numa estrutura racional que culminava
num juízo proporcional de verdade. Enquanto que para o homem moderno seria outra a
sua compreensão do Ser – não já aquele ser em si, fosse parménico (de uma
permanência estática), fosse aristotélico (de uma imanente dinâmica e teleologia
manifestantes) e numa subsistência absoluta a solicitar apenas uma inteligibilidade
determinativa, e sim uma energeia, um ser de energia dinâmica e evolutiva que se
desenvolvia com novidade, com irreversibilidade e com historicidade – ser de uma
aberta indeterminação que permitiria a intervenção transformadora e de todo alheio ao
“eterno retorno do mesmo”, ou ao carácter cíclico de tudo e particularmente do tempo,
que esteve sempre latente no pensamento grego. Aliás, a física moderna não só nos pôs
como que perante uma irreversibilidade essencial na manifestação e compreensão dos
fenómenos inteligíveis (I. PRIGOGINE, O fim das certezas, 1996, na trad. port.) como
veio revelar que o universo teria tido um começo (a hipótese do big bang) e que na sua
transformadora evolução (em retracção ou em expansão?) terá um termo (a hipótese do
big crunch), ambos já porventura susceptíveis de se determinarem num cálculo de
tempo, que assim o cosmos não seria afinal eterno (sem princípio, nem fim, na sua
absoluta subsistência ontológica) e acabado e perfeito (no modo de ser desse absoluto
que manifestaria) como pensavam os gregos e com eles em geral todo o pensamento
clássico (embora não o cristianismo, dada a invocação da Criação e o próprio problema
teológico, e até antropológico, do começo – v. sobre este problema S. AGOSTINHO,
Civitas Dei, Liv. XI, Cap. 4, ss.), mas antes de uma contingência que é um mistério e de
uma precariedade que exclui o sentido a “essências” substanciais últimas e absolutas. A
72

permitir inclusive a ironia dos filósofos para com a filosofia tradicional e os seus
poderes (“O Sol, a nossa terra e o vosso pensamento não terão sido mais do que um
estado espasmódico de energia, um instante de ordem estabelecida, um sorriso esboçado
pela matéria a um canto do cosmos (...) O cataclismo da matéria. Concordem que esta é
uma grande divergência entre o nosso pensamento e o pensamento clássico e moderno
do Ocidente (...)” – J. F. LYOTARD, L’Inhumain. Causeries sur le temps, 1988, cap. I).
Ser, pois, que, nessa sua energia criadora transformadora e evolutiva, excluía a
referência que apenas compreendesse o “ser enquanto ser” (ARISTÓTELES) para lhe
substituir – e é este um ponto de importância capital – uma sua consideração sobretudo
pelos resultados que produzisse ou pela possibilidade de efeitos que oferecesse. O que
significava, e é a conclusão relevante, que a compreensão do ser, e com ela a de tudo,
adquiria um sentido funcional e se via submetido ao tipo de razão que HORKHEIMER
designou por “razão instrumental” (HORKHEIMER, Zur Kritik der instrumentellen
Vernunft, 2.ª ed.).
Assim como o homem, a estrito nível antropológico e numa directa correlação
com essa compreensão do Ser, deixou de ser um homem simplesmente contemplativo
que procura a verdade e que no conhecimento teórico da verdade absoluta teria a sua
plena realização e a sua felicidade (refira-se de novo ARISTÓTELES), para se assumir
como um homem agente capaz de numa intenção de mobilização criadora que a própria
ciência, projectada no Gestell da técnica (HEIDEGGER), permitiria – recorde-se o scientia
propter potentiam de F. BACON e que teve a sua expressão forte (e também ingénua,
sabe-se igualmente hoje) na fé iluminista na razão-ciência e no “progresso” que ela
parecia prometer; e não menos, ainda que com a intervenção também de outros
pressupostos, na mutação de sentido proposta pelo marxismo e enunciada na conhecida
tese XI sobre FEUERBACH (“os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de
diferentes modos, e trata-se agora de o transformar”). Um homem, pois, senhor do seu
destino (daí resultou, em perspectiva religiosa, a secularização) que é o construtor do
seu mundo, que vive exclusivamente na história (o imanentismo metafísico de acabada
expressão em HEGEL) e como ser histórico ou da história (mais do que como ser de uma
“natureza”) e que a orienta funcionalmente segundo a opção dos seus projectos.
Corolários de tudo isto, pela mediação da autonomia desse homem moderno e da
convocação da sua subjectividade como fundamentante última em todos os domínios: a
libertação da política, o pragmatismo filosófico, o utilitarismo social (esta consequência
também da libertação do económico). Depois, já no nosso tempo, as formas radicais do
73

secularismo militante, da incondicional libertação perante a ética e em que a uma


“lógica do dever” (trans-individual) se sucede uma “lógica do direito”, só de direitos
individuais que acabaram por confundir-se com interesses (cfr. G. LIPOVETSKY, O
crepúsculo do dever, trad. port.), tal como no plano social o materialismo utilitarista do
bem-estar, a convocação do Estado simplesmente para o desenvolvimento e a satisfação
económico-social, enquanto Welfare State, etc. E se de sentido diferente é o projecto
crítico e também transformador da “emancipação”, não deixa ele de funcionalizar
igualmente a compreensão da realidade (da realidade social em último termo) e a
intervenção nela.
Daí, como natural e final consequência, que a substância (subsistência de uma
identidade material) tivesse de enfrentar e de ceder à função (relação condicionante do
diferente) no pensamento em geral e também no pensamento jurídico (v.
Substanzbegriff und Funktionsbegriff, de CASSIRER, 1910, para o primeiro, e Substanz
und Funktionsbegriff in der Rechtsphilosophie, de SIEGRIED MARK, 1925, para o
segundo, posto que em intenção crítica), tal como analogamente também no pensamento
jurídico a estrutura se vê considerada vs. função (v. BOBBIO, Dalla struttura alla
funzione, 1977).
E igualmente se poderá compreender que o “funcionalismo” se tenha volvido
uma nova perspectiva para o pensamento e que particularmente no domínio da
inteligibilidade da praxis humano-social se haja convertido numa verdadeira “filosofia
social” (N. BOBBIO), tal como no pensamento clássico fora o “teleologismo” (o
teleologismo implicado, como se viu, no ontológico) e no pensamento moderno
(pensamento de sentido científico-empírico) o “causalismo”. Abandona-se, de novo se
diga, o ponto de vista da consideração do ser no modo de constâncias essenciais (ainda
que com as possibilidades dinâmicas que as teleologias das essências revelassem) e não
menos no modo do determinismo das causas a produzirem necessariamente certos
efeitos (em que a ideia de uma constância última, a de uma ordenação globalmente
pressuposta, se mantinha, embora já não ontológica, mas empírica) e adopta-se o ponto
de vista da variação contingente de variáveis no quadro complexo de estruturas
organizatórias ou de sistemas referíveis, com o objectivo de uma mobilização de
possibilidades e meios para uma programação estratégica de fins controláveis pelos
efeitos.
74

b) Se fomos assim postos perante a perspectiva cultural do funcionalismo em


geral, impõe-se todavia uma dilucidação do conceito de função, já que sem esse
conceito o entendimento do próprio funcionalismo não só seria insuficiente como ficaria
pouco claro – além de que esse conceito, se lhe vai decerto implicado, não é simples,
nem unívoco.
Deixemos de lado o conceito clássico da functio, a designar o desempenho de
um munus (o munus do sacerdote, do educador, do governante, etc.), e que também
juridicamente se tornou comum para referir quer poderes-deveres (p. ex., do pai, do
tutor, do administrador, etc.), quer a tarefa ou o conjunto das tarefas definidas por um
estatuto de serviço (a função do funcionário). Mais importante será considerar o seu
conceito matemático – e porventura o que no pensamento moderno, desde o séc. XVI,
primeiro se diferenciou – a enunciar a correlativa condicionalidade/dependência de
variáveis, já numa relação imediata entre elas (p. ex., a dependência de uma grandeza,
como variável dependente, de uma outra como variável independente), já no quadro de
um determinado conjunto (cada factor-variável tem um valor e um relevo dependente
dos outros: “a variable whose are determined by these of one or mere other variable”), e
simultaneamente a equivalência entre elas como elementos do conjunto e para a sua
formação ou funcionamento (a “equivalência funcional”).
Numa outra linha, em que as qualidades do elemento ou a sua materialidade já
tem relevo, função será a operação ou a actuação específica de algo com ergon, aquele
operar ou actuar próprio de algo e que por isso se diz a sua função (a função do olho é
olhar, a da caneta é escrever, a do martelo é martelar, etc.). Diferente será o sentido
ainda de referência operatória, mas já de uma operatória finalisticamente relacionável,
aquela pensada mediante o esquema meio/fim e segundo o qual o “meio”, se haverá de
ter decerto certas qualidades, não importa ou vale por si, mas pela aptidão para através
dele se realizar o fim prefixado. Nesta relação operatória o prioritário e o mais
importante será o fim ou os fins visados e o que lhe é relativo e a ele se “funcionaliza”
será o meio ou os meios mobilizáveis para o seu cumprimento. Reconhecer-se-á
também implícito nesta relacional e finalística operatória ainda uma qualquer forma de
causalismo (o operar com o meio à causante dos efeitos que serão a realização do fim).
Trata-se de um conceito de função que o sentido mais comum do finalismo jurídico
sobretudo convoca (v., por todos, A. SANCHEZ DE LA TORRE, Sociología del Derecho,
1985, 80, ss.) e que se vai efectivamente revelar importante para algumas das
modalidades desse funcionalismo.
75

Perspectiva distinta é a que vê a “função” na pressuposição de um todo e


segundo o processo de uma dinâmica específica. É um conceito com origem,
particularmente relevante, na biologia, na psicologia, etc., em que o “todo” é entendido
como organismo e que por isso se poderá dizer um conceito fisiológico (“funções que o
organismo ou a mente desenvolvem em resposta às necessidades do indivíduo”) – e
adoptado analogicamente também pela sociologia, embora por certas orientações menos
actuais da sociologia –: função será, neste sentido, “a prestação continuada que um
determinado órgão dá para a conservação e o desenvolvimento de um organismo
considerado no seu todo”. Com duas notas, no entanto: a relação meio/fim é aqui
substituída pela relação todo/parte (o elemento vale como elemento de um todo e pela
sua aptidão operatória nesse todo), embora o todo seja também pensado como um todo
finalizado, um todo que cumpre um fim (a realização da vida, a afirmação de
individualidade, etc.) e em que, portanto, não está inteiramente alheia a relação causal,
ainda que de uma causalidade em que o todo é maior (no seu efeito globalmente
finalizado e logrado) do que a soma (a mera causação acumulada) das partes.
Um passo mais, caracterizado pelo abandono não só de categorias pensadas para
além do processo global, posto que através dele, e que teriam ainda laivos “metafísicos”
próprios da ontológica teleologia clássica (a “vida”, a “individualidade”, etc.), como da
própria referência a “fim” (a fins), que ainda se mantinha no conceito anterior, e para
que, ao atingir-se um conceito de função libertado justamente da consideração de fim,
um “Zweckfrei Funktionsbegriff” (LUHMANN, Soziologische Aufklärung, 1, 4.ª ed., 10),
tivéssemos um seu conceito rigorosamente funcional. Traduziu-se esse passo na
substituição do conceito de “organismo” pelo de “sistema” e para referir a auto-
-organização unitária de um complexo de relações entre elementos (“Complex of
interacting elements”) enquanto variáveis no processo dessa organização – auto-
-organização que já não convoca nada mais para além dela enquanto tal, embora postule
uma identidade (a identidade de invariância auto-organizada) e correlativamente uma
diferenciação perante o meio exterior do sistema, e que será o seu “mundo”, como que
num esforço de neguentropia (entropia negativa). Acentue-se, porém: se a auto-
-organização é um processo interno, o seu relevo está sobretudo em manifestar e
garantir uma diferenciada autonomia perante o meio exterior; o que significa que a
relação importante é agora a relação sistema/meio exterior. Conceito este do sistema
que foi adoptado e se generalizou em todos os domínios em que se queira pensar a
racionalização de uma complexidade, desde a física e química à biologia, desde a
76

sociologia às ciências humanas em geral (política, ecologia, direito, etc.), a ponto de


essa insistente generalização justificar que se fale de uma actual “galáxia auto” (P.
ROSANVALON) – v. L'Auto-organisation, De la physique au politique, Colloque de
Cerisy, sob a direcção de Paul Dumonchet et Jean-Pierre Dupoy, 1983. E falando de
“sistema” nestes termos, não pode omitir-se desde já uma distinção cuja acabada
caracterização e relevo melhor compreenderemos noutra oportunidade – a distinção
entre uma compreensão “cibernética” e uma compreensão “autopoiética” de sistema e
que tem sobretudo a ver com dois modos diversos de entender o seu processo de
“identidade e diferenciação” (N. LUHMANN, Soziale Systeme, 26) ou a diferenciação e a
autonomia do sistema perante o meio exterior. No primeiro caso, a incidência é feita na
diferenciação por adaptação covariante do sistema com o meio e o sistema é visto como
um “sistema aberto” (L. V. BERTALANFFY, General System Theory. Foundations,
Development, Applications, 4.ª ed.: no segundo caso, pelo contrário, acentua-se a
autonomia do sistema perante a complexidade dinâmica do meio, e que ele garantiria
por um processo de auto-referência reconstitutiva, a reconstrução dos elementos do
sistema através de outros seus elementos (“auto-poiésis”), e assim numa “clausura” de
sentido (de comunicação) e constitutiva, ainda que com abertura às informações
recebidas do meio e consideradas como estímulos-“ruído” (N. LUHMANN, ob. cit.,
passim; ID., Die Einheit des Rechtssystems, in Rechtstheorie, 14 (1985), 129, ss.; G.
TEUBNER, Recht als autopoietisches System, passim). De momento, todavia, o que
importa considerar é que a referência ao sistema, em termos amplos ou a abranger as
duas modalidades aludidas, determina já estritamente a adopção de “the functional
point of view” para o conceito de “função” – a implicar assim uma acabada
“desontologização” dos elementos relevantes a favor da só “funcionalização” deles na
exclusiva referência sistémica. Trata-se, pois, de um conceito sistémico da função que
se enunciará nestes termos: a função será a exigência ou as exigências performativas
que um sistema implica quer para os seus elementos em ordem à diferenciada
subsistência, ao equilíbrio auto-organizado e ao desenvolvimento autónomo do sistema,
quer para o próprio sistema enquanto tal e que igualmente lhe garanta a sua
identidade/diferenciação perante os outros sistemas ou o meio exterior (o seu “mundo”);
de outro modo, os contributos ou prestações que os elementos de um sistema são
chamados a realizar justamente como elementos dele e como possibilidades auto-
-referidas na sua constitutiva auto-organização (“autopoiésis”).
77

Só que este conceito admitirá ainda uma diferenciação consoante se considerem


apenas as consequências objectivas que o elemento ou os elementos operem como tais
no sistema (e o conceito sistémico de função será entendido numa estrita perspectiva
analítico-objectiva) ou também os efeitos que mediante o elemento ou elementos se
projectam alcançar num processo finalizado que opere com eles, dadas as possibilidades
que nesse sentido ofereçam como elementos do sistema (e o conceito sistémico de
função já será visto numa perspectiva de finalidade subjectivamente programada). Neste
segundo entendimento dir-se-á, na definição de VICENZO FERRARI (Funzioni del diritto,
20-25), que “função” de um elemento operante no sistema é “a tarefa ou o conjunto de
tarefas, não incompatíveis entre si, que são atribuíveis primariamente a (um qualquer)
elemento (do sistema) pelo sujeito que actua mediante ele no sistema” (p. ex., a “função
económico-social” ou a “causa” do negócio jurídico no sistema jurídico-social e
mobilizável para o fim em que o sujeito veja o seu motivo de negociar). Com três notas
a sublinhar. Por um lado, a funcionalidade é compreendida em geral, ou num caso e
noutro, por um tipo especial de efeito no quadro sistémico – “função é caracterizada por
um tipo especial de efeito” (LUHMANN, Funktion und Kausalität, in Soziologische
Aufklärung, I, 10) –; por outro lado, essa funcionalidade pressupõe uma particular
aptidão do elemento, pelas suas características, para o efeito relevante e assim não se
pode ver o elemento como inteiramente fungível ou como uma simples variável; por
outro lado ainda, e agora em referência só àquele segundo sentido diferenciado, retoma-
-se de algum modo o esquema meio/fim na definição da função. E numa síntese poderá
dizer-se que, nestes termos, função é um conceito de sentido consequentemente
operatório que refere um elemento de um sistema e aí com uma particular actividade a
que se reconhecem (estruturante e pressupostamente) certos efeitos sistémicos ou a que
se imputam e por que se programam (opcional e finalisticamente) certos fins
(objectivos) e de que se esperam certos resultados/efeitos.
Compreende-se assim que este conceito (ou estes conceitos) de função se veja
objecto de uma crítica determinada pela intenção de caminhar para uma radical
perspectiva funcionalística. Segundo LUHMANN (ob. loc. cit., 10, ss.) continuaria nesse
conceito uma “latente causalidade” – os elementos do sistema não deixavam, daquele
modo, de ser vistos como “causas” particulares de certos efeitos no sistema – assim
como relativamente ao próprio sistema não estaria de todo ausente urna perspectiva
“ontológica” – na determinação dele em termos ainda de “ser-e-não-ser” (“Seins-und-
-nicht-Nichtseins”). Quer dizer, deste modo e tendo sobretudo em atenção essa alegada
78

persistência “ontológica”, uma estrutura subsistente mantinha-se como o pressuposto


decisivo do entendimento da função: uma estrutura, que em si se postulava, implicava e
determinava o sentido da função (das funções). Daí que o funcionalismo autêntico
houvesse de libertar-se tanto deste ontologismo, como, e sobretudo, daquele causalismo:
“a função, diz nesta linha LUHMANN (ob. cit., 14), não é um efeito causante, mas um
esquema regulativo de prestações equivalentes; designa um especial ponto de vista a
partir do qual possibilidades diferentes podem ser concebidas num aspecto unitário,
nesta perspectiva as prestações particulares aparecem como equivalentes, permutáveis
entre si, fungíveis, posto que enquanto fenómenos concretos sejam incomparavelmente
diferentes”. Assim, p. ex., se segundo MALINOWSKI a função do rito será a de facilitar a
adaptação em situações emocionalmente difíceis, pode-se perguntar quais outras
possibilidades de soluções existem para este problema e então o rito entra numa relação
de equivalência funcional com outras possibilidades, como porventura lamentos,
irritação, humor, roer as unhas..., etc. Com o que a “desontologização” e a causalidade
dos elementos funcionais para só considerar a funcionalidade enquanto tal seria
completa, seriam eles relevantes tão só como puras variáveis nessa equivalência
funcional – “a classe de todas as possibilidades funcionalmente equivalentes é
designada geralmente como variável” (LUHMANN). Por outro lado, “o domínio da
equivalência de uma função dependerá da definição do ponto de vista funcional de
referência (Bezugsgesichtspunktes) e, inversamente, esta definição tem a função de
constituir um tal domínio de equivalência e é justificado somente através desta
capacidade de ordenação” – “para tornar compreensível a equivalência funcional basta
uma relativa invariância de um ponto de vista de referência que seja separável de outros
pontos de vista de referência”. Assim teríamos um conceito da função num
“funcionalismo de equivalência” (H. RYFFEL) ou apenas funcionalisticamente definido,
que se aproximaria do seu conceito matemático e se poderia enunciar, ainda segundo
LUHMANN, nos termos da definição de KANT: uma função é “a unidade de acção a
ordenar representações diferentes sob um ponto de vista comum (gemeinschaftlichen)”.
E com duas consequências: não só deixaria de ser uma qualquer relação causal
pressuposto de função, e pelo contrário ter-se-ia de ver na “relação causal um caso de
aplicação da ordenação funcional” (sobre este ponto, v. LUHMANN, ob. cit., 16, ss.)
como a funcionalidade não implicaria a prévia consideração de um sistema e antes seria
o ponto de vista de referência postulado (p. ex. pelo objectivo determinante), que
implicaria a escolha, dentre as prestações funcionalmente equivalentes, das funções que
79

se tivessem por relevantes e bem assim a sua ordenação numa estrutura, num sistema de
organização e contrôle eficientes.
Com o que afinal a relação entre estrutura/sistema e função se inverteria: não
seria a estrutura/sistema a determinar a função ou funções, mas a funcionalidade
reflexiva de um ponto de vista de referência e de objectiva relevância a determinar a
estrutura/sistema que seria correlativamente adequado. O que imporia que a uma
perspectiva “estrutural-funcional”, em que o conceito de estrutura se pré-ordena ao
conceito de função e se pergunta pelas prestações funcionais que o sistema exige, se
substituísse uma perspectiva “funcional-estrutural”, em que o conceito da função se
pré-ordena ao conceito de estrutura e que permitirá “perguntar pelas funções de
estruturas sistémicas sem ter de pressupor uma integrante estrutura de sistema como
ponto de referência” e assim problematizar também o próprio sentido da formação do
sistema. Aquela primeira perspectiva terá sido a do pensamento sociológico de
PARSONS, esta segunda a que LUHMANN adopta e lhe contrapõe (v., deste último A.,
Soziologie als Theorie sozialer Systeme, in Soziologische Aufklärung, cit., 113, ss.).
Inversão de perspectiva de cujo relevo para entender o funcionalismo jurídico nos
daremos conta.
E não terminaremos esta determinação conceitual sem uma última observação.
Se acabamos de ver a fungibilidade e a equifinalidade a caracterizarem o conceito mais
funcionalístico de função, também sempre e em geral, como podemos compreender por
tudo o que foi dito, esse conceito excluirá uma qualquer reductio ad unum, um qualquer
monismo e mesmo uma qualquer linearidade de determinação e de consequência, pois
que a possível variação das referências, dos contextos sistemáticos e dos objectivos o
que implicará é antes um irredutível pluralismo funcional. Daí a conclusão de que não
há um só funcionalismo, que este se traduz sempre em possíveis funcionalidades
diversas, pelo menos em diferentes modalidades de um funcionalismo global –
exactamente o que se verificará no funcionalismo jurídico.

c) Um terceiro esclarecimento prévio é o que nos leva a considerar o tema hoje


recorrente das “funções do direito”. Trata-se de um tema que foi decerto suscitado pela
mutação funcionalista no pensamento em geral e enquanto repercute ela também no
universo jurídico. Tema vasto e complexo, que vemos analisado de diferentes
perspectivas (sociológica sobretudo, mas também filosófica e ainda no âmbito estrito da
teoria do direito) e objecto de uma já vastíssima bibliografia (v. especialmente, entre
80

muitos outros, o tomo XVII (1973/1974) do Anuario de Filosofia del Derecho, com as
Comunicaciones al IV Congreso Mundial de Filosofia Jurídica y Social dedicadas
exclusivamente ao tema das funções do direito sob diversos ângulos – “A função do
direito e as ideologias jurídicas”, “A função do direito e o sentido da normatividade”,
“As funções do direito nas sociedades”, “As funções do direito do ponto de vista do
homem” –; ARSP, Beiheft N. F. n.° 8 (1974), dedicado a Die Funktionen des Rechts;
Die Funktion des Rechts in der modernen Gesellschaft, in Jahrbuch für
Rechtssoziologie und Rechtstheorie, B. I (1970); N. BOBBIO, Verso una teoria
funzionalistica del diritto e L'analisi funzionale del diritto: tendenze e problemi, in
Dalla struttura alla funzione, Nuovi studi di teoria del diritto, 1977; ÁNGEL SÁNCHEZ DE
LA TORRE, Sociología del Derecho, 2.ª ed., 75, ss.; R. ZIPPELIUS, Grundbegriffe der
Rechts- und Staatssoziologie, 2.ª ed., 50, ss.; VICENZO FERRARI, Funzioni del diritto, 2.ª
ed.; GREGORIO ROBLES, Sociología del derecho, 1993, 141, ss.; ELÍAS DÍAZ, Curso de
Filosofia del derecho, 1998, 127, ss.; N. LUHMANN, Das Recht der Gesellschaft, 1995,
124, ss.).
Só que – e é este um ponto para nós fundamental – se é este um tema suscitado
pela perspectiva funcionalista, o certo é que nem sempre o vemos considerado
funcionalisticamente – e só esta última consideração nos importa em referência ao
funcionalismo jurídico. Com efeito, o direito não será tratado funcionalisticamente
quando simplesmente se lhe reconhecem funções ou se quer vê-lo a cumprir a “sua
função” e sim quando é convocado para certas funções que se pretende que ele realize –
quando não é visto em si mas como elemento numa relação ou num contexto
sistemicamente funcional. Só assim o direito será submetido a uma perspectiva
funcional e com a consequência decisiva de os objectivos ou os fins, os resultados ou os
efeitos relevantes não serem também em si jurídicos, mas transjurídicos, sejam eles
políticos, sociais, económicos, etc. (“certain non juridical purposes” – V. E. HOMMES),
posto que visados e porventura realizáveis do modus jurídico, através do
(funcionalmente ou instrumentalmente pelo) direito.
Distinção que se ignora quando, ao reflectir sobre as “funções do direito”, se põe
em dúvida a novidade e mesmo o interesse do tema (SÁNCHEZ DE LA TORRE), quando se
pergunta criticamente se “le droit a-t-il une fonction propre?” (SERGIO COTTA) e se
acaba por responder que a função do direito, a função específica e diferenciadora do
direito como direito, não é senão a de mobilizar o sentido do seu sein, “realizar a justiça
enquanto modo específico de ultrapassar a insegurança existencial” (assim, SERGIO
81

COTTA, ob. loc. cits.; em termos análogos, entre outros, LEGAZ Y LACAMBRA – ambos in
Die Funktionen des Rechts, respectivamente, pp. 113, ss., e 1, ss.). Do mesmo modo que
as duas perspectivas – de um lado a analítico-positiva e a reflexiva, de outro lado a
funcionalística – continuamente se cruzam ou se associam sem diferenciação em grande
parte dos autores, na sua enumeração, análise e comentário das “funções do direito”.
São inúmeros os contributos oferecidos nesta linha, sem que todavia muito se distingam
uns dos outros: seriam essas funções as de “certeza e segurança, e simultaneamente a
possibilidade de alteração, resolução dos conflitos de interesses, organização,
legitimação e limitação do poder político” (L. RECASENS SICHES); de “composição de
conflitos, regulação dos comportamentos, organização e legitimação do poder na
sociedade, estruturação das condições de vida na sociedade, administração da justiça”
(K. L. LLEWELLYN); de “orientação social, resolução de conflitos, legitimação de
poder” (V. FERRARI); funções para com a “sociedade global”, as de conservação da
colectividade, do seu desenvolvimento e da sua segurança, funções relativamente ao
“indivíduo”, as de racionalização como factor da personalização, de segurança, de
orientação acerca de muitos dos seus interesses, funções perante o Estado, as da sua
legitimação, de disciplina, de especializações de competências (A. SÁNCHEZ DE LA

TORRE); de “entre as funções sociais mais importantes do direito como sistema (ou
subsistema...) institucional”, destacar-se-iam “a função de delimitação de subsistemas
sociais, a função de manutenção da paz social, a função da legitimação do sistema social
e a função comunicacional” (GREGORIO ROBLES); as funções que lhe caberiam enquanto
“sistema de organização social”, seriam as de estabelecer e impor uma ordem social,
realizar a justiça, promover o controle social, e bem assim a integração, a informação e
a segurança, e por outro lado as funções que lhe corresponderiam também como “factor
de libertação e de mudança social” (ELÍAS DÍAZ); as funções de integração, de
estabilização, de resolução de conflitos, de racionalização (R. ZIPPELIUS); etc., etc.
Já diferente e, terá de dizer-se, mais esclarecida é a posição daqueles autores
que, pressupondo expressamente o sentido da distinção que enunciámos e não menos
conscientes das suas consequências, ou se opõem a uma compreensão finalística do
direito ou vêem nessa compreensão uma alteração fundamental da perspectiva que a
realidade sócio-jurídica imporia e o pensamento jurídico deveria assumir. Podemos
referir como eloquente exemplo da primeira atitude HANS RYFFEL (“Funktion” oder
“Aufgabe” des Rechts in der Gesellschaft?, in Anuario, cit., 119, ss.): o direito teria
uma tarefa específica a realizar na existência humana, mas não uma função; o conceito
82

de função implicaria uma significação de carácter instrumental e todo o instrumental é


potencialmente manipulável, enquanto que o direito transcenderia a mera
instrumentalidade e excluiria manipulação, pois tal como todas as outras fundamentais
determinações humanas, a religião, a arte, o conhecimento, a moralidade, não poderia
ser compreendido adequadamente como simples função no todo da sociedade, antes lhe
corresponderia um conteúdo de sentido essencial que se haveria de dizer
“substancialidade” – a substituição do conceito de substância pelo conceito de função
seria legítimo nas ciências naturais, não já nas ciências do homem e da sociedade –;
diferentemente com o conceito de tarefa, o qual, pela sua referência a um sentido de
compromisso humanamente assumido, seria susceptível de referir a normatividade, com
todas as dimensões implicadas, que iria essencialmente no sentido do direito, pelo que o
direito teria uma tarefa humano-normativa fundamental, não simplesmente funções e
que impusessem compreendê-lo como uma simples “função”. Quer dizer, nestes termos
o funcionalismo, e funcionalismo jurídico, é compreendido no seu exacto sentido, posto
que para ser recusado.
A segunda atitude das duas referidas é a de N. BOBBIO (Verso una teoria
funzionalistica del diritto e L'analisi funzionale del diritto: tendenze e problemi, cits., in
loc. cit.). O entendimento do funcionalismo não é menos claro – “o funcionalismo é
uma teoria global da sociedade”, é a “filosofia social que é o funcionalismo” –, mas
conclui que hoje o direito, para além da sua função tradicional de contrôle social, i. é, a
de “controlar os comportamentos dos indivíduos” no quadro de uma ordem-estrutura
jurídico-social e para concretamente a realizar, teria assumido ainda a função de “dirigir
os comportamentos para certos objectivos pré-estabelecidos”, pelo que “do ponto de
vista funcional” teria de ver-se o direito como “forma de contrôle” e também de
“direcção social”. Naquela primeira forma a estrutura (de uma ordem pressuposta) e a
sua afirmação continuariam presentes, já nesta segunda forma o funcionalismo
irromperia no direito. O que, ao postular também nitidamente duas formas contrárias de
perspectivar o direito e de convocar o pensamento jurídico, não as leva todavia pensadas
como incompatíveis ou insusceptíveis de um possível equilíbrio entre si na conformação
global do universo jurídico, embora se reconheça que hoje a tendência iria “da estrutura
para a função”.
Ora, é esse equilíbrio possível que vemos negado por LUHMANN (Die Funktion
des Rechts: Erwartungssicherung oder Verhaltenssteuerung?, in Die Funktionen des
Rechts, cit., 31, ss.). Equilíbrio que ainda teria sido possível na Interessenjurisprudenz –
83

a norma dogmaticamente interpretada incluía uma referência teleológica e era relevante


no quadro da norma o fim/efeito relevante –, mas que hoje se teria tornado radicalmente
problemático. A multiplicidade dos fins visáveis, a exponencial complexidade dos
efeitos, a abertura indeterminada do futuro, com que a pretensão de “direcção dos
comportamentos” ou de “direcção social” se teria actualmente de confrontar,
ultrapassaria de todo as possibilidades de contrôle acessíveis ao modus jurídico, aquelas
que o caracterizariam e por ele unicamente praticáveis – o normativo contrafactual e
estabilizador de expectativas, o esquema binário lícito/ilícito, a praxis universal de
decisão, a diferenciação do direito no global sistema social com relativa autonomia de
decisão sem acepção de pessoas, etc. Daí que se tivesse de considerar quebrada “a
unidade entre a segurança das expectativas e a direcção dos comportamentos” e se
impusesse uma opção no quadro da diferenciação das funções pensável no “arsenal da
teoria sistémica da sociedade”. Impossível aquela unidade, deveria encontrar-se uma
solução orientada pela diferenciação e especialização de funções no contexto global da
sociedade. Seria essa solução, quanto ao direito, a de lhes imputar a função, e tão-só a
função, de estabilizar e assegurar em termos normativos as expectativas como que numa
“vinculação de tempo” (Zeitbindung) perante o futuro aberto e, para tanto, deveria ele
ser “imunizado contra os efeitos”. Ou seja, a actual indeterminação aberta e
indominável do futuro (sobre esta circunstância particular do nosso tempo, a suscitar um
problema capital, pelas suas consequências na ética e na filosofia prática em geral, v.
muito especialmente HANS JONAS, Das Prinzip Verantwortung, passim) ultrapassaria
toda a possibilidade regulativa do direito. “O direito tem, segundo LUHMANN, no
problema dos conflitos, das expectativas e dos comportamentos uma função própria,
que não pode ser resolvida através de planificação e sempre melhor planificação, mas
que acentua, pelo contrário, a sua significação perante a crescente contingência e
dependência decisória de todas as relações da vida”. Isto, por um lado; por outro lado,
se o direito compartilha com outras formas ou outras “prestações” (Leistungen) sociais
não jurídicas a possibilidade de regulação dos comportamentos e da solução dos
conflitos, como a moral, os costumes, a economia, os poderes, etc., se terá de
reconhecer-se assim o direito numa “equivalência funcional” com essas formas ou
prestações, só uma diferenciação funcional no todo da sociedade o especificaria – não,
pois, as prestações que efectivamente realize, mas a função diferenciada seria o decisivo
(v. ID., Die Funktion des Rechts, loc. cit., 156, ss.). Por tudo o que, e nestes termos, a
função do direito seria a de uma “congruente generalização de expectativas normativas”
84

(ID., Rechtssoziologie, 2.ª ed., 40, ss.), a função de “estabilização de expectativas


normativas através da regulação da sua generalização temporal, material e social” (Die
Funktion des Rechts, cit., 131, ss.).
Com o que – e é a observação que se impõe – não estaria deste modo posto de
forma alguma em causa o funcionalismo, já que apenas numa perspectiva
funcionalística, que entende o direito só como “função” e a desempenhar uma função no
todo do sistema social, se teria de decidir da função que lhe deveria corresponder. Sem
deixar de acrescentar que, compreendido assim não num qualquer “ser” ou sentido em
si, mas em termos apenas funcionais, o direito seria de novo chamado a recuperar, não
sem algum paradoxo, o carácter de uma “estrutura” – só que uma estrutura apenas
funcionalisticamente entendida e a determinar, como veremos, uma índole estritamente
funcional-sistémica, a índole de um sistema autopoiético.
Deste modo começamos desde já a ver contrapostas duas orientações do
funcionalismo jurídico que iremos considerar – um funcionalismo jurídico material, a
procurar uma materialização funcional do direito (pelos objectivos políticos, sociais e
económicos que ele deveria assumir) e um funcionalismo jurídico sistémico (em sentido
autopoiético estrito) que acaba de ser aludido.
Assim como estamos também em condições de melhor compreender a distinção
para que começámos por chamar a atenção e se nos revela fundamental: uma coisa é
perguntar pelas funções que o direito desempenha ou se lhe podem imputar tal como é,
ou tal como ele se manifesta na realidade humano-social e sem pretender que ele seja
diferente do que se mostra ser nessa realidade; outra coisa é perguntar pelas funções que
ele deverá ser chamado a cumprir em ordem a certos objectivos que se pretendam ou
programaticamente se visem, ou como ele deverá ser (como se deverá constituir,
organizar e operar) para que esses objectivos sejam alcançados. Num caso trata-se de
uma intenção já descritiva (sociologicamente analítico-descritiva), já determinativa
(reflexivo-determinativa), pois o que interessa saber é que funções se reconhecerá que o
direito desempenha na realidade social pelo facto de ser aí direito, a função ou funções
que ele na realidade social efectivamente realizará por ser direito – ao direito, quer no
seu sentido próprio, quer na sua objectiva existência social, reconhecem-se certas
funções –; no outro caso, a intenção é regulativa, uma vez que o relevante será antes
constituir e organizar o direito, ou um certo direito, e operar com ele assim, de modo a
que possa cumprir certa função ou funções que programaticamente se pretenda que ele
cumpra ou logre realizar. Por outras palavras ainda, num caso as funções
85

(reconhecíveis) são um resultado do direito (implicadas na sua presunção como direito,


ou considerado ele independentemente e antes de se interrogarem as suas funções), no
outro caso o direito deverá ser o resultado das funções pretendidas (constituído para se
realizarem essas funções e como um meio ou instrumento para essa realização).
E é com esta segunda perspectiva, não com aquela primeira, que tem a ver o
funcionalismo jurídico.

2. Estamos agora em condições de tentar responder às perguntas a que há que


responder para uma caracterização específica do funcionalismo jurídico. Fá-lo-emos por
uma referência geral e tendo sempre em vista, numa diferenciação que já
compreendemos ser necessária, o funcionalismo jurídico material perante o
funcionalismo jurídico sistémico. Ao que se seguirá uma consideração particular das
diversas modalidades em que também o funcionalismo material se nos oferece – o
funcionalismo político, o funcionalismo social (tecnológico-social) e o funcionalismo
económico.

a) α) Assim, começaremos por dizer que o funcionalismo jurídico responde em


geral à pergunta básica, sobre a concepção do direito, convertendo-a numa outra, que é
esta: o direito para que serve? Não o preocupa particularmente saber o que é o direito e
determiná-lo pelo seu conceito, duvida mesmo que tenha validade o pressuposto exigido
por essa determinante conceitualização, a subsistência objectiva do direito como algo
que seja e se imponha heterónoma e autonomamente em si, independentemente da sua
finalística instrumentalidade e funcional operacionalidade. Já que o direito é agora
concebido como instrumento e função, e assim com toda a relatividade, dependência e
contingência implicadas na possível disponibilidade e variação dos fins, dos objectivos
sociais a realizar com ele na sua instrumentalidade, na mutável correlatividade da sua
posição no todo da realidade social, das opções que nessa realidade o mobilizem na sua
funcionalidade. Poderá dizer-se nestes termos e com L. RECASENS SICHES (Las
Funciones del Derecho, in Anuario de Filosofia del Derecho, cit., 114), que “o jurídico
não é um fim, e sim um meio para a realização de fins diversos”.
) O que determina uma nova perspectiva intencional.
Desde logo, e fundamentalmente, aos valores substituem-se os fins e aos
fundamentos os efeitos. Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-
86

-normativa que responsabiliza e que convoca a prática para o desempenho irrenunciável


de “tarefas” (no sentido já antes aludido) em que se projecta essa sua vinculação ou
compromisso, os fins desvinculados pelo “mecanicismo” moderno da teleologia
ontológica, são agora tão-só opções decididas pela subjectividade que programa os seus
objectivos (a “subjectivação dos fins” – v., para desenvolvimentos, N. LUHMANN,
Zweckbegriff und Systemrationalität, Cap. I, 9, ss.), decerto sempre condicionados por
um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles –
comunga-se nos valores, diverge-se nos fins e nos interesses. Por seu lado, os
fundamentos traduzem pressuposições de validade, teórica ou prática, que por uma
mediação discursivo-argumentativa hão-de sustentar a concludência material do juízo
ou o sentido da acção, enquanto que os efeitos são resultados empiricamente
comprováveis pelos quais se logra ou não a realização eficaz de fins/objectivos.
Depois, esta diferente intencionalidade determina-se por três outras antíteses.
Em primeiro lugar, impõe-se naturalmente a instrumentalização vs. fundamentação. A
objectividade material fundamentante que no domínio teórico e no domínio prático
refere, respectivamente, a verdade e a validade vê-se substituída pelo pragmatismo
funcional que mobiliza instrumentos, sejam eles quais forem, para uma operacional
relação a resultados e efeitos. O que implica também um outro tipo de ratio e de
racionalidade. Abandona-se, em geral, a “razão objectiva” a favor da “razão
instrumental” (sobre este ponto, que se considerará noutro momento, v. o ensaio
fundamental, já referido, de MAX HORKHEIMER, Zur Kritik der instrumentellen
Vernunft, 2.ª ed., segundo a sua trad. esp. de H. A. Murena e D. J. Vogelmann). Assim
como no domínio específico da prática, aquele que mais nos importa, verifica-se
analogamente o sacrifício da Wertrationalität (a razão axiológico-normativa) à
Zweckrationalität (a razão pragmático -finalística), na expressão e conceitos de MAX
WEBER a que também voltaremos.
Em segundo lugar, e tocamos já mais directamente o domínio jurídico, afirma-se
a planificação (e programação) vs. ordem – ou, de outro modo mas afim, taxis vs.
Kosmos/nomos. Se uma ordem, e ordem jurídico-social, se propõe uma determinação na
indeterminação e complexidade da prática social, uma selecção na transfinitude humana
dos objectivos e uma estabilização na variação temporal, e isso através de uma
institucionalização integrante da mesma vida prática, pela definição dos valores e
interesses fundamentais e também dos critérios normativos dos juízos da sua realização
e da resolução dos conflitos de interesses ou outros, pela instituição dos órgãos de
87

autoridade e decisão, pela sancionação dos comportamentos violadores ou desviantes,


etc. – ordem pela qual, diga-se ainda retomando um ponto já atrás aludido, se visa,
mediante esse seu tentado e global contrôle social, como que a dar âncoras ao presente
contra a abertura indefinível do futuro –, é justamente essa institucionalização, que
criticamente se dirá apenas garantir o status quo, o que o funcionalismo material (não já
assim o funcionalismo sistémico) minimiza numa preferência pela perspectiva de
programados objectivos, de fins projectados e a dinâmica transformadora implicada na
sua realização. O único contrôle que se pretende, e sabendo bem que os riscos e as
incertezas serão inelimináveis e mesmo o preço necessário da eficácia estratégica, será o
que possibilite a planificação e programação que definam prioridades nos objectivos e
prevejam alternativas na acção e decisão. Nesta linha se postula sem equívoco que se
impõe “a compreensão do direito em termos de planificação”, como “direito de
planificação”, assim como o “retrospectivo” deveria dar o lugar ao “prospectivo” –
assim MIGUEL REALE, Droit et planification, in Die Funktionen des Rechts, cit., 107, ss.
E com alguma analogia se poderá enunciar a antítese kosmos, a designar uma “ordem”
constituída por normas de sentido prático universal e enquanto “uma ordem normal num
Estado e numa comunidade”, versus taxis, a designar por sua vez uma “organização”
constituída e imposta por imperativos e regras específicas e ao serviço de uma intenção
particular dos seus criadores – uma ordem normativa como nomos ou instituinte de uma
normativa validade universal sem um identificável fim particular, por um lado, e uma
organização criada e orientada segundo um fim ou fins deliberados, por outro lado (v.,
sobre esta distinção, F. A. HAYEK, Droit, législation et liberté, I, Règles et ordre, 41,
ss., 113, ss.).
Em terceiro lugar, as duas antíteses anteriores culminam numa outra que nelas ia
já implícita e que se pode considerar um seu corolário: a consequencialidade vs.
validade no que toca à intencionalidade decisiva para a praxis. A validade implica uma
pressuposta normatividade em que encontra expressão uma axiologia e afere a prática
pelas polaridades, justamente de validade normativa, de justo/injusto, de lícito/ilícito. A
consequencialidade contrapõe aos argumentos de validade normativa na judicativa
aferição da prática os “argumentos consequencialistas”, ou seja, a prática não seria
ajuizada por referência a uma validade normativa, mas pelas consequências ou os
efeitos da acção; da “consideração dos efeitos”, da “legitimação pelos efeitos”, da
“orientação pelos efeitos”, etc., dependeria o juízo sobre a correcção ou incorrecção
prática em geral - até porque, assim se sustenta (A. PODLECH, Wertungen und Werte im
88

Recht, in ARSP, 95 (1970), 197, ss.), só desse modo as valorações seriam susceptíveis
de uma verdadeira racionalização que as subtraísse à irracionalidade emotiva. Tal como
já hoje se pretende também na ética, a prática jurídica haveria nestes termos de assimilar
a racionalidade consequencial.

) Entendido assim o direito como um instrumento ou uma função, em que a


instrumentalização preferiria à fundamentação, e uma planificação e programação de
objectivos à instituição de uma ordem e cuja prática se aferiria pelos efeitos, estamos
decerto perante uma mutação de concepção do jurídico a atingir profundamente aquela
compreensão tradicional que mediante um certo sentido normativo identificava o direito
como direito. Embora com um ponto comum na ideia geral de que falar de “direito” é
referir um particular modus de ordenação e de organização da vida prático-social, é
essencial a diferença entre a compreensão do direito como uma ordem normativa que
assimila e objectiva um sentido, e assim como uma entidade de sentido no universo
humano, e a sua compreensão como funcionalizado instrumento de uma prática social
ao serviço de objectivos sociais os mais diversos e em si não jurídicos (mas políticos,
sociais em sentido estrito, económicos). O que era ali um sentido passa a ser aqui
apenas um nome – simplesmente a designação para a nominalística referência a um
acervo, a um conjunto não integrado, mas fragmentário – e sem omitir desde já que
alguma diferenciação se terá de fazer, quanto a este ponto, relativamente ao
funcionalismo sistémico – de formas prescritivas e outras, de actos de organização, de
orientação prospectiva e de decisão na vida social (político-social), tão-só a totalidade
variável dos modos funcionalmente regulativos (imperativos, regras, decisões) e
orgânico-institucionais dessa vida social.
Devendo observar-se ainda que, se isso mesmo é possível, e com resultados
equivalentes, a modos distintos de regulação social – à política com os seus poderes, à
economia com o seu mercado, etc. –, o que acaba por decidir da identidade de “o
direito” será menos o modus regulativo do que a imputação orgânico-funcional a certos
poderes, tradicionalmente tidos por instituições jurídicas – o legislador, a administração
institucionalizada, os tribunais – daquelas formas regulativo-sociais que por isso, ou
sobretudo por essa imputação, se afirmarão jurídicas.
O que não impedirá que se diga, como que numa repetição em síntese de tudo o
que se disse, que para o funcionalismo jurídico – continuamos a considerar
especialmente o funcionalismo jurídico material – o direito será uma organização e um
89

operador, uma actividade instrumentalmente estratégica e decisória com uma intenção


regulativa da vida histórico-social em termos finalisticamente planificados e
programados e com vista a obter com ele certos resultados/efeitos sociais. Já para o
funcionalismo jurídico sistémico o direito é entendido diferentemente – vê-lo-emos –
como um subsistema diferenciado por uma particular auto-referência e autopoiésis.

b) α) Perante uma tão diferente concepção do direito, não se estranhará que as


categorias da sua inteligibilidade sejam também outras. Mesmo quando algumas
parecem manter-se, como que num universalismo categorial postulado pelo jurídico, o
certo é que o seu sentido passa verdadeiramente a ser diverso – é o que se verá quanto a
“norma”. Esta categoria intencionava no normativismo, não obstante o formalismo que
lhe acabámos por reconhecer, uma normatividade constitutiva que identificava
essencialmente o direito, e é essa normatividade, com esse sentido, que o funcionalismo
jurídico, em todas as suas modalidades, secundariza, para dar preferência à
funcionalidade. Se para o normativismo a categoria básica e o seu a priori, era “norma”,
e a exprimir aquela normatividade, para o funcionalismo a categoria básica, e o seu a
priori, é certamente “função” – com a diferença embora de a norma ser expressamente
invocada pelo normativismo, e a função só implicitamente se revelar decisiva no
funcionalismo. Posto que “função” na diversidade dos entendimentos que sabemos
discrimináveis nessa categoria geral: segundo o entendimento que lhe confere o
esquema meio/fim, e assim mais directamente instrumental nas várias formas de
funcionalismo político e em parte no tecnológico-social; segundo o entendimento que
resulta da referência a um todo/sistema pressuposto, e a implicar um sentido de
eficiência estratégica noutra parte do funcionalismo tecnológico-social e sobretudo no
funcionalismo económico; segundo o sentido estritamente sistémico, em que sobreleva
a equivalência e a fungibilidade das variáveis, no funcionalismo sistémico.
É essa a categoria de que a compreensão e a inteligibilidade funcional do direito
dependerão e que justificará todas as outras a que iremos aludir – podendo dizer-se que
todas essas outras categorias são, relativamente àquela básica e em termos sinepeicos,
implicações e consequências. Desde logo, decerto, as de funcionalidade (a pensar a
relação de algo em dependência ou exigência de outro) e de instrumentalidade (a referir
a utilização de algo para realizar objectivos/fins mediante resultados/efeitos que
produza), mas mais relevantes, e não já analíticos, serão as que teremos de considerar
tanto no plano da determinação, como no plano dos critérios e também no plano da
90

realização. E na diferenciação que, uma vez mais, a distinção entre o funcionalismo


material e o funcionalismo sistémico nos impõe.
No plano da determinação, ou do conteúdo que o jurídico será chamado a
objectivar e a actuar, o decisivo estará na intencionalidade definida por um
Zweckprogramm (programa finalístico ou programa de fins/objectivos seleccionados e
postulados). Trata-se de uma categoria que é intencionalmente especificante da
funcionalidade e instrumentalidade do direito – tal como para o normativismo o era um
sistema de normas pressuposto e a exigir uma “aplicação” lógico-dedutiva segundo o
esquema “se/então” e que, justamente em contraste com um Zweckprogramm, se
oferecia como um Konditionalprogramm (Konditionalprogramm que, porém, irá ser
retomado pelo funcionalismo sistémico). No Zweckprogramm o importante não é uma
normatividade que se pressuponha a afirmar uma qualquer validade vinculante e que,
como tal, se haja simplesmente de cumprir, mas antes os objectivos que se visem atingir
mediante uma actuação adequada, sejam esses objectivos práticos fins pré-fixados,
interesses reivindicados, expectativas invocadas, etc. Sabendo também já que esses
fins/objectivos, como referências ideais, só serão atingidos pela mediação dos
efeitos/resultados que no plano da realidade aquela actuação efectivamente
(empiricamente) produza – pelo que a relação entre fins e efeitos é aqui fundamental. E
a mostrar-nos, por isso, que a perspectivação de um programa finalístico só em
abstracto, ou como um abstractum, sem a consideração da sua realização concreta nos
efeitos/resultados, seria uma forma inaceitavelmente truncada de o entender – mais uma
nota de clara distinção relativamente ao plano apenas abstracto em que
intencionalmente opera o normativismo. E daí a importância que veremos ter no
funcionalismo em geral o momento, e de uma particular autonomia, da realização
concreta.

O finalismo como modo determinante de uma funcionalidade foi


convocado no pensamento jurídico, poderá dizer-se pela primeira vez,
por R. IHERING, na sua célebre e tão influente monografia dos fins do séc.
XIX (1877) Zweck im Recht. Distinguiam-se aí, como formas
diferenciadas da “razão suficiente”, ou de inteligibilidade em geral, a “lei
da causalidade”, para o mundo físico-objectivo, a “lei da finalidade”,
para o domínio da acção e da vontade – aquela lei postularia que “não há
efeito sem causas” e permitiria responder à pergunta “porquê” que
sempre se dirigiria àquele mundo, esta segunda que “não há querer ou
não há acção sem um fim” e a pergunta a que haveria de responder-se, no
domínio da acção e da vontade, já seria “para quê” (“o homem não age
91

porque, mas para que”). Distinção que seria retomada por muitos outros
(inclusive por R. STAMMLER, posto que no quadro do seu neokantismo
formal, v. Theorie der Rechtswissenschaft, 2.ª ed., 30, ss.; Lehrbuch der
Rechtsphilosophie, 3.ª ed., 56, ss.) e que implicava uma clara concepção
funcionalmente instrumental da acção (“A satisfação que espera aquele
que quer é o fim do seu querer. Nunca a acção em si mesma é um fim,
mas simplesmente um meio de o atingir. Em verdade, aquele que bebe
quer beber, mas só quer beber para alcançar o resultado que desse facto
espera. Por outras palavras, em cada acção nós queremos não essa acção
mesma, mas somente o efeito que dela nos resulta” afirmava IHERING, e
de modo análogo oporia STAMMLER à “forma de pensamento” da “causa
e efeito” no mundo natural a de “fim e meio” no mundo prático da
vontade, Ibid. 30). E com base nela, entendia IHERING que a lei de
finalidade se “deveria aplicar ao direito e para ser ele pensado em termos
finalísticos” (“o direito não exprime a verdade absoluta, a sua verdade é
apenas relativa e mede-se pelo seu fim”; “no domínio do direito nada
existe senão pelo fim e para o fim, todo o direito não é mais do que uma
criação do fim...”) e a postular, por sua vez, uma concepção
funcionalística não menos clara do próprio direito (“Qual é o fim do
direito?... podemos dizer que o direito representa a forma da garantia das
condições de vida da sociedade, assegurada pelo poder de coacção de
que o Estado dispõe”). Finalismo que haveria de ter, todavia, uma
particular conversão metodológica na “Jurisprudência dos interesses” –
posto que declaradamente ela se dissesse, por HECK, inspirada em
IHERING –: por um lado, ao “fim” visado substituíram-se os “interesses”
reconhecidos ou reconhecíveis pelo direito e este seria chamado, não a
garantir de forma geral as “condições de vida da sociedade”, mas a
decidir valoradoramente “conflitos de interesses”; por outro lado, os
interesses a considerar seriam aqueles que o direito considerasse
relevantes e assim, como que numa “interiorização” dos interesses pelo
jurídico, o prius continuava a poder ver-se neste, nas normas que
previamente decidiam dos conflitos de interesses; desse modo o
finalismo via-se amortecido ao deixar de avultar no primeiro plano a
favor de uma hermenêutica teleológica do direito vigente, e isto graças à
simultânea relevância, nota bem característica da “Jurisprudência dos
interesses”, dada ao Gebotseite e ao Interessenseite. (Sobre este ponto, v.
“Jurisprudência dos Interesses”, in Digesta, II, 225, ss.) já que o
funcional finalismo se via como que neutralizado ao submeter-se assim
ao que se dirá uma sua legitimação jurídica. Não do mesmo modo no
“direito livre”, na “jurisprudência sociológica”, etc., em que o prius era já
visto manifestamente nos fins, nos interesses sociais a impor ao direito e
em ordem aos quais ele deveria ser funcionalmente pensado e realizado.
E foi para esta contraposição que H. KANTOROWICZ chamou a atenção
(recorde-se que KANTOROWICZ foi um nome importante no “movimento
do direito livre”, tendo sido mesmo o autor do que se pode considerar o
seu manifesto, o ensaio Der Kampf um die Rechtswissenschaft) através
da distinção entre dois tipos básicos que se teriam de reconhecer no
pensamento jurídico, o tipo do pensamento jurídico formalístico (no qual
“se parte de uma formulada norma jurídica, a maioria das vezes um texto
legal, e se pergunta: „como se deve interpretar este texto a fim de que se
92

corresponda à vontade que o tenha formulado?‟; tomada essa vontade,


num processo puramente lógico, como um sistema fechado de conceitos
e proposições das quais deveria resultar necessariamente a decisão para
quaisquer questões de direito reais ou pensadas”) e o tipo do pensamento
jurídico finalístico (“em lugar de partir do livro, do „sentido‟, parte da
realidade, dos fins e exigências da vida social, espiritual, moral,
considerados valiosos, e pergunta: „como se deve tratar e conformar o
direito a fim de satisfazer os fins da vida?‟; e conforme esses fins se
resolverão as inúmeras dúvidas do direito formal, se preencherão as suas
inúmeras lacunas”) – v. apud G. RADBRUCH, Vorschule der
Rechtsphilosophie, 63, ss.. Funcional finalismo que se haveria de propor
em geral que o pensamento jurídico assume (v., neste sentido, W.
KRAWIETZ, Das positive Recht und seine Funktion, 1967) e que o actual
funcionalismo jurídico material só radicalizou.

A determinação jurídica por um “programa finalístico” admite ainda uma


especificação categorial, consoante seja ele pensado estritamente como programa, como
selecção estratégica de objectivos e depará-lo-emos sobretudo no funcionalismo jurídico
tecnológico-social, ou como plano, em que à determinação dos objectivos se acrescenta,
ou esta se faz, em termos estruturantemente regulativos das acções pretendidas, e temos
um exemplo nas “leis-plano”. Assim como em referência aos resultados a atingir na
realização concreta, importa distinguir a eficácia e a eficiência. A eficácia é uma
categoria sobretudo técnica e refere, como é bem sabido, a capacidade de atingir ou
realizar os fins/objectivos através dos meios ou instrumentos mobilizáveis, o que na
linguagem tecnológica dos nossos dias se diz também performance; já a eficiência é
uma categoria estratégica e para pensar a realização dos objectivos num certo todo de
realidade, num certo contexto de circunstâncias com que se tem de contar pelo seu
relevo já potenciador, já desviante, já impeditivo, e que, por isso, exigirá a definição de
um “princípio de optimização”, i. é, a intenção da melhor ou da máxima realização dos
objectivos naquele contexto circunstancial em referência aos efeitos aí possíveis. Se a
eficácia é uma categoria comum a qualquer funcional instrumentalização, a eficiência é
principalmente invocada no domínio da economia, razão por que a reencontraremos
sobretudo no funcionalismo jurídico social-económico.
O funcionalismo jurídico de índole directamente política, e em particular o
funcionalismo jurídico político que assume a teoria crítica, convoca ainda categorias
específicas, que aí se dizem expressamente “categorias críticas” (v. LUIZ FERNANDO
COELHO, Teoria crítica do direito, 2.ª ed., 53, ss., 57, ss.) – tais como praxis, “a
categoria crítica central”, para referir a realidade dinâmica da prática histórico-social; o
93

poder, seja político ou social; a ideologia, a intencionar a racionalização justificante da


prática, seja política ou social e, nela, dos interesses de um determinado sector da
sociedade (em termos marxistas, de uma “classe”) e pela qual essa prática procura a
legitimação; etc.
Só que o funcionalismo não fica, nem poderia ficar só pela determinação em
geral. Pois se pela programação (programação finalística), que procura eficácia e quer
ser eficiente, se pretende a racionalização dos objectivos e também da prática que os
visa, o certo é que a insuperável indeterminação desse plano, dado que a determinação
dos objectivos apenas se pode fazer aí com a generalidade que a referência ao futuro
unicamente admite, exige-se já por isso um outro plano de racionalização, um outro
contrôle dos comportamentos e das decisões. A tanto são chamados os critérios que o
funcionalismo, no seu particular projecto de racionalização da prática, também não
dispensa. Estamos aqui perante uma segunda exigência que o normativismo não
conhecia, já que para ele a determinação jurídica pelas normas (o sistema dogmático de
normas) oferecia uno actu também o critério jurídico nas normas – as normas eram
simultaneamente a determinação normativa e o critério normativo do jurídico. Vimos
como se tinha por viável esse monismo de determinação e critério – abstraindo da
intenção prático-normativa do direito numa conversão dogmático-conceitual ou
conversão lógico-dogmática da sua normatividade. O que o funcionalismo não pode
fazer, que seria mesmo contraditório com o seu entendimento da praxis jurídico-social e
com a funcionalização do direito. A materialização funcional do direito exclui uma
dogmática lógico-conceitual que neutralizasse tanto o compromisso prático dos
objectivos como a necessária mediação do acto concreto da sua realização – pelo que
será sempre própria dessa materialização funcional uma abertura, uma aberta
indeterminação que só esforços sucessivos, e em planos diversos, de racionalização
poderá minimizar, sem todavia a superar nunca de todo. Daí, justamente, que à
programação dos fins/objectivos acresçam critérios regulativos e de contrôle:
prescrições (legislativas ou outras) pelas quais o poder funcionalmente mobilizante do
direito imponha especificações à programação ou planificação; regras pelas quais o
pensamento jurídico, pensado e actuando também funcionalmente, procura uma melhor
racionalização finalística dos comportamentos e das decisões; modelos de
pensamento/acção ou estruturantes de um pensamento que o é de acção prática (através
deste tipo de critério propõe MIGUEL REALE “a mudança de compreensão do direito, do
ponto de vista retrospectivo das fontes para o prospectivo dos modelos” – v. Droit et
94

planification, loc. cit., passim; para uma tentativa de repensar o problema das “fontes do
direito” segundo uma teoria dos “modelos jurídicos”, v. do mesmo Autor O direito
como experiência, Ensaio VII, 147, ss.); etc. Não é impossível designar aquelas
prescrições e regras também por “normas” – o conceito amplo de norma, sabemo-lo,
não deixa de o admitir. Simplesmente, não confundindo também o que há de diferente
no sentido de normatividade constitutiva do conceito específico de “norma”
relativamente à racional funcionalidade que aqui está tão-só em causa – não normas a
definir uma normatividade que se pretende vinculante e imediatamente aplicável, mas
normas a orientar, num plano intermédio, a racional realização de uma finalística
programação ou planificação de objectivos.
Num plano intermédio, acabamos de dizer, pois que ao plano dos critérios terá
de acrescentar-se o plano da realização – e este também com especificação categorial.
Que, aliás, se reduz a uma categoria fundamental – a categoria de decisão. E
considerada esta no seu sentido específico, o acto com efeitos exteriores determinado
por um núcleo irredutível de voluntas e a traduzir-se materialmente, ou quanto ao
conteúdo, na opção entre alternativas possíveis. Pelo seu momento nuclear de voluntas,
a decisão será insusceptível de uma total redução racional que exclua o factor pessoal e
infungível do decidente; não admite nunca a sua determinação por necessidade lógica,
ou em termos de pensar-se ela uma mera “aplicação” dedutiva de premissas, embora
seja objecto de formas de racionalização (pela “teoria racional da decisão”, que iremos
referir) através da conjugada atenção dada aos objectivos, aos critérios-regras e aos
efeitos previsíveis – o que todavia será sempre um contrôle só exterior, insusceptível de
anular aquele núcleo determinante último do seu conteúdo. A significar isto que à
decisão corresponde uma autonomia também irredutível, não obstante aquele contrôle.
Autonomia que o funcionalismo não recusará, pois vai ela decerto na sua própria lógica:
sem essa autonomia do decisor no caso concreto e nas circunstâncias da decisão ficaria
impossibilitada a adequada realização dos fins/objectivos nessas mesmas circunstâncias,
nas quais, e pelos efeitos que aí provoquem, aqueles unicamente se poderão ver ou não
logrados. Pelo que os três planos considerados, o da programação finalística, o dos
critérios e o da realização por decisão se nos ofereçam numa diferenciação insusceptível
de uma qualquer reductio ad unum, de um qualquer monismo determinante – o
programa/planificação, os critérios e a decisão são todos complementarmente
necessários e cada um na sua especificidade. A ter de reconhecer-se assim que o
funcionalismo é categorialmente de uma muito particular complexidade.
95

E complexidade que não está ainda toda abrangida. O funcionalismo sistémico,


ou sobretudo esse funcionalismo, implica uma outra categoria muito particular – decerto
a categoria “sistema”. Já fizemos algumas alusões a essa categoria no seu entendimento
funcionalístico. Bastem-nos também elas neste momento, já que terá melhor
oportunidade a sua mais detida consideração ao tratar-se de modo diferenciado
justamente do funcionalismo jurídico sistémico – para lá nos remetemos.
) Referimos as categorias de inteligibilidade do funcionalismo jurídico em
geral. Pressupõem elas, no entanto, e estão ao serviço de um tipo específico de
racionalidade. Não já a racionalidade abstracto-genericamente conceitual ou
axiomático-dedutiva que vimos corresponder ao racionalismo normativista; não também
a racionalidade fundamentante e judicativa (fundamentantemente judicativa, segundo o
esquema fundamento-concludência concreta pela mediação de um juízo e em que a
prioridade racional é dada aos fundamentos e não aos fins ou aos efeitos), que
reconheceremos própria de uma juridicidade de sentido axiológico-normativo e a
convocar uma perspectiva jurisprudencialista; mas uma racionalidade que em termos
gerais se dirá finalístico-funcional, e a traduzir-se quer na “razão instrumental” quer na
“razão finalística” (Zweckrationalität) que, respectivamente, MAX HORKHEIMER e MAX
WEBER caracterizaram, como por mais de uma vez foi já aludido.
No prefácio à 2.ª edição do seu ensaio Zur Kritik der instrumentellen Vernunft,
começa HORKHEIMER por dizer melancolicamente: “O facto de perceber – e de aceitar
dentro de si – ideias eternas que serviriam ao homem como metas era chamado, desde
há muito tempo, razão. Hoje, porém, considera-se que a tarefa, e inclusivamente a
verdadeira essência da razão, consiste em encontrar meios para lograr os objectivos
propostos em cada caso” – deste modo “a razão realiza-se a si mesma quando nega a sua
própria condição absoluta (...) e se considera como mero instrumento”.
Instrumentalidade essa da razão que claramente se manifestaria pela contraposição entre
a “razão objectiva” e a “razão subjectiva”. A razão objectiva “aspirava a desenvolver
um sistema vasto ou uma hierarquia de tudo o que é, incluindo o homem e os seus fins”,
implicava “a existência da razão como força contida não só na consciência individual,
mas também no mundo objectivo”, a “sua essência é a de uma estrutura inerente à
realidade, que requer por si mesma um determinado comportamento prático ou teórico
em cada caso dado”, pelo que “os sistemas filosóficos da razão objectiva implicavam a
convicção de que é possível descobrir uma estrutura do ser fundamental ou universal e
deduzir dela uma concepção do desígnio humano”. Já a razão subjectiva, enquanto
96

“força contida só na consciência individual”, é tão-só “a capacidade de calcular


probabilidades e de adequar assim os meios correctos para um fim dado”, “refere-se
exclusivamente à relação que um certo objecto ou conceito tem com um fim e não ao
próprio objecto ou conceito – isto significa que a coisa ou o pensamento servem para
alguma outra coisa” e a razão “tem a ver essencialmente com meios e fins que são mais
ou menos aceites ou que presuntivamente se subentendem”, pois “a ideia de um
objectivo capaz de ser racional por si mesmo – em razão de excelências contidas no
objectivo segundo o revela a compreensão –, sem se referir a nenhuma espécie de
vantagem ou ganho subjectivo, é profundamente alheio à razão subjectiva, mesmo
quando ela se eleva acima de valores imediatamente úteis para dedicar-se a reflexões
sobre a ordem social vista como um todo”. Daí o seu carácter formal – “nenhuma
realidade em particular pode aparecer per se como racional, esvaziadas do seu conteúdo
todas as noções fundamentais se convertem em envólucros formais, ao subjectivar-se a
razão também se formaliza –; puramente finalístico-funcional – no ponto de vista de “a
razão formalizada, uma actividade é racional unicamente quando serve para outra
finalidade, p. ex., à saúde ou ao relaxamento que ajudam a refrescar de novo a energia
do trabalho” –; e de sentido tão-só pragmático – se o núcleo do pragmatismo é “a
opinião de que uma ideia, um conceito ou uma teoria não são mais do que um esquema
ou um plano para a acção, e de que portanto a verdade não é senão o êxito da ideia”,
então “no pragmatismo, por pluralista que seja, tudo se converte em mero objecto e por
isso em última instância é uma só e a mesma coisa, num elemento na cadeia de meios e
dos efeitos”, inclusivamente, “se os juízos verdadeiros sobre os objectos e com isso o
conceito do objecto mesmo consistem apenas em „efeitos‟ exercidos sobre a actuação do
sujeito, é difícil compreender que significado se poderá todavia atribuir ao conceito
„objecto‟”. E tudo então se funcionaliza – “as ideias foram radicalmente funcionalizadas
e considera-se a própria linguagem como mero instrumento”, “a linguagem, no
gigantesco aparelho de produção da sociedade moderna, reduziu-se a um instrumento
entre outros”, e “o sentido aparece desalojado pela função ou o efeito que têm no mundo
as coisas e os acontecimentos”. Por tudo o que a conclusão seria esta: “noções como as
de justiça, igualdade, felicidade, tolerância, que nos séculos anteriores foram
consideradas inerentes à razão ou dependentes dela, perderam as suas raízes espirituais
– são todavia metas e fins, mas não há nenhuma instância racional autorizada a
outorgar-lhes um valor e a vinculá-las a uma realidade objectiva”.
97

A racionalidade própria do funcionalismo e o próprio espírito deste estão aqui


eloquentemente caracterizados. E resultados análogos obteremos invocando, já
directamente no domínio da razão prática, a Zweckrationalität definida por MAX
WEBER. Importa, por isso, retomar igualmente essa diferenciação e nos termos mesmos
em que ela foi proposta em confronto com a racionalidade também por MAX WEBER
dita “racionalidade axiológica” (Wertrationalität). Assim, a acção será zweckrational
“através de expectativas postas no comportamento dos objectos do mundo exterior e dos
outros homens e mediante a utilização dessas expectativas como „condições‟ ou como
„meio‟ para os próprios fins aspirados ou considerados racionalmente como resultado”;
ou merece essa qualificação “a acção orientada segundo meios, tidos subjectivamente
por adequados para alcançar fins subjectiva e claramente concebidos”. A acção será
wertrational, se determinada “através da crença consciente no próprio valor
incondicionado, em sentido ético, religioso ou outro, de um determinado
comportamento puramente como tal e independentemente do resultado” – v. Wirtschaft
und Gesellschaft, 5.ª ed. I, p. 12, 33., com as anotações de J. WINCKELMANN,
Erläuterungsband da mesma ed., p. 19 ss.; e Gesammelte Aufsätze zur
Wissenschaftslehre, p. 432 e 565. Sentidos e conceitos estes por muitos depois
retomados e reelaborados –, v., por todos, J.-M. PRIESTER, “Rationalität und funktionale
Analyse”, in Jahrbuch f. Rechtssoziologie u. Rechtstheorie, I, p. 461 ss.; J. HABERMAS,
Theorie des kommunikativen Handelns, cit., 1, p. 239 ss. – e que encontraram em W.
MAIHOFER (Rechtsstaat und menschliche Würde, p. 99 ss.) esta formulação precisa:
integra-se no primeiro tipo de racionalidade o comportamento humano que “tem o seu
fundamento no benefício ou no prejuízo, fundamento segundo o qual o homem se deixa
determinar como um sujeito inteligente (Verstandessubjeckt = sujeito de razão abstracta
ou de inteligência e utilidade): eu quero, porque isto me é útil”, integra-se no segundo
tipo o comportamento que “tem o seu fundamento em princípios ou normas,
fundamento segundo o qual o homem se determina como uma pessoa de razão
(Vernunftsperson = sujeito e pessoa de razão espiritual ou cultural) que compreende o
mundo do global ponto de vista da rectidão e moralidade: eu quero porque tenho isto
por recto, por bem”.
Quanto à Zweckrationalität, com a consequência ainda, que importa sublinhar,
de que com ela a própria prática se converte em técnica (J. HABERMAS, La technique et
la science comme idéologie, trad. franc.). Tornando-se assim a razão teórica também
prática – um dos objectivos da modernidade – e a prática tecnologia, a racionalidade
98

prática seria uma racionalidade científico-tecnológica e transformar-se-ia desse modo


no modelo operatório de uma “engenharia social” – a social engineering sugerida por R.
POUND e retomada por K. POPPER, in The open societv and its enemies, onde se lê (vol.
I, p. 22-24). O “social engineer”, diz POPPER, concebe a sua actividade “as the scientific
basis of politics”; perante uma qualquer instituição o que pergunta é “if such and such
are our aims, is this institution well designed and organized to serve them?”; todas as
medidas e decisões a tomar são por ele vistas como “a suitable instrument”, sendo certo
que como “technologist, he would carefully distinguish between the question of the
ends and their choice and questions concerning the facts, i. e, the social effects of any
measure which might be taken” ou, em termos gerais, “we can say that the engineer or
the technologist approches institutions rationally as means that serve certain ends, and
that as a technologist he judges them wholly according to their appropriateness,
efficiency, simplicity, etc.”. E considera igualmente esta “attitude of social engineering”
ou a “social technology” como uma “diametrically opposite approach” ao que ele
designa por “historicismo”, i. é, um sistema de totalizante ou de “narrativa”
fundamentação em que cobraria sentido teleológico a realidade histórico-social e a sua
prática.
Isto em geral. Pois deve ter-se ainda em conta – e ponto este da maior
actualidade – que a “racionalidade finalística”, ao ter-se especificado sobretudo nos
pensamentos económico e político como racionalidade estratégica, foi a base e mesmo o
princípio regulativo das “teorias racionais da decisão” (rational choise theories, teorias
do decision making) ou teorias empírico-analíticas da decisão prática, a que antes
fizemos alusão. O comportamento racionalizado segundo os esquemas função/efeitos ou
meio/fim converte-se em comportamento racional estratégico, vimo-lo também já em
geral, quando a “função” ou o “meio” se especificam em diversas possibilidades de
acção entre os quais se opta em termos hipotético-condicionados pelos efeitos e
segundo pontos de vista orientadores ou regras que visam optimizar com essas
possibilidades a prosseguição do “fim” ou do objectivo. A “racionalidade estratégica” –
que neste sentido estrito se deverá opor à “racionalidade discursiva”, sendo que esta se
cumpre num discurso de concludência comunicativa (cfr. J. M. ROMERO MORENO, El
sistema jurídico como sistema estratégico, texto inédito que nos foi possível utilizar por
amabilidade do Autor, p. 24, ss.; J. M. ROMERO MORENO y L. J. PEREDA ESPESO,
Reflexiones sobre modelos matemáticos y decisión jurídica, in Anuario de Filosofia del
Derecho, N. E. 1 (1984), 83 ss.) – traduzir-se-á, pois, na justificação da escolha entre
99

diversas e possíveis acções por certos critérios ou regras determinados por um princípio
de optimização na realização de um certo objectivo (cfr. B. SCHLINK, “Inwieweit sind
juristische Entscheidungen mit entscheidungstheoretischen Modellen theoretisch zu
erfassen und praktisch zu bewältigen”, in Jahrbuch f. Rechtssoz. u. Rechtstheorie, II, p.
322 ss.; T. WÄLDE, Juristische Folgenorientierung, p. 40 ss. e 45; ROMERO MORENO,
ibid., passim). Enquanto “acção”, também nesta perspectiva, é um comportamento
objectivamente determinável de alguém (ou uma pluralidade planificadamente
associada de pessoas) com previsível (ou pelo menos de qualquer modo estimável)
efeito social – J. M. PRIESTER, “Rationalität und funktionale Analyse”, in Jahr. f.
Rechtssoz. u. Rechtstheorie, I, p. 468. E “decisão”, na mesma linha e como também já
atrás foi aludido, “é a escolha finalística entre diversas possibilidades de acção” tendo
em conta os efeitos de cada uma dessas possibilidades ou alternativas relativamente ao
fim ou fins pretendidos – ou seja o acto que supera um estado de ambiguidade,
produzido por uma série de opções alternativas, através da selecção entre essas
alternativas orientada por um certo fim ou objectivo – v., entre a já hoje inabarcável
bibliografia, H. RAIFFA, Decision Analysis; BRUNO FINETTI, “Decisão”, in Enciclopedia
Einaudi, 15, p. 411; PRIESTER, ob. loc. cits., p. 468; T. W. WÄLDE, ob. cit., 8, p. 40;
ROMERO MORENO, ob. cit., p. 10. Neste sentido “decisão” e escolha entre alternativas
são sinónimos (cfr. GÄFGEN, Theorie der wirtschaftlischen Entscheidung, apud W.
KILIAN, Juristische Entscheidung und elektronische Datenverarbeitung, p. 163, n.° 48),
e a “teoria da decisão” tem por objectivo a definição de regras e modelos estratégicos de
decisão, com base numa investigação teórico-analítica da acção finalizada (nos seus
pressupostos e condições, nos seus fins, nas suas possibilidades e efeitos, nos seus
factores determinantes). Teoria que opera num quadro de racionalidade formal
(analítico-funcional) e mobiliza amplamente as estruturas e os modelos do pensamento
matemático (particularmente o “cálculo de matrizes”), numa contínua tendência a
converter o qualitativo em quantitativo, e que por isso se poderá dizer a tentativa de um
cálculo da acção e da decisão. Como pensamento teórico-analiticamente estratégico, o
que o determina não é a “decisão enquanto a decisão „justa‟ ou „verdadeira‟, mas
simplesmente a decisão óptima em dadas condições” (cfr. KILIAN, ob. cit., p. 151), e
optimização que se pretende, pois, funcionalmente ou tecnologicamente calculável. Ter-
-se-ia assim como que a última expressão da “ideia viva no racionalismo clássico (da
razão como cálculo, de HOBBES, à mathesis universalis de LEIBNIZ) de tornar calculável
a prática humana” (SIMONA MORINI, “Teoria Prática”, in Enc. Einaudi, 10, p. 334).
100

O que não dispensa, todavia, uma caracterização com um pouco


mais de pormenor das linhas fundamentais da “teoria racional da
decisão”. Assim, enquanto seu ponto básico, importa diferenciar os
vários tipos de situações a que a decisão irá referida, e que são
fundamentalmente quatro: a decisão em situação de certeza (“a cada
escolha de uma alternativa entre as diversas possíveis corresponde um
resultado certo, reduzindo-se o problema à comparação dos resultados
possíveis e à escolha do preferível” – B. FINETTI, p. 409), a decisão em
situação de risco (os resultados das acções a decidir só podem ser
considerados em termos de probabilidade, por concorrerem na situação
circunstâncias apenas estimáveis na sua probabilidade de relevância para
o resultado), a decisão em situação de incerteza em sentido estrito (o
decisor terá de atender a circunstâncias desconhecidas, ou ao “acaso”, e
considerá-las na sua relevância para o resultado das acções) e a decisão
em situação de incerteza competitiva ou situação antagónica (os
decisores são dois ou mais, numa situação de adversários em conflito, de
tal modo que, relevando os efeitos da acção de cada um para a acção-
-reacção do outro ou outros, com os seus respectivos efeitos, cada decisor
terá de ter em conta tanto a acção dos outros como a reacção deles aos
efeitos da sua própria acção) – v. STEGMÜLLER, ob. cit., I, p. 385 ss.;
SCHLINK, p. 323 ss.; FINETTI, p. 409 s.; PRIESTER, p. 469 s.. Este último
tipo de situação decisória é, por seu lado, o campo de aplicação da “teoria
dos jogos”, enquanto modalidade específica da “teoria da decisão”.
Subordina-se essa modalidade do “jogo” ao postulado fundamental da
acção racional dos participantes ou “jogadores”, no sentido de que cada
um deles agirá, no contexto situacional ou no quadro do “jogo”, de modo
finalístico-funcionalmente racional (i. é, agirá em termos de obter o
maior benefício das suas acções e de evitar o maior prejuízo das acções e
reacções dos outros), podendo, por isso, designar-se a situação de
incerteza competitiva também por “situação de indeterminação racional”
(PRIESTER, p. 469), e é esse postulado que funda a possibilidade de
definir estratégias mesmo para a decisão nesse tipo de situações. (Para
uma introdução à “teoria dos jogos”, que tem como autores primeiros J.
V. NEUMANN e O. MORGENSTERN: Theory of Games and Economic
Behavior, 1947, podem ver-se GILLES-GASTON GRANGER, “Jogos”, in
Enc. Enaudi, p. 15, p. 484 ss.; KILIAN, ob. cit., p. 152 ss.; J. M. ROMERO
MORENO e L. J. PEREDA ESPESO, “Reflexiones sobre modelos
matemáticos y decisión jurídica”, cit., p. 90 ss.; J. M. ROMERO MORENO,
El sistema jurídico como sistema estratégico, cit., p. 15 ss.).
Definida a situação, e uma vez que, como vimos já, a decisão se
traduz na “escolha de alternativas na situação relevante em atenção aos
fins” (WÄLDE, p. 41), há que considerar um quadro de coordenadas (da
decisão) e estas implicam a mobilização de um conjunto de factores (para
a decisão), que será, por sua vez, a base do enunciado de regras ou
máximas (de decisão). Com efeito, há que discriminar em qualquer
comportamento decisório as “variáveis quanto aos fins” (o que se quer),
os “parâmetros da acção” ou as alternativas (o que se pode fazer) e as
“variáveis relativas ao meio” (os efeitos de cada alternativa e a reacção
que possa sofrer a decisão que opte por cada uma delas) – v., para esta
101

discriminação e nos termos enunciados, WÄLDE, p. 41; cfr. SCHLINK, p.


336. O que se reconduz a dois pontos principais: por um lado, à obtenção
de “uma lista completa das alternativas com a consideração de todos os
efeitos ou as consequências de cada alternativa; por outro lado, a
valoração dessas consequências segundo uma ordem ou escala de valores
por que se justifique a escolha das alternativas – cfr. KILIAN, p. 167. E
então os factores determinantes serão também, e respectivamente, uma
completa base de informação e uma concludente base de valoração. A
base de informação traduzir-se-ia num conjunto de conhecimentos –
“ontológicos” (GÄFGEN) ou obtidos por observação e interrogação de
testemunhos, nomológicos e tecnológicos – sobre as possibilidades de
acção e os seus efeitos; a base de valoração será um postulado sistema de
fins ou de valores. Devendo observar-se que, na perspectiva deste
pensamento tão-só funcional-instrumental, esse sistema de fins ou
valores não pretende significar uma ordem axiológica ou uma a priori e
material ordem de valores, mas simplesmente urna escala de preferências
relativamente às possibilidades alternativas ou uma “teoria de
preferência” tendo por objecto as diversas alternativas (as diversas
acções-efeitos) com vista à realização do fim ou objectivo pretendido;
assim como “valoração” não será igualmente mais do que a comparação
das alternativas nesse mesmo sentido (v., por todos, PODLECH,
Wertungen und Werte im Recht, loc. cit., p. 196 ss.; KILIAN, ob. cit., p.
209 ss.; WÄLDE, ob. cit., p. 70 ss.). Diferente é a valoração no seu sentido
axiológico-material, que se funda num valor pressuposto e se exprime
num juízo sobre algo que realiza ou manifesta em si esse valor – cfr. H.
HUBMANN, Wertung und Abwägung im Recht, p. 7, ss., que distingue
também “valor” e “preferência”, p. 7, embora de modo não totalmente
esclarecedor –, enquanto a valoração transitiva a que agora aludimos é de
sentido funcionalístico-formal, funda-se numa relação instrumental e
exprime-se num juízo sobre a aptidão de algo como meio. Por seu lado, a
postulada teoria de preferência só será concludente e susceptível de se
oferecer como base para a decisão, se respeitar três “axiomas”: o axioma
da comparação (as alternativas hão-de ser comparáveis entre si), o
axioma da assimetria (as alternativas hão-de ser diferentes em si e nos
seus efeitos) e o axioma da transitividade (“uma ordem de preferências
para as alternativas a, b e c é „transitiva‟ se o sujeito da decisão, caso
prefira a perante b e b perante c, preferirá também sempre a perante c, ou
se aRb e bRc implica também aRc” – KILIAN, p. 231) – sobre estes
axiomas, v. LUHMANN, ob. cit., p. 22 ss.; KILIAN, p. 230, ss.; WÄLDE, p.
42, s.; PRIESTER, ob. loc. cit., p. 462-463. Tudo o que, sendo, porém, só
pressupostos e condições para a decisão, encontra o seu complemento
indispensável no enunciado das regras ou máximas por que ela se possa
concretamente orientar. São muitas e diversas as propostas dessas regras
ou máximas, que visam sobretudo, como é natural e por serem as mais
importantes, as situações de total incerteza (de risco e de
indeterminação), sobretudo aquelas situações que não permitem
afirmações de probabilidade, subjectiva ou objectiva, quanto aos efeitos
da escolha das alternativas. Se um juízo dessa probabilidade for possível,
a regra mais invocada é a de BAYES: a prescrever a decisão por aquela
alternativa que for mais provável, dentre as preferíveis ou mais
102

desejáveis para o decisor segundo a escala de preferência postulada.


Excluída a probabilidade, as regras comummente referidas reduzem-se a
duas: numa atitude “pessimista” ou excludente de riscos, procurar-se-á a
“minimização dos máximos riscos” segundo a regra minimax (“o sujeito
da decisão prefere aquela alternativa cuja realização tenha efeitos menos
inconvenientes, caso a alternativa escolhida se prove falsa”); numa
atitude “optimista” ou de aceitação de riscos, decidir-se-á pela alternativa
dos efeitos mais favoráveis, independentemente do grau com que se
ofereça a chance da sua verificação, segundo a regra maximax ou a
“regra do máximo dos máximos” – cfr., por todos, STEGMÜLLER, p. 391
s.; KILIAN, p. 255 ss.

c) A terceira pergunta interroga pelo modelo metódico. E é aquela que menos


admitirá uma resposta geral, já que, sendo várias as modalidades do funcionalismo
jurídico que teremos de considerar, também em cada uma dessas modalidades ele se
revela com uma operatória específica. O que não exclui em absoluto a referência a um
esquema metódico fundamental em que, com mais ou menos adesão, todas as
modalidades do funcionalismo material comungam. Pelo que serão elas que em
primeiro lugar consideraremos.
Nesse sentido, diremos que em contraposição ao “paradigma de aplicação”,
próprio do normativismo, ocorre agora o “paradigma de decisão” – o que era ali
“aplicação”, a repetição em concreto e de modo logicamente determinado de uma
normatividade abstracta, é aqui a “decisão”, a continuação em concreto e em termos
decisórios de uma transitividade programática. Já o tínhamos compreendido: se no
normativismo a actuação jurídica culmina na aplicação a uma correlativa factualidade
de um dogmático sistema de normas, no funcionalismo culmina na decisão que assume
numa particular situação concreta o programa finalístico. Com algumas notas de
previsão, no entanto, e que apenas retomam pontos para que foi chamada a atenção.
1) A relação entre, por um lado, o programa finalístico que pré-determina, numa
pressuposição selectiva e estratégica, os objectivos políticos, sociais, económicos, etc. –
objectivos que traduzem as opções jurídicas vinculantes impostas pelos órgãos com
legitimidade político-jurídica para tanto e que se especificam criteriologicamente nas
prescrições, de novo legislativas ou outras (regulamentares, estatutárias, etc.) – e, por
outro lado, a decisão em concreto será do tipo que em geral corresponde à relação
estratégia/táctica. A estratégia, agora como programa/planificação e não como
racionalidade, refere em todos os domínios práticos em que há que seleccionar e decidir
103

objectivos numa opção entre objectivos alternativos, justamente essa finalística


selecção, e decerto segundo uma coordenação, ordem de preferência, etc., entre os
objectivos seleccionados. A táctica, por sua vez, considera as decisões que no terreno ou
nas suas circunstâncias particulares, e actuando mediante complementos, correcções,
desvios, etc. que essas circunstâncias justificam, procuram que o êxito dos objectivos
programados seja alcançado em concreto ou eles se realizem da melhor forma ou
adequação concretamente possível. Assim, se o programa jurídico finalístico e a sua
prescrição definirão a estratégia jurídica a realizar, à decisão caberá a sua táctica
realização concreta – e pensa-se naturalmente na decisão dos órgãos jurídicos que a ela
são especialmente convocados, as entidades administrativas de execução e os juízes.
Esquema metódico definido pela relação entre estratégia programática e táctica
decisória que não deixamos de ver mesmo proposto para pensar universalmente a
actuação actual do jurídico, independentemente de um expresso compromisso
funcionalista – v. A. MEIER-HAYOZ, Strategische und taktische Aspekte der Fortbildung
des Rechts, in J. Z., 1981, 417, ss., espec. 420, ss.
2) A intenção de performatividade e de eficiência, tendo de novo em conta a
diversidade, a variação e a sempre possível evolução dos contextos e das circunstâncias,
exigirá uma qualquer abertura, uma flexibilidade e mesmo uma indeterminação dos
critérios, sejam eles prescrições imperativas ou regras doutrinais – como que numa
analogia com as comuns “cláusulas gerais” –, que permita a imputação de uma
indispensável e irredutível autonomia decisória ao operador concreto (ao decisor
táctico), que é chamado a garantir e deverá orientar-se sempre, em último e decisivo
termo, pelo êxito funcional.
3) O que será estruturado fundamentalmente por dois tipos de esquemas
metódicos específicos. Um esquema decisório de índole especialmente técnica, se
centrada a perspectiva exclusiva e directamente nos objectivos seleccionados e
programados, pois que então, importando antes de mais a lograda realização imediata
desses objectivos, o esquema eficaz será o que se define pela adequada relação
meio/fim. Um esquema de índole especialmente estratégica (agora de racionalidade
estratégica) quando, com maior atenção às circunstâncias concretas do decidir ou operar
que possam condicionar a realização dos objectivos, e bem assim aos efeitos ou
resultados efectivos que elas permitam ou impeçam, o esquema mais eficiente já será o
que se defina segundo um princípio de optimização daquela realização tendo em conta
os efeitos (os efeitos que sejam possíveis e se vão verificando em concreto). Dir-se-á
104

numa certa analogia – se é lícito invocar aqui essa analogia – que no primeiro caso o
modelo será o de uma “ética (prática) de convicção” e no segundo caso o de uma “ética
(prática) de responsabilidade”.
4) Um outro ponto metódico em que o funcionalismo muito particularmente se
manifesta, na sua opção pelos efeitos v.s fundamentos, é o do relevo dos resultados da
decisão para a orientação da própria decisão e como seu critério. Tendo em conta os
efeitos político-sociais, estritamente sociais, económicos, etc., que previsivelmente, e
mediante hipóteses alternativas de resultados, a decisão possa provocar, assim esta, no
espaço de autonomia que se lhe reconhece, deverá ser uma ou outra, aquela que permita
ou impeça os efeitos desejáveis ou indesejáveis – a decisão, no seu próprio conteúdo,
deverá ser função dos seus possíveis efeitos. Cânone metódico consequencialista que,
aliás, também hoje tende a generalizar-se no pensamento jurídico (v. Metodologia
jurídica, 190. ss.).
Diferente, mesmo contrária, é a atitude metódica do funcionalismo sistémico,
pelo menos na versão radical que dele propõe N. LUHMANN, como seu caput scholae.
Assim, importaria distinguir o “método funcional”, que seria próprio do funcionalismo
sociológico – e que afinal o funcionalismo jurídico material, como temos visto, acaba
por assimilar –, do método da “decisão jurídica”. Pois tal como tínhamos visto, a
propósito das “funções do direito”, que este devia ser funcionalmente desonerado do seu
compromisso com fins incontroláveis num futuro aberto – o que podendo ser problema
para uma perspectiva sociológica não poderia ser problema para o ponto de vista
jurídico –, também a decisão jurídica excluiria metodicamente a referência a fins/efeitos
como seu critério para se estruturar antes no modo de um Konditionalprogramm, ou em
termos de as expectativas normativas, que ao sistema jurídico funcionalmente
competiria definir, se vissem afirmadas e salvaguardadas em concreto mediante uma
decisória aplicação submetida ao esquema metódico condicional-hipotético (se/então),
mediante uma “decisão condicionalmente programada”. A “estrutura final” seria
porventura relevante na criação e na interpretação das “normas”, não na decisão jurídica
da sua aplicação – “uma fundamental ponderação dos efeitos da sua decisão não
pertence ao programa dos juristas” (v. N. LUHMANN, Funktionale Methode und
juristiche Entscheidung, in Archiv des öffentlichen Rechts, 94 (1969), 1, ss.). E se
perante o “paradigma da aplicação”, próprio do normativismo, não é isto novidade
nenhuma, as diferenças do funcionalismo sistémico não as teremos, na verdade, aí, no
modelo metódico da decisão jurídica, mas no seu entendimento, apenas socialmente
105

funcional, do sistema jurídico enquanto subsistema social chamado a “reduzir a


complexidade” do mundo prático, e bem assim no modo da sua constituição, da sua
diferenciação e da sua afirmação nesse mundo – o que veremos quando tratarmos
especificamente desse funcionalismo.

d) A um último ponto importa ainda atender nesta caracterização geral do


funcionalismo jurídico. É o que tem a ver com o modo como ele vê a realidade referida
pelo direito. Se o direito, como quer que se entenda, não pode deixar de referir-se à
realidade humano-social que o convoca, como sua dimensão prático-regulativa, e em
que ele terá de projectar a sua actuação, essa realidade não é, porém, considerada
sempre no mesmo e decisivo sentido pelo pensamento jurídico. Antes cada perspectiva
de compreensão da juridicidade terá como correlato da sua intencionalidade prática uma
visão específica dessa realidade. Foi assim que vimos o normativismo a reduzi-la a um
acervo analítico de “factos”, os factos empíricos correlativos dos hipotéticos enunciados
lógicos das normas – não a realidade prática em que se manifesta a praxis humano-
-social da inter-acção, com as suas dimensões próprias e os seus problemas práticos
específicos, mas os factos apenas admitidos pela subsunção nas normas e a provar
empiricamente. O normativismo verdadeiramente ignora, como podemos compreender,
essa realidade na sua especificidade – é ela para ele tão-só o campo de aplicação das
normas. Enquanto que o funcionalismo, bem ao contrário, não pensa o direito
independentemente da realidade social, nem a reduz a factos discretos, antes o vê em
função dessa realidade pressuposta na sua autonomia determinante, como o todo em que
decorre a existência humana, com as suas dimensões práticas independentes e a
imporem-se como tais ao direito, as dimensões política, cultural, social, económica, etc.,
que nessa sua pressuposição lhe dirigem exigências e às quais ele se deverá
funcionalizar. O funcionalismo pretende, sabemo-lo já, que o direito assuma e satisfaça
funcionalmente essas exigências e em todos os seus planos de determinação e de
realização. O que nos permite compreender o seu apertado diálogo com a política, a
sociologia, a economia, numa atitude interdisciplinar, se é que não acaba mesmo por
converter-se, nas suas formas mais radicalizadas, numa “ciência política”, numa
jurídico-sociologia, numa jurídico-economia, numa teoria sistémico-jurídica.
106

3. Tentámos até aqui uma caracterização geral do funcionalismo jurídico – na


medida decerto em que essa caracterização em geral era possível. Mas não ignoramos já
que o funcionalismo jurídico não é linear, nem unívoco, que se especifica em diversas
modalidades e que só nessas suas modalidades verdadeira e acabadamente o
conheceremos. Também foram sendo aludidas essas modalidades: o funcionalismo
jurídico político, o funcionalismo jurídico social em sentido estrito, a diferenciar-se no
funcionalismo jurídico tecnológico-social e no funcionalismo jurídico económico, e o
funcionalismo jurídico sistémico. E é chegado o momento de nos ocuparmos de cada
um deles em particular, começando pelo funcionalismo jurídico político.

a) O funcionalismo jurídico político compreende o direito como um instrumento


político, em sentido estrito, e numa intenção expressa de politização da juridicidade. E
exactamente neste sentido: o direito assumiria um programa finalístico de carácter
político, os seus critérios seriam políticos e as suas decisões também de sentido político.
Não se limita, pois, a sublinhar a função política que o direito sem dúvida sempre
desempenha, enquanto um dos mais relevantes elementos de organização, de garantia e
de solução, de definição e de tutela dos padrões da existência e da vida comunitária,
enquanto é ele um capital elemento estruturante da polis – nem era outro o autêntico
sentido de dikaion politikon, traduzido para o latim por jus civile [ius da civitas]; ou
sequer significa apenas o reconhecimento dos efeitos políticos que a existência e a
realização do direito decerto também produzem ao intervirem na vida social, tomando
posição perante ela ou orientando-a num certo sentido; visa sim afirmar que ao direito
compete imediatamente e no seu específico sentido um objectivo político – o seu
objectivo constitutivo seria a realização normativa de um particular projecto e de uma
teleologia políticos – e ainda que, já por isso, os seus critérios seriam, a todos os níveis
da ordem jurídica, critérios políticos, assim como as decisões jurídicas da sua realização
concreta não menos, em último termo, do que decisões políticas, decisões de
compromisso político (cfr. ZÖLLNER, Recht und Politik, zur politischen Dimension der
Rechtsanwendung, in Fest. f. Fritz v. Hippel, 70 G., 134, ss.; G. WINKLER,
Wertbetrachtung im Recht und ihre Grenzen, 15, ss.).
Politização, nestes termos, da juridicidade que só bem compreenderemos se
tivermos em conta as suas determinações relevantes, e de que ela acabou por ser
resultado. Há que considerar, desde logo, uma determinação metodológica – mais
rigorosamente, a consequência de uma certa evolução metodológico-jurídica –, depois,
107

como que uma exigência sociológica ou imposta sociologicamente pela actual mutação
político-social das sociedades contemporâneas, e, por último, uma directa determinação
político-ideológica.
1) Por determinação metodológica, queremos referir o que se implicaria nas
consequências do pós-positivismo. O pós-positivismo metodológico, ao manifestar o
compromisso normativo-jurídico constitutivo (“criador”) e teleológico-material da
realização do direito, teria convertido a política, a intenção e os critérios políticos, numa
dimensão indefectível dessa realização e, assim, do pensamento jurídico enquanto tal.
Isto, nos termos seguintes.
α) Sabe-se que o positivismo jurídico, com o normativismo com que era
pensado, se oferecia bifronte como Janus: à reconhecida imperativa criação política do
direito, nas fontes estaduais e fundamentalmente legislativas, contrapunha uma
pretendida apoliticização no método jurídico (na determinação e na aplicação desse
direito politicamente criado). Não obstante a criação política do direito, a metodologia
dos juristas, enquanto juristas, seria puramente jurídica, não política.
Com efeito, se para o positivismo jurídico o direito era só o direito positivo, com
exclusão assim do “direito natural” ou de qualquer juridicidade transpositiva – “sob
positivismo jurídico, compreende-se aquela teoria do direito, acentuava KELSEN (Was
ist juristischer Positivismus?, in Die Wiener Rechtstheoretische Schule, I, 941), que só
concebe o direito positivo como „direito‟ e que a qualquer outra ordem social, embora
designada na linguagem como „direito‟, assim particularmente o „direito natural‟, recusa
que possa valer como „direito‟” –, e se o “direito natural” acabava por se identificar com
o direito posto (im-posto) pelas prescrições do órgão ou órgãos político-socialmente
legitimados para tanto, isto significava que o direito era entendido como criação
autónoma do legislador político, segundo a sua teleologia político-social, e variável em
função das circunstâncias histórico-sociais condicionantes dessa mesma teleologia.
Uma vez, porém desse modo criado e posto, o direito passaria a ser objecto de
um pensamento que se pretendia puramente jurídico e assumido assim pelo “jurista
enquanto tal” (“Jurist als solche”: WINDSCHEID), pois que o seu objectivo metodológico
seria exclusivamente cognitivo (a analítico-interpretativa reprodução e conceitualização
dogmática desse direito positivo, não de qualquer modo a reconstituição ou coprodução
da sua normatividade) e a sua intenção noética estritamente formal – se o legislador cria
o direito positivo, o jurista com o seu pensamento exclusivamente jurídico conhece-o na
sua estrutura lógico-formal e aplica-o também lógico-formalmente ou lógico-
108

-dedutivamente, constituindo nesses termos o que se viria a designar o estrito “método


jurídico”. Por um lado e como sabemos, o pensamento jurídico dirigir-se-ia
teoricamente ao direito como objecto, porque se trataria de conhecer o direito que é (de
jure condito ou de lege lata) e não o direito que deve ser (de jure condendo ou de lege
ferenda) – com o que simultaneamente postulava quer a separação do direito perante a
moral, quer a distinção entre o jurídico e o político (V., por todos, H. KELSEN, ob. loc.
cits., 950, ss., e ainda em Reine Rechtslehre, 2.ª ed., 1 (na trad. port., I, 1), com um
enunciado que, embora referido directamente à “Teoria Pura do Direito”, poderia ser
subscrito por todo o positivismo jurídico: “Como teoria, quer única e exclusivamente
conhecer o seu próprio objecto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o
direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como
deve ser ele feito. É ciência jurídica e não política do direito”; H. L. A. HART,
Positivism and the separation of Law and Morals, in Essays in Jurisprudence and
Philosophy, 49, ss.; N. BOBBIO, Ancora sul positivismo giuridico, in Giusnaturalismo e
positivimo giuridico, 150; H. HENKEL, ob. cit., 498; W. OTT, ob. cit., 112, ss., 177, s.).
E assim nos dois momentos metódicos que principalmente lhes competiria, na
interpretação e na “construção” do pressuposto direito positivo: a interpretação
enquanto a explicitação do pensamento que se exprime nas leis (SAVIGNY), já
directamente nos casos comuns, já indirectamente nos próprios casos das pseudo
“lacunas”, porque estes casos e com base nos postulados da plenitude e da racionalidade
imanente do sistema das normas jurídicas positivas (que seria um “sistema fechado” ou
auto-suficiente e constituído por um legislador racional) encontrariam também a sua
solução jurídica nesse sistema positivo, já pela aplicação de um “princípio universal
negativo” ou “norma geral exclusiva”, já por uma “auto-integração”, mediante
explicitação ou expansão lógica do sistema, nos modos das analogia legis e analogia
iuris (as quais se consideravam assim só uma species particular do genus interpretação);
a “construção”, enquanto consistiria ela – vimo-lo já – na conceitualização sistemática
tanto do conteúdo interpretado do direito positivo como de qualquer facto, acto ou
relação jurídicos, i. é, na subsunção de um e de outros aos conceitos constitutivos do
sistema jurídico. Por outro lado, o pensamento jurídico determinava-se por uma
intenção formal, porque compreendia o direito como forma – o “formalismo”, oposto ao
“finalismo”, é uma característica geralmente reconhecida do positivismo jurídico (Por
todos, N. BOBBIO, Giusnaturalismo, cit., 79, ss. E em geral sobre o formalismo jurídico,
v. F. GONZÁLEZ VICEN, Sobre los orígenes y supuestos del formalismo en el
109

pensamiento jurídico contemporáneo, in Estudos de Filosofia del Derecho, 141, ss.).


Pois que desde KANT (o direito tem a ver com a forma, não com a matéria ou os fins,
da relação entre os arbítrios ou as acções – v. Die Metaphysik der Sitten – Einleitung, I e
Einleitung in die Rechtslehre, § β) a STAMMLER (o direito ou o jurídico são a forma
estrutural e condicionante da matéria económico-social – Wirtschaft und Recht nach der
materialistischen Geschichtsauffassung, passim; Lehrbuch der Rechtsphilosophie, §§
24, 56 e passim) e a KELSEN (“se há normas do direito independentes, e diferentes das
leis morais e de quaisquer normas sociais, então a sua essência específica só pode
encontrar-se na sua forma, no tipo e modo como no dever-ser jurídico é estatuída a
obrigação jurídica” – Hauptprobleme der Staats- und Rechtslehre, 2.ª ed., Vorrede e
pág. 70) e através dos positivismos pandectista e legalista (v. F. WIEACKER,
Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2.ª ed., § 23), a concepção generalizada era a do
“direito como forma” (v., G. LAZZARO, Sul diritto come forma, in R. I. F. D., XXXIX,
Série III (1962), 636, ss.; N. BOBBIO, Giusnaturalismo, cit., 85, ss.), i. é, como formal
estrutura ordenadora da vida social, a considerar como abstracção da matéria social
ordenada ou sem referência a quaisquer intenções materialmente práticas, fossem elas a
exigência ética da justiça, os valores ou os fins (“Considerações de carácter ético,
político ou económico não são tema dos juristas como tais” – WINDSCHEID, apud
WIEACKER, ob. cit., 431 – “A designação como formal de uma investigação assim
dirigida (...) explica-se considerando que o objectivo da investigação não é, nem a
explicação causal, nem a justificação teleológica de um instituto, mas a determinação do
seu status normativo” – BOBBIO, ob. cit., 90, ss.) ou como estrutura lógica invariante
para a matéria variável dos conteúdos possíveis da realidade histórico-social e definida
dogmaticamente sem considerar os fins ou os interesses concretos que dinamizassem
essa realidade.
E haveria duas razões principais para tanto, nas quais o pensamento jurídico de
Oitocentos insistiria. Exigências epistemológicas, em primeiro lugar – aquelas mesmas
exigências teoréticas que vimos terem determinado o normativismo a converter o
prático normativo-jurídico ao lógico dogmático-sistemático, pois se, por um lado,
apenas essa conversão garantiria o estatuto do teorético (do lógico-conceitualmente
sistemático), por outro lado, a só consideração da “forma” oferecia um objecto (estável)
de conhecimento que os conteúdos socialmente materiais, na sua contínua variação e na
sua contingência, excluiriam (sobre este último ponto, v. F. GONZÁLEZ VINCEN, Sobre
los orígenes y supuestos del formalismo en el pensamiento jurídico contemporáneo,
110

cit.). Exigências de diferenciação do jurídico enquanto tal, em segundo lugar, já que


apenas na “forma” (numa dogmática de sentido institucionalmente formal) e não nos
conteúdos materiais, se poderia preservar a distinção do jurídico perante o ético, o
político, o económico, etc. (cfr., sobre este expresso objectivo na “ciência jurídica” e na
metodologia jurídica alemãs do séc. XIX, WALTER WILHELM, Metodologia giuridica
nel secolo XIX, trad. cit., espec. 111 e IV). Numa palavra de KELSEN e em que tudo se
resume: “o direito não pode ser separado da política, pois é um essencial instrumento da
política, mas a ciência do direito pode e deve ser separada da política” (H. KELSEN, Was
ist die Reine Rechtslehre?, cit., 620).
É, pois, esta “despoliticização” do pensamento jurídico e deste modo postulada –
o direito como objecto pressuposto para uma atitude tão-só cognitiva e pensado apenas
em termos formais – que vem a ser posta em causa, e justamente nestas suas notas, por
uma diferente e sucessiva compreensão metodológica, que por isso se dirá pós-positiva.
Bem o sabemos: a teoria positivista da aplicação do direito (aplicação lógico-dedutiva
segundo um esquema silogístico-subsuntivo) não só iludia o problema real dessa
aplicação como se revelava metodologicamente insustentável. Iludia o problema,
porquanto, sem considerar a sua específica problematicidade jurídico-concreta, o que
verdadeiramente fazia era converter um postulado político (só a lei pode criar direito e a
decisão judicial, excluída da sua criação, deve limitar-se a aplicá-la) num prescrito
esquema metódico (a aplicação do direito é lógico-subsuntiva ou actua um modelo de
dedutividade próprio do estritamente lógico), ocultando assim o problema jurídico desta
concreta aplicação sob um seu pretendido (e aproblemático) modelo lógico. E era isso
insustentável, porque a analítica dessa postulada aplicação tão-só lógica revelava que
ela era afinal e realmente determinada por ponderações normativas e intenções práticas
– ponderações e intenções essas exigidas não apenas para vencer a distância normativa
entre o abstracto da norma e o concreto do caso decidendo, mas sobretudo pelo próprio
e particular mérito jurídico do caso (pela sua particular problematicidade jurídico-
-normativa). Daí duas irrecusáveis conclusões: se o pensamento jurídico poderia ser
porventura ciência no conhecimento dogmático das normas abstractas, de novo se teria
de reconhecer “jurisprudência” na decisão concreta (cfr. T. MAYER-MALY,
Jurisprudenz und Politik, in Fest. H. Kelsen z. 90, g., 110, ss.); e esse momento
jurisprudencial mostrava-se, como tal, normativamente constitutivo nesse seu concreto
decidir. O direito judicativamente afirmado na decisão concreta não era a mera
reprodução do direito abstracto aplicando, e sim uma reconstrutiva concretização,
111

integração e desenvolvimento prático-normativos desse direito abstracto segundo as


exigências dos específicos problemas jurídicos dos casos decidendos. Pelo que, e
enquanto normativamente constitutiva, a jurisprudencial decisão concreta revelava-se
afinal também criadora do direito. Depois, a crítica e a superação metodológicas de “o
método jurídico” através de todos os movimentos metodológico-jurídicos de orientação
prática, desde a última década do séc. XIX até praticamente aos nossos dias, se
repunham a compreensão do direito, enquanto tal, no sentido de uma tarefa e de um
problema práticos – o direito como regulativo material e materialmente comprometido
em valores, fins e interesses –, também convocavam o pensamento jurídico, no seu
momento judicativamente jurisprudencial, a uma intencionalidade prático-normativa e
especificamente normativo-teleológica. E isto significava, não apenas que o direito não
era afinal só forma, mas intenção material, como ainda que a índole do pensamento
jurídico não era simplesmente lógico-dedutiva, mas normativo-teleológica –
evidenciando-se assim que, tal como a intencionalidade do legislador, também a
intencionalidade do pensamento jurídico era prático-normativo-teleológica. Em síntese:
tanto pelo carácter normativamente constitutivo ou criador das suas decisões jurídicas,
como pela sua intencionalidade prático-normativa, o pensamento jurídico e os juristas
enquanto tais aproximam-se do legislador, pensam e criam o direito como o legislador –
com diferença quantitativa ou grau de liberdade e vinculação, decerto, mas sem
essencial divergência qualitativa – e por isso o cânone de decidir judicativamente “como
se fora legislador”, de início invocado apenas para o domínio restrito da integração das
lacunas, se converteu num princípio metodológico geral em que todo o pensamento
metodológico-jurídico se deveria reconhecer (cfr., por todos, F. SCHAFESTEIN, Zur
Problematik der teologischen Begriffsbildung im Strafrecht, in Interessenjurisprudenz,
G. ELLSCHEID/WASSEMER, Hrsg., 381, ss.).
E nesta base se passou a entender que o pensamento jurídico assimilaria
metodologicamente uma dimensão política, contra a despoliticização para ele pretendida
pelo metódico positivismo jurídico. O político é afirmado no pensamento jurídico, já
que neste se reconhecem agora as duas notas essenciais do político. No momento
normativamente constitutivo e criador dos concretos juízos jurídicos, a nota estrutural
da decisão e do poder. A criação normativa implica decisão (voluntas) e nesta afirma-se
decerto um poder: a função judicial não era afinal um “poder nulo” (não agora
exactamente no sentido sobretudo político-sociológico com que MONTESQUIEU dizia “la
puissance de juger” “invisible et nulle” ou “en quelque façon nulle” (De 1'esprit des
112

lois, Liv. XI, cap. VI), mas numa sua paráfrase) e apenas a “boca da lei” (“la bouche de
la loi”). No momento intencional prático-normativo, a nota do prático-teleológico e do
“finalismo” que também intencionalmente caracterizam o político – o compromisso
prático-estratégico das suas opções (cfr., quanto a este segundo momento, os
desenvolvimentos de G. HAVERKATE, Gewissheitsverluste im juristischen Denken, 112,
ss.).
Foi assim que generalizadamente se passou a dizer que “toda a criação do direito
é política”, seja essa criação legislativa ou judicativa (v., por todos, R. RHINOW,
Rechtsetzung und Methodik, 16, s.; R. DREIER, Zum Selbstverständnis der Jurisprudenz
als Wissenschaft, in Rechtstheorie, 1971, 46, s., 52, s.; R. WASSERMANN, Der politische
Richter, 29, 39, s., 42, s., e passim; W. ZÖLLNER, Recht und Politik, Zur politischen
Dimension der Rechtsanwendung, in Fest. f. Fritz v. Hippel 70, G., 131, ss.; MAYER-
-MALY, ob. cit., 74, ss.; Jurisprudenz und Politik, loc. cit., 108, ss.; MARIO SBRICCOLI,
L'interpretazione dello statuto, 10, 11, 112, ss.; L. PRIETO SANCHÍS, Ideologia e
interpretazione giuridica, passim); que nas dimensões da “ciência do direito” ou da
“jurisprudência” se veio a incluir, a mais possivelmente das suas dimensões
estritamente teorético-descritiva e dogmática, uma terceira dimensão ou função política
(R. DREIER, ob. loc. cits., 38, ss., esp.te 46, ss.; G. TEUBNER, Folgenkontrolle und
responsive Dogmatik, in Rechtstheorie, 1975, 190, s., e passim); que a “política do
direito” (que é política e referindo a “concepção da alterabilidade do direito através da
conformação política”) se entendeu como disciplina fundamental do pensamento
jurídico e decisiva dimensão “do carácter dinâmico do direito moderno”
(R.WASSERMANN, Vorsorge für Gerechtigkeit, Rechtspolitik in Theorie und Praxis, 11,
ss., e passim; EIKE v. HIPPEL, Rechtspolitik: Ziele, Akteure, Schwerpunkte, passim). Por
tudo o que, e numa formulação de U. SCARPELLI (apud E. PATTARO, Il realismo
giuridico come alternativa al positivismo giuridico, in Riv. Int. Fil. d. Diritto, IV Série,
XLVIII (1971), 111), o pensamento jurídico teria deixado “o universo da ciência pelo
universo da actividade política”.
) Conclusões todas elas, e enquanto acabam por identificar a intenção
normativamente constituenda e constitutiva do jurídico à intenção política, só possíveis
porque comungam também todas elas num tácito e acrítico pressuposto – o pressuposto
da ausência de uma intencionalidade normativa autónoma no direito. O direito não teria
outros valores constitutivos, outros princípios fundamentantes e outros fins
determinantes do que aqueles que numa perspectiva política (estratégico-
113

-teleologicamente política) e politicamente (decisório-prescritivamente política) se lhe


imputassem. Neste sentido, pois, se devia entender o direito como “instrumento da
política” (KELSEN). A própria “justiça” não se vê entendida senão como o histórico-
-político regulativo normativo de um certo sistema de valores político-socialmente
postulado ou de um certo programa político-social – nada mais do que a ideologia da
organização e da normatividade praticamente comprometida em certo sentido da
sociedade histórica (cfr. H. KELSEN, Gerechtigkeit, in Anexo a Reine Rechtslehre, 2.ª
ed.; ID., Recht und Moral, in Die Wiener Rechtstheoretische Schule, 1, 797, ss.; ID.,
Was ist die Reine Rechtslehre?, cit., 620; ID., Was ist juristischer Positivismus?, cit., 50,
s.; R. DREIER, ob. loc. cits., 47, 52, ss.; R. WASSERMANN, ob. cit., passim; cfr. ainda E.
de ROBILANT, Teoria e ideologia nelle dottrine della giustizia, 1964).
Com o que apenas se continua um dos pressupostos básicos do positivismo
jurídico, neste ponto capital afinal não superado: aquele pressuposto que, pela recusa de
qualquer transpositivo ou indisponível fundamento de validade e constitutivo do
normativo jurídico, se traduzia na imputação deste à total disponibilidade dos poderes e
das exigências histórico-políticos. Abandonada a intencionalidade tão-só cognitiva e
formal do pensamento jurídico a favor de uma intencionalidade prático-normativa
material e teleologicamente comprometida, o seu critério decisivo seria o político. Os
seus constitutivos critérios materiais são critérios políticos.
Devendo ainda acrescentar-se que esse pressuposto, com a alternativa implicada
– ou o jurídico estrito e redução à “forma” ou referência à teleologia material e remissão
para o político – só poderá compreender-se, para além da referida inferência positivista,
recuando ao sentido que a praxis assumiu a partir da modernidade. Pois pode dizer-se
que desde então o último e decisivo referente prático passou a ser o político – nem por
outra razão o Estado, como a instituição por excelência do político, era o espaço
determinante da prática em geral, não obstante a distância que a “sociedade civil” (civil
society, bürgerliche Gesellschaft) tentava marcar. O que significava mutação do próprio
sentido da “filosofia prática”. Tratava-se de um político que, identificando a praxis e
por isso mesmo, não só rompia com, como se autonomizava da metafísica (da ético-
-metafísica), a que se vinculara na “filosofia prática” anterior, quer grega, quer
teológico-medieval, quer ainda na primeira fase do pensamento filosófico moderno
(assim, nos pensadores do séc. XVII, se não já em ESPINOSA, ainda decerto em LEIBNIZ,
VICO, e mesmo PUFENDORF) – ruptura afirmada por MAQUIAVEL e autonomia também
já clara em HOBBES, ROUSSEAU, etc., mas que se faria explícita com KANT. O prático
114

deixou de se referir a uma material axiologia pressuposta, que seria em último termo
expressão metafísica, para se assumir como tarefa da liberdade e da sua autonomia
constitutiva assumidas pelo político. No plano específico do jurídico, o resultado foi a
imputação do direito exclusivamente à legitimação política – antes de mais legitimação
contratualística, como postulava a liberdade e, com esta, não menos a igualdade – a
implicar assim que a sua normatividade deixasse também de se aferir por uma validade
material (por uma exigência de fundamento ao nível do conteúdo intencional) e passasse
antes a bastar-se com uma validade formal (simplesmente com a legitimidade de um
certo poder e a exigência de uma certa forma e processo), e validade formal que viria a
identificar-se com a legalidade (com a “forma legal”). Deste modo se pensou moderno-
-iluministicamente resolver em termos jurídicos o problema político.
Ora, ultrapassada que fosse a “forma” jurídica – quer a forma legal, quer a forma
dogmática –, como vimos que veio a acontecer, convocando uma intenção material para
além dela, bem se compreende que essa intenção se procurasse no político. É que o
domínio prático-material passaria a ser o domínio do político, abandonada que fora a
filosofia prática metafísica, ou jusnaturalística – e não podendo juridicamente bastar-se
já com a “forma”, único modo de se converter o político ao jurídico e de assim
autonomizar este daquele, o pensamento jurídico seria naturalmente, inevitavelmente,
remetido para o político.

2. Conclusões que estão longe de esgotarem o sentido actual da politização do


direito, e com ela todo o desenvolvimento do funcionalismo jurídico político. Para além
daquele primeiro estádio da determinação metodológica, veremos a impor-se radical
uma determinação directamente política, e em último termo por uma opção ideológico-
-política que, para os seus objectivos dessa índole, mobiliza o direito ou as
possibilidades jurídicas. Antes disso, porém, terá interesse em atender, por um lado, ao
que se pode dizer uma certa confirmação fenomenológica daquelas conclusões, por
outro lado, à consideração da evolução sociológica, sociológico-política, das sociedades
actuais e que implicaria já em si a exigência daquela determinação explicitamente
política do direito.
α) No que se refere à confirmação fenomenológica daquelas conclusões obtidas
em perspectiva metodológica, queremos chamar a atenção para o contributo que, nesse
sentido, nos oferecem as análises de FRIEDRICH MÜLLER, na sua monografia Juristiche
Methodik und Politisches System (1976) – cfr. ainda GÖRG HAVERKATE,
115

Gewissheitsverluste im juristichen Denken (Zur politischen Funktion der juristischen


Methode), 1977, esp.te Cap. IV, 112, ss..
Assim, haveria de reconhecer-se que a “política” e o “direito” não são senão
“duas faces da mesma coisa”; e se “relativamente independentes” – no sentido de que
são “subsistemas cientificamente diferenciáveis daquele mesmo complexo social de
acções que se propõe a direcção de comportamentos dentro do grupo social” –, não seria
essa uma essencial diferença e simplesmente a considerar “no grau da formalização e no
tipo de acção, de decisão, de controle e de justificação” (p. 161). “A política vai
pressuposta no direito; todo o direito se traduz em imposição, concretização, controle,
discussão e revisão da política e determinado politicamente nos seus pressupostos,
condições, funções e conteúdos” (p. 44). “Os conteúdos imputados à ordem jurídica,
que ela tende a impor, estabilizar, manter, não são decididos juridicamente, mas
politicamente”, e por isso “o direito oferece-se como a expressão racional da política”
(p. 50). Por sua vez, com o “sistema político não é pensado só o aparelho do Estado,
mas todos os factores que determinam numa certa forma a sociedade e a política, a qual
ou é directamente conformada por normas ou é institucionalizada e tem a sua base em
instituições e normas” (p. 10); e por “metódica jurídica” entende-se “o método de
trabalho dos operadores do direito, dos titulares profissionais do trabalho jurídico”, “o
modo de trabalho quotidiano dos juristas” no quadro de uma certa ordem jurídica (ps. 9,
10, 12, 51). Ora, o sistema político influenciaria duplamente esta metódica jurídica,
considerada na realidade do seu efectivo comportamento (“Ist-Zustand”): tanto na sua
“racionalização primária” (no seu processo de decisão) como na sua “racionalização
secundária” (nos seus fundamentos de decisão), posto que aquele sistema lhe seria
pressupostamente determinante, já formal ou institucionalmente (nos mecanismos de
imposição, de concretização e de contrôle das normas, nas condições da organização
funcional dos tribunais e do direito processual), já informalmente (através das
consequências da “pré-compreensão” e das posições implicadas no estrato social dos
juristas), já ainda pelo relevo da realidade social na própria normatividade das normas
jurídicas, enquanto referida essa realidade pelo social “domínio normativo”
(Normbereich) das mesmas normas – ponto este último que tem a ver com a conhecida
distinção metodológica, proposta por F. MÜLLER, entre “texto da norma” (Normtext) e
aquele “domínio da norma”. Pressuponente influência ou determinação que se
especificaria sobretudo nas decisões (stricto sensu) dos juristas e nas implicações
(sociais) do sistema normativo e que justificaria explicitações dessa mesma influência
116

ou determinação. “Decisões” seriam os actos jurídicos decisórios que se oferecem “em


regra materialmente (socialmente) conformes ao sistema, mas formalmente
(juridicamente) contrários ao sistema, porque sem justificação legal” (p. 44, s.) – i. é,
decisões no sentido próprio que já conhecemos, a postularem a autonomia em concreto
do operador jurídico, mas com a particularidade de essa autonomia ser vista agora a
orientar-se politicamente –: assim, quando os juristas decidiriam questões concretas
quer através de “distorções do direito” (Rechtsverbiegungen), i. é, mediante soluções
diferentes das prescritas pelo direito vigente para essas questões, mas politicamente
desejáveis, quer através de “imputação ao direito” (Rechtsunterstellung) da solução de
questões que o direito vigente não regula ou que efectivamente não sustenta (p. 18, ss.)
– e de que se oferecem exemplos na jurisprudência alemã. As “implicações”, por seu
lado, ou são puramente sociais – enquanto exprimem os pressupostos político-sociais do
sistema que impõem “limites materiais às alternativas de decisão legislativas, executivas
e judiciais”, p. ex., as implicações político-sociais de um sistema económico-social
liberal – ou já imediatamente normativas – a convocação, com relevo normativo, da
realidade social directamente pelas normas, como nos casos da remissão funcional para
o “princípio da oportunidade” (“implicações normativas primárias”) e nos casos das
“cláusulas gerais” (“implicações normativas secundárias”) (ps. 28, ss., 36, ss.). Quanto
às “explicações”, haveria de considerar-se que, sendo o operar jurídico de cariz político
nos seus pressupostos e efeitos, deveria ele revelar-se também politicamente, i. é,
deveria explicitar e clarificar as suas condições e funções políticas (p. 48, s.).
Em conclusão, o direito, sem autonomia intencionalmente material, não só seria
materialmente constituído pela política, pelo “sistema político”, como a sua
juridicidade, ainda que de uma relativa autonomia no subsistema da normatividade
instituída, se via metodicamente actuada através de uma contínua assimilação, umas
vezes difusa nos pressupostos outras vezes directamente referida nas próprias normas
jurídicas, das determinações político-sociais daquele sistema e como critérios decisivos
dessa mesma efectiva juridicidade.
Devendo observar-se, todavia, que perante esta fenomenologia, não se quer vê-la
como inelutável ou de todo insusceptível de uma reacção ao que pudesse pensar-se um
acabado sacrifício do direito na ara de outros deuses. Propõe mesmo uma particular
reacção metodológica o próprio F. MÜLLER, também na monografia que consideramos.
Sem infirmar em nada a fundamental dependência política do direito, não se devia, no
entanto, deixar de dar metódica realização ao princípio do Estado-de-Direito ou à
117

exigência essencial de garantia que o direito nele deverá instituir. E em dois sentidos.
Exigindo que as decisões jurídicas concretas correspondam ao direito vigente e que elas
sejam proferidas segundo um processo previamente ordenado. Para tanto, e como
principal “contra-meio” (Gegenmittel) a opor à total contingente politicização das
decisões jurídicas – outro “contra-meio” seria a própria “explicitação” e crítica
científica daquela geral dependência –, se convocaria a “metódica jurídica”,
criticamente reelaborada, para ser, como contrapólo do direito enquanto expressão
racional da política, a “expressão racional do direito”. Isso através da definição
metódica de um esquema do decidir jurídico e das suas regras em concreto, esquema e
regras que permitissem a revisibilidade, a discutibilidade e a regularidade desse decidir,
e assim a sua consensual racionalidade. Metódica que, centrando-se no reconhecimento
da vinculação jurídica do texto legal – o texto como quadro de possibilidade e limite – e
determinando os elementos cientificamente controlados da concretização das normas
jurídico-legais, e assim da formação das concretas “normas de decisão” (no que vai
apenas aludida a proposta metodológica de F. MÜLLER e por ele desenvolvida
especialmente em Juristiche Methodik, 6.ª ed., e Strukturierende Rechtslehre, 1984),
desenvolveria a função de um padrão crítico e de contrôle (uma “norma” ou dever-ser,
um “Soll-Zustand” a opor ao real e descrito decidir jurídico, no seu Ist-Zustand, e
retirando assim a este a sua impune “efectividade” ou tornando-o “disfuncional” perante
o sistema global). Deste modo, se “o direito é também um instrumento de domínio”, a
sua realização racionalmente metódica seria simultaneamente um “instrumento de
limitação do domínio”.
Temos, porém, as maiores dúvidas de que os antídotos possam ser apenas
metodológicos e sobretudo se referidos a uma metodologia que centre a autonomia do
jurídico, ainda que actuada por uma particular racionalidade metodológica de
concretização, no texto legal (cfr., sobre este ponto, a nossa Metodologia jurídica, 115,
ss., 127, ss., 144, ss.), além de que seria isso manter afinal um dos elementos capitais do
positivismo metódico já sabidamente insustentável. O problema é mais fundo. Tem a
ver, e decisivamente, com a diferenciação, e portanto autonomia correlativa, entre as
intencionalidades política e jurídica materialmente consideradas. Uma vez afirmada e
viável essa diferenciação, terá de definir-se então, mas só então, o modus de a preservar
e realizar – o que não deixará de ser decerto uma implicação metodológica do sentido
mesmo da diferenciação. Se, pelo contrário, houver ela de negar-se, também não terá a
metodologia possibilidade de a recuperar, pois seria sempre política a intencionalidade
118

que metodicamente se assumiria. Problema esse, e nestes termos, da diferenciação


material (intencionalmente material) entre o jurídico e o político que consideraremos ao
ajuizarmos criticamente do funcionalismo jurídico político em geral.
Entretanto continuemos neste funcionalismo, e para atender ao segundo ponto
aludido: a determinação do jurídico pelo político seria exigida pela própria evolução
sociológico-política das nossas actuais sociedades.
) Tudo estaria em reconhecer a superação da sociedade liberal e das suas
implicações jurídicas – aquelas implicações de que antes nos demos conta, um direito
subsistente num sistema dogmático-logicamente formal e pressuposto, de uma
determinação cognitiva neutra e objectiva, assim como institucionalmente estruturado
pelas “separações” próprias desse universo liberal, a separação entre o político e o
jurídico, entre o Estado e a “sociedade civil” ou entre a política e a economia. Pois
estaríamos perante uma outra realidade social e política, ou realidade sócio-política, a
exigir não só um outro, um fundamentalmente diferente direito, como inclusivamente
ou sobretudo um seu todo diverso entendimento. Viveríamos agora numa “sociedade
política organizada num Estado social de direito que se encontra numa fase de passagem
da sociedade individualístico-liberal à sociedade pluralístico-social” (v. R.
WIETHÖLTER, Rechtswissenschaft, 1970, 181; na trad. ital. sob o título Le formule
magiche della scienza giuridica, 101), “passagem de uma era idealístico-filosófico-
-burguesa-liberal a uma outra pluralístico-político-democrático-social” (Ibidem,
respectivamente, 35, 36). Pelo que “um sistema de direito saído e elaborado em função
de „garante‟ de uma sociedade civil substancialmente apolítica se torna agora
inutilizável para uma sociedade moderna substancialmente política, onde se vêem
progressivamente desmentidas todas as tradicionais separações – política e economia,
Estado e sociedade civil – sobre as quais aquele sistema se fundava” (da Introdução de
P. BARCELLONA à trad. it. cit., VI). E sociedade esta nossa em que a participação
político-social, ou pelo menos a sua pretensão, seria uma característica capital e com
ela, através dela, adviria para essa sociedade, e como uma sua dimensão
programaticamente constitutiva, um assumido “projecto de emancipação”.
Daí, por um lado, a dissonância entre a “ideia” e a “realidade” que, apesar de
tudo, se continuava a verificar – “a tensão e a distância existente entre os „projectos de
emancipação‟ e as relações sociais historicamente vigentes” –, a inadequação do
“quadro institucional” – “ainda formado por aparelhos burocráticos inadequados, por
procedimentos operando por intrincados obstáculos formalísticos, utilizados
119

instrumentalmente para restringir as bases da democracia e para neutralizar a


„publicidade‟ dos processos decisórios” –, a manifesta contradição entre “uma
sociedade política que hoje se está desenvolvendo, que está crescendo, que procura
novas orientações e chances de democratização” e “um conjunto de institutos e dogmas
que exprimem ainda os princípios do Estado de direito liberal do século dezanove”
(Ibidem, X, s.). Por outro lado, e por isso mesmo, a impossibilidade de manter as
grandes categorias jurídicas tradicionais, desde logo as de “direito privado/direito
público”, a necessária mutação no entendimento dos “direitos”, de meros “direitos de
defesa”, como os pensava o juridismo liberal, para “direitos de participação política”, já
que a liberdade teria deixado de ser pressuposto e a ordem a consequência, para ser
antes a ordem política o pressuposto e a liberdade a consequência, consequência a
conseguir. E uma “liberdade positiva” (substancial) que não apenas “liberdade
negativa” (formal) – pois que “a autonomia e a dignidade do homem não são hoje os
pressupostos, mas a consequência de um bom ordenamento, não são assim institutos
privados, mas instituições políticas”, ou seja “liberdade e dignidade do homem
transformam-se de valor filosófico em facto político” (WIETHÖLTER, obs. cits.,
respectivamente, 165-181, 83-101).
Ora, se deste modo se teria de passar “da separação do Estado e sociedade civil à
unidade de direito e política”, uma implicação decisiva seria a irrecusável “politização
do direito civil” – e sublinhá-lo quanto ao direito civil não deixa de ter uma importância
paradigmática, se tivermos presente que foi no domínio do direito civil, rectius do
direito privado em geral, que desde sempre se pretendeu ver o campo por excelência do
pensamento jurídico, que não do político. E politização essa, porque “a unidade política
do ordenamento jurídico não poderia apoiar-se mais sobre os dualismos tradicionais,
entre Estado e sociedade, entre direito privado e público” – manter esses dualismos na
nova situação político-social faria com que o trabalho do jurista, “privado de uma teoria
social”, aparecesse “necessariamente irracional, casual, cego, contraditório” – pelo que
se deveriam “substituir gradualmente os fundamentos filosóficos, irreais (as ideias!), do
direito civil por fundamentos políticos, realísticos (o poder!)”. O que valeria em
particular para as categorias desse domínio jurídico, para “a autonomia privada, para o
direito subjectivo, para a personalidade e a propriedade” (Ibidem, respectivamente,
179-181, 98-101).
Por tudo o que – e para cumprir definitivamente o projecto iluminístico da
emancipação, ou seja, para lograr a iluminação crítica que permitisse ao homem, como
120

KANT preconizara, a saída da menoridade cultural e política, e do mesmo modo retirasse


o direito do seu isolamento de “uma vida de pré-emancipação numa sociedade de pós-
-emancipação” (Ibidem, 28, 35; 27, 35) – se haveria de reconhecer que “a sociedade
política de hoje tem necessidade do seu direito, de um direito político que ainda não
possui”, de um direito político só susceptível de se constituir através de uma “teoria
política do direito” e, assim, de um jurista político (“o jurista político é o pressuposto
indispensável (...) da existência de uma sociedade política”, como seria definitivamente
a nossa) – Ibidem, 10, 17, 38; 4, 37, 38).
Só que, se ficaríamos deste modo elucidados quanto ao evolutivo processo
sócio-político que justificaria um funcionalismo jurídico político, que o imporia mesmo,
pela assunção de um novo direito chamado a ser um direito político, haverá, no entanto,
que perguntar: mas que direito político concretamente? Ou, de outro modo, qual a
intencionalidade específica do direito nessa sua politização, ou quais especificamente as
dimensões que politicamente o haveriam de constituir? É o que falta ainda saber.

3) Podemos referir a tentativa de uma resposta a duas linhas principais. Uma


linha mais moderada, e também a mais generalizada no pensamento europeu, pretende
encontrar essa resposta na constituição, no direito político ou na intencionalidade
político-jurídica prescrita pela constituição. Outra linha mais radical orienta-se no
sentido da teoria crítica – quer na perspectiva da ortodoxa teoria crítica do direito e
com uma das suas consequências no uso alternativo do direito, quer na perspectiva mais
nuanceada e como que de uma particular modalidade reconstitutiva que identifica o
Critical Legal Studies Movement.
α) À Constituição caberia hoje definir o projecto político-social-jurídico das
sociedades independentes (politicamente independentes) e o direito não seria mais do
que o global sistema normativo em que esse projecto se assumiria e se haveria de
realizar. E segundo o processo de determinação e de realização que vimos próprio do
funcionalismo em geral: a Constituição definiria em termos fundamentais o
Zweckprogramm, programa político-social que o legislador, as instâncias prescritivo-
-legislativas, determinariam subordinadamente através da lei, das prescrições
legislativas, e que os juízes realizariam, com fundamento imediato na lei mas em último
termo e decisivamente segundo a teleologia constitucional, nas suas decisões concretas.
O que se haveria ainda de entender com uma dupla significação. No projecto político-
-constitucional encontrariam a sua definição todos os valores, os princípios, os fins e
121

objectivos com que a ordem político-jurídica se comprometeria e lhe impunham a sua


intencionalidade constitutiva – que tanto é dizer que a “justiça” por que a ordem social
se deveria orientar não seria outra do que a justiça político-constitucional, a justiça tal
como a definia a Constituição (cfr., para a acentuação deste ponto e por todos, G.
ZAGREBELSKI, Il diritto mite, 123, ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 1997, 1208, ss.), justiça essa que ocuparia assim hoje o topos
que classicamente se atribuíra ao “direito natural” (cfr., neste sentido, G. ZAGREBELSKI,
ob. cit., Ibidem). O que significaria não só a passagem do “Estado-de-direito”, como
“Estado-de-legislação”, para o “Estado-de-constituição” ou o “Estado constitucional”,
como ainda a identificação em último termo da juridicidade com a constitucionalidade,
e a dizer-nos, portanto, que o sentido político, enquanto em último termo o sentido
decisivo desta, seria igualmente o sentido decisivo daquela. Esta uma primeira
significação. Uma segunda significação estaria na circunstância de as decisões judiciais
chamadas à realização concreta, com a relativa autonomia constitutiva ou
normativamente criadora que definitivamente se lhes reconhece – como já vimos, e a
poder dizer-se que “a evolução do juiz como aplicador do direito para o juiz como
criador do direito é um problema do nosso tempo”, que “o direito judicial (Richterrecht)
se tornou o nosso destino” (R. WASSERMANN, Der politische Richter, 1972, 32, ss.) –,
se haverem de orientar nessa sua constitutiva actividade decisória pelo projecto político-
-constitucional, assumindo-o como o critério fundamental da sua intencionalidade
decisória. O que faria do juiz, e porque determinado nestes termos pelo projecto político
do programa político-constitucional, um “juiz-político”: se a Constituição define um
projecto político e programa normativamente assumir esse projecto político-
-constitucional (ainda que pela mediação das determinações legislativas, mas sempre
constitutivamente para além destas), fazendo-o critério capital da sua actuação
normativo-decisória, seria a politicização que se exigiria do juiz e que faria dele um
“juiz político” (v., para a fundamentação e o desenvolvimento desta tese, R.
WASSERMANN, Der politische Richter, cit. ). Tudo o que implicaria o reconhecimento, e
reconhecimento expresso (Ibidem, 17, ss., e passim) do carácter politicamente
instrumental do direito – o direito não seria mais do que o sistema normativo-global em
que se encontraria expressão regulativa e decisória um programado projecto político.
E, todavia, neste entendimento das coisas, não deixa de ir implícita uma
ambiguidade do maior relevo e que importa ter bem presente. Com efeito, o que é hoje
uma Constituição? Não decerto tão-só ou puramente um programa político, como o
122

pensou, durante ainda todo o século dezanove, o legalismo contratualístico-


-representativo, já que para ele o direito era exclusivamente a lei. Antes a Constituição
adquiriu actualmente a índole também de normatividade, e normatividade jurídica –
“está definitivamente superada a ideia da Constituição (pode ler-se em J. J. GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, 1991, 43) como simples
concentrado de princípios políticos, cuja eficácia era a de simples directivas que o
legislador ia concretizando de forma mais ou menos discricionária; não se questiona,
pois, a juridicidade, vinculatividade e actualidade das normas constitucionais”. Só que,
então, levantam-se problemas que também não podem ser resolvidos apenas
politicamente, ou melhor, que não podem ter uma mera solução política – pois que seria
isso, em último termo, remeter-nos para uma decisão, sem mais, por que se imporia um
poder, só como poder (sobre a Constituição como “decisão”, v. CARL SCHMITT,
Verfassungslehre, 1928, 24, ss., 44, ss.). Desde logo, e como fundamental, o problema
de saber como adquire ela essa sua juridicidade – problema a que a Constituição, se não
quiser pôr-se de todo à margem do direito e como qualquer fonte do direito, não pode
subtrair-se (sobre esse problema em geral, v. o nosso estudo “As fontes do direito e o
problema da positividade jurídica”, in B.F.D.C., vol. 11 (1975), 115, ss.), como
reconhece também GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, cit., 1022, n. 33) – e não menos o problema do fundamento da sua
“vinculatividade”, o problema da sua validade jurídica, validade normativo-jurídica,
que se não confundirá com a legitimação política (v. os nossos “A redução política do
pensamento metodológico-jurídico” e “Fontes do direito”, in Digesta, II,
respectivamente, 407, s., com a bibliografia aí referida, e 58, ss.). Depois, qual
exactamente o sentido da sua normatividade jurídica? Problema que também se não
poderá pensar resolver postulando, agora numa atitude de todo contrária à da
compreensão da Constituição como de índole apenas política, que é ela norma jurídica
sem mais, a Grundgesetz, a norma fundamental ou a norma hierarquicamente superior e
a ocupar o vértice fundamentante da pirâmide do sistema ou da ordem jurídica. E isto,
quer se pretenda reduzir essa normatividade jurídica a uma juridicidade formal – não
mais do que um estatuto jurídico de garantia, da definição, repartição e competência
dos poderes estaduais e de garantia dos direitos e das liberdades – e para que a sua
estrita juridicidade assim melhor se visse assegurada; quer ela abranja também a
dimensão constitucional material, os compromissos e a teleologia política, social e
económica (sobre estas duas compreensões da Constituição, a “compreensão formal-
123

-processual” e a “compreensão material”, v., por todos, J. J. GOMES CANOTILHO, ob.


cit., 1190, ss.; Fundamentos da Constituição, cit., 43, s.; para uma distinção análoga,
entre “constituição-processo” e “constituição-programa”, v. F. LUCAS PIRES, Teoria da
Constituição de 1976 e a transição dualista, 1988, 68, ss.), mas a considerar
estritamente na sua positividade normativo-jurídica, num inegável positivismo jurídico
constitucional, e para que pudesse submeter-se ao “método jurídico” e desse modo,
mais uma vez, o jurídico se não confundisse ou deixasse subverter-se pelo político (é
esta a conhecida posição de F. FORSTHOFF, Zur Problematik der Verfassungsauslegung,
1961; Rechtsstaat im Wandel, 2.ª ed., 1976). Pois se é de todo inaceitável excluir da
Constituição ou pôr como que entre parênteses os seus compromissos e objectivos
materiais, também será em vão que se tentará ignorar nessa sua dimensão material a
verdadeira natureza política, o projecto e o programa políticos que lhe correspondem e
que por isso, sobretudo por isso, admitirá que nela se veja uma “constituição dirigente”
(v. J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do legislador,
Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 1982), uma
política “constituição-programa” (F. LUCAS PIRES, ob. cit., ibidem). E se assim, nem
apenas “constituição política”, nem só “constituição jurídica”, cremo-nos justificados a
dizer como temos dito, a Constituição o estatuto jurídico do político. Com uma dupla
consequência.
Se umas vezes prevalecerá o político – assim sobretudo nas constituições
revolucionariamente de ruptura e legitimantes de um projecto ideológico-politicamente
assumido – e outras vezes prevalecerá o jurídico – assim nas constituições mais
comunitariamente consensuais e propostas sobretudo a instituir e legitimar um Estado-
-de-Direito, nos seus valores específicos, nos seus direitos e princípios jurídicos
fundamentais –, sempre, no entanto, a Constituição terá uma dimensão de juridicidade e
essa sua juridicidade não poderá reduzir-se ou compreender-se tão-só politicamente. Já
o vimos: isso tanto pela índole mesma da juridicidade como pela exigência de um
fundamento de validade normativa, que não apenas de legitimação política – e
sobretudo quanto aos valores, direitos e princípios especificamente jurídicos, aquelas
que se oferecem, independentemente da Constituição, na “consciência jurídica” da
nossa época e relativamente aos quais a Constituição não terá, por isso mesmo, valor
constitutivo, mas apenas declarativo e de institucional garantia. Um exemplo apenas: a
“dignidade humana”, em que o art. l.° da nossa Constituição proclama basear-se a
“República soberana” portuguesa, não a tem cada um de nós porque a Constituição
124

nesse artigo no-la atribuiu, impõe-se supra-constitucionalmente e a Constituição apenas


declarativamente a assumiu. E então o funcionalismo jurídico político, que
instrumentalmente convoque o direito para assegurar em termos normativos e realizar
em termos decisórios o Zweckprogramm político da Constituição, é menos instrumental
do que pareceria de princípio, pois em boa parte o direito revela-se afinal, em referência
mesmo à Constituição, a cumprir a função de si próprio, a cumprir os valores, os
direitos, os princípios a que será especificamente chamado como direito. Pelo que o
funcionalismo jurídico político de orientação constitucional, o funcionalismo jurídico
que vê na Constituição o seu objectivo político, é manifestamente ambíguo – e
ambiguidade que resulta de vermos afinal a operar na Constituição a unidade do direito
e da política ou de nela termos uma determinação política sem renúncia ao direito.
Assim como o “juiz-político”, em que esse funcionalismo deveria culminar, é menos
político do que se pretenderia, já que no seu paradigma político (a Constituição) há uma
dimensão especificamente jurídica e autónoma.
Pelo que uma atitude mais radical tê-la-emos de procurar na outra linha, das
duas a que fizemos referência.

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