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Laços Angola- Brasil: a presença de africanas livres no Rio de Janeiro

Mariana P. Candido (Emory University)


Monica Lima e Souza (UFRJ)

Já é fato os laços históricos entre Angola e o Brasil, afinal o porto do Rio de


Janeiro foi o maior porto de desembarque de africanos escravizados. Segundo a base de
dados, Slave Voyages, entre 1576 e 1875, no mínimo, 1,217,371 africanos escravizados
foram transportados até os portos do Rio de Janeiro, a maioria oriunda do que hoje é
Angola. O Rio de Janeiro seria assim, o maior porto escravista das Américas, o que
significa que recebeu mais cativos que os portos de Havana, Cartagena, Charleston ou
Kingston. Em Angola, os maiores portos de embarque eram as cidades de Luanda e
Benguela, apesar da existência de outros portos importantes, como os situados mais
próximos à desembocadura do rio Congo. Muitos desses homens, mulheres e crianças
eram escravizados após a derrota em guerras ou em expedições de captura, sendo também
entregues em cativeiro como pagamento de impostos ou dívidas. A escravização deixava
sempre um rastro de violência e muitas vezes de destruição. Ainda que significasse o
enriquecimento de alguns, a escravidão atlântica gerou para uma maioria de pessoas em
África o sofrimento, o rompimento de laços familiares e afetivos e a desterritorialização.
Após a travessia do oceano, que levava semanas e resultou em mortes, contágios
de doenças e separações de relações estabelecidas durante a percurso, os recém chegados
eram vendidos mais uma vez. Alguns ficavam no Rio de Janeiro atendendo a demanda
por serviços diversos, como vendedoras, ferreiros, sapateiros, cozinheiras, lavadeiras, etc
ou eram levados para trabalhar na lavoura em fazendas no interior do Sudeste, produtoras
de aguardente e gêneros alimentícios como a farinha de mandioca. Outros eram
transportados, mais uma vez, para regiões distantes como o interior de Minas Gerais, para
suprir a demanda por mão de obra na extração de ouro e diamante, assim como nas
plantações de cana de açúcar e café. Muitos chegaram adoentados e tiveram vida curta no
Rio de Janeiro, morrendo logo após o seu desembarque, como pode ser observado na
história do cemitério de pretos novos, hoje preservado pelo Instituto de Pesquisa e
Memória dos Pretos Novos (IPN), e na pesquisa pioneira do historiador Júlio César
Medeiros da Silva Pereira.
Sabemos a importância da população escravizada na economia do Brasil e várias
imagens litográficas, produzidas principalmente no século XIX, revelam a presença da
população negra no centro do Rio de Janeiro. Henry Chamberlain, por exemplo, retratou
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cenas de africanos recém chegados no Rio de Janeiro, em 1819-1920, como pode ser visto
na imagem abaixo

Referência “Recently Arrived Enslaved Africans, Rio de Janeiro, Brazil, 1819-1820", Slavery
Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora,
accessed March 5, 2021, http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1881” Metadata is available
under Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International.

A existência de logradouros de referência reforça a pesquisa que historiadores há


anos se debruçam e escancaram o passado escravista do Rio de Janeiro, seja a igreja da
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a Igreja de Santa Efigênia e Santo Elesbão,
onde funcionavam irmandades católicas de negros e negras, como a de São Domingos de
Gusmão e da Lampadosa - todas situadas na região central da cidade. Na região portuária,
situam-se o Largo de São Francisco da Prainha, onde ficavam armazéns (os trapiches)
nos quais africanos escravizados eram recebidos após o desembarque e onde mais tarde
surgem locais de encontro e abrigo de negras e negros (os zungus), o quilombo da Pedra
do Sal e o Cais do Valongo, revelado pelas obras recentes na região e escavações
arqueológicas e reconhecido como Patrimônio Mundial pela UNESCO em 2017. Nas
proximidades do cais, surgiu o mercado de escravos do Valongo, estudado pelo
historiador Cláudio de Paula Honorato, sobre o qual há relatos e imagens produzidas por
viajantes, nos quais se pode observar e ler sobre as condutas desumanas de tratamento
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dos cativos, entre os quais havia crianças, especialmente na terceira década do século
XIX, como pode ser vista nessa imagem que o artista francês Jean Baptiste Debret fez de
um mercado no Valongo.

Referência: “Mercado de escravos na Rua do Valongo,” Jean Baptiste Debret, Voyage


Pittoresque et Historique au Brésil (Paris, 1834-39). Imagem em domínio público.

Toda essa região, que ficou conhecida como Pequena África, era o coração do Rio
de Janeiro escravista, onde seres humanos eram vendidos, como pode ser visto nas
litografias do Henry Chamberlain e do Jean-Baptiste Debret. O Projeto Passados
Presentes, liderado pelas historiadoras Hebe Mattos (UFF), Martha Abreu (UFF) e Keila
Grinberg (UNIRIO), que tem a participação de Monica Lima e Souza (UFRJ), organizou
um aplicativo através do site para organizar um roteiro de visitas guiadas na Pequena
África, além de outros roteiros em localidades vinculadas à história da presença africana
no Rio de Janeiro.
Entre tantas pessoas que circulavam pela Pequena África no século XIX estava
Dona Florinda Josefa Gaspar, comerciante, natural de Benguela, mulher livre, filha de
um soba (uma autoridade centro-africana), que parece ter viajado entre Benguela e o Rio
de Janeiro várias vezes. Ao contrário dos escravizados que chegavam em situação
vulnerável no Rio de Janeiro, Dona Florinda Josefa Gaspar parece ter vivido com um
certo conforto. Nascida em Benguela na década de 1790, ela batizou um filho em 1806
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na Igreja Nossa Senhora do Pópulo, igreja que segue de pé naquela cidade. No registro
de batismo, o pequeno José Ferreira foi identificado como filho legítimo de Dona Florinda
e Francisco Ferreira Gomes, natural do Rio de Janeiro, degredado em Benguela desde o
início do século XIX e que seria integrante do batalhão dos Henriques, o batalhão de
homens negros e pardos do Império Português. O registro de filho legítimo revela que o
casal havia se casado pela Igreja Católica apesar do registro ainda não ter sido localizado.
O casal atuava como sócio comercial, mantendo negócios em regiões próximas a
Benguela, como o Dombe Grande e a Catumbela. Após a independência do Brasil, em
1822, Francisco Ferreira Gomes foi acusado de envolvimento em um movimento
separatista e expulso de Benguela. O segundo exílio do Ferreira Gomes, no entanto, não
significou o fim da união. Instalado no Rio de Janeiro, Ferreira Gomes manteve o
envolvimento no tráfico de seres humanos escravizados, com dois diferentes navios,
Florinda d'África e o brigue Maria.
Em 1836, Dona Florinda Josefa Gaspar desembarcou no Rio de Janeiro no brigue
Maria, acompanhada de quatro menores. Além da Dona Florinda e das quatro jovens, 444
africanos escravizados vinham a bordo do navio. Não está claro se Dona Florinda teve
contato com os cativos, se escutava lamúrios, choros ou conversas. Os documentos
históricos disponíveis não fazem menção à cor da Dona Florinda Josefa Gaspar, mas não
deve ter passado despercebido a chegada de uma negociante de Benguela, filha de uma
autoridade africana e esposa de um traficante de escravos. Uma mulher negra livre, uma
africana que cruzava o Atlântico no convés, não no porão.
Outros africanos livres também haviam circulado pelo Rio de Janeiro, como por
exemplo Francisco Franque, filho de uma família importante de Cabinda (região na parte
Norte de Angola atual), que morou quinze anos na cidade, entre 1784 e 1799, aprendendo
sobre negócios e montando sua rede de parcerias. Muito provavelmente ligada a essa
experiência, uma comitiva de comerciantes importantes e chefes locais de Cabinda vem
ao Brasil realizar uma visita de cortesia ao Príncipe Regente Dom João, em 1812, na
busca por estabelecer boas relações com o governo e manter - e fortalecer - suas alianças
comerciais.
Poucos sabemos sobre a vida de Dona Florinda durante as três décadas em que
viveu no Rio de Janeiro. Sabemos, no entanto, que era uma mulher de posses, que
inclusive investiu na compra de onze homens escravizados e três mulheres escravizadas,
entre elas Joana e Genoveva, duas lavadeiras, e Joaquina, quitandeira. Provavelmente
Dona Florinda alugava os serviços de seus cativos na região do Valongo, e estes
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trabalhavam ao ganho ou em casas da região. Nesta região havia grande circulação de


africanas e africanos, vendendo variadas mercadorias e fazendo diversos tipos de
serviços, e eram cativos e libertos de diferentes regiões de Angola e da África. Estas
pessoas interagiam, se relacionavam e criavam laços de compadrio, de parentesco e de
sociabilidade diversa como nas irmandades católicas e nas casas de religiões de matrizes
africanas. Dona Florinda provavelmente se destacava não apenas por sua condição
financeira como por ser uma africana que não havia experimentado a condição de cativa.
Podemos imaginá-la caminhando pelas ruas da região, muito bem vestida e adornada,
indo a alguma celebração religiosa na Igreja de São Domingos de Gusmão, que ficava
nas proximidades. O batismo de seus netos e o casamento de suas filhas certamente
motivou reuniões festivas, realizadas em seu solar ou na aprazível chácara de sua
propriedade. Podemos imaginar quem seriam os convidados dessas festas: outros negros
e negras prósperos da cidade? Parceiros de suas atividades comerciais, com suas famílias?
Certamente, integrantes da irmandade de São Domingos de Gusmão, uma irmandade de
pessoas negras. E, mais além deste exercício de imaginação histórica, se pode afirmar
sem medo de errar que Dona Florinda não era uma personagem da cidade que pudesse
passar despercebida. Quando faleceu, em 1863, deixou diversos bens, entre eles uma
chácara e um sobrado na rua do Engenho Velho, um terreno na Tijuca e vários sobrados
e casas térreas na Rua Princesa dos Cajueiros (atual Rua Barão de São Félix), na Gamboa.
Uma destas casas, conhecida como solar, sobrevive hoje ainda imponente, e é imóvel
tombado por instâncias do patrimônio nacional.
Na rua e nas casas onde em meados do século XIX viveu esta comerciante de
Benguela, hoje moram famílias de refugiados da República Democrática do Congo. Nesta
mesma rua e em ruas transversais, há estabelecimentos dedicados ao corte de cabelo e à
feitura de tranças africanas, de propriedade e com trabalhadores nascidos em Angola e no
Congo. Em casas de habitação coletiva (os cortiços), casarões antigos, moram muitos
deles em condições precárias. Uma nova Pequena África existe, não mais marcada pela
escravidão, mas por formas contemporâneas de exclusão que continuam a nos conectar
com a terra ancestral de tantos brasileiros. A região ao redor do Valongo é habitada por
uma população vulnerável, quer seja por seu estatuto migratório, pelas condições de
moradia e segurança, ou ainda pelo tipo de ocupação que têm. E a desigualdade continua
a marcar a história da ocupação do Rio de Janeiro.
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Essas e outras histórias só se tornaram conhecidas porque houve apoio do governo


federal e estadual em financiar a pesquisa histórica. Ler documentos em arquivos e
bibliotecas, assim como reconstruir histórias de indivíduos leva tempo e consome muitas
horas de trabalho. Sem um compromisso em financiar bolsas de investigação e investir
em projetos de cooperação, a pesquisa sobre o passado brasileiro e os laços com Angola
serão feitas somente fora do território brasileiro. O projeto PADAB (Projeto Digital
Angola-Brasil), desenvolvido com verba do governo federal brasileiro (Edital Pró-África
do CNPq), gerou o acervo que se encontra no IHGB e no LABHOI/UFF, com 108 códices
e mais de 25 mil imagens de documentos que se encontram no Arquivo Histórico de
Angola e foram digitalizados para se tornarem acessíveis aos pesquisadores estabelecidos
no Brasil. Iniciativas como esta são fundamentais para ampliar e aprofundar o
conhecimento sobre a história comum do Brasil e de Angola, que tanta importância tem
para as sociedades em ambas as margens do Oceano Atlântico

Referência: “Escravos Benguela,” Johann Moritz Rugendas, Voyage Pittoresque dans le Brésil
(Paris: Engelmann & cie, 1835). Imagem em domínio público
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Referência: “Mulher negra de Benguela, vendedora de frutas, com sua filha/ Schwarze
Obsthändlerin aus Benguela nebst ihrer Tochter,” In Wagner, Robert, Júlio Bandeira, and Thomas Ender.
Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818 (Petrópolis: Kapa Editorial, 2000), Plate
number or page: 421. Imagem em domínio público.

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