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Nonada: Letras em Revista

E-ISSN: 2176-9893
nonada@uniritter.edu.br
Laureate International Universities
Brasil

Gomes, Lauro
ESTILO E ENUNCIAÇÃO NA LINGUAGEM: INTERSEÇÕES E DISTANCIAMENTOS
ENTRE A ESTILÍSTICA DE CHARLES BALLY E A TEORIA DIALÓGICA DE MIKHAIL
BAKHTIN
Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 28, mayo, 2017, pp. 120-134
Laureate International Universities
Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454262009

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ESTILO E ENUNCIAÇÃO NA LINGUAGEM:
INTERSEÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE A
ESTILÍSTICA DE CHARLES BALLY E A TEORIA
DIALÓGICA DE MIKHAIL BAKHTIN

STYLE AND ENUNCIATION WHITIN LANGUAGE: INTERSECTIONS


AND DISTANCES BETWEEN CHARLES BALLY'S STYLISTICS AND
MIKHAIL BAKHTIN'S DIALOGICAL THEORY

Lauro Gomes1

RESUMO: Este artigo apresenta as interseções e os distanciamentos principais entre a


estilística da língua de Charles Bally e a teoria dialógica de Mikhail Bakhtin e seguidores em
relação às noções de estilo e de enunciação. Considerando-se a falta de estudos que resgatem o
potencial epistemológico-enunciativo dessas duas perspectivas de linguagem, espera-se
contribuir com a comunidade acadêmica da área de Letras, especialmente com os interessados
por estilística e/ou por enunciação.

Palavras-chave: estilo, enunciação, Charles Bally, Mikhail Bakhtin.

ABSTRACT: This paper presents the main intersections and distances between Charles Bally's
stylistics of language and Mikhail Bakhtin's dialogical theory regarding the notions of style and
enunciation. Considering the lack of studies that rescue the epistemological-enunciative
potential of these two perspectives of language, we hope to contribute with the academic
community in the area of Language, especially with those interested in stylistics and /or
enunciation.

Keywords: style, enunciation, Charles Bally, Mikhail Bakhtin.

Introdução

Entre estudantes brasileiros de graduação em Letras e, até mesmo de


pós-graduação, não é raro evidenciar-se falta de clareza sobre as noções de estilo e
de enunciação no campo da estilística da língua, iniciada por Charles Bally, e da
teoria dialógica proposta por Mikhail Bakhtin e seguidores. Por essa razão − e
também considerando a grande importância desses dois conceitos para os
estudos contemporâneos da linguagem −, este texto busca explicitar as
interseções e os distanciamentos existentes entre os conceitos de estilo e de
enunciação no domínio dessas duas importantes correntes de pensamento
filosófico e linguístico.
No livro La stylistique, traduzido para o Português na década de 1970,
Pierre Guiraud (p. 70) faz um interessante resgate etimológico da palavra estilo.
Destaca que estilo vem de stilus, um estilete que servia para escrever em tabuinhas,

1
Doutorando em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Bolsista integral do CNPq. E-mail: lauro.gomes.001@acad.pucrs.br.
Gomes, L. Estilo e enunciação na linguagem: interseções e distanciamentos entre a 121
estilística de Charles Bally e a teoria dialógica de Mikhail Bakhtin. Nonada: Letras em
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antes da época do papel e da pena de ganso. Isso pode inicialmente parecer uma
simples lembrança etimológica, mas já daí se pode verificar que o estilo está
diretamente associado a uma marca do homem. Por isso, note-se que pensar o
estilo − e, mais do que isso, a enunciação na linguagem − significa não só
conceber marcas identitárias (como fossem marcas de um estilete) deixadas pelo
homem, mas também reconhecer a presença do próprio homem na linguagem. Nas
palavras de Fiorin,

A palavra estilo tem uma utilização bastante ampla. Usa-se esse termo
para falar de um escritor (o estilo de Vieira, de Camões, de Alencar, de
Machado de Assis), de uma « escola » artística (o estilo barroco, o
estilo romântico, o estilo dos impressionistas), de um criador qualquer
(o estilo de Chanel, o estilo de Portinari), de uma época (o estilo dos
anos sessenta), de um tipo de linguagem (o estilo jurídico, o estilo
diplomático), de uma atividade humana qualquer (o estilo de governar
do Presidente Fernando Henrique). (FIORIN, 2000, p. 40, grifo do
autor).

Ao conjunto de traços particulares, que − no caso da linguagem − permite


distinguir o banal das mais altas criações artísticas, dá-se o nome de estilo. Daí
sua relação direta com a enunciação, cujo conceito, embora também apresente
acepções diferentes, consoante a teoria que o emprega, envolve, em geral, a
existência das categorias de pessoa, como locutor (Eu) e alocutário (Tu/ Outro), e
as de espaço (aqui) e de tempo (agora) − do latim hic et nunc.
Em vista disso, ao longo da primeira seção deste texto, mostra-se como
os conceitos de estilo e de enunciação foram apresentados nos trabalhos de
Charles Bally e, na segunda, como esses dois mesmos conceitos são entendidos
no Círculo de Bakhtin. Para o desenvolvimento dessa primeira parte, resgatam-se
pressupostos teóricos apresentados em Traité de stylistique française v.1 (1909), El
lenguaje y la vida (1913) e Linguistique générale et linguistique française (1932); e, para o
desenvolvimento da segunda parte, revisam-se, em especial, textos publicados
em Marxismo e filosofia da linguagem (1929), Estética da criação verbal (2003) e Questões
de estilística no ensino da língua (2013). Encerram este texto a seção de discussão dos
resultados − em que são discutidas as interseções e os distanciamentos
existentes, em relação às noções de estilo e de enunciação, na teoria dialógica
proposta por Bakhtin e seguidores e na estilística da língua de Bally − e a seção de
conclusão do trabalho.

Da estilística da língua à enunciação: o pensamento de Charles Bally

Charles Bally, sucessor de Ferdinand de Saussure na cadeira de


Linguística Geral, na Universidade de Genebra (1913), foi o primeiro editor do
Curso de Linguística Geral (CLG), e hoje − além de ser conhecido por esta tarefa de
organização do CLG, junto com Albert Sechehaye e Albert Riedlinger − é, sem
dúvida, referência para as teorias estilísticas e enunciativas contemporâneas.
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Segundo explica Martins (2008), paralelamente à chamada estilística literária,


liderada por Leo Spitzer2, Bally foi quem fundou a chamada estilística da língua.
E, nesta disciplina ligada à linguística, como destaca Fiorin (2000), foi um grande
inspirador de outros importantes linguistas, como é o caso, entre outros, de J.
Marouzeau, M. Cressot, Manuel Rodrigues Lapa, Nilce Sant'Anna Martins e
Gladstone Chaves de Melo.
Tendo seu berço na Retórica de Aristóteles, a estilística seguiu, até o
século XX, uma concepção de linguagem bastante formal e classificatória − a
mesma linha de pensamento, aliás, que foi responsável pelo declínio da Retórica.
No livro Retórica Geral, Dubois et al (1974) afirmam que as nomenclaturas
intermináveis de figuras constituíram, se não a causa profunda, pelo menos o
sinal do declínio da Retórica. E foi buscando opor-se a essa visão que Bally, em seu
primeiro livro, de 1909, Traité de stylistique française v.1, propõe que a estilística
deixe de ser normativa para ser descritiva. Desse modo, assumindo as distinções
entre língua e fala, sincronia e diacronia, paradigma e sintagma, propostas pelo mestre
Saussure, Bally também reage à filosofia positivista do século XIX e dedica-se,
especialmente, à descrição do francês falado, cujo objetivo primeiro era estudar o
conteúdo afetivo da linguagem. Nas palavras de Cremonese e Flores (2010, p. 29),
"Bally teve basicamente três grandes interesses: o ensino do francês, o francês
falado e a estilística".
Através desses temas, Bally mostrou grande interesse por questões
relacionadas ao ensino de língua materna e foi, sem dúvida, um visionário para
sua época. Tratou de esclarecer as inadequações de um estudo da linguagem
calcado sobre as noções de "certo" e "errado", por exemplo, e já propunha um
estudo da língua baseado no uso da linguagem. No último capítulo do livro El
lenguaje y la vida, intitulado e traduzido para o português como O ensino da língua
materna e a formação do pensamento, Bally (1962, p. 224-242) já questionava os
padrões do ensino de língua materna da época, especialmente o ensino de
gramática para crianças. Apenas para exemplificar, dizia que (p. 230), por
carregar uma gramática que não é a do manual, a criança possui sua gramática
melhor do que a do mestre que a ensina − cujo postulado é, ainda hoje, refletido
por uma minoria de professores.
Por ser um estudo sincrônico e descritivo dos fatos da linguagem
organizada, associados à afetividade e à subjetividade, a estilística, de acordo
com Bally (1951), visa a examinar a estrutura de uma língua e as relações entre a
fala e o pensamento dos sujeitos falantes e ouvintes. A linguagem é entendida,
nessa perspectiva, como um sistema de símbolos de expressão. Exprime o
conteúdo do pensamento, isto é, as ideias e os sentimentos, uma vez que,
segundo Bally (1951, p. 1), tanto os elementos intelectuais quanto os afetivos,
2
Conforme se lê em Questões de estilística no ensino da língua (BAKHTIN, 2013, p. 95), a primeira obra de Leo
Spitzer (1887-1960) é um trabalho sobre a invenção verbal em Rabelais. "Expoente da estilística literária,
desenvolveu uma estilística fundada na busca da característica inerente ao estilo de um escritor. Seu
método consiste na identificação da repetição constante de um motivo (o amor impossível, por exemplo)
ou de uma expressão original, para, em um segundo momento, deduzir um tema psicológico central que
permita explicar detalhes não observados anteriormente".
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estão unidos, "em doses variáveis", na formação do pensamento. Nesse sentido,


apesar de Bally reconhecer a possibilidade de a estilística ser geral, coletiva ou
individual, postula que seu estudo não pode fundar-se sobre a linguagem de um
grupo social organizado, devendo iniciar-se pela língua materna e pela língua
falada.
Para Bally (1951, p. 5), é a fala que tem a tarefa de exteriorizar toda a
parte intelectual do pensamento. Os sujeitos criam um sistema expressivo de
fatos de expressão, um conjunto de unidades relacionadas à afetividade e à
subjetividade, que é sempre atualizado pelo uso da língua. Essa afetividade de
que trata Bally é uma manifestação espontânea das formas subjetivas do
pensamento. Dentro desse contexto, é apenas o sujeito falante que pode exprimir
− mesmo que sempre parcialmente − o seu pensamento.
O sujeito que ganha destaque na obra de Bally não é um ser empírico do
mundo, mas uma representação que esse ser tem de si mesmo, da sociedade, das
situações e dos demais seres que o cercam. Segundo afirma Oswald Ducrot (1989,
p. 191), Bally é, sem dúvida, o iniciador principal, na linguística moderna, dessa
noção de sujeito da linguagem. Foi inspirado nessa noção, inclusive, que Oswald
Ducrot, na década de 1980, criou uma teoria polifônica da enunciação, pondo em
xeque a tese que, até meados do século XX, reinara nos estudos linguísticos e
literários, relativamente à unicidade de um sujeito falante na linguagem. Sem
dúvida, esse postulado foi questionado por Bakhtin, a partir do conceito de
polifonia, através do qual mostrou, especificamente no romance de Dostoievsky,
que várias vozes ressoavam simultaneamente. A polifonia de Ducrot, porém, filia-
se a Bally e explicita a existência simultânea de várias vozes (enunciadores) no
interior de um único enunciado.
Na sua obra de 1932, Linguistique générale et linguistique française, mais
especificamente na primeira seção da primeira parte, intitulada Théorie général de
l'énonciation, Bally (1965, p. 26-212) funda uma área de estudos linguísticos, hoje
bastante difundida, a Linguística da Enunciação. Em realidade, como bem
destacam Cremonese e Flores (2010), é nesse momento que a estilística da língua
passa a chamar-se teoria da enunciação. Assim, a partir da língua falada, Bally
trata da enunciação na linguagem, acentuando a relação entre o sujeito falante e o
enunciado. Explica que

Toda enunciação do pensamento pela língua é condicionada


logicamente, psicologicamente e linguisticamente. Esses três aspectos
se recobrem apenas em parte; seu papel respectivo é muito variável e
muito diversamente consciente nas realizações da fala. A análise
permite, entretanto, encontrá-los por um jogo de associações espontâneas,
ou discursivas, ou de memória, mas sempre sincrônicas, próprias a um
mesmo estado de língua; essas associações permitem descobrir as
equivalências funcionais que estão na base de todo sistema linguístico.
(BALLY, 1965, p. 35, grifos do autor, tradução nossa)3.

3
Toute énonciation de la pensée par la langue est conditionnée logiquement, psychologiquement et
linguistiquement. Ces trois aspects ne se recouvrent qu'en partie; leur rôle respectif est très variable et
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Bally (1965) também destaca que haveria vantagem em estudar


separadamente os aspectos lógico, psicológico e linguístico. Reconhece, no entanto,
que, como os fatores psicológicos do pensamento são muito bem ajustados no
que chama de "textura lógica", não se pode abstraí-los − a ponto de não ser
possível separar a forma linguística dos outros dois aspectos. Por isso, de acordo
com o pensamento ballyano, uma análise enunciativa das formas linguísticas
deve também levar em conta os aspectos lógico e psicológico.
Diante disso tudo, pode-se dizer que a enunciação é, para Bally, conforme
também se lê no Dicionário de linguística da enunciação (FLORES et al, 2009, p. 101),
o ato que o sujeito realiza − utilizando os meios de expressão comuns a todos os
indivíduos de uma comunidade linguística − para expressar suas ideias e sua
subjetividade. Notadamente, embora a inteligência também ganhe bastante
realce nessa perspectiva enunciativa, a manifestação da subjetividade está
sempre em primeiro plano na linguagem.
As noções de modus e dictum, resgatadas da filosofia medieval, também
estão no centro da teoria da enunciação de Bally. Constituem a frase (nessa
perspectiva, sinônimo de enunciado), isto é, "a forma mais simples possível da
comunicação de um pensamento"4. O dictum é, por um lado, a parte da frase que
corresponde ao conteúdo proposicional, que mostra objetivamente o pensamento
do sujeito, no contato com os signos da língua. E, por outro lado, o modus é a
atitude do sujeito em relação ao conteúdo enunciado. É pelo modus que a
afetividade e a subjetividade são explicitadas e, igualmente, a representação
formal da frase é atualizada e ganha sentido pelo falante. De acordo com o que
destaca Ducrot (1989, p. 169, grifos do autor, tradução nossa), a propósito da
teoria de Bally, "Se a estrutura semântica de uma frase é sempre do tipo 'Modus (=
sujeito modal + verbo modal) + dictum', a configuração significante pode realizar
mais ou menos explicitamente essa estrutura"5.
É, segundo esse modo de ver a linguagem, desse movimento enunciativo
que nasce a estilística individual. Para Bally (1951, p. 18-19), a noção de estilo está
associada a uma atualização individual do sistema linguístico, que não deve ser
confundida nem com a noção de estilo de um escritor, nem com a fala de um
orador. Bally esclarece que a estilística individual vai surgindo ao passo que o
indivíduo aumenta seu conhecimento do idioma materno. As particularidades
que atingem certos "desvios gramaticais", a construção das frases e o próprio
sistema expressivo são, em geral, pouco aparentes. Com o passar do tempo,
todavia, esses estilos individuais têm o potencial de modificar o próprio sistema

très diversement conscient dans les réalisations de la parole. L'analyse permet cependant de les retrouver
par un jeu d'associations spontanées, soit discursives, soit mémorielles, mais toujours synchroniques, propres
à un même état de langue; ces associations permettent de découvrir les équivalences fonctionnelles qui sont à
la base de tout système linguistique.
4
La phrase est la forme la plus simple possible de la communication d'une pensée. (BALLY, 1965, p. 35,
tradução nossa).
5
Si la structure sémantique d'une phrase est toujours du type « Modus (= sujeito modal + verbo modal) +
dictum », la configuration signifiante peut réaliser plus ou moins explicitement cette structure.
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linguístico, quando depois de reconhecidos e de utilizados pela coletividade. Por


isso, Bally busca uma estilística da língua afastada da literatura, capaz de
explicitar o fato de que não se trata de estudar o estilo artístico pessoal, mas o
uso da língua para a expressão subjetiva.
Para concluir esta seção, vale salientar que o linguista suíço Charles Bally
procurou fazer uma linguística interacional da fala (une linguistique de la parole),
que, no entanto, distancia-se do projeto saussuriano. Uma das maiores
pesquisadoras das ideias de Bally, Sylvie Durrer (1998), afirma que Bally é mais
um divulgador de Saussure do que um seguidor do pensamento saussuriano.
Portanto, embora Bally tenha sido aluno de Saussure e tenha reconhecido apreço
pelos trabalhos do mestre genebrino 6 , resguardados todos os inumeráveis
méritos de sua teoria, pode-se afirmar que ele pôde influenciar-se pouco pelo
pensamento saussuriano, sobretudo porque três das suas quatro principais obras
são anteriores ao CLG.

Enunciação e estilo na perspectiva dialógica de linguagem de Mikhail


Bakhtin

Remontando-se a história dos estudos da linguagem, encontra-se uma


diversidade de teorias que voltaram o seu olhar sobre a forma linguística. Foi a
partir do século XX, porém, especialmente com os estudos da enunciação, que
também o sentido passou a ser objeto de estudo daqueles que se propuseram e
ainda se propõem a investigar a linguagem humana. De 1919 a 1929, Bakhtin e seu
Círculo reuniram-se regularmente, desenvolveram trabalhos em torno da
natureza dialógica da linguagem e aprofundaram epistemologicamente questões
enunciativas já topicalizadas, por exemplo, pela Retórica (séc. V a.C.) e, bem mais
tarde, pela estilística. Por essa razão − sobretudo buscando desvelar os pontos de
encontro e de distanciamento entre Bally e Bakhtin, relativamente às noções de
enunciação e de estilo − é que essas duas noções são também resgatadas do
pensamento bakhtiniano nesta seção.
De acordo com o pensamento de Bakhtin e seu Círculo, a linguagem é
dialógica por natureza porque pressupõe que todo discurso é constituído por
outros discursos. Ao ressoarem os já-ditos no enunciado, está-se respondendo a
dizeres diversos, ao mesmo tempo que se projeta e/ou se antecipa o discurso-
resposta. Desencadeiam-se, por essa razão, diferentes relações de sentido. No
livro Marxismo e filosofia da linguagem, de 1929, Bakhtin/Volochínov (2009, p. 101)
salienta que

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma


resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo
da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a
precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas
da compreensão, antecipa-as.

6
Bally dedica à memória de Ferdinand de Saussure dois dos seus livros mais importantes, Traité de
stylistique française v.1 (1909) e El lenguaje y la vida (1913).
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A esse mesmo respeito, no texto La construcción de la enunciación, Bajtín/


Volochinov (1993, p. 245), a fim de explicitar os aspectos social e dialógico da
natureza da linguagem, também comenta que a linguagem humana é um
fenômeno de "duas caras", justamente em virtude do fato de que cada enunciação
pressupõe a existência não só de um falante mas também de um ouvinte. Nas
palavras do referido autor (1993, p. 247, grifos do autor, tradução nossa),
"Estamos convencidos de que cada discurso é dialógico, dirigido a outra pessoa, a
sua compreensão e a sua efetiva ou potencial resposta"7. Com isso, esse processo
enunciativo pressupõe uma hierarquia social que há entre os interlocutores, de
modo que não se pode pensar a enunciação sem que se considere também a sua
natureza social.
Nessa perspectiva, verifica-se que a enunciação possui uma orientação
social, isto é, o que Bajtín/Volochinov (1993, p. 256) chama interdependência da
enunciação do peso sociohierárquico do auditório. Explica, ainda, que, junto com a
situação enunciativa (verbal e extraverbal), essa orientação é uma das forças
organizadoras vivas que constroem não só a forma estilística da situação de
enunciação mas também sua estrutura gramatical. Inclusive a parte extraverbal
da situação de enunciação, que compreende, por exemplo, gesto de mão,
expressão do rosto e posição do corpo, é organizada pela orientação social.
Ademais, a própria situação, de acordo com o autor mencionado, tem papel
importante na enunciação, e a relação que se estabelece entre a enunciação, sua
situação e seu auditório é constituída especialmente mediante a entonação, isto é, a
expressão sonora da valoração social.
Nessa direção, cada enunciação efetiva é única e irrepetível, tem um
significado determinado e, portanto, todas as palavras da língua podem assumir
sentidos distintos, segundo o valor enunciativo geral. Conforme salienta
Bajtín/Volochinov (1993, p. 262, tradução nossa), "Uma mesma palavra, uma
mesma expressão, pronunciadas com uma entonação diferente, tomam um
significado diferente" 8 . Ainda a respeito das especificidades da enunciação,
Bakhtin (2015, p. 42) afirma, no livro Teoria do romance I: A estilística, que "O
autêntico meio da enunciação, no qual ela se forma e vive, é justamente o
heterodiscurso dialogizado9, anônimo e social como a língua, mas concreto, rico
em conteúdo e acentuado como enunciação individual". Isso também esclarece a
ideia de que o fato social da interação verbal, realizado por uma ou mais
enunciações, é a verdadeira essência da linguagem.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, mais especificamente no capítulo
intitulado Duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico, Bakhtin/Volochínov
(2009, p. 71-92) explicita e rejeita duas correntes do pensamento filosófico-
7
Estamos convencidos de que cada discurso es dialógico, dirigido a otra persona, a su comprensión y a su
efectiva o potencial respuesta.
8
Una misma palabra, una misma expresión, pronunciadas con una entonación diferente, toman un
significado diferente.
9
No Prefácio para o livro Teoria do romance I: A estilística (2015, p. 11), Paulo Bezerra explica que
"heterodicurso" significa "diversidade de discursos", cuja palavra substituiu, em traduções para o
português brasileiro, os termos "heteroglossia" e "plurilinguismo".
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linguístico de sua época: o que ele intitula de subjetivismo idealista e de objetivismo


abstrato. A primeira, inspirada na doutrina de Vossler, situa-se na fronteira entre
a linguística stricto sensu e a estilística. A enunciação é vista, segundo esse modo
de examinar a linguagem, como um ato de criação individual, decorrente do
psiquismo do indivíduo. Por somente levar em consideração a fala, a lógica da
língua também não é a da repetição de formas identificadas a uma norma, mas a
de uma renovação constante, da individualização das formas em enunciações
estilisticamente únicas e não reiteráveis. A segunda, ao contrário, tem o sistema
linguístico como centro organizador de todos os fatos da língua.
Bakhtin/Volochínov (2009, p. 86) afirma que a escola de Genebra, com
Ferdinand de Saussure, mostra-se como a mais brilhante expressão do
objetivismo abstrato.
É importante salientar que Bakhtin tem um modo próprio de olhar para
os trabalhos de Saussure, bastante fiel e coerente com a leitura estruturalista que
se fizera do CLG até aquele momento. De acordo com a visão apresentada por
Bakhtin/Volochínov (2009, p. 84), a langue saussuriana é um sistema de formas
normativas, fonéticas, gramaticais e lexicais; e a parole corresponde ao ato de
enunciação individual, cujos aspectos criadores das "formas linguísticas" não
constituem mais do que "detritos da vida da língua". Ao mesmo tempo, destaca
(p. 113) que, "[...] ao considerar que só o sistema linguístico pode dar conta dos
fatos da língua, o objetivismo abstrato rejeita a enunciação, o ato de fala, como
sendo individual". Conforme a leitura de Bakhtin/Volochínov (2009, p. 87),
Charles Bally destaca-se entre os maiores representantes da escola de Saussure
na contemporaneidade.
Opondo-se a essas duas correntes do pensamento filosófico-linguístico,
Bakhtin e seu Círculo (2009, p. 72-73) defendem que a unicidade do meio social e a do
contexto social imediato são condições indispensáveis para que o complexo físico-
psíquico-fisiológico torne-se um fato de linguagem. Conforme destacam Barbisan
e Di Fanti (2010, p. 5), em relação à crítica bakhtiniana ao objetivismo abstrato:
"[...] nem a linguagem, com sua composição heterogênea, nem a fala com sua
individualidade, possibilitariam a descrição dos fatos da língua como propunha
Saussure naquele momento". Além disso, Bakhtin/Volochínov critica não só o
fato de o mestre genebrino ter tomado a língua e não a linguagem como objeto da
linguística (p. 85), mas também o de ter separado a língua de seu conteúdo
ideológico (p. 99). Postula que locutor e ouvinte devem pertencer à mesma
comunidade linguística − a uma mesma sociedade organizada − e estar integrados
na unidade da situação social imediata.
Podendo ser postos em relação com as bases epistemológicas de
Saussure, os conceitos de significação e tema também estão no centro dos trabalhos
do Círculo de Bakhtin. A enunciação − conforme explica o tradutor Paulo Bezerra
no texto Os gêneros do discurso (ed. 2003) − é equivalente ao termo enunciado. Assim
sendo, tanto o ato de enunciar (enunciação), quanto o resultado da enunciação
(enunciado), por exemplo um romance, põem em jogo duas dimensões
indissociáveis: a significação e o tema. Segundo Barbisan e Di Fanti (2010, p. 8),
Gomes, L. Estilo e enunciação na linguagem: interseções e distanciamentos entre a 128
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A significação é o aparato técnico, ou seja, representa os elementos


reiteráveis, as formas linguísticas decorrentes de convenções que não
têm existência concreta sozinhas. O tema, por sua vez, representa a
dimensão não reiterável, é considerado único e, por ser organicamente
ligado à situação histórica concreta, apresenta um sentido diferente a
cada vez que um dado enunciado é verbalizado.

A enunciação como um todo − de acordo com Bakhtin/Volochínov (2009,


p. 109) − não existe para a linguística, visto que a estrutura completa da
enunciação é deixada a cargo de outras disciplinas como a retórica e a poética. Nas
palavras do referido autor (2009, p. 108), a própria linguística "é incapaz de
abordar as formas de composição do todo. Eis por que, de maneira geral, não há
relação nem transposição progressiva alguma entre as formas dos elementos
constitutivos da enunciação e as formas do todo no qual ela se insere". Por esse
motivo, as formas de uma enunciação literária, por exemplo, só podem ser
apreendidas na unicidade da vida literária, em constante relação com as outras
formas literárias.
Cada troca comunicativa, segundo esclarece Bajtín/Volochinov (1993, p.
248), não só organiza como também constrói e completa, a seu modo, a forma
gramatical e estilística da enunciação, isto é, o que se chama gênero. Nessa direção,
no livro Estética da criação verbal, mais especificamente no ensaio intitulado Os
gêneros do discurso, Bakhtin (2003, p. 265) afirma que "Todo estilo está
indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja,
aos gêneros do discurso". E, já que todo enunciado é individual, ele reflete a
individualidade do falante ou de quem escreve. No entanto, apesar de o
enunciado poder expressar o estilo individual, é preciso salientar que nem todos
os gêneros são propícios ao reflexo da individualidade, isto é, ao reflexo do estilo
na linguagem. Aqueles gêneros do discurso, cuja estrutura composicional é mais
padronizada, como é o caso, por exemplo, das modalidades de documentos
oficiais, de ordens militares, etc., notadamente apresentam condições menos
propícias para o reflexo da individualidade na linguagem.
Segundo o pensamento bakhtiniano (2003, p. 265-265), o estilo individual
é um epifenômeno do enunciado, uma vez que, exceto nos gêneros artístico-
literários, na maioria dos gêneros discursivos, o estilo individual não faz parte do
plano do enunciado e, portanto, não serve como objetivo. Pelo fato de encontrar-
se em diversas relações de reciprocidade com a língua nacional, Bakhtin (2003, p.
266) também chama atenção para o fato de que "a própria definição de estilo em
geral e de estilo individual em particular exige um estudo mais profundo tanto da
natureza do enunciado quanto da diversidade de gêneros discursivos".
Em cada esfera da atividade humana e da comunicação são empregados
gêneros que correspondem às condições específicas daquele campo. Nas palavras
de Bakhtin (2003, p. 266), "é a esses gêneros que correspondem determinados
estilos", visto que o estilo integra a unidade do enunciado como seu elemento e é
indissociável de determinadas unidades temáticas e composicionais. Por essa
razão, relativamente à estilística, Bakhtin (2003, p. 266) posiciona-se elucidando
Gomes, L. Estilo e enunciação na linguagem: interseções e distanciamentos entre a 129
estilística de Charles Bally e a teoria dialógica de Mikhail Bakhtin. Nonada: Letras em
Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 120-134.

que o estudo da estilística apenas será correto e eficaz se também levar em conta a
natureza do gênero dos estilos linguísticos e caso seja baseado no estudo prévio
das modalidades de gêneros discursivos. Daí sua crítica mais explícita à
estilística de Bally − considerando-a fraca (p. 266) − por não levar em conta toda
essa base enunciativa dos gêneros, necessária ao estudo tanto dos estilos
individuais quanto dos da língua.
No texto A palavra na vida e na poesia, Volochínov (2012, p. 178) contrapõe-
se ao célebre enunciado segundo o qual "O estilo é o homem"10, afirmando que "o
estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu
grupo social na forma do seu representante autorizado, o ouvinte". Nessa
perspectiva, o estilo deve, portanto, ser entendido como o falante (autor) e o
ouvinte (leitor). Assume-se também, com isso, a tese de que as próprias emoções
individuais − (p. 165) em virtude do fato de acompanharem o tom básico da
avaliação social − surgem como sobretons.
Contrastando-se também o fenômeno estilístico com o gramatical,

Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em


qualquer fenômeno concreto de linguagem: se o examinamos apenas
no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas
se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do
gênero discursivo já se trata de fenômeno estilístico. (BAKHTIN,
2003, p. 269).

Essa é uma reflexão pertinente, sobretudo quando se quer encontrar


iluminações teóricas sobre a linguagem para o ensino de língua. Interessante
observar que, como Bally, Bakhtin também se preocupou com questões de
estilística e de gramática no ensino. No livro Questões de estilística no ensino da língua,
Bakhtin (2013) problematiza, por exemplo, os critérios tradicionalmente vistos
como fundamento da classificação gramatical dos fenômenos linguísticos. Nesse
livro, pode-se perceber que Bakhtin estava atento ao contexto escolar e à crise no
ensino de língua em curso, desde o início do século XX; e que estava ciente de
que sua filosofia da linguagem permitiria rever a orientação do ensino de
gramática na escola, considerando que uma estilística, se articulada à gramática,
poderia auxiliar os professores e levar os estudantes a um conhecimento ativo
não só da língua literária, mas também da língua em uso no cotidiano e da relação
mútua entre essas duas formas de ser da língua.
De acordo com Bakhtin (2013, p. 23), "as formas gramaticais não podem
ser estudadas sem que se leve em conta seu significado estilístico. Quando
isolada dos aspectos semânticos e estilísticos da língua, a gramática
inevitavelmente degenera em escolasticismo". Por essa razão é que não se pode
pensar em gramática sem que também se pense numa estilística. As formas
gramaticais devem ser examinadas, segundo o referido autor (2013, p. 24-25), do
ponto de vista de suas possibilidades de representação e de expressão, isto é,
10
A autoria desse dizer pode ser atribuída a Georges-Louis Leclerc (1707-1788), conde de Buffon,
naturalista, matemático e escritor francês.
Gomes, L. Estilo e enunciação na linguagem: interseções e distanciamentos entre a 130
estilística de Charles Bally e a teoria dialógica de Mikhail Bakhtin. Nonada: Letras em
Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 120-134.

devem ser explicadas e avaliadas de uma perspectiva estilística. Entretanto, não é


isso que Bakhtin (2013) observava nas práticas de ensino de língua na época.
Segundo sua percepção, a abordagem estilística que havia no ensino era
apresentada superficial e insuficientemente nas aulas de literatura; e, nas aulas de
língua materna, ensinava-se gramática pura. Raramente o professor era capaz de
dar explicações para as formas gramaticais estudadas.
Trazendo-se esse olhar para o ensino de língua, na contemporaneidade,
nota-se que muito pouco mudou para melhor. Embora muitos professores
busquem qualificar suas aulas de língua, a partir, por exemplo, da perspectiva
dialógica de linguagem, a grande maioria dos docentes brasileiros que atuam na
educação básica ainda investe num ensino de língua baseado em gramática
tradicional, sem nunca − ou quase nunca − olhar para o significado estilístico das
formas gramaticais. Daí uma das causas principais do fracasso dos estudantes
brasileiros em exames nacionais − como Enem e Enade11 − e internacional − como
Pisa12 − que avaliam desempenhos em competências e habilidade de leitura e
escrita de textos.

Discussão dos resultados

Considerando que este trabalho se propôs a apresentar os pontos de


encontro e de distanciamento − em relação às noções de estilo e de enunciação na
linguagem, segundo o olhar da estilística da língua de Charles Bally e da teoria
dialógica de Mikhail Bakhtin e seguidores − passa-se a discutir esses dois
conceitos a partir dos quadros-síntese 1 e 2, apresentados a seguir, sem, contudo,
nenhum propósito avaliativo-apreciativo. Observe-se:

Quadro 1 – Síntese da noção de enunciação


Charles Bally Mikhail Bakhtin
● Enunciação é o ato que o sujeito realiza − ● Enunciação é a materialização da
utilizando os meios de expressão comuns a interação verbal de sujeitos históricos.
todos os indivíduos de uma comunidade Necessariamente, pressupõe a existência
linguística − para expressar suas ideias e sua de um falante e de um ouvinte inseridos
subjetividade. numa hierarquia social. Seu autêntico
meio de existência é o heterodiscurso
dialogizado.
● Toda enunciação do pensamento pela ● Toda enunciação é uma resposta a
língua é condicionada logicamente, alguma coisa, e, construída como tal, não
psicologicamente e linguisticamente. passa de um elo da cadeia dos atos de
fala.
● A frase (sinônimo de enunciado) possui ● O enunciado (sinônimo de
um dictum (conteúdo proposicional, que enunciação) põe em jogo a significação e o
mostra objetivamente o pensamento do tema. A significação representa os

11
Respectivamente, Exame Nacional do Ensino Médio e Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes.
12
Programme for International Student Assessment (Pisa) - Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes.
Gomes, L. Estilo e enunciação na linguagem: interseções e distanciamentos entre a 131
estilística de Charles Bally e a teoria dialógica de Mikhail Bakhtin. Nonada: Letras em
Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 120-134.

sujeito, no contato com os signos da língua)


elementos reiteráveis, as formas
linguísticas abstratas; e o tema
e um modus (atitude do sujeito em relação ao
conteúdo do enunciado). Desse movimento representa a dimensão não reiterável. Por
essa razão, está ligado à situação
enunciativo nasce a estilística individual.
histórica concreta.
● A linguagem é entendida, nessa ● A linguagem é de natureza dialógica.
perspectiva, como um sistema de símbolos Pressupõe, portanto, que todo discurso
de expressão que exprime o conteúdo do se constitui por outros discursos.
pensamento, as ideias e os sentimentos.
Fonte: síntese da noção de enunciação explicitada nas duas primeiras seções deste texto.

Como se pôde observar ao longo das seções teóricas e do quadro-síntese


1, as teorias de Bally e de Bakhtin mais apresentam distanciamentos, em relação à
noção de enunciação, do que aproximações. Enquanto para Bally a enunciação está
centrada no sujeito, para Bakhtin ela é um "fenômeno de duas caras", porque
pressupõe um falante e um ouvinte. Bally considera a expressão do sujeito na
linguagem e se interessa pela estilística individual, pelos aspectos psicológicos e
subjetivos nela envolvidos. Já Bakhtin leva em conta a interação verbal dos
sujeitos e os vários discursos evocados de cada enunciação. Daí seu interesse pelo
dialogismo e pela alteridade própria da natureza da linguagem.
No entanto, ao mesmo tempo que é possível observar essas diferenças
entre Bally e Bakhtin, também se podem perceber algumas semelhanças
epistemológicas. Na constituição do enunciado, por exemplo, encontram-se, em
Bally, uma parte objetiva e reiterável − dictum − e uma parte subjetiva e única −
modus. Da mesma forma, em Bakhtin, encontram-se a significação e o tema,
respectivamente o elemento reiterável e o não reiterável. Essa é uma interseção
teórica cujos fundamentos de ambos os autores notadamente remontam as
noções de língua (langue) e fala (parole) propostas por Ferdinand de Saussure.
Ainda que Bakhtin tenha rejeitado o objetivismo abstrato para a construção de
sua teoria, pôde-se observar que ele manteve a ideia de uma significação
reiterável no interior do enunciado/ da enunciação, respeitando, portanto, os dois
referidos princípios saussurianos. E Bally, embora também se tenha influenciado
pouco pelo pensamento saussuriano, algumas das ideias principais de sua teoria
da enunciação certamente se devem aos trabalhos de Saussure.
Explicitados os principais distanciamentos e a aproximação mais
reconhecida entre Bally e Bakhtin, relativamente à noção de enunciação, passa-se
ao segundo quadro, que apresenta uma síntese das noções de estilística e de
estilo:

Quadro 2 – Síntese das noções de estilo e de estilística


Charles Bally Mikhail Bakhtin
● Cria uma estilística da língua que reage à ● O estudo da estilística somente será
filosofia positivista do século XIX e propõe correto e eficaz se também levar em
que a estilística deixe de ser normativa para conta a natureza do gênero dos estilos
ser descritiva. linguísticos.
Gomes, L. Estilo e enunciação na linguagem: interseções e distanciamentos entre a 132
estilística de Charles Bally e a teoria dialógica de Mikhail Bakhtin. Nonada: Letras em
Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017. pp. 120-134.

● Estilística é um estudo sincrônico e ● Todo estilo está indissoluvelmente


descritivo dos fatos da linguagem ligado ao enunciado e às suas formas
associados à afetividade e à subjetividade. típicas, isto é, aos gêneros do discurso.
Examina a estrutura de uma língua e as Alguns gêneros são, porém, mais
relações entre a fala e o pensamento dos propícios ao reflexo da individualidade
sujeitos falantes e ouvintes. do que outros.
● Estilo é a atualização individual do ● O estilo é pelo menos duas pessoas ou,
sistema linguístico, que não deve ser mais precisamente, uma pessoa mais seu
confundido nem com a noção de estilo de grupo social na forma de ouvinte. A base
um escritor, nem com a fala de um orador. enunciativa dos gêneros deve ser levada
em conta tanto para o estudo dos estilos
individuais quanto para os da língua.
● Procurou fazer uma linguística ● Cada troca comunicativa não só
interacional da fala, que, no entanto, organiza como também constrói e
distancia-se do projeto saussuriano. Não completa a forma gramatical e estilística
deve mais ser visto como um representante da enunciação, isto é, o gênero
e/ou seguidor dos trabalhos de Saussure no discursivo.
século XX.
● Interessou-se por questões de ensino de ● Interessou-se, também, por questões
francês, de estilística e do francês falado. de estilística no ensino de língua.
Mostrou como a gramática, quando
articulada à estilística, permite levar os
estudantes a um conhecimento ativo não
só da língua literária mas também da
língua em uso no cotidiano.
Fonte: síntese das noções de estilo e de estilística explicitadas nas duas primeiras seções.

Levando em conta as seções teóricas e o quadro-síntese 2, observa-se


que, enquanto Bally (1909-1932) voltou o seu olhar para o estilo individual,
entendendo-o como uma atualização que o sujeito − na sua própria
individualidade − faz do sistema linguístico, Bakhtin (1919-1929) considerou a
alteridade, as múltiplas vozes também presentes na singularidade do estilo.
Desse modo, ainda que Bakhtin e seu Círculo reconheçam o fato de o estilo ser
uma expressão individual, defendem que ele somente se constrói a partir de uma
orientação social de caráter apreciativo. O estilo é, portanto, de natureza social
para a teoria dialógica. Por esse motivo é que topicalizar o estilo à luz do
pensamento bakhtiniano, conforme comenta Brait (2013, p. 79), pode parecer, em
princípio, um contrassenso.
Sendo fiel ao propósito de fundação de uma nova estilística, Bally
distanciou-se da literatura para se desvencilhar completamente da noção de
estilo do autor. Propôs um estudo sincrônico da língua, buscando descrever uma
estilística da língua a partir da fala (parole), isto é, do uso real da língua (langue).
Nesse ponto, identificam-se, pois, uma interseção e um distanciamento entre
Bally e Bakhtin. A aproximação é que, da mesma forma que Bally, Bakhtin
também se afastou da estilística literária, a fim de igualmente se distanciar da
noção de estilo do autor; e o distanciamento é que Bally não avançou suas
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análises estilísticas em nível de discurso, e Bakhtin articulou a noção de estilo à


de gênero discursivo. É especialmente em relação a esse ponto, inclusive, que
Bakhtin critica a estilística de Bally, por não ter levado em conta a natureza do
gênero dos estilos linguísticos.

Conclusão

É importante compreender, diante do exposto, que cada teoria faz suas


escolhas conceituais, buscando atingir os objetivos a que se propõe, no momento
em que é criada. Não existe teoria melhor, pior, mais ou menos verdadeira do que
a outra. O que existe, em toda a ciência, inclusive na ciência linguística, são
explicações provisórias sobre os fenômenos que envolvem a língua e o uso que se
faz dela. Em vista disso, o que se pôde observar ao longo deste texto foram duas
abordagens diferentes sobre os objetos teóricos estilo e enunciação. No entanto,
ainda que os distanciamentos epistemológicos tenham superado as interseções,
puderam-se explicitar algumas aproximações conceituais interessantes. Talvez
daí possam nascer investigações futuras com potencial para desenvolver a
própria epistemologia da Linguística da Enunciação, ainda muito pouco
explorada, no Brasil.

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Recebido em 17 de dezembro de 2016.


Aceito em 12 de fevereiro de 2017.

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