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antologia

de música em portugal
na Idade Média e no Renascimento

Volume 1
Textos e Ilustrações
projecto financiado por
DGARTES (Direcção-Geral das Artes) / MC (Ministério da Cultura)

edição
Arte das Musas
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

com o apoio de
Fundação para a Ciência e Tecnologia, FEDER-Programa Operacional Ciência e Inovação 2010:
U0693/2004, projecto plurianual POCTI/0693/2003
Cafés Delta

colaboração especial de:


Cabido Metropolitano e Primacial de Braga
CESEM/FCSH-UNL, projecto POCTI/EAT/46895/2002

agradecimentos
Academia Militar, Arquivo da Universidade de Coimbra, Arquivo Distrital de Braga, Arquivo Distrital
de Évora, Arquivo Distrital de Viseu, Arquivo Municipal de Braga, Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, Biblioteca da Escola de Belas Artes de Paris, Cabido da Catedral de Tuy, Misericórdia de Arraiolos,
Museu de Arte Sacra de Arouca, Museu da Música, Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, Torre do
Tombo

e ainda
Bernadette Nelson, João Pedro d’Alvarenga, João Vaz, José Fortes, José Sacramento, Luís Santos, Owen Rees,
Stephen Parkinson, Tess Knighton
manuel pedro ferreira

Introdução, Coordenação e Direcção Musical

antologia
de música em portugal
na Idade Média e no Renascimento

Volume 1
Textos e Ilustrações

CESEM
Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento

Volume 1: Textos e Ilustrações


Volume 2: Edições Musicais
CD 1: Antologia Sonora: dos Visigodos a D. Sebastião (oferta)
CD 2: Cânticos Bracarenses de Natal e Matinas de S. Geraldo (oferta)

Introdução, coordenação e direcção musical: Manuel Pedro Ferreira


Design gráfico, paginação e capa: Filipe Faria/Arte das Musas
Produção do projecto: Arte das Musas

© Arte das Musas, 2008


Rua da Páscoa, 87 1250-178 Lisboa
Tel. 210995674
Email: mail@artedasmusas.com
Web: www.artedasmusas.com

Impressão: M2 Artes Gráficas


Primeira edição: Setembro 2008
Depósito legal n.º
ISBN
Código de barras:

Colecção: MU Arte
índice geral

Lista de ilustrações 6

Panorâmica da música em Portugal na Idade Média e no Renascimento (448-1578) 9


A música hispano-visigótica 10
A música islâmica 13
A música do rito romano-franco e a sua notação musical 15
A canção de gesta e o romance tradicional 23
A cantiga trovadoresca 25
Os instrumentos na lírica trovadoresca 29
As cantigas d’amigo de Martin Codax 32
As cantigas d’amor de Dom Dinis 36
As cantigas de Santa Maria 40
A monodia pós-trovadoresca 43
A mudança do gosto palaciano e o reforço da capela real 46
Ligações a Borgonha e Inglaterra 52
Os músicos e a teoria musical, até 1500 55
A nova trova palaciana, a música teatral e as polifonias simples 59
O repertório latino nos círculos corteses: época manuelina 63
O repertório latino nos círculos corteses: época joanina 70
Os cancioneiros profanos do Renascimento 74
A institucionalização das capelas polifónicas nas catedrais 81
O lugar da teoria musical no Portugal de quinhentos 85
O impacto humanístico no canto latino 87
Do fim do Concílio de Trento a Alcácer-Quibir 90

Regras para a leitura da notação mensural 95

Lâminas fotográficas 97

Conteúdos do Volume 2: Edições Musicais 117

Comentário crítico às edições musicais 123

Índice do CD 1, textos e traduções 165


Índice do CD 2, textos e traduções 177
6
ilustrações

figuras

1 Fragmento 3 do Arquivo da Catedral de Tui


2 Epístola a Tito no Missal de Mateus (Arquivo Distrital de Braga, ms. 1000, fol. 8r): pormenor
[Antologia, nº 5, e CD 2, faixa 4]
3 Hino a S. Bernardo no antifonário de Arouca (Museu de Arte Sacra, ms. 25, folha de guarda):
pormenor [Antologia, nº 19, e CD 1, faixa 6]
4 Pergaminho Vindel (New York, Pierpont Morgan Library, M979): pormenor
[Antologia, nº 8, e CD 1, faixa 8]
5 Pergaminho Sharrer (Lisboa, Torre do Tombo, Frag. Cx. 20, nº2): pormenor
6 Fragmento de Penha Longa (Lisboa, Museu da Música, 1055): pormenor
7 Motete Quanti mercenarii (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56
[doravante designado por Chansonnier Masson], fol. 123v-124) [Antologia, nº 36]
8 Motete Si pie Domine (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, MM32, fols. 2v-3)
[Antologia, nº 38]
9 Damião de Góis, Surge propera, discantus, 1ª parte [Antologia, nº 39]
10 Damião de Góis, Surge propera, discantus, 2ª parte [Antologia, nº 39]
11 Vilancete No val das mais belas (Chansonnier Masson, fols. 50v-51)
12 Cantiga Na fonte está Lianor (Chansonnier Masson, fols. 119v-120) [CD 1, faixa 20]
13 Romance Los braços traigo cansados (Chansonnier Masson, fols. 66v-67)
14 Pues a Dios humano vemos (Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, Ms. 3391
[Cancioneirinho de Belém], fols. 58v-59)
15 Cristóbal de Morales, Magnificat (livro de música polifónica
do Museu de Arte Sacra de Arouca, fols. 17v-18)
16 Aires Fernandes, Benedicamus Domino (livro de música polifónica
do Museu de Arte Sacra de Arouca, fols. 29v-30) [outra versão: Antologia, nº 45]

lâminas

I Fragmento hispano-visigótico de Coimbra (Arquivo da Universidade, IV-3ª-Gav. 44, nº 22), recto


II Fragmento hispano-visigótico de Coimbra, verso
III Fragmento hispano-visigótico de Lamego (Palácio Episcopal, Cx. 2, nº17): pormenor
IV Fragmento de antifonário bracarense (Lisboa, Torre do Tombo, Fragmentos, Cx. 20, nº1): pormenor
V Fragmento do Ofício de S. Geraldo de Aurillac (Braga, Arquivo Municipal, Frag. nº 12): pormenor
VI Epístola de S. Paulo a Tito, tropada (Braga, Arquivo Distrital, ms. 1000 [Missal de Mateus], fol. 8r) 7
[Antologia, nº 5, e CD 2, faixa 4]
VII Fragmento de Missal (Braga, Arquivo Distrital, Frag. nº 23): pormenor
VIII Fragmento de Antifonário (Viseu, Arquivo Distrital, Frag. nº 46-135): pormenor
IX Antifonário cisterciense (Arouca, Museu de Arte Sacra, ms. 25, fol. 23v), pormenor
X Fragmento de Gradual (Arraiolos, Arquivo da Misericórdia, Liv. B-17)
XI Ofício de S. Geraldo de Braga (Braga, Arquivo Distrital, M949, fols. 229v-230r)
[incluindo antífona Regem regum: Antologia, nº 6, e CD 2, faixa 7]
XII Hino a S. Bernardo, a duas vozes, Exultat celi curia
(Arouca, Museu de Arte Sacra, ms. 25, folha de guarda) [Antologia, nº 19, e CD 1, faixa 6]
XIII Fragmento de Penha Longa (Lisboa, Museu da Música, 1055), recto
XIV Fragmento de Penha Longa, verso
XV Credo a duas vozes, início (Arquivo Distrital de Évora, Mús. Lit. nº 70)
[Antologia, nº 20, e CD 1, faixa 12]
XVI Kyrie da Missa de Bruxel (Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, MM9, fols. 77v-78)
9
panorâmica da música em portugal
na idade média e no renascimento (448-1578)

Manuel Pedro Ferreira

Para que se possa historiar a música em Portugal até à época do Renascimento, há que seguir a
evolução cultural e política dos povos que antecedem, preparam, constituem e/ou acabam por integrar
a nacionalidade portuguesa nos primeiros séculos da sua existência. Um enquadramento histórico
estritamente vinculado ao actual território de Portugal continental seria, nessa perspectiva, redutor e
inadequado. Isto leva-nos a ter aqui em conta:
1. As unidades políticas que se estabeleceram duradouramente no noroeste da Península Ibérica a
partir das divisões administrativas do Império Romano, a saber: as regiões de Braga, Lugo e Astorga,
que virão a formar a província da Galécia; o reino suevo (até à sua integração no Império visigótico
em 585); o reino de Leão (correspondente, em traços largos, à Galécia romana); o reino da Galiza,
área ocidental do precedente; e finalmente, o condado e reino de Portugal, que corresponde ao
desmembramento da Galiza em zonas a norte e sul do rio Minho, no que foi sensivelmente retomada
a fronteira entre as regiões romanas de Braga e Lugo.
2. A província romana da Lusitânia, que a norte do Tejo foi progressivamente submetida aos
suevos, e que depois esteve, na sua totalidade, sob domínio visigodo e muçulmano; eram da Lusitânia
os territórios que o condado, e depois, o reino de Portugal foram incorporando entre finais do século
XI e meados do século XIII (Coimbra, Vale do Tejo, Alentejo e Algarve);
3. A manutenção nas zonas acima consideradas de identidades ou continuidades culturais, nem sempre
coincidentes com unidades políticas e territoriais. São disso exemplos o rito hispano-visigótico, a devoção
a Santiago, a língua galego-portuguesa e o moçarabismo.
O conhecimento que possamos ter sobre a música correspondente a tais unidades políticas,
territoriais ou culturais depende de uma variedade de fontes históricas, em que a documentação directa
(instrumentos achados em pesquisas arqueológicas, manuscritos com notação musical) é infelizmente
muito reduzida, sendo necessário recorrer sobretudo a depoimentos contemporâneos, textos de índole
administrativa, religiosa ou literária, e até à análise retrospectiva de certas tradições orais.
Antologia de Música em Portugal

10 a música hispano-visigótica

Não há uma fronteira nítida entre a época romana e a chamada Idade Média; por conveniência,
tomamos como marco histórico a conversão ao Cristianismo, em 448, do rei suevo Requiário, já que
tal conversão traduz a assimilação pelos invasores bárbaros da cultura latina tardia (e das práticas
religiosas a ela associadas) e coincide aproximadamente com a consolidação do reino suevo em
meados do século V. Tal consolidação baseou-se no entendimento entre suevos e hispano-romanos
no território da Galécia e na Lusitânia a norte de Lisboa, incluindo as actuais Beiras e Trás-os-Montes.
Temos poucas informações sobre os acontecimentos e a situação cultural e religiosa mais a sul, que
parece ter-se mantido fiel, com maior continuidade do que no norte, ao modelo civilizacional herdado
do Império Romano.
A primeira menção conhecida à prática de canto no que viria a ser o território português vem-nos
de uma lápide funerária oriunda de Mértola (Baixo Alentejo), que celebra a memória de um princeps
cantorum (à letra, «príncipe dos cantores») chamado André, activo no primeiro quartel do século VI; a
expressão é equivalente, segundo S. Isidoro de Sevilha, à de salmista, que era simultaneamente o cantor
principal e o superintendente do canto coral nas cerimónias litúrgicas de uma igreja; a este cargo,
poderíamos hoje chamar de cantor-mor.1 O epitáfio, enquadrado por duas colunas encimadas por um
arco em ferradura, reza assim (em tradução): «André, servidor de Deus, cantor-mor da sacrossanta
igreja mirtiliana, viveu 36 anos e repousou na paz do Senhor pelo dia terceiro das calendas de Abril
do ano 560 da era de César» [30 de Março de 525].2
O sudoeste peninsular estava nessa época sob domínio visigótico, embora este dependesse quer
do protectorado ostrogodo (vigente durante a primeira metade do século VI), quer da partilha do
poder com a população local de cultura hispano-romana, a qual, para lá das convulsões políticas,
continuava pacificamente a desenvolver o culto cristão. Vivia-se então a fase final de constituição, nas
várias regiões da Península Ibérica e da Europa em geral, de um repertório de cânticos artisticamente
elaborados, ligados a uma crescente especialização de funções no seio da Igreja. O repertório ibérico,
influenciado pelas tradições da Gália, de África, de Jerusalém e até de Bizâncio (cujas tropas ocuparam,
na segunda metade do século VI e inícios do seguinte, o sul da Península, incluindo o Algarve e parte
do Alentejo) estava certamente diversificado segundo os particularismos locais da liturgia (como o
chamado «rito suévico» nos territórios do noroeste, organizado pelos clérigos bracarenses no terceiro
quartel do século VI).
Os cânticos viriam a ser liturgicamente ordenados e, até certo ponto, padronizados só no segundo
terço do século VII, em conexão com a unificação do rito litúrgico seguido no domínio visigótico
(do que resultou o «rito hispano-visigótico», também chamado hispânico, visigótico ou moçárabe).3
No século VIII a cidade de Toledo, antiga sede do poder imperial, era a principal fonte de produção

1 S. Isidori Hispalensis Episcopi, De ecclesiasticis officiis, Lib. I, Cap. V («De psalmis»); Lib. II, Cap. XII («De psalmistis»): cf. J.-P. Migne
(ed.), Patrologia latina, vol. 83, Paris, 1862, pp. 742, 792.
2 Texto latino, comentário e bibliografia básica in Manuel Pedro Ferreira, «Da Música na História de Portugal», Revista Portuguesa de
Musicologia, 4-5 (1994-95), pp. 167-216 [171 e nota 10].
3 Uma apresentação bastante completa do rito visigótico e da sua música pode encontrar-se no livro de Ismael Fernández de la Cuesta,
Historia de la música española, 1: Desde los orígenes hasta el “ars nova”, Madrid: Alianza Editorial, 1983, pp. 87-201.
Manuel Pedro Ferreira

11
manuscrita ligada à liturgia hispânica. Uma cópia de um antifonário toledano, realizada na primeira
metade do século IX na então florescente cidade de Beja (incluindo ou não notação musical, pois não
é certo que esta existisse então na Península),4 terá servido de modelo ao célebre antifonário de Leão
do século X, conhecido pela enorme riqueza do seu conteúdo neumático (notação do contorno e dos
componentes melódicos dos cânticos anotados, sem especificação dos intervalos musicais).5
O rito hispano-visigótico, e respectivo repertório musical, seriam a base do culto cristão na
maior parte da Península Ibérica até finais do século XI. Conserva-se notação neumática (de tipo
«visigótico», nas variedades toledana e leonesa) para a quase totalidade desse imenso repertório, mas
infelizmente só poucas dezenas de peças, traduzidas em sistemas de escrita que permitem identificar
os intervalos entre os sons (notação diastemática), são passíveis de transcrição para notação moderna
(exemplos: Antologia, nº 1 e nº 2, e respectiva gravação).6 Em Portugal há referências, datadas entre
959 e 1083, à presença de antifonários do rito hispânico (que incluíam tanto cânticos da Missa como
do Ofício) em Guimarães, Parada (Braga), Vacariça (Mealhada) e Vouzela.7 Em inventários de bens
de igrejas medievais, encontram-se, não raro, referências a livros «místicos», ou seja, mistos, pois
a designação visigótica para um volume que reunia todos os textos necessários para a celebração
da Missa e do Ofício era liber misticus. Ainda em 1332, havia na Alcácova de Santarém dois livros
«cómicos», cuja designação parece prolongar a memória de códices hispano-visigóticos (pois o liber
commicus era um livro de leituras para a Missa e o Ofício, onde por vezes se introduziam neumas que
registavam as cadências finais dos tons de leitura).8
Não obstante estes indícios históricos, foram identificados até agora em Portugal apenas dois
fragmentos com notação visigótica, estando um deles conservado em Coimbra (variedade toledana,
ou central, com neumas muito inclinados: vejam-se as Lâminas I-II) e o outro em Lamego (variedade
leonesa, ou nortenha, com neumas quase verticais: veja-se a Lâmina III); se é admissível que ambos
os manuscritos tenham sido usados nessas regiões no século XI, não é seguro que tenham tido
origem no território nacional.9 O manuscrito de Coimbra é um fólio retirado de um Antifonário-
Colectário (livro que continha cânticos e orações para a Missa e o Ofício) escrito por volta do
ano 1000 para uma catedral (possivelmente, a de Toledo), o que o torna um dos mais antigos
testemunhos da notação toledana. Contém o final do ofício de Vésperas para a tarde do sábado que
precede o terceiro domingo do Advento e o início da hora matutina (correspondente às Laudes
do rito romano) desse domingo, que recai em meados de Dezembro. O fragmento de Lamego,
pertencente a um códice plenário (liber misticus) talvez oriundo de Leão, foi escrito sensivelmente

4 «Em época visigótica [Beja] era, a seguir a Sevilha e Mérida, a mais importante cidade do Ocidente, e manteve até ao século X o seu
estatuto de grande cidade, cabeça de região e de bispado»: Cláudio Torres e Santiago Macias, O legado islâmico em Portugal, Lisboa: Círculo
de Leitores, 1998, p. 147.
5 Justo Pérez de Urbel, «El Antifonario de León y su modelo de Beja», in Bracara Augusta, vol. XXII (1968), pp. 213-25.
6 Para um resumo actualizado sobre as sobrevivências melódicas do canto hispânico, veja-se Manuel Pedro Ferreira, «Notation and
Psalmody: a Southwestern Connection?», in Cantus planus. Papers Read at the 12th Meeting of the IMS Study Group (2004), Budapest:
Hungarian Academy of Sciences, 2006, pp. 621-39.
7 Solange Corbin, Essai sur la musique religieuse portugaise au Moyen Age (1100-1385), Paris: Les Belles Lettres, 1952, pp. 216-21.
8 Maria Ângela Rocha Beirante, Santarém medieval, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1980, p. 272. No mesmo inventário mencionam-
-se, entre outros livros, um «official» (antifonário do ofício para o ciclo temporal), «dous sentãaes de canto hũu velho e outro novo»
(santorais: antifonários para o ciclo santoral), «dous domjngãaes de canto hũu velho e outro novo» (domingais: graduais para os domingos
e festas), «quatro salteiros» (saltérios: livros com salmos ordenados para as horas do Ofício, incluindo possivelmente os respectivos hinos)
e um «caderno dos vitatorios» (caderno com os tons de invitatório para as Matinas).
9 Manuel Pedro Ferreira, «Three Fragments from Lamego» [versão preliminar, sem notas], in Revista de Musicología, XVI (1993), pp. 457-76.
Antologia de Música em Portugal

12
na mesma época ou pouco mais tarde; contém, no seu lado mais legível, leituras, cânticos e orações
para o ofício matutinal do quinto domingo de Quaresma e para a hora de nona e Missa da sexta-feira
na respectiva semana.10
Desconhecemos quase tudo sobre a música profana anterior à invasão árabe que, em 711, pôs
termo ao Império visigótico; entre os vestígios arqueológicos, identificou-se somente um aerofone
(flauta de bisel ou tubo de instrumento de palheta) em osso de grifo, encontrado em Conímbriga.11
Contudo, na segunda metade do século VII, na zona de Astorga (então submetida à autoridade
metropolitana de Braga), o eremita Valério critica um presbítero que, devendo a sua posição ao facto
de ser competitivo na arte de ensinar a lira, percorria as casas senhoriais, obtendo fama de músico
através das suas frequentes cantorias. Valério alega ainda, escandalizado, que este músico, em estado
de embriaguês, cantava, ao mesmo tempo que dançava com marcação rítmica, canções que agitavam
indecentemente o espírito.12 Este depoimento não só supõe a sobrevivência tardia de práticas sociais
e musicais profanas típicas da Antiguidade greco-romana (ou mesmo de épocas anteriores)13 como
nos apresenta os santuários patrocinados por privados como uma forma de assegurar a subsistência
de músicos talentosos, que para esse efeito ingressavam na classe clerical.
Já no século VI os concílios de Braga denunciavam a presença indesejada de música profana nas
igrejas, frequentemente vistas como locais de festa e centros de convívio; aliás, a religiosidade popular
no noroeste da península caracterizou-se, até ao século XV inclusive, por uma ancestral exuberância,
em que a alegria da participação no culto se manifestava activamente através de bailes e cantigas; desta
mentalidade comungavam muitos clérigos oriundos das zonas rurais.14 Nesse contexto, a presença
na iconografia cristã ibérica de diversos instrumentos típicos da Antiguidade pode ser interpretada
menos em clave simbólica, ou de imitação de antigos modelos, do que como espelho de uma realidade
não inteiramente conformada ao paradigma oficial de um culto litúrgico estritamente vocal e limitado
aos cânticos latinos.

10 Em dias ou épocas penitenciais, a hora de nona, normalmente ausente da liturgia secular no rito hispânico, era emparelhada com a
Missa, substituindo a sua primeira parte — Liturgia da Palavra — e podendo mesmo incorporar o seu canto ofertorial, o Sacrificium, como
sucede neste fragmento.
11 Marta Moreno-García e Carlos Pimenta, «Arqueozoologia cultural: o aerofone de Conímbriga», Revista Portuguesa de Arqueologia,
7 (2004), pp. 407-25.
12 Renan Frighetto (ed.), Valério do Bierzo: Autobiografia, A Coruña: Editorial Toxosoutos, 2006, pp. 63-65. Para uma interpretação do
texto em clave popularizante, veja-se Xulio Viejo Fernández, Llingua y cultura lliteraria na Edá Media asturiano-lleonesa, Uviéu: Trabe,
2004, pp. 87-91.
13 Rosario Álvarez, «Presunto origen de la lira grabada en una estela funeraria (ca. S. VIII a.C.) encontrada en Luna (Zaragoza)», Revista
de Musicología, 8 (1985), pp. 207-28.
14 A. H. de Oliveira Marques, A sociedade medieval portuguesa, 4ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 168. Mª João Violante B. Marques da
Silva, «Norma e desvio: comportamento e atitudes face ao sagrado na diocese bracarense (séculos VI-XVI), IX Centenário da dedicação da
Sé de Braga. Actas do Congresso Internacional, Braga: Universidade Católica Portuguesa, vol. II/2, pp. 119-46.
Manuel Pedro Ferreira

a música islâmica 13

A invasão mourisca veio temporariamente desorganizar a estrutura social e a vida religiosa cristã,
especialmente nas zonas que separavam a faixa litoral norte, firmemente controlada pelos cristãos,
da vasta região do centro e sul da Península conhecida por al-Ândalus, estavelmente submetida aos
muçulmanos. No entanto, mesmo a sul dessa difusa fronteira, o culto cristão continuou a ser mantido
e a enriquecer-se com novas composições. Os invasores — sobretudo árabes e sírios do Próximo e
Médio Oriente e berberes do norte de África — eram adeptos de uma religião centrada no cumprimento
individual de certos preceitos conducentes à santificação, prescindindo de uma liturgia solene e de
um corpo profissional de intermediários (sacerdotes e outros clérigos); a música não tinha um papel
colectivo a desempenhar no culto (a chamada à oração, confiada a um especialista, não era entendida
como música em sentido estrito), subsistindo portanto como uma arte essencialmente profana, cujo
desenvolvimento autónomo dependia do patrocínio aristocrático. O facto de a aristocracia islâmica
ter incorporado na sua cultura a herança musical sírio-bizantina e persa, bem como a teoria musical
grega, permitiu que a música árabe de corte alcançasse uma sofisticação invejável em comparação
com o Ocidente cristão, especialmente no aspecto rítmico. Os modos rítmicos da tradição de Bagdad
foram conhecidos, discutidos e decerto praticados na Península.15
A presença no Ândalus de músicos orientais de ambos os sexos, profissionais de craveira internacional,
está documentada a partir dos finais do século VIII;16 em Portugal há raros vestígios arqueológicos da
música muçulmana, nomeadamente um pequeno tambor do século VIII (similar ao Ta’rîja marroquino)
encontrado em Silves,17 e talvez enigmáticos fragmentos em osso de abutre, perfurados, do século XII,
encontrados em Mértola.18 A então importante cidade de Silves, que contava com colonos vindos do
Iémen e regiões próximas, era conhecida pela pureza do árabe aí praticado e pela sua adesão espontânea
à expressão poética.19 Cidades como Santarém, Évora, Beja, Silves e Cacela foram berço de alguns
importantes autores de poesia árabe em estilo tradicional, de que são exemplo estes versos de Ibn-Sara
al-Xantarini: «os homens, ignorantes, glorificam o mundo, / a seus olhos magnífico, sendo embora
imundo, / e por ele lutam uns contra os outros / como cães que se danam por um só osso»;20 mas dado
que a poesia clássica árabe podia ser somente declamada, contrariamente ao que se passava com a poesia

15 George Dimitri Sawa, «Baghdadi Rhythmic Theories and Practices in Twelfth-Century Andalusia», in Music and Medieval Manuscripts.
Paleography and Performance. Essays dedicated to Andrew Hughes, ed. John Haines & Randall Rosenfeld, Aldershot: Ashgate, 2004, pp. 151-81.
16 Dwight Reynolds, «Music», in M. R. Menocal et al (eds.), The Literature of Al-Andalus, Cambridge: Cambridge University Press, 2000,
pp. 60-82 [63].
17 Rosa Varela Gomes, «Cerâmicas muçulmanas, de Silves, dos séculos VIII e IX», in [Actas das] Primeiras Jornadas de Cerâmica Medieval
e Pós-medieval. Métodos e resultados para o seu estudo, Tondela: Câmara Municipal de Tondela, 1995, pp. 19-32 [27, 30]; id., Silves (Xelb),
uma cidade do Gharb Al-Andalus: a Alcáçova [Trabalhos de Arqueologia nº 35], Lisboa: Instituto Português de Arqueologia, 2003, pp. 478-
80, 490; Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes (coord.), Palácio Almoada da Alcáçova de Silves [catálogo da exposição], Lisboa: Museu
Nacional de Arqueologia, 2001, p. 52; Catherine Homo-Lechner & Christian Rault, Instruments de musique du Maroc et d’al-Andalus, Paris:
Fondation Royaumont, 1999, pp. 100-105.
18 Marta Moreno-García e Carlos Pimenta, «Música através dos ossos?... Propostas para o reconhecimento de instrumentos musicais no
Al-Ândalus», in Al-Ândalus. Espaço de mudança. Balanço de 25 anos de história e arqueologia medievais. [Actas do] Seminário internacional
Homenagem a Juan Zozaya Stabel-Hansen, coord. Susana Gómez Martínez, Mértola: Campo Arqueológico de Mértola, 2006, pp. 226-39.
19 Abdallah Khawli, «Quelques réflexions sur l’histoire de l’Algarve pendant les premiers siècles de l’islamisation (VIII-XIe siècle)», in
Xarajîb, nº 2 (2002), pp. 21-40; Jomâa Cheikha, «Silves (Shilb) ao longo da História, segundo as fontes árabes», ibid., pp. 41-52.
20 Teresa Garulo, «Poesia árabe em Portugal», in Xarajîb, nº1 (2000), pp. 67-79; Adalberto Alves, «Poesia de expressão árabe em território
português», in José Sousa Machado (coord.), Moçárabe em peregrinação a S. Vicente, Lisboa: Associação Caminus, 1990, pp. 43-45.
Antologia de Música em Portugal

14
românica de corte, que requeria necessariamente música na sua apresentação pública, essa actividade
poética não supõe concomitante actividade musical.
Os géneros poéticos em árabe que no Ândalus estavam invariavelmente associados a melodias
foram criados na própria Península, provavelmente antes do século X: o muwaxxah (canção escrita
em árabe clássico, ou hebraico) e o zajal (canção com letra em árabe vulgar).21 Ambos os géneros são
caracterizados pelos versos curtos organizados em estrofes, com mais de uma rima; foram certamente
usados na faixa ocidental da Península (serviram tardiamente de modelo a uma cantiga galego-
portuguesa do século XIII),22 mas os autores aí activos não nos deixaram exemplos dos mesmos. É
contudo de um deles, Ibn Bassâm de Santarém, um dos mais preciosos testemunhos sobre o muwaxxah,
género em que o texto era composto sobre versos curtos de carácter popular, incorporados no final
(tomando o nome de kharja). Estes versos pré-existentes (por vezes em língua romance, ou seja, em
dialecto moçárabe), com circulação autónoma ou retirados de uma canção mais extensa, traziam
consigo a melodia, que servia de base à nova composição.
Segundo Ibn Bassâm, aquele a quem se atribuía a invenção do muwaxxah, um cego de Cabra,
compunha esse tipo de obras à maneira dos hemistíquios (secções de verso) da poesia clássica árabe;
só que usava, na maioria delas, metros desconhecidos desta tradição; e fazia-o, citando locuções
coloquiais em língua vulgar românica e árabe, a que ele chamava «estribo», sobre o qual construía
a muwaxxaha, sem qualquer rima interna. A descrição de Ibn Bassâm é sintomática da estranheza
com que alguns poetas imbuídos da tradição clássica olhavam muwaxxah e zajal, por serem géneros
culturalmente híbridos. Nesta forma de canção estrófica, cada estância tinha uma parte com versos
de rima variável, e outra com rima invariável. As estrofes podiam ser precedidas, ou não, por um
prelúdio, cuja rima era total ou parcialmente retomada na parte final das estrofes, prelúdio este que
assumia a sua normal função de refrão sempre que a composição era cantada.
A cultura árabe não desenvolveu formas de notação musical escrita, pelo que as melodias destas
canções pereceram na voragem da História — com a possível excepção de um punhado delas,
recolhidas da tradição oral a partir do século XVI, em estado fragmentário ou modificado.23 Há, no
entanto, traços de influência andaluza em muitas das cantigas que o rei castelhano Alfonso X, o Sábio,
falecido em 1284, entendeu dedicar à Virgem Maria; destas falaremos mais adiante. Esses traços
encontram-se quer na forma musical de dansa/virelai ou de «rondel andaluz», quer na utilização de
padrões ou ciclos rítmicos de longa duração, sincopados ou pontuados, em compasso quaternário ou
até quinário (Antologia, nº 15).24

21 Para uma apresentação sumária destes géneros e do seu contexto, veja-se Teresa Garulo, La literatura árabe de Al-Andalus durante
el siglo XI, Madrid: Hipérion, 1998, pp. 161-82; e também, do ponto de vista musical, Manuel Pedro Ferreira, «Memórias musicais de
al-Andalus», comunicação ao Colóquio internacional Portugal e o Islão: de Lagos às Molucas (Lagos, 5-6/7/2002), a publicar em próximo
número da revista Xarajîb, editada pelo Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves.
22 Manuel Pedro Ferreira, «Indícios de contactos poético-musicais entre a cultura trovadoresca e a cultura árabo-andaluza», in Xarajîb,
nº2 (2002), pp. 107-13.
23 Cf. Benjamin M. Liu e James T. Monroe, Ten Hispano-Arabic Strophic Songs in the Modern Oral Tradition — Music and Texts, Berkeley:
University of California Press, 1989.
24 Manuel Pedro Ferreira, «Andalusian music and the Cantigas de Santa Maria», in Stephen Parkinson (ed.), Cobras e Som. Papers from a
Colloquium on the Text, Music and Manuscripts of the Cantigas de Santa Maria, Oxford: Legenda, 2000, pp. 7-19; id., «Iberian Monophony»,
in Ross W. Duffin (ed.), A Performer’s Guide to Medieval Music, Bloomington: Indiana University Press, 2000, pp. 144-57; id., «Rondeau and
Virelai: The Music of Andalus and the Cantigas de Santa Maria», in Plainsong & Medieval Music, 13/2 (2004), pp. 127-140.
Manuel Pedro Ferreira

a música do rito romano-franco e a sua notação musical 15

Entretanto, nos reinos cristãos tinha-se registado uma revolução no domínio religioso: a substituição
do rito hispano-visigótico pelo rito romano-franco (o rito da cidade de Roma, reinterpretado e
suplementado pelos clérigos do Império carolíngio aquando da sua adopção na segunda metade do
século VIII). A implantação do rito romano-franco na Península tinha sido, durante séculos, limitada
ao condado da Catalunha e reino de Aragão, mas no século XI ganhou novo ímpeto, mercê das alianças
dinásticas e da crescente influência francesa na corte de Leão. Injustamente acusada de heresia, a
Igreja hispânica defendeu-se com sucesso até que uma nova ofensiva papal levou à abolição oficial
da antiga liturgia em 1080. Na prática, o processo de implementação do novo rito (textos, conteúdo e
ordenação das cerimónias, e respectivos cânticos sacros) duraria algumas décadas. As antigas melodias
hispano-visigóticas, registadas por escrito através de neumas melodicamente imprecisos, deixaram de
ser ensinadas e foram esquecidas, com poucas excepções (o «Canto da Sibila», embora não-visigótico
na sua origem, ambientou-se de tal forma nos antigos domínios visigóticos que sobreviveu em Braga até
meados do século XX: veja-se a Antologia, nº 3, e respectiva gravação). Para que os clérigos pudessem
aprender as melodias romano-francas (o chamado «canto gregoriano»), importaram-se livros, métodos
de ensino e professores, maioritariamente vindos do sul e sudoeste de França (sobretudo da Aquitânia),
que tinha uma pujante tradição regional no que respeita à liturgia e à música religiosa.
Um destes professores de música aquitanos foi S. Geraldo de Braga, que, depois de reger o coro
da catedral de Toledo, chegou a Portugal em 1099 para exercer as funções de arcebispo. Inicialmente
tinha sido responsável pelo canto e pela liturgia no mosteiro cluniacense de Moissac (diocese
de Cahors), de onde passou para um priorado situado em Toulouse. Foi apenas um dos monges
cluniacenses colocados em posições de poder nas dioceses portuguesas. A partir dessas posições,
eles asseguraram-se de que as cerimónias litúrgicas decorreriam correctamente, ou seja, de acordo
com as tradições em que haviam sido educados na Aquitânia.
Recordemos que a dimensão musical da liturgia católica era baseada no canto a uma só voz, ou
seja, com uma única linha melódica, ainda que a execução coral fosse dominante. No repertório
romano-franco coexistiam então o canto gregoriano tradicional e peças de variada índole: melodias
recentes para o Ordinário da Missa, ofícios completos suscitados por novas devoções ou festividades,
hinos comemorativos compostos em diferentes épocas, e um grande número de amplificações do
canto gregoriano destinadas a solenizar ou sublinhar a sua inserção litúrgica, mormente «tropos» e
sequências de Aleluia com ou sem texto próprio («prosa»). Dado que a Ordem de Cluny era pouco
favorável aos cânticos com letras mais recentes (sobretudo «tropos» e «prosas» de sequências),25 a
grande criatividade litúrgica aquitana nesse domínio foi desvalorizada e acabou por ter pouco eco
entre nós. De facto, embora se saiba de um prosarium feito (ou mandado fazer) por um presbítero
de Coimbra no último terço do século XII, de dois prosários existentes no mosteiro agostinho de

25 Pierre-Marie Gy, «Géographie des tropes dans la géographie liturgique du moyen âge carolingien et postcarolingien», in La tradizione
dei tropi liturgici, ed. Claudio Leonardi and Enrico Menesto, Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1990, pp. 13-24; David
Hiley, «The Sequence Melodies sung at Cluny and elsewhere», De Musica et Cantu: Studien zur Geschichte der Kirchenmusik und der Oper.
Helmut Hucke zum 60. Geburtstag, Hildesheim: Georg Olms, 1993, pp. 131-55.
Antologia de Música em Portugal

16
São Vicente de Fora, em Lisboa, no século XIII, e de um «proseiro de glorias e quyrios» (tropário
do Ordinário da Missa) existente no mosteiro beneditino de Santo Tirso em 1438, são poucos os
exemplos manuscritos desse repertório (praticamente ausente dos Missais bracarense e eborense
impressos por volta de 1500, e definitivamente enterrado em meados de quinhentos pelo Concílio
de Trento, em nome da normalização litúrgica) que se conservaram em Portugal.26 Um deles é a
amplificação lírica da Epístola paulina a Tito, lida durante a Missa do Galo, incorporada no Missal de
Mateus, do século XII (epístola com tropo Gaudeamus nova cum letitia: Lâmina VI, Antologia, nº 5,
e respectiva gravação).
Um dos resultados do processo de renovação litúrgica diocesana acima delineado foi o chamado
«rito bracarense», que é na verdade apenas um entre os muitos costumes (sedimentações de práticas
de culto) a que o rito romano-franco deu origem nas diversas regiões europeias. A originalidade do
costume bracarense, propriamente dito, reside na particular mistura de tradições que lhe está na base,
sendo as influências nele dominantes, da Aquitânia e de Cluny.27 Pode ver-se o costume bracarense
como o representante mais estável dessa família litúrgica aquitano-cluniacense, que penetrou em
maior ou menor grau quase todo o território nacional, tornando-se dominante no Porto, em Viseu,
em Coimbra, e mesmo em Évora (que segregou um costume aparentado ao bracarense). Um exemplo
de fragmento litúrgico de matriz bracarense (Lisboa, Torre do Tombo, Casa Forte, Caixa 20, nº 1)
é aqui parcialmente reproduzido na Lâmina IV.28 Uma geografia litúrgico-musical portuguesa está
ainda, contudo, largamente por traçar.
A comarca de Valença do Minho pertenceu durante séculos à diocese de Tui (cujo documento
musical mais antigo, conservado na catedral de Tui, se apresenta na Figura 1), e foi pouco investigada.
Lisboa, cujo primeiro bispo depois da reconquista cristã foi um inglês que se fez acompanhar de vários
conterrâneos — e onde veio mais tarde a reinar uma dinastia ligada pelo sangue a Inglaterra, através
de D. Filipa de Lencastre — foi influenciada por costumes ingleses (o de Salisbury foi certamente
usado na corte em torno a 1400, nas casas de D. Filipa e de D. Fernando), mas talvez também pelo
de Compostela, por estar, a partir do século XIII, sob a sua autoridade metropolitana. É contudo
de supôr, devido à disponibilidade de livros de raiz aquitano-cluniacense, que a matriz da liturgia
romano-franca praticada em Lisboa tenha sido semelhante à de Braga.

26 S. Corbin, Essai..., cit., pp. 224, 337; Aires Augusto Nascimento, «Livros e claustro no século XIII em Portugal. O Inventário da Livraria
de S. Vicente de Fora em Lisboa», Didaskalia, XV (1985), pp. 229-42; Manuel Pedro Ferreira, «A música litúrgica na diocese de Braga
durante a Idade Média: Estado da questão» (comunicação ao Colóquio da APCM A Música entre Douro e Minho, 29-30/10/ 1999, a publicar
in Ana Maria Rodrigues e Manuel Pedro Ferreira [coord.], A Sé de Braga. Arte, Liturgia e Música do final do século XI ao episcopado de D.
Diogo de Sousa, no prelo).
27 Manuel Pedro Ferreira, «As origens do Gradual de Braga», in Didaskalia, XXV (1995), pp. 57-96; id., «Braga, Toledo and Sahagún: The
Testimony of a Sixteenth-Century Liturgical Manuscript», in Fuentes Musicales en la Península Ibérica. Actas del Coloquio Internacional,
Lleida, 1-3 abril 1996, ed. Maricarmen Gómez & Màrius Bernadó, Universitat de Lleida, 2002, pp. 11-33; id., «Braga’s Invitatory Tones», in
Cantus Planus. Papers Read at the 9th Meeting, Esztergom & Visegrád, 1998, Budapest: Hungarian Academy of Sciences, 2001, pp. 127-50;
id., «A música litúrgica na diocese de Braga», cit.
28 Este bifólio, proveniente de um antifonário escrito em pura letra visigótica no final do século XI, com notação musical aquitana,
contém antífonas e responsórios prolixos do Ofício correspondentes ao mês de Setembro, incluindo três peças alheias à tradição central de
canto gregoriano mas comuns a Braga e ao antifonário Toledo 44.2: as antífonas Justus es domine, Missus est raphael e Peto domine.
Manuel Pedro Ferreira

17

Figura 1: Fragmento 3 do Arquivo da Catedral de Tui

A influência do costume de Salisbúria sobrevive ainda na cerimónia da deposição do Senhor na


sexta-feira santa, que a partir do Renascimento se espalhou por todo o país e colónias e acabou por se
tornar um elemento característico, embora tardio, do costume bracarense (único que ainda lhe é fiel).
Solange Corbin procurou mostrar que essa cerimónia surge da confluência do rito de Salisbúria com
tradições italianas importadas no último terço do século XV, de que se destaca o pranto processional
«Heu, heu, Domine», recolhido no Missal de Braga de 1558 e cantado até aos dias de hoje (Antologia,
nº 7, e respectiva gravação). O costume romano, divulgado sobretudo a partir do século XIV, tornou-
Antologia de Música em Portugal

18
se especialmente influente no seguinte, mas só foi adoptado na maioria das dioceses portuguesas a
partir do século XVI, tendo sobrevivido, mesmo assim, na liturgia romanizada algumas cerimónias
marginais favorecidas pela tradição local.29
Simultaneamente à renovação diocesana imposta por volta de 1100, o movimento monástico, que
tinha um forte cunho local, foi sendo gradualmente reformado, muitas vezes com o encorajamento
de patronos pertencentes ao círculo da alta nobreza. Os monges, colocados perante formas de
espiritualidade socialmente poderosas, em que o acento recaía menos na penitência individual do que
na construção colectiva e espectacular de um culto solene orientado para a redenção das almas e para
a captação da graça divina, acabaram por adoptar, ora a regra beneditina — em associação a ideais
cluniacenses de dedicação colectiva, em reclusão, à vida litúrgica —, ora regras de vida comunitária
compatível com o ministério sacerdotal, tardiamente postas sob a autoridade de S. Agostinho
(tornando-se, neste caso, cónegos regrantes).30 Para assegurarem o cumprimento de acrescidas
necessidades musicais, os mosteiros beneditinos adoptaram os modelos melódicos aquitanos
(recebidos através da respectiva diocese ou de canais independentes), mesmo que, na organização
litúrgica, fossem copiados os costumes borgonheses de Cluny.31 Isto implicou a transferência para os
manuscritos portugueses de variantes ou de peças típicas do sudoeste de França, ou ainda de ofícios
comemorativos de santos dessa região, como o de S. Gerardo de Aurillac, parcialmente representado
num fragmento do Arquivo Municipal de Braga, escrito na época do arcebispo S. Geraldo ou pouco
depois (Lâmina V).32 O caso, assinalado por Solange Corbin, de cópia de um breviário notado a partir
de um original cluniacense da Borgonha deve ser visto como uma excepção à regra.33
A notação musical utilizada a partir de finais do século XI foi, naturalmente, a notação aquitana
em torno a uma linha, o que permitia, sabendo-se o modo da peça, a leitura dos intervalos melódicos.
Esta notação foi também a escolhida pelos fundadores do mosteiro de cónegos regrantes de Santa Cruz
de Coimbra, cujos primeiros livros, copiados na década de 1130, reproduziram as variantes melódicas
do mosteiro tomado como modelo, São Rufo de Avignon, na Provença (influenciado pelas tradições
de Lyon). Certas características das práticas litúrgico-musicais dos monges beneditino-cluniacenses e
dos cónegos de Santa Cruz encontram-se descritas respectivamente no Costumeiro de Pombeiro e no
Costumeiro de Santa Cruz, conservados em manuscritos do século XIII, com abundante informação
ainda largamente inexplorada pelos investigadores modernos.34
Dado que alguns dos clérigos aquitanos instalados nas dioceses portuguesas eram oriundos das
regiões de Moissac e de Limoges, divulgou-se desde inícios do século XII um tipo muito especial de
notação aquitana, em que a posição do meio-tom é graficamente diferenciada pelo uso de uma nota

29 José Marques, «A realidade da Igreja no tempo de S. Teotónio», Revista da Faculdade de Letras, nº 7 (1990), pp. 9-34; Manuel Pedro
Ferreira, «Cluny at Fynystere: One Use, Three Fragments», in Terence Bailey & László Dobszay (eds.), Studies in Medieval Chant and Liturgy
in Honour of David Hiley, Ottawa - Budapest: The Institute of Mediaeval Music / Hungarian Academy of Sciences (Institute for Musicology),
2007, pp. 179-228; id., «A música religiosa em Portugal por volta de 1500», in Actas do III Congresso Histórico de Guimarães D. Manuel e
a sua Época, 24 a 27 de Outubro de 2001, Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, Volume II, pp. 203-16; Solange Corbin, La
déposition liturgique du Christ au Vendredi Saint. Sa place dans l’histoire des rites et du théâtre religieux (Analyse de documents portugais),
Paris-Lisboa: Les Belles Lettres – Bertrand, 1960.
30 S. Corbin, Essai..., cit, pp. 62-65.
31 Sobre a dimensão musical do monaquismo cluniacense em Portugal, veja-se M. P. Ferreira, «Cluny at Fynystere», cit.
32 Manuel Pedro Ferreira, «Two Offices for St. Gerald: Braga and Aurillac», in Commemoration, Ritual and Performance: Essays in Medieval
and Early Modern Music, edited by Jane Morlet Hardie with David Harvey, Ottawa: Institute of Mediaeval Music, 2006, pp. 37-52.
33 S. Corbin, Essai..., cit, pp. 137, 177-78.
34 Biblioteca Pública Municipal do Porto, mss. 578 e 366 (S. Cruz 71).
Manuel Pedro Ferreira

19
simples inclinada; com o tempo, esta variedade, desaparecida na Aquitânia, contaminou a forma das
figuras notacionais conjuntas ou ligadas e, nessa forma evoluída, tornou-se típica do espaço nacional,
merecendo modernamente a designação de «notação portuguesa», cunhada pela eminente paleógrafa
francesa Solange Corbin (Lâminas VII e VIII).35 Entre as mais antigas peças conservadas em Portugal
apontadas de acordo com o primitivo sistema aquitano, mencione-se a Epístola tropada para a Missa
do Galo, referida mais acima (Figura 2, Lâmina VI, Antologia, nº 5, e respectiva gravação).36

Figura 2: Epístola a Tito no Missal de Mateus


(Arquivo Distrital de Braga, ms. 1000, fol. 8r): pormenor [Antologia, nº 5, e CD 2, faixa 4]

Já na Galiza, como na generalidade das outras regiões ibéricas, a notação aquitana divulgou-se através
de variedades mais correntes. A liturgia de Santiago de Compostela, o mais importante destino de
peregrinação da Europa de então, tornou-se devedora de tradições não só do sul-sudoeste como do centro
de França, incorporando ainda algumas sobrevivências hispânicas e influências de outras regiões; o clero
local procurou, com o uso de tropos e de prosas, uma certa prolixidade, correspondente à vontade de
impressionar o peregrino com um grande espectáculo em que, num espaço excepcionalmente vasto
e rico de simbologia, confluíam verbo, melodia e movimento coreografado. No Codex Calixtinus

35 S. Corbin, Essai..., cit., pp. 233-65 e lâminas; Marie-Noël Colette, «La notation du demi-ton dans le manuscrit Paris, B. N. Lat. 1139 et
dans quelques manuscrits du Sud de la France», in La Tradizione dei Tropi Liturgici, ed. C. Leonardi & E. Menesto, Spoleto: Centro Italiano
di Studi sull’Alto Medioevo, 1990, pp. 297-311 e lâminas; João Pedro d’Alvarenga, «Breves notas sobre a representação do meio-tom nos
manuscritos litúrgicos medievais portugueses, ou o mito da ‘notação portuguesa’», in Manuel Pedro Ferreira (coord.), Canto sacro medieval:
do Japão a Portugal, Lisboa: Colibri, 2008 (no prelo).
36 Joaquim Oliveira Bragança, Missal de Mateus: Manuscrito 1000 da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga, Lisboa: Gulbenkian,
1975, pp. 16-17 (só texto). Cf. Analecta Hymnica, vol. 49, nº 385; facsímile in Monodia Sacra Medieval. [Programa do] Colóquio Internacional,
2-5/6/2005, Lisboa: CML, 2005, p. 35; Susana Zapke (ed.), Hispania Vetus, Bilbao: Fundación BBVA, 2007, p. 411.
Antologia de Música em Portugal

20
conservado em Compostela — conhecido não só pelo Guia do Peregrino nele incluído, mas também
por um importante suplemento polifónico originado além-Pirenéus no terceiro quartel do século
XII — foi acrescentado, em notação aquitana, o cântico Dum paterfamilias; este versus devocional
de carácter didáctico, que testemunha a importância da peregrinação local como foco de produção
cultural nas primeiras décadas desse século, cita, no seio de um texto latino que se rege, de estrofe
para estrofe, por um diferente caso gramatical, uma canção de peregrinos com expressões de raiz
germânica («Herru sanctiagu, got sanctiagu, e ultr’eia, e sus’eia, deus aia nos»), sobre cuja melodia
parece ter sido modelado o refrão (Antologia, nº 4).37
Com a chegada triunfal, em meados do século XII, da Ordem de Cister, purista tanto na interpretação
da Regra de S. Bento como na prática do canto litúrgico, foi importada e disseminada no ocidente da
Península uma versão sistematicamente depurada e bastante particular das melodias gregorianas e
um hinário pretensamente restaurado, parcialmente inspirado na antiga tradição milanesa; a notação
musical usada em Alcobaça até ao início do século XIII (formas basicamente francesas, contaminadas
pela notação da Lorena, com uso de virga para assinalar início de palavra em passagens de recitação,
escritas sobre pauta guidoniana: veja-se a Lâmina IX) é sintomática da filiação em Clairvaux dos
mosteiros cistercienses portugueses (extensiva a quase todos os mosteiros galegos, em contraste com
o sucedido em Leão, onde Cîteaux estabeleceu o importante mosteiro de Carracedo, ou em Castela,
dominada por Morimond)38.
Conserva-se, disseminado pelo espaço nacional e até, excepcionalmente, fora dele, um rico
património manuscrito oriundo de Alcobaça, de que se destacam os livros de coro copiados por
volta de 1200 (embora geralmente identificados como manuscritos mais tardios). Entre estes, os mais
espectaculares, devido ao tratamento artístico das iniciais, são os que se conservam no Mosteiro de
Arouca (Lâmina IX).39 O repertório cisterciense foi posteriormente apropriado (em medida ainda
a determinar) pelas ordens militares de Aviz e de Cristo e integralmente adoptado pelos mosteiros
femininos de Lorvão e Arouca, refundados com patrocínio real nas primeiras décadas do século XIII.
Num antifonário cisterciense usado em Arouca conserva-se um hino a S. Bernardo a duas vozes datável
em torno a 1225, composição original de sabor arcaico que constitui o único exemplo conhecido de
escrita polifónica em Portugal anterior a 1400; este hino é ainda, juntamente com uma peça catalã, um

37 Manuel C. Diaz y Diaz, El Códice Calixtino de la Catedral de Santiago: Estudio codicológico y de contenido, Santiago de Compostela:
Centro de Estudios Jacobeos, 1988, pp. 187-95; transcrição analítica e comentário in Manuel Pedro Ferreira, «Som mudo no Cancioneiro
da Ajuda», a publicar nas Actas do Colóquio Cancioneiro da Ajuda, 1904-2004 (Lisboa, 11-13 de Novembro de 2004), coordenadas por
Teresa Amado e Maria Ana Ramos.
38 Maur Cocheril, «L’implantation des abbayes cisterciennes dans la Péninsule Ibérique», Anuario de Estudios Medievales, I (1964),
pp. 217-81. Chamei a atenção, de passagem, para as particularidades notacionais oriundas de Clairvaux no «Relatório preliminar sobre
o conteúdo musical do Fragmento Sharrer», in Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Volume I, Lisboa:
Edições Cosmos, 1991, pp. 35-42; o assunto merece um tratamento mais particularizado. Sobre a reforma musical cisterciense e os seus
testemunhos manuscritos, veja-se Manuel Pedro Ferreira, «La réforme cistercienne du chant liturgique revisitée: Guy d’Eu et les premiers
livres de chant cisterciens», in Revue de Musicologie, Tome 89 (2003), nº 1, pp. 47-56, e a bibliografia citada nas notas.
39 Estes livros incluem os dois antifonários mais antigos de Arouca, o antifonário do mosteiro de Las Huelgas (Burgos), o gradual de
Lorvão (hoje na Torre do Tombo, Lorvão 15, C. F. 102) e um antifonário da Biblioteca Nacional em Lisboa, Iluminados 115. A minha
proposta de datação tem em conta não só o estilo, visto no contexto da tradição manuscrita cisterciense, como as actualizações litúrgicas
introduzidas por notas marginais e acrescentos vários, cuja correcta interpretação requer o conhecimento seja da evolução do calendário
cisterciense de acordo com as decisões do Capítulo Geral, seja do funcionamento interno da Ordem, que exigia total conformidade
litúrgica e previa mecanismos para a rápida disseminação e aplicação das directivas centrais. Para além do antifonário conservado em
Burgos —provavelmente para aí levado por Dona Branca, abadessa de Lorvão, em 1305, altura em que se tornou senhora e protectora de
Las Huelgas — existe na British Library, em Londres, um Diurnal sem notação musical datável de 1260, que em 1811 se encontrava em
Alcobaça, embora tenha sido escrito para o mosteiro de Lorvão.
Manuel Pedro Ferreira

21
dos dois mais antigos testemunhos de polifonia ibérica (pois o conteúdo do suplemento polifónico
do Codex Calixtinus é de origem francesa, e os manuscritos castelhanos de Ars Antiqua, que incluem
algumas peças locais, algo posteriores), e também, juntamente com um manuscrito de origem suíça,
um dos dois mais antigos testemunhos de uma faceta pouco conhecida dos cistercienses de então, o
uso de polifonia simples (Figura 3, Lâmina XII, Antologia, nº 19, e respectiva gravação).40
Num manuscrito alcobacense de c. 1200 encontra-se uma cópia parcial do célebre Codex
Calixtinus de Compostela, incluindo o versus Salve festa dies Iacobi para a festa de Santiago no dia
25 de Julho e o hino Ad honorem regis summi, de Aimeric Picaud, recentemente identificado como
uma peça polifónica a duas vozes, pois estas foram apontadas sucessivamente, em vez de terem sido
sobrepostas como era então habitual (Antologia, nº 18, e respectiva gravação).41 A cópia não inclui
a notação musical, mas permanece a possibilidade de que a música tenha circulado oralmente. Num
processional de inícios do século XIV, pertencente a Alcobaça, vemos que aí eram cantadas em honra
da Virgem Maria a prósula de ofertório Ab hac familia e dois tropos do Ordinário da Missa, Rex
virginum amator e Spiritus et alme, o que revela a penetração pontual entre os cistercienses de formas
de culto musicalmente prolixas, justificadas pela crescente importância na vida religiosa portuguesa
da piedade mariana.42 Na mesma época, um monge alcobacense transcreveu o poema goliárdico
In terra summus rex est hoc tempore nummus («Na terra o rei supremo, nos tempos de hoje, é o
dinheiro»), que também aparece nas Carmina Burana [CB 11]; não é de excluir que este texto de
crítica moral (que não poupa os clérigos) possa ter sido apreciado em Alcobaça como canção.43

Figura 3: Hino a S. Bernardo no antifonário de Arouca


(Museu de Arte Sacra, ms. 25, folha de guarda): pormenor [Antologia, nº 19, e CD 1, faixa 6]

40 Manuel Pedro Ferreira, «Early Cistercian Polyphony: A Newly-Discovered Source», in Lusitania Sacra, 2ª série, Tomo XIII-XIV (2001-
2002), pp. 267-313.
41 André Moisan, Le Livre de Saint Jacques ou Codex Calixtinus de Compostelle. Étude critique et littéraire, Genève: Editions Slatkine,
1992, pp. 83-104; David Hiley, «Two unnoticed pieces of medieval polyphony», Plainsong & Medieval Music, 1 (1992), pp. 167-73.
42 Cf. Joaquim O. Bragança, Processional tropário de Alcobaça, Lisboa: Instituto Gregoriano, 1984, e respectiva recensão por Ritva
Jacobsson in Cahiers de Civilisation Médiévale, 31(1988), pp. 382-84. Sobre a permanência de tropos marianos em Alcobaça no século XV,
veja-se S. Corbin, Essai..., cit., p. 186.
43 Mário Martins, «O fragmento goliárdico do cód. Alc. 34», in id., Estudos de Cultura Medieval, vol. II, 2ª ed., Lisboa: Brotéria, 1980,
pp. 95-103.
Antologia de Música em Portugal

22
A notação quadrada convencional (que é a versão gótica, sobre pauta, da pura notação francesa)
foi usada entre nós, numa primeira fase, essencialmente por frades franciscanos e dominicanos, a
partir do século XIII. As versões melódicas acolhidas pelas ordens franciscana e dominicana são
contudo diferentes: a primeira segue os livros da Cúria romana, enquanto a segunda está próxima das
melodias reformadas cistercienses, atenuando-lhes o radicalismo revisionista. É raro encontrar-se um
exemplo de notação que use pequenos pontos quadrados ou pauta traçada a linha seca (Lâmina X).
A notação quadrada não se generalizou em Portugal senão no ocaso do século XV, e veio a suplantar
definitivamente a notação aquitana (então quase sempre da variedade «portuguesa») só no decurso
do século XVI. Mas a marca musical das ordens mendicantes não se restringiu à circulação de versões
italo-francesas das melodias gregorianas, apresentadas numa notação em vias de se tornar dominante.
Os franciscanos, ao incorporarem mais de cento e cinquenta «prosas» (sequências) nos seus Missais,
contribuíram para dar um novo ímpeto ao «prosário», que aparece também representado, com cerca de
quarenta peças, nos manuscritos dominicanos conservados entre nós; entre estes, destacam-se a série
de livros de coro e de processionais copiada em Aveiro entre 1483 e 1490, e os cerca de trinta códices
quinhentistas existentes na Biblioteca Nacional em Lisboa.44 O encorajamento e enquadramento da
piedade popular urbana, organizada através de confrarias laicas (irmandades cristãs), foi também
uma marca das ordens mendicantes. No final da Idade Média, contavam-se em Portugal centenas de
confrarias, concentradas nos núcleos urbanos, tendo como objectivos a entreajuda, o convívio e o culto
religioso. De 1234 em diante, os confrades do Espírito Santo de Benavente distribuíam anualmente
esmolas aos pobres, andando pelas igrejas a cantar alegremente com pandeiros; nos funerais, fosse
durante o transporte do corpo entre a casa e a igreja, fosse depois da sepultura, deviam cantar e saltar,
para contrariar a tradição pagã do pranto fúnebre. A participação popular no culto mariano também
se desenvolveu; por exemplo, em 1346, os Fiéis de Deus comprometeram-se a celebrar juntos, todos
os sábados pela manhã, uma missa na Igreja de Santa Maria, em Sintra, e a dizer, depois da missa, «a
Salve regina cantada e os versos de Santa Maria e depois hũu rresponso cantado por os passados».45

44 S. Corbin, Essai..., pp. 166-69, ‘Classement des Manuscrits’; id., «L’office de la conception de la Vierge, (à propos d’un manuscrit du
XVème siècle, du monastère dominicain d’Aveiro, Portugal)», Bulletin des Etudes Portugaises, vol. 13 (1949), pp. 105-66; Arménio Alves da
Costa Júnior, «Mosteiro de Jesus de Aveiro. Tesouros musicais: ofícios rimados e sequências nos códices quatrocentistas», Dissertação de
doutoramento, Universidade de Aveiro (Secção Autónoma de Comunicação e Arte), 1996, 2 vols.; Michel Huglo, «Production ‘en série’ de
livres liturgiques. L’exemple des processionaux datés d’Aveiro», Gazette du livre médiéval, nº 47 (Automne 2005), pp. 14-20; Manuel Pedro
Ferreira, «Um fragmento de Alcobaça, o canto dos pregadores e os seus livros de coro na Biblioteca Nacional» (em preparação).
45 Cf. Maria Ângela Rocha Beirante, Confrarias medievais portuguesas, Lisboa: edição do autor, 1990, pp. 29, 40, 42.
Manuel Pedro Ferreira

a canção de gesta e o romance tradicional 23

A escrita da música foi durante muito tempo apanágio de uma pequena parte do clero, que dela se
servia apenas para fixar o repertório religioso mais valorizado e de mais difícil aprendizagem. Grande
parte da música, incluindo a música religiosa, permanecia no domínio da tradição oral. O mesmo
sucedia, entre a comunidade judaica portuguesa, com a música do culto, de que restam vestígios que
talvez venham a permitir que se forme uma imagem hipotética de arquétipos musicais anteriores à
expulsão.46 Neste contexto, compreende-se que a música profana, até bem avançado o século XIII, não
tenha deixado vestígios documentais directos (e mesmo então, só excepcionalmente). Das canções
de gesta medievais em língua românica, sabemos que eram poemas narrativos de grande extensão
dispostos em versos longos com rima única, cantados sobre uma fórmula melódica repetida, que
se vulgarizaram a partir do século XI. É uma tradição épica oriunda dos reinos cristãos, embora
houvesse também cantares épicos em árabe, cuja influência sobre a canção de gesta, a ter existido,
deixou poucos traços inequívocos.47 Em Portugal, poderá ter havido uma gesta relativa a episódios da
vida de D. Afonso Henriques, na qual os moçárabes de Coimbra terão inserido um episódio anterior
referente à tensão entre a igreja local, protegida por D. Sesnando, e os defensores da introdução do
rito romano-franco. António José Saraiva reconstituiu especulativamente uma parte dessa canção:

«O apostóligo ouviu dizer | como sa madre prendia


E como [Dom Alfonso] | consigo presa a trazia.
E mandou-lhe dizer | pelo bispo de Coimbra
Que a sacasse de prisom | senom que o escomungaria.
Ele disse que por nenhũu | a non sacaria.
E o bispo escomungou-o | e de noite se partia.»48

Tendo ou não existido uma épica de temática local, o que é certo é que os romances tradicionais
(ou «rimances»), constituídos a partir da fragmentação dos cantares de gesta de origem francesa
ou ibérica (processo que se deu antes de 1350, talvez já no século XIII), se ambientaram em
território nacional. Segundo Diego Catalán, romance é «um breve poema épico destinado ao canto
e transmitido e reelaborado pela tradição oral». Dos romances que passaram de geração em geração,
grande parte é anterior a 1500 e inclui narrativas claramente medievais, com temas carolíngios e
de história peninsular.49 Mas se o assunto pode, nestes casos, ser situado no tempo, a melodia com

46 Esta tarefa deverá ter em conta os valiosos materiais apresentados e analisados no livro de Hervé Roten, Les traditions musicales judéo-
portugaises en France, Paris: Maisonneuve & Larose, 2000.
47 H. T. Norris, «Arabic Folk Epic and Western Chanson de Geste», Oral Tradition, 4 (1989), pp. 125-50; Samuel G. Armistead, «An
Anedocte of King Jaume I and its Arabic Congener», in Cultures in Contact in Medieval Spain, ed. D. Hook & B. Taylor, London: King’s
College [Medieval Studies, III], 1990, pp. 1-8.
48 António José Saraiva, A épica medieval portuguesa, Lisboa: ICLP, 1979, pp. 40, 81-82; id., A cultura em Portugal: Teoria e História, Livro
II. Primeira Época: A Formação, Lisboa: Bertrand, 1983, pp. 129-32, 160-61. O autor propõe duas reconstituições ligeiramente diferentes; a
versão aqui apresentada tem em conta o conjunto dos materiais apresentados por Saraiva.
49 Sobre este assunto veja-se, por exemplo, o excelente livro de João David Pinto-Correia, Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa.
Apresentação crítica, antologia e sugestões para análise literária, Lisboa: Edições Duarte Reis, 2003.
Antologia de Música em Portugal

24
que um romance histórico se canta serve frequentemente outras narrativas mais modernas ou de
carácter novelesco, e pode ser substituída por outra, pelo que é imprudente supôr que se manteve a
mesma ao longo de séculos. A análise musical permite, no entanto, e independentemente da temática
narrativa, isolar casos em que a melodia, ou o conjunto formado por melodia e estilo de execução,
remontam seguramente a modelos pré-renascentistas.50 Nesse sentido, pode dizer-se que o romanceiro
tradicional, como aliás outros tipos de canção transmitidas pela tradição oral, é repositório de estilos
musicais que ecoam sonoridades vigentes nos primeiros séculos da nacionalidade.

50 Cf. Thomas Binkley & Margit Frenk, Spanish Romances of the Sixteenth Century, Bloomington: Indiana University Press, 1995, pp. 9-15.
Estas ideias foram por mim exploradas num trabalho ainda inédito, «O arcaísmo na música tradicional» (versão revista da comunicação
apresentada em Abril de 1997 no VIII Encontro Nacional de Musicologia sob o título ‘Música tradicional e música medieval: alguns pontos
de contacto’) e no artigo «Para uma arqueologia melódica do Romanceiro de Alcácer-Quibir», in Kelly B. Basílio (org.), Romances de Alcácer
Quibir, Lisboa: Colibri, 2007, pp. 201-6.
Manuel Pedro Ferreira

a cantiga trovadoresca 25

No século XIII, a Península Ibérica compreendia uma série de entidades políticas diversas, com
fronteiras em rápida mutação e frequentemente em conflito entre si. O norte cristão encontrava-se
em expansão territorial, à custa dos reinos muçulmanos do sul; compreendia os reinos de Portugal,
Leão (que incluía a Galiza, e se uniu a Castela em 1230), Castela, Navarra (governado por uma família
de origem francesa a partir de 1234) e Aragão, que em 1137 havia absorvido o Condado da Catalunha
(ligado ao sul de França por laços linguísticos e religiosos). A cantiga em língua galego-portuguesa
foi cultivada em Portugal, Leão e Castela, embora inicialmente também envolvesse Navarra. Como
nota o Marquês de Santillana em 1449, «. . . en los Reinos de Gallizia e de Portugal . . . no es de dubdar
qu’el exerçiçio d’estas sçiençias [poeticas] más que en ningunas otras regiones e provinçias de la España
se acostunbró en tanto grado que non ha mucho tienpo qualesquier dezidores e trobadores d’estas partes,
agora fuessen castellanos, andaluzes o de la Estremadura, todas sus obras conponían en lengua gallega
o portuguesa . . .»51
As origens dessa lírica permanecem envoltas nalgum mistério. O papel da Galiza, da corte de Leão
e de outros círculos aristocráticos na emergência do canto trovadoresco que nos está mais próximo
não estão inteiramente esclarecidos. Pode plausivelmente imaginar-se que no noroeste, magnetizado
pelo poder de atracção e irradiação de Compostela, se tenha desenvolvido, ao longo do século XII,
uma tradição de composição de canções seculares na língua vernácula da região (o Galego-Português),
enraizada na canção tradicional. Os jograis encarregar-se-iam de divulgar estas cantigas ao longo das
principais vias de comunicação do norte da Península, incluindo a cidade de Leão. Ora, a partir de
1135, trovadores aquitano-provençais e catalães começaram a visitar com frequência as cortes reais e
senhoriais situadas na proximidade do principal «caminho de Santiago», que servia, ao longo da faixa
norte da península, a peregrinação a Compostela. O casamento de Alfonso VIII de Leão com Leonor
de Inglaterra (filha de Leonor da Aquitânia) em 1170 aumentou decerto a influência do elemento
occitânico nos círculos aristocráticos. No final do século, uma adaptação da canção cortês de registo
mais elevado começou a ser cultivada por nobres castelhanos e portugueses ligados à corte de Leão; a
primeira cantiga conhecida, composta por Johan Soarez de Paiva, foi datada de 1196.52 No início do
século XIII, os diferentes géneros de cantiga privilegiados fosse pelo jogral galego, fosse pelo senhor
feudal ibérico, tinham convergido numa forte tradição lírica, com a sua dupla vertente de cantiga
d’amor (aristocrática) e cantiga d’amigo (jogralesca). Esta tradição viria pouco depois a encontrar
um crescente encorajamento por parte dos reis de Leão e Castela e de Portugal, em cujas cortes se
desenvolveria ainda a cantiga de escárnio e maldizer (canção satírica, por vezes obscena).53

51 «Prohemio e carta qu’el Marqués de Santillana enbió al Condestable de Portugal», in Maxim P. Kerkhof & Ángel Gómez Moreno,
Marqués de Santillana: Poesías completas. Edición, introducción y notas de —, Madrid: Castalia, 2003, pp. 653-54.
52 Datação ultimamente confirmada por José Carlos Miranda, Aurs mesclatz ab argen. Sobre a primeira geração de trovadores galego-
portugueses, Porto: Guarecer, 2004, p. 42.
53 Para outras perspectivas sobre o problema das origens, veja-se, por exemplo, António Resende de Oliveira, «A caminho da Galiza.
Sobre as primeiras composições em galego-português», in O cantar dos trobadores: Actas do Congreso, Santiago de Compostela: Xunta de
Galicia, 1993, pp. 249-61; Giuseppe Tavani, Unha Provenza hispánica. A Galicia medieval, forxa da poesía lírica peninsular, A Coruña: Real
Academia Galega, 2004.
Antologia de Música em Portugal

26
A cantiga d’amor é o género mais cultivado e valorizado pelos trovadores galego-portugueses.
Na elegante formulação de Celso Cunha, recebiam este nome as poesias «que se aproximavam,
no fundo e na forma, da cansó occitânica e nas quais o poeta exprimia os sentimentos amorosos
pela dama cortejada falando em seu próprio nome, em contraposição às cantigas ou cantares
de amigo, em que era ela quem falava, ou melhor, quem o trovador fazia falar». Esta definição é
conforme ao ensinamento do tratado de poética que abre o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de
Lisboa: «se eles falam na prima cobra [estrofe] e elas na outra, [a cantiga é d’] amor . . . e, se elas
falam na primeira cobra, é outrossi d’amigo». Na prática, porém, bastava a presença nos primeiros
versos do poema de uma palavra-chave convencional — no caso da cantiga de amor, a palavra
«senhor» — para que o género da composição fosse imediatamente identificado pelo ouvinte
educado na tradição trovadoresca. Embora decisivamente influenciada pela canso occitânica, a
cantiga d’amor é em geral mais curta e inclui, em cerca de metade dos casos, um refrão (o que não
sucedia além-Pirenéus). Por vezes acrescenta-se, depois da última estrofe, um ou mais versos de
conclusão, a «fiinda».54
Na tradição lírica galego-portuguesa, a cantiga de amigo é reconhecível pela presença, nos primeiros
versos de um texto, de uma ou mais palavras-chave, como amigo (= namorado), moça (= donzela
enamorada), madre (= mãe da donzela) e irmana (= confidente da donzela). Estas palavras-chave
remetem, por convenção, a um guião dramático em que, invariavelmente, uma jovem apaixonada
suspira pelo amigo ausente, tecendo a propósito as mais variadas fantasias. O texto consta, em geral,
de um monólogo supostamente ingénuo posto nos lábios da moça enamorada, no qual é frequente a
invocação de confidentes femininos ou de entidades impessoais de natureza vária. O desenvolvimento
poético socorre-se frequentemente de uma técnica conhecida pelo nome de «paralelismo», segundo a
qual cada ideia, apresentada ao longo de dois versos, é desdobrada em duas redacções paralelas, do que
resulta um conjunto de quatro versos, em que os versos pares, tal como os ímpares, são semanticamente
equivalentes:

Ai ondas que eu vin veer,


se me saberedes dizer

Ai ondas que eu vin mirar,


se me saberedes contar

Tanto os versos pares como os ímpares contêm um segmento que se repete («base») e outro que
varia («coda»). No exemplo considerado — uma das cantigas atribuídas a Martin Codax — os dísticos
requerem, gramaticalmente, um complemento, que é providenciado pelo refrão:

porque tarda meu amigo sen min?

54 Cf. Manuel Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval. Coimbra, 1981; Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos,
A Lírica Galego-Portuguesa, Lisboa, 1983; Giuseppe Tavani, (ed.), Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa,
Edições Colibri, 1999.
Manuel Pedro Ferreira

27
Mais de noventa por cento das cantigas de amigo cujo texto se conserva — perto de quinhentas —
apresentam um estribilho; este nem sempre desempenha, do ponto de vista do conteúdo poético, um
papel relevante.55
Ao todo, sobreviveram cerca de 1680 poemas seculares galego-portugueses, aos quais poderão
ser acrescentadas as famosas Cantigas de Santa Maria (canções devocionais à Virgem, também em
Galego-Português) compiladas sob a orientação pessoal de Alfonso X, o Sábio. Para além de quatro
centenas de cantigas marianas, só seis cantigas d’amigo de Martin Codax e sete cantigas d’amor de
Dom Dinis sobrevivem com notação musical, respectivamente no Pergaminho Vindel (conservado
em Nova Iorque) e no Pergaminho Sharrer (conservado em Lisboa). Na Biblioteca do Palácio da
Ajuda, também em Lisboa, conserva-se o Cancioneiro da Ajuda, escrito no tempo de Dom Dinis e
que recolhe muitas cantigas d’amor; este manuscrito foi preparado para receber notação musical, mas
permaneceu incompleto, com os espaços para a música deixados em branco. Apesar disso, é possível
retirar deste códice valiosa informação, quer sobre a relação entre o texto e a articulação melódica
(revelando o uso judicioso que certos trovadores faziam do estilo neumático ou melismático), quer
sobre a circulação de cópias manuscritas de cantigas profanas com notação musical (sugerindo que
foi iniciada em Portugal, sob D. Afonso III, o qual viveu longamente em França em contacto com
trouvères).56 É também um valioso testemunho sobre a presença de instrumentos musicais (não
necessariamente associados à execução das cantigas) no meio trovadoresco galego-português; a
esmagadora maioria dos representados no Cancioneiro são cordofones: a cítola, o saltério, a viola de
arco e a harpa.57
Os autores galego-portugueses fazem, nos seus poemas, diversas referências à música; os
comentários são claramente centrados na voz. Mostram desprezo por cantores que berram («o jograr
braadador / que nunca bon son disse») ou têm a voz rouca, como um tal Fernando, em tempos com
muito boa voz, «que perdeu con mal sen,/ voz de cabeça, que xi lhi tolheu,/ ca fodeu tanto que lh’
enrouqueceu / a voz, e ora já não canta ben».58 Os trovadores são, pelo contrário, adeptos de uma
voz suave, com ressonâncias de cabeça;59 valorizam, para além disso, a expressividade emocional
do canto.60 Estes valores estéticos estão de acordo com o defendido por muitos autores medievais,
quando se pronunciam sobre o canto eclesiástico. Assim, S. Isidoro diz que o salmista não deve ter
voz áspera, rouca, ou discordante, mas canora, suave, clara e também aguda; a sua interpretação deve

55 Giuseppe Tavani, A Poesia Lírica Galego-Portuguesa, Lisboa, 1990.


56 Manuel Pedro Ferreira, «The Layout of the Cantigas: a Musicological Overview», in Galician Review [University of Birmingham]
2 (1998), pp. 47-61; id., «O rasto da música no Cancioneiro da Ajuda», in O Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois: Actas do Congreso,
Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 2004, pp. 185-210; id., «Som mudo no Cancioneiro da Ajuda», cit.
57 Manuel Pedro Ferreira, Cantus Coronatus — Sete cantigas d’amor d’El-Rei Dom Dinis, Kassel: Reichenberger, 2005, pp. 22-24, 38-48,
150-53, e ilustrações. As fontes iconográficas medievais de temática musical foram ainda pouco interrogadas em Portugal; veja-se agora o
valioso guia de Luís Correia de Sousa, «Catalogus. Portuguese sources for medieval musical iconography», in Imago musicae. International
Yearbook of Musical Iconography, XXI-XXII (2004/05), Lucca: Libreria Musicale Italiana, 2006, pp. 65-103.
58 Martin Soarez, «Foi a cítola temperar» (B 1363/V 971): Manuel Rodrigues Lapa, Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros
medievais galego-portugueses, 3ª edição, Lisboa: Sá da Costa, 1995, nº 293, e Valeria Bertolucci Pizzorusso, As Poesías de Martin Soares, Vigo:
Galaxia, 1992, nº 40; Pero Garcia Burgalês, «Fernand’ Escalho vi eu cantar ben» (B 1377/ V 985): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 379.
59 Estevan Coelho, «Sedia la fremosa seu sirgo torcendo» (B 720/V 321) e Lourenço, «Unha moça namorada» (B 1261/V 866): voz
manselinha. Cf. José Joaquim Nunes, Cantigas d’Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses, Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973, nºs 155,
473; Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, A Lírica Galego-Portuguesa, Lisboa: Editorial Comunicação, 1984, nº 94; Rip Cohen, 500 Cantigas
d’Amigo. Edição crítica de — , Porto: Campo das Letras, 2003, pp. 207, 495. Pero Garcia Burgalês, «Fernand’ Escalho vi eu cantar ben» [ver
nota anterior]: voz de cabeça.
60 Lourenço, «Unha moça namorada» [ver nota anterior]: cantava mui de coraçon; Juião Bolseiro, «Fez unha cantiga d’amor» (B 1173/ V
779): fez unhas lirias no son / que mi sacan o coraçon. Cf. Nunes, Cantigas d’Amigo, nº 402; Cohen, 500 Cantigas, p. 408.
Antologia de Música em Portugal

28
inspirar o ouvinte e reflectir o conteúdo do texto, pois, como reafirmam os tratados Musica enchiriadis
(séc. IX) e Micrologus (c. 1030), convém que o efeito da canção imite o afecto do evento cantado, de
modo que as melodias sejam graves nas coisas tristes, alegres nas serenas, exultantes nas auspiciosas,
etc.61 Do ponto de vista do trovador, o jogral devia ser gracioso, ter boa voz e boa memória, para além
de ser ajuizado.62 Para este, era motivo de orgulho ter um vasto repertório, cantar bem e sem falhas e
ser bom servidor;63 podia, contudo, ser-lhe também requerido o pleno domínio de um instrumento
de corda, como parecem implicar os seguintes versos de D. Fernán Páez de Talamancos: «Jograr Saco,
non tenh’eu que fez razon / quen vos pôs nome jograr e vos deu don; / pois que vós non citolades
nulha ren; / ... Quen a vós chamou jograr a pran mentiu, / ca vej’ eu que citolar non vos oíu».64

61 S. Isidoro, De Ecclesiasticis officiis, cit., I:5, I:14, II:12; Anónimo, Musica enchiriadis, cap. XIX; Guido d’Arezzo, Micrologus, cap. XV. Cf.
Don Harrán, Word-Tone Relations in Musical Thought. From Antiquity to the Seventeenth Century, Neuhausen/Stuttgart: Hänssler Verlag,
1986, pp. 45-61.
62 Gil Pérez Conde, «Jograr, tres cousas avedes mester» (B 1515): doair’ e voz e aprenderdes ben, / ... seer [de bon] sen. Cf. Carolina
Michaëlis de Vasconcelos (ed.), Cancioneiro da Ajuda, Vol. II, Halle: Max Niemeyer, 1904 (reimpr. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1990), p. 653; Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 151.
63 Picandon (tenção com Johan Soarez Coelho), «Vedes, Picandon, soo maravilhado» (V 1021): ca eu sei canções muitas e canto ben /e
guardo-me de todo falimen /e cantarei, cada que me mandardes. Cf. Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 241.
64 D. Fernan Páez de Talamancos, «Jograr Saco, non tenh’eu que fez razon» (B 1334/V 941): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 132.
Manuel Pedro Ferreira

os instrumentos na lírica trovadoresca 29

Embora os instrumentos apareçam, nos poemas como na iconografia, associados a jograis, só


podemos especular sobre a sua relação com o canto. Não há, de facto, qualquer indicação explícita
de que a cantiga trovadoresca galego-portuguesa fosse, por regra, acompanhada por um ou mais
instrumentos.65 Assim, numa tenção entre o jogral Lourenço e João Garcia de Guilhade, este
dirige-se ao primeiro do modo que segue: «Lourenço jograr, ás mui gran sabor / de citolares, ar
queres cantar; / des i filhas-te log’ a trobar / e tẽes-t’ ora já por trobador; / e por tod’esto ũa ren
ti direi: / Deus me cofonda, se oj’eu i sei / d’estes mesteres qual fazes melhor»66, ou seja, «Jogral
Lourenço, gostas imenso de tocar [o citolão], e ainda queres cantar; vai daí, aplicas-te logo a trovar,
e julgas-te imediatamente um trovador; por tudo isto, dir-te-ei uma coisa: Deus me confunda, se
eu souber em qual destas ocupações és mais competente». Note-se que tocar e cantar aparecem
como duas actividades profissionais separadas, estando o canto ligado à composição; João Garcia
põe retoricamente em dúvida que os dois «mesteres» possam coexistir na mesma pessoa sem que
a qualidade seja afectada, com a implicação de que o jogral se deve contentar com a execução, sem
querer competir com os trovadores.
Numa cantiga de maldizer, Martin Soarez (cuja veia satírica se pode apreciar, sonorizada, na Antologia,
nº 10) escarnece do jogral Lopo de forma análoga: «vás no citolon rascar, / des i filhas-t’a cantar»67; estes
versos podem ser interpretados como descrevendo duas acções não simultâneas: «esfregas na viola,
e em seguida pões-te a cantar», o que implicaria não apenas duas actividades, mas dois momentos
ou actos sociais separados. Uma outra cantiga do mesmo autor confirma esta interpretação; começa
assim: «Foi a cítola temperar / Lopo, que citolasse; / e mandaron-lh’ algo dar, / en tal que a leixasse; /
e el cantou logu’ enton, / e ar deron-lh’ outro don, / en tal que se calasse»68, ou seja, «Foi Lopo afinar
a cítola, [disseram-lhe] que tocasse; mandaram compensá-lo, para que a deixasse; então pôs-se logo a
cantar; vai daí pagaram-lhe de novo, para que se calasse». A acção de tocar e aquela de cantar aparecem
sucessivamente, e não em simultâneo.
Embora a intenção destes poemas ao contrapôr a identidade de instrumentista à de cantor seja
satirizar a competência dos jograis e sobretudo a sua pretensão artística, o seu conteúdo é compatível
com a ideia de que o canto trovadoresco peninsular em meados do século XIII não era, por regra,
acompanhado por um instrumentista, embora pudesse ser enquadrado (através de prelúdios, e
talvez de outras intervenções) por música instrumental, no que seguiria a mesma orientação geral da
tradição trovadoresca de além-Pirenéus até aos inícios desse século. No entanto, o carácter jogralesco
da cantiga d’amigo, o crescente reconhecimento dos géneros popularizantes, a ligação de D. Afonso
III ao norte de França e o desenvolvimento da prática instrumental na segunda metade do século XIII

65 O que segue retoma e resume a discussão do tema já tratado in Manuel P. Ferreira, Cantus coronatus, cit., pp. 16-48
66 Joan de Guilhade e Lourenço, jograr, «Lourenço jograr, ás mui gran sabor» (B 1493/V 1104): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 218.
67 Martin Soarez, «Lopo jograr, és garganton» (B 1365/V 973): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 295; Pizzorusso, As Poesías, nº 40.
68 Martin Soarez, «Foi a cítola temperar» (B 1363/V 971), ed. Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 293; Pizzorusso, As Poesías, nº 38.
Antologia de Música em Portugal

30
permitem pensar noutras possibilidades, já que o gosto e as práticas interpretativas eram mutáveis.69
Entre os instrumentos musicais nomeados na lírica profana galego-portuguesa, encontramos só
dois nomes de instrumentos de corda: «cítola» e «citolon». «Cítola» é a forma galego-portuguesa
do latim cithara, como poderá ser ilustrado pela versão do versículo 4:21 do Genesis colhida num
texto medieval alcobacense: «[Gabel] ouve outro Irmaão, que havia nome Tubal, que achou arte de
cantar em cítola, e em orgom».70 O termo «cítola» é aqui a designação genérica dos instrumentos
de corda, tal como «orgom» designa genericamente os instrumentos de vento. Na tradição latina
representada, literariamente, pelas Etimologias de Isidoro de Sevilha e, escultoricamente, pelo Pórtico
da Catedral de Santiago de Compostela, cithara refere genericamente um cordofone, sem implicar
maior especificação, incluindo assim os diversos tipos de viola, de harpa e de saltério.71 Na Chronica
Adefonsi Imperatoris, de meados do século XII, mencionam-se conjuntamente a cithara e o psalterium,
pelo que se depreende que nesse texto o primeiro termo já só abrange um tipo de cordofones,
possivelmente os que exibem um braço central no prolongamento da caixa de ressonância, sem mais
especificação.72 Poderemos pois, à partida, supôr que «cítola», na poesia galego-portuguesa, tem tão-
só um destes sentidos genéricos. Mas o sentido do termo deverá ter-se modificado ao longo do tempo,
pois numa passagem do Dicto e vida de huu mõje de Roma que grande no paaço do emperador foy,
transcrito num códice alcobacense do século XIV, o monge citado no título recorda «laúde, rabeca e
cítola e outros stormentos musicos em que me delectava em meus comeres e meus conuyvios»;73 neste
trecho a cítola é um cordofone distinto do alaúde (instrumento volumoso, de corda dedilhada) e do
rabeque (instrumento pequeno, de corda friccionada); parece designar um instrumento específico,
e não um tipo genérico de instrumento nem um grupo de instrumentos associados a um tipo de
execução musical.
O exame dos textos líricos permite clarificar a questão. O nome «cítola» aparece em somente duas
cantigas, escritas na corte castelhano-leonesa pelo português Martin Soarez e por Alfonso X, por
volta de 1240-60 ou em data próxima; no poema alfonsino, «cítola» é usado apenas como alcunha
de um jogral.74 O verbo «citolar» é usado em sete cantigas,75 sendo numa delas associado à cítola, e

69 Lembremo-nos de que D. Afonso III, antes de ocupar o trono português, viveu pelo menos doze anos na corte francesa, em contacto
com trovadores como Moniot d’Arras, tendo então ao seu serviço pelo menos um menestrel, para além de pagar os serviços ocasionais de
outros: cf. Solange Corbin, «Notes sur le séjour et le mariage d’Alphonse III de Portugal a la cour de France», Bulletin des Etudes Portugaises,
X (1945), pp. 159-66; Manuel P. Ferreira, Cantus coronatus, cit., p. 84.
70 Collecção de Ineditos Portuguezes dos seculos XIV e XV que ou forão compostos originalmente, ou traduzidos de várias línguas, por
Monges Cistercienses deste Reino. Ordenada e copiada fielmente dos Manuscritos do mosteiro de Alcobaça por Fr. Fortunato de S. Boaventura,
Monge do proprio Mosteiro. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1829, vol. II, p. 11 [trecho retirado do códice alcobacense nº 349, escrito
no século XIII ou XIV]. O texto da Vulgata é o seguinte: et nomen fratris eius Iubal ipse fuit pater canentium cithara et organo (Biblia Sacra:
Iuxta Vulgatam Versionem, Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1983, p. 9).
71 Oliver Strunk, Source Readings in Music History, Vol. I, London: Faber & Faber, 1981, pp. 97-98. Carlos Villanueva (coord.), El Pórtico
de la Gloria: Musica, arte y pensamiento. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago, 1988. Christopher Page, Voices and Instruments
of the Middle Ages, London, 1987, p. 149.
72 Passagem reproduzida in Rosario Alvarez Martínez, «Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los
Cordófonos» (tesis doctoral, Universidad Complutense de Madrid, 1981: Colección Tesis Doctorales, 101/82), p. lxxviii.
73 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ms. da Livraria 771 cit. in José Joaquim Nunes, Crestomatia Arcaica - Excertos de Literatura
Portuguesa, 7ª edição. Lisboa: Clássica Editora, 1970, pp. 61-63 [63].
74 Alfonso X, «[A] Cítola vi andar-se queixando» (B 488/V 71): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 18. Martin Soarez, «Foi a cítola temperar»
(B 1363/V 971): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 293.
75 Fernán Paez de Talamancos, «Jograr Saco, non tenh’eu que fez razon» (B 1334/V 941): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 132. Joan de
Guilhade e Lourenço, «Lourenço jograr, ás mui gran sabor» (B 1493/V 1104) e «Muito te vejo, Lourenço, queixar» (B 1494/V 1105): Lapa,
Cantigas d’escarnho, nºs 218, 219. Joan Perez d’Avoin e Joan Soarez Coelho, «Joan Soarez, comecei» (V 1009): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº
221. Martin Soarez, «Foi a cítola temperar» (B 1363/V 971) e «Con alguen é ‘qui Lopo desfiado» (B 1364/ V 972): Lapa, Cantigas d’escarnho,
nºs 293, 294. Pedr’Amigo de Sevilha, «Lourenço non mi quer creer» (V 1202): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 320.
Manuel Pedro Ferreira

31
em duas outras ao seu aumentativo «citolon»;76 destas sete cantigas, uma foi escrita por um trovador
galego, Fernán Paez de Talamancos, na primeira metade do século XIII;77 quatro foram escritas por
portugueses em meados do século XIII ou data pouco posterior (duas delas, de Martin Soarez, na
corte de Castela,78 as restantes, de Joan Garcia de Guilhade e Lourenço, em local incerto); uma por
trovadores da corte de Afonso III, Joan Pérez d’Avoín e Joan Soarez Coelho, no terceiro quartel do
século; e a restante por um clérigo galego, Pedr’Amigo de Sevilha, na corte de Alfonso X. O «citolão»,
que designa um cordofone mais volumoso que a simples «cítola», é referido em seis cantigas, todas
elas compostas por trovadores portugueses;79 duas delas, envolvendo o jogral Lopo, terão sido escritas
na corte de Castela em meados do século, enquanto as outras dizem respeito ao jogral Lourenço, e
com alguma probabilidade terão tido o seu local de composição na corte de Afonso III. Ora, verifica-
se que o «citolão» está associado, em três destas cantigas, ao verbo «rascar», que significa «esfregar»,
ou seja, friccionar o instrumento, presumivelmente com um arco; isto sugere que «citolão» é o nome
arcaico galego-português da viola, tocada com arco (viula, viele, são nomes originários de além-
Pirenéus). O emparelhamento, na literatura castelhana, francesa e inglesa, do equivalente a «cítola»
com o equivalente a «viola», e a repetida presença na iconografia ibérica da época, a par da volumosa
viola de arco, de um cordofone pequeno, dedilhado, de flancos encavados e ombros rectos (associado
em certos documentos ao nome cithara ou a seus derivados), leva a crer que o par «cítola»/«citolão»
representa um estádio semântico em que os nomes se referem já a instrumentos bem diferenciados,
respectivamente a cítola e a viola de arco.80
Para além destes cordofones, os únicos instrumentos mencionados nas cantigas galego-portuguesas
são o adufe, o «atambor», o «atabal» (todos de percussão) e a «tromba» (trombeta). O adufe aparece
numa cantiga d’amigo de Martin de Ginzo, onde é descrito a acompanhar um baile de roda.81 O
«atambor» aparece em duas cantigas de maldizer; numa, Alfonso X refere o som do tambor no contexto
de uma refrega militar, sugerindo que o instrumento era soado pelo inimigo muçulmano;82 na outra
cantiga, de Martin Soarez, o trovador escarnece de um cavaleiro por compôr cantares amorosos de
música tão pobre que pode ser tocada pelas «trombas» dos «trompeiros»; a estocada final do poeta é
a sugestão de que não há melhor música para «atambores» do que a desse cavaleiro.83

76 Lapa, Cantigas d’escarnho, nºs 293 («cítola»); 218, 294 («citolon»).


77 António Resende de Oliveira, «Fernan Paez de Talamancos», in G. Lanciani e G. Tavani (coord.), Dicionário da Literatura Medieval
Galega e Portuguesa, Lisboa: Caminho, 1993, p. 262.
78 António Resende de Oliveira, Depois do espectáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos
XIII e XIV, Lisboa: Colibri, 1994, pp. 518-20.
79 Duas foram já citadas; as quatro restantes são: de Joan Garcia de Guilhade, «Lourenço, pois te quitas de rascar» (B 1495/V 1106) e
«Ora quer Lourenço guarir» (B 1497/V 1107): Lapa, Cantigas d’escarnho, nºs 210, 211; de Joan Pérez d’Avoín e Lourenço, «Lourenço, soías
tu guarecer» (V 1010): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 222; de Martin Soárez, «Lopo jograr, és garganton» (B 1365/V 973): Lapa, Cantigas
d’escarnho, nº 295.
80 Manuel P. Ferreira, Cantus coronatus, cit., pp. 16-48.
81 Martin de Ginzo, «A do mui bon parecer» (B 1277/V 883): Nunes, Cantigas d’Amigo, nº 490.
82 Alfonso X, «O genete» (B 491/V 74-74a): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 21.
83 Martin Soarez, «Cavaleiro, con vossos cantares» (B 1357/V 965): Lapa, Cantigas d’escarnho, nº 287; Pizzorusso, As Poesías, nº 32.
Antologia de Música em Portugal

32 as cantigas d’amigo de martin codax

Segundo a opinião dominante nos círculos universitários (ultimamente contestada por alguns), a
cantiga de amigo terá surgido no noroeste da Península no decorrer do século XII e parece ter sido
cultivada no meio trovadoresco ibérico especialmente por jograis; antes de 1225 tudo indica que
fosse uma modalidade poética pouco prestigiada entre a nobreza;84 a produção poética de Vasquez
Fernandes Praga e de Pai Soarez de Taveirós indica, contudo, que o género era cultivado por trovadores
de alta estirpe ainda antes dessa data. Terá resultado da reelaboração tardia, por parte de um grupo
social com acesso à alta cultura, de uma antiga tradição poética romance (que já no século XI havia
sido independentemente apropriada pela poesia andaluza através da inserção, no poema, de remates
provenientes de canções).
Do ponto de vista musical, o nosso conhecimento das cantigas de amigo depende quase inteiramente
da análise das raras melodias conservadas. Infelizmente, chegou-nos a música de somente seis das sete
cantigas de Martin Codax, que terá vivido nas imediações de Vigo, em meados do século XIII. Estas
composições aparecem no Pergaminho Vindel, uma folha volante escrita no último terço desse século, e
foram apontadas em fases sucessivas por dois copistas anónimos. Os seus primeiros versos são Ondas do
mar de Vigo (i: Figura 4, Antologia, nº 8, e gravação), Mandad’ei comigo (ii), Mia irmana fremosa treides
comigo (iii: Antologia, nº 9), Ai Deus se sab’ora meu amigo (iv), Quantas sabedes amar amigo (v) e Ai
ondas que eu vin veer (vii).85 O primeiro copista apontou as cantigas (i), (iv) e (v) e acrescentou o texto e
a música da cantiga (vii); o segundo copista introduziu a música das cantigas (ii) e (iii), deixando a (vi)
por apontar. As melodias apresentam um âmbito invariavelmente estreito — inferior a uma oitava — e
um movimento que procede quase exclusivamente por graus conjuntos; a articulação é ora silábica (uma
nota por sílaba), ora neumática (sílabas encimadas por pequenos grupos de notas); a forma musical,
muito simples, adere geralmente ao tipo A A’ B. O «paralelismo» usado por Codax favorece uma grande
regularidade na distribuição dos acentos do texto, e a redução da estrofe a um dístico implica uma
forma musical elementar. Quando, em versos estróficos, se observam acentuações musicais, estas são
geralmente correspondidas por acentos verbais regulares. Todavia, há muitas cantigas d’amigo que
prescindem do paralelismo poético e apresentam estrofes mais desenvolvidas. Embora não tenhamos
acesso à música das cantigas d’amigo de D. Dinis, podemos concluir, através de uma análise das suas
cantigas não-paralelísticas, que nelas raramente se mantém um esquema acentual fixo em versos
que ocupem posições equivalentes nas estrofes; quando há coincidências acentuais, estas aparecem
frequentemente entre versos alternados, sugerindo que a cantiga se teria cantado com diferentes frases
musicais, implicando formas mais elaboradas do que as cultivadas por Codax.86

84 António Resende de Oliveira, «A Galiza e a Cultura Trovadoresca Peninsular», in Revista de História das Ideias, Vol. 11 (1989), pp. 7-36.
85 Manuel Pedro Ferreira, O Som de Martin Codax - Sobre a dimensão musical da lírica galego-portuguesa (séculos XII-XIV), Lisboa, 1986;
id., «Codax revisitado», in Anuario de estudos literarios galegos, 1998, pp. 157-68; id., «A importancia do Pergamiño Vindel», in Johán de
Cangas. Martín Codax. Meendinho: Lírica Medieval, 1200-1350, Vigo: Xerais, 1998, pp. 55-68; id., «Estrutura e ornamentação melódica nas
cantigas trovadorescas», a publicar in Stephen Parkinson (ed.), Cantigas United. Papers from the Jornada de Estudos sobre a Lírica Galego-
Portuguesa, Oxford, 19 November 2004, London: Medieval Hispanic Research Seminar, no prelo.
86 Manuel Pedro Ferreira, «Musik und Betonung in cantigas d’amigo», in Thomas Cramer et al. (ed.), Frauenlieder — Cantigas de amigo,
Stuttgart: S. Hirzel, 2000, pp. 247-57.
Manuel Pedro Ferreira

33

Figura 4: Pergaminho Vindel


(New York, Pierpont Morgan Library, M979): pormenor [Antologia, nº 8, e CD 1, faixa 8]

É curioso que as melodias de Codax tenham uma clara conexão melódica com o canto gregoriano,
o que não costuma suceder na tradição dos trovadores. Observam-se fórmulas salmódicas (iniciais,
mediais e finais) associadas aos 3º e 8º tons, e um forte parentesco com a modalidade gregoriana,
nomeadamente o Tritus e o Tetrardus plagais (6º e 8º modos). Esta relação estética baseia-se, com
uma única excepção, numa consciência auditiva não filtrada por aquela parte da teoria musical
que trata dos modos eclesiásticos, e que nos diz que para a definição do modo são determinantes a
nota final e o âmbito melódico. De facto, observa-se que o conteúdo melódico da segunda cantiga é
incongruente com o seu âmbito e final, e que a quarta cantiga é irregular, qualquer que seja o modo
em que seja classificada.
Houve na Idade Média, no período românico, uma consciência estética muito clara do ethos
musical — consciência essa alimentada pelos filósofos gregos e por histórias bíblicas — que vários
autores tentaram relacionar com os modos gregorianos, por vezes de forma contraditória. As melodias
Antologia de Música em Portugal

34
de Codax, sendo de carácter muito diferenciado, prestam-se facilmente a ilustrar essa consciência
estética. Ondas do mar de Vigo (i) e Quantas sabedes amar amigo (v) reflectem a ambigüidade
expressiva do oitavo modo, ao qual os autores medievais atribuem qualidades opostas: utilizando
os adjectivos por eles propostos, a melodia inicial seria séria e suave; a outra, exultante e alegre.
Mandad’ei comigo (ii), com características do terceiro e do sétimo modos, seria fresca e saltitante. Mia
irmana fremosa treides comigo (iii), em primeiro modo, soaria tranquila; Ai Deus se sab’ora meu amigo
(iv), com características do quarto e do sexto modos, e Ai ondas que eu vin veer (vii), com um sexto
modo claramente afirmado, seriam doces e tristes, qualidades frequentemente atribuídas a estes dois
modos plagais.
A expressividade, relacionada com o conteúdo do texto, é assim uma característica saliente
deste grupo de cantigas. Outra característica é a sua unidade sequencial, já observada por Teodósio
Vesteiro Torres em 1876, e depois reconhecida pela maioria dos especialistas. Não se trata de uma
progressão narrativa, a qual se limita às cantigas II, III e IV, nem de uma unidade musical por
ordenação numérica dos modos, como ocorre em muitos ofícios litúrgicos tardo-medievais. É uma
unidade formal e retórica, clarificada sobretudo por Elsa Gonçalves, no que se refere à estrutura e às
figuras poéticas, e por mim próprio, no que se refere à dispositio das partes do ciclo: proemium (i),
em que a moça suspira pelo amado; argumentatio-narratio (ii), que narra a expectativa de regresso
do namorado; argumentatio-tractatio (iii), que trata da preparação da sua chegada; argumentatio-
probatio (iv), que confirma o abandono e a saudade; refutatio (v), em que a cena imaginada refuta a
solidão; e epilogus (vi ou vii), rememoração do início do namoro ou retoma da situação inicial.87
A melodia da última cantiga, inexistente no primitivo estado do Pergaminho, exibe um grau de
consciência artística pouco usual. Recorde-se que a partilha de material melódico no Pergaminho
Vindel afecta as quatro cantigas copiadas pelo primeiro apontador, deixando de fora as duas copiadas
pelo segundo, o que nos faz suspeitar de uma dupla autoria musical (suspeição reforçada pelo diferente
estilo rítmico dos dois grupos de cantigas); o autor da sétima cantiga poderá pois ter sido quem a
acrescentou no Pergaminho Vindel.88
As entoações exclamativas e a disposição retórica do estribilho legitimam um enquadramento
estético do ritmo hipotético destas cantigas de acordo com as categorias que os teóricos, como
Guido d’ Arezzo e Aribo, extraíram da métrica e da ciência harmónica clássicas; mas a ambigüidade
da notação musical não nos permite chegar a conclusões seguras sobre as relações proporcionais
implicadas. Pode inclusivamente duvidar-se da estabilidade e da intencionalidade artística destas
proporções. A projecção descritiva a posteriori de categorias racionais sobre uma melodia pode
ser reveladora, mas pode ser também ocultadora da verdadeira natureza do fenómeno musical.
De facto, no Pergaminho Vindel o ritmo não é ainda um parâmetro autonomamente manipulado;

87 M. P. Ferreira, O Som..., cit., pp. 175-81. A consciência retórica não é exclusiva da organização dos textos: é significativo que as
apóstrofes exclamativas Ay deus e Ay ondas venham retoricamente sublinhadas por um ritmo pouco comum (taran-tan-taaan). Também
o estribilho da sétima cantiga, Ai ondas que eu vin veer ilustra uma figura de retórica musical, referida por Guido d’Arezzo como neuma
reciprocata, e pouco tempo depois por Aribo, como compar: isto é, uma melodia dividida em duas partes simétricas, em que a segunda parte
começa como o final da primeira e regressa, pelos mesmos lugares, ao tom inicial. No Pergaminho Vindel, a divisão entre os dois membros
da frase é assinalada por uma maiúscula. É verdade que o segundo membro se afasta um pouco do percurso inicial, mas era necessário
fazê-lo para satisfazer um requisito da teoria modal gregoriana, a marcação do âmbito plagal do sexto modo. A aparente familiaridade do
compositor desta melodia com os tratadistas eclesiásticos leva a crer que beneficiou de uma educação clerical, o que não surpreenderá, se
pensarmos que ao tempo, se não se pertencesse à classe senhorial, a formação cultural se ia necessariamente buscar à Igreja.
88 Manuel Pedro Ferreira, «Estrutura e ornamentação...», cit.
Manuel Pedro Ferreira

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é mais um resultado da justaposição rapsódica de elementos pré-formados ou do enquadramento
periódico das acentuações. O estilo rítmico revelado pelo primeiro copista do Pergaminho Vindel é
de natureza rapsódica (alternância irregular de sons breves e longos associada à presença de fórmulas
e de padrões mnemónicos), enquanto o segundo encaixa a melodia de Mia irmana fremosa (senão
também a da cantiga precedente) em modos rítmicos; em tempos interpretei este último facto
como indício de influência da escola polifónica de Notre-Dame, uma hipótese que hoje considero
menos provável. O estilo dominante é, em suma, expressão de uma tradição oral de cantor, não
mediada pela teoria. Outro aspecto em que as cantigas de Codax exibem a sua tradicionalidade
é a existência, no seio de cada composição, de temporalidades contrastantes, irracionalmente
justapostas, estreitamente relacionadas com a identidade dos diversos segmentos da construção
poética. Parte invariável («base») ou variável («coda») do verso paralelístico, estrofe ou estribilho,
recebem um tratamento musical diferenciado, revelando uma organização temporal heterogénea,
ainda não submetida ao processo de racionalização métrica que marcou o século XIII.

8
Antologia de Música em Portugal

36 as cantigas d’amor de dom dinis

Outra situação é a que se observa nas cantigas d’amor de Dom Dinis (ou Deniz), nascido em 1261,
e cujo longo reinado se estendeu de 1279 a 1325. Com dezassete anos, foi associado ao governo e
teve direito à constituição de uma «casa civil» própria, o que nos permite saber que possuía então
dez «atambores»;89 este facto é de difícil interpretação, pois pode ter resultado quer de um hipotético
interesse juvenil por instrumentos de percussão, quer de necessidades de representação pública (uso
de tambores para solenização heráldica). No ano seguinte, acedeu ao trono, tornando-se conhecido
pela sua liberalidade, o que explica que a sua corte tenha sido, depois da morte do seu avô Alfonso
X, o Sábio, em 1284, o último refúgio dos trovadores galego-portugueses. Mas o rei português não se
limitou a acolhê-los e a premiá-los; juntou-se-lhes de forma excepcionalmente produtiva. Educado
por mestres como Nuno Martins e Domingos Jardo (que havia estudado na Universidade de Paris),
a produção literário-musical de D. Dinis bebe tanto na tradição local como no exemplo provençal,
com destaque para a influência de Bernart de Ventadorn e de Jaufre Rudel. Elsa Gonçalves diz-nos
que D. Dinis «deixou na sua poesia uma condensação, recapitulação e síntese da tradição poética
em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de confronto criativo com os textos que cita,
ou aos quais alude». A sua obra, a mais extensa de todos os autores galego-portugueses, inclui 137
composições. Apesar de ter composto sobretudo cantigas d’amor (mais de setenta), legou-nos dez
corrosivas cantigas satíricas, que só recentemente começaram a merecer atenção, três pastorelas e
meia-centena de cantigas d’amigo, exemplares na sua economia e no seu ritmo.90
Até 1990, julgava-se que toda a música das suas cantigas se tinha perdido, e não se conheciam
quaisquer testemunhos documentais das melodias que os trovadores peninsulares teriam usado
com os poemas pertencentes ao género cantiga d’amor. Todavia, em Julho desse ano o investigador
americano Harvey L. Sharrer encontrou em Lisboa as melodias (incompletas) de sete canções, num
fólio fragmentário escrito por volta de 1300 (Figura 5). A este documento (Lisboa, Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, Fragmento, cx. 20, nº2) veio a chamar-se, em homenagem a quem o descobriu
e estudou, Pergaminho Sharrer. As canções nele contidas são cantigas d’amor, pela primeira vez
descobertas com a respectiva música. Isto mudou, e muito, a nossa reconstrução imaginária do aspecto
musical da tradição aristocrática galego-portuguesa. Onde antes se supunha simplicidade, vemos
agora elaboração; onde antes se supunha a reprodução mecânica de modelos musicais provençais,
constata-se uma clara autonomia estilística.91

89 Facsímile e transcrição do rol dos objectos pessoais e domésticos de D. Dinis em 1279: João J. Alves Dias, A. H. de Oliveira Marques
e Teresa F. Rodrigues, Álbum de Paleografia, Lisboa: Estampa, 1987, pp. 8-9.
90 Elsa Gonçalves, «Denis, Dom», in G. Lanciani e G. Tavani (coord.), Dicionário da Literatura Medieval..., cit., pp. 206-12.
91 Edição e estudo: Manuel P. Ferreira, Cantus coronatus, cit. Apresentação sumária e discografia: id., «Don Dionís de Portugal: un
trovador desconocido», in Goldberg – Revista de Música Antigua, nº 40 (Junio 2006), pp. 52-59. Aprofundamento analítico: id., «Estrutura
e ornamentação melódica», cit.
Manuel Pedro Ferreira

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Figura 5: Pergaminho Sharrer


(Lisboa, Torre do Tombo, Frag. Cx. 20, nº2): pormenor

Comecemos por adiantar algumas observações sobre o Pergaminho Sharrer. O manuscrito provém
de um códice de grandes dimensões, contendo uma colectânea de cantigas trovadorescas, e seria
provavelmente resultado da iniciativa de um nobre ligado à corte de D. Dinis. A economia de espaço,
a execução irregular e pouco cuidada, a pobreza da decoração e os erros na transcrição dos textos
— aspectos que claramente contrastam com o Cancioneiro da Ajuda e com os códices alfonsinos —
não parecem indicar uma proveniência régia. Por outro lado, o facto de o texto ter sido copiado sem
ter em conta o espaçamento silábico exigido pela notação musical, e a improvável circunstância de
a música ter sido apontada por três mãos diferentes testemunham uma deficiente organização do
trabalho de cópia.
Antologia de Música em Portugal

38
Todos os três copistas musicais usam uma notação semi-mensural derivada das notações francesas
do segundo terço do século XIII, mas com particularidades que denunciam a sua origem ibérica. Não
parece haver relação de causa-efeito entre a identidade do apontador e o estilo da cantiga copiada; as
diferenças mais notáveis entre as cantigas têm pelo contrário a ver com a forma poética. Assim, uma
das duas cantigas com refrão de verso único tem aí música diferente da encontrada na estrofe; a outra
compartilharia possivelmente, tanto quanto podemos saber, esta característica. Com refrão de dois
versos temos três cantigas, duas das quais apresentam no refrão material anteriormente apresentado
nos primeiros versos; da terceira, só se pode supôr que ocorreria o mesmo. Finalmente, as duas
cantigas sem refrão têm uma forma similar, AB <AB> CCB’ (ou CCD).
Todas as cantigas têm um âmbito mediano (próximo da oitava), e todas elas apresentam um ritmo
complexo, com frequente uso dos modos rítmicos nos inícios de frase, variação das entoações quando
a frase se repete (como nas canções de trouvères) e uma continuação que tende a ser muito melismática
e isossilábica. De facto, a menor média de notas por sílaba é a da primeira cantiga, com duas notas por
sílaba, logo seguida pela segunda cantiga; todas as outras se aproximam ou ultrapassam a média de
três notas por sílaba, o que é muito raro na tradição trovadoresca de além-Pirinéus, em que, a julgar
pelos manuscritos, a maioria das sílabas era cantada com uma só nota. Na Idade Média, a profusão
de notas numa melodia, associada a um tempo musical pausado, sinalizava ocasiões especialmente
importantes e supunha um invulgar investimento artístico por parte de compositor ou executante.
Tratar-se-ia pois de cantigas investidas de grande solenidade, como seria de esperar de um rei:
exemplos de cantus coronatus ao gosto ibérico.92
A autoria dionisina destas cantigas é incontestável: os textos são-lhe atribuídos em dois cancioneiros
copiados no século XVI, por sua vez derivados de um volume compilado em Portugal em meados do
século XIV; a música, apontada por três copistas, exibe um grau de coerência estilística só compatível
com uma autoria única; atendendo a que, no século XIII, se esperava de um trovador não só que
inventasse o texto literário, mas também que criasse a melodia e controlasse a sua execução, é de
assumir que o autor seja o próprio rei. A análise da música das cantigas de D. Dinis revela um
compositor de tipo tradicional, muito ligado à oralidade, mas não obstante, subtil no tratamento do
pormenor. Longe de evidenciar a influência do canto eclesiástico, parece bem enraizado nas tradições
trovadorescas europeias, mas com uma acentuada tendência para a ornamentação melódica. A música
requer um tempo lento e flutua de acordo com uma pulsação regular que abarca uma ou duas posições
silábicas. Comparado com Martin Codax, o estilo musical é muito diferente, emocionalmente mais
neutro e notoriamente mais solene, mas também formalmente mais variado.
O arcaísmo estrutural de algumas melodias, a repetição de motivos convencionais e de contornos
melódicos e o tendencial isossilabismo sugerem uma atitude musical conservadora e um processo
de composição e transmissão de natureza fundamentalmente oral; mas a tradição de canto não é
a mesma de Martin Codax. Observa-se maior homogeneidade temporal e um âmbito melódico
mais alargado. Não deparamos com materiais sonoros de origem eclesiástica. Os acentos verbais

92 A expressão cantus coronatus, usada pelo teórico Johannes de Grocheio (c. 1300), denota uma composição de alto nível artístico,
apreciada pela melhor aristocracia, e caracterizada por uma pulsação rítmica pausada e regular. No seu sentido original, refere-se a canções
de trouvères, sem refrão. Sobre este assunto, veja-se Hendrik van der Werf, The Chansons of the troubadours and trouvères, Utrecht, 1972,
pp. 153-55; C. Page, Voices and Instruments, cit., pp. 67-68, 196-201; id., «Johannes de Grocheio on secular music: a corrected text and a new
translation», in Plainsong and Medieval Music, Vol. 2/1 (April 1993), pp. 17-41.
Manuel Pedro Ferreira

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são tendencialmente ignorados. A modalidade melódica tem uma função veicular, expressivamente
neutra. Há uma distanciação emocional e uma ausência aparente de figuras de retórica musical. Texto
e música afirmam a respectiva artificiosidade de forma independente, com os seus códigos próprios.
Isto parece confirmar o fundamental formalismo que se atribui à conjugação entre texto e música na
canção cortês europeia desta época: quer dizer que, para além da correlação entre o esquema métrico
do poema — quantidade silábica dos versos, disposição e extensão das estrofes, ordenação das rimas
— e a delimitação e justaposição das frases musicais, nenhuma relação mais entre música e texto
haveria que assinalar. Todavia, a música dos trovadores pode ajustar-se com particular sensibilidade
e subtileza à disposição e conteúdo do texto nas primeiras estrofes de cada poema. A cantiga de D.
Dinis Pois que vos Deus (Antologia, nº 11, e respectiva gravação) ilustra, mais claramente do que as
outras que se seguem no manuscrito, esta cumplicidade:

Pois que vos Deus, amigo, quer guisar


d’irdes a terra d’u é mha senhor,
rogo-vos ora que, por qual amor
vos ei, lhi queirades tanto rogar
que se dóia já do meu mal.

Detenhamo-nos na melodia a partir da terceira frase musical, sobre «rogo-vos ora». O movimento
melódico é subitamente transposto para um registo agudo, o que se adeqüa perfeitamente à súplica
contida no texto («rogo-vos»), acentuando a urgência do pedido do rei; sobre «ora», é introduzido
un novo dado na estrutura da cantiga, um intervalo ré-si fortemente delineado. Depois de uma
nova entoação, lá-dó, sobre «que, por» — início de uma oração subordinada — a melodia insiste
regularmente sobre a nota si. E, assim como a oração «por qual amor vos ei» acaba somente, em
virtude do encavalgamento, no verso seguinte, também a insistência no si termina somente quando
a oração chega ao seu fim.
Antologia de Música em Portugal

40 as cantigas de santa maria

O avô materno de D. Dinis foi o rei Alfonso X de Leão e Castela (1221-1284), cujo interesse activo
pelo conhecimento lhe valeu o cognome «o Sábio». Educado em ambiente marcado pelo trovadorismo
galego e provençal, rodeou-se de trovadores de linhagem galego-portuguesa ainda antes de subir
ao trono (o que ocorreu em 1252), e afirmou-se a partir daí também como trovador, sendo hoje
considerado um dos mais interessantes poetas medievais peninsulares, especialmente no capítulo da
sátira. Contudo, afligido por uma doença crónica, a partir de certa altura deixou de cantar as damas
da corte, para se dirigir apenas a Nossa Senhora, de quem esperava socorro corporal e espiritual.
A expressão mais visível desta devoção mariana é a impressionante colecção de Cantigas de Santa
Maria, que mandou compôr e compilar ao longo das suas duas últimas décadas de vida. São mais
de quatrocentas canções monódicas em língua galego-portuguesa que nos foram transmitidas por
quatro manuscritos, três dos quais com notação musical.
Numa primeira fase, o rei planeou uma colecção de cem cantigas, das quais a primeira, a
cinquagésima e a última tinham um papel especial, distribuindo-se as outras por grupos de dez:
nove de carácter narrativo (narração de milagres atribuídos à Virgem) e uma de carácter lírico
(louvor à Virgem). Daí a distinção entre «cantigas de miragre» e «cantigas de loor». Num segundo
momento, decidiu alargar substancialmente a colectânea, atingindo-se o número de 419 cantigas
(incluindo 353 narrativas de milagres). Da primeira fase resta-nos um testemunho manuscrito,
o códice de Toledo (hoje na Biblioteca Nacional de Madrid, Ms. 10 069; sigla To), que contém
sòmente 128 cantigas (o núcleo original de uma centena, mais Prólogo e Apêndices). Da fase final
restam-nos três testemunhos, os códices provenientes de Sevilha (hoje no Escorial e em Florença).
O chamado «códice rico» (Real Monasterio de El Escorial, T.j.1; sigla T) é um impressionante
manuscrito ilustrado, com centenas de iluminuras que contam visualmente as histórias narradas
pelas cantigas; corresponde sensivelmente à primeira metade da colecção (193 composições, que
deviam ter chegado às duzentas), sendo a segunda metade representada pelo códice de Florença
(infelizmente incompleto, provavelmente devido à morte do rei). O «códice dos músicos» (El
Escorial, b.I.2; sigla E) contém a colecção quase completa (416 cantigas, das quais nove repetidas;
faltam algumas incluídas nos apêndices do códice toledano), sendo cada uma das «cantigas de loor»
assinalada com uma pequena iluminura representando um ou mais instrumentistas, estratégia
iconográfica que de alguma forma insinua a semelhança entre Alfonso X e o Rei David, a quem se
atribuía tradicionalmente o Livro dos Salmos no Antigo Testamento, livro que era frequentemente
enriquecido, na época, por iluminuras com referências musicais.
Para as audiências de hoje, aquilo que mais atrai nas Cantigas de Santa Maria não é tanto a temática
mariana (embora o pícaro de muitas situações e a elegância com que elas são retratadas tenham o seu quê
de atractivo) nem a qualidade poética e riqueza linguística dos textos, mas a vitalidade que se desprende
da sua música. Esta vitalidade não surpreende, sabendo nós que o rei tomava a música, em geral, como
um elemento festivo, alegre, celebrativo. Ora, o que de facto torna possível essa impressão estética é a
originalidade do repertório e da técnica de escrita musical usada para o fixar.
Manuel Pedro Ferreira

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O repertório é original, em primeiro lugar, devido à forma das cantigas. Um molde poético de tipo
árabe-andaluz, o zajal (versos curtos organizados em estrofes, com refrão inicial, e esquema de rimas
do tipo AA BBBA [AA] CCCA, etc.) está subjacente à esmagadora maioria delas; musicalmente, tendem
a assumir uma forma de tipo dansa ou virelai (refrão inicial, estrofe inicialmente contrastante, mas
que retoma depois o conteúdo melódico do refrão, antecipando o seu retorno: p. ex. AA BBAA, ou AB
CCAB) ou então uma forma de «rondel andaluz» (das duas secções musicais do refrão, a estrofe repete
inicialmente a segunda secção, e depois retoma ambas: AB BBAB). Estas formas estavam, com toda
a probabilidade, enraizadas em Toledo e em Sevilha, devido à influência da cultura árabo-andaluza.
O repertório é também original porque, conservando-se com preciosas indicações rítmicas (raras
nos manuscritos de música monódica), muitos dos ritmos usados não coincidem com os padrões
documentados nessa época em França, mas antes com padrões de matriz oriental, que permitiam o
uso do contratempo e de metros octonários ou quinários (Antologia, nº 15).93 Para que fosse possível
representar estes ritmos por escrito, os copistas passaram de uma notação só parcialmente mensural
(no códice de Toledo, o mais antigo) para uma notação com um significado rítmico mais explícito,
embora frequentemente ainda ambíguo (sistema usado nos códices do Escorial, que datam já da
década de 1280).94
É seguro que D. Dinis conhecia as cantigas do seu avô, pois, ainda que a sua ida a Sevilha, em
criança, não lhe tivesse deixado impressões a esse nível, não pôde ter-lhes ficado indiferente na sua
maioridade enquanto trovador, sendo plausível que possuísse cópia da sua obra.95 Embora ténue, a
ligação das Cantigas de Santa Maria a Portugal é atestada pela presença da «cantiga de loor» nº 40
(Antologia, nº 16) no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, cópia de uma compilação portuguesa de
meados do século XIV. Poderá ainda ser significativa a presença, na colecção alfonsina, de vinte e seis
narrativas de milagres ocorridos em Portugal. O santuário mariano de Terena (concelho de Alandroal,
distrito de Évora) é referido em doze cantigas; são ainda referidas outras localidades, sobretudo no
sul: Elvas, Évora, Odemira e Estremoz, também no Alentejo; Santarém, Alenquer, Lisboa, Chelas (nos
arredores da Lisboa medieval), no vale do Tejo; e, no Algarve, a cidade de Faro (a qual, sob a égide de
Santa Maria, manteve a identidade cristã mesmo sob ocupação muçulmana). Duas das três Cantigas
de Santa Maria aqui apresentadas em transcrição (Antologia, nºs 14 e 15) apresentam milagres
ocorridos em Faro (C.S.M. 183) e em Terena (C.S.M. 223), santuário também representado na cantiga
que se oferece em gravação (C.S.M. 283). Só três composições marianas referem lugares ou povoações
do norte: Porto, Guimarães e S. Salvador da Torre, em Viana do Castelo.96 Talvez a preferência pelo
Alto Alentejo tenha a ver com o infante D. Afonso, irmão de D. Dinis, senhor de Portalegre, Marvão,
Arronches e Vide, que, por desentendimentos com o jovem rei, esteve refugiado na corte do seu avô

93 Vide nota 24.


94 Manuel Pedro Ferreira, «Bases for Transcription: Gregorian Chant and the Notation of the Cantigas de Santa Maria», in José López-
Calo (coord.), Los instrumentos del Pórtico de la Gloria: Su reconstrucción y la música de su tiempo, Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde
de Fenosa, La Coruña, 1993, Vol. 2, pp. 595-621; id., «The Stemma of the Marian Cantigas: Philological and Musical Evidence», in Bulletin of the
Cantigueiros de Santa Maria, Vol. VI (1994), pp. 58-98. A transcrição paleográfica da música dos manuscritos e bibliografia relevante estarão
em breve disponíveis online através da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, <www.fcsh.unl.pt/cesem>.
95 D. Dinis visitou Alfonso X em Sevilha pelo menos em 1265 (a notícia de uma segunda visita a Sevilha em 1269, reportada na Crónica
de Alfonso X, poderá ser falsa): cf. José Augusto Pizarro, D. Dinis, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, pp. 58-59.
96 Cf. Stephen Parkinson, «Santuarios portugueses en las Cantigas de Santa María», in Alcanate. Revista de Estudios Alfonsíes, 1 (1998-
1999), pp. 43-57.
Antologia de Música em Portugal

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materno de Maio de 1281 a Janeiro de 1282; ou com as origens geográficas de alguns dos cavaleiros
portugueses que, a pedido da rainha D. Beatriz, foram apoiar Alfonso X em 1282 e o acompanharam
até à sua morte.97 A celebração propagandística do santuário de Terena poderia reforçar a respectiva
peregrinação, enriquecendo a localidade e dignificando os seus vizinhos e protectores.

97 J. A. Pizarro, D. Dinis, cit., pp. 78-86.


Manuel Pedro Ferreira

a monodia pós-trovadoresca 43

A tradição trovadoresca declinou depois da morte de D. Dinis e quase se extinguiu após 1350; de
facto, deixou de interessar a alta aristocracia, que em toda a Europa se orientava para a construção de
uma identidade cultural baseada na erudição e no profissionalismo de agentes artísticos contratados,
correspondente à construção de um Estado centralizador dominado por um sector restrito da nobreza,
com um aparelho administrativo recrutado nas universidades. Neste contexto, seriam sectores
política e socialmente menos destacados a sustentar a composição de cantigas de temática amorosa e
recorte literário devedor da tradição. A partir de meados do século XIV, a prática literária no ocidente
peninsular evolui modestamente em cumplicidade com a poesia em castelhano, dando origem a uma
corrente galego-castelhana, representada pelo Cancioneiro de Baena; aí foram recolhidas canções
compostas, aproximadamente, entre 1350 e 1450, com presença de alguns autores portugueses. As
cantigas deste período mostram-se devedoras quer do género cantiga de amor, de que cultivam a
temática e a retórica, quer do reportório mariano de Alfonso X, de que tendem a adoptar certas
características formais (refrão inicial seguido de estrofe divisível em duas partes, a segunda das quais
reproduz, integral ou parcialmente, o esquema métrico-rimático do refrão); em conjunto, apresentam
um panorama criativo bastante variado.98 Não temos, infelizmente, documentos musicais ilustrativos
desta corrente, pelo que ela não tem sido objecto de investigação musicológica.
Na mesma época, a criatividade musical no domínio religioso foi o mais das vezes limitada à
composição, ora de ofícios litúrgicos completos (mas à maneira antiga, sem ordenação modal das
melodias, com versificação limitada e recurso a contrafacta), ora de peças comemorativas avulsas.
No primeiro caso está talvez o ofício Victoria Christianorum, que celebra a vitória cristã na Batalha
do Salado (1340), mas que poderá ter origem em Castela e do qual nos restam só os hinos cantados
em Coimbra sobre melodia pré-existente;99 está com certeza o ofício de S. Geraldo de Braga (talvez
baseado num precedente ciclo dedicado a Santa Iria de Santarém), encomendado pelo arcebispo
bracarense D. Fernando da Guerra em meados do século XV, e que se manteve nos manuscritos de
Braga (Antologia, nº 6, Lâmina XI, e respectiva gravação).100 Exemplos de peças avulsas são o cântico
de celebração de S. Jorge como padroeiro de Portugal, Miles Christi gloriose, conservado sem música
no Livro de Horas de D. Duarte,101 e a antífona para a comemoração dos santos mártires de Marrocos,
copiada com notação musical já no último quartel do século XV num manuscrito de Santa Cruz de
Coimbra.102
Houve também lugar à importação de melodias e à adaptação local ou eventual recomposição
musical de peças importadas. Estão nesse caso as inserções e apêndices líricos (cantigas de serrana,

98 Ricardo Polín, A poesía lírica galego-castelá (1350-1450), Santiago de Compostela: Universidade, 1994; id., Cancioneiro galego-castelán
(1350-1450). Corpus lírico da decadencia, A Coruña: Ed. do Castro /Seminario de Estudos Galegos, 1997.
99 Solange Corbin, «Fêtes portugaises: commémoraison de la victoire chrétienne de 1340», in Bulletin hispanique, vol. 49 (1947), pp. 205-
18; id., Essai..., cit., pp. 381-83; Joseph Szövérffy, Iberian Hymnody. Survey and Problems, Wetteren, 1971, pp. 157-58. Este ofício era também
cantado em Lisboa, como atesta o respectivo Próprio litúrgico de 1536: cf. Manuel P. Ferreira, «A música religiosa em Portugal...», cit.
100 Manuel Pedro Ferreira, «S. Geraldo de Braga e o seu culto litúrgico» (texto inédito, a publicar in A Sé de Braga, cit.); id., «Two Offices
for St. Gerald..», cit.
101 Mário Martins, Estudos de cultura medieval [vol. I], Lisboa: Verbo, 1969, pp. 178-79.
102 Biblioteca Pública Municipal do Porto, ms. nº 52 (S. Cruz 29), fol. 45r.
Antologia de Música em Portugal

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«troba caçurra», loores de Santa Maria, etc.) na narrativa do Libro de buen amor de Juan Ruiz, Arcipreste
de Hita, de que houve tradução portuguesa, conservada num manuscrito de Santa Cruz de Coimbra,
no último quartel do século XIV (para um exemplo de reconstrução melódica de uma destas canções,
veja-se Antologia, nº 13);103 o texto pode ter sido conhecido em Portugal desde meados desse século
(alguns autores sugeriram que a versão que serviu de base à tradução estaria invulgarmente próxima
do original) e não é de excluir que tenha contribuído para o programa iconográfico do túmulo de D.
Inês de Castro, de acordo com o propósito real de celebrar solenemente a bondade do seu amor. Este
túmulo, no Mosteiro de Alcobaça, inclui um friso parcialmente danificado, com catorze edículas,
no qual são representados músicos de ambos os sexos com os respectivos instrumentos musicais:
de percussão (pandeiro com soalhas e par de nácares), aerofones (par de trombetas rectas e órgão
portativo), cordofones (saltério trapezoidal, saltério semitrapezoidal, viola de arco, alaúde piriforme e
instrumento de identidade ambígua tocado com plectro) e ainda um possível vestígio de sanfona.104
O fundador do ramo português da Ordem de S. Jerónimo, proveniente de Itália, foi Vasco Martins
da Cunha, de origem nobre, que compôs antes de 1390 mais de oitenta hinos espirituais, dos quais
sobrevivem apenas três textos, dois em italiano e um em castelhano; neles é patente a influência da
canção devocional em língua vulgar, especialmente das laudas italianas, muito populares no século
XIV.105 Lembre-se que a prática da contrafactura (composição de um poema tomando como modelo
aspectos de outro, usando a sua melodia) estava muito disseminada na Idade Média. Lugar de destaque,
no capítulo das adaptações, ocupam as laudas florentinas livremente transpostas para a língua
portuguesa por André Dias de Lisboa (com duvidosa felicidade poética, em contraste com a elegância
dos originais, mas revelando, nessa adaptação, a influência das formas e técnicas peninsulares), no
seu livro de Laudas e cantigas spirituaaes, de 1435, que sobrevive num único manuscrito sem notação
musical.
É de notar que André Dias se dirige, na introdução, aos frades do Convento de São Domingos de
Lisboa e aos membros da Confraria do Bom Jesus por ele aí criada em 1432, instando a que «estes
melodyosos cantares, hymnos, prosas e laudes que aquy em este livro conpiley e escrevy aa honrra
do boom Jhesu, altas vozes cantade, baylade, dançade, orade, tangede em orgõos, em atabaques, com
trombas, com anafiis, com guytarras, com alaudes e com arrabiis ante o seu altar», implicando uma
exuberante expressão musical de fé cristã. Embora algumas das traduções de André Dias, prolixas
e metricamente irregulares, se afigurem incantáveis, ao menos nos moldes de um hino ou canção,
a centralidade da melodia vocal está bem patente nestes versos: «Oo Estevam martyr sancto, /
danos ora graça de te louvarmos / per muyto doçe e prazyvel canto».106 É plausível que peças como
«Spirito sancto glorioso» fossem servidas por fórmulas melódicas com uma elasticidade próxima
da salmodia, mas é também possível que as melodias florentinas associadas aos textos traduzidos
tenham servido alguns destes cantares, como «Sam Lourenço martyr», que se apresenta de seguida,

103 Biblioteca Pública Municipal do Porto, ms. nº 785 (S. Cruz 45). Transcrição in António G. Solalinde, «Fragmentos de una traducción
portuguesa del Libro de Buen Amor de Juan Ruiz», Revista de Filología Española, I (1914), pp. 162-72.
104 Manuel Pedro Ferreira, «Os instrumentos musicais no túmulo de D. Inês de Castro», in Estudos em Homenagem a Ernesto Veiga de
Oliveira, Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, pp. 167-186, e respectiva adenda (inédita).
105 Cândido Dias dos Santos, Os monges de S. Jerónimo em Portugal na época do Renascimento, Lisboa: ICLP, 1984, pp. 10-17.
106 Mário Martins, Laudes e cantigas espirituais de mestre André Dias, Roriz-Negrelos: Mosteiro de Singeverga, 1951; Luiz Francisco
Rebello, O primitivo teatro português, Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977, pp. 41-44; Manuel Calderón Calderón, «Las Cantigas
Espirituais de André Dias y la herencia trovadoresca», in O cantar dos trobadores: Actas do Congreso, Santiago de Compostela: Xunta de
Galicia, 1993, pp. 373-85.
Manuel Pedro Ferreira

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em colunas paralelas, com o texto original à esquerda, e a respectiva adaptação à direita, reveladora
da ambientação, entre nós, da forma de zajal. Uma possível adaptação da melodia italiana ao texto
de André Dias (Antologia, nº17) é facilitada pelo carácter melismático (grande número de notas por
sílaba) por ela originariamente exibido, que por norma lhe permite absorver o excedente silábico da
versão portuguesa:107

Sancto Lorenço, martyr d’amore, Sam Lourenço martyr aja de nos louvor[e],
a Cristo fosti grande servitore. por que de Jhesu foy boom servydor[e].

Con humiltade al sancto padre Boom servydor foy de Jhesu omnipotente,


fosti ubidiente; e ao sancto papa Sixto foy muito obediente,
perciò laudare sempre de’ fare e aa sancta fe de Christo converteo muyta gente,
tutta l’umana giente el nos queira converter, de todo o seu boom talente,
per te, martir valente, et di valore à verdadeira peendença, e que nos perdoe
al ‘nipotente se’ aulente flore. os nossos pecados Jhesu do mundo salvador[e].
[Sam Lourenço martyr...]

O apelo à celebração efusiva da fé, no interior da igreja, por parte de frades e membros populares de
confrarias está bem de acordo com a espiritualidade franciscana e dominicana (que em Itália teve um
papel central na difusão da lauda, vista como poderoso instrumento de acção pastoral). Contudo, no
século XV, as vigílias nocturnas onde se usavam «alaudes, guitarras, viollas, pandeiros» incomodavam
parte do clero, que procurou reprimir ou canalizar a exuberância popular para procissões, romarias,
ou as festas do Natal.108

107 Fernando Liuzzi, La lauda e i primordi della melodia italiana, Roma: La Libreria dello Stato, 1935, vol. 2, pp. 257-60; M. Martins, Laudes
e cantigas..., cit., p. 68. Apresentamos aqui uma leitura que, sem alterar qualquer vocábulo, pretende restaurar o esquema métrico-rimático da
composição, que o erudito jesuíta reproduziu com disposição inverosímil. Há gravação musical (texto português na versão de M. Martins, com
melodia florentina) pelo grupo Vozes Alfonsinas, The Time of the Troubadours, cit., faixa 16.
108 Mª João Violante Silva, «Norma e desvio...», cit.
Antologia de Música em Portugal

46 a mudança do gosto palaciano e o reforço da capela real

D. Dinis casou com Isabel de Aragão (c. 1270-1336) em 1282. Diz-se que aquela que mais tarde
foi conhecida como rainha santa «bem sabia offiiciar e cantar», e era tão «entendida e costumada
em rezar que se os seus Clerigos erravam em sa presença em leer ou em canto, ella os corrigia [e]
emendava».109 A institucionalização por D. Dinis de uma capela real, em 1299,110 satisfez decerto
D. Isabel e lançou as bases para o desenvolvimento da vida litúrgica (e, consequentemente, musical)
na corte portuguesa, sem que, numa primeira época, se possa supôr como função dessa capela (no
sentido de um pequeno corpo estável de clérigos) mais do que a manutenção de um ofício coral nas
principais horas diurnas (Laudes e Vésperas) e a celebração solene de Missa, pelo menos nos domingos
e festas principais; com D. Afonso IV, é de supôr que a celebração da Missa fosse diária, sendo o
número de capelães nela envolvidos não inferior a uma dezena, já que dez eram os capelães que o rei
encarregou de oficiar as horas canónicas e de cantar diariamente uma Missa em sua memória (para
além das Missas rezadas e de Requiem) na capela privada que instituiu em 1345 na Sé de Lisboa.111
Embora nada saibamos ao certo sobre a presença de música polifónica na corte ou nos principais
centros eclesiásticos do tempo, o ter-se criado uma Universidade em Lisboa a partir de 1288, com a
consequente circulação de informação; a circunstância de a Ars antiqua parisiense ter lançado raízes
na vizinha Castela a partir de meados do século XIII; e o facto de o Pergaminho Sharrer, atrás referido,
reflectir a influência da notação mensural francesa, fazem supôr algum contacto com os géneros
polifónicos internacionalmente mais em voga.
No que respeita à música cortês, é bem possível que a decisão de D. Afonso III, em 1258, de não admitir
mais de três jograis em permanência na corte (revelando a tendência para aí se acolher um número
superior) e de estabelecer limites monetários à recompensa do seu trabalho (revelando expectativas de
paga elevada) tenha sido respeitada durante pouco tempo; à data da morte de D. Dinis, conhecido pela
sua generosidade, Johan, jogral morador no reino (ou na cidade) de Leão, põe os jograis a bendizer a
sua memória, pois teriam deixado de receber tecidos e outros bens em abundância.112 Há notícia de que
jograis enviados pelo rei D. Dinis foram ouvidos e apreciados na corte de Aragão em 1311; as relações
com Aragão continuaram sob D. Afonso IV, pois outro jogral português aí se apresentou em 1334, e aí se
estabeleceu, entre 1336 e 1346, um casal de jograis de origem portuguesa. Em sentido inverso, sabe-se que
dois jograis aragoneses, tocadores de flauta e de gaita de foles, foram enviados para Portugal em 1347.113

109 Cit. in S. Corbin, Essai..., p. 200.


110 João António Rebello, Capella Real Portugueza: Sua origem, progresso, esplendor, decadencia e estado actual, Lisboa, 1878, pp. 9-11; Mário
de Sampayo Ribeiro, “Capela: Música”, in Verbo - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 4, Lisboa: Editorial Verbo, 1966, col. 889.
111 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e abastança de Lisboa em 1552, editado por José da Felicidade Alves, Lisboa: Livros Horizonte,
1990, pp. 133-34; Manuel Valença, A arte organística em Portugal (c. 1326-1750), Braga: Editorial Franciscana, 1990, p. 53. Robert Stevenson,
no «Prefácio» a Antologia de Polifonia Portuguesa , 1490-1680 [Portugaliæ Musica, serie A, vol. XXXVII], Lisboa: F. C. Gulbenkian, 1982, p.
vi, confunde esta fundação pia na Sé Catedral com a capela real.
112 Alexandre Herculano (org.), Portugaliæ Monumenta Historica. Leges et Consuetudines, vol. I, Lisboa: Academia das Ciências, 1856,
p. 199: «ElRey aia trez jograres em sa casa e nom mais, e o jogral que veher de cavalo doutra terra ou segrel (?) dé-lhe ElRey ataa cem
[maravedis?] ao que chus der, e nom mais se lho dar quiser». Sobre Johan jograr, veja-se, para o texto, E. Gonçalves e M. A. Ramos, A lírica...,
cit., pp. 314-15; e para o contexto, Xulio V. Fernández, Llingua y cultura lliteraria..., cit., pp. 385-89.
113 Mª Carmen Gómez, «Da música em Portugal no século XIV. Uma referência aos músicos de D. Pedro I na Crónica de Bertrand du
Guesclin de Jacquemart Le Cuvelier», Arte Musical, IV série, nº4 (supl. ao Jornal de Letras nº 214, de 11 de Agosto de 1986), pp. 2-3.
Manuel Pedro Ferreira

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Os jograis instrumentistas eram muito apreciados por D. Pedro I, o qual, segundo o cronista
Fernão Lopes, «em danças e festas [...] tomava gramde sabor» e «de dia e de noite, andava dançamdo
per mui gramde espaço». No capítulo do acompanhamento de danças, o rei tinha uma surpreendente
preferência pelas trombetas naturais de prata (normalmente usadas como instrumentos heráldico-
militares): «estas danças eram a soom dhuumas longas que estonçe husavom, sem curamdo doutro
estormento posto que o hi ouvesse, e se alguma vez lho queriam tanger, logo se enfadava delle, e dizia
que o dessem oo demo, e que lhe chamassem os trombeiros»; tendo uma vez insónia, em Lisboa,
«mandou chamar Joham Mateus, e Lourenço Pallos que trouvessem as trombas da prata, e fez açemder
tochas, e meteosse pella villa em damça com os outros».114
Segundo a Crónica de Bertrand du Guesclin de Jacquemart Le Cuvelier, o gosto musical do rei
valeu-lhe, em 1366, os reparos jocosos de um embaixador, o anglo-normando Mahieu (Mateus) de
Gournay. Tendo o embaixador comentado, durante o banquete de boas-vindas, que os menestréis
locais eram pouco sérios, D. Pedro anunciou que tinha ao seu serviço os dois melhores menestréis do
mundo e mandou-os vir à sua presença. Estes entraram da forma mais digna que se podia imaginar,
seguidos cada um deles por um assistente que carregava o instrumento — uma sanfona. Então,

«Preparam-se p’ra tocar ambos os menestréis,


E vão de sanfoninar diante do seu rei.
Quando nisto os ouve mossé Mahu de Gornei,
E percebe os elogios por que são eleitos,
Do fundo do coração aperta-se-lhe o peito.
Acabados de tocar, lhe diz o rei a eito:
‘Parece-vos, meu senhor, suficiente o feito?’
Disse Mahu de Gornei: ‘não vos ocultarei
Que no país franco, e entre normanda grei,
Pedintes pobres e cegos dele são useiros,
De tais instrumentos são únicos companheiros;
Com esse penoso objecto os burgueses embeiçam;
Daí que seja dito — instrumento esmoleiro’.
Dom Pedro, ouvindo isto, a grã dor foi atreito,
E jurou por Jesus Cristo e Pai omnipotente
Que jamais o serviriam, sendo ele vivente».115

Na sequência deste episódio, a dupla de tocadores de sanfona teria sido despedida pelo rei.
Descontando o natural exagero retórico da narrativa poética, a ideia básica — a de que o gosto pela
música jogralesca na corte de D. Pedro I, visto pelo prisma da cultura palaciana franco-normanda,
era arcaica e pouco digna da alta nobreza — é perfeitamente crível. É contudo de notar a vitalidade da
tradição instrumental que este relato reflecte, bem como a presença de sonoridades nasais, saturadas

114 Fernão Lopes, Crónica do senhor rei Dom Pedro, oitavo rei destes regnos, Porto: Civilização, 1965, pp. 61-62.
115 Mª Carmen Gómez, «Da música em Portugal...», cit. Minha tradução do original francês em verso, aí reproduzido. A versão
portuguesa do nome do embaixador inspira-se em Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando. Edição crítica por Giuliano Macchi, Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1975, pp. 452-53 («mossé Mau de Gornai, que era marichall»).
Antologia de Música em Portugal

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com bordões, e alguma complexidade heterofónica, implicada por um dueto profissional de sanfonas.
Mas qualquer que tenha sido o mérito artístico desses jograis, a tendência para a concentração do
poder e dos recursos nos círculos principescos favorecia uma cultura distintiva, mais refinada.
A actualização do gosto palaciano português deve ter cabido ao rei D. Fernando, que viria a
iniciar a aliança entre Portugal e Inglaterra em 1372. O gosto pela arte dos jograis (tendencialmente
sedentarizados e vinculados ao seu senhor como «menestréis», etimologicamente equivalente a
ministros ou servidores) deve ter continuado, mas as notícias que temos de seguida falam-nos de
músicos de superior categoria profissional. Assim, entre 1368/72 e 1374, um organista português,
Johan Bernat de Portugal, esteve ao serviço da capela de Pedro IV de Aragão.116 Em 1378, D.
Fernando procurou obter do papa o benefício da igreja de S. Martinho de Sintra para Jehan Simon
de Haspre (ou Hasprois), então jovem compositor, o que revela interesse em retê-lo, ou atraí-lo ao
seu serviço. A corte de Lisboa devia ser profissionalmente pouco atraente (aliás como a de Castela,
a julgar pelo desabafo em verso de Jacomí de Senleches em 1382: Fuions de ci!) pois Hasprois viria a
servir o rei francês em 1380, a catedral de Cambrai em 1384, e a capela papal de Avignon de c. 1390
a 1403, notabilizando-se como representante da complexa técnica de escrita polifónica conhecida
por Ars subtilior.117 Recordemos que nesta época, foram as cidades universitárias mais populosas e
de curricula mais abrangentes, as catedrais e colegiadas dos burgos comerciais mais cosmopolitas e
florescentes, a corte dos papas e as famílias reais ou ducais que protagonizaram a preferência pela
arte musical profissional a três ou mais vozes, que suplantou e fez esquecer tanto a antiga arte da
composição monódica de matriz clerical ou trovadoresca, como a polifonia simples a duas vozes
herdada do passado mais longínquo.
Apesar de tudo, a ligação da corte portuguesa às correntes mais actuais da polifonia erudita
europeia continuaria, com prováveis intermitências e variações de intensidade, até ao Renascimento.
O casamento de D. João I com Filipa de Lencastre em 1387 abriu uma via permanente de comunicação
com a corte inglesa, onde se tinha solidamente implantado a Ars nova francesa (não por acaso, no
primeiro terço do século XV os músicos ingleses, pela única vez na História, teriam um papel na
evolução da música europeia). No Livro da Montaria atribuído a D. João I, faz-se referência explícita
a Guilhaume de Machaut: defendendo que a caça é a melhor recreação do espírito, o rei (ou alguém
por ele) argumenta que ela avantaja as outras recreações não só no que oferece à vista, mas também
na estimulação terapêutica do ouvido: «ca muy fermosas cousas som de ouvir, quando os monteiros
tangem rastro [sinal de buzina, assinalando a descoberta do rasto do animal, que precede o lançamento
dos cães], e depois em ouvir quando os caães vam a achar a vozes, e acham [a caça], ja quando todos
correm ensembra: esto nom he de osmar, ca podemos dizer muy bem, que Guilherme de Machado
nom fez tam fermosa concordança de melodia, nem que tam bem pareça, como a fazem os caães
quando bem correm. Ainda mais o tanger das bozinas [dos moços e monteiros, nas fases da caça que
se seguem à corredura], e o fallar dos moços quando fallam aos caães, de mais quando dizem [para
avisar da direcção tomada pela caça] eylo vay, eylo vay, todas estas cousas som tam pertencentes

116 Mª Carmen Gómez, «Da música em Portugal...», cit.; Andrés Descalzo, «Músicos en la corte de Pedro IV el Ceremonioso (1336-
1387)», Revista de Musicología, 13 (1990), pp. 81-122 [97, 118].
117 Ursula Günther, «Hasprois, Johannes Symonis», in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie, London:
Macmillan, 1980, vol. 8, pp. 276-77.
Manuel Pedro Ferreira

49

Figura 6: Fragmento de Penha Longa


(Lisboa, Museu da Música, 1055): pormenor

pera correger o entender, se cansado he por ouvir cousas que o anoiem, e o façam cansar, como o
ruybarbo pera correger o figado».118 A comparação musical é retórica, mas podemos estar seguros de
que a Ars nova de Machaut era conhecida na corte. Um fragmento com dois Agnus Dei em polifonia
mensural a três vozes, escrito no primeiro quartel do século XV, que se conserva no Museu da Música
(Figura 6, Lâminas XIII -XIV), tem provavelmente origem na corte de D. João I.119 O fragmento fazia
plausivelmente parte de um caderno que continha, sequencialmente, versões polifónicas de cânticos
do Ordinário da Missa, e provém do convento jerónimo da Penha Longa, em Sintra, construído a partir

118 Francisco Mª Esteves Pereira (ed.), Livro da Montaria feito por D. João I, Rei de Portugal, conforme o manuscrito nº 4352 da Biblioteca
Nacional de Lisboa, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1918, p. 19. Comentário in M. P. Ferreira, «Da Música na História de Portugal»,
cit., pp. 176-77.
119 Museu da Música, MM-1055. Foi João Pedro d’Alvarenga que pela primeira vez me assinalou a existência do manuscrito. Segundo
Mª Carmen Gómez, consultada a este respeito, o fragmento deverá ser datado entre 1400 e 1420; Bernadette Nelson, que o examinou em
Lisboa a meu pedido, foi do mesmo parecer.
Antologia de Música em Portugal

50
de 1400; a Ordem de S. Jerónimo era uma comunidade conhecida pelo alto nível de instrução dos
seus membros, e a sua instalação em Portugal, na quinta de Penha Longa, foi favorecida pela casa real.
D. João I tinha ao seu serviço uma capela com capelão-mor, catorze cantores e sete moços, o que
estava ao nível das melhores capelas principescas do tempo, permitindo a execução, em condições
ideais, de obras polifónicas. Note-se de passagem que a interpretação de música mensural (ou «canto
d’órgão») não se deve confundir com a prática do contraponto improvisado, como aquele que ornou,
segundo nos conta Azurara, um Te Deum cantado em Ceuta logo após a sua conquista em 1415.120 O
condestável Nun’Álvares Pereira dispunha de uma capela própria, tal como os Infantes D. Fernando e
D. Pedro, que tinham ao seu serviço, cada um, sob as ordens do capelão-mor, treze capelães cantores e
oito moços (não parece que D. Henrique tivesse capela privada, mas, como mestre da Ordem de Cristo,
bem provida de clérigos cantores, dela não tinha necessidade). No testamento de D. Fernando (de
1437), figura um «livro de canto d’orgom», para além de livros de cantochão e «doze livros pequenos
processionayros», cujo número se ajusta à dimensão da capela. O infante D. Duarte, antes de aceder
ao trono, tinha, para além deste pessoal, mais oito capelães.121
A música instrumental não deixara de ser cultivada na corte, pois há notícia de que menestréis
portugueses se apresentaram ao duque da Borgonha em 1413 e em 1426. Na mesma época, a corte
de Aragão era o centro musical mais activo e internacional da Península; em 1427, executantes de
charamela portugueses visitaram Aragão, e no ano seguinte, a visita foi retribuída com o envio a
Portugal de um organista e de um harpista aragoneses.122 O movimento diplomático que estas
viagens revelam deu frutos, já que D. Duarte casou em 1428 com D. Leonor de Aragão (que cantava
agradavelmente acompanhando-se ao manicórdio); e o seu irmão D. Pedro, duque de Coimbra e
regente do reino entre 1440-1446, casou em 1429 com D. Isabel, filha do conde de Urgel. Os infantes
aragoneses visitaram Portugal em 1432. O conhecimento da música europeia não dependia apenas da
presença em Portugal de princesas e príncipes estrangeiros, pois sabe-se que o infante D. Pedro fez,
entre 1425 e 1428, uma longa viagem até aos confins da Europa (passando inicialmente pela Inglaterra,
onde se apresentou na corte, e regressando por Veneza); e que o neto do Condestável Nun’Álvares,
D. Afonso, Conde de Ourém e (mais tarde) Marquês de Valença, fez três grandes viagens entre 1429
e 1452, que o levaram à Flandres (onde contactou com a corte borgonhesa), à Suíça (onde então se
reuniam os cardeais em Concílio), a várias cidades de Itália (onde conheceu o papa, o imperador da
Alemanha e o rei da Hungria) e à corte aragonesa de Barcelona, pelo menos.123
No Leal Conselheiro de D. Duarte, inclui-se um informativo e detalhado Regimento da Capela
Real, talvez inspirado em modelos ingleses ou aragoneses (pois o seu mestre de capela era de origem
aragonesa); é um texto merecedor de leitura atenta, em que se menciona tanto a polifonia improvisada
(«descanto») como a polifonia erudita («canto feito») cantada em contexto religioso.124 São de realçar

120 Cf. Solange Corbin, Essai, cit., p. 386.


121 Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), edição diplomática por José João Alves Dias, Lisboa, Estampa, 1982, pp.
179-80; Mª Helena da Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos finais da Idade Média: estudo de história rural, 2 vols., Coimbra: Faculdade de
Letras, 1983, vol. I, pp. 565-66; João Silva de Sousa, A casa senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa: Horizonte, 1991.
122 Mª Carmen Gómez, «Da música em Portugal...», cit.; id., La música medieval en España, Kassel: Reichenberger, 2001, pp. 291-95.
123 Veja-se o conjunto de ensaios incluídos no livro D. Afonso, 4º Conde de Ourém, e sua época. [Actas do] Congresso Histórico, coord.
Carlos Ascenso André, Ourém: Câmara Municipal, 2004.
124 Dom Duarte, Leal Conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1998, pp. 342-48; Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte, cit., pp. 209-17. Comentário in Manuel P. Ferreira, «Da Música na
História de Portugal», cit., pp. 176-77.
Manuel Pedro Ferreira

51
recomendações como estas: «que se conheçam as vozes dos capellaães, qual é pera cantar alto, e
qual pera contra, e qual pera tenor. E assi cantem continuadamente pera cada ũu seer mais certo no
que cantar»; «é muito necessario de se criarem moços na capela, e que sejam de idade de vii ou viii
annos, de boa desposiçom em vozes [...] Item em cada capela, que boa deve seer, devem seer criados
quatro cachopos ao menos, ũus que hajam, sobre os outros, tres ou quatro annos, assi que quando ũus
forem d’oito que os outros sejam de doze. Porem, com razom, deviam seer seis, porque aas vezes ũu
é doente ou torvado, e o outro fica em seu logar».125 A presença de moços cantando a linha superior,
juntamente com os capelães que asseguravam as linhas do Alto, do Contra e do Tenor, permitia a
execução de peças polifónicas a quatro vozes, embora nesta época a textura habitual não superasse
as três vozes. A qualidade artística desta capela é atestada pela tentativa castelhana de recrutar aí
músicos (Álvaro Fernandes, cantor e organista, aliciado quando visitava o rei de Castela, e três colegas
por ele indicados), tentativa prontamente contrariada por D. Duarte.126 A sua irmã D. Isabel (1397-
1471) casou em 1430 com o poderoso Duque da Borgonha, Filipe, o Bom, em cuja corte se distinguiu
Binchois. Talvez a basse danse chamada La portingaloise («A portuguesa»), copiada de um manuscrito
de Bruges, tenha a ver com uma homenagem a D. Isabel (ou ao seu filho Carlos) por parte de músicos
do seu séquito.127

125 Dom Duarte, Leal Conselheiro, cit., pp. 342-43.


126 Robert Stevenson, «Iberian Musical Outreach Before Encounter with the New World», Inter-American Music Review, vol. VIII/2
(1987), pp. 13-112 [89]; Rita Costa Gomes, A corte dos reis de Portugal no final da Idade Média, Lisboa: Difel, 1995, pp. 113-14.
127 R. Stevenson, «Iberian Musical Outreach... », cit., p. 95. Carlos o Temerário, que sucedeu a seu pai em 1467, tinha orgulho na sua
ascendência materna, ao ponto de se apresentar com a expressão Nous autres Portugalois, ou seja, «nós, portugaleses» (cit. por Jacques
Paviot, «Portugal et Bourgogne au XVe siècle. Essai de synthèse», in Le Portugal du XVe siècle. Actes du Colloque, Paris, 12 Mars 1987,
Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXVI, Lisboa-Paris, 1989, pp. 121-43 [125].
Antologia de Música em Portugal

52 ligações a borgonha e inglaterra

O fragmento com polifonia do Próprio da Missa, de meados do século XV, recentemente descoberto
em Leiria, parece provir de uma colectânea de origem borgonhesa; no seu estudo do manuscrito,
Bernadette Nelson evidenciou a proximidade estilística entre os graduais aí incluídos e a música de
Binchois.128 Atendendo à sua localização actual, pode especular-se que o livro de que o fragmento
provém tenha sido adquirido ou apropriado pelo Conde-Marquês D. Afonso, conhecido por fazer
gala de uma «cultura de aparato» de recorte cosmopolita (de que fazia parte a polifonia erudita), a
fim de abrilhantar as cerimónias religiosas que contassem com a sua presença, para o que poderia
ter associado a sua capela privada à Colegiada de Santa Maria de Ourém por si fundada em 1445;
esta devia estar a funcionar regularmente junto ao seu novo e imponente Paço a partir de meados da
década de 1450.129
O Conde-Marquês foi quem chefiou a embaixada que levou em 1452 D. Leonor de Portugal (1434-
1467), filha de D. Duarte e D. Leonor de Aragão, a Itália, para casar com Frederico III da Aústria, Imperador
da Alemanha, que havia entretanto impulsionado a composição polifónica nos seus domínios com o
concurso de músicos flamengos e ingleses. É sabido que em Janeiro de 1467 D. Leonor recebeu a visita
de um cavaleiro, vindo de Portugal como emissário de D. Afonso V, e que vinha acompanhado de um
tocador de harpa. Este havia aí aprendido músicas e danças portuguesas, o que levou D. Leonor a tomá-lo
provisoriamente ao seu serviço.130 Pode pensar-se, entre outras hipóteses, que a circulação na Alemanha
de um tenor (ou duo) polifónico intitulado Portugaler — depois transformado (com possível intervenção
de Dufay) numa canção a três vozes, Or me veult bien esperance mentir, e seguidamente adoptado como
«square» na tradição polifónica inglesa — se relaciona com o repertório deste harpista (ou de músicos que,
como ele, transmitiram à corte imperial exemplos de música portuguesa).131
A institucionalização canónica da capela real, através de licença do papa Eugénio IV, havia-se
dado em 1439 sob a regência conjunta de D. Leonor e do Infante D. Pedro, duque de Coimbra.132 O
rei D. Afonso V, herdeiro dessa institucionalização, tinha especial inclinação para a música. Entre
os instrumentistas ao seu serviço por volta de 1450, contam-se dois trompetistas e um organista
flamengo, que foram seguidamente contratados pelo Duque de Borgonha.133 Ao serviço da corte
teve também vários compositores de polifonia, entre os quais Álvaro Afonso e Tristão da Silva. De

128 Bernadette Nelson, «The Leiria fragments: Vestiges of Fifteenth-Century Northern Polyphony in Portugal», in Revista Portuguesa de
Musicologia nº 14, no prelo.
129 Luciano Coelho Cristino, «D. Afonso, 4º Conde de Ourém e a fundação da Colegiada», in D. Afonso, 4º Conde de Ourém, cit., pp.
65-80; Saul António Gomes, «O Condado de Ourém em tempos medievais», ibid., pp. 93-156 [109-10]; António Resende de Oliveira, «Mais
pedras do que livros: D. Afonso, 4º Conde de Ourém e a cultura nobiliárquica do seu tempo», ibid., pp. 293-310.
130 Luciano Cordeiro, Portugueses fora de Portugal. Uma sobrinha do infante, Imperatriz da Alemanha e Rainha da Hungria, Lisboa:
Imprensa Nacional, 1894, p. 91.
131 Margaret Bent, «The Songs of Dufay. Some questions of form and authenticity», Early Music , VIII (1980), pp. 454-59; Mª Carmen
Gómez, «Da música em Portugal...», cit.; R. Stevenson, «Iberian Musical Outreach...», cit., pp. 91-96; David Fallows, The Songs of Guillaume
Dufay, American Institute of Musicology/Hänssler Verlag, 1995, pp. 242-49. Veja-se ainda Bernadette Nelson, «D’ou vient cela? Franco-
Flemish Influences in English and Spanish Keyboard Music during the Sixteenth Century», in Cinco siglos de música de tecla española, ed.
L. Morales, Garrucha: Asociación cultural Leal, 2007, pp. 57-80, de que tivemos conhecimento estando este livro em provas.
132 Ivo Carneiro de Sousa, «Capela Real», in Dicionário de História Religiosa de Portugal, cit., vol. 1, Lisboa: Círculo de Leitores,
2000, pp. 286-88.
133 Jeanne Marix, Histoire de la musique et des musiciens de la cour de Bourgogne sous le règne de Philippe le Bon, 1420-1467, Strasbourg,
1939, cit. por J. Paviot, «Portugal et Bourgogne au XVe siècle», cit., p. 134.
Manuel Pedro Ferreira

53
Álvaro Afonso, conhecemos um poema fragmentário, de quando era cantor da Capela Real (1438-
1446), graças ao Cancioneiro da Biblioteca Vaticana; em 1452 uma carta identifica-o como mestre
de capela de Afonso V, cargo que deve ter desempenhado por muito tempo, pois foi autor de um
Ofício comemorativo da tomada de Arzila (1471), parcialmente polifónico, que não chegou até nós.
Do compositor e poeta aragonês Tristão da Silva, conhecemos algumas opiniões teóricas e cinco
poemas (transmitidos pelo Cancioneiro Geral de Garcia de Resende); temos notícia de que o rei lhe
encomendou um opúsculo manuscrito centrado no repertório cortês, intitulado Amables de Musica,
que infelizmente se perdeu.
A ligação da Dinastia de Avis a Inglaterra, através dos Lencastre, levou D. Afonso V a enviar aí Álvaro
Afonso, entre 1448 e 1461, para se informar do modelo organizativo seguido na capela real inglesa, que
era a maior da Europa, com cerca de trinta cantores, número regulamentar no tempo de Henrique VI,
enquanto as cortes de Aragão, da França e da Borgonha se contentavam com dez a vinte profissionais
do canto;134 desconhecemos, porém, os efeitos práticos do interesse demonstrado pelo monarca, após o
regresso do seu súbdito com um manuscrito preparado pelo deão da Capela inglesa (e que ainda hoje
se conserva na Biblioteca Pública de Évora), embora seja plausível que esse interesse se tenha traduzido
no reforço da capela real portuguesa.135 É de lamentar que não nos tenha chegado nenhum documento
musical que testemunhe a sua vitalidade artística. O mais próximo, em data, é um Kyriale com fólios do
último terço do século XV, de provável origem jerónima (escrito talvez no Convento de Nossa Senhora
do Espinheiro em Évora para os eremitas da serra de Ossa, em 1476), onde se encontram cânticos do
Ordinário da Missa escritos em notação mensural, incluindo um Credo a duas vozes (Antologia, nº20,
Lâmina XV, e respectiva gravação).136
Reatando práticas do seu antecessor no trono, D. João II, segundo o seu cronista, mandou vir
da Alemanha, Flandres ou Inglaterra, com grande despesa, muitos menestréis, quer de música
alta (envolvendo instrumentos com grande volume de som, apropriados para ocasiões militares,
cerimoniais ou festivas), quer de música baixa (instrumentistas de câmara).137 A aliança matrimonial
com Castela, concretizada em 1490, deverá contudo ter potenciado os contactos entre as duas capelas
reais, tirando partido da sua vizinhança geográfica; as práticas musicais da corte castelhana poderão
a partir de então ter servido de paradigma, tomando o lugar que antes tinha sido de Inglaterra e de
Aragão. Segundo o cronista Rui de Pina, D. João II «trouxe sempre em sua Capela muitos capelães e
singulares cantores [...] para se o culto divino celebrar e fazer perfeitamente e com muita solenidade»,
e «foi o primeiro Rei que em sua Capela fez continuadamente rezar as Horas como em Igreja Catedral»
(ou seja, incluindo as horas menores do Ofício diurno e as Vigílias nocturnas), implicando tudo isto
uma reorganização da qual não conhecemos os contornos exactos, mas que devia estar de acordo

134 Cf. Leeman L. Perkins, Music in the Age of the Renaissance, New York: W. W. Norton, 1999, pp. 89-96, e Maricarmen Gómez Muntané,
La música medieval en España, cit., pp. 291-92, 296-98.
135 Forma siue ordinaçõ capelle illustrissimi et xtianissimi principis Henrici sexti Regis Anglie et ffrancie ac dni hibernie, descripta Serenissimo
principi Alfonso Regi Portuigalie illustri, per humilem servitorem suum, Willi’u Say, Decanum capelle supradicte (cota: cód. CV/1-36 d). O
documento, cujo prefácio refere Álvaro Afonso, descreve várias cerimónias litúrgicas, especialmente a da coroação do rei e da rainha e a
das exéquias reais; um apêndice musical (fols. 36v-41r) inclui, na típica notação Sarum, o repertório da cerimónia da coroação e a Missa
respectiva. Veja-se a transcrição do texto in Liber regie capelle: a Manuscript in the Biblioteca Pública, Evora, ed. W. Ullmann (with D. H.
Turner), London, 1961.
136 Arquivo Distrital de Évora, Mús. Lit. Ms. nº 70.
137 Crónica de el-Rey D. Joam II, cit. por Gerhard Doderer, «A música portuguesa na época dos Descobrimentos», Revista da Universidade
de Coimbra, vol. 36 (1991), pp. 343-54 [345].
Antologia de Música em Portugal

54
com a tendência, atestada na época, de aumento dos efectivos vocais efectivamente utilizados. Esta
reorganização foi, porém, concretizada só no final do reinado, pelo que os seus frutos seriam colhidos
sobretudo por D. Manuel I.138

138 Sobre a música na época de D. João II e de D. Manuel I, veja-se Gerhard Doderer, «As manifestações musicais em torno de um casamento
real (Évora, 1490)», separata de Bartolomeu Dias e a sua época. Actas do Congresso Internacional, Porto, 1989, vol. IV, pp. 225-34; id., «A música
portuguesa na época dos Descobrimentos», cit.; Manuel Pedro Ferreira, «A música religiosa em Portugal...», cit.
Manuel Pedro Ferreira

os músicos e a teoria musical, até 1500 55

Possivelmente muitos dados sobre músicos activos em Portugal antes de 1500 estão ainda por
investigar nos arquivos. Nem sempre é fácil determinar quem desempenhava funções musicais, na
corte ou na Igreja. Os cónegos da catedrais, que inicialmente viviam em comunidade e asseguravam
o ofício coral diurno e nocturno, que sustentava a permanência do elo com o sagrado, cedo passaram
a exigir bens e casa própria (onde por vezes mantinham família) e delegaram as funções corais em
capelães, dedicando-se quase exclusivamente à administração das propriedades da Igreja. Sendo a
manutenção e correcção do culto algo de fundamental numa sede de bispado, o director litúrgico-
musical (cantor ou chantre) participava na preparação dos jovens admitidos nas escolas capitulares; a
centralidade da sua função levou a que fosse considerada a segunda dignidade mais importante entre
os cónegos, logo a seguir ao Deão. Nas colegiadas, que replicavam a organização das catedrais em
localidades que não eram sede de bispado (como Guimarães, Óbidos, Torres Vedras e Santarém), o
chantre era também o segundo cónego mais importante, a seguir ao Prior.139
O chantre reteve até à primeira metade do século XIII funções de preparação e direcção coral,
acrescidas de responsabilidades de ensino e também de administração das terras que lhe asseguravam
a subsistência, o chantrado.140 No século XIV, a qualidade de chantre aparece esvaziada de conteúdo
musical (delegado no sub-chantre) e era cobiçada apenas pela dignidade hierárquica e pelos
rendimentos associados à posição, uma entre as muitas que estavam a concurso (atendendo a laços
familiares, cunhas, conveniências políticas, etc.) na bolsa de benefícios eclesiásticos controlada pelo
alto clero. Apesar de tudo, havia quem se interessasse por livros de canto gregoriano: em 1344, Vasco
Martins, chantre de Braga (dignidade que acumulava com a qualidade de cónego de Évora, porcionário
de Oviedo e reitor da igreja de Santa Maria de Atães) recebeu em doação, do seu homónimo bispo de
Lisboa, um «livro official santal de canto de quatro cordas», ou seja, um antifonário santoral para o
Ofício com notação musical sobre pauta; entre os restantes livros então doados, havia mais dois que
seguramente continham cantochão.141
Quanto à formação musical dos clérigos, há indícios, entre os séculos XIII e XVI, de que
frequentemente deixava muito a desejar em termos práticos.142 No que respeita à teoria musical, seria
certamente cultivada (com base nos escritos de Boécio) na Universidade, onde a cátedra de música
foi criada por D. Dinis em 1323; mas a quase absoluta inexistência em Portugal de manuscritos
conservados contendo tratados musicais, antes de 1500, parece indicativa de generalizada anemia

139 S. Corbin, Essai..., cit., pp. 202-215; veja-se também José Augusto Alegria, O ensino e prática da música nas Sés de Portugal,
Lisboa: ICLP, 1985.
140 Mª Cristina Almeida e Cunha, A Chancelaria Arquiepiscopal de Braga (1071-1244), A Coruña: Toxosoutos, 2005, pp. 106-9. Inclui
identificação de catorze chantres bracarenses, entre os anos de 1101 (Mido Viliamondes) e 1243 (João Egas).
141 António Domingues de Sousa Costa, Monumenta Portugaliæ Vaticana, vol. I: Súplicas dos Pontificados de Clemente IV, Inocêncio VI
e Urbano V, Roma-Porto, 1968, p. 29 [nº 53: súplica de D. Beatriz, rainha de Portugal, em favor de Vasco Martins]; Daniel Williman (ed.),
Bibliothèques ecclésiastiques au temps de la Papauté d’Avignon, Tome I: (1) Inventaires de bibliothèques et mentions de livres dans les Archives
du Vatican (1287-1420) – Répertoire. (2) Inventaires de prélats et clercs non-français – Édition, Paris: C.N.R.S., 1980.
142 Mª João Violante Silva, «Norma e desvio...», cit. Os indícios prolongam-se até ao Concílio de Trento, onde o arcebispo de Braga se
queixa de que havia então «canonicatos rendosíssimos, mas os cónegos, ordinariamente, são homens inúteis para a Igreja, a não ser no que,
mal e sem devoção, cantam no coro» (cit. in José Sebastião da Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal (sécs. XVI a XVIII),
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, p. 42).
Antologia de Música em Portugal

56
teórica e deixa adivinhar o grande peso da oralidade no ensino. O diagrama musical com intervalos da
escala diatónica — interpolação de tradição moçárabe — incluído nas cópias das Etimologias de S. Isidoro
conservadas em manuscritos de Alcobaça (Lisboa, B. N., Alc. 446) e de Santa Cruz de Coimbra (Porto,
B.P.M., ms. 21)143; a mnemónica relativa à notação aquitana acrescentada num documento notarial
do século XIII e num processional do século XIV; alguma súmula de tonário colocada em apêndice a
um antifonário, é tudo quanto até agora foi encontrado, para além da cópia alcobacense de um tratado
anónimo tardio em latim e de uma cópia, datada de 1494, de um tratado em português sobre monodia
gregoriana, que se inscreve numa tradição quatrocentista ibérica insuficientemente valorizada.144
O panorama histórico era certamente mais rico do que os documentos sobreviventes sugerem,
pelo menos nos círculos próximos da realeza: a prática da polifonia artística na corte exigia dos
cantores conhecimentos sobre o sistema harmónico, a solmização, a extensão do sistema guidoniano
(em conexão com a musica ficta) e as figuras de notação mensural; os mestres de capela deviam
ser especialmente competentes do ponto de vista teórico. De facto, no último terço do século XIV
havia emergido nos círculos corteses a figura do compositor profissional, técnico de música mensural
polifónica, fluente em latim escolástico e conhecedor tanto do tratado de Musica de Boécio como do
repertório eclesiástico. Este tipo de compositor era simultaneamente um artista prático e um intelectual.
A sua educação permitia-lhe ser poeta das suas próprias criações musicais. Progressivamente,
esta nova figura social, que inicialmente constituía uma pequena elite cosmopolita, iria impor nos
salões da alta nobreza o seu gosto em matéria de canção, dando-lhe um desenvolvimento musical
autónomo, incluindo o uso da escrita a várias vozes. Na segunda metade do século XV, o novo gosto,
sustentado tanto por uma educação aristocrática que tinha incorporado o ideal do musicus, como
pelo crescimento do número de cantores especializados em música mensural, permitiu a emergência
de repertórios profanos musicalmente elaborados, acessíveis a não profissionais.
Em Portugal, a primeira figura local conhecida do tipo acima esboçado é um clérigo, Álvaro
Afonso, cantor do infante D. Pedro — ele próprio poeta — e depois mestre de capela de D. Afonso V.
Não se conserva nenhuma das suas composições musicais, embora alguma da sua poesia cortês tenha
sido recolhida no Cancioneiro compilado por Garcia de Resende. Também no Cancioneiro de Resende
se encontram traços da actividade poética de Tristão da Silva, compositor nascido em Tarazona que
se colocou ao serviço do rei português. A sua actividade ilustra essa nova união de competências
intelectuais: poeta e músico teoricamente educado. Com a sua vinda para a corte portuguesa, o debate
teórico contemporâneo em que ele participava não podia ser aí ignorado. As opiniões de Tristão da
Silva foram referidas por Bartolomé Ramos de Pareja no tratado Musica practica, de 1482 (e, por
seu intermédio, citadas posteriormente por Pietro Aaron no Lucidario in musica), e também por
Francisco Vellez de Guevara (num opúsculo perdido, dedicado ao cardeal D. Henrique). Ramos de
Pareja trata-o por «hombre de muy sagaz ingenio», com suficiente influência para haver «cantores
[seus] seguidores», embora não cale pontuais discordâncias teóricas, referindo uma disputa, ocorrida
na década de 1460, sobre tetracordes conjuntos e disjuntos.

143 Há reprodução deste último diagrama no Inventário dos códices iluminados até 1500, coord. Isabel V. Cepeda, vol. 2, Lisboa: Ministério
da Cultura, 2001, p. 144.
144 Sobre a mnemónica acima referida, veja-se Manuel P. Ferreira, «Notation and Psalmody...», cit., e Michel Huglo & Manuel Pedro
Ferreira, «O processional português de Chicago», Revista Portuguesa de Musicologia nº 14, no prelo. Relativamente ao tratado de cantochão,
veja-se Harvey L. Sharrer, «A Late Fifteenth-century Portuguese Plainchant Treatise», a publicar no mesmo lugar.
Manuel Pedro Ferreira

57
A par deste conhecimento teórico, pode assumir-se a adopção entre os capelães da corte de práticas
de enriquecimento harmónico relativamente modernas, que facilmente se transmitiriam a outros
cantores. Um modo de improvisar polifonia a três ou quatro vozes a partir de uma melodia gregoriana
— que se poderia designar, consoante a perspectiva, como um fauxbourdon tardio ou como uma
forma primitiva de fabordão (de qualquer modo, uma abordagem típica da segunda metade do século
XV) — aparece espelhado num Benedicamus domino a 3 vozes (Tiple/Tenor/Contra), transcrito em
1504 num processional cisterciense de Lorvão (Antologia, nº 21).145
A divulgação de noções teóricas sobre música mensural e a circulação em Portugal do repertório
dos compositores franco-flamengos é atestada por textos da época. De Garcia de Resende, que era
muito gordo, diz Afonso Valente:

Dizem que tangeis laúd


e tocais bem os bemoles bemoles: hexacorde mole
e pousais em retrapoles retrapoles: de retropolex (Fá grave)
abaixo de gama ud. gama ud: gamma ut (Sol grave)
Se tangeis por bequadrado bequadrado: hexacorde duro
enflamado como chama
pareceis odre apojado
como mama.

Neste poema satírico, a terminologia musical é abundante, e revela um conhecimento teórico


fora do comum, com referência às modernas extensões do sistema guidoniano: o «retrapoles», ou
seja, lugar por detrás do polegar, indicando nota inferior ao grau mais grave do sistema, gamma-ut.
Não creio que seja importante, ou sequer possível, saber se esta imagem de Resende como músico é
realista, ou construída apenas para efeito retórico; o importante é reconhecer a facilidade com que um
poeta do seu círculo se podia apropriar de termos técnicos próprios do musicólogo de então.
Não se trata de uma excepção, mas de um caso representativo. No Cancioneiro de Resende, há
uma sequência de vinte poemas, anteriores a 1484, endereçados ao Duque de Viseu e assinados por
dezanove autores, alusivos às pancadas que um cantor «tipre» (designação derivada de triplum, voz
mais aguda de um conjunto polifónico a três vozes) deu a um «tenor» (aquele que, tradicionalmente,
mantém as notas que servem de sustentáculo ao complexo polifónico), em paga de outras pancadas
antes recebidas. Aí encontramos versos como:

145 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lorvão nº 2 (C. Forte, Est. 3-l.6, nº 97), fol. 35r. Transcrição in Kurt von Fischer, Handschriften
mit mehrstimmiger Musik des 14., 15. und 16. Jahrhunderts [RISM, B IV4], vol. II, München-Duisburg: G. Henle, 1972, p. 1131. Esta
transcrição mantém a notação original, não mensural, na qual só o alargamento das notas que finalizam a primeira parte, a duplicação
a uníssono de outras, e o uso de sinais de congruência/suspensão, traem a diferenciação de valores de duração. Na presente Antologia,
oferece-se uma interpretação rítmica em notação moderna. O estilo corresponde ao descrito, entre outros, por Guilielmus Monachus: cf.
Ernest Trumble, Fauxbourdon. An Historical Survey, vol. I, Brooklyn: Institute of Mediaeval Music, 1959, pp. 41-67, e tem relação (como
gentilmente me assinalou Bernadette Nelson) com a textura harmónica de Qui fecit celum, de Juan de Triana, pequena peça copiada no
famoso Cancioneiro da Colombina.
Antologia de Música em Portugal

58 O tipre nom aguardou


que fossem buscar estante, estante: para livro de coro
como vio o tenor diante, tenor escrito: base para improvisação
di avante
a musica começou. (...)
O tenor desacordava, desacordava: fugia da nota certa
mas o tipre, por ser boom, ser boom: ter bom ouvido
algũas vezes errava, errava: ia atrás do outro
porque se nas costas dava
nam soava nam soava: ouvia-se mal
e ficava em somitoom. somitoom: meio-tom

Nesta série de textos, ao lado de termos musicais mais ou menos correntes, como «compasso»,
«descanto» e «contraponto», encontram-se outros relativos a notas ou intervalos — fa ut, «somitoom»,
«oitava», «quarta», «diapasam» — e outros ainda de cariz acentuadamente técnico, como «voz
quadupra», «porlação maior» e «síncopa». O uso dos termos mais especializados revela, em geral,
familiaridade com o seu sentido. Isto significa que os conhecimentos musicais eram compartilhados
por um número não depreciável de autores. Três dos poemas revelam, para além do mais, que uma
cópia do Agnus Dei da Missa L’homme armé de Johannes Ockeghem circulava entre os autores: Afonso
Valente («do tipre ao tenor doze compassos achei»), Joam de Montemor («Meteo porlação maior /
seis que terceira seis que sei / que lhe deram grande dor, /com as quaes cantou, senhor, / tres vezes
Aque d’El-Rei!») e Fernam de Crasto:

Quando vi ter oo tenor


um pontinho na meetade
da coroa d’outra cor,
assentei caa na vontade
qu’era porlação maior.
Cuidei qu’era o Anos Dei
que cantava este tenor
da missa do L’ om’ armey,
senam quando ouvi, senhor,
dar brados Aque d’El-Rei! 146

146 Para um comentário mais pormenorizado, incluíndo a identificação da Missa em questão, veja-se Manuel Pedro Ferreira, «L’homme
armé no Cancioneiro de Resende», Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nº 16, Lisboa: Colibri, 2005, pp. 259-68.
Manuel Pedro Ferreira

a nova trova palaciana, a música teatral e as polifonias simples 59

Estes poemas eram propriamente trovas, ou seja, poemas cantados. Já mencionámos que, depois de D.
Dinis, a tradição lírica Galego-Portuguesa declinou rapidamente. A poesia cantada parece ter retomado o
seu antigo prestígio no contexto cortês somente na segunda metade do século XV. Nisto, o caso português
assemelha-se ao dos outros reinos peninsulares, se bem que se possa suspeitar de algum desfasamento
relativamente a Aragão e Castela. Esse novo prestígio advinha-lhe, por um lado, da revalorização da
consciência literária, e por outro, de uma decisiva transformação no seu revestimento musical. A cantiga
renascentista (= canción) herda da sua antecessora a temática amorosa e o princípio de construção poética,
a qual tende, na segunda metade do século XV, a assumir a forma ABBA cddc abba ou ABAB cdcd abab; este
tipo de cantiga distingue-se do género concorrente, o vilancete (= villancico), pela presença de um mote
de 4, 5 ou 6 versos cujo esquema aparece integralmente reproduzido na segunda parte da estrofe. Tanto
cantiga como vilancete são poemas destinados ao canto; mas o canto, agora, passa a ser tendencialmente
concebido de forma polifónica.
Menos frequentemente, a polifonia era aplicada ao romance, género narrativo que ressurge nos
finais do século XV com maior regularidade métrica e variedade melódica do que no passado.
Normalmente, os arranjos polifónicos de romances pré-existentes implicam uma compressão do
texto, satisfazendo-se com um alusão aos eventos narrados, com que a audiência seria familiar;
simbolizavam assim a sua apropriação, mas também a elevação estética associada a um modelo de
comunicação palaciano. A compressão do romance podia também dar origem a formas monódicas
elaboradas. Assim, a morte do infante D. Afonso, primogénito de D. João II, de uma queda de cavalo
em 1491, foi pretexto para várias elegias poéticas e um romance em castelhano de Frei Ambrosio
Montesino, a partir do qual se constituiu um pranto conservado com a sua música, em notação
mensural, numa antologia compilada em França por volta de 1500.147 O seu texto, copiado por alguém
que conhecia mal as línguas ibéricas, trai a sua circulação em Portugal; sem os muitos francesismos
patentes no manuscrito, desenvolvendo as abreviaturas, substituindo «gn» por «nn» e regularizando
certas ocorrências, o texto ficaria assim:

Ay, ay, ay, ay, que foertes pennas!


Ay, ay, ay, ay, que forte mal!
Hablando estava la reyna en su pallacio real
Con la infanta de Castilla, princesa de Portugal.
Ay, ay, ay, ay! que fortes [penas, etc.]
Ally vino hun quavallero con grandes lloros llorar:
«Novas te trago, sinnora, dolorosas de contar,
Ay, ay, [etc.]
Ay no son de reyno estranno, daqui son, de Portugal.

147 Maricarmen Gómez [Muntané], «¡Ay, ay, ay, ay! ¡Qué fuertes penas!, planctus por la muerte de Don Alfonso, príncipe de Portugal
(†1491)», Revista Portuguesa de Musicologia, nºs 4-5 (1994-1995), pp. 7-15.
Antologia de Música em Portugal

60
Voestro princype, sinnora, voestro princype real
Ay, ay, [etc.]
Es caido dun cavallo e s’alma quere a Dios dar;
Sy lo queredes de ver vivo, non querades de tardar.
Ay, ay, [etc.]
Ally estava el rey su padre, que quere desperar,
Lloran todas mongeres cazadas e por casar».
Ay, ay, [etc.]

Existe refrão intercalar também em certos romances associados a uma melodia em estilo
tradicional, como aquele que evoca a queda do reino de Granada nas mãos dos castelhanos, em 1492,
e que, nas suas versões mais curtas, se pode igualmente assimilar à tradição do pranto. Trata-se de
Paseávase el rey moro (incluído num dos CDs anexos), em que o rei derrotado vai periodicamente
suspirando: «Ay, mi Al-hama!». Há diversas versões quinhentistas desta melodia, publicadas com
acompanhamento de vihuela; o romance foi muito popular em Portugal.148
É significativo da degradação social e artística que a figura de trovador havia sofrido entre 1350
e 1450 que nesta nova etapa, a antiga oposição entre trovador (criador poético-musical) e jogral
(executante), seja substituída, na terminologia de Juan del Encina, pela oposição entre o «poeta»,
mestre que contempla racionalmente os elementos da arte, e o «trovador», um simples prático.149 Esta
oposição sobrepõe-se àqueloutra, tradicional, entre musicus (sabedor de música) e cantor (fazedor de
música), o que é uma novidade, pois os trovadores medievais eram mestres na poesia, mas as suas
melodias eram de cantor, não de musicus.
Um verdadeiro músico, no sentido erudito, não se limita a usar a sua voz numa toada; exerce um
conhecimento. A arte musical deste tempo, em consonância com o que se passava no resto da Europa, já
não era, conceptualmente, uma arte monódica, mas polifónica; as formas de expressão tinham mudado
radicalmente. Ainda que, na lírica profana, práticas anteriores sobrevivessem na conjunção de uma voz
de canto com acompanhamento instrumental improvisado, o estilo da linha melódica principal tinha-se
modificado de acordo com o hábito erudito da mensuração estrita, capaz de acomodar tanto o melisma
decorativo como os padrões rítmicos da música tradicional. O ideal polifónico impunha-se mesmo ao
intérprete tecnicamente menos apetrechado, influenciando a realização sonora das melodias isoladas
que aparecem transmitidas a par das composições a várias vozes. Portugal participou vigorosamente no
movimento cultural do qual derivam os cancioneiros polifónicos renascentistas. Contudo, o repertório
correspondente de cantigas, vilancetes e romances, apreciado e cultivado ao longo de gerações, conserva-se
somente em manuscritos do século XVI, de que falaremos adiante.
Neste contexto, a referência a Gil Vicente como «trovador, mestre da balança» indica que se tratava,
não só de um ourives, mas de um músico prático. De facto, as suas obras teatrais, representadas na
corte, estão pejadas de citações musicais e incluem inúmeras referências a danças (como a «folia»)
e peças vocais, de índole profana ou religiosa, cantadas durante as representações; essas inserções
musicais aparecem perfeitamente integradas na dramaturgia vicentina, quando não a alicerçam como
148 R. Menéndez Pidal, Flor nueva de romances viejos, 3a ed., Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1941, pp. 243-45. As versões melódicas de Diego
Pisador, Miguel de Fuenllana e Luys de Narváez aparecem sobrepostas para melhor comparação in T. Binkley, Spanish Romances..., cit., p. 12.
149 Cit. in Juan del Encina, Poesía Lírica y Cancionero Musical, ed. R. O. Jones & Carolyn R. Lee, Madrid: Castalia, 1972, p. 20.
Manuel Pedro Ferreira

61
materiais fundamentais.150 Embora haja referência explícita, no Auto da Sibila Cassandra (1513), a
uma única canção (dançada por três pares) musicada por Gil Vicente, a sua intervenção podia ter-
-se também estendido à melodia de outras peças originais cantadas a uma voz; mas é de crer que
para a composição de novas obras polifónicas sobre textos seus, Vicente recorresse a colaboradores
profissionais. Estarão nesse caso a primeira «ensalada» (composição com variedade de métrica,
língua e melodia, incorporando citações de canções alheias) conhecida na Península, «En el mes era
de mayo», cantada a quatro vozes no Auto da Fé (1510); e o romance «Niña era la infanta», também
a quatro vozes, incluído nas Cortes de Júpiter (1521). Note-se que as peças teatrais de Gil Vicente não
apenas se alimentaram de repertório musical popular ou palaciano, como enriqueceram com novas
composições o romanceiro peninsular, fosse através da tradição oral,151 fosse através da transmissão
escrita, de que é exemplo a adaptação em castelhano do Romance de D. Inês de Castro, «Io m’estando
em Coimbra», recolhida no Cancioneiro Masson (Antologia, nº 28, e respectiva gravação). É também
no teatro vicentino que aparecem alguns dos primeiros exemplos do linguajar «negro» (protocrioulo)
que seria, um século mais tarde, pretexto para vilancicos religiosos com ritmos sincopados à maneira
africana.152 Talvez a caracterização musical do «negro» remonte à Nau de amores (1527), cuja «prosa»
de despedida, Bom Jesu nosso Senhor é primeiro entoada pelo velho cantando como velho, «o negro
apos elle coma negro, & respondiamlhe os passageiros a quatro vozes de canto dorgam».153 De facto,
tem sido pouco notada a frequente citação de música religiosa nos autos de Gil Vicente.
Recorde-se que ao longo do século XV, fosse através da iniciativa individual de personagens viajadas
como André Dias e Paulo de Portalegre, fosse através das ordens mendicantes, se deu uma certa
actualização do reportório monódico, com recurso cada vez mais frequente a novas composições,
normalmente importadas, desde laudas ou «prosas» em vernáculo a sequências latinas.154 Não é por
acaso que no início do século XVI as peças vicentinas incluem várias referências a composições latinas
tardo-medievais, ausentes dos códices antigos. É também revelador que, em geral, o dramaturgo
descreva o canto a várias vozes só a propósito de canções em língua vulgar, e não de cânticos latinos,
como se a polifonia, aí aplicada, afectasse a eficácia teatral da citação.
Não é contudo de excluir que Gil Vicente tenha ouvido alguns destes cânticos singelamente
ornamentados ao modo do gymel improvisatório (uníssono inicial e final, paralelismo em terceiras)

150 Sobre a faceta musical de Gil Vicente, veja-se Maria Antonieta de Lima Cruz, Gil Vicente, 1465?-1536?, Lisboa: Edições Europa, 1937;
Albin E. Beau, «A música na obra de Gil Vicente», separata de Biblos, XIV (Coimbra, 1939); Solange Corbin, «Les textes musicaux de l’Auto
da Alma (identification d’une pièce citée par Gil Vicente)», Mélanges d’histoire du moyen âge dédiés à la mémoire de Louis Halphen, Paris,
1951, 137 ss.; Rebelo Bonito, «Nótulas de Etnografia Musical/ XVIII: Um texto musical de Gil Vicente», Gazeta Musical, nºs 47-48 (Agosto-
Setembro de 1954), 306-7, 317-20; Mário Martins, «Canções Marianas musicadas nos Autos Vicentinos», Didaskalia, vii (1977), 399-432;
id., «As Horas de Dona Ana e Josefa Pereira», separata de Biblioteca da Ajuda, nº 1 (Lisboa, 1980); Danièle Becker, «De la musique dans le
théatre religieux de Gil Vicente», Arquivos do Centro Cultural Português, XXIII (Lisboa-Paris, 1987), 461-86; Manuel Morais, Antologia de
Música para o Teatro de Gil Vicente. Vilancetes, cantigas, romances e danças, Évora-Lisboa: Centro de História da Arte/ Estar-editora, 2002;
Maricarmen Gómez Muntané, Las ensaladas (Praga, 1581), con un suplemento de obras del género, Tomo I: Estudio, Valencia: Generalitat
Valenciana, 2008, pp. 26-32, 55, 74-78, 101-2, 167-69.
151 Manuel da Costa Fontes, Folklore and Literature. Studies in the Portuguese, Brazilian, Sephardic and Hispanic Oral Tradition, Albany:
State University of New York, 2000, p. 119 ss.
152 Por exemplo, um guineense na Frágoa de amor (1524) que mudou a cor da pele, reflecte sobre a inutilidade dessa transformação: Ja
mão minha branco estae / e aqui perna branco he, / mas a mi fala guinee; / se a mi negro falae / a mi branco para que? Veja-se a este propósito
Celso Cunha, «O protocrioulo português e a sua universalidade nos séculos XVI, XVII e XVIII», in id., Língua, Nação, Alienação, Rio de
Janeiro, 1981; Manuel Carlos de Brito e Luísa Cymbron, História da Música Portuguesa, Lisboa: Universidade Aberta, 1992, pp. 76-77.
153 Cf. A. Beau, A música..., cit., p. 16 e nota.
154 Cf. Solange Corbin, Essai, cit., pp. 309, 314-15 (sobre Paulo de Portalegre); M. Simões, «André Dias», in G. Lanciani e G. Tavani
(coord.), Dicionário da Literatura Medieval..., cit., p. 52. Consultem-se igualmente Mário Martins, Estudos de Literatura Medieval, Braga:
Livraria Cruz, 1956, cap.xxxvii; e Joseph Szövérffy, Iberian Hymnody. Survey and Problems, Wetteren, 1971.
Antologia de Música em Portugal

62
descrito por Guillelmus Monachus por volta de c. 1470, e que se reencontra no duo Dalha den
cima del cielo, que é uma canção de Natal transcrita no Cancioneiro Masson (Antologia, nº 24);155
ou musicalmente enriquecidos por uma outra forma de polifonia acessível, como o contraponto
improvisado em fabordão, o qual, documentado já em finais do século XV em Itália e Espanha, surge
pouco depois em manuscritos portugueses, a três vozes como no Benedicamus Domino atrás citado
(Antologia, nº 21) ou a quatro, como na maior parte de Pater de caelis, cabeça de ladaínha também
transcrita no Cancioneiro Masson (Antologia, nº 22);156 ou ainda, harmonizados segundo um estilo
parcialmente filiado no antigo organum paralelo à 5ª e à 8ª, agora enriquecido com movimentos
contrários e a adição de uma quarta voz, tal como se pode observar no mesmo manuscrito, em Dic
nobis Maria (Antologia, nº 23), excerto da sequência pascal Victimae paschali laudes. Este excerto
testemunha uma prática processional semi-dramatizada certamente muito comum, pois chegou ao
Japão, onde, em 1561, ao amanhecer do domingo de Páscoa, saía a procissão «indo os mininos diante
[...] cantando tres maneiras de cantares [...], Dic nobis Maria, ao qual respondião dous mininos a resposta
de Maria Madalena e depois Alleluya, e logo Laudate Dominum omnes gentes».157

155 Ernest H. Sanders, «Gymel», The New Grove Dictionary, cit., vol. 7, pp. 862-64.
156 O início Pater de cælis provém da tradição galicana: cf. Paul de Clerck, La «prière universelle» dans les liturgies latines anciennes.
Témoignages patristiques et textes liturgiques [Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen, vol. 62], Münster: Aschendorffche
Verlagsbuchhandlung, 1977, pp. 275-80. A harmonização da peça trai parcialmente a influência do organum paralelo, mais claramente
ilustrada por Dic nobis Maria.
157 Carta do jesuíta Luís de Almeida, citada por Mário Martins, O Teatro nas Cristandades Quinhentistas da Índia e do Japão, Lisboa:
Brotéria, 1986, p. 115. No comentário crítico à presente edição da peça, Bernadette Nelson, aponta conexões com a tradição medieval
espanhola do drama litúrgico; é contudo incerta a penetração dessa tradição em Portugal.
Manuel Pedro Ferreira

o repertório latino nos círculos corteses: época manuelina 63

Em Portugal, durante os séculos XIV e XV, a criação artística no âmbito da música religiosa, e
muito especialmente a invenção polifónica tecnicamente mais complexa, parecem ter extravasado
os círculos clericais ligados à corte real só em raras ocasiões, embora durante o reinado de D.
Manuel I, apareçam indícios de encorajamento da prática polifónica fora da corte.
Damião de Góis foi testemunha de que D. Manuel, muito aficionado à música, «tinha estremados cantores,
e tangedores, que lhe vinham de todalas partes d’Europa, a quem fazia grandes partidos, e dava ordenados
com que se mantinham honradamente, e além disto lhe fazia outras mercês, pelo que tinha hũa das melhores
Capellas de quantos Reis, e Principes então viviam». Parece ter sido durante o seu reinado que a Capela
Real passou a ocupar um espaço fixo nos paços de Lisboa; em 1515, o capelão-mor passou a ter jurisdição
ordinária sobre os membros da Capela. Foi também por volta de 1500, em paralelo com a reorganização da
Capela Real, que a Capela da Rainha surgiu como uma estrutura autónoma com um funcionamento em tudo
semelhante à do Rei, embora de efectivos mais modestos.158 Estas capelas musicais justificavam-se sobretudo
pela possibilidade de ornamentar artisticamente a liturgia através da execução de música polifónica, fosse ela
semi-improvisada, fosse ela detalhadamente elaborada por escrito.
A dimensão da capela real de D. Manuel parece ter sido comparável à generalidade das suas congéneres
europeias. Em 1516, um documento menciona o nome de cinco moços de coro (embora pudesse haver
mais). Quatro anos antes, o «Livro do Recebimento da capella del Rey nosso Señor» tinha listado vinte e
quatro membros adultos.159 Destes, catorze são cantores já identificados por Sousa Viterbo como tendo
estado ao serviço da corte portuguesa, e dois são tangedores (possivelmente de órgão); estão ausentes desta
lista, como seria de esperar, quase todos os nomes conhecidos de instrumentistas (de câmara ou de música
alta) que trabalharam para D. Manuel.160 É plausível que o Badajoz referenciado em 1516 como músico da
capela real, referido por Gil Vicente em 1523 na Farsa de Inês Pereira, e autor de um Pange lingua publicado
por Baena em 1540, seja o João de Badajoz presente na corte em 1518/1522, e novamente em 1547 e
1558, como músico de câmara; há uma única menção nos documentos da coroa a um Joham Sanchez
de Badajoz, que deverá ter sido o seu nome completo, sugerindo uma ligação familiar ao poeta e célebre
tocador de vihuela, Garcí Sanchez de Badajoz, cuja obra musical põe grandes problemas de atribuição.161
Para além de obras de um destes Badajoz, temos notícia certa da circulação em Portugal de
composições religiosas dos espanhóis Juan de Anchieta, Francisco de Peñalosa, Alonso Alba e do seu
colega de origem flamenga Johannes Urrede, bem como do português, durante algum tempo ligado

158 G. Doderer, «A música portuguesa na época dos Descobrimentos», cit.; Ivo Carneiro de Sousa, «Capela Real», in Dicionário de
História Religiosa de Portugal, cit., vol. 1, Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, pp. 286-88.
159 Manuel Joaquim, Nótulas sôbre a música na Sé de Viseu, Viseu: Junta de Província da Beira Alta, 1944, pp. 53-54. Não tivemos
oportunidade de consultar o manuscrito, embora tenhamos procurado localizá-lo, sem sucesso, no Arquivo Distrital de Viseu, pelo que o
nosso trabalho se baseia apenas nas informações coligidas nestas Nótulas.
160 Cf. Sousa Viterbo, «Mestres», cit.; id., Os Mestres, cit.; id., Subsídios para a História da Música em Portugal, Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1932.
161 Ernesto Vieira, op. cit., pp. 80-81; Sousa Viterbo, Subsídios, cit., pp. 79-81; Tess Knighton, «Badajoz (II)», in Diccionario de la Música
Española e Hispanoamericana, cit., vol. 2, p. 34; John Griffiths, «Sánchez de Badajoz, Garcí», ibid., vol. 9, pp. 675-76; Emilio Ros-Fábregas,
«‘Badajoz el Músico’ y Garcí Sanchez de Badajoz. Identificación de un poeta-músico andaluz del Renacimiento», in Virginie Dumanoir
(ed.), Música y literatura en la España de la Edad Media y del Renacimiento, Madrid: Casa de Velázquez, 2003, pp. 55-75.
Antologia de Música em Portugal

64

Figura 7: Motete Quanti mercenarii (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56
[doravante designado por Chansonnier Masson], fol. 123v-124) [Antologia, nº 36]

à corte espanhola, Pedro Escobar (ou Pero do Porto). O motete anónimo Quanti mercenarii (Antologia,
nº 36, e Figura 7), transmitido no Cancioneiro Masson, poderá talvez reflectir o estilo de Peñalosa.
Podem ainda referir-se os nomes, menos conhecidos, dos espanhóis Antonio de Ribera, Basurto,
Illario e Tordesillas, e dos cantores do bispo de Coimbra, Vasco Pires (de que falaremos adiante) e
Fernão Gomes Correia (documentado entre 1505 e 1532, de cuja produção sobrevive a mais antiga
versão polifónica do Ordinário da Missa seguramente composta em Portugal).162 Contudo, estes
não seriam certamente os únicos compositores de música religiosa a várias vozes que se fariam
ouvir no tempo de D. Manuel. Autores ibéricos de notoriedade local (como o mestre da capela
de D. Manuel, Matheus de Fonte, que sucedeu a João de Coimbra, e o instrumentista de tecla de
origem sevilhana Gonzalo de Baena, ambos elogiados por Garcia de Resende),163 ou que ocupavam

162 R. Stevenson, «Prefácio», cit.; João Pedro d’Alvarenga, «A música também é escrita», in Tesouros da Biblioteca Nacional, Lisboa: Inapa,
1992, pp. 253-84 [266]; Owen Rees, Polyphony in Portugal, c. 1530-c.1620. Sources from the Monastery of Santa Cruz, Coimbra, New York &
London: Garland, 1995, pp. 49-85, 413-29; id., «Manuscript Lisbon, Biblioteca Nacional, CIC 60: The Repertories and Their Context», Revista
Portuguesa de Musicologia, 4-5 (1994-1995), pp. 53-93; Tess Knighton, «A Newly Discovered Keyboard Source (Gonzalo de Baena’s Arte
nouamente inuentada pera aprender a tanger, Lisbon, 1540): a Preliminary Report», Plainsong and Medieval Music, V (1996), pp. 81-112.
163 Ernesto Vieira, Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes, Lisboa, 1900, vol. I, pp. 427-28; Sousa Viterbo, «Mestres da Capella
Real nos reinados de D. João II e D. Manuel», in Arte Musical, nºs 176, 177, de Abril e Maio de 1906; T. Knighton, «A Newly Discovered
Keyboard Source», cit.
Manuel Pedro Ferreira

65
funções que requeriam competência criativa (como os mestres de capela da rainha viúva D. Leonor
e do príncipe D. João, respectivamente Diogo Gonçalves e Fernão Rodrigues),164 junto a outros de
identidade desconhecida, certamente terão contribuído para o panorama da polifonia sacra nacional.
Na geração que floresceu por volta do primeiro quartel do século XVI, o compositor português
mais destacado foi certamente Pedro Escobar, também conhecido como Pero do Porto. Entre 1489 e
1499 foi cantor na corte da rainha Isabel, a Católica, em cuja capela foi colega de Anchieta e se cruzou
com Peñalosa, cantor do rei consorte a partir de 1498; poderá ter regressado a Portugal no séquito
da infanta castelhana D. Maria, que casou com D. Manuel I em 1500, ou pouco tempo depois, já que
se encontrava no país quando em 1507 foi convidado a mudar-se para Sevilha. Entre 1507 e 1514, foi
mestre dos meninos de coro na catedral hispalense; a partir de 1521, passou a ser mestre de capela do
cardeal-infante D. Afonso (1509-1540), que acompanhou quando este passou a administrar a diocese
de Évora, cidade onde permaneceu pelo menos até 1534-1535. Atribuem-se-lhe dezoito canções
profanas e trinta obras religiosas, entre as quais um Magnificat a três vozes, duas Missas completas,
um Stabat Mater (Antologia, nº 33) e vários motetes a quatro vozes: um deles, Clamabat autem mulier
chananea (Antologia, nºs 34 e 49), foi célebre no seu tempo e inspirou o Auto da Cananeia (1534) de
Gil Vicente, o qual requer, no final, a sua execução vocal; Fatigatus Iesus (Antologia, nº 35), foi-lhe
atribuído devido à rara identidade estilística com Clamabat e por o suceder na sua mais antiga fonte
portuguesa, o códice MM 12 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (de duas ou mais obras
seguidas de um mesmo autor, este é frequentemente identificado só com a obra inicial).165
Para além do repertório ibérico, obras de origem franco-flamenga terão igualmente sido acessíveis
à capela real, quer através das ligações com Castela, quer através do permanente contacto marítimo
com os Países Baixos, onde se situava o principal entreposto comercial de Portugal na Europa. Há
vários indícios desse facto. Um livro de coro copiado na Flandres entre 1500 e 1505, com as armas
de D. Manuel e sua mulher Maria, contém missas polifónicas de compositores ligados à capela
borgonhesa dos Habsburgos: Pierre La Rue, Gaspar van Weerbeke, Alexander Agricola, Antoine
Brumel, Marbrianus de Orto, Johannes Ghiselin e Jacobus Barbireau.166 Em 1516-1517, alguns
músicos da capela real (organista e cantores) viajaram até Malines, onde estiveram em contacto com
a música e os músicos da corte de Carlos V.167 Em 1518, o rei casou em terceiras núpcias com Leonor
de Áustria, educada em Malines, que cantava e tocava alaúde e clavicórdio, tendo sido aluna durante
oito anos, como o seu irmão Carlos V, do organista flamengo Henri Bredemers; é inevitável que

164 Sousa Viterbo, Os Mestres da Capella Real nos reinados de D. João III e D. Sebastião, Lisboa, 1907 (Separata do Archivo Historico
Portuguez, vol. IV).
165 R. Stevenson, «Prefácio», cit.; id., «Escobar, Pedro de», Grove Music Online (acedido em 30/5/2008); Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira
de Castro, História da Música, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, pp. 31-33; Ivan Moody, «¿Una obra desconocida de
Escobar? Algunas observaciones sobre el motete Fatigatus Iesus en el manuscrito musical nº 12 de la Biblioteca general de la Universidad
de Coimbra», Anuario musical, 49 (1994), pp. 37-45; O. Rees, Polyphony in Portugal..., cit., pp. 60-77. Estou grato a João Pedro d’Alvarenga
por me ter comunicado uma lista actualizada das obras religiosas atribuídas a Escobar.
166 Wien, Österreichische Nationalbibliothek, Ms 1783: cf. Herbert Kellman, «Alamire, Pierre» in The New Grove Dictionary, cit., vol.
I, pp. 273-75; id., The Treasury of Petrus Alamire. Music and Art in Flemish Court Manuscripts, 1500-1535, Ghent/Amsterdam: Ludion,
1999, pp. 140-41. O manuscrito inclui igualmente, integrado numa obra de Brumel, um Credo de Heinrich Isaac. Embora não tenhamos
notícias sobre as movimentações do manuscrito, é plausível que tenha sido encaminhado para os destinatários, e tenha chegado à posse dos
Habsburgos na bagagem do séquito da infanta Isabel, aquando do seu casamento com Carlos V em 1525.
167 Devo esta informação à generosidade de Bernadette Nelson, que encontrou o documento em questão e se propõe publicá-lo no
âmbito de um estudo mais alargado.
Antologia de Música em Portugal

66
tivesse trazido consigo o repertório franco-flamengo que sempre a havia rodeado.168 A composição
em 1520 de um motete (anónimo) a quatro vozes, Si pie domine, para a trasladação dos restos mortais
de D. Afonso Henriques, realizada em Coimbra na presença do rei, revela, segundo Owen Rees, uma
notável actualização estilística, devedora de modelos franco-flamengos (Antologia, nº 38, e Figura
8).169 Finalmente, o repertório contido no livro de Gonzalo de Baena — que estava ao serviço da corte
desde inícios do século —, Arte novamente inventada pera aprender a tanger, apesar de só ter sido
impresso em 1540, reflecte parcialmente o gosto musical de vinte ou mais anos antes, ao conter obras
de Ockeghem, Obrecht, Agricola, Compère, Gascon, Caron, Févin e, claro está, Josquin des Près, ao
lado de Urrede, Anchieta (Antologia, nº 50), Peñalosa, Basurto, Badajoz, Escobar (Antologia, nº 49)
e, inevitavelmente, do próprio autor (Antologia, nº 51). As excepções geracionais são a presença de
composições do filho, Antonio de Baena (Antologia, nº 52), e de Cristóbal de Morales (Antologia, nº
53; veja-se também, mais adiante, a Figura 15), que poderá ter sido um dos alunos de Escobar em
Sevilha.170
Se a corte parece ter sido o centro nevrálgico da polifonia artística em Portugal durante o século
XV, por volta de 1500 podemos também supôr a sua prática em mosteiros especialmente importantes
e culturalmente actualizados: sabemos, por exemplo, que o convento dos cónegos regrantes de Santa
Cruz em Coimbra dispunha de quatro cantores especializados em polifonia no tempo do prior D.
João de Noronha, falecido em 1506, primo de D. Manuel I e autor de motetes não conservados.171 É
contudo significativo que até inícios do século XVI não haja notícia, nas catedrais ou nas colegiadas
portuguesas, de uma organização musical capaz de suportar o exercício regular da polifonia artística,
comparável às capelas musicais do rei, da rainha e dos infantes. As primeiras notícias que temos de
presença de polifonia nas catedrais revelam uma prática ocasionalmente assumida pelo Cabido (em
Évora, em 1497)172 ou dependente, orgânica e financeiramente, do bispo (em Braga e em Coimbra, por
volta de 1500), numa altura em que os prelados tinham avultados rendimentos próprios e reservavam
a entrada na respectiva Catedral a ocasiões litúrgicas especiais. Assim, em 1496, o bispo de Coimbra
solicitou ao Cabido que sustentasse pelo prazo de um ano um dos cantores colocados na Sé, para
permitir que ele financiasse outros cantores da sua casa que aí exerciam o seu ofício, proposta que
recebeu o acordo dos cónegos, que foram buscar o dinheiro necessário aos rendimentos de uma
Confraria, já que — facilmente se depreende — a Sé não tinha nenhuma fatia do orçamento reservado
para os profissionais de música polifónica.173
É precisamente do círculo do magnata D. Jorge de Almeida, filho do 1º Conde de Abrantes, bispo
de Coimbra, Conde de Arganil e assíduo frequentador da corte de D. João II, que nos chegaram as
mais antigas obras polifónicas completas de estilo renascentista compostas em território português e

168 Macário Santiago Kastner, «Relations entre la musique instrumentale française et espagnole au XVIe siècle», Anuario musical X
(1955), pp. 84-108 [93-94].
169 O. Rees, Polyphony in Portugal, cit., pp. 21-28.
170 T. Knighton, «A Newly Discovered Keyboard Source», cit.; Owen Rees & Bernadette Nelson (eds.), Cristóbal de Morales. Sources,
Influences, Reception, Woodbridge: The Boydell Press, 2007, p. xxix. Note-se que este livro de carácter didáctico, que sobrevive num único
exemplar, é a única fonte conhecida não só das obras dos Baena, mas também de composições de Obrecht, Badajoz e Anchieta.
171 Ernesto Gonçalves de Pinho, Santa Cruz de Coimbra, centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII, Lisboa: F. C. Gulbenkian,
1981, pp. 30, 38.
172 José Augusto Alegria, O Colégio dos moços do coro da Sé de Évora, Lisboa: F. C. Gulbenkian, 1997, p. 27.
173 R. Stevenson, «Prefácio», cit.; Arquivo da Universidade de Coimbra, Acordos do Cabido, vol 1 (1451-1498), III/D, 1,1,1,1, ff. 4v-5 (este
documento, de 1498, foi-me gentilmente assinalado por José Pedro de Matos Paiva).
Manuel Pedro Ferreira

67
com atribuição de autor (Vasco Pires), com textura a três ou quatro vozes (Antologia, nº 37). Vasco
Pires aparece identificado como cantor em 1481, 1509 e 1531; aparece noutros dois documentos, o
mais antigo dos quais com data de 27 de Fevereiro de 1516, e o restante póstumo, de 20 de Dezembro
de 1547, mencionado como «mestre de capela do bispo de Coimbra», tendo pois sucedido a Frei
Pedro nessa função.174 O seu estilo é afim à música de Penãlosa, Anchieta e Escobar.175

174 R. Stevenson, «Prefácio», cit. [documentos de 1481 e 1509, e documento póstumo]; Acordos do Cabido, cit. na nota anterior
[documento de 1498]; AUC, Livro de registo das confirmações que fez o bispo de Coimbra e conde darganil, o qual se começou no anno de
1528, III/D,1,4,2,6 [documento de 1531]; AUC, Emprazamentos do Cabido, Livro 7, III/D,1,5,4,38, ff. 18-20 [documento de 1516] (fontes
amavelmente referenciadas por José Pedro de Matos Paiva, em comunicação pessoal). Em 1502, o bispo de Coimbra tinha como mestre
de capela frei Pedro: cf. Sousa Viterbo, Subsídios..., pp. 432-33. Este tinha sucedido, em 1497 ou 1498, a Bartolomeu, cantor, que nessa data
abandonou a Sé de Coimbra (AUC, Acordos do Cabido, cit.); talvez se possa identificar este Bartolomeu com Bartolomeu Rodriguez, cantor
da capela real documentado em 1485, 1493, 1496 e 1512.
175 O. Rees, Polyphony in Portugal..., cit., p. 77; João Pedro d’Alvarenga, Estudos de Musicologia, Lisboa: Colibri, 2002, pp. 56-57.
Figura 8 (I/II): Motete Si pie Domine
(Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, MM32, fols. 2v-3) [Antologia, nº 38]
Antologia de Música em Portugal

70 o repertório latino nos círculos corteses: época joanina

Em Santa Cruz de Coimbra, a personalidade dominante da primeira metade do século foi D.


Heliodoro de Paiva (irmão de leite de D. João III, pois este foi primeiramente amamentado por
Beatriz de Paiva, cujo marido era guarda-roupa de D. Manuel), do qual as crónicas dizem que era
«muito bom theólogo» e «philosopho músico», que dominava o latim, o hebraico e o grego, e que
«era cantor, & músico mui destro, & contrapontista; compoz muitas missas, & magnificas de canto
de órgão, & motetes mui suaves; tangia órgão, craviórgão com notável ar, e graça; tangia viola de
arco, & tocava harpa, & cantava a ella com tanta suavidade, que enlevava os ouvintes». Deste autor
sobrevivem algumas obras vocais, entre as quais um Salve regina (Antologia, nº 40) e três exemplos
de «tento» para tecla, os quais, segundo Rui Vieira Nery, embora influenciados pelo ricercare italiano,
estão ainda próximos dos modelos polifónicos vocais; estes estão aliás na base da Arte novamente
inventada de aprender a tanger, de Gonzalo de Baena, que é de facto um livro didáctico de iniciação à
música de tecla (o mais antigo impresso na Península), usando um sistema original de tablatura, com
uma selecta antológica que procede do simples (peças a duas vozes) para o complexo (peças a quatro
vozes).176 De Santa Cruz chegaram-nos ainda, da década de 1540, várias outras obras, entre as quais
umas Lamentações polifónicas anónimas copiadas nos códices MM 9 e MM 32 da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra (Antologia, nº 43).177
O códice MM 2 da mesma Biblioteca foi escrito nos Países Baixos, possivelmente por Philippus de
Spina, pouco depois de 1530; contém Missas polifónicas de Johannes Mouton, Pierre de La Rue, Noel
Bauldeweyn e Adrian Willaert. É provável que tenha dado entrada em Santa Cruz ainda no segundo
quartel do século; um livro de origem semelhante (hoje em Bruxelas, Bibliothèque royale de Belgique,
Ms 15075), datado entre 1524 e 1534, com sete Missas de Pierre La Rue, exibe os retratos e as armas
de D. João III e Catarina de Áustria, com quem aquele se casou na primeira dessas datas, embora se
tenham encontrado só em 1525 e não se tenham instalado duravelmente em Lisboa senão a partir de
1529, devido à peste que antes aí grassava; é plausível que o livro tenha tido como destinatário o casal
real e tenha sido enviado para Lisboa na década de 1530. A incorporação de novo repertório franco-
flamengo nas cerimónias da corte pode ter instigado a encomenda do códice MM 2; em Santa Cruz,
o interesse pela polifonia internacional levou, em meados do século, à cópia manuscrita de edições
impressas em Antuérpia, Lovaina e Veneza.178
Lembre-se ainda a presença em Olivença, a partir de 1535, de Pero Brugel, cantor e organista que
se presume também flamengo, de quem se diz quatro anos depois, em tom encomiástico, «que emsina
de Canto d orgaom e Canto chaom a todos os do Bispado que querem aprender e [...] tambem serve
o Coro officiando as Missas e besporas de Canto d orgam e todolos dias e festas do anno e tambem

176 E. G. Pinho, Santa Cruz de Coimbra..., cit., p. 166; R. V. Nery, História da Música, cit., p. 44; T. Knighton, «A newly discovered
keyboard source...», cit.
177 O. Rees, Polyphony in Portugal..., cit., p. 224.
178 O. Rees, Polyphony in Portugal..., cit., pp. 87-97, 144; H. Kellman, The Treasury of Petrus Alamire..., cit., pp. 74-75; Honey Meconi,
«Foundation for an Empire: The Musical Inheritance of Charles V», in Francis Maes (ed.), The Empire Resounds. Music in the Days of Charles
V, Louvain: Leuven University Press, 1999, pp. 19-36 [26].
Manuel Pedro Ferreira

71
tangendo os orgaons em todolos dias santos».179 Curiosamente, há uma Missa polifónica atribuída
a um «Bruxel» no códice MM 9 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, copiado em Santa
Cruz por volta de 1545-1550 (pode ver-se o Kyrie inicial na Lâmina XVI); o «g» de Brugel, lido à
portuguesa, poderia facilmente soar como um «x», o que é tão plausível como supôr uma referência ao
compositor espanhol Diego Bujel.180 Este Pero Brugel foi provavelmente o mestre do célebre tratadista
e compositor mulato, Vicente Lusitano, que floresceu profissionalmente em Itália entre 1551 e 1561;
à qualidade do discípulo não terá sido alheia a solidez do ensino musical em Olivença, que era então
sede oficial do bispado de Ceuta.181
A íntima ligação à corte de Damião de Góis (1502-1574) deve ter igualmente favorecido algum
intercâmbio musical com o norte da Europa. Embora justamente conhecido como humanista e
historiador, Góis teve igualmente, no seu tempo e no seu círculo próximo, a alcunha de «o músico»,
pois não só tocava cistro e instrumentos de tecla, como se dedicava ocasionalmente à composição,
sendo-lhe também atribuída a autoria de um tratado de teoria musical, que não sobrevive.182
Sabe-se, por outro lado, da estranheza que podia causar o facto de, após o seu regresso definitivo
a Portugal em 1545, conviver em casa com muitos estrangeiros de passagem ou residentes em
Lisboa, com os quais cantava missas e motetes polifónicos, explicando o convívio com estrangeiros
«por ser muito músico e folgar de cantar e ser muito dado à música e passar nisto o tempo».183
Da sua actividade como compositor chegaram-nos apenas três motetes: um a cinco vozes, Surge,
propera (Antologia, nº 39, e Figuras 9-10) e dois a três vozes, Ne læteris e In die tribulationis, sendo
este último de atribuição menos certa do que os restantes.184 É possível que outras obras musicais
de Góis estivessem representadas na desaparecida Biblioteca do rei D. João IV, integradas numa
colectânea em que pontuavam Josquin, Champion e Richafort.185
O motete Surge, propera, a cinco vozes, foi publicado na colectânea Cantiones septem, sex et quinque
vocum, de Sigismund Sablinger (Augsburg, 1535), ao lado de obras de Gombert, Morales, Richafort,
Sermisy e Willaert, o que é indicativo da respeitabilidade de Damião de Góis como compositor. É
a obra mais ambiciosa e de maior impacto estético que nos chegou do humanista português. Já Ne
laeteris inimica mea, a três vozes, foi publicado em 1547 em Basileia pelo grande humanista e teórico
musical Henrique Glareano no seu tratado Dodecachordon. A peça poderá plausivelmente ter sido
escrita de encomenda em 1538 para ilustrar o modo «eólio» (sobre lá), uma das novidades conceptuais
introduzidas pelo tratadista, que está na origem do sistema de doze modos (os oito tradicionais, mais
quatro adicionais) que foi depois adoptado por Zarlino e pelos seus discípulos.

179 Maria Augusta Alves Barbosa, Vincentius Lusitanus, ein portugiesischer Komponist und Musiktheoretiker des 16. Jahrhunderts, Lisboa:
Secretaria de Estado da Cultura, 1977, p. 113.
180 Confronte-se esta hipótese com as explicações alternativas (incluindo uma eventual referência a Bruxelas), apresentadas em O. Rees,
Polyphony in Portugal..., cit., p. 181. O autor informou-me de que há, na verdade, três mestres de capela em Ciudad Rodrigo candidatos à
atribuição da Missa: Giraldin Bucher (= Buxer, Buxel, Bujel), o seu filho Diego Bujel e o seu presumível neto, também Diego de seu nome.
181 Id., ibid. O tratado Introdutione facilissima, cuja 1ª edição é de 1553, é uma obra incontornável para o conhecimento do contraponto
improvisado em meados de quinhentos. Para uma apresentação sumária da polémica em que Vicente Lusitano se envolveu em Itália, veja-se João
de Freitas Branco, História da Música Portuguesa. 2ª edição, revista e aumentada, org. por João Maria de Freitas Branco, Mem Martins: Europa-
América, 1995, pp. 132-38. Em 1561, Lusitano refugiou-se a norte dos Alpes, por ter aderido ao protestantismo e, sendo padre, se ter casado.
182 Cf. Rui Vieira Nery, A Música no Ciclo da «Bibliotheca Lusitana», Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 103-126.
183 J. de Freitas Branco, História da Música Portuguesa, cit., pp. 111-13.
184 Para uma visão de conjunto da obra musical e respectiva recepção, veja-se Manuel Pedro Ferreira, «A Música de Damião de Góis», in Congresso
Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento: Actas, Braga: Universidade Católica Portuguesa/ Faculdade de Filosofia, 2003, pp. 533-42.
185 Mário de Sampayo Ribeiro, Achegas para a História da Música em Portugal, II: Damião de Goes na Livraria Real da Música (Separata
do I Volume dos “Trabalhos da Associação dos Arqueólogos Portugueses”), Lisboa, 1935.
Antologia de Música em Portugal

72

Figura 9: Damião de Góis, Surge, propera, discantus, 1ª parte [Antologia, nº 39]

Figura 10: Damião de Góis, Surge, propera, discantus, 2ª parte [Antologia, nº 39]
Manuel Pedro Ferreira

73
Independentemente da sua abertura ao repertório franco-flamengo, a capela real tinha-se em
grande conta. Diogo Fernandes Formoso, capelão de D. João III e mestre-escola na Sé de Lisboa,
elogia em 1543 a «celebérrima e ilustríssima capela» do rei, a qual, nas suas palavras, «supera todas
as outras que há no mundo em número de sacerdotes, na multidão de cantores, na frequência, ordem
e pompa dos ofícios divinos».186 Na verdade, em 1534 os cantores da capela real continuavam, como
no tempo de D. Manuel, a ser vinte e quatro, agora coadjuvados por outros tantos meninos de coro,
enquanto a Rainha e os infantes tinham, cada um, seis capelães e seis moços de capela (haveria ainda
vinte e quatro cantores e dezoito moços do coro no reinado de Filipe II de Espanha, pelo que as forças
vocais parecem ter-se mantido estáveis ao longo do século).
Segundo o Cerimonial da capela real, do tempo de D. João III, recentemente descoberto e publicado
por José Maria Pedrosa Cardoso, eram de regra, na Semana Santa, o canto «a vozes» do Benedictus; a
harmonização em fabordão da antífona de Magnificat na quinta-feira; e «chirios que se dizem sobre
o canto chão solenemente com contraponto» (improvisação polifónica) na sequência da ladaínha de
sábado. Possivelmente estes «chirios» são aqueles que, num suplemento ao mesmo livro, acrescentado
depois de 1560, aparecem escritos a três vozes, em alternância implícita com o cantochão, num estilo
com traços arcaicos que faz suspeitar de uma origem no contraponto improvisado. O texto é uma
condensação dos versículos (ou tropos) da ladaínha do Ofício das Trevas, coincidente com uma selecção
típica da família litúrgica aquitano-bracarense, com a particularidade de faltarem os quatro versículos
medianos e de quatro outros aparecerem emparelhados; estes versículos eram normalmente cantados de
quinta a sábado, embora neste suplemento polifónico sejam destinados a quarta, quinta e sexta-feiras.
Para o resto do ano litúrgico, o Cerimonial menciona naturalmente missas cantadas em polifonia.187 As
práticas polifónicas na capela abarcavam também outros géneros, como seja o motete fúnebre Dies mei
de Bartolomeu Trosilho, mestre de capela entre 1548 e c. 1567 (Antologia, nº 44).

186 José Maria Pedrosa Cardoso, O canto da Paixão nos séculos XVI e XVII: A singularidade portuguesa, Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2006, p. 137.
187 José Maria Pedrosa Cardoso, Cerimonial da Capela Real. Um manual litúrgico de D. Maria de Portugal (1538-1577), Princesa de
Parma, Lisboa: Imprensa Nacional/Fundação C. Gulbenkian, 2008, pp. 25-32, 56, 89, 91, 104, e 147-57 (edição musical dos «Kyrios das
Trevas»); Pedro Romano Rocha, «Les ‘tropes’ ou versets de l’ancien Office des Ténèbres», in Mens concordet voci [Mélanges Martimort],
Paris: Desclée, 1983, pp. 691-702.
Antologia de Música em Portugal

74 os cancioneiros profanos do renascimento

A existência de oportunidades de patrocínio musical na corte portuguesa explica que o valenciano


Luís Milán tenha dedicado a D. João III, em 1536, o Libro de música de vihuela de mano, intitulado
El Maestro, afirmando poeticamente no seu prólogo que o mar para o qual havia lançado este livro,
esperando que chegasse a quem lhe desse valor, tinha sido o reino de Portugal, «que es la mar de la
musica: pues en el tanto la estiman, y tambien la entienden». Trata-se do primeiro impresso com
música concebida idiomaticamente para a viola de mão; nele se incluem, distribuídas segundo a
modalidade e a dificuldade crescente, seis Pavanas, quatro Tentos, quarenta Fantasias a solo (uma
das quais gravada num dos CDs anexos), quatro romances, seis vilancicos em castelhano e outros
seis num português algo impuro, vilancicos ou vilancetes estes cujo acompanhamento instrumental
aparece geralmente em duas versões, simples e ornamentada (Antologia, nº 32).
Aproximadamente da mesma época ou pouco posterior é o códice CIC 60 da Biblioteca Nacional,
em Lisboa, antologia copiada por volta de 1530-1550, que contém vinte e sete peças religiosas em
latim, sobretudo relacionadas com a Paixão e com temas eucarísticos; cinco são monódicas, e as
restantes polifónicas; destas, um suposto motete parece ser adaptação de uma canção profana. Há
também dezanove peças polifónicas em língua vulgar (das quais duas, Hijas de Jerusalem e De gram
prision, são vilancetes de Natal). As peças latinas, que representam o «repertório de corte espanhol»
de c. 1500 (com Peñalosa em destaque), aparecem em versões relacionadas com a tradição manuscrita
de Coimbra, cuja produção local está também representada por uma obra de Vasco Pires. As dezassete
canções profanas (catorze vilancetes, duas cantigas e um romance, sempre em castelhano com a
excepção do vilancete em português O tempo bom tudo cura) parecem ter data algo posterior. De facto,
o romance Ninha era la infanta (cuja música é hipoteticamente atribuível a Escobar) deriva das Cortes
de Júpiter (1521), de Gil Vicente; e o estilo predominante nesta colecção (normalmente a três vozes,
à excepção de dois duos e de outras duas composições a quatro vozes) é o imitativo, tendencialmente
canónico, posto em voga na Península a partir de 1510-1520, através, nomeadamente, das obras de
Mateo Flecha e de Pedro de Pastrana.188
Testemunha desta viragem estilística é Juan Bermudo, que em 1555 recomenda que na música
polifónica se fuja do canto homorrítmico («golpeado») como na gramática se foge do barbarismo,
explicando que no estilo de composição de cinquenta anos antes, e que se usava ainda na sua juventude,
as vozes procediam geralmente todas juntas, enquanto na actualidade «o canto vai encadeado e tão
incessante, que só a custo uma voz é atacada juntamente com outra».189 Tome-se como exemplo o
penúltimo vilancete do códice lisboeta, Parto triste, saludoso (Antologia, nº 31, e respectiva gravação),
que ilustra, para além das entradas sucessivas de cada voz e da subtil variabilidade da textura, uma
fina consciência modal (com o meio-tom inicial a anunciar o modo de Mi) e uma sábia manipulação
expressiva dos recursos melódicos e harmónicos, que concede vida emocional a um texto poeticamente

188 Manuel Morais (transcrição e estudo), Vilancetes, cantigas e romances do século XVI [Portugaliae Musica, XLVII], Lisboa: Fundação C.
Gulbenkian, 1986; O. Rees, «Manuscript Lisbon, Biblioteca Nacional, CIC 60...», cit. Reprodução integral do ms. in <http://purl.pt/210>.
189 Cf. Fray Juan Bermudo, Declaración de instrumentos musicales, 1555, ed. facsimilada [Documenta musicologica, XI], Kassel, 1957,
fol. 135.
Manuel Pedro Ferreira

75
trivial, respondendo à sua organização fónica e retórica e fazendo ressoar o seu dolente saudosismo.190
O estilo imitativo encontrado no códice da Biblioteca Nacional reencontra-se nas duas composições
em português do Cancioneiro de Uppsala (colectânea impressa em Veneza em 1556): um vilancete a
duas vozes, Mal se cura muyto mal, e uma cantiga, Falai, meus ollos, que é excepcional, no contexto das
canções profanas relacionáveis com Portugal, pela sua textura a cinco vozes.191
Se o manuscrito CIC 60 é, enquanto Cancioneiro, algo magro, o mais rico em composições é o
códice 56 da Biblioteca da Escola Nacional Superior de Belas-Artes de Paris, conhecido por Cancioneiro
Masson (nome do seu anterior proprietário); escrito, na sua maior parte, em meados do século XVI,
foi objecto de inúmeros acrescentos (sobretudo textuais) durante as décadas seguintes. A sua origem
geográfica é revelada pela presença do português em cerca de um quinto das canções e pelos inúmeros
aportuguesamentos dos textos castelhanos, dos quais dois, um romance e uma canção de Natal, foram
já referidos e aparecem aqui editados (Antologia, nºs 24 e 28, e respectivas gravações). Inclui, para além
do motete e dos dois fragmentos latinos a quatro vozes atrás comentados e apresentados em transcrição
(Antologia, nºs 22 e 23), duas melodias (talvez de origem polifónica) com texto em latim e cento e vinte
e seis canções em língua vulgar (quatro delas, com dupla versão musical).192

Figura 11: Vilancete No val das mais belas


(Chansonnier Masson, fols. 50v-51)

190 Manuel Pedro Ferreira, «A conjunção de música e poesia na Península Ibérica, da Idade Média ao Renascimento» in Concerto
das Artes, Porto: Campo das Letras, 2007, pp. 421-45; Manuela Toscano, «As vozes de Ya las sombras de la noche: Petrarquismo e música
portuguesa quinhentista e da primeira metade do século XVII», in Rita Marnoto (coord.), Petrarca, 700 anos, Coimbra: Faculdade de
Letras, 2006, pp. 273-340.
191 Cf. Maricarmen Gómez Muntané (ed.), El Cancionero de Uppsala, Valencia: Generalitat Valenciana, 2003, nºs 9 e 54.
192 Edição in M. Morais, Vilancetes..., cit.
Antologia de Música em Portugal

76
O livro principia com sessenta e quatro canções líricas (normalmente vilancetes ou cantigas)
a uma voz, incluindo duas de tema mariano; perto do fim desta secção, foi mais tarde intercalada
uma canção a 3 vozes. Seguem-se seis romances, também a uma voz; nas folhas que seguidamente
ficaram em branco, um outro copista acrescentou, no último terço do século, três canções de Natal
em castelhano, a duas vozes. A seguir ao cantochão, aparecem quarenta e três peças apresentadas
a três vozes pelo primeiro copista, que se detém na cantiga Na fonte está Lianor (Figura 12). Após
outra cantiga, introduzida mais tarde, surge o trabalho de um segundo copista também de meados
do século (a julgar pelo estilo antiquado da notação musical), que contribui com três peças latinas
a quatro vozes, já referidas, e três vilancetes de Natal a três vozes, um dos quais em português. O
vilancete Não tragais borgezins pretos, que encerra o livro, é uma adição tardia, muito provavelmente
posterior a 1570.
As peças iniciais são quase todas vilancetes em castelhano com paralelismos noutras fontes que
apontam para uma origem no centro da Península, por volta de 1500; segue-se uma secção com maior
representação quer do género «cantiga», quer da língua portuguesa. A música da cantiga que parece
iniciar essa secção, Senhora quem vos disser (Antologia, nº 25, e respectiva gravação) indicia, através
da modulação rítmica e do contorno frásico, uma sensibilidade declamatória que remete para uma
postura humanística, que se afirma em Portugal sobretudo a partir de c. 1530. No meio deste grupo,
há um fragmento poético de tocante sabor tradicional, que não se estende à música: So la rama, ninha
/ so la oliva // Levantéme, madre / manhanicas frias / fuy colher las rosas / las rosas colhia / so la oliva.
As composições em língua portuguesa, como No val das mais belas (Figura 11), reaparecem adiante,
numa distribuição menos compacta. Seguem-se os romances, entre os quais o de D. Inês de Castro, já
referido, e Los braços traigo cansados (do ciclo carolíngio hispânico), cuja música nos surge formal e
ritmicamente muito elaborada (Figura 13).
As peças a três vozes começam com um vilancete em português, ao qual se segue quase imediatamente
um terceto, em castelhano, à maneira literária italiana, que implica uma data posterior a c. 1525; mas
entre as quinze composições que se seguem, há concordâncias no Cancioneiro de Elvas que remetem
novamente para a geração e o ambiente de Escobar. Com o vilancete Minina dos olhos verdes (Antologia,
nº 30, e gravação respectiva), oferecido em duas versões, inaugura-se nova secção com claras associações
nacionais, incluindo o vilancete Nam vos acabeis tam cedo, cujo mote é atribuído a Bartolomeu Trosilho,
mestre de capela de D. João III, e a cantiga Já não podeis ser contente, cujo mote parece dever-se à sua
irmã, D. Maria de Portugal (1521-1577); tudo isto aponta para a década de 1540, ou pouco depois.
Nesta secção só um vilancete aparece em estilo imitativo, mas, em contrapartida, a eficácia declamatória,
conseguida com o mínimo de meios e evitando a previsibilidade rítmica do estilo «golpeado» criticado
por Bermudo, é patente em peças como Minina dos olhos verdes, Quanto tempo trabalhei e Na fonte está
Lianor (aqui oferecida também em gravação).
Manuel Pedro Ferreira

77

Figura 12: Cantiga Na fonte está Lianor


(Chansonnier Masson, fols. 119v-120) [CD 1, faixa 20]
Antologia de Música em Portugal

78

Figura 13: Romance Los braços traigo cansados


(Chansonnier Masson, fols. 66v-67)
Manuel Pedro Ferreira

79
A fonte portuguesa mais conhecida de repertório profano cortês é o manuscrito 11793 da Biblioteca
Públia Hortensia de Elvas, normalmente designado por Cancioneiro de Elvas. Datável entre c.1560 e
c.1575, inclui sessenta e cinco canções polifónicas profanas, com notação musical, e o texto de quinze
romances, sete glosas e catorze vilancetes ou cantigas. A parte musicada do Cancioneiro justapõe,
grosso modo, quatro colectâneas diversamente situadas no espaço e no tempo: vinte e cinco peças,
sobretudo vilancetes em castelhano e em metro binário, maioritariamente da época e do círculo de
Escobar (representado com uma canção); dezoito peças, sobretudo cantigas em português, muitas
delas em metro ternário, desconhecidas noutras fontes (com um texto atribuível a D. Afonso de
Menezes, fidalgo activo na primeira metade do século); dezassete peças com as mesmas características
do primeiro grupo, incluindo outra canção de Escobar e quatro composições de Juan del Encina, mas
entremeadas na parte final com composições mais recentes, entre as quais uma peça de Pastrana;
e cinco composições terminais, duas delas com influência literária italiana, incluindo versos de D.
Manuel de Portugal, provavelmente escritos entre 1551 e 1555.193
A textura polifónica, nas camadas mais antigas, é tendencialmente homorrítmica, embora aqui e
ali, se retenha parcialmente a largueza frásica e a fluidez decorativa herdadas da geração de Urrede.
Os pares formados pelos nºs 14-15 e pelos nºs 24-25 destacam-se estilisticamente ao recorrer à
imitação. Só no fim da colecção (nºs 52-53, 55, 59, 61, 63, 65) é que a presença do estilo imitativo se
torna mais sistemática; essa camada deve corresponder, cronologicamente, ao segundo quartel (ou a
meados) do século. O grupo central de composições ilustra quer a permanência do estilo de c. 1500,
tendencialmente homorrítmico e ritmicamente padronizado, num âmbito regional português, quer
a sua adaptação ao ideal declamatório do segundo terço do século (nºs 27, 29, 31, 43). O vilancete
Cuidados meus tão cuidados (Antologia, nº 29) ilustra a valorização retórica, rítmica e harmónica da
palavra-chave e a imprevisibilidade métrica que o decalque acentual pode acarretar; ao mesmo tempo,
o compositor clarifica a forma da canção através da acentuação musical em rima e da marcação de
âmbitos modais complementares, potenciando o efeito expressivo.194
O último manuscrito relevante para o tema é o chamado Cancioneiro musical de Belém (Biblioteca
do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, Ms. 3391), o qual, pelo facto de se tratar apenas da
secção musical profana de um volume que contém muitas outras matérias, se presta a ser apelidado
de Cancioneirinho. Escrito muito tardiamente (c. 1603) mas com invulgar cuidado na disposição do
texto sob as diferentes vozes, o seu conteúdo polifónico resume-se a dezoito peças em castelhano,
entre as quais duas «chançonetas» ao divino, uma de Natal (Figura 14) e outra de tema eucarístico
(com possível ligação à festa do Corpo de Deus). No entanto, as concordâncias com outras fontes (nº
81 do Cancioneiro Masson, os nºs 61, 62, 64 e 65 do Cancioneiro de Elvas, um arranjo de Fuenllana
impresso em 1554 e dois arranjos de Estevan Daza impressos em 1576) permitem pensar que, na
generalidade, o repertório copiado é anterior a c. 1575. Testemunha, ainda assim, uma evolução,
não só no uso de formas poéticas como o terceto e o soneto, como na presença de quatro peças
integralmente a quatro vozes, duas delas (Ay de mim sin ventura e Oh dulce suspiro mio, cujos versos

193 Gil Miranda (ed.), The Elvas Songbook [Corpus Mensurabilis Musicae, vol. 98], Neuhausen: Hänssler-Verlag, 1987; Manuel Pedro
Ferreira, O Cancioneiro da Biblioteca Públia Hortênsia de Elvas: Edição facsimilada, com Estudo Introdutório de —, Lisboa: IPPC, 1989.
194 M. P. Ferreira, «A conjunção...», cit.
Antologia de Música em Portugal

80
iniciais são de Gregório Silvestre) tratadas de forma contínua, à maneira de um madrigal, outra
(Tierras mias ado nasci) ilustrativa de uma rara capacidade de dar corpo sonoro à ideia poética, com
recurso quer à registação e direcção melódicas, quer ao engenho contrapontístico.195

Figura 14: Pues a Dios humano vemos


(Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, Ms. 3391 [Cancioneirinho de Belém], fols. 58v-59)

195 Manuel Morais, Cancioneiro musical de Belém. Estudo introdutório e transcrição de —, Lisboa: Imprensa Nacional, 1988; M. P.
Ferreira, O Cancioneiro..., cit., pp. xv-xviii; id., «Da música...», pp. 180-82; M. Toscano, «As vozes...», cit., pp. 322-25. Veja-se também Rui
V. Nery, História da Música..., cit., pp. 27-31, 70-71, que encontra argumentos para colocar o Cancioneirinho de Belém, e até uma parte do
Cancioneiro Masson, na órbita estética do Maneirismo, tema que discutimos na nossa recensão «Da música...», cit., pp. 183-91, e que foi
ultimamente retomado, a propósito dos motetes de Manuel Cardoso, por J. P. d’Alvarenga (Estudos, cit., pp. 105-52).
Manuel Pedro Ferreira

a institucionalização das capelas polifónicas nas catedrais 81

Deixemos agora o ambiente laico (ainda que protagonizado por clérigos, a quem devemos pelo
menos três das quatro compilações portuguesas acima consideradas) para nos concentrarmos na
articulação entre o gosto cortês e as instituições eclesiásticas. A capela privada de um bispo tinha, no
Renascimento, todas as características de uma capela aristocrática, como a do Duque de Bragança (criada
em 1505),196 não devendo pois confundir-se com uma manifestação institucional da Igreja. Tendo a
maioria dos membros do alto clero origem na nobreza, os rendimentos diocesanos reservados ao bispo
(mesa episcopal) eram proporcionalmente muito elevados; os bispos raramente presidiam a cerimónias
litúrgicas na catedral, pelo que nada os obrigava a colocar os seus cantores privados ao seu serviço,
nem a canalizar parte do orçamento para sustentar a educação dos moços do coro ou abrilhantar a
liturgia da Sé. Quando havia um prelado genuinamente interessado no seu engrandecimento, fazia o
favor de emprestar músicos, de os contratar ou de os financiar, quer directamente, quer indirectamente,
através da sua influência na distribuição papal de «benefícios», rendas fixas que funcionavam como
suplementos remuneratórios. Assim, segundo os cónegos bracarenses, D. Diogo de Sousa, arcebispo
de Braga entre 1505 e 1532, «trabalhou muyto por conservar e acreçentar» a capela de cantores da Sé,
«mandando a huuns criar e ensinar, e a outros buscar pollo Reino, e fora fazendo-lhes partidos, e dando-
-lhes benefiçios, segundo suas habilidades e serviços mereçiam, e isto de sua casa, sem tirar da ordinaria
Renda da obra nem da chancelaria».197
D. Manuel I tentou impulsionar a prática polifónica regular pelo menos na Catedral de Évora,
mas foi só com a elevação de dois dos seus filhos à cátedra episcopal, o Cardeal-Infante D. Afonso e
o Cardeal Infante D. Henrique, já no tempo de D. João III, que nas catedrais portuguesas se lançaram
as bases organizativas e financeiras para tal, com a constituição de um corpo permanente de cantores
especializados em polifonia, dirigidos por um mestre e coadjuvados por moços de coro colegialmente
educados a expensas do Cabido. Isto sucedeu, em Évora, com D. Afonso, na década de 1520; em Lisboa,
ainda com D. Afonso, em 1530; e em Braga, com D. Henrique, na década de 1530. Em Coimbra, a capela
polifónica da Catedral (a não confundir com a presença na Catedral, como residentes, dos cantores do
bispo) deve ter-se constituído ainda em tempo de D. Jorge de Almeida, ou seja, antes de 1543, embora
desconheçamos a data da ocorrência.198 A Sé do Porto juntou-se, antes de 1542 mas provavelmente
depois de 1538, a estas catedrais, mas pagando ao mestre e à meia-dúzia de cantores da sua capela musical
um décimo dos ordenados estipulados em Évora, que estava ao nível das remunerações praticadas na

196 José Augusto Alegria, História da Capela e Colégio dos Santos Reis de Vila Viçosa, Lisboa: F. C. Gulbenkian, 1983, pp. 4-7.
197 Cf. J. P. d’Alvarenga, Estudos, cit., p. 78.
198 R. Stevenson, «Prefácio», cit.; José Augusto Alegria, O ensino e prática da música nas Sés de Portugal, Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1985; Rui V. Nery, História da Música, cit., pp. 31-38.
Antologia de Música em Portugal

82
capela real, e um quarto daqueles praticados em Braga;199 ainda que o custo de vida no norte do país
fosse então mais barato do que em Lisboa ou Évora, essa diferença dificilmente compensaria condições
financeiras tão pouco atractivas, ainda que atenuadas pelo acesso a outros rendimentos, pelo que não
admira que o Porto não nos tenha aparentemente deixado produção artística própria, ficando largamente
na dependência do que lhe vinha de Braga, cidade próxima na geografia e nos costumes litúrgicos.
As primeiras referências inequívocas à existência de Capelas musicais noutras catedrais são já de 1552
(Lamego)200 e 1570 (Viseu),201 podendo essas referências ser algo posteriores à data da fundação.
A existência de uma capela catedralícia não exclui a possibilidade de reforços oriundos da capela
privada do bispo, como nos informa o relato sobre D. Henrique, sucessivamente arcebispo de Braga e
de Évora, que «tanto era desejoso e amigo do ornamento e autoridade da capella dos cantores desta See
[de Évora] que, donde quer que os podia aver pera ella muito bons os mandava vir, e aos que parecia que
servião pera o serviço della os aceitava para cantores com seus ordenados e stipendios, e aos que com
elles somente não podia contentar nem satisfazer por mereçerem maiores partidos, os benefficiava [ou
seja, atribuía-lhes adicionalmente rendimentos fixos associados a proventos eclesiásticos] na mesma
See [...] mas ainda aos aos cantores da sua camara e criados seus honrrados fazia cantores na mesma
See por a capella ser mais grave e melhor provida».202 Apesar da ajuda dos bispos, o esforço financeiro
de sustentar uma capela de boa qualidade pareceu por vezes incomportável aos cónegos: em 1544, o
cabido de Braga tentou, sem sucesso, remeter de novo para a mesa arquiepiscopal a responsabilidade
pelo pagamento dos cantores e do mestre de capela, Miguel da Fonseca.203
Este último deixou-nos, no manuscrito 967 do Arquivo Distrital de Braga e no MM 40 da Biblioteca
Pública Municipal do Porto, dezenas de obras polifónicas quase sempre a quatro, mas por vezes a
cinco ou seis vozes, obras que constituem uma colecção de Intróitos e Comunhões para os domingos
e festas do ciclo temporal, e têm na sua base a reprodução integral do cantochão respectivo em
notação não-mensural. Segundo João Pedro d’Alvarenga, este repertório «deriva de um contexto de
prática polifónica improvisatória, na qual o cantochão, mantido inalterado na sua estrutura melódica
e notacional, funcionava como o elemento condutor da composição, sobre o qual era lançado pelas
restantes vozes o contraponto extemporâneo [...] Porém, os dispositivos de unificação e articulação
associados à res facta [composição trabalhada por escrito] — imitação, cadências e pausas — estão,
em maior ou menor grau, presentes em cada peça», assegurando, apesar da invariabilidade da textura
e da previsibilidade rítmica associada ao cantochão, a sua individualidade artística.204

199 José Augusto Alegria, O ensino, cit., pp. 63-64; M. Valença, A arte organística..., cit., p. 123; J. P. d’Alvarenga, Estudos, cit., pp. 46-48.
Sobre as remunerações oferecidas na capela real aos seus cantores, veja-se J. M. Pedrosa Cardoso, Cerimonial da Capela Real, cit., pp. 37-40,
53-56, 128, 139: pelos meus cálculos, em 1534 o valor acumulado dos prémios ordinariamente previstos podia oscilar entre os 17.000 e os
18.000 reais, sem contar com benefícios e benesses reais (algumas das quais documentadas por Sousa Viterbo, Subsídios, cit.) que facilmente
poriam a fasquia acima dos 20.000 reais, correspondente ao que, em média, se pagava em 1542 em Évora. Se estimarmos o moio de trigo
local a 3.000 reais — atendendo a que na década seguinte em Lisboa o preço normal de um moio, de volume algo inferior ao de Évora, era
de 4.000 reais, sendo já de 6.000 reais em 1552 (J. Brandão, Grandeza..., cit., p. 26) — o mestre de canto de Olivença, com direito a seis moios
de trigo a partir de 1539 (até então, o seu salário era de 6.500 reais e três moios de trigo: M. A. Alves Barbosa, Vincentius Lusitanus, cit., p.
113), teria uma remuneração anual de 18.000 reais, equivalente ao do mestre de capela em Braga na mesma época.
200 M. Gonçalves da Costa, Cantores e instrumentistas da Catedral de Lamego, Lamego: edição do autor e do Seminário, 1992, p. 25.
201 Manuel Joaquim, op. cit., p. 54. O cargo de mestre de capela poderia já existir em 1566, ano em que Ambrósio de Pinho, primeiro
mestre de capela conhecido (assina um documento em 1571), abandonou o lugar de cantor na Sé de Évora. É mesmo possível que a capela
já existisse em 1552, ano em que aparece referência documental a Francisco Gonçalves, cantor (cf. pp. 57, 100).
202 José Augusto Alegria, História da Escola de Música da Sé de Évora, Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1973, p. 31.
203 Cf. J. P. d’Alvarenga, Estudos, cit., p. 79.
204 Id., ibid., pp. 35-87 [52, 57].
Manuel Pedro Ferreira

83
As composições de Miguel da Fonseca são um caso raro, nesta época, de tratamento polifónico
sistemático do Próprio da Missa, talvez explicável pela identidade clerical da cidade: sem aristocracia
ou burguesia que impusesse a exaltação das suas preferências devocionais ou cerimoniais através de
polifonia baseada em textos do Ordinário da Missa (válidos em qualquer ocasião, e por isso de efeito
facilmente privatizável), os cónegos estavam livres de revalorizar, simultaneamente fiéis ao espírito
da tradição gregoriana e aos novos ventos reformistas, a simbolização sonora das hierarquias do
ano litúrgico. Esta hierarquização conseguia-se não apenas destacando, pelo tratamento musical, os
domingos e festas dos outros dias, ou sublinhando a solenidade da entrada do celebrante e o apogeu do
rito eucarístico face aos restantes cânticos, mas também reservando o maior número de partes vocais
(e os modos de execução mais solenes) às principais festas, opção aqui exemplificada pela textura a
cinco vozes do início e do final da Missa do Galo (Antologia, nºs, 41-42 e respectiva gravação), que
prenuncia o uso da força máxima (seis vozes) na Missa de Natal.205

205 Cf. Manuel Pedro Ferreira, “O Templo, o Tempo e o Som: sobre a expressão musical da liturgia latina (período medieval)”, in
Medievalista online, ano 3 (2007), nº 3 <www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista>.
Antologia de Música em Portugal

84

Figura 15: Cristóbal de Morales, Magnificat


(livro de música polifónica do Museu de Arte Sacra de Arouca, fols. 17v-18)
Manuel Pedro Ferreira

o lugar da teoria musical no portugal de quinhentos 85

A criação de Capelas nas Sés portuguesas exigiu um vultuoso investimento não só na contratação
de cantores especializados, como na preparação e sustento dos seus sucessores, normalmente educados
como moços de coro no seio de cada Capela. Isso impôs um esforço educativo cuja componente
teórica não poderia ser esquecida. Não admira, pois, que date também da década de 1530 a publicação
dos primeiros tratados de música impressos em Portugal, da autoria do espanhol Mateus de Aranda.
Tal como a criação de capelas polifónicas nas principais catedrais segue uma tendência generalizada
em Espanha a partir de finais de quatrocentos, estes livros inserem-se, no geral como em certas
particularidades do conteúdo, numa corrente de tratadística ibérica que remonta aproximadamente
à mesma época. Segundo Gonzalo de Baena, em Portugal a música era geralmente «estimada, sintida
e concertada, tanto a la dulçura de su melodia quanto a la parte muy sotil de su theorica, aventajada
mas que en otra parte del mundo»;206 se esta última comparação é obviamente exagerada, podemos
daqui depreender que havia, nesta época, em círculos ligados à corte, um ambiente favorável à
aprendizagem e à discussão teórica sobre música. Esse ambiente deve ter-se sentido até ao final da
década de 1540, pois só ele justifica que Juan Bermudo tenha dedicado o seu Libro primero de la
Declaración de instrumentos (Osuna, 1549) a D. João III.
Mateus de Aranda foi mestre de capela na Sé de Évora a partir de 1528; a sua formação inicial
parece ter-se feito em ambiente ibérico, incluindo a frequência da Universidade de Alcalá por volta
de 1515; há menção de uma posterior visita a Itália. Aranda publicou sucessivamente, em castelhano,
um tratado de cantochão (1533) e um tratado de canto mensural, ou seja, a mais de uma voz (1535).207
Em 1544 foi nomeado por D. João III para a cátedra de Música na Universidade de Coimbra, onde
viria a falecer quatro anos depois. Da sua autoria conhecem-se apenas um motete a quatro vozes,
dois fragmentos de um Credo também a quatro vozes208 e seis antífonas a uma só voz, incluídas no
seu tratado de cantochão.209 Nestas últimas, que servem de base a um curso intensivo de solmização
e aplicação de musica ficta (acidentes como o fá sustenido, o lá bemol, etc.) em contexto monódico,
Aranda ilustrou os princípios estéticos vigentes no seu tempo, clarificando a modalidade, reduzindo
a extensão dos melismas, redistribuindo as notas pelas sílabas de forma a diminuir os contrastes e
acelerando as mudanças de registo melódico.
À época de redacção deste tratado de Aranda, digladiavam-se duas correntes de opinião entre os
teóricos: uma corrente inovadora, minoritária, iniciada pelo tratado Música práctica de Bartolomé
Ramos de Pareja (1482) e posteriormente defendida por Giovanni Spataro (em Itália, em textos
de 1491 e 1521) e Gonzalo Martínez de Bizcarguí (em Espanha, a partir de 1508); e uma corrente

206 T. Knighton, «A newly discovered keyboard source...», cit., pp. 107-8.


207 Mateus de Aranda, Tractado de cãto llano (1533). Edição facsimilada com Introdução e Notas do Cónego Dr. José Augusto Alegria,
Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1962; id., Tractado de canto mensurable. Edição facsimilada com Introdução e Notas do Cónego José Augusto
Alegria, Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1978.
208 José Augusto Alegria, «Inéditos musicais de Mateus d’Aranda», in Colóquio, 15º ano, 2ª série, nº 12 (Abril de 1973), pp. 71-72;
descrição dos manuscritos (Mús. Lit. Ms. 32 e Cód. CLI/1-9d.) in id., Biblioteca Pública de Évora: Catálogo dos fundos musicais, Lisboa,
Fundação C. Gulbenkian, 1977, pp. 191-92; transcrição musical in id., História da Escola de Música..., cit., pp. 156-59.
209 Manuel Pedro Ferreira et al., «Mateus de Aranda: o Tractado de cãto llano (1533) — Notas de leitura», in Revista Portuguesa de
Musicologia nº 14 (no prelo).
Antologia de Música em Portugal

86
conservadora, que polemizou contra as novas propostas primeiro pela pena de Niccolo Burzio
(1487) e depois, a partir de 1520, através de Franchino Gaffori (em Itália) e de Juan de Espinosa
(em Espanha). O aspecto mais destacado nesta polémica é a caracterização dos meios-tons que
eram teoricamente «cantáveis»; este tema, aparentemente abstruso (pois hoje em dia toma-se por
referência um meio-tom temperado de 100 cents, de dimensão intermédia), revela um problema mais
vasto, o do abandono da afinação pitagórica (em que se cantam quartas e quintas perfeitas, um tom
inteiro que resulta da diferença entre estes dois intervalos, e um meio-tom, dito «menor», que resulta
da diferença, equivalente a 90 cents, entre dois tons inteiros e uma quarta perfeita) a favor de uma
afinação alternativa, realisticamente adaptada à prática musical do tempo, implicando meios-tons
«maiores»; a tendência para o ajustamento prático da afinação colocava, não obstante, dificuldades na
aplicação e na justificação teórica face à autoridade e à coerência do ensinamento pitagórico, pelo que
não é de admirar que tenha suscitado resistências. Neste como noutros aspectos, Mateus de Aranda
é conservador, embora a sua posição não seja inteiramente coerente. De facto, mostra-se partidário
do sistema pitagórico, mas admite de passagem que as terceiras correspondem a proporções super-
particulares (ou seja, 4:5 para a terceira maior [justa] e 5:6 para a terceira menor [justa]), incompatíveis
com esse sistema; sendo a diferença entre a quarta perfeita e a terceira maior justa, de um meio-tom
maior (112 cents), Aranda acaba por reconhecer que, em certos contextos, o meio-tom que se tocava
e cantava era o meio-tom maior, como defendia Ramos de Pareja, e não o menor.210
Embora intelectualmente pobre, e reflectindo um ensino convencional, de carácter pré-humanístico,
o tratado de cantochão de Aranda inclui elementos teóricos e uma consciência terminológica que estão
ausentes de muitos tratados contemporâneos. Está, no seu conteúdo, muito próximo do Tractado de
principios de Juan de Espinosa, se bem que seja menos exaustivo. O tratado de música mensural tem
uma índole ainda mais marcadamente prática, destacando-se pela importância que dá à improvisação
contrapontística a duas, três e quatro vozes, aí exemplificada. O sucesso de Aranda como autor foi
limitado, já que de nenhum dos seus tratados se conhecem reimpressões; o seu sucessor na cátedra
de Música em Coimbra a partir de 1553, Afonso Perea de Bernal, preferiu promover (em tradução) o
despretensioso mas útil opúsculo de Juan Martínez (uma Arte de canto llano, publicada pela primeira
vez em 1530) que incluía uma representação da mão guidoniana e as entoações habituais dos salmos. A
tradução portuguesa (João Martinz, Arte de canto chão, posta e reduzida em sua enteira perfeição) teve
múltiplas edições até princípios do século XVII.211 A falta de ambição académica do tratado traduzido
por Bernal, junto com outros indícios de secundarização social e intelectual da cátedra de Música na
Universidade, indicia que a teoria musical não encontrou em Coimbra ambiente propício ao seu cultivo
a um nível comparável ao das restantes nações europeias.212

210 Cf. J. Javier Goldáraz Gaínza, Afinación y temperamento en la música occidental, Madrid, Alianza, 1992.
211 Mário de Sampayo Ribeiro, A «Arte de cantollano», de autor desconhecido, (R. 14670), da Biblioteca Nacional de Madrid e a «Arte» de
Juan Martinez, separata do Boletim da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, vol. xxvi, Coimbra, 1963.
212 R. V. Nery, História da Música, cit., pp. 40-41.
Manuel Pedro Ferreira

o impacto humanístico no canto latino 87

Temos contudo notícia de dois tratados redigidos em Portugal em meados do século, mas dos quais
não conhecemos qualquer exemplar: uma Arte de música de reformação e perfeição do cantochão e de
toda a música cantada e tangida (1560), de Frei João Rodrigues, vigário da igreja de Santa Maria em
Marvão; e um Tratado de cantochão de cinco cordas e de uma e de canto de órgão e contraponto (1563),
de Francisco Velez, que tinha o encargo de educar os moços do coro na Sé de Évora.213 Se o título do
segundo tratado, que recebeu licença de impressão, denuncia o propósito de habilitar o leitor a cantar
monódica e polifonicamente não só a partir de pentagramas, como de notação de tipo aquitano em
torno a uma só linha (pois muitos livros escritos de acordo com a variedade «portuguesa» de notação
ainda estariam a uso), já o título da Arte de João Rodrigues testemunha uma das primeiras tentativas
de reformulação teórica do cantochão segundo princípios provavelmente inspirados na exigência
humanística de racionalidade textual, tendo por horizonte o respeito da acentuação e da quantidade
silábica do latim clássico.
É também nesta linhagem reformista, tendo por objecto o cantochão tradicional (notoriamente
irracional de um ponto de vista humanístico), que se insere a publicação em 1543, por Diogo
Fernandes Formoso, de um Passionarium segundo o rito da capela real. Na dedicatória ao rei D. João
III, Fernandes Formoso precisa que acrescentou ao conteúdo habitual do Passionário (livro contendo
a cantilação das leituras da Paixão de Jesus Cristo segundo os quatro evangelistas, destinadas ao
Domingo de Ramos e à Terça, Quarta e Sexta-feira Santas) «todos os hinos eclesiásticos e as lições
que a Igreja canta» no tríduo pascal, com as respectivas «notas do canto e da entoação», mas «de tal
maneira que doravante possam cantar-se com música mensurada: o que até agora (que eu saiba)
ninguém fez. Além disso esforçámo-nos sempre e ao longo de toda a obra por fazer com que a norma
do acento latino não se opusesse às normas da música: mas que ambas se adaptassem exactamente
dentro do possível».214
Se a aplicação ao cantochão silábico de uma notação mensural simplificada, com figuras negras,
como a do Passionarium de 1543, é indício de espírito humanístico, ele reencontra-se no Missal de
Braga de 1558 com a notação do pranto processional Heu, heu, Domine, em que os versículos se
cantam de acordo com um ritmo declamatório, metricamente irregular, tendencialmente decalcado
sobre a acentuação do latim (Antologia, nº 7, e respectiva gravação). Embora musicalmente singelo,
a popularidade deste pranto e da respectiva procissão foi imensa. Na cidade brasileira de Baía, em
1565, uma testemunha relata que na Sexta-feira Santa, «se fez o officio do desenterramento do Senhor
[...] levando dous padres vestidos com suas alvas e descalços ao Santíssimo Sacramento em huma
tumba toda cuberta de preto que pera isso estava feita, indo diante as tres Marias, cantando Heu,
heu, Salvator noster, cubertas com seus mantos e coroas em as cabeças, o que tudo causava grande

213 J. Freitas Branco, História da Música Portuguesa, cit., p. 131; J. A. Alegria, História da Escola de Música..., cit., p. 33; id., «Introdução»
a António Fernandez, Arte de musica de canto dorgam, e canto cham, & Proporções de Musica divididas harmonicamente. Reprodução em
fac-símile, s.l.: Publinorma, 1996, pp. v-xii [vi].
214 Dedicatória citada na íntegra, com tradução portuguesa em nota: J. M. Pedrosa Cardoso, O canto da Paixão..., cit., pp. 135-37.
Antologia de Música em Portugal

88
devação e admiração a esta gente»;215 em Braga, as três Marias (Maria Madalena, Maria Salomé e
Maria Cléofas) eram representadas por dois meninos do coro, o que prefigura, a menor escala, a
procissão tal como se desenrolava em Goa, em 1576:

«acabada a missa a sesta-feira, saiem todos os Padres e Irmãos


em procissão da samcristia [...] e outros seis Padres, vestidos com
alvas e cubertas as cabeças e os rostos com os amitos, trazem huma
tumba cuberta de veludo preto, diante da qual vão huns anjos
com os misterios da paixão, e após elles dous choros de apostolos
e, detrás da tumba, hum choro das Marias, os quais se representão
pellos meninos de casa e alguns outros cantores da nosa capela. Estes
todos vão cantando huns versos da Sagrada Scritura a proposito
do que se representa, ora cantando huns, ora respondendo outros,
com as voses tão lagrimosas e tristes, e com hum Heu! heu, Domine,
Salvator noster! que respondem as Marias, que bastão pera quebrar
os coraçõis».216

Em Évora, a publicação de um novo Breviário em 1548, com a contribuição do humanista André de


Resende, deverá ter implicado a parcial reformulação melódica dos antifonários da catedral, mas estes
últimos não sobrevivem ou não foram ainda identificados. Em Santa Cruz de Coimbra, o processo
de reforma eclesiástica que aí decorreu sob a orientação de Frei Brás de Braga entre 1527 e 1554 e a
formação progressiva, em meados do século, de uma Congregação de mosteiros crúzios (reconhecida
pelo papa em 1556) levou à recomposição do repertório monódico por Dom Vicente, a quem se
atribuíam, à data da sua morte (1580), «todos os cantos chãos que na nossa Congregação se uzam e
alguns dos Hymnos, Kyrios, Flectamos, Benedicamos» aí cantados.217 Testemunho dessa actividade é
o livro de coro MM 37 da Biblioteca da Universidade (provavelmente escrito antes de 1555), em que
grande parte do cantochão é escrito em notação mensural branca, incluindo muitos dos Benedicamus,
explicitamente referidos no obituário de Dom Vicente.218 Entre 1569 e 1575, o mesmo reformulou
o processionário, o tonário e outros cantos não especificados, mas que provavelmente incluem os
Prefácios e o Pater noster da Missa e a música do Passionário, que aparecem no livro de coro MM 69,
copiado entre 1569 e 1572.219
Entretanto, os Jesuítas, instalados em Coimbra a partir de 1542, tinham reinterpretado e limitado o
impulso humanista canalizando-o para uma educação teologicamente ortodoxa apoiada em modelos
literários clássicos. Este classicismo manifestava-se, nomeadamente, através da representação escolar
de teatro neolatino sobre temas bíblicos, no qual, para além da espectacularidade no aparato cénico

215 Cit. in José Maria Pedrosa Cardoso, «Do Som que chegou ao Novo Mundo: a Paixão Portuguesa», in Rui Vieira Nery (coord.), A
música no Brasil colonial, Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 2001, pp. 158-70 [160].
216 Cit. in M. Martins, O Teatro..., cit., p. 53.
217 Ernesto Gonçalves de Pinho, Santa Cruz de Coimbra, centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII, Lisboa: Fundação C.
Gulbenkian, 1981, pp. 167-69.
218 O. Rees, Polyphony in Portugal, cit., p. 29, propôs que o códice MM 37, dadas as concordâncias scriptológicas e codicológicas com o
grupo de manuscritos MM 6 / 9/ 12 (e parte de MM 7), foi escrito na mesma época, i. e., 1540-1555.
219 Cf. J. M. Pedrosa Cardoso, O canto da Paixão, cit., pp. 49-52, 153-54, 344-51.
Manuel Pedro Ferreira

89
e no uso de instrumentos (flautas, charamelas, violas d’arco, violas, cravos, etc.) se recuperava o coro
como elemento musical por excelência, a exemplo da Antiguidade greco-latina. Os textos teatrais
eram de diferente extensão e complexidade, incluindo diálogos, autos, tragicomédias e, no topo da
escala, tragédias. Entre as secções de certos diálogos, entre autos representados em sequência e no
seio de cada acto das tragicomédias e tragédias havia lugar para música, especialmente coros, que
podiam envolver acompanhamento instrumental e ser subdivididos de forma antifonal ou policoral.
Em 1559, uma tragédia levada à cena em Coimbra incluiu oito ou nove músicos, que integravam
um coro polifónico; no mesmo ano, outra tragédia, representada em Évora, tinha um coro que
cantava a quatro vozes. Um dos compositores que contribuíram para estes coros (cuja música
era escolhida por concurso) foi Francisco de Santa Maria, de ascendência mourisca e oriundo de
Ciudad Rodrigo, mestre de capela do Mosteiro de Santa Cruz (depois de o ter sido dos bispos da
Guarda e de Coimbra). Activo desde meados do século, compôs, entre inúmeras obras, «muittos
choros pera tregédias, especialmente pera hua grande [Sedecias, de Luís da Cruz] que el Rei dom
Sebastião veo ver a esta cidade [em 1570]»; a análise da parte coral que sobrevive desta tragédia,
identificada por Owen Rees no códice MM 70 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra,
revela uma eficaz assimilação dos princípios humanísticos, tendo o compositor criado um estilo
que privilegia formas não-repetitivas e liberta o ritmo de uma periodicidade métrica, em favor do
respeito pela acentuação (e em menor grau, pela quantidade silábica) do elegante latim cantado.
A música de Francisco de Santa Maria, que terá provavelmente sido exportada, juntamente com
os textos, para alguns dos colégios fundados pelos jesuítas por todo o mundo, insere-se assim
numa mais vasta tendência europeia de reformatação neoclássica da música vocal, como foi a
musique mesurée à l’antique, promovida em França pela Academia de Jean-Antoine de Baïf.220

220 M. Martins, O teatro nas cristandades quinhentistas..., cit., pp. 9-43; J. Freitas Branco, História da Música Portuguesa, cit., p. 152; E. G.
Pinho, Santa Cruz de Coimbra, cit., pp. 170-73; O. Rees, Polyphony in Portugal, cit., pp. 99-112. Embora os jesuítas estivessem, por norma
estatutária, dispensados de cantar Missas ou Ofícios, por determinação papal praticaram episodicamente, entre 1558 e 1573, o ofício coral:
vd. Pedro Romano Rocha, «Os jesuítas e a liturgia», Brotéria, nº 129 (1989), pp. 174-92.
Antologia de Música em Portugal

90 do fim do concílio de trento a alcácer-quibir

A institucionalização de capelas de cantores nas principais catedrais é o principal indício da


generalização e aprofundamento do modelo de produção artístico-musical e treino profissional que,
em Portugal, durante décadas, fora quase exclusiva do Rei e de um número diminuto de grandes
senhores. Paralela à afirmação do classicismo renascentista e precedendo de pouco a refundação
humanista da Universidade, surge como uma das facetas mais significativas do programa cultural
pós-manuelino. Ao morrer D. João III, em 1558, estava consolidada esta transferência para os
centros catedralícios do paradigma polifónico promovido pela alta nobreza, paradigma que ecoou
no espaço público (em 1551-1552 havia em Lisboa nada menos que treze «escolas de ensinar a
canto de órgão», contra uma só de «ensinar a tanger viola»)221 e foi reproduzido através das rotas
mercantis do Império até aos confins da terra conhecida, como testemunha Fernão Mendes Pinto
(na cidade chinesa de Liampoo, onde havia uma colónia de mercadores portugueses, podia ouvir-
se já em 1541 «canto dorgão tão concertado quanto se pudera ver na capella de qualquer grande
Principe»).222
A regência que se segue, e o reinado de D. Sebastião, são o período em que, por um lado, na
sequência do endurecimento da Inquisição (que persegue e condena Damião de Góis à prisão)
e da transposição para a ordem jurídica nacional das decisões do Concílio de Trento, se acentua
radicalmente a romanização litúrgica e o contrôle social sobre as ideias e os costumes. A publicação
em Roma de livros litúrgicos pós-tridentinos (o Breviário de 1568 e o Missal de 1570), de adopção
obrigatória salvo para as comunidades eclesiásticas que representassem, e quisessem reter, uma
tradição velha de mais de dois séculos, levaria ao geral abandono ou atenuação das particularidades
próprias de cada diocese (com excepção da diocese de Braga). Isto implicou, quer a substituição de
manuscritos musicais, quer intervenções editoriais selectivas nos livros de coro que permaneciam em
uso (e que a partir desta época iriam sofrer frequentes rasuras nos textos e na música, sobretudo nos
melismas mais extensos).223 Foram ainda encomendados trabalhos de composição sobre as versões
romanas dos textos das Lamentações da Semana Santa, na Sé de Évora, a Cosme Delgado, em 1571
(que terá sido autor de duas versões, monódica e polifónica); e em Santa Cruz de Coimbra, a Francisco
de Santa Maria, em 1575, cujas Lamentações polifónicas se conservam anonimamente no códice
MM 3 da Biblioteca da Universidade.224 Impulsionar-se-ia, enfim, a impressão de novos breviários
segundo o uso romano e de livros de canto revistos, como o Passionarium publicado pelo chantre da

221 M. Valença, A arte organística, cit., p. 78. J. Brandão, Grandeza..., cit., p. 199.
222 Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Lisboa: Imprensa Nacional, 1983, p. 195 (cap. lxviiii). Paulo Dias de Novais descreveu em
1578 composições polifónicas de C. Morales e de F. Guerrero cantadas por negros em Angola; o documento aparece citado in M. C. Brito,
História da Música Portuguesa, cit., pp. 70-71, que inclui uma valiosa síntese sobre os aspectos musicais da expansão portuguesa. Sobre este
assunto, veja-se também Domingos Morais, Os instrumentos musicais e as viagens dos portugueses, Lisboa: Museu de Etnologia, 1986; G.
Doderer, «A música portuguesa na época dos Descobrimentos», cit.; Maria de São José Corte-Real, «A música na Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto», in Salwa El-Shawan Castelo-Branco (coord.), Portugal e o mundo. O encontro de culturas na música, Lisboa: Dom Quixote,
1997, pp. 173-84.
223 Uma das raras referências a este fenómeno encontra-se em J. P. d’Alvarenga, «A música também é escrita», cit., p. 260.
224 J. A. Alegria, História da Escola de Música..., cit., p. 35; R. V. Nery, A Música no Ciclo da «Bibliotheca Lusitana», cit., pp. 87-88; João
Pedro d’Alvarenga, «Polifonia portuguesa sacra tardo-quinhentista: estudo de fontes e edição crítica do Livro de São Vicente, manuscrito
P-Lf FSVL 1P/H-6» (dissertação de doutoramento, Universidade de Évora, 2005), pp. 48-53.
Manuel Pedro Ferreira

91
capela real, Manuel Cardoso, em 1575 (que inclui o canto das Lamentações e os Tons de invitatório
para a hora de Matinas).225
Simultaneamente, iriam ser impostos crescentes condicionamentos à prática musical em contexto
religioso, como se verifica na Congregação crúzia em 1572-1576 (proibição do uso de instrumentos,
excepto os de tecla; proibição de canto e execução instrumental por parte de religiosos em mosteiros
de freiras; imposição da censura prévia a letras de novos motetes).226 De facto, vivia-se um afã de
moralização eclesiástica e a música, nesse contexto, devia ser uma manifestação exterior de decoro
clerical, o que vinha contradizer algumas das suas funções sociais e limitar o desempenho profissional
de muitos músicos de Igreja. Na mesma época, acentuou-se também o contrôle patriarcal sobre as
actividades produtivas associadas à música: no Regimento dos que fazem cordas de viola em Lisboa,
datado de 1572, diz-se que, sendo a maioria destes artesãos do sexo feminino, e sendo inconveniente
não se acharem homens que sejam juízes e examinadores «para metter o officio em ordem»,
determina-se que «daqui em diante, quando alguma molher casada com violeiro [artesão habilitado
para construir violas de seis ordens, violas de arco, harpas e instrumentos afins] se quiser examinar do
dito officio de fazer cordas, não use delle sem seu marido ser também examinado», decisão que visa
explicitamente a transformação deste ofício numa falocracia.227
Em contrapartida, este foi também um tempo em que D. Sebastião teve ao seu serviço o flamengo
Raynaldus van Melle, como mestre de capela, e também, entre 1574 e 1577, um dos maiores
instrumentistas da época no domínio da corda dedilhada, o vihuelista cego Miguel de Fuenllana, autor
do livro de música para vihuela Orphenica lyra (Sevilha, 1554), que incluía, para além de transcrições de
obras polifónicas, 52 Fantasias, 8 tentos e outras peças, como o arranjo e contraponto sobre a melodia
da canção Si amores me han de matar (Antologia, nº 54, e gravação) e uma versão do romance Paseavase
el rey moro (também aqui gravado).228 Coincidiu com o reinado de D. Sebastião o apogeu da carreira
de António Carreira, o Velho, então nomeado mestre da capela real, depois de ter sido, desde 1553,
mestre dos moços de coro; são-lhe atribuídas pelo menos dezasseis obras vocais, incluindo um Stabat
mater a quatro vozes (Antologia, nº 48), um par Sanctus/Agnus dei a quatro vozes e quatro Turbas da
Paixão a quatro/cinco vozes, estas anteriores a 1575.229 A sua actividade estendeu-se à composição para
tecla, domínio em que se notabilizou e de que se conservam, no códice MM 242 da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, muitos Tentos ou Fantasias (Antologia, nºs 55-56), uma Canção glosada e
uma Ave Maria a quatro vozes; o seu estilo espelha, nas palavras de Rui Vieira Nery, «um gosto acentuado
[...] por todos os efeitos expressivos que lhe permitam criar um ambiente emocional carregado».230

225 J. M. Pedrosa Cardoso, O canto da Paixão..., cit., pp. 139-44.


226 E. G. Pinho, Santa Cruz de Coimbra, cit., pp. 55-58, 145-46.
227 Cf. Vergílio Correia (ed.), Livro dos Regimentos dos Officiaes mecanicos da mui nobre e sempre leal cidade de Lixboa (1572), Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1926, pp. 140-41. Segundo J. Brandão (Grandeza..., cit., pp. 189, 204, 212) vinte anos antes, o ofício de fazer cordas
de viola envolvia em Lisboa somente dez pessoas, havendo aí na mesma época sete casas de violeiros com o total de quinze artesãos; segundo
o Summario de Cristóvão Rodrigues de Oliveira (cf. R. V. Nery, História da Música, cit., p. 44) haveria em 1551 dezasseis violeiros, quatro
«carpinteiros de manicórdios» e três «carpinteiros organistas»; comparados estes números com a quantidade de mulheres que, de acordo com
Brandão, viviam de coser adufes na capital (quarenta!), depreende-se que a percussão era extremamente popular e que o mercado dos violeiros
e dos construtores de instrumentos de tecla, embora florescente, se restringia a uma franja social economicamente privilegiada.
228 Macário Santiago Kastner, Três compositores lusitanos para instrumentos de tecla: António Carreira, Manuel Rodrigues Coelho, Pedro
de Araújo, Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 1979, pp. 15-17; R. V. Nery, História da Música, cit., p. 42.
229 J. P. d’Alvarenga, «Polifonia portuguesa...», cit., pp. 197-210, 529-31.
230 R. V. Nery, História da Música, cit., p. 66; veja-se também: M. S. Kastner, Três compositores lusitanos, cit. pp. 11-26; M. Valença, A
arte organística..., cit., pp. 83-85.
Antologia de Música em Portugal

92

Figura 16: Aires Fernandes, Benedicamus Domino


(livro de música polifónica do Museu de Arte Sacra de Arouca, fols. 29v-30) [outra versão: Antologia, nº 45]
Manuel Pedro Ferreira

93
Esse foi ainda um tempo de assimilação de obras-primas de compositores espanhóis como Francisco
Guerrero, a quem em 1566 foi concedida autorização para faltar cinquenta dias ao serviço litúrgico
de modo a poder oferecer pessoalmente a D. Sebastião, em Lisboa, o seu primeiro livro de Missas
polifónicas;231 um tempo de pujança das tradições locais de música religiosa, como testemunham
os elogios que o séquito de Filipe II dirigiu aos músicos da capela real portuguesa na sequência da
sua actuação em Guadalupe, no Natal de 1576;232 e um tempo em que despontou, musicalmente
bem treinada e ideologicamente influenciada pelo princípio tridentino do primado do texto sacro
(mas também por uma espiritualidade orientada para o ascetismo, a vivência interior e os temas
dolorosos) uma nova geração de polifonistas. Esta é representada, entre outros, por Aires Fernandes
(talvez associado à catedral de Coimbra, possivelmente já activo em 1566), que nos legou uma obra
singularmente expressiva (Figura 16, Antologia, nºs 45-46, e como possibilidade incerta de atribuição,
sugerida por Bernadette Nelson, o Pange lingua anónimo nº 47); por Manuel Mendes, que em 1575
era mestre de capela do cardeal D. Henrique e a partir de então esteve ligado à Colegiada de Santo
Antão, em Évora; e por Pedro de Cristo, multi-instrumentista e mestre de capela em São Vicente de
Fora e Santa Cruz de Coimbra (onde professou em 1571).233
Essa nova geração floresceria artisticamente até finais do século, coincidindo com o início da carreira
de compositores como Duarte Lobo, Filipe de Magalhães, Manuel Cardoso e Pero de Gamboa; mas
optámos por nos deter aqui no ano de 1578, data da morte trágica de D. Sebastião na batalha de Alcácer-
-Quibir, por simbolizar a passagem de uma época em que, apesar da desconfiança face à heterodoxia
e do papel repressivo da Inquisição, a corte desempenhava um papel central na vida musical, para um
período em que, quer a capela real (na órbita de Madrid a partir de 1583), quer a música de câmara
associada à alta aristocracia (humana e financeiramente diminuída por Alcácer-Quibir, dividida pela
sucessão de D. Henrique e órfã de uma corte lisboeta), ocupariam em Portugal um papel de segundo
plano, deixando o centro do palco à música da Igreja, de profissionalismo solidamente ancorado,
graças à prole de D. Manuel I, nos mosteiros e catedrais de maiores rendimentos.

231 Robert Stevenson, «Guerrero, Francisco», in The New Grove Dictionary, cit., vol. 7, pp. 787-89.
232 R. V. Nery, História da Música, cit., p. 42.
233 O. Rees, Polyphony in Portugal..., cit., pp. 243-45, 308-9; J. A. Alegria, História da Escola de Música..., cit., pp. 37-42, corrigido de
acordo com J. P. d’Alvarenga, «Polifonia portuguesa...», cit., pp. 85-87; E. G. Pinho, Santa Cruz de Coimbra..., cit., pp. 176-84.
8
95
regras para a leitura da notação mensural

Notação Mensural

Notas simples ou ou

máxima longa breve semibreve mínima semínima fusa

Pausas

Tempos (breves) 4 6 2 3 1

Ligaduras
B L

L L

B B

L B

S S

ou
Claves Mensurações * ( 22 (

( 64 (
ou
( 94 (

( 32 (

Música Ficta (século XVI)

regra 1 O O tendencialmente realizado como 1/2 tom


O

regra 2 O O
= 1/2 tom em certas circunstâncias de solmização (una nota super la semper
O

est canendum fa)


regra 3 o trítono melódico deve ser evitado, a não ser que seja requerido pela exigência de um
intervalo vertical perfeito
regra 4 quintas e oitavas em função cadencial devem ser perfeitas
regra 5 um progressão cadencial para 5ª ou 8ª, a partir de intervalo de 3ª ou de 6ª, requer intervalos
maiores; para 5ª ou uníssono, a partir de 6ª ou 3ª, requer intervalos menores
regra 6 a 3ª em acordes em final de secção ou peça deve ser maior

* No século XVI, a diminuição (ex.: C cortado) faz com que as subdivisões, binárias ou ternárias, indicadas pelos signos de mensuração sejam
aplicadas à longa e à breve, em vez, respectivamente, da breve e da semibreve.
lâminas
fotográficas

8
Lâmina I: Fragmento hispano-visigótico de Coimbra (Arquivo da Universidade, IV-3ª-Gav. 44, nº 22), recto
100
Lâmina II: Fragmento hispano-visigótico de Coimbra, verso
Lâmina III: Fragmento hispano-visigótico de Lamego (Palácio Episcopal, Cx. 2, nº17): pormenor
102
Lâmina IV: Fragmento de antifonário bracarense (Lisboa, Torre do Tombo, Fragmentos, Cx. 20, nº1): pormenor
Lâmina V: Fragmento do Ofício de S. Geraldo de Aurillac (Braga, Arquivo Municipal, Frag. nº 12): pormenor
104
Lâmina VI: Epístola de S. Paulo a Tito, tropada (Braga, Arquivo Distrital, ms. 1000 [Missal de Mateus], fol. 8r) [Antologia, nº 5, e CD 2, faixa 4]
Lâmina VII: Fragmento de Missal (Braga, Arquivo Distrital, Frag. nº 23): pormenor
106
Lâmina VIII: Fragmento de Antifonário (Viseu, Arquivo Distrital, Frag. nº 46-135): pormenor
Lâmina IX: Antifonário cisterciense (Arouca, Museu de Arte Sacra, ms. 25, fol. 23v), pormenor
108
Lâmina X: Fragmento de Gradual (Arraiolos, Arquivo da Misericórdia, Liv. B-17)
Lâmina XI: Ofício de S. Geraldo de Braga (Braga, Arquivo Distrital, M949, fols. 229v-230r) [incluindo antífona Regem regum: Antologia, nº 6, e CD 2, faixa 7]
110
Lâmina XII: Hino a S. Bernardo, a duas vozes, Exultat celi curia (Arouca, Museu de Arte Sacra, ms. 25, folha de guarda) [Antologia, nº 19, e CD 1, faixa 6]
Lâmina XIII: Fragmento de Penha Longa (Lisboa, Museu da Música, 1055), recto
112
Lâmina XIV: Fragmento de Penha Longa, verso
Lâmina XV: Credo a duas vozes, início (Arquivo Distrital de Évora, Mús. Lit. nº 70) [Antologia, nº 20, e CD 1, faixa 12]
114
Lâmina XVI: Kyrie da Missa de Bruxel (Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, MM9, fols. 77v-78)
conteúdos do volume 2:
edições musicais

8
edições:
MPF: Manuel Pedro Ferreira
SP: Stephen Parkinson
JPA: João Pedro d’Alvarenga
NM: Nuno Miranda
BN: Bernadette Nelson
OR: Owen Rees
TK: Tess Knighton
SSR: Sílvia Seixas Rodrigues
JV: João Vaz

musicografia:
(1) Luís Santos
(2) José Sacramento
(3) Vera Inácio
(4-2) Sérgio Peixoto e José Sacramento
(5) João Pedro d’Alvarenga
(6) Sílvia Seixas Rodrigues
(7-2) Owen Rees e José Sacramento
(8) João Vaz
119
edições musicais

monodia sacra CD1 CD2

1 Responsório visigótico para o Ofício de Defuntos, Dies mei transierunt (MPF) (1) 1

2 Três antífonas visigóticas para o Lava-Pés de Quinta-feira Santa (MPF) (1) 2-4

3 Canto da Sibila (versão bracarense) (MPF) (2) 1

4 Versus Dum pater familias, de Santiago de Compostela (MPF) (2)

5 Epístola de S. Paulo a Tito, tropada (MPF) (2) 4

6 Invitatório para a Festa de S. Geraldo de Braga, Regem regum Dominum (MPF) (2) 7

7 Pranto processional Heu heu domine (MPF) (2) 13

monodia profana medieval

8 Martin Codax, cantiga d’amigo Ondas do mar de Vigo (MPF) (3) 8

9 Martin Codax, cantiga d’amigo Mia irmana fremosa (MPF) (3)

10 Martin Soarez, cantiga de maldizer Pero Perez se remeteu* (MPF) (2)

11 D. Dinis, cantiga d’amor Pois que vos Deus, amigo, quer guisar (MPF) (2) 10

12 D. Dinis, cantiga d’amor Non sei como me salv’a mha senhor (MPF) (2)

13 Juan Ruiz, troba caçurra Mis ojos non verán luz * (MPF) (2)

* Adaptação: a música aparece na respectiva fonte manuscrita associada a outro texto,


ou a diferente versão do mesmo texto
Antologia de Música em Portugal

120 monodia religiosa medieval em língua vulgar CD1 CD2

14 Alfonso X, cantiga de miragre: A ira dos mouros de Faro (CSM nº 183) (MPF/SP) (2)

15 Alfonso X, cantiga de miragre: A cura de Mateus de Estremoz (CSM nº 223) (MPF/SP) (2)

16 Alfonso X, cantiga de loor (CSM nº 40) (MPF/SP) (2)

17 André Dias, loa Sam Lourenço martyr* (MPF) (2)

primeiras polifonias e polifonia simples

18 Aymericus Picaudi, hino Ad honorem regis summi (MPF) (2) 5

19 Hino a S. Bernardo, Exultat celi curia (MPF) (4-2) 6

20 Credo dos jerónimos de Évora (MPF) (2) 12

21 Benedicamus Domino cisterciense (ANTT) (MPF) (2) 11

22 Ladaínha Pater de caelis (BN) (2)

23 Dic nobis Maria (BN) (2)

24 Canção de Natal: Dalha den cima del cielo (MPF) (2) 14

canção profana (séc. xvi)

25 Anónimo, Senhora quem vos disser, cantiga a 1. (MPF) (2) 15

26 Anónimo, Foyse gastando a esperança, cantiga a 3. (MPF) (2)

27 Anónimo, Perdi esperança, vilancete a 1 (MPF) (2)

28 Anónimo, romance de D. Inês de Castro, Io m’estando em Coimbra (MPF) (2) 16

29 Anónimo, Cuidados meus tão cuidados, vilancete a 3 (MPF) (2)

30 Anónimo, Minina dos olhos verdes, vilancete a 3 (MPF) (2) 17

31 Anónimo, Parto triste saludoso, vilancete a 3 (MPF) (2) 19

32 Luís Milán, vilancete Um cuydado, para voz e vihuela (NM) (2)


Manuel Pedro Ferreira

polifonia sacra (séc. xvi) CD1 CD2

33 Pero do Porto (Escobar), Stabat mater dolorosa (JPA) (5)

34 Pero do Porto (Escobar), motete Clamabat autem mulier (SSR) (6)

35 Pero do Porto (Escobar), motete Fatigatus Iesus (JPA) (5)

36 Anónimo, motete Quanti mercenarii (BN) (2)

37 Vasco Pires, Magnificat (OR) (5)

38 Anónimo, motete Si pie Domine (OR) (7-2)

39 Damião de Góis, motete Surge, propera (MPF) (2)

40 Heliodoro de Paiva: Salve regina (OR) (7-2)

41 Miguel da Fonseca, Intróito Dominus dixit ad me, para a Missa do Galo (JPA) (5) 2

42 Miguel da Fonseca, Comunhão In splendoribus sanctorum, para a Missa do Galo (JPA) (5) 6

43 Anónimo de Coimbra, Lamentações de Jeremias (JPA) (5)

44 Bartolomeu Trosilho, motete Dies mei transierunt (JPA) (5)

45 Aires Fernandes, Benedicamus Domino (OR) (7-2)

46 Aires Fernandes, motete Circumdederunt me (JPA) (5)

47 Anónimo, hino Pange lingua (JPA) (5)

48 António Carreira, Stabat mater (JPA) (5)

música instrumental (séc. xvi)

49 Pero do Porto (Escobar), Clamabat autem mulier (JPA) (5)

50 Juan de Anchieta, Congratulamini mihi a 3 (TK) (2)

51 Gonzalo de Baena, Si dedero a 3 (TK) (2)

52 António de Baena, Sanctus (& Osanna) a 4, da Missa Sola la fare mi vida: (TK) (2)

53 Cristóbal de Morales, In diebus illis a 4 (TK) (2)

54 Flecha/arr. Fuenllana, duo Si amores me han de matar, 21


e contraponto de Fuenllana sobre mesma melodia (NM) (2)

55 António Carreira, Fantasia em Ré, para órgão (JV) (8)

56 António Carreira, Fantasia em Lá-Ré, para órgão (JV) (8)


comentário crítico às
edições musicais

8
M.P.F. Manuel Pedro Ferreira
S.P. Stephen Parkinson
J.P.A. João Pedro d’Alvarenga
B.N. Bernadette Nelson
N.M. Nuno Miranda
O.R. Owen Rees
T.K. Tess Knighton
J.V. João Vaz

NOTA
Nas peças editadas por João Pedro d’Alvarenga, usam-se as seguintes siglas: S – Superius; A – Altus; T –
Tenor; B – Bassus; Br – breve; Sb – semibreve; M – mínima. No comentário crítico, na zona das notas a
seguir ao texto, um pequeno algarismo elevado indica a localização de uma figura no compasso, a cujo
número se reporta o algarismo maior anterior (assim, por exemplo, T 251 significa: Tenor, compasso 25,
primeira figura). Para as alturas do som usa-se a notação alfabética em itálico, com as oitavas indicadas de
acordo com a convenção de Helmholtz, segundo a qual o dó central é referido como c’.
Manuel Pedro Ferreira

125

Nº 1 Responsório «Dies mei transierunt»

Texto e tradução: vejam-se as notas para o CD 1.


Este responsório hispano-visigótico, para o Ofício de Defuntos, é invulgarmente tenebroso na sua enorme
beleza: nele se imagina um cadáver a falar com os vermes que o consomem, e a pedir a Deus a sua libertação da
condição terrena. A música realça a gravidade do pensamento, mas também a sua intenção ascensional.
A transcrição, baseada numa fotografia da notação aquitana acrescentada ao Liber ordinum da Real Academia
de la Historia em Madrid (ms. 56, fol. 26), proveniente de S. Millán de la Cogolla (tendo embora em conta a
notação visigótica do Antifonário de Leão, do século X), diverge em certos pontos das que foram até agora
publicadas. A edição restringe-se ao corpo principal do responsório; não se fez qualquer tentativa para
reconstituir o versículo, melodicamente irrecuperável.
Para facilitar a comparação, marcar a antiguidade da música e incentivar a aprendizagem de sistemas de notação
menos correntes, esta e as restantes peças hispano-visigóticas incluídas na presente Antologia são apresentadas
em notação quadrada, usual entre os intérpretes de canto gregoriano.
M.P.F.

Nº 2 Três antífonas para o Lava-pés de Quinta-feira Santa

(a) «Bone magister»


(b) «Si ego Dominus»
(c) «Si haec scitis»

Texto e tradução: vejam-se as notas para o CD 1.


Estas antífonas hispano-visigóticas destinam-se a acompanhar o Lava-pés durante a Semana Santa. Embora
este rito fosse conhecido desde o século IV, foi o 17º Concílio de Toledo que, no ano de 694, prescreveu que ele
deveria ser realizado na Quinta-feira Santa em todas as catedrais para imitar o gesto de Jesus na noite em que
foi traído. Lavar os pés aos patrões da casa e àqueles que chegavam de viagem era um trabalho humilde, feito
por escravos. Jesus, ao realizar este gesto, colocou-se na posição de escravo, deixando aos seus seguidores o
«mandamento novo» do amor fraterno.
As melodias destas peças foram apontadas em notação aquitana na margem direita do fólio 144 do Liber ordinum
(maior) de Silos, de 1052; a transcrição foi realizada a partir de fotografia. A última peça, contrariamente às
transcrições anteriormente publicadas, assume um final em mi, pelas razões aduzidas em Manuel Pedro Ferreira,
“Notation and Psalmody: a Southwestern Connection?”, in Cantus planus. Papers Read at the 12th Meeting of the
IMS Study Group (2004), Budapest: Hungarian Academy of Sciences, 2006, pp. 621-39.
M.P.F.
Antologia de Música em Portugal

126
Nº 3 Canto da Sibila: «Judicii signum»

Esta antiga profecia, atribuída à Sibila da Eritreia, foi cantada em Braga, até meados do século XX, nas Vésperas do
dia de Natal, intensificando, pelo seu tom escuro e apocalíptico, quer a expectativa ritual gerada pelo anunciado
nascimento de Jesus, quer a luminosidade salvífica deste acontecimento. O texto, de origem grega, aparece traduzido
em latim em De civitate Dei, de S. Agostinho (Patrologiae Cursus Completus, Series latina, vol. 41, Paris, 1845, col.
579; Corpus Christianorum, Series latina, vol. 48/2, Turnhout, 1955, pp. 613-14; tradução portuguesa: A Cidade de
Deus, Lisboa, 1991-1995, vol. 3, pp. 1751-53). A sua entrada na liturgia católica, contexto em que a profecia surge
associada a um tipo especial de salmodia (com duas cordas de recitação e dois motivos alternados) está atestada, o
mais tardar, a partir do século X; teve especial repercussão na Península Ibérica, onde, a partir do século XIV, a Sibila
surge por vezes representada como uma personagem dramática, sendo o seu oráculo posteriormente traduzido
para língua vulgar (Solange Corbin, «Le Cantus Sybyllae: origine et premiers textes», Revue de Musicologie, vol. 34
[1952], pp. 1-10; Richard Donovan, The Liturgical Drama in Medieval Spain, Toronto, 1958, pp. 39-50, 165-67). O
poema compreende 27 versos, mas em contexto litúrgico o primeiro deles, precedido nas fontes ibéricas por uma
introdução, é utilizado como refrão, sendo os restantes agrupados dois a dois, à maneira dos salmos bíblicos.
O texto é apresentado de seguida com uma organização diferente da que se encontra nas notas ao CD 2, onde
aparece com a tradução portuguesa em paralelo. Há pequenas divergências textuais entre a versão bracarense e as
restantes versões publicadas. Na edição musical seguimos o texto bracarense mais típico, tendo em conta as lições
remanescentes — do Breviário impresso em 1494 ao início de um livro miscelâneo, estampilhado, do século XVIII,
sem cota, existente na Catedral —; aderimos, em caso de divergência, às variantes mais correctas e substituímos,
no verso 11, erit por enim. A melodia segue geralmente os três cadernos manuscritos de finais do século XVII
(com folhas de c. 19,5 x 18,5 cm, e cinco pautas por página) [Armário 1, 2, 3], sem cota formal, que, na sua parte
final, são os testemunhos musicais mais antigos do Canto da Sibila que sobrevivem na Sé de Braga (com excepção
do incipit, que se encontra nos livros de coro 31 e 50, do século XVI, que seguimos na variante sobre sudore,
cuja maior antiguidade é traída pela não-coincidência entre acentuação verbal e densificação musical). No texto
poético reproduzido neste volume, decidimos intervir num caso adicional (v. 18: dejicient) no qual a maior parte
dos testemunhos bracarenses parecem ter um «n» espúrio, embora algo de semelhante possa também ocorrer em
tradentur (v. 12), forma que concorre, na tradição manuscrita europeia, com tradetur.
M.P.F.

(0) Audite quid dixerit Sybilla.


(1) [R/.] Judicii signum: tellus sudore madescet.
(2-3) E Celo Rex adveniet per secula futurus: Scilicet in carne presens, ut judicet orbem.
(4-5) Unde Deum cernent incredulus atque fidelis: Celsum cum sanctis, evi jam termino in ipso.
(6-7) Sic anime cum carne aderunt, quas judicet ipse: Cum jacet incultus densis in vepribus orbis.
(8-9) Rejicient simulacra viri, cunctam quoque gazam. Exuret terras ignis, pontumque polumque
(10-11) Inquirens, tetri portas effringet Averni: Sanctorum sed enim cuncte lux libera carni
(12-13) Tradentur, sontes eternaque flamma cremabit: Occultos actus retegens, tunc quisque loquetur
(14-15) Secreta, atque Deus reserabit pectora luci. Tunc erit et luctus, stridebunt dentibus omnes.
(16-17) Eripitur solis jubar, et chorus interit astris. Volvetur celum, lunaris splendor obibit.
Manuel Pedro Ferreira

(18-19) Dejiciet colles, valles extollet ab imo. Non erit in rebus hominum sublime vel altum. 127
(20-21) Jam equantur campis montes, et cerula ponti omnia cessabunt, tellus confracta peribit.
(22-23) Sic pariter fontes torrentur, fluminaque igni. Sed tuba tunc sonitum tristem dimittet ab alto
(24-25) Orbe, gemens facinus miserum variosque labores. Tartareumque Chaos monstrabit terra dehiscens.
(26-27) Et coram hoc Domino reges sistentur ad unum. Decidet e celo ignisque et sulphuris amnis.

Nº 4 Versus para Santiago, «Dum pater familias»

Esta composição, adicionada no século XII ao Códice Calixtino, de Santiago de Compostela (fol. 193 [222]), onde
figura como único exemplo do uso de notação aquitana, é um versus de carácter didáctico, escrito localmente,
cujas particularidades musicais são discutidas em Manuel Pedro Ferreira, «Som mudo no Cancioneiro da
Ajuda», comunicação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda, 1904-2004 (Lisboa, 11-13 de Novembro de 2004),
actualmente no prelo. Na repetição das frases melódicas o manuscrito admite alguma margem de variação,
que os editores não têm procurado reter; nesta edição tentou-se ser o mais possível fiel ao original, apesar de
nem sempre a notação ser isenta de ambiguidade (alternativas de leitura aparecem indicadas em nota) e de nos
termos baseado numa reprodução fotográfica.
O poema, reproduzido abaixo com tradução em paralelo, ilustra sucessivamente os diferentes casos gramaticais
do Latim (Nominativo, Genitivo, Dativo, Acusativo, Vocativo e Ablativo), embora haja citação de expressões
germânicas («Herru Sanctiagu, Got Sanctiagu») e aclamações populares («E ultr’eia, e sus eia»), também
apropriadas por Aimeric Picaud no hino Ad honorem regis summi, incluído nesta Antologia (nº 18).
M.P.F.

Dum pater familias Quando o pai de todos,


Rex universorum rei do universo,
donaret provincias pôs as províncias
jus apostolorum, sob a autoridade dos apóstolos,
Jacobus Yspanias Iago iluminou as Espanhas
Lux illustrat morum. de luz para a nossa conduta.

R/ Primus ex apostolis R/ Primeiro, entre os apóstolos,


Martir jerosolimis mártir de Jerusalém,
Jacobus egregio Iago distinguiu-se
Sacer est martirio. no seu sacro martírio.
Antologia de Música em Portugal

128 Jacobi Gallecia A Galécia de Iago


opem roget piam pede tributo pio:
glebae cujus gloria a glória de seu solo
dat insignem viam traça via insigne
ut precum frequentia para múltiplas preces
cantet melodiam: de canto peregrino:
«Herru Sanctiagu, «Senhor Sant’Iago!
Got Sanctiagu! Bom Sant’Iago!
E ultr’eia, E adiante, eia,
E sus eia, e acima, eia,
Deus aia nos!» Deus nos ajude!»
R/ Primus ex apostolis... R/ Primeiro, entre os apóstolos...

Jacobo dat parium Todo o mundo dá a Iago,


omnis mundus gratis de bom grado, a sua parte,
ob cujus remedium pois o remédio que dele advém
miles pietatis — soldado da Piedade,
cunctorum presidium de nós todos protector —
est ad vota satis. satisfaz os nossos votos.
R/ Primus ex apostolis... R/ Primeiro, entre os apóstolos...

Jacobum miraculis A Iago implore, pelos milagres


quae fiunt per illum que a ele se devem,
arctis in periculis aquele que em perigo esteja,
acclamat ad illum quem nele espere
quisquis solium vinculis a libertação das suas cadeias.
sperat per illum.
R/ Primus ex apostolis... R/ Primeiro, entre os apóstolos...

O beate Jacobe Ó Sant’Iago,


virtus nostra vere a nós tua valentia!
nobis hostes remove Os nossos inimigos
tuos et tuere teu poder afugente!
ac devotos adhibe Vela os teus e que a nossa devoção
nos tibi placere. seja ao teu gosto.
R/ Primus ex apostolis... R/ Primeiro, entre os apóstolos...
Manuel Pedro Ferreira

Jacobo propicio Pela intercessão de Iago 129


veniam speremus perdão esperemos,
et quas ex officio e ao Pai tão formidável
merito debemus as dignas laudes demos,
patri tam eximio que meritória e cerimoniosamente
dignas laudes demus. Lhe devemos.
Amen. Amen.
R/ Primus ex apostolis... R/ Primeiro, entre os apóstolos...

Nº 5 Epístola de S. Paulo, com tropo «Gaudeamus nova cum laetitia»

Composição transcrita do Missal de Mateus (Arquivo Distrital de Braga, ms. 1000, fólio 8r). Leitura solene para
a Missa do Galo, este excerto da Carta de S. Paulo ao presbítero Tito (2:11-15) foi enriquecida, na Aquitânia, por
uma composição poética com melodia própria. A peça aparece, com algumas variantes textuais, uma estrofe
diferente (com rimas em i) e sob a forma de cantio para a Purificação de Nossa Senhora (coincidente com a
Apresentação de Jesus no Templo, comemorada a 2 de Fevereiro), no códice Paris, B. N. lat. 1139, proveniente
de S. Martial de Limoges: vd. Guido M. Dreves (ed.), Analecta hymnica medii aevi, vol. 45b (Leipzig, 1904), p.
45. Aí o primeiro verso assume a função de refrão. Dado que cada estrofe colhe as suas rimas de uma só vogal
(a, o, i, e), Dreves sugeriu a presença num hipotético original de uma estrofe adicional com rimas em u; esta é
fornecida quer pelo manuscrito conservado em Braga, quer pelo códice London, B. L. Harl. 1010, que contém
a mesma Epístola tropada, mas numa leitura algo diversa e com uma estância adicional, que foge ao princípio
de uma só vogal em rima: vd. Clemens Blume (ed.), Analecta hymnica medii aevi, vol. 49 (Leipzig, 1906), pp.
175-76.
O texto do Missal de Mateus é apresentado de seguida com pontuação editorial, embora sem actualização
ortográfica (retém-se não só «e» por «ae», como a letra «u» sempre que ela significa «v»); a sua disposição
visual é também diferente da que se encontra nas notas ao CD 2 (onde aparece com a tradução portuguesa em
paralelo), procurando-se evidenciar quer a distinção entre a carta paulina e a nova inserção («tropo»), quer
a estrutura estrófica desta última (prelúdio de um verso seguido de quatro estrofes de seis versos cada, com
medidas emparelhadas de 8, 11 e 7 sílabas).
Na edição musical seguimos o texto manuscrito, seguindo Joaquim O. Bragança (Missal de Mateus, Lisboa,
1975, pp. 16-17) na correcção de laudet por laudent, voce por vocis, nova por nove e ce por ecce. Na leitura
apresentada neste volume, decidimos corrigir o copista num outro caso (Hec exultet monitu), substituindo hec
por hoc. No antepenúltimo verso, há uma sílaba metricamente excedentária, inexistente nas versões de Paris e
Londres (Novum mirum...), mas não há qualquer indício de que isso tenha posto um problema musical para
o copista do nosso manuscrito. Todas as estrofes têm o mesmo conteúdo melódico, com a mesma ordenação
das frases (AABBCD). A melodia poderá ser executada em metro ternário, embora esta opção não tenha sido
seguida na gravação inclusa.
M.P.F.
Antologia de Música em Portugal

130 Lectio epistole beati Pauli apostoli ad Titum. Karissimi:

Gaudeamus noua cum letitia.

Apparuit gratia saluatoris nostri Dei omnibus hominibus, erudiens nos:

(1) Fulget dies hodierna


Nata luce sempiterna
Noua dies, noua natalitia,
Nouus agnus, noua hec sollempnia:
Noua decent gaudia,
Noua laudent cantica.

Ut abnegantes inpietatem et secularia desideria: sobrie, et juste, et pie uiuamus in hoc seculo:

(2) Quisquis nectet sed reatum,


Gaude tamen tanto natum:
Erit enim sub peccato: redditur
Liber sancto libertate spiritu.
Hoc exultet monitu
Siue uocis sonitu.

Expectantes beatam spem et aduentum glorie magni Dei saluatoris nostri Ihesu Christi.

(3) Speciali gaude coro,


Maritali iuncta toro:
Suo Deus sempiterno filio.

Qui dedit semetipsum pro nobis, ut nos redimeret ab omni iniquitate:

Copulet ecclesia conubio:


Uiduata Domino
Agnus gaudet gaudio.

Ut mundaret sibi populum acceptabilem, sectatorem bonorum operum.

(4) Omnis etas ergo gaudet,


Sed te, uirgo, prius laudet.
Manuel Pedro Ferreira

Hec loquere et exortare in Christo Ihesu domino nostro. 131

Uirgo parit filium prudentie:


Noue miratu genus hoc potentie:
Partus, ecce, femine
Sine uiri semine.

Nº 6 Invitatório «Regem regum Dominum», para o Ofício de S. Geraldo

Texto e tradução: vejam-se as notas ao CD 2.


Este invitatório inicia as Matinas (hora nocturna) do Ofício de S. Geraldo de Braga; é, na prática, constituído
por uma antífona, peça curta com texto próprio para a ocasião, e pelo Salmo 94, que convida a comunidade
a celebrar o Senhor; este requer um género especial de salmodia, servida por fórmulas melódicas próprias,
bastante ornadas, que normalmente se encontram transcritas num apêndice ao antifonário ou num caderno
independente. Embora o texto da antífona, ainda hoje oficialmente em uso, tenha sido gizado em meados
do século XV, a melodia tem carácter tradicional, sendo quase idêntica àquela que abre o Ofício de Santiago
de Compostela no Códice Calixtino, do século XII (fol. 101v). A música foi transcrita dos antifonários da
Catedral bracarense (antífona: Livro de Coro 28, se bem que também presente nos L. C. 17, 29, ADB 949; tom
de invitatório com respectivo Salmo: L. C. 13).
Quanto ao modo de execução, deve ter-se em conta o esclarecimento do bacharel Sisto Figueira na Arte de
rezar as horas canonicas: ordenada segundo as regras et costume Bracharense, livro dedicado ao arcebispo de
Braga, Dom Diogo de Sousa, e impresso em Salamanca em 1521 (Arquivo Distrital de Évora, Incunábulos, 226;
o desenvolvimento das abreviaturas vai assinalado em itálico): «Inuitatorium he o que se diz em prinçipio das
matinas. loguo depois de dicto ‘deus in adiutorium’: e he como verso daquelo que se reza. Diz esse juntamente
cõ o psalmo ‘venite exultemos domino’. por esta maneira: ho inuitatorio se diz primeiro duas vezes todo antes
do psalmo. e dicto o primeiro verso do psalmo se diz outra vez todo. e dicto o segundo verso se repite des o
meio soomente ate a fim: como estaa loguo asignado: e desta maneira vai entremetido com o dicto psalmo a te
afim delle. dizendo a hum verso todo. e a outro a metade. e no fim se repite outra vez todo: por maneira que o
inuitatorio se diz todo seis vezes. e tres vezes des o meio. porque o dicto psalmo tem seis versos comtando com
elles a ‘gloria patri’. que no fim delle se diz.»
M.P.F.

Nº 7 Pranto processional «Heu, heu, Domine», para o Enterro do Senhor

Texto e tradução: vejam-se as notas ao CD 1.


Transcrito do Missal bracarense de 1558. As pausas, sugeridas pelo editor, são inspiradas pela tradição oral
do pranto tal como se canta hoje em dia na cidade dos arcebispos na Sexta-feira Santa. Os versículos que
aparecem no Missal representam uma selecção a partir de uma lista muito mais extensa, que foi conhecida
Antologia de Música em Portugal

132 em todo o país (e depois no Brasil e na Índia) a partir do Renascimento. Essa lista foi estudada por Solange
Corbin, La déposition liturgique du Christ au Vendredi Saint (Paris-Lisboa, 1960), especialmente às pp. 140-55;
veja-se também Walther Lipphardt, Lateinische Osterfeiern und Osterspiele (Berlin, 1976-1990), vols. II, VII,
IX. Dos versículos usados a partir de 1558 em Braga, três (Pupilli..., Cecidit..., Defecit...) são citações exactas
ou aproximadas das Lamentações de Jeremias (V: 3,15,16). Os processionais bracarenses contêm versículos
adicionais.
M.P.F.

Nº 8 Cantiga d’amigo «Ondas do mar de Vigo» (Martin Codax)

Texto e respectivo comentário: vejam-se as notas ao CD 1.


Esta cantiga, como a seguinte, foi copiada com a respectiva música no Pergaminho Vindel, folha volante escrita
na segunda metade do século XIII, hoje conservada na Pierpont Morgan Library, de Nova Iorque (cota: M 979).
A melodia de «Ondas do mar de Vigo» deve-se ao primeiro apontador a intervir no manuscrito. Esta é uma
nova proposta de transcrição musical, que, sem invalidar a que publicámos no nosso livro O Som de Martin
Codax (Lisboa, 1986), cuja leitura recomendamos, lhe pode servir de alternativa. A divergência dá-se sobretudo
ao nível da distribuição silábica; o sistema de transcrição surge também simplificado, procurando espelhar mais
directamente a natureza semi-mensural da notação.
M.P.F.

Nº 9 Cantiga d’amigo «Mia irmana fremosa, treides comigo» (Martin Codax)

A música desta cantiga deve-se ao segundo apontador a intervir no Pergaminho Vindel. O uso do metro
ternário, facilmente reconhecível, retira quase toda a ambiguidade rítmica à notação. Esta transcrição pretende
clarificar a que publicámos em 1986, sugerindo igualmente, no início da segunda frase e no final do refrão,
opções aí não consideradas. As transcrições apresentadas em O Som de Martin Codax tinham já sido por mim
comentadas em «Codax revisitado», Anuario de Estudios Literarios Galegos (1998), pp. 157-168 [162-63]. Aqui,
adicionalmente, retiro a proposta de desdobramento do «e» final de «madre» nos versos 6 e 8 («madre [e]»),
passando a interpretar a expressão «mia madre» como vocativo (ver a discussão da passagem em O Som de
Martin Codax, p. 149). Abaixo vão o texto e o respectivo comentário.
M.P.F.

Mia irmana fremosa, treides comigo treides: vinde


a la igreja de Vigo, u é o mar salido, u: onde; salido: agitado
E miraremos las ondas!
Manuel Pedro Ferreira

Mia irmana fremosa, treides de grado grado: boa vontade 133


a la igreja de Vigo, u é o mar levado, levado: levantado
E miraremos las ondas!

A la igreja de Vig’ u é o mar levado,


e verrá i, mia madre, o meu amado: verrá i: aí virá
E miraremos las ondas!

A la igreja de Vig’ u é o mar salido, salido: agitado


e verrá i, mia madre, o meu amigo:
E miraremos las ondas!

Nº 10 Cantiga de maldizer «Pero Perez se remeteu» (Martin Soarez)

Exemplo de melodização hipotética de uma cantiga de maldizer, escrita por um dos trovadores de obra poética
mais significativa, activo em meados do século XIII. O poema, conservado nos cancioneiros da Biblioteca
Nacional e da Vaticana (B, nº 1362/ V, nº 970), satiriza um escudeiro de feitio pelejador que se saía sempre
muito mal das suas lutas. A edição baseia-se no texto fixado por Manuel Rodrigues Lapa (Cantigas d’escarnho e
de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, 2ª edição, Vigo, 1970 [Lisboa, 1995, 1998], nº 292),
seguido, no essencial, por Graça Videira Lopes (Cantigas de Escárnio e Maldizer, Lisboa, 2002, p. 313); Valeria
Bertolucci Pizzorusso (Le poesie di Martin Soares, Bolonha, 1963 [trad. galega, Vigo, 1992], nº 37) deixa o nono
verso com menos uma sílaba. Lapa propõe-se restaurar a medida desse verso com a adição de um «i», e, na
esteira de Bertolucci, insere um «e» inicial no penúltimo. Optámos por completar esses versos respectivamente
com «ben» (sugerido por Lapa em nota) e «mais». A melodia, retirada das partes inicial e final da Cantiga de
Santa Maria nº 400 (El Escorial, códice b.I.2, fol. 359), foi provavelmente composta pelo próprio rei D. Alfonso
X, o Sábio (vd. Manuel Pedro Ferreira, «Alfonso X, compositor», Alcanate: Revista de Estudios Alfonsíes, vol. 5
[2006-2007], pp. 117-37). As Vozes Alfonsinas gravaram esta cantiga no CD O tempo dos trovadores (Strauss /
PortugalSom, 2000).
M.P.F.

Pero Pérez se remeteu remeteu por: preparou para


por dar ũa punhada; punhada: murro
e nona deu, mais recebeu nona: non a; mais: antes
ũa grand’ orelhada,
ca errou essa que quis dar; ca: pois
mais nono quis o outr’ errar mais nono: mas non o
de cima da queixada. de cima: na parte superior
Antologia de Música em Portugal

134 Ouvera el gran coraçon coraçon: vontade


de seer <ben> vingado,
e do seu punho, d’un peon peon: plebeu
que o á desonrado; á: havia
e non lhi deu, ca o errou; ca o errou: pois o falhou
<mais> Pero Pérez i ficou mais: pelo contrário; i: aí
con seu rostro britado. britado: escavacado

Nº 11 Cantiga d’amor «Pois que vos Deus, amigo, quer guisar» (Dom Dinis)

Texto e respectivo comentário: vejam-se notas ao CD 1.


Esta cantiga d’amor aparece, com a respectiva música, num fragmento de cancioneiro musicado, escrito por
volta de 1300, conhecido por Pergaminho Sharrer (Lisboa, Torre do Tombo, Caixa Forte, Fragmentos, Caixa 20,
nº 2), onde é a composição inicial (T, nº 1; texto também em B, nº 524, e V, nº 107). Oferece-se aqui, no essencial,
a transcrição publicada em Manuel Pedro Ferreira, Cantus coronatus (Kassel, 2005), mas sem a reprodução
da notação original sobre as pautas. As passagens entre parênteses oblíquos faltam no documento, tendo sido
reconstruídas pelo editor; entre parênteses rectos, colocam-se as notas de leitura menos evidente.
M.P.F.

Nº 12 Cantiga d’amor «Non sei como me salv’ a mha senhor» (Dom Dinis)

Peça proveniente, como a anterior, do Pergaminho Sharrer, onde ocupa o sexto lugar (T, nº 6; texto também em B, nº
529, e V, nº 112). A edição aqui oferecida baseia-se na publicada no livro Cantus coronatus, com a diferença de que,
no penúltimo verso (início da fiinda), foi inserida, atendendo a exigências métricas e paralelos contemporâneos,
uma copulativa inicial («[E] se o juízo...»), tal como propôs Henry L. Lang na sua edição crítica do cancioneiro
dionisino (Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal, Halle, 1904, p. 35); esta opção, que diverge da posição
tomada por Harvey Sharrer, que fixou o texto, e da opinião consequentemente manifestada no meu livro (p.
63), teve em conta quer os argumentos avançados, em privado, por Elsa Gonçalves e Rip Cohen, quer a maior
simplicidade, nas suas implicações musicais, da solução de Lang. Veja-se também Elsa Gonçalves, Poesia de Rei:
Três notas dionisinas (Lisboa, 1991), pp. 22-34.
As passagens entre parênteses oblíquos faltam no documento, tendo sido reconstruídas pelo editor; entre
parênteses rectos, colocam-se as notas cuja leitura é menos clara e os trechos que complementam as frases
incompletas. As frases para os versos 3 e 4 de cada estrofe, entre parênteses, também faltam no fragmento,
tendo sido compostas de novo. A música entre chavetas reutiliza melodias anteriormente usadas na cantiga,
mas incorporando ligeiras variantes que correspondem, de algum modo, à flexibilidade interpretativa que julgo
ter caracterizado as fiindas cantadas pelos trovadores portuguesas.
M.P.F.
Manuel Pedro Ferreira

Non sei como me salv’a mha senhor como me salve: que justificação dê 135
se me Deus ant’ os seus olhos levar,
ca, par Deus, non ei como m’ assalvar m’ assalvar: salvar a minha reputação
que me non julgue por seu traedor, seu traedor: traidor em relação a ela
pois tamanho temp’ á que guareci guareci: estive
sen seu mandad’ oír, e a non vi. mandado: notícias

E sei eu mui ben no meu coraçon


o que mha senhor fremosa fará
depois que ant’ ela for: julgar-m’-á depois que ant’ ela for: a partir do momento em que seja
por seu traedor con mui gran razon, levado à sua presença
pois tamanho temp’ á que guareci
sen seu mandad’ oír, e a non vi.

E pois tamanho foi o erro meu


que lhe fiz torto tan descomunal, torto: agravo
se mi a sa gran mesura non val, se mi...: se não me valer a sua grande cortesia
julgar-m’-á por en por traedor seu, por en: por isso
pois tamanho temp’ á que guareci
sen seu mandad’ oír, e a non vi.

<E> se o juízo passar assi, se o juízo passar assi: se a resolução for mesmo essa
ai eu cativ’!, e que será de min? cativo: infeliz

Nº13 Troba caçurra «Mis ojos non verán luz» (Juan Ruiz)

Esta «troba caçurra» (trova burlesca) ocupa as unidades 115 a 120 do Libro de buen amor, de Juan Ruiz,
Arcipreste de Hita. Trata-se de uma canção em forma de zajal (ou zéjel), em que os primeiros versos constituem
o refrão (115), que se deve repetir após cada estrofe (116-120). A estrofe precedente (114) serve de prefácio à
composição:

Fiz’ con el gran pesar esta troba caçurra;


la dueña que la oyere, por ello non me aburra,
ca devríame dezir necio e más que bestia burra,
si de tan grand escarnio yo non trobasse bulrra.

Segue-se uma epígrafe explicativa:

De lo que contesció al Arcipreste con Ferrand García, su mensajero


Antologia de Música em Portugal

136 O texto, acompanhado da respectiva tradução, é aqui apresentado segundo a edição de Raymond S. Willis
(Princeton, 1972); foram também consultadas as edições críticas de Joan Corominas (Madrid, 1973), que
prefere as formas castelhanas às leonesas típicas do manuscrito, e de Alberto Blecua (Madrid, 1998), que nos
deixa a letra incompleta e metricamente incantável. A canção recorre insistentemente aos segundos sentidos,
seja no refrão (em que Cruz é simultaneamente nome pessoal e símbolo cristão), seja nas estrofes (em que
é clara a conotação sexual de várias palavras). A música não se conserva, pelo que se recorreu à melodia da
Cantiga de Santa Maria nº 111 (tal como aparece no códice b.I.2 do Escorial), de idêntica estrutura e época
pouco anterior.
M.P.F.

115. Mis ojos non verán luz Meus olhos não verão a luz,
pues perdido he a Cruz. pois que fui perder a Cruz.

116. Cruz cruzada, panadera, Cruz cruzada, uma padeira,


tomé por entendedera; tomei eu por minha amiga;
tomé senda por carrera Tomei atalho por uma estrada,
como faz’ el andaluz. como faz o andaluz.

117. Cuidando que la avría, Cuidando eu que a teria,


díxelo a Ferrand García, disse ao Ferrando Garcia,
que troxiés’ la pleitesía Que por mim preitejasse,
e fuesse pleités e duz. e fosse convincente, suave.

118. Díxom’ que l’ plazía de grado; Disse que o faria de bom grado,
fízos’ de la Cruz privado; e fez-se da Cruz privado;
a mí dio rumiar salvado, Farelo a ruminar me deu,
él comió el pan más duz. e do pão mais doce comeu.

119. Prometiól’ por mi consejo Prometeu-lhe, por meu conselho,


trigo que tenía añejo; trigo que eu tinha velho,
e presentól’ un conejo E deu-lhe de prenda um coelho,
el traidor, falso, marfuz. o traidor, falso e matreiro...

120. Dios confonda mensajero Deus confunda mensageiro


tan presto e tan ligero! tão solícito, tão ligeiro!
Non medre Dios conejero Não crie Deus um cão de caça
que la caça assí aduz’! que encaminhe assim o troféu.
Manuel Pedro Ferreira

137
Nº 14 Cantiga de Santa Maria nº 183, «Pesar á Santa Maria» [A ira dos mouros de Faro]

Peça transcrita do chamado «códice rico» das Cantigas de Santa Maria (El Escorial, T.j.1, fol. 241); existe também
no «códice dos músicos» (El Escorial, b.I.2, fol. 171), numa versão idêntica, embora com música copiada por
uma mão menos segura (há traços que foram acrescentados ou reforçados e outro que foi cancelado). Por cima
da primeira pauta sugere-se uma alternativa de leitura rítmica compatível com a notação, mas menos congruente
com a acentuação poética. Para uma diferente versão rítmica inspirada nas variantes que a cantiga nº 162 (e final
estrófico da cantiga nº 38) encontra no códice toledano (Madrid, B. N. 10069) e no «códice dos músicos», ouça-se
a gravação das Vozes Alfonsinas no CD O tempo dos trovadores (Strauss/ PortugalSom, 2000).
Nesta cantiga, tal como nas duas que se seguem, o texto é oferecido na íntegra, tendo sido editado e anotado de
novo, para publicação nesta Antologia, por Stephen Parkinson.
M.P.F.

Pesar á Santa Maria


de quen por desonrra faz
dela mal a sa omagen, omagen: imagem (estátua)
e caomha-lho assaz. caomha-llo: pune-o por isso (do verbo «caomhar» = (a)coimar,
na língua moderna)
Desto direi un miragre
que fezo en Faaron Faaron: Faro
a Virgen Santa Maria
en tempo d’ Aben Mafon, Aben Mafon: rei mouro de Niebla
que o reino do Algarve
tĩi’ aquela sazon tĩi’ = tĩia: tinha
a guisa d’ om’ esforçado, a guisa: a modo
quer en guerra, quer en paz.
R/ Pesar á Santa Maria...

En aquel castel’ avia


omagen, com’ apres’ ei, apres’ = apreso: aprendido
da Virgen mui groriosa,
feita como vos direi
de pedra ben fegurada, fegurada: esculpida
e, com’ eu de cert’ achei,
na riba do mar estava
escontra ele de faz. escontra: em frente de; faz: face
R/ Pesar á Santa Maria...
Antologia de Música em Portugal

138 Ben do tempo dos crischãos do tempo dos crischãos: antes da conquista muçulmana de 711
a sabian i estar, i: aí
e porende os cativos porende: por isso
a ian sempr’ aorar,
e Santa Mari’ a vila
de Faaron nomẽar nomẽar... foron: a cidade de Faro recebeu o nome de Santa Maria
por aquesta razon foron.
Mas o poboo malvaz poboo malvaz: povo malvado
R/ Pesar á Santa Maria...

Dos mouros que i avia


ouveron gran pesar en, en: d’isso
e eno mar a deitaron
sanhudos con gran desden; sanhudos: irados, cheios de sanha
mas gran miragre sobr’ esto
mostrou a Virgen que ten
o mund’ en seu mandamento,
a que soberva despraz. despraz: desagrada
R/ Pesar á Santa Maria...

Ca fez que niun pescado niun: nenhum


nunca poderon prender prender: prender nas redes
enquant’ aquela omagen
no mar leixaron jazer. leixaron: deixaram
Os mouros, pois viron esto,
fórona dali erger erger: erguer, levantar
e posérona no muro
ontr’ as amẽas en az. ontr(e) as amẽas en az: entre as ameias, como guarda
R/ Pesar á Santa Maria...

Des i tan muito pescado des i tan muito pescado: desde aquele momento, tanto pescado
ouveron des enton i,
que nunca tant’ i ouveran,
per com’ a mouros oí
dizer e aos crischãos
que o contaron a mi;
por en loemos a Virgen en: isso (forma abreviada de ende)
en que tanto de ben jaz.
R/ Pesar á Santa Maria...
Manuel Pedro Ferreira

139
Nº 15 Cantiga de Santa Maria nº 223, «Todolos coitados que queren saúde»
[A cura de Mateus de Estremoz]

Peça transcrita do «códice dos músicos» (El Escorial, b.I.2, fol. 204r). A tentativa de ler a notação como
representando uma mistura de modos rítmicos parisienses (2º e 1º) leva a resultados incongruentes e
contraditórios com a acentuação poética. O seu ritmo, na interpretação do presente editor, baseia-se no padrão
quinário de 2+1+2 tempos associado à cultura árabo-andaluza e às tradições populares de dela derivam: vd.
Manuel Pedro Ferreira, «Andalusian Music and the Cantigas de Santa Maria», in Stephen Parkinson (ed.),
Cobras e Som. Papers on the Text, Music and Manuscripts of the Cantigas de Santa Maria, Oxford: Legenda, pp.
7-19. Há gravação pelas Vozes Alfonsinas no CD O tempo dos trovadores (Strauss/ PortugalSom, 2000). A edição
do texto e a maioria das respectivas anotações são de Stephen Parkinson.
M.P.F.

Todolos coitados que queren saude


demanden a Virgen e a sa vertude. demanden: procurem

Ca ela poder á de saude dar poder á: tem o poder


e vida por sempr’ a quen lha demandar
de coraçon; e desto quer’ eu contar
un mui bon miragre, assi Deus m’ ajude.
R/ Todo-los coitados que queren saude...

Per todo o mund’ ela miragres faz,


mais dũa sa casa, cabo Monssarraz, cabo Monsarraz: perto de Monsaraz
que chaman Terena, sei ben que assaz
faz muitos miragres a quen i recude. recude: vá (do verbo «recudir»)
R/ Todo-los coitados que queren saude...

E por end’ un ome bõo, Don Mateus, por end’ = por ende: por isso
qu’ en Estremoz mora, prougu’ assi a Deus prougu’ = prougue: agradou (do verbo «prazer»);
que raviou mui fort’, e os parentes seus raviou mui forte: teve um ataque mui grave (o verbo
alá o levaron, ca muit’ ameude «raviar», referente à raiva, usa-se genericamente para
R/ Todolos coitados que queren saude... indicar distúrbio fisico e mental); ameude: amiúde,
frequentemente
De todalas terras gentes vẽen i. i: aí
E pois i foron, quis a Virgen assi
que foi logo são; e, com’ aprendi,
ja lh’ ante fazian os seus ataude fazian... ataude: preparavam o caixão
R/ Todolos coitados que queren saude...
Antologia de Música em Portugal

140 En que o metessen por morto de pran. de pran: evidente (provençalismo)


Por en non devia tẽer por afan tẽer por afan: achar demasiado
quen servir podess’ esta de bon talan bon talan: boa vontade
e contra o demo daquesta s’ escude. daquesta: desta senhora
R/ Todolos coitados que queren saude...

Nº 16 Cantiga de Santa Maria nº 40, «Deus te salve, groriosa»

«Cantiga de loor», nº 30 no códice toledano (Madrid, B. N., ms. 10069, fol. 40), nº 40 no códice escorialense b.
I. 2 (fols. 62v-63), que normalmente serve de referência para a numeração das Cantigas de Santa Maria, e nº
467 no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, onde figura, sem música, no fólio 103. Nenhum dos testemunhos
textuais conserva uma leitura inteiramente coerente, pelo que se impunha uma regularização editorial do
poema; acabou por ser valorizado o maior arcaísmo da versão portuguesa. A frase que inicia o refrão e cada
uma das estrofes, Deus te salve (ou: Salve-te [Deus]), isto é, «Deus te saúde», tem ressonâncias das expressões
latinas, correntes na liturgia tardo-medieval, Salve Virgo e Ave Maria. A melodia é retirada do manuscrito
de Toledo, clarificado ritmicamente em certos pontos pela notação do «códice dos músicos»; as variantes
musicais escorialenses ocorrem sobretudo sobre a última sílaba acentuada dos versos, que aí tende a ser menos
ornamentada (os valores rítmicos indicados são os da transcrição):
cc. 7, 39, mínima pontuada Dó em vez de: semínima Ré, mínima Dó
cc. 15, 47, mínima Ré em vez de: colcheias Ré Dó e semínima Ré
c. 23, mínima pontuada Mi em vez de: semínima Fá, mínima Mi
c. 29, semínimas Sol, Fá, Mi em vez de: mínima Sol, seguida de colcheias
M.P.F./S.P.

Deus te salve, groriosa groriosa: gloriosa


reĩa Maria, reĩa: rainha
lume dos santos fremosa
e dos ceos via.

Salve-te, que concebisti concebisti: concebeste (o texto contém repetidas formas


mui contra natura, arcaicas da 2ª pessoa do pretérito, de verbos das 2ª e
e pois teu padre paristi 3ªconjugações)
e ficasti pura
virgen, e poren subisti
sobrela altura
dos ceos, porque quesisti
o que el queria. el: ele
R/ Deus te salve...
Manuel Pedro Ferreira

Salve-te, que enchoisti enchoisti: encerraste 141


Deus gran sen mesura
en ti, e dele fezisti fezisti: fizeste
om’ e creatura; om’ = ome: homem
esto foi porque ouvisti ouvisti: tiveste
gran sen e cordura sen: inteligência (provençalismo)
en creer quando oisti oisti: ouviste
sa messageria. messageria: mensagem (refere-se à Anunciação)
R/ Deus te salve...

Salve-te Deus, ca nos disti disti: deste (do verbo «dar»)


en nossa figura en nossa figura: em forma humana
o seu filho que trouxisti,
de gran fremosura,
e con el nos remiisti remiisti: redimiste (do verbo «remiir»)
da mui gran loucura da mui gran loucura...: referência ao pecado original
que fez Eva, e vencisti
o que nos vencia.
R/ Deus te salve...

Salve-te Deus, ca tolhisti tolhisti: tiraste (do verbo «toller»)


de nos gran tristura tristura: tristeza (exemplo de criação lexical para efeitos de
u por teu fillo frangisti rima, como folgura); frangisti: quebrantaste
a carcer escura
u iamos, e metisti
nos en gran folgura; folgura: folgança
con quanto ben nos vĩisti, vĩisti: vieste (do verbo «vĩir»)
quen o contaria?
R/ Deus te salve...

Nº 17 Loa a S. Lourenço «Sam Lourenço martyr» (André Dias)

Melodia da lauda «Sancto Lorenço, martyr d’amore», transcrita do manuscrito Banco rari 18 da Biblioteca
Nazionale, em Florença (a partir do facsímile publicado por Fernando Liuzzi, La lauda e i primordi della melodia
italiana, Roma, 1935). O ritmo é editorial (o original usa notação quadrada); há também desdobramento de
algumas notas (postas entre parênteses rectos), para melhor adaptação ao texto poético de André Dias. Este
poema, retirado do seu livro de Laudas e cantigas spirituaaes, é um contrafactum da lauda italiana em questão;
foi escrito em Florença antes de 1435 e nesse ano dedicado, com muitos outros, aos frades do Convento de São
Domingos de Lisboa e aos membros da respectiva Confraria do Bom Jesus, para aí ser cantado e tocado. O texto
Antologia de Música em Portugal

142 é abaixo reproduzido e anotado, com base na leitura de Mário Martins, Laudes e cantigas espirituais de mestre
André Dias (Roriz-Negrelos, 1951).
M.P.F.

Sam Lourenço martyr aja de nos louvor[e], aja: haja


por que de Jhesu foy boom servydor[e].

Boom servydor foy de Jhesu omnipotente,


e ao sancto papa Sixto foy muito obediente,
e aa sancta fe de Christo converteo muyta gente;
el nos queira converter, de todo o seu boom talente, boom talente: boa vontade
à verdadeira peendença, e que nos perdoe peendença: penitência
os nossos pecados Jhesu do mundo salvador[e].
[Sam Lourenço martyr...]

Nº 18 Hino a Santiago, «Ad honorem regis summi» (Aimericus Picaudi)

Texto e tradução: vejam-se notas ao CD 1.


A transcrição foi feita a partir do Códice Calixtino de Santiago de Compostela (fólio 190v [219v]). A peça foi
aí apontada de forma sucessiva, recorrendo-se a uma notação do tipo usado na Lorena; coube a David Hiley
(«Two unnoticed pieces of medieval polyphony», Plainsong & Medieval Music, 1 [1992], pp. 167-73) descobrir
que a continuidade da notação melódica ocultava, como noutras peças do género, uma textura polifónica. A
escolha dos valores rítmicos e a interpretação da disposição gráfica da segunda estrofe como assinalando uma
repetição melismática da melodia sobre a vogal da sílaba em rima, «it» (os «tês» que finalizam esses quatro
versos aparecem colocados, depois de um longo espaço em branco, no limite direito da respectiva linha) são do
presente editor. Pode apenas especular-se sobre a possível aplicação da repetição antifonal às restantes estrofes
do poema. No Códice Calixtino só as primeiras duas sobrevivem, pois o fólio seguinte, que conteria as seguintes,
desapareceu. O texto completo, muito extenso, pode ser encontrado no volume 17, pp. 210-11, da Analecta
hymnica medii aevi, editada por G. M. Dreves (Leipzig, 1894); a par das fontes francesas que estão na base da
edição de Dreves, o hino pode também ser encontrado nos manuscritos London, B. L. add. 12213, e Lisboa, B.
N., Alcob. 334. No final do hino (estrofe nº 11, abaixo transcrita), são citadas invocações de peregrinos também
encontradas em Dum pater familias.
M.P.F.
Manuel Pedro Ferreira

143
Unde laudes Regi regum Donde, loas ao Rei dos reis
solvamus alacriter, devemos com ardor dizer,
cum quo laeti mereamur de maneira que mereçamos
vivere perenniter. p’ra sempre felizes viver.
Fiat, amen, alleluia, Faça-se! Amen, aleluia,
dicamus solemniter, dignamente há que cantar,
et ultr’eia et sus eia e ultr’eia!, e sus, eia!,
decantemus jugiter. repetamos sem parar.

Nº 19 Hino a S. Bernardo, «Exultat celi curia»

Texto e tradução: vejam-se notas ao CD 1.


Hino acrescentado, por volta de 1225, na folha de guarda inicial de um dos antifonários cistercienses usados no
Mosteiro de Arouca (Museu de Arte Sacra, Ms. 25, olim 2*, fol. 2v). A edição baseia-se na que publicámos, com
amplo comentário, em «Early Cistercian Polyphony: A Newly-Discovered Source», Lusitania Sacra, 2ª série,
Tomo XIII-XIV (2001-2002), pp. 267-313. A palavra em falta no verso 27, aí hipoteticamente reconstituído
como <in via> qui malicie, foi posteriormente encontrada na versão (não musicada) do hino que se conserva
no processional cisterciense Lisboa, ANTT, Casa Forte, Fragmentos, Cx. 20 nº 13, o que permitiu restaurar o
texto: qui <maligni> malicie.
M.P.F.

Nº 20 Credo de Niceia segundo um manuscrito jerónimo de Évora

Texto e tradução: vejam-se notas ao CD 1.


Transcrito do códice do Arquivo Distrital de Évora, Mús. Lit. Ms. nº 70 (as folhas foram aparadas de tal modo
que se perdeu a foliação original, e, na altura em que escrevo, as páginas deste Kyriale não estão numeradas).
Rubrica imediatamente precedente: In festis duplicibus maioribus (para as festas de categoria duplex maior, ou
seja, com maior grau de solenidade). A entoação por nós seleccionada é a mais solene das duas que se encontram
no manuscrito, estando documentada, em Braga e em Santa Cruz de Coimbra, uma entoação semelhante, com
a mesma prioridade hierárquica; a entoação e a composição em polifonia (alternando com coro monódico)
encontram-se em lugares distintos no volume. Neste, utilizou-se notação quadrada na entoação (cujo ritmo, na
nossa transcrição, é editorial) e uma notação mensural simples em tempus imperfectum diminutum (semibreves,
breves e longas, com fermatas ocasionais) no corpo da peça. O último verso (Et vitam venturi...) aparece com
duas pautas a par, uma para cada um dos solistas, mas só há notação na pauta da esquerda; utilizando um
processo bem conhecido nos finais da Idade Média, a troca de vozes, reconstituímos a voz em falta (entre
parênteses rectos) até ao Amen final.
M.P.F.
Antologia de Música em Portugal

144
Nº 21 «Benedicamus Domino» do processional de Lorvão

Texto e tradução: vejam-se notas ao CD 1.


Transcrito do processional cisterciense, copiado em 1504 e proveniente do mosteiro de Lorvão, conservado
em Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lorvão nº 2 (C. Forte, Est. 3-l.6, nº 97), fol. 35r. Dado que
a notação original (reproduzida in Kurt von Fischer, Handschriften mit mehrstimmiger Musik des 14., 15. und
16. Jahrhunderts [RISM, B IV4], vol. II, München-Duisburg: G. Henle, 1972, p. 1131) só indica prolongamento
rítmico através de alargamento das notas, sua duplicação a uníssono ou uso de fermatas, impõe-se na prática
uma interpretação rítmica, editorialmente incorporada nesta transcrição.
M.P.F.

Nº 22 Ladaínha «Pater de cælis»

Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fol. 127v). Inscrição: letania. Texto
latino (ortografia regularizada) e respectiva tradução:

Pater de caelis Deus. Miserere nobis. Deus Pai lá nos Céus, tende piedade de nós.

Este é um fragmento de uma ladaínha latina, iniciada por Pater de celis Deus. O texto do responso, Miserere
nobis, foi inscrito junto da voz superior (Ti[ple]). O estilo corresponde ao primitivo fabordão a quatro vozes,
baseado numa estrutura de sextas paralelas entre a voz que veicula o cantochão mais aguda e o tenor. Tal como
o trecho que no manuscrito lhe faz companhia, Dic nobis Maria, ocorrem oitavas e quintas paralelas nas três
vozes inferiores (com a última palavra).
B. N.

Nº23 «Dic nobis Maria»

Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fol. 126v-127). Texto latino e
respectiva tradução:

Dic nobis Maria, quid vidisti in via? Diz-nos Maria, o que viste no caminho?

Este é um fragmento da conhecida sequência pascal Victimae paschali laudes. Pode reflectir uma sua tradição de
execução durante o Tempo Pascal, como drama religioso ou litúrgico. O estilo algo primitivo, com as suas oitavas
Manuel Pedro Ferreira

e quintas paralelas a surgirem entre as vozes inferiores, pode na verdade ser um vestígio de práticas medievais. 145
Dic nobis Maria foi posto em música em diversas fontes medievais tardias espanholas; para informações e
referências adicionais, veja-se Kenneth Kreitner, The Church Music of Fifteenth-Century Spain (Woodbridge,
2004), p. 52. Na fonte, a voz mais aguda (que veicula o cantochão) foi apontada, na segunda frase, uma terceira
abaixo do devido, o que corrigimos na edição.
B. N.

Nº 24 Canção de Natal «Dalha den cima del cielo»

Texto: ver notas ao CD 1.


Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fols. 72v-73r). Música e texto
inicial na página esquerda, segunda estrofe na página direita. Inscrição na margem esquerda do fol. 72v: duo
(em frente a cada uma das vozes).
M.P.F.

Nº 25 Cantiga «Senhora quem vos disser»

Texto: ver notas ao CD 1.


Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fols. 17v-18). O primeiro verso está
disposto sob a música pela 1ª mão, que também copiou a letra completa na página direita. Uma mão posterior
escreveu os versos 2 e 3 debaixo da segunda e terceira pautas, incluindo sinais de repetição textual depois de
«não creais» e de «que he verdade», e não deixando espaço para se inserir o verso 4 antes do final da frase.
Optámos por aplicar os versos 2 a 4, repetindo apenas «verdade» (em itálico).
Contrariamente à edição até agora disponível, respeita-se o uso da coloração (cc. 8-9, entre colchetes superiores)
e começa-se a frase inicial da última secção (cc. 21, 28) na nota certa (Mi), confirmada pela presença de um
segundo guião implicando um salto de terceira (depois das primeiras três notas, um primeiro guião sugere
continuação a uníssono, mas estando as notas seguintes sobre sol, isso é incompatível com a música escrita).
M.P.F.

Nº 26 Cantiga «Foyse gastando a esperança»

Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fols. 118v-119). Procurámos
apresentar uma transcrição metricamente clara, respeitando o facto de o texto do estribilho ter sido disposto sob
todas as três vozes pelo copista original. As barras duplas representam as barras simples presentes no original.
Na fotografia a que tivemos acesso, não é possível ver a última nota da voz superior, presumivelmente escrita
no limite da margem direita mas encoberta pela espinha da encadernação; o Mi (entre parênteses rectos) é por
Antologia de Música em Portugal

146 isso editorial. A voz mediana termina na página da esquerda com uma chamada (cruz) para a pauta isolada que
figura à direita sob a voz inferior.
O texto vem abaixo reproduzido, com abreviaturas desenvolvidas (em itálico), acrescentos no original assinalados
entre parênteses e acrescentos editoriais assinalados entre parênteses oblíquos; a pontuação é editorial.
M.P.F.

Foyse gastamdo a esperamça,


fuy emtemdemdo os emganos;
do mal fiqarão-mos danos
e do bem só a lembramça.

Esta me fiqua da vida


perdida, servimdo quem,
em lugar de me dar bem,
me dá a morte conheçida;
e pois isto só se alcamça
em pago de tamtos (d)anos,
não çeg<u>em (mais) os emganos
a quem cegou a esperamça.
Pos<s>a tamto esta verdade,
Imda (que) tarde emtemdida,
que pois a vida he perdida,
não se perca a liberdade;
e pois me mata a lembramça
de ver perdidos meus anos,
tomar vida em novos danos
é mais segura a esperamça.

Nº 27 Vilancete «Perdi esperança»

Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fol. 9v-10). Apesar do rotineiro
tempus imperfectum diminutum, com a divisão binária da breve aparentemente confirmada pelo numeral 2 (sic),
o recurso ao punctum divisionis estabelece uma divisão ternária da breve, indicada de forma menos equívoca no
Cancioneiro de Elvas, nº 8, já que aí, nos fols. 46v-47, há uma versão a três vozes (com variantes relativamente
à melodia aqui transcrita, retida como voz superior) com o numeral 3 após o C cortado.
O texto foi introduzido por três copistas diferentes: dois na página da esquerda, sob as pautas (estribilho e
primeira estrofe); um outro na página da direita (segunda e terceira estrofes). O primeiro verso, primitivamente,
acabava com a primeira frase; mas no manuscrito a última nota dessa frase foi apagada (implicando a compressão
Manuel Pedro Ferreira

do verso por sinalefa) e reintroduzida como anacrusa da segunda, com o início do segundo verso. Qualquer 147
das soluções tem vantagens e desvantagens declamatórias, pelo que retivemos ambas, em alternativa. O texto
vai abaixo reproduzido.
M.P.F.

Perdi esperamça, (1º copista)


ficou-me hũ reçeo
do mal que me veo.

Já m’eu vi en dias (2º copista)


que de cõfiado
não dera hũ cuidado
por mil alegrias.
Mas minhas porfias
me derão reçeo
do mal que me veo.

Reçeos, temores, (3º copista)


cansai de cãsar-me,
e nunca matar-me
cõ mágoas e dores.
Passá-las maiores
que o mal que me veo
não posso nem creo.

Hum tempo esperei


cuidando ganhar;
foi desesperar
do bem que ganhei. d riscado: «o bem»
Já não acharei
no mal que me veo
mor mal que reçeo.

Nº 28 Romance de D. Inês de Castro, «Io m’estando em Coimbra»

Texto: vejam-se notas ao CD 1.


Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fol. 69v-70). A composição foi
escrita integralmente pela 1ª mão.
M. P. F.
Antologia de Música em Portugal

148
Nº 29 Vilancete «Cuidados meus tão cuidados»

Transcrito do Cancioneiro de Elvas (Elvas, Biblioteca Públia Hortênsia, ms. 11793), fols. 65v-66 (nº 27).
Mensuração em tempus imperfectum diminutum, mas sem significado métrico-acentual (vd. comentário in
Manuel Pedro Ferreira, «Estudo introdutório», Cancioneiro da Biblioteca Publia Hortensia de Elvas: edição
facsimilada, Lisboa, 1989, p. ix); o melisma do antepenúltimo compasso, nas vozes inferiores, foi por vezes
interpretado a metade da velocidade devida. Há gravação correcta pelas Vozes Alfonsinas no CD La mar de la
musica (EMI-Valentim de Carvalho, 2001).
M.P.F.

Nº 30 Vilancete «Minina dos olhos verdes»

Texto: vejam-se notas ao CD 1.


Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fol. 95v-96). No original há texto
(estribilho) sob as três vozes; a continuação do poema foi introduzido na página direita por uma 2ª mão. Esta
é a primeira das duas versões rítmicas desta composição existentes no manuscrito; há facsímile publicado em
Manuel Morais (transcrição e estudo), Vilancetes, cantigas e romances do século XVI (Lisboa, 1986).
M.P.F.

Nº 31 Vilancete «Parto triste saludoso»

Texto: vejam-se notas ao CD 1.


Transcrito do volume miscelâneo Lisboa, B. N., Colecção Ivo Cruz 60, fols. 50v-51. Uma reprodução fotográfica
do original está disponível on line no sítio da Biblioteca Nacional Digital, <http://purl.pt/210> . No final, a voz
intermédia parece substituir-se à superior para completar o movimento cadencial com um intervalo de quinta
perfeita, mas é possível que falte uma nota no Cantus (aqui sugerida entre parênteses rectos), si ou sol #.
O texto encontra-se completo, ou quase, sob todas as três vozes; actualizámos a ortografia, transcrevendo
«alma» por «halma», «ojos» por «oios»; regularizámos a palavra «sim»/«sem» em «sin» (tendo em conta outros
casos de uso do «n» para indicar nasalização) e a frase «quitaste sperãça mia» com base na versão do Baixo,
pois as vozes superiores começam-na com «quedaste», cujo sentido, neste contexto, é menos satisfatório. A
distribuição da letra sob as notas é, no original, aproximada. Na edição antecipámos, na voz superior, o início
de «se quere morir», pois, a levar-se à letra a disposição do poema no manuscrito, a distribuição silábica ficaria
desequilibrada e declamatoriamente indefensável. Na voz inferior, a primeira repetição de «por me partir»
vem indicada pelo sinal «ii», enquanto a repetição seguinte vem por extenso. As repetições textuais de carácter
editorial vêm grafadas em itálico.
M.P.F.
Manuel Pedro Ferreira

149
Nº 32 Luís Milán, vilancete «Un cuydado que mia vida ten»

Transcrito do impresso de Luys (Luís) Milán, Libro de música de vihuela de mano, intitulado El Maestro
(Valencia, 1536). As obras de Milán apresentam muitas vezes um carácter assumidamente «instrumental», no
sentido em que são escolhidas as soluções mais práticas, não se deixando o autor tiranizar pelas regras estritas
do contraponto. As texturas não são sempre contínuas, as regras do movimento são às vezes esquecidas, mas o
sentido do colorido do instrumento e da sua linguagem são de primeira qualidade.
Na transcrição do acompanhamento para vihuela escolhemos representar as secções homofónicas da primeira
versão com o baixo destacado do corpo harmónico, e assinalar pequenas intervenções de contraponto. A voz
aguda segue em geral, na parte A, o movimento da voz cantada.
A segunda versão, com todo o rendilhado das glosas, é como uma linguagem dos dedos no instrumento. Assim,
as notas indicadas em valores longos são as que não «mexem», quiçá as mais importantes, e as que os dedos
sugerem como estrutura de enquadramento do rendilhado. Os valores da sua duração não são absolutos, sendo
o poder de sugestão aquilo que mais conta. A transcrição é pois idealmente esquemática: temos o que «mexe»
e o que «não mexe».
O texto é o que está no original, com uma excepção: verso 3 na reprise da Buelta, em que a primeira letra,
maiúscula, é ilegível, mas à qual se segue claramente a palavra «en». Daí que se tenha lido «Qu’en». A colocação
do poema segue igualmente o original , incluindo (1) «...vida ten», e «...ninguen», onde o impresso parece
sugerir que a última sílaba esteja cantada com a penúltima nota, embora se possa optar por cantá-la sobre a
última. O mesmo acontece em (4) «...alma lo ten», e nos locais correspondentes da segunda versão.

Nota: Sendo a tablatura uma notação de posição, as notas indicadas pressupõem uma escolha em relação à
afinação do instrumento tomado como base. Assim, a afinação deverá ser a da guitarra clássica moderna [viola
ou violão] à qual se abaixou a terceira corda de meio-tom (3 = fá sustenido), para que, ao tocar as notas indicadas
na transcrição, se possa obter a digitação indicada na tablatura. A clave de sol deve ler-se uma oitava abaixo,
como é usual na literatura guitarrística. O texto vai transcrito abaixo.
N. M.

Un cuydado que mia vida ten,


que no lo saberá ninguen.

Un cuydado de minya querida,


qu’en alma ten y al corpo dá vida,
mi corpo lo sente, mi alma lo ten,
que no lo saberá ninguen.
Antologia de Música em Portugal

150
Nº 33 Pedro de Escobar (fl.1489-1534/35), «Stabat mater»

Stabat mater dolorosa, 4 vv. P–Ln CIC 60, ff. 9v-11r.


Concordâncias: E–TZ Ms. 2, ff. cclxxviv-cclxxviir, «Escobar».
Texto: Inocêncio III (†1216), ou Jacopone da Todi (†1306), hino, estrofes 1 e 2.

Stabat mater dolorosa


Iuxta crucem lacrimosa,
Dum pendebat filius.

Cuius animam gementem,


Contristantem et dolentem,
Pertransivit gladius.

Estava a Mãe dolorosa e lacrimosa junto à cruz, de onde pendia o Filho.


Cuja alma gemendo, contristada e dorida, foi trespassada por uma espada.

T 251 b; B1 311 f; B2 51-56 texto «ii. gladius»; A 534-541 repetido


Para uma colação sucinta das fontes, v. O. Rees, Polyphony in Portugal c. 1530 – c. 1620: sources from the
Monastery of Santa Cruz, Coimbra, Outstanding Dissertations in Music from British Universities, New York &
London, Garland, 1995, p. 427.
J. P. A.

Nº 34 Pedro de Escobar, motete «Clamabat autem mulier»

Clamabat autem mulier, 4 vv. P–Cug MM 12, ff. 193v-194r.


Concordâncias: E–Bc M. 454, ff. clxiv-clxiir, «Scobar»; E–Sc Colombina Ms. 5–5–20, ff. 17v-18r, «Escobar»; E–Tc
Ms. 21, ff. 56v-58r; E–TZ Ms. 2, ff. cclxxiv-cclxxiir, «escobar»; P–Cug MM 32, ff. 22v-23r; US–BLl Guatemala Ms.
8, ff. 18v-19r, 56v-57r; US–BLl Guatemala Ms. 9, ff. 12v-13r; Baena, Arte nouamente inuentada pera aprender a
tãger, Lisboa, German Galhard, 1540, ff. l-lii, «Escobar»; Mudarra, Tres libros de musica en cifras para vihuela,
Sevilla, Juan de Leon, 1546, III, ff. [6]r-[10]v (= 59r-63v).
Texto: Mt. 15: 22-28, abreviado.

Clamabat autem mulier cananea ad Dominum Iesum, dicens: Domine Iesu Christe, fili David, adiuva me. Filia mea male a
daemonio vexatur. Respondens Dominus Iesus dixit: Non sum missus, nisi ad oves quae perierunt domus Israel. At illa venit, et
adoravit eum dicens: Domine, adiuva me. Respondens Iesus ait illi: Mulier, magna est fides tua, fiat sicut vis.
Manuel Pedro Ferreira

Uma mulher cananeia gritou então para o Senhor Jesus, dizendo: Senhor Jesus Cristo, filho de David, ajuda-me. A minha 151
filha está doente, atormentada pelo demónio. Respondeu o Senhor Jesus dizendo: não fui enviado senão às ovelhas que
pereceram da casa de Israel. Mas ela veio e adorou-O, dizendo: Senhor, ajuda-me. Respondeu Jesus, dizendo-lhe: Mulher,
grande é a tua fé, faça-se como queres.

S 1-15 (primeiro pentagrama) não apresenta o bemol à clave; B 93 c


Para uma colação sucinta das fontes (com excepção da Arte de G. de Baena), v. O. Rees, Polyphony in Portugal…,
p. 419.
J. P. A.

Nº 35 Pedro de Escobar, motete «Fatigatus Iesus»

Fatigatus Iesus, 4 vv. P–Cug MM 12, ff. 194v-195r.


Concordâncias: P–Cug MM 32, ff. 24v-25r.
Texto: Jo. 4: 6-15, abreviado.

Fatigatus Iesus sedebat ad fontem: hora erat quasi sexta, et venit mulier de Samaria haurire aquam. Dicit ei Iesus: mulier, da
mihi bibere. Et respondens ei mulier: quomodo tu cum Iudeus sis poscis a me bibere, quae sum Samaritana? Dicit ei Iesus: si
scires quis est qui dicit tibi, da mihi bibere, petisses ab eo, ut daret tibi aquam vivam. Dicit ad eum mulier: Domine, da mihi
hanc aquam, ut vivam in aeternum. Amen.

Fatigado, estava Jesus sentado à beira da fonte: era quase a hora sexta e veio uma mulher de Samaria a tirar água. Disse-lhe
Jesus: mulher, dá-me de beber. E respondeu-Lhe a mulher: como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, a mim, que sou
samaritana? Disse-lhe Jesus: se reconhecesses quem te diz dá-me de beber, certamente lhe pedirias, e ele te daria da água
viva. Disse-Lhe a mulher: Senhor, dá-me então dessa água, para que eu viva eternamente. Amen.

S 473-4 Sb Br
Sobre a autoria desta obra, v. O. Rees, Polyphony in Portugal…, pp. 60, 76-77; para a colação das fontes, v. ibid.,
p. 429.
J. P. A.

Nº 36 Anónimo, motete «Quanti mercenarii»

Transcrito do Cancioneiro Masson (Paris, École des Beaux Arts, Masson 56, fols. 123r-124v). Inscrição: motete
singular. Texto latino e respectiva tradução:
Antologia de Música em Portugal

152 Quanti mercenarii in domo patris mei abundant panibus, ego autem hic fame pereo! Surgam, et ibo ad patrem meum, et dicam
ei: Pater, peccavi in cælum, et coram te: jam non sum dignus vocari filius tuus: fac me sicut unum de mercenariis tuis.

Quantos servidores há na casa de meu pai que têm pão em abundância, e eu aqui, que morro de fome! Irei levantar-me e irei
ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti: já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me
como a um dos teus servidores.

Este motete a 3 vozes, até agora inédito, está entre os mais antigos testemunhos musicais deste texto encontrados
em fontes europeias. O texto é retirado do Evangelho de Lucas, 15 (versículos 17-19). A designação tip(le) para
a voz mais aguda poderá talvez sugerir uma origem espanhola; e de facto, o motete tem afinidades com o estilo
de Francisco de Peñalosa (c. 1470-1528). As duas vozes superiores apresentam o texto completo, enquanto o
baixo recebe apenas um incipit textual.
B. N.

Nº 37 Vasco Pirez, «Magnificat»

Texto latino e tradução (segundo a versão bíblica de A. Pereira de Figueiredo):

[Magnificat anima mea Dominum]


et exsultavit spiritus meus in Deo salutari meo:
[quia respexit humilitatem ancillæ suæ
ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes;]
quia fecit mihi magna qui potens est et sanctum nomen eius,
[et misericordia eius a progenie in progenies timentibus eum;]
fecit potentiam in brachio suo: dispersit superbos mente cordis sui,
[deposuit potentes de sede et exaltavit humiles;]
esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes;
[suscepit Israel puerum suum recordatus misericordiæ suæ,]
sicut locutus est ad patres nostros Abraham et semini eius in sæcula.

[Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto.]


Sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in sæcula sæculorum. Amen.

1. [A minha alma engrandece ao Senhor,]


2. E o meu espírito se alegrou por extremo em Deus meu Salvador:
3. [Por Ele ter posto os olhos na baixeza de sua escrava;
eis-aí porque de hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações.]
4. Porque me fez grandes coisas o que é Poderoso: e santo o Seu Nome;
Manuel Pedro Ferreira

5. [E a Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre os que O temem.] 153


6. Ele manifestou o poder do Seu braço: dissipou os que no fundo do seu coração formavam altivos pensamentos,
7. [Depôs do Trono os poderosos, e elevou os humildes.]
8. Encheu de bens os que tinham fome: e despediu vazios os que eram ricos.
9. [Tomou debaixo da Sua protecção a Israel seu servo, lembrado da sua misericórdia,]
10. Assim como o tinha prometido a nossos pais, a Abraão, e à sua posteridade para sempre.

[Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.]


Assim como era no princípio, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amen.

Esta é uma versão musical, no quarto tom, dos versos pares do Magnificat (derivado do Evangelho de Lucas, 1:
46-55), a maior das duas peças que sobrevivem com atribuições a Vasco Pirez, mestre de capela na catedral de
Coimbra. O compositor alterna texturas cheias e reduzidas, usando a mensuração de tempus imperfectum para
as primeiras, e tempus imperfectum diminutum para as últimas.

Notas críticas
A obra sobrevive completa nos manuscritos P-Cug MM 12 e MM 32, e os três versículos para número reduzido
de vozes estão também em P-Ln C.I.C. 60.
Há muito poucas variantes significativas entre as cópias. Em P-Cug MM 12 (fol. 166v e ss.) foi omitida a primeira
nota do c. 86 no Bassus, aparentemente um erro (pois daí resultam uníssonos paralelos com o altus). Em P-Ln
C.I.C. 60 os Mis do Bassus nos compassos 205–6 são escritos como uma simples breve pontuada. A disposição
da letra sob a música é, nesta edição, frequentemente editorial.
O. R.

Nº 38 Anónimo, motete «Si pie Domine»

Texto latino e tradução:

Si pie domine defecit nobis Alphonsus rex noster, gaudium cordis nostri conversum est in luctum: cecidit corona capitis nostri.
Ergo ululate populi, plorate sacerdotes, lugete pauperes, plangite nobiles, et dicite: Anima regis nostri Alphonsi requiescat in
pace.

Quando, Senhor piedoso, nosso rei Afonso nos abandonou, a alegria dos nossos peitos converteu-se em pranto: caiu a coroa
das nossas cabeças. Portanto, clamai, ó povo, chorai, ó padres, lacrimejai, ó pobres, lamentai, ó nobres, e dizei: repouse em
paz a alma do nosso rei Afonso.
Antologia de Música em Portugal

154 O texto é um lamento para o primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques. É possível que este motete,
preservado num manuscrito do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra (P-Cug MM 32, fols. 2v-3), tenha sido
composto para ser estreado em Julho de 1520, nas cerimónias de trasladação dos restos mortais de D. Afonso
Henriques para um novo túmulo em Santa Cruz.

Nota crítica
Bassus, c. 105-109: na fonte manuscrita, a frase requiescat in pace é integralmente repetida.
O. R.

Nº 39 Damião de Góis, motete «Surge, propera»

Texto (baseado no Cântico dos Cânticos, 2.10, 13-14) e sua tradução:

Surge, propera, amica mea, speciosa mea, et veni: columba mea, in foraminibus petræ, in caverna maceriæ. Ostende mihi
faciem tuam, sonet vox tua in auribus meis: vox enim tua dulcis, et facies tua decora.

Levanta-te, apressa-te, amiga minha, formosa minha, e vem: pomba minha, nas fendas da pedra, na cavidade da parede.
Mostra-me a tua face, soe a tua voz dentro dos meus ouvidos: pois a tua voz é doce, e a tua face graciosa.

A transcrição baseia-se nas partes vocais separadamente impressas por Sigismund Sablinger, Cantiones septem,
sex et quinque vocum. Longe gravissimæ, iuxta amœnissimæ, in Germania maxime hactenus typis non excusæ
(Augsburg, 1535), tendo-se corrigido os erros que se infiltraram na edição moderna até agora disponível.
Respeitámos integralmente o original excepto numa ocasião em que eliminámos uma palavra a mais, presente
numa única das cinco vozes («enim» em «Sonet enim vox tua», na Quinta Vox, cc. 67-68), a fim de manter
imperturbada a relação imitativa entre esta voz e o Altus. Veja-se o comentário a esta peça no meu artigo «A
música de Damião de Góis», Congresso Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento: Actas, Braga:
Universidade Católica Portuguesa, pp. 533-42.
M.P.F.

Nº 40 Heliodoro de Paiva, «Salve regina»

Texto latino e tradução:

Salve regina, mater misericordiæ,


[Vita, dulcedo et spes nostra, salve:]
Manuel Pedro Ferreira

Ad te clamamus exules filii Evæ, 155


[Ad te suspiramus gementes et flentes in hac lacrymarum valle.]
Eya ergo, advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos converte;
[Et Jesum, benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exilium ostende.]
O clemens, [o pia], o dulcis Virgo Maria.

Saúde, rainha, mãe da misericórdia, [vida, doçura, e nossa esperança, saúde!] A ti clamamos, nós exilados filhos de Eva, [a
ti suspiramos gementes e chorosos neste vale de lágrimas]. Ah, assim sendo, nossa advogada, vira para nós os teus olhos
misericordiosos, [e Jesus, o bendito fruto do teu ventre, mostra-no-Lo depois deste exílio!] Ó clemente, [ó pia], ó doce
Virgem Maria!

Uma versão da mais famosa antífona votiva à Virgem Maria, com os versos ímpares em polifonia, alternando
com os versos pares em cantochão. Esta é a mais substancial das obras conservadas atribuídas a Dom Heliodoro
de Paiva, notável personagem de talento polivalente que foi cónego em Santa Cruz de Coimbra. As secções
em cantochão não aparecem na fonte manuscrita; poderão ser retiradas, para efeitos de execução musical, do
manuscrito P-Cug MM 37, oriundo de Santa Cruz e aproximadamente contemporâneo desta composição de
Dom Heliodoro.

Notas críticas
A corrosão no manuscrito tornou algumas passagens ilegíveis. Esses trechos, onde a edição é uma reconstrução
editorial, são aqui indicadas através da colocação da notação entre parênteses rectos: cantus, cc. 1–10, 19, e c. 37
(última nota) às primeiras duas notas do c. 38; tenor, c. 63, pausa.
Adicionalmente, as passagens seguintes são difíceis de ler no manuscrito, também devido a corrosão:
c. 32, Cantus: pausas
c. 45, Altus: duas notas iniciais
c. 108, Cantus: semibreve Sol
O. R.

Nº 41 Miguel da Fonseca (fl.1544), intróito «Dominus dixit ad me»

Dominus dixit ad me, 5 vv. P–BRd Ms. 967, ff. 13v-15r.


Epígrafes: «Jn sanctisima nocte natalis Dominj. Fonseca».
Concordâncias: P–Pm MM 40, ff. 8v-10r (partim).
Texto: Proprium missae, in nocte natalis Domini, introitus.

Dominus dixit ad me: Filius meus es tu, ego hodie genui te.
Quare fremuerunt gentes: et populi meditati sunt inania?
Antologia de Música em Portugal

156 Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto.


Sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in saecula saeculorum. Amen.

Disse-me o Senhor: tu és o meu Filho, eu gerei-te hoje.


Porque se enfureceram as nações e meditaram os povos coisas vãs?
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Assim como era no princípio, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amen.

S 22-232 texto «ego hodie»; T 37-41 texto «sicut erat in principio ij»
Para a colação das fontes, v. J. P. d’Alvarenga, «Polifonia na liturgia bracarense: o Liber introitus, primeiro
testemunho quinhentista» in Estudos de Musicologia, Lisboa, Colibri, Centro de História da Arte da Universidade
de Évora, 2002, pp. 48-50.
J. P. A.

Nº 42 Miguel da Fonseca, comunhão «In splendoribus sanctorum»

In splendoribus sanctorum, 5 vv. P–BRd Ms. 967, ff. 15v-16r.


Epígrafes: «Residum eiusdem festiuitatis. Fonseca».
Concordâncias: P–Pm MM 40, ff. 10v-11r, «Cõmunio. Fonsequa».
Texto: Proprium missae, in nocte natalis Domini, comunnio.

In splendoribus sanctorum, ex utero ante luciferum genui te.

No esplendor dos santos, gerei-te do útero antes do amanhecer.

A1 6-82 texto «ex utero»; A1 84-121 texto «ante luciferum»; S 9-10 texto «ij» (=sanctorum); A1 123-14 texto
«ij» (=ante luciferum); S 13-14 texto «ij» (=ex utero); S 15-16 texto «ex utero»; A2 152-211 texto «ex utero ante
luciferum ij»; S 17-192 texto «ante luciferum»; A1 182-19 texto «genui te».
Para a colação das fontes, v. J. P. d’Alvarenga, «Polifonia na liturgia bracarense…», cit., pp. 48-50.
J. P. A.

Nº 43 Anónimo de Coimbra, Lamentações de Jeremias

Incipiunt Lamentationes Ieremiæ Prophetæ, 4 vv. P–Cug MM 32, ff. 1v4r. Epígrafe, f. 2v, outra mão: «Lamentacoins.
solfa da tempera uelha».
Manuel Pedro Ferreira

Concordâncias: P–Cug MM 9, ff. 128v-133r; P–Cug MM 48, ff. 126v-127r (Beth. Plorans ploravit... et facti sunt 157
ei inimici), partitura.
Texto: Lam. 1: 1-3. Primeira lição de Matinas em Quinta-feira Santa, segundo o costume de Santa Cruz de
Coimbra (v. Breviarivm secvndum vsvm ecclesiae sanctae • colimbriensis ordinis canonicorum regularium divi
Avgustini, [Coimbra], per Germanum Galhardum, 1531, f. 185r).

Incipiunt Lamentationes Ieremiæ Prophetæ.

Aleph. Quomodo sedet sola civitas plena populo:


facta est quasi vidua domina Gentium:
princeps provinciarum facta est sub tributo.
Beth. Plorans ploravit in nocte, et lacrimæ eius in maxillis eius:
non est qui consoletur eam ex omnibus caris eius:
omnes amici eius spreverunt eam, et facti sunt ei inimici.

Ghimel. Migravit Iudas propter afflictionem, et multitudinem servitutis:


habitavit inter Gentes nec invenit requiem:
omnes persecutores eius apprehenderunt eam inter angustias.

Ierusalem, Ierusalem, convertere ad Dominum Deum tuum.

Começam as Lamentações do Profeta Jeremias.

Aleph. Como permanece solitária a cidade cheia de povo,


assim ficou como viúva a senhora das Gentes:
a princesa das províncias ficou sujeita ao tributo.

Beth. Chorou ininterruptamente durante a noite e as suas lágrimas correram-lhe pelas faces;
não há quem a console de entre todos os que lhe são caros:
todos os seus amigos a desprezaram e se lhe tornaram inimigos.

Ghimel. A filha de Judá migrou, por causa da aflição e da enormidade da servidão;


Habitou entre os Gentios e não encontrou repouso:
todos os seus perseguidores se apoderaram dela no meio das suas angústias.

Jerusalém, Jerusalém, converte-te ao Senhor teu Deus.

B 112-14 texto «Ieremiae Prophetae»; B 862 G; T2 117-1192 texto «non est qui consoletur eam»; A 1261 f ’; T2 1462-
152 texto «et facti sunt ei inimici»; A B 149-152, texto «ei inimici»; B 198-2031 texto «omnes persecutores eius»;
T2 199-2031 texto «omnes persecutores eius»; T2 2081-2 M Sb; A 231-2351 texto «convertere ad Dominum»
J. P. A.
Antologia de Música em Portugal

158
Nº 44 Bartolomeu Trosilho (c.1500-c.1567), motete «Dies mei transierunt»

Dies mei transierunt, 4 vv. P–Pm MM 40, ff. 223v-224r.


Epígrafes: «Pro defunctis. Trosilho».
Concordâncias: P–BRd Ms. 965, ff. 66v-67r.
Texto: Job 17: 11-12.

Dies mei transierunt, cogitationes meae dissipatae sunt, torquentes cor meum. Noctem verterunt in diem, et rursum post tenebras
spero lucem.

Os meus dias passaram, os meus pensamentos desvaneceram-se, atormentando o meu coração. A noite mudou-se em dia
e, de novo, depois das trevas espero a luz.

A1 142 Sb
J. P. A.

Nº 45 Aires Fernandes, «Benedicamus Domino»

Texto latino e tradução:

Benedicamus Domino. Bendizei ao Senhor.

Trata-se do versículo cantado no final das horas do Ofício Divino (com a excepção das Matinas) e também,
durante as épocas litúrgicas de carácter penitencial, no final da Missa. Há três versões musicais deste versículo
atribuídas a Aires Fernandez nos manuscritos do mosteiro de Santa Cruz em Coimbra. A parte de tenor na
presente versão é baseada no respectivo cantochão.

Notas críticas
As lições desta peça nos manuscritos da Universidade de Coimbra e da Biblioteca Pública Municipal do Porto,
respectivamente P-Cug MM 44 (em que baseámos a edição) e P-Pm MM 40, não estão muito próximas. As
variantes mais substanciais nesta última fonte são:
c. 4, Tenor: pausa de semibreve, semibreve Lá;
c. 4–5, Altus: semibreve Dó, mínima Ré, em vez de mínima Dó, mínima pontuada Ré, semínima Mi;
c. 9, Bassus: mínima Lá grave em vez de pausa de mínima.
O. R.

[Para as variantes relativas à versão do códice polifónico de Arouca, a peça inicial da Figura 16, confronte-se
a transcrição aqui oferecida com essa reprodução fotográfica, que só ficou disponível após a recepção destas
notas críticas.]
Manuel Pedro Ferreira

159
Nº 46 Aires Fernandes (fl.1550-1566?), motete «Circumdederunt me»*

Circumdederunt me, 6 vv. P–VV J. 15 / A. 9, ff. 37v-39r.


Epígrafes: «Fer. II. Majoris Hebd. Ad Miss. Motettum». Autoria do índice.
Texto: Ps. 17: 5-6.

Circumdederunt me dolores mortis, dolores inferni circumdederunt me: praeocupaverunt me laquei mortis.

Cercaram-me as dores da morte, as dores do inferno envolveram-me: inquietaram-me os laços da morte.

J. P. A.

* Há gravação deste motete no CD Music from Renaissance Coimbra (Hyperion, 1994), pel’ A Capella Portuguesa (dir.: Owen Rees).

Nº 47 Anónimo, hino «Pange lingua»

Pange, lingua, gloriosi, 4 vv. P–Pm MM 40, ff. 240v-241r.


Epígrafe: «Jn festo corporis xpj.».
Concordâncias: P–Pm MM 76-79, pp. 68-69.
Texto: S. Tomás de Aquino (†1274), hino in festo Corporis Christi, estrofe 1.

Pange, lingua, gloriosi


Corporis mysterium,
Sanguinisque pretiosi,
Quem in mundi pretium
Fructus ventris generosi
Rex effudit gentium.

Canta, língua, o mistério do corpo glorioso e do sangue precioso que, fruto de um ventre generoso,
o Rei das nações derramou, como preço da salvação do mundo.

T 33-61 texto «corporis mysterium»; T 73-111 texto «sanguinisque pretiosi»; S 242 a’; B 243-283 texto «.ij. generosi
rex effudit gentium»
J. P. A.
Antologia de Música em Portugal

160
Nº 48 António Carreira, o Velho (c.1530-1592/94), «Stabat mater»

Stabat mater dolorosa, 4 vv. P–Pm MM 76-79, pp. 105-106.


Epígrafe, MM 76, p. 105: «Carreira».
Concordâncias: P–Cug MM 48, ff. 53v-54r, «Torres» (=André de Torres), partitura.
Texto: Inocêncio III (†1216), ou Jacopone da Todi (†1306), hino, estrofes 1 e 2.

Stabat mater dolorosa


Iuxta crucem lacrimosa,
Dum pendebat filius.

Cuius animam gementem,


Contristantem et dolentem,
Pertransivit gladius.

Estava a Mãe dolorosa e lacrimosa junto à cruz, de onde pendia o Filho.


Cuja alma gemendo, contristada e dorida, foi trespassada por uma espada.

B 16-20 texto «iuxta crucem lacrimosa»


Sobre a autoria desta obra, v. J. P. d’Alvarenga, Polifonia portuguesa sacra tardo-quinhentista: estudo de fontes
e edição crítica do Livro de São Vicente, manuscrito P–Lf FSVL 1P/H-6, Dissertação de Doutoramento,
Universidade de Évora, 2005, vol. 1, p. 200; para a colação das fontes, v. ibid., vol. 2, pp. 399-401.
J. P. A.

Nº 49 Pedro de Escobar / Gonçalo de Baena: «Clamabat autem mulier»

Clamabat autem mulier, 4 vv. Transcrito de Gonçalo de Baena (c.1476/80-p.1540), Arte nouamente inuentada
pera aprender a tãger, Lisboa, German Galhard, 1540, ff. l-lii, tablatura. Epígrafe: «Escobar.»
Concordâncias: E–Bc M. 454, ff. clxiv-clxiir, «Scobar»; E–Sc Colombina Ms. 5–5–20, ff. 17v-18r, «Escobar»;
E–Tc Ms. 21, ff. 56v-58r; E–TZ Ms. 2, ff. cclxxiv-cclxxiir, «escobar»; P–Cug MM 12, ff. 193v-194r; P–Cug MM
32, ff. 22v-23r; US–BLl Guatemala Ms. 8, ff. 18v-19r, 56v-57r; US–BLl Guatemala Ms. 9, ff. 12v-13r; Mudarra,
Tres libros..., 1546, III, ff. [6]r-[10]v (= 59r-63v).
J. P. A.
Manuel Pedro Ferreira

161
Nºs 50-53 Peças de Anchieta, Gonçalo de Baena, António de Baena e Cristóbal de Morales

Estas transcrições para tecla foram directamente retiradas do livro de Gonzalo (Gonçalo) de Baena, Arte
novamente inventada pera aprender a tanger (Lisboa, 1540); as intervenções editoriais que implicam divergências
em relação ao original estão assinaladas na própria edição. As peças encontravam-se inéditas.
A tablatura de tecla usada por Baena encontra-se somente nesta sua Arte de tanger, tratando-se, de facto, da
mais antiga tablatura de tecla impressa na Península Ibérica de que temos conhecimento, embora tablaturas
semelhantes, de tipo alfabético, sejam mencionadas quinze anos depois por Juan Bermudo no seu tratado
Declaración de instrumentos musicales. As letras a a g são utilizadas para indicar notas correspondentes à escala
diatónica de lá a sol no teclado moderno, com a divisão entre oitavas a ocorrer entre e e f (mi e fá). As diferentes
oitavas são indicadas pela presença ou ausência de pontos, e sua posição (baixa ou alta) junto à letra; por
exemplo, os fás grave, médio e agudo aparecem como .f, .f e f. As alterações cromáticas são indicadas através da
inversão da letra; a uma pausa corresponde um zero. Numa peça polifónica, cada voz entabulada é representada
por uma fiada de quadrados, pelo que, por exemplo, uma partitura a quatro vozes terá quatro fiadas sobrepostas.
A tablatura serve-se também dessa grelha quadriculada para indicar os valores rítmicos: cada unidade métrica
(compasso) contém quatro quadrados e é separada das outras por um rectângulo quase quadrangular. Valores
rítmicos inferiores à semínima (que corresponde a um quadrado) não são passíveis de representação.
Para informação adicional, veja-se Tess Knighton, «A Newly Discovered Keyboard Source (Gonzalo de Baena’s
Arte nouamente inuentada pera aprender a tanger, Lisbon, 1540): a Preliminary Report», Plainsong and Medieval
Music, V (1996), pp. 81-112.
T. K.

Nº 54 Si amores me han de matar: duo e contraponto del autor (Flecha/Fuenllana)

Peça a duas vozes de Mateo Flecha (o Velho), intabulada por Miguel de Fuenllana e extraída da primeira parte
de Orphenica Lyra (Sevilha, 1554). Contraponto rigoroso sendo as duas vozes facilmente identificáveis, a
transcrição indica, como é usual, a voz de cima com as hastes das notas apontando para cima e a voz inferior
com as hastes apontando para baixo.
A parte de vihuela foi transcrita de modo a poder ser executada numa guitarra [viola] em mi, alterando-se a
afinação da 3ª corda para Fá #, a fim de se obter a digitação original. A este propósito, veja-se a nota ao nº 32
desta Antologia.
Esta peça foi copiada à mão por um português, ainda no século XVI, no final do seu exemplar do livro de
vihuela de Alonso Mudarra, tal como se pode ver na respectiva edição facsimilada.
N. M.
Antologia de Música em Portugal

162
Nºs 55-56 Fantasias de António Carreira

As barras de compasso, indicação de compasso e valores das notas foram mantidas como no original. A ligação
entre colcheias ou semicolcheias foi mantida como no original excepto no caso em que cruza as barras de
compasso.
Os acidentes são indicados de acordo com as convenções actuais, excepto quando a intenção original é ambígua.
Os acidentes editoriais são indicados em tamanho reduzido sobre ou sob as notas. As ligaduras editoriais são
apresentadas a tracejado.
As obras não apresentam título no manuscrito. Os títulos propostos por Macário Santiago Kastner (Antologia
de organistas do século XVI, Lisboa, Gulbenkian, 1969) foram adoptados nesta edição, omitindo a indicação
supérflua «a quatro».

Fantasia em Ré
Fonte: P-Cug MM 242, f. 31v.
Sem título. Inscrição: «ca.».

cc. 14-15 S: notado uma terceira abaixo desde a última semínima


do c. 14 até ao fim do c. 15.

cc. 29-33 Notado desta forma no original:

Para evitar as quartas paralelas (que constituem obviamente


um erro) a linha superior foi deslocada um compasso para
a esquerda, inserindo as mínimas Mi3-Fá3 no c. 33. Na
primeira metade do c. 31 o ritmo no Tenor foi alterado
para semínima Fá (ligada à nota precedente) e semínima
Mi.
Manuel Pedro Ferreira

Fantasia em Lá-Ré 163


Fonte: P-Cug MM 242, ff. 29r-29v.
Sem título. Inscrição: «ca.».

cc. 3-4 S: A linha de união das colcheias atravessa a barra de compasso.

cc. 14-16 A: A linha de união das colcheias atravessa a barra de compasso.

c. 47 S: Últimas três notas Ré4-Mi4-Dó4.

c. 48 S: Primeiras três notas Ré4-Dó4-Ré4.

J. V.
CD1

antologia sonora:
dos visigodos a d. sebastião

Índice, Textos e Traduções

8
Antologia de Música em Portugal

166
CD 1

antologia sonora: dos visigodos a d. sebastião

Idade Média:

Responsório hispano-visigótico para o Ofício de Defuntos:


1. Dies mei transierunt [3’ 11’’]

Três antífonas hispano-visigóticas para o Lava-Pés de Quinta-feira Santa:


2. Bone magister [42’’]
3. Si ego Dominus [50’’]
4. Si haec scitis [39’’]

Hino a Santiago, segundo o Códice Calixtino (séc. XII):


5. Ad honorem regis summi (Aimericus Picaudi) [1’ 52’’]

Hino a São Bernardo, segundo um códice de Arouca (séc. XIII):


6. Exultat celi curia [4’ 04’’]

Cantiga de Santa Maria (séc. XIII):


7. Quen vai contra Santa Maria/nº 283: O clérigo arrogante (Alfonso X) [5’ 59’’]

Cantiga d’amigo (séc. XIII):


8. Ondas do mar de Vigo (Martin Codax) [3’ 29’’]

Cantigas d’ amor (séc. XIII):


9. Que mui gran prazer (D. Dinis) [4’ 44’’]
10. Pois que vos Deus (D. Dinis) [3’ 55’’]

Renascimento:

Cânticos religiosos:
11. Benedicamus Domino cisterciense [32’’]
12. Credo de Niceia segundo um manuscrito de Évora [5’ 18’’]
13. Pranto para a procissão do Enterro do Senhor na Sexta-feira Santa: Heu, heu, Domine, versão
do Missal bracarense de 1558 [3’ 02’’]
14. Canção de Natal Dalha den cima del cielo [2’ 02’’]
Manuel Pedro Ferreira

167
Repertório profano:
15. Cantiga: Senhora, quem vos disser [1’ 38’’]
16. Romance de D. Inês de Castro: Io m’estando em Coimbra [4’ 53’’]
17. Vilancete: Minina dos olhos verdes [2’ 01’’]
18. Fantasia para vihuela (Luís Milán) [2’ 24’’]
19. Vilancete: Parto triste saludoso [2’ 40’’]
20. Cantiga: Na fonte está Lianor [2’ 03’’]
21. Duo e contraponto instrumental sobre Si amores me han de matar (Flecha/Fuenllana) [3’ 52’’]
22. Romance da queda de Granada: Paseavase el rey moro [4’ 48’’]

Vozes Alfonsinas:
Manuel Pedro Ferreira, direcção
Maria Repas Gonçalves, soprano
Susana Teixeira, meio-soprano
Gonçalo Pinto Gonçalves, tenor
Filipe Faria, tenor
Sérgio Peixoto, tenor
Victor Gaspar, barítono
Madalena Cabral, rabeque
Nuno Torka Miranda, alaúde medieval e vihuela
participação especial de Lourenço e Martinho Ferreira

Gravado na Capela do Palácio da Bemposta (Lisboa) em Maio de 2008


Produção e edição digital: Manuel Pedro Ferreira
Produção executiva: Filipe Faria/Arte das Musas
Captação de som, montagem e masterização: José Fortes
Antologia de Música em Portugal

168
TEXTOS E TRADUÇÕES DO LATIM

Cânticos do rito visigótico (1., 2., 3. e 4.) 5. Hino a Santiago

Responsório hispano-visigótico Ad honorem regis summi


para o Ofício de Defuntos qui condidit omnia,
venerantes jubilemus
1. Jacobi magnalia.
Dies mei transierunt, cogitationes meæ dissipatæ sunt. De quo gaudent celi cives
Putredini dixi: pater meus es, mater mea et soror mea in superna curia,
vérmibus. Libera me, Dómine, et pone me juxta te. cujus facta gloriosa
meminit ecclesia.
Passaram os meus dias, dissiparam-se as minhas Supra mare Galilee
cogitações. Disse à podridão: és o meu pai, e aos omnia proposuit,
vermes: sois minha mãe e minha irmã. viso rege ad mundana
Liberta-me, Senhor, e põe-me junto a ti. redire non voluit.
Set post illum se vocantem
Três antífonas hispano-visigóticas pergere disposuit,
para o Lava-pés de Quinta-feira Santa et precepta eius sacra
predicare studuit.
2.
Bone magister, lava me a facínore meo, et a peccato Em honra do Rei supremo,
meo munda me. o qual tudo construiu,
celebremos, venerantes,
Bom Mestre, lava-me de meus crimes, e limpa-me de Iago a grande história,
do meu pecado. que os cidadãos do céu alegra
na corte lá das alturas;
3. de cujos feitos gloriosos
Si ego Dóminus et Magister vester lavi pedes a Igreja retém memória.
vestros, et vos debetis alter altérius lavare. Junto ao mar da Galileia
tudo foi esclarecer,
Se eu, vosso Senhor e Mestre, lavo os vossos pés, à vista do Rei, ao mundo
deveis vós a outrém, outros lavar. não quis jamais volver,
mas atrás d’Ele, que o chamava,
4. foi-se Iago apressar,
Si haec scitis, beati éritis, si fecéritis ea. e seus santos mandamentos
se aplicou a predicar.
Se isto deveras souberdes, sereis felizes se o
fizerdes.
Manuel Pedro Ferreira

169
6. Hino a S. Bernardo

Exultat cel[i] curia Exulta a corte do Céu,


festivo leta gaudio. alegre com júbilo festivo;
Sancta mater ecclesia folga a Santa Madre Igreja
sancto congaudet filio. com o seu santo filho.
Bernardus ab infantia Bernardo, desde pequeno,
virtute multa claruit. grande virtude mostrou;
Virginali mundicia do mundo, em virginal graça,
mundi victor efloruit. vencedor desabrochou.
Cistercium ingrediens Tendo entrado em Cister,
crevit per vite meritum p’la vida emérita foi alçado,
ibi sancte suscipiens aí tomando, santamente,
religionis habitum. o religioso hábito.
Amator solitudinis Amante da solidão,
deo vacare studuit. servir a Deus desejava,
Verba mire dulcedinis palavras de doçura admirável
scripsit, legit, et docuit. escrevia, lia e ensinava.
Clarevallis egregius Eminente em Claraval,
dignus est abbas laudibus abade digno de louvor,
qui quasi fulgens radius quase como raio brilhante,
claris fulsit virtutibus. virtude clara cintilou.
Bernardus mundi misera Bernardo, que as tentações
qui blandimenta respuit, do mísero mundo tinha desprezado,
ut nardus odorifera ofereceu, da vida, o perfume,
odorem vite prebuit. como um perfumoso nardo.
Vir virtutis et gracie Homem de virtude e de graça,
vir iste sanctus extitit este santo homem superou
qui <maligni> malicie quem, com constância, à malícia
constanter hostis obstitit. do diabólico inimigo obstou.
Huius mira simplicitas Maravilhosa era a sua simplicidade
multaque patientia e grande a sua paciência;
magna fuit et caritas enorme era a sua caridade
et alia sapientia. e também a sua sapiência.
In laudem sancte virginis Em louvor da santa Virgem
Marie libros edidit. Maria, livros fez editar;
Dei matrem et hominis da Mãe de Deus e do Homem
laudis exemplar tradidit. nos legou louvor exemplar.
Regi regum sit gloria Glória ao Rei dos Reis
nunc et per omne seculum agora e por todos os séculos,
qui iam in aula regia, Quem já no átrio do Reino
suum suscepit famulum. Amen. acolheu o Seu servidor. Amen.
Antologia de Música em Portugal

170
7. Cantiga de Santa Maria escomungar-vos-ei por en» 12.
(CSM 283: o clérigo arrogante) E u 13 esto dizer queria,
torceu-xe-lh’ a boca, assi
Quen vai contra Santa Maria R/ Quen vai contra...
con sobérvia 1, faz mal a si. Que nulha 14 cousa non falou
Ca sobérvia non dev’ aver nen a missa non ar 15 cantou;
ome contra a que vencer e de guisa torto ficou
foi ao demo 2 per saber que pé nen mão non mudou
ser omildosa e fazer per poder da que despreçou
per que Deus quis dela nacer; por aquelo que dit’ avia.
ca doutra guisa 3 non querria E foi tolheito 16 log’ ali
ser Deus ome, nen si nen si. 4 R/ Quen vai contra...
R/ Quen vai contra... Que u quis descomungaçon
E por esto vos contarei dizer, non disse si nen non,
un gran miragre que achei nen ar pode mostrar razon, 17
que fez a Madre do gran Rei mais braadou come cabron. 18
en Terena, e mui ben sei Enton todos de coraçon
que outros i, com’ apres’ ei, 5 loaron muit’ a que nos guia
fez muitos e faz cada dia e temérona mais des i. 19
aos que os van buscar i. R/ Quen vai contra...
R/ Quen vai contra... Mas quando se atal sentiu
Mui pret’ 6 un clérigo morar que tolheit’ era e se viu
fora daquel santo logar tan maltreito 20, ben se partiu
desta Groriosa sen par; daquel err’ e se repentiu,
e un dia quis preegar 7 assi que logo ben guariu 21;
en sa eigreja e mostrar e fez assi que todavia
aas gentes que «gran folia deu i do seu 22, com’ aprendi.
será», diss’ el, «creed’ a mi, R/ Quen vai contra...
R/ Quen vai contra...
De quantos vos fordes partir GLOSSÁRIO
1
sobervia: soberba
de vossas eigrejas e ir 2
a que vencer/foi ao demo: a senhora que venceu
a Terena por i servir o demónio
nen dar do voss’ e oferir 8 3
doutra guisa: de outra forma
e juro-vos eu sen mentir
4
ome: homem; nen si nen si: de modo algum
5
i: ali; apres’ ei: aprendi
que por est’ escomungaria 6
pret’(= preto): perto
quantos alá fossen daqui. 7
preegar: predicar
R/ Quen vai contra... 8
oferir: oferecer
E se per ventura aven
9
festa que ven/d’Agosto: Assunção da Virgem (dia 15)
10
mal sen: mau juízo
que en esta festa que ven 11
nehũa ren: nenhuma coisa (motivo especial)
d’ Agosto 9 per vosso mal sen 10 12
por en: por isso
fordes i per nehũa ren, 11 13
u: quando
14
nulha: nenhuma
Manuel Pedro Ferreira

15
non ar: nem sequer por vós, tod’ aquel temp’ eu ei de ben, 171
16
tolheito: incapacitado
17
nem ar pode mostrar razon: nen sequer mais por gran maravilha per tenh’ eu
conseguiu dizer uma palavra de mi viir de vós mal, u Deus non
18
braadou come cabron: rugiu como uma cabra pôs mal, de quantos eno mundo son.
19
des i: depois disso Ca, senhor, mui gran prazer mi per 7 é
20
maltreito: maltratado
21
guariu: ficou são quand’ en vós cuid’ e non ei de cuidar
22
deu i do seu: deu o próprio dinheiro (ao santuário) en quanto mal mi fazedes levar,
mais gran maravilha tenh’ eu que é
de mi viir de vós mal, u Deus non
8. Cantiga d’amigo pôs mal, de quantos eno mundo son.
Ca, par Deus, semelha mui sen razon
Ondas do mar de Vigo, d’aver eu mal d’u o Deus non pôs, non. 8
se vistes meu amigo? 1
E ai Deus! Se verrá 2 cedo? GLOSSÁRIO
1
ei: tenho; senhor: senhora
Ondas do mar levado 3, 2
cuido: penso
se vistes meu amado? 3
mais: mas; qual: aquilo que
E ai Deus! Se verrá cedo? 4
= (o facto de) me vir de vós mal, (logo de
Se vistes meu amigo, alguém,) entre todos os que estão no mundo, em
quem Deus não pôs mal algum.
o por que eu sospiro? 5
fremosa: formosa
E ai Deus! Se verrá cedo? 6
eno: em o
Se vistes meu amado, 7
mi per: para mim
o por que ei 4 gran coidado?
8
= Já que, por Deus, parece completamente sem
lógica retirar eu mal daí onde Deus não o pôs, de
E ai Deus! Se verrá cedo?
modo nenhum!

GLOSSÁRIO
1
se: será que; amigo: namorado
2
verrá: virá 10.
3
levado: agitado Pois que vos Deus, amigo, quer guisar 1
4
ei: tenho
d’irdes a terra d’ u 2 é mha senhor,
rogo-vos ora 3 que, por qual amor
vos ei 4, lhi queirades tanto rogar
Cantigas d’Amor (9. e 10.) que se dóia 5 já do meu mal.
E d’irdes i 6 tenh’ eu que mi fará
9.
Deus gran ben, poila 7 podedes veer,
Que mui gran prazer que eu ei, senhor, 1
e, amigo, punhad’ 8 en lhi dizer,
quand’ en vós cuid’ e non cuido 2 no mal
pois tanto mal sofro gran sazon 9 á,
que mi fazedes, mais direi-vos qual 3
que se dóia já do meu mal.
tenh’ eu por gran maravilha, senhor,
E pois que vos Deus aguisa’ 10 d’ ir i,
de mi viir de vós mal, u Deus non
tenh’ eu 11 que me fez el i mui gran ben,
pôs mal, de quantos eno mundo son. 4
e, pois sabede’ lo mal que mi ven,
E, senhor fremosa 5, quando cuid’ eu
pedide-lhi mercee por mi
en vós e non eno 6 mal que mi ven
que se dóia já do meu mal.
Antologia de Música em Portugal

172 GLOSSÁRIO et homo factus est.


1
(vos quer) guisar: (vos quer) conceder Crucifixus étiam pro nobis:
2
u: onde
sub Póntio Pilato,
3
ora: agora
4
ei: tenho passus, et sepultus est.
5
(que se) dóia: (que ela se) condoa Et resurrexit tértia die,
6
i: aí secundum Scripturas.
7
poila: pois a
et ascendit in caelum:
8
punhad’: atentai
9
gran sazon á: há tanto tempo sedet ad déxteram Patris.
10
(vos) aguisa: (vos) concede Et íterum venturus est cum glória,
11
tenh’eu: tenho para mim iudicare vivos et mortuos:
cuius regni non erit finis.
Et in Spíritum Sanctum,
Cânticos religiosos do Renascimento Dóminum et vivificántem:
(11., 12., 13. e 14.) qui ex Patre Filioque procedit.
Qui cum Patre et Fílio
11. simul adoratur et conglorificatur;
Benedicamus qui locutus est per Prophetas.
Et unam, sanctam, cathólicam
Benedicamus Domino. et apostólicam Ecclésiam.
Confíteor unum baptisma
Bendizei ao Senhor. in remissionem peccatorum.
Et exspecto resurrectionem mortuorum.
Et vitam venturi saéculi.
12. Amen.
Credo de Niceia

Credo in unum Deum, Creio em um só Deus


Patrem omnipotentem, Pai todo-poderoso,
factorem caeli et terrae, criador do céu e da terra,
visibílium ómnium et invisibílium. de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Et in unum Dóminum Iesum Christum, Creio num só Senhor, Jesus Cristo,
Filium Dei unigénitum Filho Unigénito de Deus,
et ex Patre natum ante ómnia saécula. nascido do Pai antes de todos os séculos;
Deum de Deo, lumen de lúmine, Deus de Deus, Luz da Luz,
Deum verum de Deo vero, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;
génitum, non factum, gerado, não criado,
consubstantialem Patri: consubstancial ao Pai.
per quem ómnia facta sunt. Por ele todas as coisas foram feitas.
Qui propter nos hómines et propter nostram E por nós, homens, e para nossa
salutem descendit de caelis. salvação, desceu dos céus;
Et incarnatus est de Spíritu Sancto e encarnou pelo Espírito Santo,
ex Maria Vírgine, no seio da Virgem Maria,
Manuel Pedro Ferreira

e se fez homem. Ai, ai, Senhor! Ai, ai, ó nosso Salvador! 173
Também por nós foi crucificado:
sob Pôncio Pilatos, Órfãos estamos feitos, sem pai, é viúva a nossa mãe.
padeceu e foi sepultado. Ai, ai...
Ressuscitou ao terceiro dia, Caiu a coroa da nossa cabeça: ai de nós, porque
conforme as Escrituras, pecámos.
e subiu aos céus, Ai, ai...
onde está sentado à direita do Pai. O que vivifica o nosso íntimo, Cristo Senhor, foi
E de novo há-de vir, em sua glória, condenado a uma morte vergonhosa.
para julgar os vivos e os mortos; Ai, ai...
e o seu reino não terá fim. A alegria deserta-nos o peito, revolve-se na dor o
Creio no Espírito Santo, nosso cantar:
Senhor que dá a vida, Ai, ai...
e procede do Pai e do Filho;
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado: 14.
Ele que falou pelos profetas. Canção de Natal
Creio na Igreja, una, santa,
católica e apóstolica. Dalha den cima del cielo,
Professo um só baptismo es el chiquito:
para a remissão dos pecados. aunque lo veis ser mortal,
E espero a ressurreição dos mortos es Infinito.
e a vida do mundo que há-de vir.
Amén. Dalha del seno del padre
es venido
a nasçer de virgen madre
13. que ha escogido,
Pranto processional por cunplir lo prometido,
el chiquito:
Heu, heu, domine, heu, heu, salvator noster! aunque lo veis ser mortal,
es Infinito.
Pupilli facti sumus absque patre, mater nostra vidua. No os espante verle estar
Heu, heu... en el suelo,
Cecidit corona capitis nostri, vae nobis, quia que alli tiene a su mandar
peccavimus. todo el cielo:
Heu, heu... vino por darnos consuelo,
Spiritus cordis nostri, Christus dominus, morte el chiquito,
turpissima condemnatus. y aunque lo veis ser mortal,
Heu, heu... es Infinito.
Defecit gaudium cordis, versa est in luctum cithara
nostra.
Heu, heu...
Antologia de Música em Portugal

174 Repertório profano do Renascimento tristes palavras diziemdo,


(15., 16., 17., 18., 19., 20., 21. e 22.) no secamdo de lhorar:
«Si nõ te duele mi muerte,
15. duelate la tierna edad
Cantiga destos ijos de tu yjo
que aurã de mi soledad».
Senhora, quem vos disser
NOTA
que vos quer bem d’amizade, 1
(ms.:) d cortado
não creaes que diz verdade 1,
que d’amores vo-llo quer.

17.
Eu lho quisera dizer,
Vilancete
mas não sõo nada fingido 2,
amtes quero ser perdido
Minina dos olhos verdes,
que mintira me valer;
porque me nam vedes?
assy que, quem vos disser
que vos quer bem d’amizade,
Vede-me, senhora,
não creaes que diz verdade,
olhai que vos vejo,
que d’amores vo-llo quer.
e que meu desejo
creçe de ora em ora;
NOTAS
1
(copista 2:) não creais que he verdade serdes crua agora
2
(ms.:) não são não he d’olhos verdes,
pois que me não vedes.
Olhai que padeço
16. por vosos amores,
Romance de D. Inês de Castro olhai minhas dores,
vede o que vos peço,
Io m’estamdo em Coimbra olhos que eu conheço,
a prazer i a bel folgar graciosos e verdes:
por los campos de Mondego, porque me não vedes?
cavalheros vi asomar; Elles verdes são,
desque io los vi, mesqino, e tem por usança
luego vi malo senhal, na cor esperança,
qu’el coraçõ me dezia e nas obras não:
lo que traíam em volumtad. vossa condição
Serqueme de mis hijuelos não he d’olhos verdes,
pera los ir a buscar, pois que me não vedes.
por que la inoçemçia delhos
los moviese a piadad.
Puseme delamte (d)el rey 1 18.
com muy gramde humildad, instrumental
Manuel Pedro Ferreira

19. 21. 175


Vilancete instrumental

Parto triste saludoso,


mis ojos, por me partir; 22.
el alma se quere morir. Romance da queda de Granada
(excerto)
Quitaste sperãça mia;
io parto triste, pençoso: Paseávase el rey moro
el alma sin alegria, por la ciudad de Granada,
el coraçon sin reposo. Cartas le fueron venidas
[Parto triste saludoso, como Al-hama era tomada,
mis ojos, por me partir; Ay, mi Al-hama!
el alma se quere morir.] Apeóse de una mula
y en un cavallo cavalga,
Mandó tocar sus trompetas,
20. sus añafiles de plata,
Cantiga Ay, mi Al-hama!
Por que lo oyesen los moros
Na fomte está Lianor que andavan por ell arada,
lavamd’o pot’ e chorãdo, Quatro a quatro, cinco a cinco,
he às amigas pregumtãdo: juntándose a gran batalla,
«Viste lá ho meu amor?» Ay, mi Al-hama!

Nenhuma lhe dá rezão


de que ela fique contemte,
porque não no ter presemte,
iso lhe dá mais payxão.
Ho caminho está olhãdo
c’os olhos que lhe dão dor,
e às que vinhão, preguntãdo:
«Viste lá ho meu amor?»
Humas vem e outras vão,
nenhuma vinha a quem
pregumte pelo seu bem,
que dele lhe dê rezão.
Estava triste, cuidando
remedio pera tal dor:
deixa a talha e, chorãdo,
vay buscar ho seu amor.
CD2

cânticos bracarenses de natal


e matinas de s. geraldo

Índice, Textos e Traduções

8
Antologia de Música em Portugal

178
CD 2

cânticos bracarenses de natal e matinas de s. geraldo

Das Vésperas de Natal bracarenses:

1. Canto da Sibila segundo a tradição da Catedral de Braga [9’ 39’’]

Da Missa do Galo bracarense:

2. Intróito Dominus dixit ad me (versão polifónica de Miguel da Fonseca) [2’ 51’’]


3. Gradual Tecum principium [7’ 22’’]
4. Epístola a Tito (com tropo) segundo o Missal de Mateus [6’ 25’’]
5. Aleluia Dominus dixit ad me [2’ 14’’]
6. Comunhão In splendoribus sanctorum (versão polifónica de Miguel da Fonseca) [1’ 14’’]

Das Matinas do Ofício de S. Geraldo de Braga*:

7. Invitatório: antífona Regem regum [. . .] sanctum suum Geraldum


com Salmo 94: Venite exsultemus [12’ 49’’]
8. Hino Geraldus gemma presulum/et gaudia [1’ 40’’]
9. Antífona I (1) Sanctus Geraldus a pueritia sua etate (1º modo)
com Salmo 1, vv. 1-3: Beatus vir qui non abiit [3’ 20’’]
10. Antífona II (9) Gaude civitas bracharensis (2º modo)
com Salmo 23 [=24], vv. 1-4: Domine est terra [3’ 13’’]
11. Antífona III (3) Beatus Dei amicus Geraldus (3º modo)
com Salmo 4, vv. 2-5: Cum invocarem [3’ 46’’]
12. Leitura I (vii) Sequentia sancti evangelii.../Sed quia longum... [2’ 28’’]
13. Responsório I (1) Honorabilem festivitatem, v/. Beatus itaque [3’ 13’’]
14. Leitura II (viii) Sumpto itaque utpote... [2’ 29’’]
15. Responsório II (9) Sanctus Dei Geraldus acuta febre, v/. Accipe [3’ 28’’]
16. Leitura III (ix) Mane autem facto... [1’ 47’’]
17. Responsório III (7) Inclitus Dei confessor lucerna, v/. Beatus es [5’ 07’’]
Manuel Pedro Ferreira

Vozes Alfonsinas: 179


Manuel Pedro Ferreira, voz e direcção
Susana Teixeira, meio-soprano
Joana Nascimento, meio-soprano
Sérgio Fontão, tenor e assistente de direcção
Gonçalo Pinto Gonçalves, tenor
João Rodrigues, tenor
Filipe Faria, tenor
João Pedro Sebastião, tenor
Victor Gaspar, barítono
Fernando Gomes, barítono
Rui Baeta, barítono
João Tiago Santos, barítono
Nuno Pólvora, baixo

Gravado na Igreja de São Quintino (Sobral de Monte Agraço) em Novembro de 2000


Produção geral e edição digital: Manuel Pedro Ferreira
Assistente musical: Joana Nascimento
Captação de som, montagem e masterização: José Fortes

* Festa celebrada a 5 de Dezembro. Entre parêntesis, é indicada a posição original, nas Matinas, dos vários
componentes litúrgicos segundo o Breviário Bracarense de 1494, que, juntamente com os antifonários
quinhentistas da Sé de Braga, do tempo do arcebispo D. Diogo de Sousa, serviu de base à presente gravação.
Todas as peças musicais, excepto o hino (cuja melodia é, de resto, tradicional), vêm ainda no Breviário
Bracarense de 1920-1922. O invitatório, as leituras hagiográficas e o último responsório integram o actual
Próprio da Arquidiocese de Braga, aprovado em 1996.
Antologia de Música em Portugal

180 TEXTOS E TRADUÇÕES DO LATIM

das Vésperas de Natal (1.)

1.
Canto da Sibila

Audite quid dixerit Sybilla: Escutai o que disse a Sibila:


— Judicii signum: tellus sudore madescet. — Sinal do Juízo: a Terra humedecerá de suor.

1. E Celo Rex adveniet per secula futurus: Do Céu virá o Rei que há-de reinar nos séculos futuros:
scilicet in carne presens, ut judicet orbem. ou seja, estará presente em carne para julgar o mundo.
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
2. Unde Deum cernent incredulus atque Daí que tanto o incrédulo como o fiel discernirão
fidelis: o Deus altíssimo com os santos, exactamente no fim dos
Celsum cum sanctis, evi jam termino in ipso. tempos.
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
3. Sic anime cum carne aderunt, quas judicet Assim, lá estarão as almas revestidas de carne, que Ele
ipse; cum jacet incultis densis in vepribus mesmo julgará, enquanto a Terra jacerá inculta sob
orbis. densas silvas.
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
4. Rejicient simulacra viri, cunctam quoque Os homens rejeitarão os seus ídolos e todas as suas
gazam. Exuret terras ignis, pontumque riquezas. O fogo queimará os solos,
polumque... os mares e os céus...
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
5. ...Inquirens; tetri portas effringet Averni. ...Subjugando; forçará as portas do sombrio Averno.
Sanctorum sed enim cuncte lux libera carni... Mas a toda a carne dos santos uma luz liberta...
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
6. ...Tradentur, sontes eternaque flamma ...Será dada, e uma chama eterna queimará os culpados:
cremabit: occultos actus retegens, tunc descobrindo seus actos ocultos, cada um dirá então os
quisque loquetur... seus...
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
7. ...Secreta, atque Deus reserabit pectora luci. ...Segredos, e Deus abrirá os peitos à luz.
Tunc erit et luctus, Também haverá então lamentos:
stridebunt dentibus omnes. todos hão-de ranger os dentes.
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
8. Eripitur solis jubar et chorus interit astris. Do Sol fugirá o brilho e o coro dos astros perecerá. O
Volvetur celum, lunaris splendor obibit. Céu se revolverá, o esplendor da Lua será extinto.
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
9. Dejiciet colles, valles extollet ab imo. As colinas serão derrubadas, do fundo se levantarão os
Non erit in rebus hominum sublime vales. Não restará nas coisas do Homem nada de alto
vel altum. nem de sublime.
Manuel Pedro Ferreira

R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo... 181


10. Jam equantur campis montes, et cerula Já se igualam os montes aos campos, e o azul do mar
ponti omnia cessabunt, tellus confracta peribit. acabará de todo, e a Terra, estilhaçada, morrerá.
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
11. Sic pariter fontes torrentur fluminaque De igual modo, os fogos secarão as fontes e os rios.
igni. Et tuba tunc sonitum tristem dimittet ab E então uma tuba emitirá um som triste
alto... do alto do...
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
12. ...Orbe, gemens facinus miserum ...Globo, lamentando os crimes dos miseráveis e os seus
variosque labores. Tartareumque chaos desvairados trabalhos. A Terra, abrindo-se, mostrará o
monstrabit terra dehiscens, caos do Tártaro,
R/ Judicii signum... R/ Sinal do Juízo...
13. Et coram hoc Domino reges sistentur ad E aí se hão-de apresentar perante o Senhor os reis todos
unum. juntos.
Decidet e celo ignisque et sulphuris amnis. Cairá do céu uma torrente de fogo e enxofre.»
R/ Judicii signum. R/ Sinal do Juízo...

da Missa do Galo (2., 3., 4., 5. e 6.)

2.
Introitus

Dominus dixit ad me: Disse-me o Senhor:


Filius meus es tu, ego hodie genui te. «Tu és o meu Filho, eu gerei-te hoje».
Ps. Quare fremuerunt gentes: Porque se enfureceram as nações
et populi meditati sunt inania? e meditaram os povos coisas vãs?
V/. Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Sicut erat in principio, et nunc, et semper, Assim como era no princípio, agora e sempre,
et in sæcula sæculorum. Amen. e pelos séculos dos séculos. Amen.

3.
Graduale

Tecum principium in die virtutis tuæ Em vós está o Criador, no dia [inaugural] do vosso poder,
in splendoribus sanctorum, no meio dos esplendores dos santos: [pois o Pai vos disse]
ex utero ante luciferum genui te. «Do meu seio, antes do amanhecer, Eu te engendrei».

V/. Dixit Dominus Domino meo: O Senhor disse a [seu Filho] meu Senhor:
sede a dextris meis: «Senta-te à minha direita,
donec ponam inimicos tuos até que faça dos teus inimigos
scabellum pedum meorum. o escabelo dos meus pés».
Antologia de Música em Portugal

182 4.
Lectio

Lectio epistole beati Pauli apostoli ad Titum. Leitura da Epístola do Apóstolo S. Paulo a Tito.
Karissimi: Gaudeamus nova cum letitia: Meus caros: Alegremo-nos com uma nova alegria:
Apparuit gratia salvatoris nostri Dei Manifestou-se a graça de Deus nosso salvador
omnibus hominibus erudiens nos. a todos os homens, ensinando-nos...
Fulget dies hodierna Refulge o dia de hoje
Nata luce sempiterna. Com a eterna luz nascida.
Nova dies, nova natalitia, Dia maravilhoso, Natal maravilhoso,
Novus agnus, nova hec sollempnia: Maravilhosos cordeiro e dia solene:
Nova decent gaudia, É tempo de novas alegrias,
Nova laudent cantica. Que cânticos novos entoem louvores!
Ut abnegantes inpietatem et secularia desideria: ... a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos,
sobrie, et juste, et pie a fim de vivermos neste mundo com sobriedade,
vivamus in hoc seculo. justiça e piedade...
Quisquis nectet sed reatum, Sejas escravo ou culpado,
Gaude tamen tanto natum: Alegra-te com o Nascido:
Erit enim sub peccato redditur O que em pecado estiver, livre será
liber sancto libertate spiritu. na liberdade do Santo Espírito.
Hoc exultet monitu Exulte com este aviso
Sive vocis sonitu. Ou com clamor de vozes!
Expectantes beatam spem et adventum glorie ... aguardando a feliz esperança e a vinda gloriosa
magni Dei salvatoris nostri Jhesus Christi. do nosso Deus e grande salvador Jesus Cristo...
Speciali gaude coro, Alegra-te e canta em coro,
Maritali juncta toro: Como em leito nupcial:
Suo Deus sempiterno filio. Deus unido ao Filho eterno.
Qui dedit semetipsum pro nobis, ... que se entregou por nós,
ut nos redimeret ab omni iniquitate: para nos remir de toda a iniquidade...
Copulet ecclesia conubio Junte-se a Igreja ao conúbio,
Viduata Domino. A enviuvada ao Senhor.
Agnus gaudet gaudio. O Cordeiro alegra-se com esta alegria.
Ut mundaret sibi populum acceptabilem, ... a fim de ganhar um povo para si aceitável,
sectatorem bonorum operum. zeloso de boas obras.
Omnis etas ergo gaudet, Todas as idades, pois, se alegram,
Sed te virgo prius laudet. Mas a ti, Virgem, é que mais louvam.
Hec loquere et exortare, Assim falai e exortai em nome de Cristo Jesus
in Christo Jhesu domino nostro. nosso Senhor.
Virgo parit filium prudentie: Pariu uma virgem um filho da Sabedoria:
Nove miratu genus hoc potentie: Este género de poder é admirável de se ver:
Partus ecce femine Eis o parto da mulher
Sine viri semine. Sem o sémen de um homem.
Manuel Pedro Ferreira

5. 183
Alleluia

Alleluia. Aleluia.
V/. Dominus dixit ad me: Filius meus es tu, ego O Senhor disse-me: «Tu és meu filho, hoje Eu te
hodie genui te. engendrei».

6.
Comunicanda

In splendoribus sanctorum, «No esplendor dos santos,


ex utero ante luciferum genui te. gerei-te do útero antes do amanhecer».

das Matinas do Ofício de S. Geraldo


(7., 8., 9., 10., 11., 12., 13., 14., 15., 16. e 17.)

7.
Invitatorium

(Antiphona ad invitatorium) (Antífona de invitatório)


Regem regum Dominum adorare debemus: qui Devemos adorar o Senhor Rei dos reis, que seu
sanctum suum Geraldum digne hodie mirificavit in santo Geraldo hoje dignamente glorificou
celum. no Céu.

(Psalmus 94) (Salmo 94)


Venite, exsultemus Domino: jubilemus Deo salutari Vinde, exultemos no Senhor, aclamemos o Deus da
nostro. Præoccupemus faciem eius in confessione, et nossa salvação. Apresentemo-nos ante a sua face
in psalmis jubilemus ei. dando graças, saudêmo-Lo com jubilosos salmos.
Regem regum dominum... Devemos adorar...
Quoniam Deus magnus Dominus et rex magnus Pois que grande Deus é o Senhor, e mais poderoso
super omnes deos. Rei que os deuses todos. Pois que não afasta de
Quoniam non repellet Dominus plebem suam, quia Si o Seu povo, porque em Suas mãos estão as
in manu eius sunt omnes fines terræ, et altitudines profundidades da terra, e os cimos dos montes
montium ipse conspicit. Lhe pertencem.
Qui sanctum suum... Que seu santo...
Quoniam ipsius est mare, et ipse fecit illud, et Pois que Dele é o mar, pois Ele o fez, e as Suas mãos
aridam fundaverunt manus eius. Venite, adoremus formaram a terra seca. Vinde, prostremo-nos em
et procidamus ante Deum, ploremus coram adoração a Deus, ajoelhemo-nos ante o Senhor
Domino qui fecit nos, quia ipse est Dominus Deus nosso criador, porque Ele é Deus nosso Senhor, e
noster, nos autem populus eius et oves pascuæ eius. nós o povo do Seu pasto e as ovelhas que Ele conduz.
Antologia de Música em Portugal

184 Regem regum dominum... Devemos adorar...


Hodie, si vocem eius audieretis: «Nolite obdurare Oxalá ouvísseis hoje a Sua voz: «Não endureçais
corda vestra, sicut in exacerbatione secundum diem vossos corações, como na altercação no deserto,
tentationis in deserto, ubi tentaverunt me patres no dia de tentação, quando os vossos pais Me
vestri: probaverunt et viderunt opera mea. provocaram: provaram-Me, e viram a Minha obra.
Qui sanctum suum... Que seu santo...
Quadraginta annis proximus fui generationi huic, Quarenta anos andei desgostado com essa
et dixi: Semper hi errant corde. geração, e disse: Estes obstinam-se em errar no
Ipsi vero non cognoverunt vias meas, quibus juravi coração. Mas eles não compreenderam os Meus
in ira mea: caminhos, portanto jurei na Minha ira: Não
Si introibunt in requiem meam». entrarão aí onde Eu repouso».
Regem regum dominum... Devemos adorar...
Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto. Sicut Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Assim
erat in principio, et nunc et semper, et in sæcula como era no princípio, agora e sempre, e por
sæculorum. Amen. todos os séculos dos séculos. Amén.
Qui sanctum suum... Que seu santo...
Regem regum dominum... Devemos adorar...

8.
Hymnus

Geraldus gemma præsulum Geraldo, jóia dos bispos


et gaudia sacerdotum, e gáudio dos sacerdotes,
qui in sanctorum numero a quem o Senhor quis contar
assumptus est a Domino: no número dos seus santos;
Patronus noster nobilis, Nosso mui nobre patrono,
cæli turbis amabilis: dilecto da turba celeste:
Geraldus cum lætitia Geraldo, com alegria,
hodie intrat in æthera. hoje entra nos altos céus.
Ipse pro nobis Domino, Que ele interceda por nós,
intercedat cum gaudio: com júbilo, junto de Deus;
ut impetremus gratiam, e nós, p’ra nossos pecados
et a peccatis veniam. peçamos graça e perdão.
Sit Patri Deo gloria Glória seja dada ao Pai
qui digne pensans omnia, que, justo, tudo pondera
merentibus dans præmia e aos bons dá o seu prémio
et in æterna patria. Amen. e a pátria eterna. Amen.
Manuel Pedro Ferreira

9. Quia ipse super maria fundavit eum * 185


Antiphona et super flumina præparavit eum.
Quis ascendit in montem Domini, *
Sanctus Geraldus a primitiva sua etate altari beati aut quis stabit in loco sancto eius?
petri oblatus est perpetuo dei servicio. Innocens manibus et mundo corde; *
qui non accepit in vano animam suam †
PSALMUS 1, 1-3 nec iuravit in dolo proximo suo.
Beatus vir qui non abiit in consilio impiorum †
et in via peccatorum non stetit * et in cathedra Alegra-te, ó cidade de Braga, com um tal patrono,
pestilentiæ non sedit; que Deus permitiu que em ti fosse sepultado, pelo
sed in lege Domini volúntas eius, * qual inúmeros milagres obtiveste de Deus.
et in lege eius meditabitur die ac nocte.
Et erit tamquam lignum quod plantatum est secus Do Senhor são a Terra e sua plenitude, a esfera
decursus aquarum * quod fructum suum dabit in terrestre e do universo, e todos os que nela
tempore suo: et folium eius non défluet * et omnia habitam. Porque Ele a fundou sobre os mares, e a
quæcumque faciet prosperabúntur. colocou sobre os rios.
Quem subirá ao monte do Senhor? Quem
São Geraldo, desde tenra idade, foi oferecido permanecerá no Seu lugar santo?
no altar do bem-aventurado Pedro para serviço O limpo de mãos e puro de coração, que não
perpétuo de Deus. entrega a alma à vaidade, nem perjura para
enganar o próximo.
Bem-aventurado o homem que não segue o
conselho dos ímpios nem se detém no caminho
dos pecadores, e tampouco se senta na cátedra da 11.
maledicência; antes, na lei do Senhor põe o seu Antiphona
enlevo, e sobre ela, dia e noite, medita.
É como a árvore plantada junto ao curso de água, Beatus Dei amicus Geraldus, qui inter confessores
a qual dá o seu fruto no tempo oportuno: ceteros dignitatem obtinuisti demonia a corporibus
a sua folhagem não murcha e tudo quanto faz eiicere.
redunda em bem.
PSALMUS 4, 2-5
Cum invocarem exaudivit me Deus iustitiae meæ: *
10. in tribulatione dilatasti mihi.
Antiphona Miserere mei, * et exaudi orationem meam.
Filii hominum, usquequo gravi corde? * ut quid
Gaude civitas bracharensis cum tanto patrono dilígitis vanitatem et quæritis mendacium?
quem Deus in te sepeliri permisit, pro quo immensa Scitote quoniam mirificavit Dominus sanctum suum:
miracula a Deo obtinuisti. * Dominus exaudiet me cum clamávero ad eum.
Irascimini, et nolite peccare: † quæ dícitis
PSALMUS 23 (24), 1-4 in cordibus vestris * et in cubilibus vestris
Domini est terra et plenitudo eius: * conpungimini.
orbis terrarum et universi; † qui habitant in eo.
Antologia de Música em Portugal

186 Bem-aventurado Geraldo, amigo de Deus, que Continuação do Santo Evangelho segundo Lucas
recebeste, entre todos os demais confessores, a (Lc. 12, 35-36)
dignidade de expulsar dos corpos os demónios.
(Naquele tempo, disse o Senhor Jesus aos seus
Sempre que Vos invoque, atendei-me, ó Deus da discípulos:)
minha justiça; nas angústias Vós me relaxastes. «Estejam cinjidas vossas cinturas e as candeias
Tende piedade de mim e ouvi a minha oração. acesas nas vossas mãos. Sede como homens que
Filhos dos homens, até quando tereis o coração esperam o seu senhor quando este volte das
pesado? Porque amais a vaidade e buscais a mentira? bodas: para lhe abrirem logo a porta, mal ele
Sabei que o Senhor fez maravilhas ao que lhe é chegar e bater.»
querido: que Ele me escuta quando O invoco. Dado que seria demorado enumerar os muitos,
Tremei, pois, e não pequeis: no repouso dos grandes e insignes milagres que Deus realizou
vossos leitos, afligi-vos, meditando em vosso devido a São Geraldo, contaremos brevemente,
coração. omitindo as maravilhosas acções que, por seu
intermédio e sua causa, Deus fez na sua vida,
como este homem santo acabou os seus dias.
12. Este santo homem, apesar de saber, por revelação
Lectio I do Espírito Santo, que estava próximo o fim da
sua vida, decidiu, mesmo assim, visitar a gente
Sequentia sancti evangelii secundum Lucam. rude de um lugar ao qual, de tão inóspito, não
fora ainda. Preferiu assim estar exposto, entre
In illo tempore: Dixit Dominus Iesus discipulis suis: as escarpas dos montes, à degradação do seu
Sint lumbi vestri precincti, et lucerne ardentes corpo, prestes a morrer, a abandonar aos lobos
in manibus vestris. Et vos similes hominibus devoradores tão grande multidão de gente
expectantibus dominum suum quando revertatur grosseira e simples.
a nuptiis: ut cum venerit et pulsaverit, confestim
aperiant ei.
Sed quia longum esset enumerare: quot et quanta 13.
Deus propter ipsum miraculorum fecit insignia, Responsorium
omissis: quae per ipsum et propter ipsum Deus fecit
in vita sua miraculis, quis fuerit finis sancti viri Honorabilem festivitatem diei hodierne corde et
breviter pertractemus. animo devote veneremur, qua beatus Geraldus
Sanctus itaque vir licet finem suæ vitæ Spiritu Christi confessor ex hoc seculo letus migravit ad
revelante adesse intelligeret: quamdam tamen celos. Et cum Christo regnat in eternum.
gentem incultam ad quam propter asperitatem V/. Beatus itaque Geraldus peracto sue vite tempore
locorum nondum venerat: visitare proposuit. celorum agminibus committatur.
Mallens inter abrupta montium morituri corporis
resolutionem pati: quam multitudinem tanti populi De alma e coração, veneremos devotamente a
insulsam et incultam lupis relinqueret devorandam. honrosa festividade deste dia, pela qual o bem-
aventurado Geraldo, confessor de Cristo, subiu
contente deste mundo aos céus. E com Cristo
reina eternamente.
Manuel Pedro Ferreira

V/. E assim o beato Geraldo, no termo da sua vida várias vezes levantar-se com toda a energia do seu 187
terrena, se juntou às hostes celestes. espírito, de modo nenhum conseguiu vencer a
extrema debilidade do seu corpo.

14.
Lectio II 15.
Responsorium
Sumpto itaque utpote bonus pastor baculo: ad
pascendas oves, petiit loca dicta ubi ecclesias Sanctus Dei Geraldus acuta febre preventus
constitutas dedicando: populosque confirmando, dissolutionem corporis sui et obitum ante predixit.
tota die ieiunus permanens talis redibat ad Et astare vidit angelos Dei diadema speciosum in
hospitium: quod omnes eum sequenti die manibus habentes et dicentes:
surrecturum nullatenus æstimabant. V/. Accipe hanc coronam quia die sequenti ea
Ipse autem carnem spiritui non spiritum carni nostris manibus es coronandus.
assuetus subicere: ad quemdam locum, qui Bornas
dicitur, iam febre correptus: pro dedicanda ecclesia Geraldo, santo de Deus, avisado por uma febre
ibidem constituta, languorum dissimulans: cum alta sobre a dissolução do seu corpo, predisse a
magna venit multitudine, atque celebratis ex more iminência da morte. E viu que os anjos de Deus
dedicatione ipsius ecclesiæ et confirmatione ingentis estavam no alto tendo nas mãos um diadema
populi: qui ad ipsam consecrationem confluxerat: precioso e diziam:
morbus invaluit: ita quod licet toto collectus spiritu «Recebe a coroa com que amanhã, por nossas
sæpe conaretur surgere: nequaquam potuit: viribus mãos, serás coroado.»
corporis destitutus.

Assim, como bom pastor, tomando o seu báculo 16.


para apascentar as ovelhas, dirigiu-se para os Lectio III
referidos lugares, a fim de proceder à dedicação
das igrejas ali construídas e administrar o Mane autem facto: vir Dei, recepto rursus
sacramento do Crisma, permanecendo em jejum sacramento corporis et sanguinis Iesu Christi:
todo o dia e regressando tão enfraquecido à erecta manu cunctis benedixit astantibus: eosque
hospedagem, que ninguém pensava vê-lo de novo crucis sanctificavit signaculo: et ad pacis osculum
levantado no dia seguinte. cunctos singulatim recipiens: in virtute obedientiæ
Ele, porém, habituado a sujeitar a carne ao præcepit omnibus: ne aliquis in exitu animæ suæ
espírito e não o espírito à carne, partiu para clamoribus lacrimosis perstreperet. Sed orantes
certa localidade chamada Bornes [de Aguiar], já et laudantes Dominum, ipsam animam de
cheio de febre mas dissimulando a fraqueza, para corporis extractam ergastulo, devotis ei precibus et
a dedicação da igreja aí construída; lá chegou orationibus commendarent.
acompanhado de grande multidão; e, tendo
celebrado conforme o costume a dedicação da Na manhã seguinte, o homem de Deus, tendo de
igreja e administrado a Confirmação ao povo novo recebido o sacramento do Corpo e Sangue
imenso que afluíra para a consagração, agravou- de Jesus Cristo, ergueu a mão para abençoar
-se a enfermidade a tal ponto que, tentando todos os presentes santificando-os com o sinal da
Antologia de Música em Portugal

188 Cruz. E tendo de todos recebido, cada um por sua


vez, o abraço da paz, apelando para a virtude da
obediência, lhes proibiu que, quando a sua alma
partisse, rompessem em clamores lacrimejantes,
mas antes, orando e louvando ao Senhor, lhe
encomendassem a alma liberta do cárcere do
corpo com devotas preces e orações.

17.
Responsorium

Inclitus Dei confessor lucerna ardens ante Deum


hodie coronatus celos ingreditur cum quo celestes
cohortes ovant. Ubi sine fine regnat cum Christo
gemma et vita prelatorum.
V/. Beatus es vir Dei qui pro terrenis celestia
possides et in angelorum collegio computatus es.

O ilustre confessor de Deus, lâmpada acesa na


presença de Deus, entra hoje coroado nos céus,
dando azo à ovação das cortes celestes. Onde para
sempre reina com Cristo, ornamento e vida dos
prelados.
Bem-aventurado é o homem de Deus que em vez
de bens terrenos possui os celestes e é admitido na
assembleia dos anjos.
antologia
de música em portugal
na Idade Média e no Renascimento

Volume 2
Antologia Musical
projecto financiado por
DGARTES (Direcção-Geral das Artes) / MC (Ministério da Cultura)

edição
Arte das Musas
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

com o apoio de
Fundação para a Ciência e Tecnologia, FEDER-Programa Operacional Ciência e Inovação 2010:
U0693/2004, projecto plurianual POCTI/0693/2003
Cafés Delta

colaboração especial de:


Cabido Metropolitano e Primacial de Braga
CESEM/FCSH-UNL, projecto POCTI/EAT/46895/2002

agradecimentos
Academia Militar, Arquivo da Universidade de Coimbra, Arquivo Distrital de Braga, Arquivo Distrital
de Évora, Arquivo Distrital de Viseu, Arquivo Municipal de Braga, Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, Biblioteca da Escola de Belas Artes de Paris, Cabido da Catedral de Tuy, Misericórdia de Arraiolos,
Museu de Arte Sacra de Arouca, Museu da Música, Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, Torre do
Tombo

e ainda
Bernadette Nelson, João Pedro d’Alvarenga, João Vaz, José Fortes, José Sacramento, Luís Santos, Owen Rees,
Stephen Parkinson, Tess Knighton

2
manuel pedro ferreira

Introdução, Coordenação e Direcção Musical

antologia
de música em portugal
na Idade Média e no Renascimento

Volume 2
Antologia Musical

CESEM
Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento

Introdução, coordenação e direcção musical: Manuel Pedro Ferreira


Design gráfico, paginação e capa: Filipe Faria/Arte das Musas
Produção projecto: Arte das Musas

© Arte das Musas, 2008


Rua da Páscoa, 87 1250-178 Lisboa
Tel. 210995674
Email: mail@artedasmusas.com
Web: www.artedasmusas.com

Impressão: M2 Artes Gráficas


Primeira edição: Setembro 2008
Depósito legal n.º
ISBN
Código de barras:

Colecção: MU arte

4
edições:
MPF: Manuel Pedro Ferreira
SP: Stephen Parkinson
JPA: João Pedro d’Alvarenga
NM: Nuno Miranda
BN: Bernadette Nelson
OR: Owen Rees
TK: Tess Knighton
SSR: Sílvia Seixas Rodrigues
JV: João Vaz

musicografia:
(1) Luís Santos
(2) José Sacramento
(3) Vera Inácio
(4-2) Sérgio Peixoto e José Sacramento
(5) João Pedro d’Alvarenga
(6) Sílvia Seixas Rodrigues
(7-2) Owen Rees e José Sacramento
(8) João Vaz
índice

Apresentação 11

monodia sacra

1 Responsório visigótico para o Ofício de Defuntos, Dies mei transierunt (MPF) (1)

2 Três antífonas visigóticas para o Lava-Pés de Quinta-feira Santa (MPF) (1)

3 Canto da Sibila (versão bracarense) (MPF) (2)

4 Versus Dum pater familias, de Santiago de Compostela (MPF) (2)

5 Epístola de S. Paulo a Tito, tropada (MPF) (2)

6 Invitatório para a Festa de S. Geraldo de Braga, Regem regum Dominum (MPF) (2)

7 Pranto processional Heu heu domine (MPF) (2)

monodia profana medieval

8 Martin Codax, cantiga d’amigo Ondas do mar de Vigo (MPF) (3)

9 Martin Codax, cantiga d’amigo Mia irmana fremosa (MPF) (3)

10 Martin Soarez, cantiga de maldizer Pero Perez se remeteu* (MPF) (2)

11 D. Dinis, cantiga d’amor Pois que vos Deus, amigo, quer guisar (MPF) (2)

12 D. Dinis, cantiga d’amor Non sei como me salv’a mha senhor (MPF) (2)

13 Juan Ruiz, troba caçurra Mis ojos non verán luz* (MPF) (2)

* Adaptação: a música aparece na respectiva fonte manuscrita associada a outro texto,


ou a diferente versão do mesmo texto
monodia religiosa medieval em língua vulgar

14 Alfonso X, cantiga de miragre: A ira dos mouros de Faro (CSM nº 183) (MPF/SP) (2)

15 Alfonso X, cantiga de miragre: A cura de Mateus de Estremoz (CSM nº 223) (MPF/SP) (2)

16 Alfonso X, cantiga de loor (CSM nº 40) (MPF/SP) (2)

17 André Dias, loa Sam Lourenço martyr* (MPF) (2)

primeiras polifonias e polifonia simples

18 Aymericus Picaudi, hino Ad honorem regis summi (MPF) (2)

19 Hino a S. Bernardo, Exultat celi curia (MPF) (4-2)

20 Credo dos jerónimos de Évora (MPF) (2)

21 Benedicamus Domino cisterciense (ANTT) (MPF) (2)

22 Ladaínha Pater de caelis (BN) (2)

23 Dic nobis Maria (BN) (2)

24 Canção de Natal: Dalha den cima del cielo (MPF) (2)

canção profana (séc. xvi)

25 Anónimo, Senhora quem vos disser, cantiga a 1. (MPF) (2)

26 Anónimo, Foyse gastando a esperança, cantiga a 3. (MPF) (2)

27 Anónimo, Perdi esperança, vilancete a 1 (MPF) (2)

28 Anónimo, romance de D. Inês de Castro, Io m’estando em Coimbra (MPF) (2)

29 Anónimo, Cuidados meus tão cuidados, vilancete a 3 (MPF) (2)

30 Anónimo, Minina dos olhos verdes, vilancete a 3 (MPF) (2)

31 Anónimo, Parto triste saludoso, vilancete a 3 (MPF) (2)

32 Luís Milán, vilancete Um cuydado, para voz e vihuela (NM) (2)


polifonia sacra (séc. xvi)

33 Pero do Porto (Escobar), Stabat mater dolorosa (JPA) (5)

34 Pero do Porto (Escobar), motete Clamabat autem mulier (SSR) (6)

35 Pero do Porto (Escobar), motete Fatigatus Iesus (JPA) (5)

36 Anónimo, motete Quanti mercenarii (BN) (2)

37 Vasco Pires, Magnificat (OR) (5)

38 Anónimo, motete Si pie Domine (OR) (7-2)

39 Damião de Góis, motete Surge, propera (MPF) (2)

40 Heliodoro de Paiva: Salve regina (OR) (7-2)

41 Miguel da Fonseca, Intróito Dominus dixit ad me, para a Missa do Galo (JPA) (5)

42 Miguel da Fonseca, Comunhão In splendoribus sanctorum, para a Missa do Galo (JPA) (5)

43 Anónimo de Coimbra, Lamentações de Jeremias (JPA) (5)

44 Bartolomeu Trosilho, motete Dies mei transierunt (JPA) (5)

45 Aires Fernandes, Benedicamus Domino (OR) (7-2)

46 Aires Fernandes, motete Circumdederunt me (JPA) (5)

47 Anónimo, hino Pange lingua (JPA) (5)

48 António Carreira, Stabat mater (JPA) (5)

música instrumental (séc. xvi)

49 Pero do Porto (Escobar), Clamabat autem mulier (JPA) (5)

50 Juan de Anchieta, Congratulamini mihi a 3 (TK) (2)

51 Gonzalo de Baena, Si dedero a 3 (TK) (2)

52 António de Baena, Sanctus (& Osanna) a 4, da Missa Sola la daré mi vida (TK) (2)

53 Cristóbal de Morales, In diebus illis a 4 (TK) (2)

54 Flecha/arr. Fuenllana, duo Si amores me han de matar,


e contraponto de Fuenllana sobre mesma melodia (NM) (2)

55 António Carreira, Fantasia em Ré, para órgão (JV) (8)

56 António Carreira, Fantasia em Lá-Ré, para órgão (JV) (8)


apresentação

A presente antologia de música reúne uma variedade de repertório conhecido ou composto entre
o século VII e o final do reinado de D. Sebastião (1578) no território que hoje é Portugal. Organiza-
-se pela confluência das categorias musicais (monodia, polifonia; vocal, instrumental), dos contextos
sócio-culturais em que o repertório foi executado (sacro, profano; eclesiástico, palaciano) e de limites
cronológicos mais ou menos abrangentes. Assim, as secções «Monodia sacra» (nºs 1-7) e «Primeiras
polifonias e polifonias simples» (nºs 18-24), no âmbito eclesiástico, abrangem todo o período considerado,
enquadrando as secções «Monodia profana medieval» (nºs 8-13) e «Monodia religiosa medieval em
língua vulgar» (nºs 14-17), que são definidas pelo ambiente laico e pela restrição cronológica a dois
séculos, entre 1250 e 1450. As três últimas secções, «Canção profana» (nºs 25-32), «Polifonia sacra» (nºs
33-48) e «Música instrumental» (nºs 49-56) têm como horizonte temporal os primeiros três quartos do
século XVI, contendo as duas primeiras, contrariamente à última, peças destinadas ao canto, no primeiro
caso com textos em língua vulgar e tema profano e no segundo com textos latinos e tema religioso.
A secção «Monodia sacra» inclui duas peças inéditas (nºs 5 e 6), uma versão desconhecida (nº 3) e
novas leituras de outras três peças (nºs 1, 2 [3.ª antífona] e 7). Nas secções «Monodia profana medieval» e
«Monodia religiosa medieval em língua vulgar» incluem-se novas leituras musicais de três cantigas (nºs 8,
9 e 15) e três propostas inéditas de adaptação de melodias medievais a textos cantados que nos chegaram
sem música (nºs 10, 13, 17); quatro composições recebem também uma nova edição textual (nºs 12, 14,
15, 16). A inclusão, sob o título «Primeiras polifonias e polifonias simples», de peças medievais até há
pouco desconhecidas ou sujeitas a interpretações equivocadas e de peças mais tardias que dificilmente
se enquadram nos cânones eruditos é, em si mesma, uma novidade historiográfica, que vem na linha
da recente valorização, na musicologia internacional, de modos de fazer música algo arcaicos ou
informais. Esta secção inclui três peças absolutamente inéditas (nºs 20, 22 e 23) e três outras que apenas
se encontram em publicações de circulação restrita (nºs 18, 19 e 21). Na secção «Canção profana (século
XVI)» apresentam-se leituras por vezes distintas das que nos são são oferecidas nas edições disponíveis,
havendo sempre o cuidado de dispôr os textos completos sob cada uma das vozes, nos casos em que a
textura é polifónica. Na secção «Polifonia sacra (século XVI)» incluem-se nove peças inéditas (nºs 36, 40
a 45, 47 e 48) e uma que estava apenas parcialmente publicada (nº 37). Na secção «Música instrumental»
incluem-se cinco versões ou peças inéditas (nºs 49 a 53) provenientes da Arte novamente inventada pera
aprender a tanger de Gonçalo de Baena (Lisboa, German Galharde, 1540), entre as quais uma intabulação
11
do mais célebre moteto de Pero do Porto (Escobar) e uma composição rara de Cristóbal de Morales, além
de novas leituras de duas fantasias para tecla atribuídas a António Carreira, o Velho. A edição, a partir
dos impressos originais, das peças de Milán (nº 32) e Fuenllana (nº 54) teve em conta a possibilidade de
se tocar na guitarra moderna a música aí publicada em tablatura para vihuela.
A diversidade dos critérios editoriais e das grafias musicais, correspondendo ao número de diferentes
editores, e, evidentemente, à natureza e à época dos repertórios e das notações, explica-se pelos prazos
impostos pela principal entidade patrocinadora e pelo carácter cooperativo deste volume, que se constituiu
na base de materiais de trabalho individuais oferecidos para inclusão nesta publicação por João Pedro
d’Alvarenga, Manuel Pedro Ferreira, Tess Knighton, Owen Rees e João Vaz, aos quais acresceram novas
edições, musicais ou literárias, especialmente preparadas pelos signatários e ainda por Nuno Miranda,
Bernadette Nelson, Stephen Parkinson e Sílvia Seixas Rodrigues.

Manuel Pedro Ferreira (coordenação)


e João Pedro d’Alvarenga
antologia musical

8
1. Responsório visigótico
para o Ofício de Defuntos

ed.

15
2. Três antífonas visigóticas
para o Lava-Pés de 5ª-feira Santa

ed.

16
3. Canto da Sibila

17
Canto da Sibila

18
4. Versus Dum pater familias

19
Versus Dum pater familias

20
5. Epístola de S. Paulo
com tropo Gaudeamus

21
Epístola de S. Paulo

22
6. Invitatório para a Festa
de S. Geraldo de Braga

23
Invitatório para a Festa de S. Geraldo de Braga

24
Invitatório para a Festa de S. Geraldo de Braga

25
7. Pranto processional
Heu, heu, Domine

26
8. Cantiga d’amigo
Ondas do mar de Vigo

9. Cantiga d’amigo
Mia irmana fremosa

27
10. Cantiga de maldizer

28
11. Cantiga d’amor
Pois que vos Deus, amigo, quer guisar

29
12. Cantiga d’amor
Non sei como me salv’a mha senhor

30
13. Troba caçurra
Mis ojos non verán luz

31
14. O milagre de Faro

32
O milagre de Faro

33
15. Um milagre em Terena

34
16. Cantiga de loor

35
17. Loa a S. Lourenço

36
18. Hino Ad honorem regis summi

37
19. Hino Exultat celi curia

38
Hino Exultat celi curia

39
Hino Exultat celi curia

40
20. Credo dos jerónimos de Évora

41
Credo dos jerónimos de Évora

42
21. Benedicamus Domino

22. Letania

43
23. Dic nobis Maria

44
24. Canção de Natal

45
25. Cantiga Senhora, quem vos disser

46
26. Cantiga Foi-se gastando a esperança

47
Cantiga Foi-se gastando a esperança

48
Cantiga Foi-se gastando a esperança

49
27. Vilancete Perdi esperança

50
28. Romance de D. Inês de Castro

51
29. Vilancete Cuidados meus tão cuidados

52
Vilancete Cuidados meus tão cuidados

53
30. Vilancete Minina dos olhos verdes

54
Vilancete Minina dos olhos verdes

55
31. Vilancete Parto triste saludoso

56
Vilancete Parto triste saludoso

57
32. Un cuydado que mia vida ten (I)

58
32. Un cuydado que mia vida ten (II)

59
33. Stabat mater dolorosa

60
Stabat mater dolorosa

61
Stabat mater dolorosa

62
Stabat mater dolorosa

63
34. Clamabat autem mulier

64
Clamabat autem mulier

65
Clamabat autem mulier

66
Clamabat autem mulier

67
35. Fatigatus Iesus

68
Fatigatus Iesus

69
Fatigatus Iesus

70
Fatigatus Iesus

71
Fatigatus Iesus

72
36. Motete
Quanti mercenarii

73
Motete Quanti mercenarii

74
37. Magnificat

75
Magnificat

76
Magnificat

77
Magnificat

78
Magnificat

79
Magnificat

80
Magnificat

81
38. Motete Si pie Domine

82
Motete Si pie Domine

83
Motete Si pie Domine

84
Motete Si pie Domine

85
Motete Si pie Domine

86
Motete Si pie Domine

87
39. Motete Surge, propera

88
Motete Surge, propera

89
Motete Surge, propera

90
Motete Surge, propera: secunda pars

91
Motete Surge, propera: secunda pars

92
Motete Surge, propera: secunda pars

93
40. Salve regina

94
Salve regina

95
Salve regina

96
Salve regina

97
Salve regina

98
41. Dominus dixit ad me
[Introitus]

99
Dominus dixit ad me [Introitus]

100
Dominus dixit ad me [Introitus]

101
Dominus dixit ad me [Introitus]

102
Dominus dixit ad me [Introitus]

103
Dominus dixit ad me [Introitus]

104
42. In splendoribus sanctorum
[Comunicanda]

105
In splendoribus sanctorum [Comunicanda]

106
In splendoribus sanctorum [Comunicanda]

107
43. Incipiunt Lamentationes
Ieremiae Prophetae
ANÓNIMO

108
Lamentationes Ieremiae Prophetae

109
Lamentationes Ieremiae Prophetae

110
Lamentationes Ieremiae Prophetae

111
Lamentationes Ieremiae Prophetae

112
Lamentationes Ieremiae Prophetae

113
Lamentationes Ieremiae Prophetae

114
Lamentationes Ieremiae Prophetae

115
Lamentationes Ieremiae Prophetae

116
Lamentationes Ieremiae Prophetae

117
Lamentationes Ieremiae Prophetae

118
Lamentationes Ieremiae Prophetae

119
Lamentationes Ieremiae Prophetae

120
44. Dies mei transierunt

121
Dies mei transierunt

122
Dies mei transierunt

123
45. Benedicamus Domino

124
46. Circumdederunt me

125
Circumdederunt me

126
Circumdederunt me

127
Circumdederunt me

128
Circumdederunt me

129
47. Pange, lingua, gloriosi

ANÓNIMO

130
Pange, lingua, gloriosi

131
Pange, lingua, gloriosi

132
48. Stabat mater dolorosa

133
Stabat mater dolorosa

134
Stabat mater dolorosa

135
49. Clamabat autem mulier cananea

136
Clamabat autem mulier cananea

137
Clamabat autem mulier cananea

138
50. Congratulamini mihi omnes

139
Congratulamini mihi omnes

140
Congratulamini mihi omnes

141
51. Si dedero

142
52. Missa Sola la Daré mi Vida
Sanctus & Hosanna

143
Missa Sola la Daré mi Vida: Sanctus & Hosanna

144
Missa Sola la Daré mi Vida: Sanctus & Hosanna

145
53. In diebus illis

146
In diebus illis

147
54. Si amores me han de matar (I)

148
54. Si amores me han de matar (II)

149
55. Fantasia em Ré

[António Carreira]

150
56. Fantasia em Lá-Ré

[António Carreira]

151
Fantasia em Lá-Ré

152

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