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Pensamentos
guerreiros contra
a colonialidade
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Apresentação
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Exu nos cria, 30
Exu nos sustenta Nas bandas de cá,
umbanda
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Por uma filosofia 32
do ser-tão Uma mulher Guarani
Nhandewa
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Em torno de um 34
pensamento enterreirado A Jurema e a filosofia
do aprender sem ensinar
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“É preciso aprender a 37
voltar para casa” Quem não pode com o
pote não pega na rudia
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Filosofia com(o) 39
sotaque: patoás, patuás e Território de
Jean- amarrações ancestralidade: derivas e
Baptiste
Debret, quintais
Chefe 28
Camacan Corpo-herança, 41
Mongoyo,
1835 corpo bio-gráfico A rua é nóix
dossiê
Apresentação
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A
figura de Exu sempre foi a de um mais velho cuidadoso e atencioso no cuidar de
parente muito próximo por quem seus filhos. Em nosso olhar e percepção, não
aprendi a ter afeto e respeito, tal havia questionamento, ele era nosso “Voinho”
como um mais velho que me como minha mãe assim disse, e a palavra tinha
orientava nos caminhos da vida. Em minha significação, pois tínhamos pertencimento em
infância, esse orixá tinha a incumbência de nossa criação de axé, ele não era um estranho
nos olhar (cuidar), enquanto minha mãe ia a nós, pois a pedra se comunicava com minha
trabalhar, era a ele que minha mãe delegava mãe e ele era seu pai.
as recomendações quanto a cuidar de seus fi Três filhos pretos em casa sozinhos: era
lhos enquanto ela estava na casa da madame essa a realidade que vivíamos, era essa a rea
como empregada doméstica. Seu tempo de lidade daquela mulher preta. Desencantada
cuidar de seus filhos nem sempre era compa com a figura masculina que abandonou a ela
tível com a função que exercia (somente Exu e aos filhos, somente Exu era confiável, Exu
era confiável para o cuidado de seus filhos). era seu pai, Exu era o avô de seus filhos. Mui
Mulher sozinha, provedora de sua prole, sem tas vezes, mesmo com tantas recomendações
ROBERTO REIS/ARQUIVO NACIONAL
homem que fizesse esse papel. para que ficássemos em casa e não aprontás
Em Exu ela confiava, e dava as recomenda semos, fazíamos tudo ao contrário (éramos Loja de
ções aos filhos: “Não aprontem, pois seu avô netos de Exu), transgredíamos as normas. artigos para
umbanda
está tomando conta de vocês”. Aquela pedra Mas no que se refere às normas aos seus no Rio de
em um “caqueiro” atrás da porta se materia netos, Exu não deixava barato; contava tudo Janeiro,
lizava em nosso avô, a pedra era um parente o que tínhamos feito de errado a minha em 1969
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F
dando forças àquela mulher preta para supe prontamente me respondeu, “Meu senhor,
rar as adversidades, que eram muitas. meus filhos estão há três dias sem ter o que
Hoje minha mãe não está mais fisicamente comer, o senhor acha que eu irei dizer que não oi assim que eu vim ao mundo, sob Os saberes do sertão são os fios que bor
conosco, mas a cada vez que acontecem as festi quero? Seus orixás estão matando a nossa luz de lamparina, entre o finzinho dam a filosofia do ser-tão, uma filosofia do pé
vidades de “Voinho”, através dele ela se faz viva fome, estou na rua pedindo e ninguém me so de uma tarde e o início de uma noite de no chão, mesmo quando estamos com a cabe
em nossas memórias que falam na linguagem correu, foi aqui que eu tive o socorro”. Naquele quarta-feira... com a força de minha ça nas nuvens, uma filosofia da cabaça na ca
de Exu, assim como nas comidas de Elegbara momento eu senti a força de Exu e voltei ao mãe e a sabedoria ancestral de uma parteira, beça, do banho de cuia, das roupas lavadas na
(Aquele que Tem Poder), em seus cânticos. Nos tempo de necessidades que vivi com minha minha Mãe Chica... Meu pai tocava fogo no beira do rio, dos banhos de açude, da lampari
sas danças pra ele, seus ritmos, nossos corpos mãe e meus irmãos, quando Exu sempre dava mundo, como ele costuma dizer, quando foi na alumiando o mundo, do lampião, do fogão
são como oferendas, nossos corpos falam a fala um jeito para nos prover. chamado na roça que limpava para o plantio... a lenha, do leite quentinho direto da teta da
de Exu. Hoje somos adultos, bem criados por Ele, de novo, estava cuidando de uma fa As sabedorias ancestrais de mulheres que nos vaca, da fruta no pé, dos vaqueiros, das ben
Exu, e, quando damos de comer a ele, dizemos mília, onde mais uma vez a mulher tem Exu aparavam quando nascíamos, as sabedorias zedeiras, das contações de histórias em volta
que quem dá de comer a Exu sem pedir nada como guardião de sua família. Exu é o meu ancestrais no manuseio das ervas medicinais, de fogueiras nos terreiros... Nossos terreiros,
em troca não passa fome, pois Exu movimenta Voinho, Exu é o Voinho de todos/as que en do barro, do couro, do milho, do feijão, do al lugar onde aprendemos a correr, cair e levan
rá seu Ogó (bastão) e fará a comida chegar. contram em sua boca farta a comida que sa godão, do arroz, do gado, das galinhas, dos ca tar, lugar de festas diversas, de culto e de missa,
Um certo dia estava eu na Roça com alguns ciará suas vulnerabilidades, mas Exu nos testa. potes... tudo isso tece meu pensar, meu filoso lugar da brincadeira de velho, como ensinou
filhos de santo e chegou uma jovem senhora Aquela comida que estava congelada não se far desde o meu sertão do Inhamuns (Ceará), meu sobrinho (Menino Velho), aos quatro anos,
pedindo comida e dizendo que não tinha ria consumida naquela hora, e já que iríamos meu Pau Preto, minha filosofia do ser-tão. ao meu pai (Velho Menino), já com seus 68:
como alimentar seus sete filhos, fiquei muito fazer outro dia, Exu mandou aquela mãe em Minha mãe ensinou-me/ensina-me a ler “...brincadeira de velho é ficar parado olhando
triste com sua situação e dos seus filhos, na nossa porta naquele momento, e aquele ali a lua, minha vó Genuina (in memoriam) me o tempo!”. Sabedoria do tempo, de saber ouvi
mesma hora saí pegando o que tinha na des mento teria seu sentido saciador, ao saciar ensinou e segue ensinando, pela voz do meu -lo, senti-lo...
pensa junto com um filho de Xangô. De casa bocas e barrigas, bocas de filhos, boca de mãe. pai, a ler os pássaros... são leituras contínuas Talvez seja esse o sentimento que perpas
de candomblé ninguém pode sair sem comer, Exu Enugbarijo (a Boca do Mundo). e nem sempre traduzidas em palavras. sa a existência de quem nasceu com o pé
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E
É cheia de artimanhas e encantos! popular e ancestral dos sertões nos ensina a
A natureza ensina que germinar necessi pertencer à própria vida, à natureza, a ser ter
ta de silêncio e tempo... Assim, com a escuta ritório, pois somos território... corpos territó xperimentamos o hábito de lidar questioná-la a partir das heranças africanas e
sensível aprendemos sobre nós, sobre nossas rios e ancestrais. É filosofia da terra, a grande com certa caracterização da filo indígenas que os terreiros acolheram. Gosta
histórias ouvindo histórias... Memórias que mãe, o útero da vida... é feminina! É filosofia sofia como um modo de pensar ria de provocar esse questionamento com base
dão sentido à nossa existência... é o movi encantada e ancestral... enraizamento e po que tem vínculos com a abstração, em um ethos macumbeiro específico que, em
mento Sankofa: “Quando não souberes para tencialização da vida! com a criação de conceitos que, não raro, são bora visível também em outras experiências
onde ir, olha pra trás e saiba de onde tu vens”!. Meu ser-tão vem da escuta sensível ances entendidos como explicações gerais de fenô de terreiro, é muito pulsante nas vivências dos
Sankofa, nossa galinha-d’angola, os capotes tral do chão de terra batida do Sertão do Inha menos que, no mais das vezes, nos exigem um terreiros dos candomblés de angola – originados
do meu sertão, nos ensinam a não perder o muns (Ceará), da comunidade Pau Preto, em distanciamento, um afastamento, uma posi desses encontros entre as culturas dos povos de
vínculo com nosso passado, com nossas tra Parambu, das lembranças das cercas puladas ção de objetividade para pensar. Se tomarmos línguas bantas no Brasil e os saberes de nossos
dições, que não são estáticas, mas dinâmicas, para comer fruta do pé, com um salzinho para essa caracterização específica como verdadei povos originários, numa relação entremundos
pois só há vida em movimento. A memória é ficar mais gostosa. E o seu, de onde vem? ra, poderíamos pensar que os terreiros – esses com as culturas coloniais que nos cercam. É
territórios experienciais criados por pessoas desse ethos que venho propondo a ideia de um
negras, em alianças com saberes e práticas pensamento enterreirado, que emerge no e do
indígenas, que hospedam as tradições de ma terreiro, e que é uma das expressões de nossa
A escuridão é potência criativa que ativa, aguça nossa trizes africanas, como os candomblés, as um
bandas, os batuques, os catimbós, as encan
filosofia popular brasileira.
A vulgata macumbeira descreve as pessoas
sensibilidade, nossa relação com a natureza, tarias, as mais variadas macumbas etc. – são angoleiras, as vivenciadoras dos candomblés
lugares de produção da filosofia? de angola, como desconfiadas e observadoras,
nossa escuta sensível e comunitária A resposta mais rotineira seria “não”. En que falam pouco com pessoas de fora da tra
tretanto, em vez de tomar essa caracteriza dição – ou falam muito sobre o que não é es
ção como acertada e exclusiva, poderíamos sencial para compreender o que se passa no
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N
violência colonial, preservando e mobilizan verberar o princípio do pensamento dos povos
do saberes, valores e práticas herdados dos de línguas bantas, expresso pelo filósofo sul
modos africanos e indígenas de ser e viver; -africano Mogobe Ramose, de que a realidade as caminhadas em busca de território sagrado que nestas breves linhas eu
e a criação, que produz estratégias, saberes e é percebida estando em intensa mutabilidade e conhecimento e de uma insa não seria capaz de descrever.
sentidos para viver neste mundo atravessado relacionalidade. E esse tipo de pensamento se ciável liberdade intelectual, em Mas o que me tocou foi a mensagem deixa
por persistências coloniais. São modos de vida esforça para que o pensar corresponda à es um domingo ensolarado, típi da por ele, que hoje se torna título desta refle
que resistem criando e que criam resistindo, trutura do real, dinâmico, inter-relacionado, cos domingos cariocas, fui na companhia de xão e me leva também a apresentar a você, lei
no âmbito dessas estratégias de recriação dos plural, o que demanda a crítica e a autocrítica uma filósofa amiga a uma casa de candomblé tora e leitor, o que eu tenho sentido e pensado
sentidos da existência em face de tensões co permanente do que se pensa e do que se faz. angola para assistir à palestra de um convida desde aquele dia em que o filósofo nos disse:
loniais (que articularam, de maneira letal, o É um pensamento incorporado, já que não se do muito especial: sr. Nêgo Bispo. “Vocês precisam aprender a voltar para casa.
racismo, o sexismo e as violações laborais). para binariamente o corpo do espírito pensan Na ocasião, aquele espaço mexeu muito É preciso aprender a voltar para casa”.
Esse contexto da resistência criadora, no te e se vincula com a experiência vivida, que com a minha energia. Ora era um misto de Ele se referia, naquela ocasião, à quantidade
meada por Ana Lúcia Silva Souza, professora da sempre atravessa os corpos, evitando, assim, reconhecimento daquela energia que me afetava, de jovens que saem de suas comunidades para
Universidade Federal da Bahia (UFBA), de “ree o distanciamento ou a objetividade. ora era uma sensação de estranheza, de incom estudar ou trabalhar e não sabem mais voltar
xistência”, é o que mobiliza as diversas matrizes Essas dimensões do pensamento enterrei preensão: por que eu estava me sentindo daque para casa. Para os territórios que os alimenta
de produção de pensamento e conhecimento rado nos colocam diante de um profícuo modo la forma? Isso posto, quero demarcar o impacto ram e os mantiveram vivos. E como isso é preju
pelos povos africanos e indígenas que consti de produzir conhecimento e filosofia a partir das palavras que foram proferidas pelo pales dicial para todos, sobretudo para a comunidade.
tuem os terreiros. Por isso, a primeira dimen dos terreiros, que têm no precário um aliado trante no chão daquele território sagrado. Meu povo! Essas palavras, proferidas
são do pensamento enterreirado é a da criação produtivo, evitando a arrogante prepotência Nêgo Bispo é um filósofo quilombola em 2019, me afetaram de diversas formas e
resistente, da reexistência. Outra característica de tudo poder saber e nos oferecendo pistas piauiense que muito tem inspirado e revo vários pensamentos foram potencializados
desse pensamento enterreirado é sua dimensão interessantes para fortalecer esse pensamento lucionado o pensamento social brasileiro com essa mensagem transmitida pelo filó
pluralista, que recusa binarismos excludentes que é nosso, que é popular, brasileiro; um pen e acadêmico. Com sua simplicidade, alegria e sofo quilombola. Sobretudo quando ele lem
como fundamento. Não opera na lógica do “isso samento que preza pelo plural das histórias que discernimento, trouxe para nós, jovens ávidos brou que os quilombos e os terreiros foram
ou aquilo”, mas no horizonte do “isso e aquilo”, nos constituem. E que nos mostra o quanto po por conhecimento e amantes da revolução in os primeiros territórios na diáspora que per
elemento que sustenta as milongas, misturas, do demos aprender com os terreiros, se não nos telectual, tantas reflexões e inspirações a partir mitiram a manutenção de nossa vida e dos
pensamento angoleiro. O contrapeso das milon prendermos às armadilhas racistas coloniais. de sua práxis quilombista e amparado naquele hábitos culturais.
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Desde então reflito: teria eu me perdido mos no mundo filosofias que podem estar no
pelo caminho? Por que não voltei para casa? nosso chão. E a pandemia, apesar de todas
Para o território que me gerou, alimentou e as dores, tem trazido essa mensagem. Preci
permitiu minha existência? Essas questões, samos voltar para casa, para o nosso lar, para
ao mesmo tempo que se referem diretamente ao o nosso território. Nele podem estar, se não
não retorno para o território como espaço ge muitas respostas, algumas. Ou alguns enca
ográfico, também se referem ao não retorno minhamentos. É isso que tenho aprendido.
para o território espiritual. Desde a pandemia, estou “presa” no meu
É sobre essas questões que conversaremos território, e minhas reflexões necessitavam
agora. de visitas a diversos territórios quilombolas,
Como eu disse, desde que Nêgo Bispo pro pois busco responder algumas a partir deles.
feriu essas palavras naquele território, meus No entanto, isso não foi possível. Mas a vida
pensamentos sobre a necessidade de retornar é sábia, ela nos surpreende. A ancestralidade
para o nosso território (geográfico e espiritual) conversa conosco e nos auxilia a recordar do
não saíram da minha mente. Mas, dadas as nosso acordo com a humanidade a todo mo
condições em que me encontrava (cursando mento, me ensinou o grande filósofo Carlos
doutorado na Universidade Federal do Rio Henrique Veloso (Bàbá Ònà).
de Janeiro, UFRJ), busquei deixar esses pen Logo, acreditei que ela me auxiliaria a Cerimônia em terreiro do Rio de Janeiro, em 1971
samentos de lado, pois o retorno não poderia responder às minhas reflexões. E tem auxi
acontecer tão brevemente. Contudo, tal ati liado... Primeiramente, nesse retorno, tenho
tude não me privou de constantes reflexões aprendido no meu território geográfico e com cessário, pois a sabedoria de que precisamos filosofia, sabedoria, visões de mundo também
e de uma vontade inenarrável de voltar para o meu território espiritual (casa de umbanda) para viver, a filosofia que precisa fazer sentido, existem aqui. Vocês não podem imaginar o
casa. E saibam: eu sou filha do vento! Andar que nossas inquietações filosóficas têm suas pode estar na singela experiência que temos quanto eu tenho compreendido que a filosofia
por esse Brasil é a coisa que mais amo. Como respostas na vida. É na concretude da vida, na com os substratos que nos constituem. brasileira, a filosofia deste chão, pode fazer vi
poderia estar sentindo essa vontade de voltar experiência sagrada, na conexão com o chão E por que negamos isso? Por que preferimos ver. O quanto ela vibra na vida, nas experiên
para casa, para Minas Gerais? (geográfico e espiritual) que devemos, muitas acreditar que buscar em outros mundos/casas/ cias coletivas e singulares que me/nos consti
“Ah, Minas Gerais... quem te conhece não vezes, buscar as respostas para as questões territórios nos tornará pessoas melhores? Por tuíram e me/nos circundam.
esquece jamais!” Essa frase é famosa entre que tiram nosso sono. que negamos nosso território mesmo sabendo As histórias da minha terra, que tenho in
nós, mineiros. E não é que ela começou a fazer Voltar para casa está além de simplesmen que, aonde quer que formos, ele sempre estará em vestigado, têm alimentado minha alma e mi
sentido para mim? Nesse ínterim, 2019 passou te retornar para a casa onde crescemos, para nós? Entre nós! Por que negamos a filosofia pre nhas escritas filosóficas. Têm colorido esses
e em dezembro decidi voltar, pois meu coração as primeiras relações que estabelecemos. sente no nosso chão e buscamos outras? dias sombrios e buscado colorir as filosofias
(Ib, diria nossa filósofa Katiúscia Ribeiro) me Voltar para o nosso território diz respeito à O que me inquieta, leitorxs, é essa nega brasileiras. Essas histórias e experiências têm
dizia que retornar era urgente. Era preciso. necessidade de nos alimentarmos do que nos ção. Não desconsidero a importância de ou desvelado uma Filosofia Política Preta do Prata,
Desde que voltei , o território que me ge mantém vivos até hoje. A experiência dos afri tras experiências. Quero refletir é sobre o por alimentada pela força da cultura bantu. Têm
rou tomou minha atenção. O nome dele é canos em diáspora me fez compreender que o quê de negarmos, escondermos o nosso chão. demonstrado que é essa filosofia que tem pos
Prata e está localizado no interior de Minas, território espiritual e geográfico está subjacen Por que não voltamos para casa? Foi preciso sibilitado a manutenção da vida das pessoas
especificamente no triângulo mineiro. Nesse te nessa categoria casa utilizada pelo sábio uma pandemia para que muitos de nós voltás desse chão.
retorno, senti um amor por esse chão que eu Nêgo Bispo, pois reconectar com a energia semos, e esse fato me fez recordar o que vovó A afroperspectividade tem me dado as
nunca havia sentido! Acreditem. Nunca! Há que cada um desses territórios nos fornece sempre me disse: “Se não vai pelo amor, vai chaves de leitura para tentar traduzir esse en
mais de dez anos eu havia me mudado para pode ser um dos remédios de que precisamos pela dor”. E a pergunta que deixo é: qual ca canto, mas a volta para casa é que tem feito eu
poder estudar. E nesses dez anos nunca voltei para combater esse vírus (colonização mental minho continuaremos escolhendo para voltar encontrar e sentir o sentido de tudo.
para casa com o olhar e o sentimento de agora. e espiritual) que nos impede de dar prioridade para casa? Por fim, se você também quer sentir o sen
Aonde quero chegar com isso? (Você deve às nossas culturas, às nossas filosofias. A minha volta, felizmente, tem desembaça tido de tudo, experimente se reconectar.
ARQUIVO NACIONAL
tá pensando.) É importante ir para o mundo e conhecer do minhas lentes e me auxiliado a ver o mundo, Voltar para casa pelo amor.
Quero lhe dizer, leitora e leitor, que a fala outros territórios, auxilia a nos desenvolver meu território geográfico e espiritual, como o Você também poderá sentir que pra quem
do filósofo Nêgo Bispo me despertou: busca mos. Mas voltar para o nosso território é ne lugar necessário para que eu compreenda que tem casa/fé, a vida nunca tem fim...
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Thiago A. P. Hoshino Patuás em loja de artigos para umbanda no Rio de Janeiro em 1969
Isso é sotaque.” Uma das primei sotaques de terreiro e e-vocando Frantz Fanon dade. Quando Lélia Gonzalez sugere o poder isso também que a filosofia é sempre e inarreda
ras lições que aprendi com meu e Lélia Gonzalez, quero trabalhar para virar no generativo do pretoguês, não só descortina o velmente amarração: menos até de categorias,
pai de santo, Ubaldino Bomfim, santo o aforismo em alemão, propondo uma fi português como cavalo de santo de uma mul como se costuma supor, e mais de imaginações
foi distinguir o que se canta, losofia que seja a luta pelo (re)encantamento de tiplicidade de línguas-universos diaspóricos, e modos de conjugar (tradições, por exemplo) e
quando se canta e para quê. Seu “Isso é sotaque” nossa razão, nos meandros de nossa linguagem. mas também desata o desbunde e a abundân conjurar (ancestralidades, por exemplo).
era um alerta a respeito do que ativamos com Não é por acaso que Fanon inicia seu ma cia como potências da linguagem. É deles, da Assim, ao levar às últimas consequências
o axé da fala, com o poder das palavras: o que gistral Peles negra, máscaras brancas (1952) em quilo que escapa ao dizível, que depende a fei seus exorcismos ontológicos e epistemológicos,
elas despertam e movimentam. Num mundo franco estranhamento idiomático, isto é, pelo tura da filosofia “como exercício permanente parte da filosofia ocidental parece ignorar os
de materialidades vibrantes em que todo cui problema do sotaque e do dialeto. O “patois”, de decolonização do pensamento”. feitiços de que ela mesma é fruto. Entre eles,
dado é pouco, o sotaque de santo faz falar e faz ele nos relata, é índice ambivalente da diferen Essa filosofia com(o) sotaque não deixa de os da colonialidade e do epistemicídio. Não
agir; é o verso que se (a)tira, que se lança, com ça colonial: “Na escola, o jovem martinicano versejar com Wittgenstein e outros fantasmas, será isso o que as “luzes” da modernidade
ou sem direção certa, ao modo de bravata ou de aprende a desprezar o patoá. Fala-se do criou mas os vira, os trans-versa, os desafia, os con ofuscam? Se os colonizadores afirmavam que
gracejo, e que convida a respostas muitas vezes lismo com desdém”. Em terras brasileiras, funde, os (des)possui, enfim, dando passagem a “onde chega a luz elétrica, a feitiçaria se esvai”,
improvisadas e imprevisíveis. Há também o so aos patoás vernaculares vieram somar-se os muito mais entidades do que admitiria o Espíri na casa de meu tata, eles talvez ouvissem uma
taque que é, desde logo, demanda: amarração e patuás-sortilégios. Forjado no encontro e na to hegeliano. É nesse sentido que o dialeto pode resposta sotaqueada bem ao gosto de exus e
feitiço, tão en-canto como ento-ação. relação afroindígena, ao des/reterritorializar ultrapassar a dialética (embora com ela parti pombagiras, doutoras(es) do Atlântico negro:
Até Ludwig Wittgenstein tinha medo de o termo tupi “patauá” (cesto ou invólucro), o lhe da mesma raiz grega, diálektos: con-versa)
feitiço. Foi ele quem, nas Investigações filosófi- patuá torna-se justamente aquilo de que Witt porque não sintetiza nem sincretiza nada, mas Lá na Alemanha tem eletricidade
cas (1953), aspirou a uma filosofia como “luta genstein queria ver-se livre: a mandinga, a retém a tensão em relação à norma, ao mesmo mas eu não sei quem foi que botou.
contra o enfeitiçamento (Verhexung) de nossa magia, a macumba. E que, inadvertidamente, tempo que a performa e a deforma. Por isso os O inimigo que vem da Alemanha,
compreensão, pelos meios da nossa linguagem” sempre volta a incorporar, pois não se comba encantados, quando falam, falam com sotaque o inimigo apanha
ARQUIVO NACIONAL
(§109). Minha pequena intervenção lança um te feitiço senão com feitiço. e ostensivamente com sotaque. É o código (do nos pés do doutor.
sotaque – tomado no sentido cosmopolítico – Tanto patoás como patuás, portanto, ver santo e da língua de santo) que afronta e subver (Zuela de Exu cantada no
aos espectros da virada linguística. Vocalizando tem enredos e vocabulários da amefricani te o código (da branquitude e do racismo). É por Abassa de Xangô e Caboclo Sultão)
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corpo bio-gráfico
de Círio de Nazaré, cada garganta curada com Por fim, tenho também gostado de pensar
andiroba, cada pisa, cada história de visagem, que meu corpo-herança talvez seja como o mo
cada morte do boi de Morros, cada banho de nolinguismo de Derrida, que se demora “e eu lhe
praia, cada trepada na beira do rio, sem falar chamo minha morada. Sinto-o como tal, nele
no sem-número de violências. A lista é imensa me quedo e habito-o. Ele me habita. O mono
O discurso filosófico, ainda que almeje a universalidade, e mesmo assim são apenas algumas das coi linguismo [que tenho gostado de chamar corpo
teve de começar na singularidade e num espaço delimitado sas que posso contar, pois fazem parte de um -herança] no qual respiro, mesmo, é para mim
certo arquivo. Mas há incontáveis heranças, o elemento [...]: não posso recusá-lo senão ates
memórias inarquiváveis que, no entanto, for tando sua onipresença em mim. Ele ter-me-á
mam esse corpo: herança incalculável – segre desde sempre precedido. Sou eu. [...]. O que não
do escrito na pele que me veste, e me cai muito quer dizer de modo algum, não vás crê-lo, que eu
bem, aliás. Cada corpo-sujeito falante é assim: seja uma figura alegórica deste animal ou desta
Ana Emília Lobato obedecendo a uma injunção, se inscreve no verdade – o monolinguismo [o corpo-herança].
F
mundo recortando e costurando, escolhendo Mas, fora dele, eu não seria eu mesmo” (O mo-
e decidindo nisso que foi herdado; aprendendo nolinguismo do outro ou a prótese de origem, Belo
riedrich Nietzsche escreveu que a pareceu tão fecunda para pensar articulada a partir disso que não “aprende nunca”, desse Horizonte: Chão de Feira, 2016, p. 24).
aprendizagem, como a alimenta mente o corpo, a singularidade e a herança na
ção, nos transforma, não apenas escrita da filosofia. Porque o discurso filosófico,
nos sustenta, porém que “no fundo ainda que almeje a universalidade, teve de co
de todos nós, ‘lá embaixo’, existe algo que não meçar na singularidade de um corpo, no espa
aprende, um granito de fatum [destino] espiri ço delimitado de uma herança.
tual [...]” (§ 231). Ultimamente, tenho lido esse E, no caso de uma sujeita como eu, minha
aforismo para pensar o corpo: primeiramente escrita na filosofia é traçada a partir de uma he
meu corpo singular, de mulher, negra (de pele rança colonial, sobretudo. Essa marca irredu
clara), gorda, vinda da região Norte, que ocu tível – cada vez mais incontornável, impossível
pa, um tanto desconfortavelmente, um espaço de dissimular como fazem os filósofos de ver
acadêmico e desenvolve uma pesquisa em fi dade, que se esforçam para esconder o desejo
losofia; mas como toda singularidade deve po biográfico que teima em se inscrever em seus
der se tornar exemplar. Gosto desse aforismo textos – é o próprio corpo-sujeito que, com sua
também para pensar os corpos dos sujeitos em arquitetura, fala um “eu sou”. Foi assim que co
geral, corpos-sujeitos falantes. mecei a considerar a hipótese de pensar no cor
Essa é uma questão que se foi impondo con po como origem sem origem da verdade; uma
A
forme eu me dava conta de que a neutralidade verdade de tal modo singular que não pode
e a universalidade da ciência, e da filosofia em existir sem terra natal, sem ancestralidade.
particular, não caíam muito bem em corpos Não se trata de uma espécie de privilégio
como o meu. Por mais que eu me transformas da biologia, não me refiro aqui a determina
se aprendendo e me alimentando do que havia ções genéticas ou algo do tipo, penso o cor
de mais nutritivo no cardápio filosófico, algo po mais como bio-gráfico do que bio-lógico.
em mim se recusava e parecia obedecer a ou O corpo, em sua materialidade, sua arquite
tros imperativos. Era como se a interioridade tura, sua paisagem, é também um texto, uma
da sujeita que eu pretendia ser desenhasse uma escrita da vida que foi se tecendo, sim, a cada
paisagem diferente. Por isso, a imagem de um combinação genética aleatória, mas também
“granito de destino espiritual”, que forma a ma a cada aprendizado, cada espanto, cada gesto
téria à medida que doa e recebe marcas, como compartilhado por uma ancestralidade per
leu Jacques Derrida no texto nietzschiano, me dida; cada tigela de açaí com pirarucu, cada
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dossiê
N
esta banda em que cá estamos, ga, é que o Brasil é antes de tudo uma casa de física a um investimento de regulação e do ças. Esse contexto, que ela se faz, é a tragé
existem aqueles que vagueiam caboclo. Os mais apressados no jogo, escassos minação das linguagens, subjetividades e que dia colonial que nos apreende em um estado
assombrados por obsessões car de poesia e malandragem, diriam que essa acaba incutindo o desvio existencial. permanente de guerra e que fazemos da vida
tesianas. São seres que, atormen marca se dá pelos primeiros moradores des O caboclo como presença que anuncia ou um ato de batalha entre as bandas desse
tados pelos mais diferentes kiumbas civilizató se lugar, aqueles que aqui habitavam antes tro Brasil a partir das sete encruzilhadas que mundo cindido.
rios e dependentes dessas energias, insistem da chegada e ocupação da empresa colonial. se multiplicam ao infinito é aquele que não se Muito se diz sobre a umbanda, porém ain
em dar de comer aos fantasmas da neurose Em certa parte, faz sentido, porém não ras reduz as sobras viventes e não se conforma na da pouco se escuta o que ela fala. Faltam ouvi
cultural brasileira, da democracia racial e das pa o fundo do tacho dessa inscrição assente condição de sobrevivente. Como um feitiço dos e corpo para alcançar a virada linguística
muitas cabeças da colonialidade. O Brasil mis em uma epistemologia macumbeira. Casa de soprado na esquina do tempo ele supravive e promovida pela poética macumbeira. Assim,
tifica seu projeto de Estado-Nação nos véus da caboclo é antes de tudo um feitiço, que como se inscreve como uma antinomia da civilida mais que um giro descolonial é uma gira, já
violência racial/colonial. Uma violência contí toda boa artimanha do encanto cruza quem de. Não surpreende vocês, camaradinhas, que que dadas as encruzas e o firmamento dos
nua e sistemática que opera com base em assas o faz e quem o recebe. O feitiço convoca para duas décadas após a Proclamação da Repúbli quatros cantos desse lugar ela dribla a petu
sinato, estupro, encarceramento, destruição um jogo de perguntas e respostas em que as ca uma quizumba fosse armada para colocar lância dos sabichões dos caminhos retos. Seus
de ecossistemas, grilagem, servidão e formas de formas como cada um se lança nessa roda de mais dendê nessa farofa? catedráticos são das esquinas e contracoloni
subalternização do saber. Nesta terra, onde finem o seu efeito. A umbanda, que seu princípio não tem zam a métrica dominante. Aqueles que inves
em cada esquina se faz política, ebós epistê O Brasil de pouco mais de cinco séculos método e seu fim é inconcebível ao mais sá tem em firmá-la como uma síntese do Brasil
micos e cívicos (como propõe Luiz Rufino), se edifica naquilo que o poeta Aimé Césaire bio, tecida nas funduras do tempo e espaço a observam da beirada e não enxergam esse
há uma legião daqueles que driblam o curso nomeou como sendo um banco de almas. Não como uma política cósmica que entrelaça caldeirão sem fundo ferver o feitiço de brasi
insistente das linhas retas, escapam do vam à toa, nos tempos de hoje ainda existem aque identidades, memórias e gramáticas subal lidade. A umbanda como política cósmica das
pirismo dominante, cismam com os ideais de les que querem fazer daqui uma bancocracia ternas, emerge como uma reivindicação de almas penhoradas para erguer o Novo Mundo
grandeza dos herdeiros do protetorado branco em que o lucro se constitui em detrimento da encarar o Brasil via a encruzilhada. Permea é arriada a moda brasileira com farofa, vela e
e contra-atacam com repertórios infinitos de vida. Um mundo erguido e mantido em cima da de contradições, ambivalências e conflitos, vintém. Dá de comer a quem tem fome, alum
sabenças ancestrais. da pilhagem de corpos, da quebra dos ciclos a umbanda é fiel ao contexto em que ela é pa bra o caminho e deixa o troco para os escassos
REPRODUÇÃO
O que quero dizer em poucas palavras vitais, da destruição das comunidades e da rida e se inscreve como conhecimento das de vida e poesia.
nesse texto, e faço como quem risca a fundan aniquilação do ser que vai desde sua morte margens e ação responsável com as diferen Saravá!
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dossiê
Guarani Nhandewa
daqueles que se sentem superiores a nós, in
dígenas. Teve um tempo que fiquei um pouco
revoltada pelas situações que estou enfren
tando em cada esquina, muitas das vezes con
fundida como peruana, boliviana e assim por
Se todos os brasileiros tivessem a humildade de assumir a diante. E acho engraçado que nunca ninguém
violência do processo de colonização, talvez fôssemos mais me identifica como brasileira. Como se aqui
sábios e saíssemos fortalecidos no Brasil não tivesse nativos.
Quando fico furiosa pela situação que vi
vencio, sempre lembro que a minha avó dizia
para não responder a atitudes de pessoas ig
norantes do mesmo modo, no mesmo tom. Por
eu ser mulher indígena, tenho que mostrar o
contrário, e isso não é uma tarefa fácil – ensi
nar, educar pessoas.
Quem me ensinou a superar e ir além foi
minha avó materna, com quem eu vivi a maior
parte da minha adolescência. Como a minha
avó era parteira, geralmente os pais levavam
seus filhos, as crianças que ela ajudou a vir ao
mundo, na casa dela, para ouvirem as histó Mulheres guarani em protesto em frente
Sandra Benites Guarani Nhandewa rias que ela contava. Eram crianças em quem à prefeitura de São Paulo em 2019
S
ela deu banho, como a gente fala. Ela era refe
rência como nossa educadora.
ou Sandra Benites Guarani Nhan indígenas; era diferente de hoje, quando Minha avó e os pais dessas crianças junta das nas escolas ou na academia, e as palavras
dewa, minha origem é a aldeia Por a grande maioria das aldeias têm professores vam lenha na casa dela para fazer fogueira, e boas, palavras que são sábias e generosas, que
to Lindo, no município de Japorã, da mesma etnia e falantes das línguas daque em torno da fogueira, enquanto os pais assa nos ensinam para a vida, como as que ouvia
Mato Grosso do Sul, lugar em que las comunidades. vam batata-doce, milho verde, entre outros, a nas rodas de encontro em torno da fogueira.
nasci e vivi até o ano 2000. Depois fui morar Mas nós, alunos, éramos falantes Guarani gente ouvia ela narrar as histórias. E não era Mas sabemos que nós indígenas também
na aldeia Boa Esperança, no município de e não sabíamos falar português, e mesmo as somente ela que contava história, quem qui precisamos fazer a nossa parte. Precisamos
Aracruz, Espírito Santo, onde existe aldeia sim éramos obrigados a ler e escrever numa sesse contar tinha seu momento de falar, can estar de frente nessa luta. Só assim nossas
Tupinikins e Guarani. língua que não falávamos nem entendíamos. tar e contar suas histórias. casas serão parte de nós e não servirão de em
Como na minha infância eu tinha várias Lembro disso como se fosse ontem: a agonia Por tudo isso, nunca desanimei e sempre baixadas. Em nosso próprio território, somos
dificuldades para estudar, nunca imaginei que e o medo, pois sabia ler o que estava escrito desejei estar no espaço de diálogo, ou seja, nos tratados como hospedeiros estrangeiros. Con
iria chegar ao doutorado. Nem sabia o que era no papel mas não compreendia nada, porque espaços de encontro com os outros que pen tinuamos recebendo ordem dos colonizadores
ser doutora e ainda bem que não sabia que essa era numa língua estranha. Em casa, todos fa sam diferente de mim. Sempre soube que como se tivéssemos dívidas por sermos colo
posição de doutor é tão importante para os dju lavam somente em Guarani, e eu comecei de saber escutar é ir além, um encontro com nizados. Os brasileiros foram tão fragilizados,
rua, os não indígenas. Porque, se eu soubesse, fato a aprender a falar e compreender a língua pessoas diversas, para a produção de conhe até chegar ao ponto de aceitarem e acredita
talvez não carregaria comigo o conhecimento portuguesa quando tinha entre 27 e 30 anos. cimentos amplos e uma ampla compreensão rem em qualquer fala dos estrangeiros grin
que a minha avó me ensinou. Hoje, depois que percorri vários espaços, de mundo. Aprendi isso desde a minha infân gos brancos.
Na época em que eu estudava na escola, inclusive o acadêmico, eu pude entender essa cia com minha avó: saber escutar palavras. Se todos os brasileiros tivessem a humil
ninguém podia falar na língua Guarani, mi angústia. Não é à toa que o projeto de apaga Mesmo não entendendo o português, quando dade de aceitar a violência que carregam em
ROMERITO PONTES
nha língua materna, nem escutava a história mento do nosso jeito de ser era importante eu era criança eu tentava entender as atitudes seus corpos durante esse processo de coloni
que minha avó contava para nós. Os profes para nos dominar, era o jeito de branco de nos das pessoas que falam português. E me pare zação dos nativos brasileiros, talvez fôssemos
sores não eram falantes Guarani, não eram excluir, de dizer que somos inferiores. ce que existem as palavras duras, que são fala mais sábios e saíssemos fortalecidos.
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dossiê
A Jurema e a filosofia
do aprender sem ensinar
Tradição de matriz indígena tem grande impacto na forma de ser
e estar na vida cotidiana do universo nordestino em geral
Alexandre L’Omi L’Odò Praticantes da Jurema em cerimônia nas Matas do Engenho Pitanga II, em Abreu e Lima (PE)
N
o nosso mafumbauê o cruzam “passou no vestibular em primeiro lugar, ele é o mopercepção afro-indígena é desafiadora e ele matou pai, matou mãe, nas ondas do mar
bê é bocunã, a saramunanga é satanás”, do rezar às seis da noite ou ao pedir excitante. As regras na Jurema são excepcio sagrado”, e mesmo assim é amado por todas
cipopá, o pau é onirê mandá, o licença à liambeira, essa cultura amplamente nalmente dissidentes, tendo sido ela uma tra e todos. Há perdão pleno, há valorização do
catimbó gira no balançar da viva é uma forma filosófica da vida cotidiana dição forjada na luta pela vida, pela defesa da que um ser tem de melhor nessa religião. Se o
gira cauã, o dendê é Cidade, e pro Reis se grita de nosso povo. comunidade e vinda das raízes de inúmeros Mestre Torto fez o que fez e mesmo assim vem
Sobô Nirê Mafá. A pisada é essa seu Zé, a pisa Essa tradição também é um contradiscur povos indígenas, que talvez sequer possamos para curar, ele é aceito e louvado. Essa natu
da é essa... É massapê, é barro molhado, quem so hegemônico forte, que – diferentemente vir a conhecer um dia, pois com a dizimação reza não maniqueísta é encantadora e liberta
não sabe andar leva queda, porque nessa água das grandes religiões que tentam separar as de toda essa ancestralidade dona da terra, lín dora. A Jurema é pau pereira, madeira de dar
tem veneno morena, quem bebeu morreu. Na pessoas com seus dogmas e princípios teoló guas, entidades, divindades, culturas e filoso em doido, em que a lógica é: “remédio de doi
nossa mundrungagem quem triunfa é ganga gicos – assume uma característica xenofílica, fias foram delidas por completo, se tornando do é outro na porta”, como afirma esse antigo
sobominirê que trunfando mazurca Reis riá. decolonial e acolhedora, sendo pai e mãe, hos nos dias de hoje muito difíceis de conhecer, e verdadeiro ditado popular. “Dizem que a Ju
Quem lhe iniciou? Se três dias passou caído pital dos pobres e centro de tratamento psicos pois os insuficientes registros de cronistas co rema amarga, para mim é um licor, a Jurema
no tronco do Juremá? Teria sido a própria Jure social; afinal, quando falta a política pública loniais não deram conta de tamanha multicul com seus frutos, sempre nos alimentou.” As
ma e as entidades e divindades que o iniciaram, de saúde, lá está a Jurema com as curas limpas de turalidade encontrada em Pindorama. sim como Malunguinho se alimenta de álcool
dando a Mestre Carlos o poder de curar, de julgamentos para dar caminho a quem neces “Abre-te portas, varandas e janelas. Ó, e fumo, nos alimentamos dessa essência pro
“trabalhar”? O interessante é que, à diferença sitar. Na Jurema há sim uma forma de vida to abre-te, Ciência, e eu dentro dela.” Para poder fundamente fitossagrada.
das tradições “nagôs”, a Jurema não é só ini talmente Original Jurema Style, cheia de co ver esse mundo enorme de saberes mestres, “Setenta anos passei no pé da Jurema, mas
ciática, ela é vigorosamente viva, única dentro res, de modos próprios de conceber o mundo só se estando dentro da Ciência. É dentro da eu não tenho pena de quem me faz o mal,
de cada discípulo e discípula, afinal “a Jurema e de coexistir em meio ao ocidentalismo. Se as Jurema que o mundo acontece. Uma dupla for se eu me zangar, toco fogo num rochedo, meu
quando nasce, a ciência ela já traz”. demais religiões dos brancos ensinam que há ma de existência, que é daqui pra lá e é de lá cachimbo é meu segredo, agora eu vou me
A Jurema é uma tradição de matriz indígena salvação, na Jurema a pessoa que nasce com pra cá. Mortos e vivos comungam de uma úni vingar”, e sim, devemos nos vingar conscien
do Nordeste do Brasil, com grande impacto na a ciência é que salva as demais. Com abraços ca existência simultânea e ao mesmo tempo, temente de todo mal histórico e estrutural que
forma de ser e estar da vida cotidiana de todas se salva. Com fumaça se salva e faz-se nascer separada às vezes por um fumar de cachimbo, continuam nos fazendo. A fumaça tem sua pró
LAILA SANTANA
as pessoas que compõem o universo nordesti nova vida, novo ser. por uma firmação de vela... pria juremologia, e nela tudo é possível, inclu
no em geral. Do lambedor de sete ervas às/aos A complexidade de compreender e ex Mal e bem convivem harmonicamente. sive retomar todas as terras invadidas de nos
rezadeiras e rezadores, do “fulano é o cão” ao plicar para os ocidentais uma tradição/cos “Oh zin, zin, zin, zin, ele é o Torto malvado, sos antepassados. Cantando preservamos
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dossiê
E
Portanto, nada mais é deles, tudo é nosso, apenas religiosidades diversas que se unem
e da forma que queremos. Essa filosofia na quando é necessário? Temos muito que refle
Jurema assume uma forma “malunguiniana”, tir sob a sombra de um frondoso pé de Jurema. u tinha cerca de 10 anos quando de Milton Santos em A natureza do espaço: “a
ou vice-versa, provindo da luta e da resistência Abramos nossos corações para aprender sem Dorinha chegou para trabalhar em construção de uma filosofia menor, isto é, uma
contra todas as formas de opressão dos coloni se ensinar, e que por nós permitamos passar nossa casa. Seu rosto me mostrou metageografia [...] capaz de reproduzir, na inte
zadores. Um modo de ver e pensar o mundo as águas que nutrirão as raízes secas de nos o chão de uma história que os li ligência, as situações reais enxergadas do pon
profundamente decolonial, com capacidade sos ancestrais para que refloresça o juremal vros de escola e professores não me contaram, to de vista dessa província do saber”.
iconoclástica de transformar os símbolos sa escondido das religiões de terreiro do Brasil. dando-me a primeira e mais radical lição da Para viver em Maria da Cruz, como cha
grados dos outros em unicamente seus, numa “Minha mãe bem que dizia que eu não qui alteridade, que só muito tempo depois eu co mam o lugar, de modo a colocá-lo na encru
estratégia ampla de preservação da memória sesse aprender, o segredo da Jurema faz o discí nheceria na Violência do rosto, de Emmanuel zilhada do feminino, uma mulher precisava
e do patrimônio cultural que nos vale até hoje. pulo sofrer”, e pode fazer sofrer, sim... Viver em Levinas: “o rosto do próximo como portador carregar a lata d’água na cabeça e cavar o chão
Esses saberes mestres existem integral um mundo onde ser catimbozeiro é crime nos de uma ordem que impõe ao eu, diante do ou com um furo, em vida, onde se pudessem ex
mente nas cidades da Jurema. Lá onde os an faz sofrer. Reajamos com nossas balas de arti tro, uma responsabilidade gratuita”. Ela tinha cretar os restos orgânicos da existência. Do
cestrais indígenas, os caboclos e caboclas, mes lharia. A Jurema é uma religião de guerra, como o rosto queimado do querosene que acendia rinha era herdeira desse modo de carregar a
tres e mestras, Reis e demais entidades e divin deve realmente ser. Nela, “quem é bom já nasce lamparinas sobre os escuros do lugar: Pedras vida e de enterrar os restos, sem água enca
dades moram, está a cura para todos os males, feito e quem quer fazer não pode”, e nunca po de Maria da Cruz. Isso de pessoas saírem de nada e esgotamento sanitário. Talvez venha
a resposta para todas as dúvidas e a força que derá, pois só bebe na cuia quem tem pra dar. seus cantos e vidas para trabalhar nas “casas da aridez dessas faltas que naqueles entornos
move o mundo. Para ter acesso a toda essa sa de família” – diáspora dentro de diáspora – é o ato de evacuar se nomeie como “obrar”, e,
bedoria, o juremeiro e a juremeira clicam em um queloide de uma ferida ainda aberta: a es embora a cidade tenha recebido algum sanea
suas insígnias para receber um download, ou cravização e nossa-vossa herança. mento, nas últimas décadas esses buracos no
um upload (afinal, as Cidades da Jurema tam O rosto e o lugar de Dorinha me condena real não restaram cerzidos.
bém estão na terra, nas plantas sagradas, por Na Jurema mal e bem vam a conhecer a geografia de um mundo que Meu pai nasceu do outro lado do rio, nas
tanto não se baixam somente os saberes, mas é, e também a desejar filosofias outras. Já hou bandas de Januária, para onde só se podia
os sobem), possibilitado por diversos métodos convivem harmonicamente. ve quem afirmasse que o geógrafo se esforça atravessar, durante muito tempo, de balsa,
de contato, como o uso do cachimbo, a inges
tão da bebida da Jurema, e pela incorporação,
Há perdão pleno e valorização para realizar o velho sonho do filósofo: apren
der o real em sua totalidade. Mas, aqui, esse so
barco ou canoa. Mas cresceu do lado de cá.
Na margem onde a comunidade quilombola
quando algum encantado vem e traz os ensina do que um ser tem de melhor nho aparece invertido em matéria e extensão. pesqueira de Caraíbas ainda briga por terras
mentos nos sonhos, na natureza etc. O que se quer é uma filosofia infiltrada numa de nascença. E é por ser herdeira de “de lá, do
Um ser juremeiro é na sua essência um geografia que apresente o mundo em seus lu sertão, [...] do interior do mato, da caatinga
filósofo da natureza, uma pessoa que sente gares de nascença e brotação. Tarefa que seme do roçado” que me banham os saberes do rio
mais do que fala, age mais do que diz, e bus lha àquela que dá as coordenadas da geografia São Francisco, conhecimentos de margens
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S
lho aos objetos que com ela se esfregam. Nada, Depois de muito lutar com os medos e
pois, naqueles corpos, atestaria o princípio traumas que um corpo sentia por expor sua
primeiro da filosofia cartesiana de um sujeito existência, minha mãe convenceu Dorinha a ó é possível dizer o caminho depois figueira e romã, mangueira e abacate, e após
interior ao pensamento ou de um corpo que frequentar a escola, o que foi feito por alguns da caminhada. Depois da jornada, a balaustrada um terreno baldio onde catava
pudesse duvidar de sua própria existência. Em anos, até que a saúde de sua mãe clamasse entretanto, a picada é outra. Há o alumínio, caco de vidro, cobre e arame. Um
Pedras de Maria da Cruz, a lamparina incen pelo retorno de Dorinha. No mapa do Brasil, itinerário da experiência e o percur pouquinho mais distante uma chácara de
diou o Discurso do método e a mãe de Dorinha é norte de Minas o lugar onde o querosene es so da memória – são sendas distintas e emba caqui, um campinho de futebol e o esgoto da
e outras mulheres me ensinaram um princípio correu grafando cicatrizes no couro cabeludo, ralhadas. Há perguntas que me faço depois da cidade. Uma descoberta desconcertante: de
outro da existência: quem não pode com o pote rosto, ombro, peito, braço e perna em um dos encruzilhada, não porque é mais seguro, mas pois de um quintal sempre há outro, ligando o
não pega na rudia. Uma filosofia que intersec lados daquele corpo repuxado por dores que por ser imperativo seguir pela estrada. Qual mundo pela porta de trás. Pela porta dos fun
ciona força, equilíbrio e (r)existência. aparecem no nome de batismo. Não há como é o chão onde gravita meu pensamento? Se dos encontrei o terreiro onde aprendi o fun
A filosofia do pote não está nem apenas no escapar das inscrições. A herança, “no sentido adentro, com tíbia alegria, as Veredas do Sol, damento sem saber que o segredo e o sagrado
pote, nem apenas na rudia. A força que requer amplo mais preciso que dou a essa palavra, é é porque a tensão da Encruzilhada cravou em (na)moravam ali; o samba no terreiro, a poei
a sustentação do pote (e o que ele porta de ma um ‘texto’”, como lembra Jacques Derrida no minha carne seus dentes e garras. Deixou-me ra subindo, a cerveja descendo, uma insólita
gia) está na coreografia do corpo, necessária diálogo com Elisabeth Roudinesco em De que mais atento e aberto. Desperto e amoroso alegria das plantas dos pés aos calos da mão...
ao equilíbrio do peso sobreposto à rudia. São amanhã.... Não tenho notícias de que Dorinha como cabe a um viajante à deriva. À deriva da A vadiagem de capoeira sempre na mata ras
camadas de vida e (r)existência em movi tenha escrito um diário, nos moldes de Caro beleza, devo confessar, numa dança inusitada teira da memória in-visível, encantada de flo
mento. E porque as mulheres do rio também lina, mas esse é o texto que ela escreveu em na qual não se conhece o passo, mas adivinha resta densa e clareira, atualizada nos quintais
se encontram nos morros do Rio, essa força meu corpo, um testemunho e uma herança a -se o ritmo. O compasso é um mistério fagoci das Senhoras, no cantinho das feiras, na praça
teve o testemunho-vivo de Maria Lata D’água, dizer que a literatura, a história e a filosofia se tado a cada passo, certeiro ou em falso, mas do bairro, na baixa do cais... sempre quintais
a passista da Portela que sambava com uma arquivam nos corpos, antes das tumbas do pa gingando (n)o Tempo Todo. em sua forma disforme de disfarces habituais.
lata de 20 litros de água na cabeça. A ela de pel, nos convocando a pensar uma filosofia co Meu território é o quintal! Afinal, saltei de Quintais diacrônicos. Quintais atemporais.
vemos a marchinha “Lata d’água na cabeça/ reográfica (koreos = dança, movimento/ grafia um para o outro, ao léu, sob a chuva, sobre o Afinal, o que é o espaço sideral senão o disfar
Lá vai Maria, lá vai Maria/... Lutando pelo = escrita), aprendiz e herdeira de corporeida solo, sob o céu. O quintal de Mariana é o mais ce de um grandíssimo quintal?
pão de cada dia/ Sonhando com a vida do as des que se sabem entre potes e rudias, entre afetivo – onde plantei filosofia e agora colho Quintal das crianças, do sol a brilhar.
falto/ Que acaba onde o morro principia”. Um outros movimentos e (r)existências. saudade. O quintal da minha infância, com Quintal da bagunça, do sarau de poemas,
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A rua é nóix
No asfalto, há leis e éticas, todas no plural, onde o papo é reto.
É preciso pegar a visão, escutar o catuque dos mais velhos
V
ai, Marcinho, tá no ponto? Liber sidades de um povo em tempos e espaços múl
O quintal é o mundo nononononon ta DJ! A rua é nóix! Sempre com tiplos, que se repete numa atmosfera espectral
letra minúscula, porque não é o que ultrapassa a lógica temporal predominan
Nós da totalidade, uma vez que te: tudo nosso, nada deles. O nóix traz no cor
do varal de roupas, de poesia pendurada nas A beleza é a deriva da liberdade, tal como a não sabemos exatamente quem ou quantos po heranças africanas e indígenas. A partir dos
cordas – poemas e roupas a quarar, de linhas onda é a deriva do mar. A estética é a deriva da somos, quem faz parte ou não, quem está den subúrbios, botecos, favelas, terreiros, sambas e
de carretel empapadas de cerol para a batalha ancestralidade, tal como a liberdade é a conse tro ou fora. Mas, se pegar para um, vai pegar estádios, o nóix enquanto grupo se manifesta
das pipas no céu, das brincadeiras proibidas, quência de gingar. A ginga é a síntese da expe para geral. Longe do narcisismo do Eu, heran nos funkeiros e funkeiras, transbordando dos
das delícias do sexo, do desconforto neces riência africana, tal como o samba a expressão ças cartesianas difíceis de abandonar, o nóix é bailes, diluindo o corredor nas ruas, no ho
sário da casinha; da pracinha dos namorados da brasilidade. No Terreiro habita a África in sempre mais que um. Mesmo sozinho, na mis rário de trabalho, na praia ou na madrugada.
para encontros vigiados, do fundo da igreja teira, no embate social, na macropolítica ou na são, existe algo para além da presença física do O nóix são os corpos negros, brancos, mestiços,
(quintal proibido) para os primeiros pecados... política rasteira da cidade. Na micropolítica do eu e do outro. Assumindo nossas ancestrali indígenas, favelados, suburbanos, travestis,
Das miudezas fui tecendo meu mosaico. imaginário está a Terra inteira. No corpo que dades, convivemos com os espíritos daqueles mulheres, macumbeiros, evangélicos, traba
Prosaico, despretensioso, um desarticula ginga a mandinga da manha contra os ardores que já se foram, mas que vivem entre nóix: Cut lhadores, vagabundos e todos que enfrentam
do mundo foi revelando seu brilho, mavioso da maldade, faz-se o texto-carne da ancestra Vive. Mas joga o braço e puxa a mão, joga a per a vida cotidiana de estar na rua, que antes de
diamante! Num só instante todo o fulgor de lidade. No mito e no rito que atualizam a saga na e puxa o pé, vários problemas nos rodeiam. tudo é pesadona. Contra a violência da inter
outros mundos. Duradouro e impermanente, cidade, outra vez fecunda a matripotenciali Lidando com vacilações dogmáticas, nóix se pretação dominante, sem lombrar, partimos
desafiando a ciência e o oculto, um mistério dade. No chão do Quilombo uma vez mais há guimos contrariando as estatísticas, esperando na disciplina, no Pavunense ou CCIP, entor
dizendo mundo na carne de sua experiência, re-existência contra a perversidade. No Movi os 5 minutinhos de alegria. O nóix opera pela tando o corredor, respeitando a área neutra, ao
sem trair, no entanto, o escuro que lhe dá a mento Negro, outra vez e uma vez mais, a ânsia lógica dos bondes de galera, do lado A ou lado som do “Spring Love” ou do “Don’t Stop the
tessitura do instante, eterno ou presente, pe por liberdade. Nossos passos vêm de longe. Seu B. Quem é amigo fecha com a gente, quem é Rock”. Mas presem dogali se o oka marfor.
queno ou gigante. Diante de acontecimento nome? Ancestralidade! alemão rala. Porque o fechamento é o funda Na rua, há leis e éticas, todas no plural,
tão fulgurante – e simples – bailando minhas O território que me constitui é feito de mento ético das ruas. Recebe-se quem chega onde o papo é reto. É preciso pegar a visão, es
células num mar de sangue, compreendi açúcar e sal. Vai do quintal de vó Mariana ao de boa, na paz, mas, se vacila, vai. cutar o catuque dado pelos mais velhos, que,
que Exu é a sinapse do Universo tal como Oru espaço sideral. Vai das políticas de inclusão Com i e x, o nóix demarca um sotaque, um com suas histórias, narram saberes e proce
milá é a sagacidade do viajante, à deriva, na às rasuras no esquema geral. Atravessa, pela registro local, um lugar, o pretuguês de Lélia deres que nos mantêm sobreviventes nas ruas.
sabedoria do Todo equivalente à Multiplicida porta dos fundos, interligando quintais, na Gonzalez. Desobedecendo à instituída norma Assim, podemos entender e conhecer os códi
RAFEL FREIRE/PEXELS
de. Sem identidade, porque, criação constante, pele da gente escura que brilha feito diaman culta, o nóix – escrito ou falado – revela sua gos e as línguas que estão espalhados pela ci
sou obra de arte que vai do arame ao diaman te, uma sabedoria telúrica, erótica, política, potência operando à margem da obediência à dade, nos muros, nas alturas, no asfalto e nos
te, sempre e sempre singular, sempre e sem lúdica, abissal. O quintal da Ancestralidade é linguagem fonética dominante. O nóix é a po corpos, pensando e usando outros dispositivos
pre derivante. o mundo. Meu território é ancestral! tência da contaminação diferencial das diver de interpretação. Nas ruas, jogamos com as
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