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dossiê

Pensamentos
guerreiros contra
a colonialidade
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Apresentação
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Exu nos cria, 30
Exu nos sustenta Nas bandas de cá,
umbanda
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Por uma filosofia 32
do ser-tão Uma mulher Guarani
Nhandewa
21
Em torno de um 34
pensamento enterreirado A Jurema e a filosofia
do aprender sem ensinar
23
“É preciso aprender a 37
voltar para casa” Quem não pode com o
pote não pega na rudia
26
Filosofia com(o) 39
sotaque: patoás, patuás e Território de
Jean- amarrações ancestralidade: derivas e
Baptiste
Debret, quintais
Chefe 28
Camacan Corpo-herança, 41
Mongoyo,
1835 corpo bio-gráfico A rua é nóix
dossiê

Apresentação

Rafael Haddock-Lobo Jean-Baptiste Debret, Aldeia de caboclos em Canta-Gallo, 1834-39

Q Diante do projeto de Brasil do


uando propus a organização des­ não se liga imediatamente ao pensamento de­ preso à estrutura colonial, racista, elitista, ma­
te dossiê, fiquei sabendo que a senvolvido na Europa, mas que podemos, sim, chista, homofóbica, transfóbica, intolerante,
edição 268 da Cult, de abril, traria falar em filosofia oriental, filosofia africana, fi­ genocida etc.), há muitos brasis que amamos qual queremos nos afastar,
o dossiê A história da filosofia no losofia ameríndia e assim por diante.
Brasil, organizado por Júlio Canhada. No mes­ Mas minha questão se estende um pouco
e que precisamos trazer para a esfera do pen­
samento filosófico, para alargar e encantar a
há muitos brasis que amamos
mo momento em que fiz a proposta, fui chama­ mais nessa tentativa de alargamento do nome própria ideia de filosofia. e que precisamos trazer para
do para escrever uma das respostas à questão “filosofia”. A forma e a estrutura das pesquisas E isso, é claro!, sem nenhum naciona­lismo,
“Existe uma filosofia brasileira?”. Escrevo isto realizadas na academia podem “dar conta” nenhuma proposição de origem, nenhuma
o pensamento filosófico
para dizer que muito do que eu gostaria de es­ dessas experiências que não são ocidentais? funda­mentação metafísica, nem nenhuma pro­
crever aqui já se encontra lá, na “resposta” à Mesmo para uma concepção ocidental – de que posta de identidade fechada, de unidade ou to­
questão. Muito do que venho tentando propor, também fazemos parte, embora não só dela –, talidade. Quando falo em uma “filosofia popu­
desde 2016, para pensar uma filosofia brasilei­ será que esse modelo de pesquisa faz sentido lar brasileira”, quero dizer: filosofias populares
ra. Sem negar os importantes estudos de uma (ou fez sentido, pois as críticas não são de hoje)? que se dão ao longo desses brasis, com tantos
história da filosofia brasileira ou das competen­ Cada vez mais, os saberes chamados “po­ sotaques, assinaturas coletivas, ritmos e cores; tempo, por suas singularidades, a multiplici­
tes e fundamentais interpretações da filosofia pulares” ganham espaço em minhas pesquisas, quero dizer que cada um pensa desde seu chão, dade de vozes que se levantam contra as ideias
ocidental que são realizadas em nosso país, a fim de fazer com que minha escrita e meu seu entorno, daquilo que lhe constitui, sejam os cafonas e ultrapassadas de universalidade ou
pretendo pensar além do que é realizado estri­ modo de pensamento filosófico acadêmico se bailes funk, os sambas, as macumbas, os sho­ de neutralidade.
tamente na academia filosófica. construam de outra maneira. Por isso, posso ws de rock de garagem, os cultos evangélicos, Este dossiê, portanto, é uma tentativa de
Em um primeiro momento, minha proposta arriscar dizer que este dossiê que – com muita o ateísmo, o frevo, os maracatus, enfim, tudo trazer algumas dessas vozes que adoro ouvir,
seria levar em consideração que existem expe­ alegria e entusiasmo – organizo tem seu início aquilo que marca nossa pisada nesse chão. de dentro e de fora da academia, de diferen­
riências filosóficas importantíssimas em ou­ em 2020, com a publicação do dossiê Filosofia É por isso que as filosofias tantas deste tes regiões do país, mulheres e homens, indí­
tras regiões do globo terrestre, não apenas no e macumba, no número 254 da Cult, organiza­ país, que nem caberia aqui nomear por região genas, pretos, brancos e pardos, que, cada um
chamado Ocidente, e com isso garantir o nome do em parceria com Luiz Rufino. (sabendo, é claro, que uma das coisas mais a seu modo, com seu sotaque e sua assinatura,
“filosofia” também às experiências de pensa­ O encontro com Rufino e com Luiz Anto­ importantes a abalar é a insistência de que a chama a atenção para o fato de que, como fir­
mento que, ao longo dos séculos, foram desen­ nio Simas foi fundamental para firmar a ideia filosofia só acontece em certo eixo do Sudeste), ma o ponto de caboclo, a beleza na pisada de
volvidas no Oriente, na África ou nas Américas. de que, diante do projeto de Brasil do qual que­ essas filosofias sotaqueadas, cantadas cada cada um é, justamente, ao pisar na areia, pisar
Assim, temos que pensar que o termo “filosofia” remos nos afastar (um Brasil que se quer ainda uma a seu modo, podem expressar ao mesmo no rastro dos outros.

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Exu nos cria,


Exu nos sustenta
O orixá é o Voinho de todos/as que encontram em sua
boca farta a comida que saciará suas
vulnerabilidades, mas ele nos testa

Adailton Moreira Costa

A
figura de Exu sempre foi a de um mais velho cuidadoso e atencioso no cuidar de
parente muito próximo por quem seus filhos. Em nosso olhar e percepção, não
aprendi a ter afeto e respeito, tal havia questionamento, ele era nosso “Voinho”
como um mais velho que me como minha mãe assim disse, e a palavra tinha
orientava nos caminhos da vida. Em minha significação, pois tínhamos pertencimento em
infância, esse orixá tinha a incumbência de nossa criação de axé, ele não era um estranho
nos olhar (cuidar), enquanto minha mãe ia a nós, pois a pedra se comunicava com minha
trabalhar, era a ele que minha mãe delegava mãe e ele era seu pai.
as recomendações quanto a cuidar de seus fi­ Três filhos pretos em casa sozinhos: era
lhos enquanto ela estava na casa da madame essa a realidade que vivíamos, era essa a rea­
como empregada doméstica. Seu tempo de lidade daquela mulher preta. Desencantada
cuidar de seus filhos nem sempre era compa­ com a figura masculina que abandonou a ela
tível com a função que exercia (somente Exu e aos filhos, somente Exu era confiável, Exu
era confiável para o cuidado de seus filhos). era seu pai, Exu era o avô de seus filhos. Mui­
Mulher sozinha, provedora de sua prole, sem tas vezes, mesmo com tantas recomendações
ROBERTO REIS/ARQUIVO NACIONAL

homem que fizesse esse papel. para que ficássemos em casa e não aprontás­
Em Exu ela confiava, e dava as recomenda­ semos, fazíamos tudo ao contrário (éramos Loja de
ções aos filhos: “Não aprontem, pois seu avô netos de Exu), transgredíamos as normas. artigos para
umbanda
está tomando conta de vocês”. Aquela pedra Mas no que se refere às normas aos seus no Rio de
em um “caqueiro” atrás da porta se materia­ netos, Exu não deixava barato; contava tudo Janeiro,
lizava em nosso avô, a pedra era um parente o que tínhamos feito de errado a minha em 1969

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mãe, ficávamos muito chateados por ele ter


falado demais (Laroiye, o Falador), às vezes
Era essa a realidade daquela
mulher preta. Desencantada
Por uma filosofia
do ser-tão
pensávamos que tinha sido uma vizinha que
havia contado que pulamos a janela e fomos com a figura masculina que
pra rua, mas tudo caía por terra, já que entrá­
vamos pra casa perto do horário de ela chegar, abandonou a ela e aos filhos,
Um pensamento do pé no chão, mesmo quando
e ficávamos da janela observando ela entrar
no portão, ele se abrir rangendo dando o si­
somente Exu era confiável estamos com a cabeça nas nuvens
nal, e víamos que não tinha ninguém para dar
queixa de nós à minha mãe. Ela já abria a porta
dizendo: “Quem mandou vocês irem pra rua?”.
Nos olhávamos e sabíamos: “Voinho contou ainda mais quem vem pedir comida, não se
pra mainha”. Exu era nosso criador/cuidador, pode negar. Após preparar um farnel de com­
aquela pedra no caqueiro, era nosso queri­ pras para ela, me lembrei que havia carne de
do, nosso voinho, nunca tivemos medo dele, frango e de cabrito no congelador, essas car­ Quem nasceu sob luz de lamparina não tem medo da escuridão...
muitas vezes Exu se presentificava, ouvíamos nes congeladas eram das ofertas de Exu que
assobios fortes e potentes, sem ninguém por iríamos comer ao longo da semana (a carne
perto, era Exu, ele se mostrava, nos dizendo dos animais que oferecemos aos orixás como
com suas artimanhas “Eu estou aqui”. Minha oferenda são divididas depois aos membros
mãe sempre falava que Exu era seu pai, seu da comunidade, pois estas carnes para nós são
marido, seu irmão, seu filho, era Exu que dava sagradas, contêm axé).
seu chupa molho (costela de boi), que nos ali­ Perguntei à senhora: “Nós temos carne
mentava, era o nosso provedor, nos sustentava que oferecemos aos orixás, você aceita?”, ela Adilbênia Freire Machado

F
dando forças àquela mulher preta para supe­ prontamente me respondeu, “Meu senhor,
rar as adversidades, que eram muitas. meus filhos estão há três dias sem ter o que
Hoje minha mãe não está mais fisicamente comer, o senhor acha que eu irei dizer que não oi assim que eu vim ao mundo, sob Os saberes do sertão são os fios que bor­
conosco, mas a cada vez que acontecem as festi­ quero? Seus orixás estão matando a nossa luz de lamparina, entre o finzinho dam a filosofia do ser-tão, uma filosofia do pé
vidades de “Voinho”, através dele ela se faz viva fome, estou na rua pedindo e ninguém me so­ de uma tarde e o início de uma noite de no chão, mesmo quando estamos com a cabe­
em nossas memórias que falam na linguagem correu, foi aqui que eu tive o socorro”. Naquele quarta-feira... com a força de minha ça nas nuvens, uma filosofia da cabaça na ca­
de Exu, assim como nas comidas de Elegbara momento eu senti a força de Exu e voltei ao mãe e a sabedoria ancestral de uma parteira, beça, do banho de cuia, das roupas lavadas na
(Aquele que Tem Poder), em seus cânticos. Nos­ tempo de necessidades que vivi com minha minha Mãe Chica... Meu pai tocava fogo no beira do rio, dos banhos de açude, da lampari­
sas danças pra ele, seus ritmos, nossos corpos mãe e meus irmãos, quando Exu sempre dava mundo, como ele costuma dizer, quando foi na alumiando o mundo, do lampião, do fogão
são como oferendas, nossos corpos falam a fala um jeito para nos prover. chamado na roça que limpava para o plantio... a lenha, do leite quentinho direto da teta da
de Exu. Hoje somos adultos, bem criados por Ele, de novo, estava cuidando de uma fa­ As sabedorias ancestrais de mulheres que nos vaca, da fruta no pé, dos vaqueiros, das ben­
Exu, e, quando damos de comer a ele, dizemos mília, onde mais uma vez a mulher tem Exu aparavam quando nascíamos, as sabedorias zedeiras, das contações de histórias em volta
que quem dá de comer a Exu sem pedir nada como guardião de sua família. Exu é o meu ancestrais no manuseio das ervas medicinais, de fogueiras nos terreiros... Nossos terreiros,
em troca não passa fome, pois Exu movimenta­ Voinho, Exu é o Voinho de todos/as que en­ do barro, do couro, do milho, do feijão, do al­ lugar onde aprendemos a correr, cair e levan­
rá seu Ogó (bastão) e fará a comida chegar. contram em sua boca farta a comida que sa­ godão, do arroz, do gado, das galinhas, dos ca­ tar, lugar de festas diversas, de culto e de missa,
Um certo dia estava eu na Roça com alguns ciará suas vulnerabilidades, mas Exu nos testa. potes... tudo isso tece meu pensar, meu filoso­ lugar da brincadeira de velho, como ensinou
filhos de santo e chegou uma jovem senhora Aquela comida que estava congelada não se­ far desde o meu sertão do Inhamuns (Ceará), meu sobrinho (Menino Velho), aos quatro anos,
pedindo comida e dizendo que não tinha ria consumida naquela hora, e já que iríamos meu Pau Preto, minha filosofia do ser-tão. ao meu pai (Velho Menino), já com seus 68:
como alimentar seus sete filhos, fiquei muito fazer outro dia, Exu mandou aquela mãe em Minha mãe ensinou-me/ensina-me a ler “...brincadeira de velho é ficar parado olhando
triste com sua situação e dos seus filhos, na nossa porta naquele momento, e aquele ali­ a lua, minha vó Genuina (in memoriam) me o tempo!”. Sabedoria do tempo, de saber ouvi­
mesma hora saí pegando o que tinha na des­ mento teria seu sentido saciador, ao saciar ensinou e segue ensinando, pela voz do meu -lo, senti-lo...
pensa junto com um filho de Xangô. De casa bocas e barrigas, bocas de filhos, boca de mãe. pai, a ler os pássaros... são leituras contínuas Talvez seja esse o sentimento que perpas­
de candomblé ninguém pode sair sem comer, Exu Enugbarijo (a Boca do Mundo). e nem sempre traduzidas em palavras. sa a existência de quem nasceu com o pé

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no chão sob luz de lamparina... A escuridão é


potência criativa que ativa, aguça nossa sensi­
nossa resistência ancestral! A ancestralidade
que tece nossa memória, e é bordada por ela,
Em torno de um
bilidade, nossa relação com a natureza, nossa
escuta sensível, comunitária... a escuridão no
sertão é guia, é caça, é acolhimento, é traves­
mantém viva a centelha da vida, é nosso vín­
culo com o passado, que permite o presente e
um possível futuro... Cada uma de nós carre­
pensamento enterreirado
sia, é encruzilhada... gamos/somos um fio, uma centelha da vida.
O sertão é, também, convite para adentrar Por isso, a memória ancestral é o alimento, o O contexto da resistência criadora é o que mobiliza
nas matas fechadas de nossos corações, e a motor, a energia que nos mantém ligadas às as diversas matrizes de produção de conhecimento pelos
filosofia do ser-tão – que é tecida, ao mesmo nossas raízes, enraizando, permitindo ganhar povos africanos e indígenas
tempo que tece, pelas filosofias africanas o mundo sem perder essas raízes, sem perder o
mediadas pela ancestralidade e pelo encanta­ sentido da própria existência... É silêncio
mento – é convite para adentrarmos em nosso que não nos permite esquecer que só somos
coração, ouvir nossa intimidade, ouvir a na­ em comunidade e em relação com a nature­
tureza que nos habita e, assim, harmonizar za, portanto, a subjetividade da nossa pessoa
nossa existência no/com universo, pois somos (que é múltipla) só é possível nessa existência
parte do todo e o todo está em nós... ancestra­ em teia... ser antes da própria existência física,
lidade é o universo que nos habita... somos continuidade... pois somos ancestrais!
universo, somos ancestrais! A harmonia nos Sabedoria do ser-tão, de um tempo ances­
ensina a seguir nosso fluxo como os rios que tral, pois nosso presente só é por existir um
correm em busca de sua cabeceira... Mesmo passado, portanto é movimento e atualização
na seca ela nos ensina a seguir nossos fluxos. do passado, dando sentido ao presente e pos­
A seca mata, mas também alimenta, fortale­ sibilitando um futuro.
ce, ensina a perseverar, a resistir, a re-existir... A filosofia do ser-tão tecida pela cultura wanderson flor do nascimento

E
É cheia de artimanhas e encantos! popular e ancestral dos sertões nos ensina a
A natureza ensina que germinar necessi­ pertencer à própria vida, à natureza, a ser ter­
ta de silêncio e tempo... Assim, com a escuta ritório, pois somos território... corpos territó­ xperimentamos o hábito de lidar questioná-la a partir das heranças africanas e
sensível aprendemos sobre nós, sobre nossas rios e ancestrais. É filosofia da terra, a grande com certa caracterização da filo­ indígenas que os terreiros acolheram. Gosta­
histórias ouvindo histórias... Memórias que mãe, o útero da vida... é feminina! É filosofia sofia como um modo de pensar ria de provocar esse questionamento com base
dão sentido à nossa existência... é o movi­ encantada e ancestral... enraizamento e po­ que tem vínculos com a abstração, em um ethos macumbeiro específico que, em­
mento Sankofa: “Quando não souberes para tencialização da vida! com a criação de conceitos que, não raro, são bora visível também em outras experiências
onde ir, olha pra trás e saiba de onde tu vens”!. Meu ser-tão vem da escuta sensível ances­ entendidos como explicações gerais de fenô­ de terreiro, é muito pulsante nas vivências dos
Sankofa, nossa galinha-d’angola, os capotes tral do chão de terra batida do Sertão do Inha­ menos que, no mais das vezes, nos exigem um terreiros dos candomblés de angola – originados
do meu sertão, nos ensinam a não perder o muns (Ceará), da comunidade Pau Preto, em distanciamento, um afastamento, uma posi­ desses encontros entre as culturas dos povos de
vínculo com nosso passado, com nossas tra­ Parambu, das lembranças das cercas puladas ção de objetividade para pensar. Se tomarmos línguas bantas no Brasil e os saberes de nossos
dições, que não são estáticas, mas dinâmicas, para comer fruta do pé, com um salzinho para essa caracterização específica como verdadei­ povos originários, numa relação entremundos
pois só há vida em movimento. A memória é ficar mais gostosa. E o seu, de onde vem? ra, poderíamos pensar que os terreiros – esses com as culturas coloniais que nos cercam. É
territórios experienciais criados por pessoas desse ethos que venho propondo a ideia de um
negras, em alianças com saberes e práticas pensamento enterreirado, que emerge no e do
indígenas, que hospedam as tradições de ma­ terreiro, e que é uma das expressões de nossa

A escuridão é potência criativa que ativa, aguça nossa trizes africanas, como os candomblés, as um­
bandas, os batuques, os catimbós, as encan­
filosofia popular brasileira.
A vulgata macumbeira descreve as pessoas
sensibilidade, nossa relação com a natureza, tarias, as mais variadas macumbas etc. – são angoleiras, as vivenciadoras dos candomblés
lugares de produção da filosofia? de angola, como desconfiadas e observadoras,
nossa escuta sensível e comunitária A resposta mais rotineira seria “não”. En­ que falam pouco com pessoas de fora da tra­
tretanto, em vez de tomar essa caracteriza­ dição – ou falam muito sobre o que não é es­
ção como acertada e exclusiva, poderíamos sencial para compreender o que se passa no

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A pluralidade é festejada, pois a festa é expansão, encontro “É preciso aprender


a voltar para casa”
e celebração – que, apesar dos conflitos, comemora o existir

A fala do filósofo Nêgo Bispo indica que muitas vezes buscamos


no mundo filosofias que podem estar no nosso chão
núcleo daquilo que importa, para saber o que gas é o fortalecimento da comunidade, o que
se sabe no interior da tradição desses candom­ traz seu caráter coletivo para a cena do pensa­
blés, embora essas pessoas sejam eminente­ mento enterreirado. Tudo pode ser colocado em
mente herdeiras daquilo que Glória Moura, relação, desde que não seja destrutivo para a co­
professora da Universidade de Brasília (UnB) letividade. Por isso, não é um pensamento que
chamou de “cultura de festa”. Tais caracterís­ preza por nenhum tipo de pureza, pois sabe Pra quem tem casa/fé, a vida nunca tem fim...
ticas parecem apontar para uma maneira de que o passado ancestral é diverso. Essa diversi­
produzir e fazer circular os conhecimentos e dade, essa pluralidade é festejada, pois a festa
o modo de pensar dessas comunidades. é expansão, encontro, celebração – que, apesar
As pessoas angoleiras, como as demais, dos conflitos, comemora o existir.
pensam a partir de seus modos de vida. Os É também um pensamento crítico e auto­
modos de vida que habitam os terreiros são crítico – o que reverbera o caráter da descon­
vinculados a duas dimensões: a resistência à fiança atribuído a pessoas angoleiras, por re­ Lorena Silva Oliveira

N
violência colonial, preservando e mobilizan­ verberar o princípio do pensamento dos povos
do saberes, valores e práticas herdados dos de línguas bantas, expresso pelo filósofo sul­
modos africanos e indígenas de ser e viver; -africano Mogobe Ramose, de que a realidade as caminhadas em busca de território sagrado que nestas breves linhas eu
e a criação, que produz estratégias, saberes e é percebida estando em intensa mutabilidade e conhecimento e de uma insa­ não seria capaz de descrever.
sentidos para viver neste mundo atravessado relacionalidade. E esse tipo de pensamento se ciável liberdade intelectual, em Mas o que me tocou foi a mensagem deixa­
por persistências coloniais. São modos de vida esforça para que o pensar corresponda à es­ um domingo ensolarado, típi­ da por ele, que hoje se torna título desta refle­
que resistem criando e que criam resistindo, trutura do real, dinâmico, inter-relacionado, cos domingos cariocas, fui na companhia de xão e me leva também a apresentar a você, lei­
no âmbito dessas estratégias de recriação dos plural, o que demanda a crítica e a autocrítica uma filósofa amiga a uma casa de candomblé tora e leitor, o que eu tenho sentido e pensado
sentidos da existência em face de tensões co­ permanente do que se pensa e do que se faz. angola para assistir à palestra de um convida­ desde aquele dia em que o filósofo nos disse:
loniais (que articularam, de maneira letal, o É um pensamento incorporado, já que não se­ do muito especial: sr. Nêgo Bispo. “Vocês precisam aprender a voltar para casa.
racismo, o sexismo e as violações laborais). para binariamente o corpo do espírito pensan­ Na ocasião, aquele espaço mexeu muito É preciso aprender a voltar para casa”.
Esse contexto da resistência criadora, no­ te e se vincula com a experiência vivida, que com a minha energia. Ora era um misto de Ele se referia, naquela ocasião, à quantidade
meada por Ana Lúcia Silva Souza, professora da sempre atravessa os corpos, evitando, assim, reconhecimento daquela energia que me afetava, de jovens que saem de suas comunidades para
Universidade Federal da Bahia (UFBA), de “ree­ o distanciamento ou a objetividade. ora era uma sensação de estranheza, de incom­ estudar ou trabalhar e não sabem mais voltar
xistência”, é o que mobiliza as diversas matrizes Essas dimensões do pensamento enterrei­ preensão: por que eu estava me sentindo daque­ para casa. Para os territórios que os alimenta­
de produção de pensamento e conhecimento rado nos colocam diante de um profícuo modo la forma? Isso posto, quero demarcar o impacto ram e os mantiveram vivos. E como isso é preju­
pelos povos africanos e indígenas que consti­ de produzir conhecimento e filosofia a partir das palavras que foram proferidas pelo pales­ dicial para todos, sobretudo para a comunidade.
tuem os terreiros. Por isso, a primeira dimen­ dos terreiros, que têm no precário um aliado trante no chão daquele território sagrado. Meu povo! Essas palavras, proferidas
são do pensamento enterreirado é a da criação produtivo, evitando a arrogante prepotência Nêgo Bispo é um filósofo quilombola em 2019, me afetaram de diversas formas e
resistente, da reexistência. Outra característica de tudo poder saber e nos oferecendo pistas piauiense que muito tem inspirado e revo­ vários pensamentos foram potencializados
desse pensamento enterreirado é sua dimensão interessantes para fortalecer esse pensamento lucionado o pensamento social brasileiro com essa mensagem transmitida pelo filó­
pluralista, que recusa binarismos excludentes que é nosso, que é popular, brasileiro; um pen­ e acadêmico. Com sua simplicidade, alegria e sofo quilombola. Sobretudo quando ele lem­
como fundamento. Não opera na lógica do “isso samento que preza pelo plural das histórias que discernimento, trouxe para nós, jovens ávidos brou que os quilombos e os terreiros foram
ou aquilo”, mas no horizonte do “isso e aquilo”, nos constituem. E que nos mostra o quanto po­ por conhecimento e amantes da revolução in­ os primeiros territórios na diáspora que per­
elemento que sustenta as milongas, misturas, do demos aprender com os terreiros, se não nos telectual, tantas reflexões e inspirações a partir mitiram a manutenção de nossa vida e dos
pensamento angoleiro. O contrapeso das milon­ prendermos às armadilhas racistas coloniais. de sua práxis quilombista e amparado naquele hábitos culturais.

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Desde então reflito: teria eu me perdido mos no mundo filosofias que podem estar no
pelo caminho? Por que não voltei para casa? nosso chão. E a pandemia, apesar de todas
Para o território que me gerou, alimentou e as dores, tem trazido essa mensagem. Preci­
permitiu minha existência? Essas questões, samos voltar para casa, para o nosso lar, para
ao mesmo tempo que se referem diretamente ao o nosso território. Nele podem estar, se não
não retorno para o território como espaço ge­ muitas respostas, algumas. Ou alguns enca­
ográfico, também se referem ao não retorno minhamentos. É isso que tenho aprendido.
para o território espiritual. Desde a pandemia, estou “presa” no meu
É sobre essas questões que conversaremos território, e minhas reflexões necessitavam
agora. de visitas a diversos territórios quilombolas,
Como eu disse, desde que Nêgo Bispo pro­ pois busco responder algumas a partir deles.
feriu essas palavras naquele território, meus No entanto, isso não foi possível. Mas a vida
pensamentos sobre a necessidade de retornar é sábia, ela nos surpreende. A ancestralidade
para o nosso território (geográfico e espiritual) conversa conosco e nos auxilia a recordar do
não saíram da minha mente. Mas, dadas as nosso acordo com a humanidade a todo mo­
condições em que me encontrava (cursando mento, me ensinou o grande filósofo Carlos
doutorado na Universidade Federal do Rio Henrique Veloso (Bàbá Ònà).
de Janeiro, UFRJ), busquei deixar esses pen­ Logo, acreditei que ela me auxiliaria a Cerimônia em terreiro do Rio de Janeiro, em 1971
samentos de lado, pois o retorno não poderia responder às minhas reflexões. E tem auxi­
acontecer tão brevemente. Contudo, tal ati­ liado... Primeiramente, nesse retorno, tenho
tude não me privou de constantes reflexões aprendido no meu território geográfico e com cessário, pois a sabedoria de que precisamos filosofia, sabedoria, visões de mundo também
e de uma vontade inenarrável de voltar para o meu território espiritual (casa de umbanda) para viver, a filosofia que precisa fazer sentido, existem aqui. Vocês não podem imaginar o
casa. E saibam: eu sou filha do vento! Andar que nossas inquietações filosóficas têm suas pode estar na singela experiência que temos quanto eu tenho compreendido que a filosofia
por esse Brasil é a coisa que mais amo. Como respostas na vida. É na concretude da vida, na com os substratos que nos constituem. brasileira, a filosofia deste chão, pode fazer vi­
poderia estar sentindo essa vontade de voltar experiência sagrada, na conexão com o chão E por que negamos isso? Por que preferimos ver. O quanto ela vibra na vida, nas experiên­
para casa, para Minas Gerais? (geográfico e espiritual) que devemos, muitas acreditar que buscar em outros mundos/casas/ cias coletivas e singulares que me/nos consti­
“Ah, Minas Gerais... quem te conhece não vezes, buscar as respostas para as questões territórios nos tornará pessoas melhores? Por tuíram e me/nos circundam.
esquece jamais!” Essa frase é famosa entre que tiram nosso sono. que negamos nosso território mesmo sabendo As histórias da minha terra, que tenho in­
nós, mineiros. E não é que ela começou a fazer Voltar para casa está além de simplesmen­ que, aonde quer que formos, ele sempre estará em vestigado, têm alimentado minha alma e mi­
sentido para mim? Nesse ínterim, 2019 passou te retornar para a casa onde crescemos, para nós? Entre nós! Por que negamos a filosofia pre­ nhas escritas filosóficas. Têm colorido esses
e em dezembro decidi voltar, pois meu coração as primeiras relações que estabelecemos. sente no nosso chão e buscamos outras? dias sombrios e buscado colorir as filosofias
(Ib, diria nossa filósofa Katiúscia Ribeiro) me Voltar para o nosso território diz respeito à O que me inquieta, leitorxs, é essa nega­ brasileiras. Essas histórias e experiências têm
dizia que retornar era urgente. Era preciso. necessidade de nos alimentarmos do que nos ção. Não desconsidero a importância de ou­ desvelado uma Filosofia Política Preta do Prata,
Desde que voltei , o território que me ge­ mantém vivos até hoje. A experiência dos afri­ tras experiências. Quero refletir é sobre o por­ alimentada pela força da cultura bantu. Têm
rou tomou minha atenção. O nome dele é canos em diáspora me fez compreender que o quê de negarmos, escondermos o nosso chão. demonstrado que é essa filosofia que tem pos­
Prata e está localizado no interior de Minas, território espiritual e geográfico está subjacen­ Por que não voltamos para casa? Foi preciso sibilitado a manutenção da vida das pessoas
especificamente no triângulo mineiro. Nesse te nessa categoria casa utilizada pelo sábio uma pandemia para que muitos de nós voltás­ desse chão.
retorno, senti um amor por esse chão que eu Nêgo Bispo, pois reconectar com a energia semos, e esse fato me fez recordar o que vovó A afroperspectividade tem me dado as
nunca havia sentido! Acreditem. Nunca! Há que cada um desses territórios nos fornece sempre me disse: “Se não vai pelo amor, vai chaves de leitura para tentar traduzir esse en­
mais de dez anos eu havia me mudado para pode ser um dos remédios de que precisamos pela dor”. E a pergunta que deixo é: qual ca­ canto, mas a volta para casa é que tem feito eu
poder estudar. E nesses dez anos nunca voltei para combater esse vírus (colonização mental minho continuaremos escolhendo para voltar encontrar e sentir o sentido de tudo.
para casa com o olhar e o sentimento de agora. e espiritual) que nos impede de dar prioridade para casa? Por fim, se você também quer sentir o sen­
Aonde quero chegar com isso? (Você deve às nossas culturas, às nossas filosofias. A minha volta, felizmente, tem desembaça­ tido de tudo, experimente se reconectar.
ARQUIVO NACIONAL

tá pensando.) É importante ir para o mundo e conhecer do minhas lentes e me auxiliado a ver o mundo, Voltar para casa pelo amor.
Quero lhe dizer, leitora e leitor, que a fala outros territórios, auxilia a nos desenvolver­ meu território geográfico e espiritual, como o Você também poderá sentir que pra quem
do filósofo Nêgo Bispo me despertou: busca­ mos. Mas voltar para o nosso território é ne­ lugar necessário para que eu com­preenda que tem casa/fé, a vida nunca tem fim...

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Filosofia com(o) sotaque:


patoás, patuás e amarrações
O dialeto pode ultrapassar a dialética porque não sintetiza
nem sincretiza nada, mas retém a tensão em relação à norma

Thiago A. P. Hoshino Patuás em loja de artigos para umbanda no Rio de Janeiro em 1969

Isso é sotaque.” Uma das primei­ sotaques de terreiro e e-vocando Frantz Fanon dade. Quando Lélia Gonzalez sugere o poder isso também que a filosofia é sempre e inarreda­
ras lições que aprendi com meu e Lélia Gonzalez, quero trabalhar para virar no generativo do pretoguês, não só descortina o velmente amarração: menos até de categorias,
pai de santo, Ubaldino Bomfim, santo o aforismo em alemão, propondo uma fi­ português como cavalo de santo de uma mul­ como se costuma supor, e mais de imaginações
foi distinguir o que se canta, losofia que seja a luta pelo (re)encantamento de tiplicidade de línguas-universos diaspóricos, e modos de conjugar (tradições, por exemplo) e
quando se canta e para quê. Seu “Isso é sotaque” nossa razão, nos meandros de nossa linguagem. mas também desata o desbunde e a abundân­ conjurar (ancestralidades, por exemplo).
era um alerta a respeito do que ativamos com Não é por acaso que Fanon inicia seu ma­ cia como potências da linguagem. É deles, da­ Assim, ao levar às últimas consequências
o axé da fala, com o poder das palavras: o que gistral Peles negra, máscaras brancas (1952) em quilo que escapa ao dizível, que depende a fei­ seus exorcismos ontológicos e epistemológicos,
elas despertam e movimentam. Num mundo franco estranhamento idiomático, isto é, pelo tura da filosofia “como exercício permanente parte da filosofia ocidental parece ignorar os
de materialidades vibrantes em que todo cui­ problema do sotaque e do dialeto. O “patois”, de decolonização do pensamento”. feitiços de que ela mesma é fruto. Entre eles,
dado é pouco, o sotaque de santo faz falar e faz ele nos relata, é índice ambivalente da diferen­ Essa filosofia com(o) sotaque não deixa de os da colonialidade e do epistemicídio. Não
agir; é o verso que se (a)tira, que se lança, com ça colonial: “Na escola, o jovem martinicano versejar com Wittgenstein e outros fantasmas, será isso o que as “luzes” da modernidade
ou sem direção certa, ao modo de bravata ou de aprende a desprezar o patoá. Fala-se do criou­ mas os vira, os trans-versa, os desafia, os con­ ofuscam? Se os colonizadores afirmavam que
gracejo, e que convida a respostas muitas vezes lismo com desdém”. Em terras brasileiras, funde, os (des)possui, enfim, dando passagem a “onde chega a luz elétrica, a feitiçaria se esvai”,
improvisadas e imprevisíveis. Há também o so­ aos patoás vernaculares vieram somar-se os muito mais entidades do que admitiria o Espíri­ na casa de meu tata, eles talvez ouvissem uma
taque que é, desde logo, demanda: amarração e patuás-sortilégios. Forjado no encontro e na to hegeliano. É nesse sentido que o dialeto pode resposta sotaqueada bem ao gosto de exus e
feitiço, tão en-canto como ento-ação. relação afroindígena, ao des/reterritorializar ultrapassar a dialética (embora com ela parti­ pombagiras, doutoras(es) do Atlântico negro:
Até Ludwig Wittgenstein tinha medo de o termo tupi “patauá” (cesto ou invólucro), o lhe da mesma raiz grega, diálektos: con-versa)
feitiço. Foi ele quem, nas Investigações filosófi- patuá torna-se justamente aquilo de que Witt­ porque não sintetiza nem sincretiza nada, mas Lá na Alemanha tem eletricidade
cas (1953), aspirou a uma filosofia como “luta genstein queria ver-se livre: a mandinga, a retém a tensão em relação à norma, ao mesmo mas eu não sei quem foi que botou.
contra o enfeitiçamento (Verhexung) de nossa magia, a macumba. E que, inadvertidamente, tempo que a performa e a deforma. Por isso os O inimigo que vem da Alemanha,
compreensão, pelos meios da nossa linguagem” sempre volta a incorporar, pois não se comba­ encantados, quando falam, falam com sotaque o inimigo apanha
ARQUIVO NACIONAL

(§109). Minha pequena intervenção lança um te feitiço senão com feitiço. e ostensivamente com sotaque. É o código (do nos pés do doutor.
sotaque – tomado no sentido cosmopolítico – Tanto patoás como patuás, portanto, ver­ santo e da língua de santo) que afronta e subver­ (Zuela de Exu cantada no
aos espectros da virada linguística. Vocalizando tem enredos e vocabulários da amefricani­ te o código (da branquitude e do racismo). É por Abassa de Xangô e Caboclo Sultão)

26 27
dossiê

Corpo-herança, caldeirão de maniçoba fervendo por sete dias


no quintal, cada reza da benzedeira, cada festa
chão simultaneamente granítico e espiritual,
singular e irredutivelmente plural.

corpo bio-gráfico
de Círio de Nazaré, cada garganta curada com Por fim, tenho também gostado de pensar
andiroba, cada pisa, cada história de visagem, que meu corpo-herança talvez seja como o mo­
cada morte do boi de Morros, cada banho de nolinguismo de Derrida, que se demora “e eu lhe
praia, cada trepada na beira do rio, sem falar chamo minha morada. Sinto-o como tal, nele
no sem-número de violências. A lista é imensa me quedo e habito-o. Ele me habita. O mono­
O discurso filosófico, ainda que almeje a universalidade, e mesmo assim são apenas algumas das coi­ linguismo [que tenho gostado de chamar corpo­
teve de começar na singularidade e num espaço delimitado sas que posso contar, pois fazem parte de um -herança] no qual respiro, mesmo, é para mim
certo arquivo. Mas há incontáveis heranças, o elemento [...]: não posso recusá-lo senão ates­
memórias inarquiváveis que, no entanto, for­ tando sua onipresença em mim. Ele ter-me-á
mam esse corpo: herança incalculável – segre­ desde sempre precedido. Sou eu. [...]. O que não
do escrito na pele que me veste, e me cai muito quer dizer de modo algum, não vás crê-lo, que eu
bem, aliás. Cada corpo-sujeito falante é assim: seja uma figura alegórica deste animal ou desta
Ana Emília Lobato obedecendo a uma injunção, se inscreve no verdade – o monolinguismo [o corpo-herança].

F
mundo recortando e costurando, escolhendo Mas, fora dele, eu não seria eu mesmo” (O mo-
e decidindo nisso que foi herdado; aprendendo nolinguismo do outro ou a prótese de origem, Belo
riedrich Nietzsche escreveu que a pareceu tão fecunda para pensar articulada­ a partir disso que não “aprende nunca”, desse Horizonte: Chão de Feira, 2016, p. 24).
aprendizagem, como a alimenta­ mente o corpo, a singularidade e a herança na
ção, nos transforma, não apenas escrita da filosofia. Porque o discurso filosófico,
nos sustenta, porém que “no fundo ainda que almeje a universalidade, teve de co­
de todos nós, ‘lá embaixo’, existe algo que não meçar na singularidade de um corpo, no espa­
aprende, um granito de fatum [destino] espiri­ ço delimitado de uma herança.
tual [...]” (§ 231). Ultimamente, tenho lido esse E, no caso de uma sujeita como eu, minha
aforismo para pensar o corpo: primeiramente escrita na filosofia é traçada a partir de uma he­
meu corpo singular, de mulher, negra (de pele rança colonial, sobretudo. Essa marca irredu­
clara), gorda, vinda da região Norte, que ocu­ tível – cada vez mais incontornável, impossível
pa, um tanto desconfortavelmente, um espaço de dissimular como fazem os filósofos de ver­
acadêmico e desenvolve uma pesquisa em fi­ dade, que se esforçam para esconder o desejo
losofia; mas como toda singularidade deve po­ biográfico que teima em se inscrever em seus
der se tornar exemplar. Gosto desse aforismo textos – é o próprio corpo-sujeito que, com sua
também para pensar os corpos dos sujeitos em arquitetura, fala um “eu sou”. Foi assim que co­
geral, corpos-sujeitos falantes. mecei a considerar a hipótese de pensar no cor­
Essa é uma questão que se foi impondo con­ po como origem sem origem da verdade; uma

A
forme eu me dava conta de que a neutralidade verdade de tal modo singular que não pode
e a universalidade da ciência, e da filosofia em existir sem terra natal, sem ancestralidade.
particular, não caíam muito bem em corpos Não se trata de uma espécie de privilégio
como o meu. Por mais que eu me transformas­ da biologia, não me refiro aqui a determina­
se aprendendo e me alimentando do que havia ções genéticas ou algo do tipo, penso o cor­
de mais nutritivo no cardápio filosófico, algo po mais como bio-gráfico do que bio-lógico.
em mim se recusava e parecia obedecer a ou­ O corpo, em sua materialidade, sua arquite­
tros imperativos. Era como se a interioridade tura, sua paisagem, é também um texto, uma
da sujeita que eu pretendia ser desenhasse uma escrita da vida que foi se tecendo, sim, a cada
paisagem diferente. Por isso, a imagem de um combinação genética aleatória, mas também
“granito de destino espiritual”, que forma a ma­ a cada aprendizado, cada espanto, cada gesto
téria à medida que doa e recebe marcas, como compartilhado por uma ancestralidade per­
leu Jacques Derrida no texto nietzschiano, me dida; cada tigela de açaí com pirarucu, cada

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dossiê

Nas bandas de cá,


umbanda
O Brasil é antes de tudo uma casa de caboclo, um feitiço,
que como toda boa artimanha do encanto cruza quem o faz
e quem o recebe

Luiz Rufino Pontos riscados da umbanda compostos de símbolos de Caboclos e Oxóssi

N
esta banda em que cá estamos, ga, é que o Brasil é antes de tudo uma casa de física a um investimento de regulação e do­ ças. Esse contexto, que ela se faz, é a tragé­
existem aqueles que vagueiam caboclo. Os mais apressados no jogo, escassos minação das linguagens, subjetividades e que dia colonial que nos apreende em um estado
assombrados por obsessões car­ de poesia e malandragem, diriam que essa acaba incutindo o desvio existencial. permanente de guerra e que fazemos da vida
tesianas. São seres que, atormen­ marca se dá pelos primeiros moradores des­ O caboclo como presença que anuncia ou­ um ato de batalha entre as bandas desse
tados pelos mais diferentes kiumbas civilizató­ se lugar, aqueles que aqui habitavam antes tro Brasil a partir das sete encruzilhadas que mundo cindido.
rios e dependentes dessas energias, insistem da chegada e ocupação da empresa colonial. se multiplicam ao infinito é aquele que não se Muito se diz sobre a umbanda, porém ain­
em dar de comer aos fantasmas da neurose Em certa parte, faz sentido, porém não ras­ reduz as sobras viventes e não se conforma na da pouco se escuta o que ela fala. Faltam ouvi­
cultural brasileira, da democracia racial e das pa o fundo do tacho dessa inscrição assente condição de sobrevivente. Como um feitiço dos e corpo para alcançar a virada linguística
muitas cabeças da colonialidade. O Brasil mis­ em uma epistemologia macumbeira. Casa de soprado na esquina do tempo ele supravive e promovida pela poética macumbeira. Assim,
tifica seu projeto de Estado-Nação nos véus da caboclo é antes de tudo um feitiço, que como se inscreve como uma antinomia da civilida­ mais que um giro descolonial é uma gira, já
violência racial/colonial. Uma violência contí­ toda boa artimanha do encanto cruza quem de. Não surpreende vocês, camaradinhas, que que dadas as encruzas e o firmamento dos
nua e sistemática que opera com base em assas­ o faz e quem o recebe. O feitiço convoca para duas décadas após a Proclamação da Repúbli­ quatros cantos desse lugar ela dribla a petu­
sinato, estupro, encarceramento, destruição um jogo de perguntas e respostas em que as ca uma quizumba fosse armada para colocar lância dos sabichões dos caminhos retos. Seus
de ecossistemas, grilagem, servidão e formas de formas como cada um se lança nessa roda de­ mais dendê nessa farofa? catedráticos são das esquinas e contracoloni­
subalternização do saber. Nesta terra, onde finem o seu efeito. A umbanda, que seu princípio não tem zam a métrica dominante. Aqueles que inves­
em cada esquina se faz política, ebós epistê­ O Brasil de pouco mais de cinco séculos método e seu fim é inconcebível ao mais sá­ tem em firmá-la como uma síntese do Brasil
micos e cívicos (como propõe Luiz Rufino), se edifica naquilo que o poeta Aimé Césaire bio, tecida nas funduras do tempo e espaço a observam da beirada e não enxergam esse
há uma legião daqueles que driblam o curso nomeou como sendo um banco de almas. Não como uma política cósmica que entrelaça caldeirão sem fundo ferver o feitiço de brasi­
insistente das linhas retas, escapam do vam­ à toa, nos tempos de hoje ainda existem aque­ identidades, memórias e gramáticas subal­ lidade. A umbanda como política cósmica das
pirismo dominante, cismam com os ideais de les que querem fazer daqui uma bancocracia ternas, emerge como uma reivindicação de almas penhoradas para erguer o Novo Mundo
grandeza dos herdeiros do protetorado branco em que o lucro se constitui em detrimento da encarar o Brasil via a encruzilhada. Permea­ é arriada a moda brasileira com farofa, vela e
e contra-atacam com repertórios infinitos de vida. Um mundo erguido e mantido em cima da de contradições, ambivalências e conflitos, vintém. Dá de comer a quem tem fome, alum­
sabenças ancestrais. da pilhagem de corpos, da quebra dos ciclos a umbanda é fiel ao contexto em que ela é pa­ bra o caminho e deixa o troco para os escassos
REPRODUÇÃO

O que quero dizer em poucas palavras vitais, da destruição das comunidades e da rida e se inscreve como conhecimento das de vida e poesia.
nesse texto, e faço como quem risca a fundan­ aniquilação do ser que vai desde sua morte margens e ação responsável com as diferen­ Saravá!

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dossiê

Uma mulher Não estou falando da cor da pele dos bran­


cos, estou falando da forma de pensar branco

Guarani Nhandewa
daqueles que se sentem superiores a nós, in­
dígenas. Teve um tempo que fiquei um pouco
revoltada pelas situações que estou enfren­
tando em cada esquina, muitas das vezes con­
fundida como peruana, boliviana e assim por
Se todos os brasileiros tivessem a humildade de assumir a diante. E acho engraçado que nunca ninguém
violência do processo de colonização, talvez fôssemos mais me identifica como brasileira. Como se aqui
sábios e saíssemos fortalecidos no Brasil não tivesse nativos.
Quando fico furiosa pela situação que vi­
vencio, sempre lembro que a minha avó dizia
para não responder a atitudes de pessoas ig­
norantes do mesmo modo, no mesmo tom. Por
eu ser mulher indígena, tenho que mostrar o
contrário, e isso não é uma tarefa fácil – ensi­
nar, educar pessoas.
Quem me ensinou a superar e ir além foi
minha avó materna, com quem eu vivi a maior
parte da minha adolescência. Como a minha
avó era parteira, geralmente os pais levavam
seus filhos, as crianças que ela ajudou a vir ao
mundo, na casa dela, para ouvirem as histó­ Mulheres guarani em protesto em frente
Sandra Benites Guarani Nhandewa rias que ela contava. Eram crianças em quem à prefeitura de São Paulo em 2019

S
ela deu banho, como a gente fala. Ela era refe­
rência como nossa educadora.
ou Sandra Benites Guarani Nhan­ indígenas; era diferente de hoje, quando Minha avó e os pais dessas crianças junta­ das nas escolas ou na academia, e as palavras
dewa, minha origem é a aldeia Por­ a grande maioria das aldeias têm professores vam lenha na casa dela para fazer fogueira, e boas, palavras que são sábias e generosas, que
to Lindo, no município de Japorã, da mesma etnia e falantes das línguas daque­ em torno da fogueira, enquanto os pais assa­ nos ensinam para a vida, como as que ouvia
Mato Grosso do Sul, lugar em que las comunidades. vam batata-doce, milho verde, entre outros, a nas rodas de encontro em torno da fogueira.
nasci e vivi até o ano 2000. Depois fui morar Mas nós, alunos, éramos falantes Guarani gente ouvia ela narrar as histórias. E não era Mas sabemos que nós indígenas também
na aldeia Boa Esperança, no município de e não sabíamos falar português, e mesmo as­ somente ela que contava história, quem qui­ precisamos fazer a nossa parte. Precisamos
Aracruz, Espírito Santo, onde existe aldeia sim éramos obrigados a ler e escrever numa sesse contar tinha seu momento de falar, can­ estar de frente nessa luta. Só assim nossas
Tupinikins e Guarani. língua que não falávamos nem entendíamos. tar e contar suas histórias. casas serão parte de nós e não servirão de em­
Como na minha infância eu tinha várias Lembro disso como se fosse ontem: a agonia Por tudo isso, nunca desanimei e sempre baixadas. Em nosso próprio território, somos
dificuldades para estudar, nunca imaginei que e o medo, pois sabia ler o que estava escrito desejei estar no espaço de diálogo, ou seja, nos tratados como hospedeiros estrangeiros. Con­
iria chegar ao doutorado. Nem sabia o que era no papel mas não compreendia nada, porque espaços de encontro com os outros que pen­ tinuamos recebendo ordem dos colonizadores
ser doutora e ainda bem que não sabia que essa era numa língua estranha. Em casa, todos fa­ sam diferente de mim. Sempre soube que como se tivéssemos dívidas por sermos colo­
posição de doutor é tão importante para os dju­ lavam somente em Guarani, e eu comecei de saber escutar é ir além, um encontro com nizados. Os brasileiros foram tão fragilizados,
rua, os não indígenas. Porque, se eu soubesse, fato a aprender a falar e compreender a língua pessoas diversas, para a produção de conhe­ até chegar ao ponto de aceitarem e acredita­
talvez não carregaria comigo o conhecimento portuguesa quando tinha entre 27 e 30 anos. cimentos amplos e uma ampla compreensão rem em qualquer fala dos estrangeiros grin­
que a minha avó me ensinou. Hoje, depois que percorri vários espaços, de mundo. Aprendi isso desde a minha infân­ gos brancos.
Na época em que eu estudava na escola, inclusive o acadêmico, eu pude entender essa cia com minha avó: saber escutar palavras. Se todos os brasileiros tivessem a humil­
ninguém podia falar na língua Guarani, mi­ angústia. Não é à toa que o projeto de apaga­ Mesmo não entendendo o português, quando dade de aceitar a violência que carregam em
ROMERITO PONTES

nha língua materna, nem escutava a história mento do nosso jeito de ser era importante eu era criança eu tentava entender as atitudes seus corpos durante esse processo de coloni­
que minha avó contava para nós. Os profes­ para nos dominar, era o jeito de branco de nos das pessoas que falam português. E me pare­ zação dos nativos brasileiros, talvez fôssemos
sores não eram falantes Guarani, não eram excluir, de dizer que somos inferiores. ce que existem as palavras duras, que são fala­ mais sábios e saíssemos fortalecidos.

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dossiê

A Jurema e a filosofia
do aprender sem ensinar
Tradição de matriz indígena tem grande impacto na forma de ser
e estar na vida cotidiana do universo nordestino em geral

Alexandre L’Omi L’Odò Praticantes da Jurema em cerimônia nas Matas do Engenho Pitanga II, em Abreu e Lima (PE)

N
o nosso mafumbauê o cruzam­ “passou no vestibular em primeiro lugar, ele é o mopercepção afro-indígena é desafiadora e ele matou pai, matou mãe, nas ondas do mar
bê é bocunã, a saramunanga é satanás”, do rezar às seis da noite ou ao pedir excitante. As regras na Jurema são excepcio­ sagrado”, e mesmo assim é amado por todas
cipopá, o pau é onirê mandá, o licença à liambeira, essa cultura amplamente nalmente dissidentes, tendo sido ela uma tra­ e todos. Há perdão pleno, há valorização do
catimbó gira no balançar da viva é uma forma filosófica da vida cotidiana dição forjada na luta pela vida, pela defesa da que um ser tem de melhor nessa religião. Se o
gira cauã, o dendê é Cidade, e pro Reis se grita de nosso povo. comunidade e vinda das raízes de inúmeros Mestre Torto fez o que fez e mesmo assim vem
Sobô Nirê Mafá. A pisada é essa seu Zé, a pisa­ Essa tradição também é um contradiscur­ povos indígenas, que talvez sequer possamos para curar, ele é aceito e louvado. Essa natu­
da é essa... É massapê, é barro molhado, quem so hegemônico forte, que – diferentemente vir a conhecer um dia, pois com a dizimação reza não maniqueísta é encantadora e liberta­
não sabe andar leva queda, porque nessa água das grandes religiões que tentam separar as de toda essa ancestralidade dona da terra, lín­ dora. A Jurema é pau pereira, madeira de dar
tem veneno morena, quem bebeu morreu. Na pessoas com seus dogmas e princípios teoló­ guas, entidades, divindades, culturas e filoso­ em doido, em que a lógica é: “remédio de doi­
nossa mundrungagem quem triunfa é ganga gicos – assume uma característica xenofílica, fias foram delidas por completo, se tornando do é outro na porta”, como afirma esse antigo
sobominirê que trunfando mazurca Reis riá. decolonial e acolhedora, sendo pai e mãe, hos­ nos dias de hoje muito difíceis de conhecer, e verdadeiro ditado popular. “Dizem que a Ju­
Quem lhe iniciou? Se três dias passou caído pital dos pobres e centro de tratamento psicos­ pois os insuficientes registros de cronistas co­ rema amarga, para mim é um licor, a Jurema
no tronco do Juremá? Teria sido a própria Jure­ social; afinal, quando falta a política pública loniais não deram conta de tamanha multicul­ com seus frutos, sempre nos alimentou.” As­
ma e as entidades e divindades que o iniciaram, de saúde, lá está a Jurema com as curas limpas de turalidade encontrada em Pindorama. sim como Malunguinho se alimenta de álcool
dando a Mestre Carlos o poder de curar, de julgamentos para dar caminho a quem neces­ “Abre-te portas, varandas e janelas. Ó, e fumo, nos alimentamos dessa essência pro­
“trabalhar”? O interessante é que, à diferença sitar. Na Jurema há sim uma forma de vida to­ abre-te, Ciência, e eu dentro dela.” Para poder fundamente fitossagrada.
das tradições “nagôs”, a Jurema não é só ini­ talmente Original Jurema Style, cheia de co­ ver esse mundo enorme de saberes mestres, “Setenta anos passei no pé da Jurema, mas
ciática, ela é vigorosamente viva, única dentro res, de modos próprios de conceber o mundo só se estando dentro da Ciência. É dentro da eu não tenho pena de quem me faz o mal,
de cada discípulo e discípula, afinal “a Jurema e de coexistir em meio ao ocidentalismo. Se as Jurema que o mundo acontece. Uma dupla for­ se eu me zangar, toco fogo num rochedo, meu
quando nasce, a ciência ela já traz”. demais religiões dos brancos ensinam que há ma de existência, que é daqui pra lá e é de lá cachimbo é meu segredo, agora eu vou me
A Jurema é uma tradição de matriz indígena salvação, na Jurema a pessoa que nasce com pra cá. Mortos e vivos comungam de uma úni­ vingar”, e sim, devemos nos vingar conscien­
do Nordeste do Brasil, com grande impacto na a ciência é que salva as demais. Com abraços ca existência simultânea e ao mesmo tempo, temente de todo mal histórico e estrutural que
forma de ser e estar da vida cotidiana de todas se salva. Com fumaça se salva e faz-se nascer separada às vezes por um fumar de cachimbo, continuam nos fazendo. A fumaça tem sua pró­
LAILA SANTANA

as pessoas que compõem o universo nordesti­ nova vida, novo ser. por uma firmação de vela... pria juremologia, e nela tudo é possível, inclu­
no em geral. Do lambedor de sete ervas às/aos A complexidade de compreender e ex­ Mal e bem convivem harmonicamente. sive retomar todas as terras invadidas de nos­
rezadeiras e rezadores, do “fulano é o cão” ao plicar para os ocidentais uma tradição/cos­ “Oh zin, zin, zin, zin, ele é o Torto malvado, sos antepassados. Cantando preservamos

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dossiê

histórias e nossa filosofia está no pisar da ma­


zurca, no balançar do maracá, no baque do ilú
ca na profundidade de sua própria existência
a sabedoria que o mundo não tem pra lhe en­ Quem não pode com o
pote não pega na rudia
e no príncipe e princesa mestra. Para conhecer sinar. Afinal, juremeiro “pode aprender sem
não pode ter medo. se ensinar”, basta construir sua relação com
Se pensas que há cristianismo nessa forma a Ciência Mestra. “A Jurema quando nasce, a
de ser e estar no mundo, te enganas; a Jurema Ciência ela já traz”: portanto, essa é uma das
é tão ágil que já transformou tudo aquilo que poucas religiões do mundo que tem em si a
os brancos quiseram nos impor goela abaixo. natureza do autoconhecimento como maior
O que se quer é uma filosofia infiltrada numa geografia que
Nossa Senhora virou madrinha dos cangacei­ fonte de força espiritual. apresente o mundo em seus lugares de nascença e brotação
ros, das prostitutas, dos beberrões, dos não Penso na possibilidade de vivermos uma
cristãos; o terço e o rosário viram balas de ar­ pré-religião negríndia – ainda não nos conhe­
tilharia em nossas mãos, como nos ensina o cemos, pouco sabemos de nossa história e
Mestre Belarmino, e se é possível transformar adentramos em um conjunto de ritualísticas
“contas” de rosário em balas que podem matar que tem uma força imensa; contudo, quase
efetivamente, podemos ter na Ciência Mestra nada sabemos sobre. Religião sem saber?
a solução de todas as nossas necessidades. Ou então não vivemos uma religião, temos Luciana Pimenta

E
Portanto, nada mais é deles, tudo é nosso, apenas religiosidades diversas que se unem
e da forma que queremos. Essa filosofia na quando é necessário? Temos muito que refle­
Jurema assume uma forma “malunguiniana”, tir sob a sombra de um frondoso pé de Jurema. u tinha cerca de 10 anos quando de Milton Santos em A natureza do espaço: “a
ou vice-versa, provindo da luta e da resistência Abramos nossos corações para aprender sem Dorinha chegou para trabalhar em construção de uma filosofia menor, isto é, uma
contra todas as formas de opressão dos coloni­ se ensinar, e que por nós permitamos passar nossa casa. Seu rosto me mostrou metageografia [...] capaz de reproduzir, na inte­
zadores. Um modo de ver e pensar o mundo as águas que nutrirão as raízes secas de nos­ o chão de uma história que os li­ ligência, as situações reais enxergadas do pon­
profundamente decolonial, com capacidade sos ancestrais para que refloresça o juremal vros de escola e professores não me contaram, to de vista dessa província do saber”.
iconoclástica de transformar os símbolos sa­ escondido das religiões de terreiro do Brasil. dando-me a primeira e mais radical lição da Para viver em Maria da Cruz, como cha­
grados dos outros em unicamente seus, numa “Minha mãe bem que dizia que eu não qui­ alteridade, que só muito tempo depois eu co­ mam o lugar, de modo a colocá-lo na encru­
estratégia ampla de preservação da memória sesse aprender, o segredo da Jurema faz o discí­ nheceria na Violência do rosto, de Emmanuel zilhada do feminino, uma mulher precisava
e do patrimônio cultural que nos vale até hoje. pulo sofrer”, e pode fazer sofrer, sim... Viver em Levinas: “o rosto do próximo como portador carregar a lata d’água na cabeça e cavar o chão
Esses saberes mestres existem integral­ um mundo onde ser catimbozeiro é crime nos de uma ordem que impõe ao eu, diante do ou­ com um furo, em vida, onde se pudessem ex­
mente nas cidades da Jurema. Lá onde os an­ faz sofrer. Reajamos com nossas balas de arti­ tro, uma responsabilidade gratuita”. Ela tinha cretar os restos orgânicos da existência. Do­
cestrais indígenas, os caboclos e caboclas, mes­ lharia. A Jurema é uma religião de guerra, como o rosto queimado do querosene que acendia rinha era herdeira desse modo de carregar a
tres e mestras, Reis e demais entidades e divin­ deve realmente ser. Nela, “quem é bom já nasce lamparinas sobre os escuros do lugar: Pedras vida e de enterrar os restos, sem água enca­
dades moram, está a cura para todos os males, feito e quem quer fazer não pode”, e nunca po­ de Maria da Cruz. Isso de pessoas saírem de nada e esgotamento sanitário. Talvez venha
a resposta para todas as dúvidas e a força que derá, pois só bebe na cuia quem tem pra dar. seus cantos e vidas para trabalhar nas “casas da aridez dessas faltas que naqueles entornos
move o mundo. Para ter acesso a toda essa sa­ de família” – diáspora dentro de diáspora – é o ato de evacuar se nomeie como “obrar”, e,
bedoria, o juremeiro e a juremeira clicam em um queloide de uma ferida ainda aberta: a es­ embora a cidade tenha recebido algum sanea­
suas insígnias para receber um download, ou cravização e nossa-vossa herança. mento, nas últimas décadas esses buracos no
um upload (afinal, as Cidades da Jurema tam­ O rosto e o lugar de Dorinha me condena­ real não restaram cerzidos.
bém estão na terra, nas plantas sagradas, por­ Na Jurema mal e bem vam a conhecer a geografia de um mundo que Meu pai nasceu do outro lado do rio, nas
tanto não se baixam somente os saberes, mas é, e também a desejar filosofias outras. Já hou­ bandas de Januária, para onde só se podia
os sobem), possibilitado por diversos métodos convivem harmonicamente. ve quem afirmasse que o geógrafo se esforça atravessar, durante muito tempo, de balsa,
de contato, como o uso do cachimbo, a inges­
tão da bebida da Jurema, e pela incorporação,
Há perdão pleno e valorização para realizar o velho sonho do filósofo: apren­
der o real em sua totalidade. Mas, aqui, esse so­
barco ou canoa. Mas cresceu do lado de cá.
Na margem onde a comunidade quilombola
quando algum encantado vem e traz os ensina­ do que um ser tem de melhor nho aparece invertido em matéria e extensão. pesqueira de Caraíbas ainda briga por terras
mentos nos sonhos, na natureza etc. O que se quer é uma filosofia infiltrada numa de nascença. E é por ser herdeira de “de lá, do
Um ser juremeiro é na sua essência um geografia que apresente o mundo em seus lu­ sertão, [...] do interior do mato, da caatinga
filósofo da natureza, uma pessoa que sente gares de nascença e brotação. Tarefa que seme­ do roçado” que me banham os saberes do rio
mais do que fala, age mais do que diz, e bus­ lha àquela que dá as coordenadas da geografia São Francisco, conhecimentos de margens

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dossiê

e barrancos. Foi nesse encruzo com vidas


mergulhadas na luta pela invenção da existên­
Já houve quem afirmasse
que o geógrafo se esforça para Território de ancestralidade:
derivas e quintais
cia que aprendi o que aqui faz eco: o signifi­
cado do testemunho, essa forma de saber que realizar o velho sonho do
convoca o corpo não apenas a dizer o que viu
e sentiu. Testemunha, lembra Jeanne Marie filósofo: apreender o real em
Gagnebin em Lembrar escrever esquecer, “tam­ sua totalidade A beleza é a deriva da liberdade, tal como a onda é a deriva
bém seria aquele que não vai embora, que con­
segue ouvir a narração insuportável do outro do mar. A estética é a deriva da ancestralidade, tal como a
e que aceita que suas palavras levem adiante, liberdade é a consequência de gingar
como num revezamento, a história do outro”.
A mãe de Dorinha foi apenas uma das pote ou lata d’água sobre a rudia é vida sobre
mulheres que eu vi enrolando a fé na “rudia” – vida, camadas de (r)existência sustentadas
pano que se torce para formar um suporte, em por corpos que se inscrevem, qual passistas,
forma rodilha, e acomodar sobre a cabeça o no chão de uma história que alimenta outras
peso do que se carrega. Aqui, meu corpo em­ vidas. Dorinha tinha muitas irmãs e irmãos e
presta palavras à história de mulheres de dife­ todos tinham sede e fome. E a fome também
rentes gerações com suas rudias carregando é professora, como ensinou Carolina Maria de
latas d’água, potes e bacias apinhadas de rou­ Jesus, rasurando e desafiando as fronteiras da
pa, louças e panelas, lavadas e areadas na beira literatura brasileira com sua poética dos resí­
do rio. Vem da areia o verbo-modo de dar bri­ duos, em Quarto de despejo. Eduardo Oliveira

S
lho aos objetos que com ela se esfregam. Nada, Depois de muito lutar com os medos e
pois, naqueles corpos, atestaria o princípio traumas que um corpo sentia por expor sua
primeiro da filosofia cartesiana de um sujeito existência, minha mãe convenceu Dorinha a ó é possível dizer o caminho depois figueira e romã, mangueira e abacate, e após
interior ao pensamento ou de um corpo que frequentar a escola, o que foi feito por alguns da caminhada. Depois da jornada, a balaustrada um terreno baldio onde catava
pudesse duvidar de sua própria existência. Em anos, até que a saúde de sua mãe clamasse entretanto, a picada é outra. Há o alumínio, caco de vidro, cobre e arame. Um
Pedras de Maria da Cruz, a lamparina incen­ pelo retorno de Dorinha. No mapa do Brasil, itinerário da experiência e o percur­ pouquinho mais distante uma chácara de
diou o Discurso do método e a mãe de Dorinha é norte de Minas o lugar onde o querosene es­ so da memória – são sendas distintas e emba­ caqui, um campinho de futebol e o esgoto da
e outras mulheres me ensinaram um princípio correu grafando cicatrizes no couro cabeludo, ralhadas. Há perguntas que me faço depois da cidade. Uma descoberta desconcertante: de­
outro da existência: quem não pode com o pote rosto, ombro, peito, braço e perna em um dos encruzilhada, não porque é mais seguro, mas pois de um quintal sempre há outro, ligando o
não pega na rudia. Uma filosofia que intersec­ lados daquele corpo repuxado por dores que por ser imperativo seguir pela estrada. Qual mundo pela porta de trás. Pela porta dos fun­
ciona força, equilíbrio e (r)existência. aparecem no nome de batismo. Não há como é o chão onde gravita meu pensamento? Se dos encontrei o terreiro onde aprendi o fun­
A filosofia do pote não está nem apenas no escapar das inscrições. A herança, “no sentido adentro, com tíbia alegria, as Veredas do Sol, damento sem saber que o segredo e o sagrado
pote, nem apenas na rudia. A força que requer amplo mais preciso que dou a essa palavra, é é porque a tensão da Encruzilhada cravou em (na)moravam ali; o samba no terreiro, a poei­
a sustentação do pote (e o que ele porta de ma­ um ‘texto’”, como lembra Jacques Derrida no minha carne seus dentes e garras. Deixou-me ra subindo, a cerveja descendo, uma insólita
gia) está na coreografia do corpo, necessária diálogo com Elisabeth Roudinesco em De que mais atento e aberto. Desperto e amoroso alegria das plantas dos pés aos calos da mão...
ao equilíbrio do peso sobreposto à rudia. São amanhã.... Não tenho notícias de que Dorinha como cabe a um viajante à deriva. À deriva da A vadiagem de capoeira sempre na mata ras­
camadas de vida e (r)existência em movi­ tenha escrito um diário, nos moldes de Caro­ beleza, devo confessar, numa dança inusitada teira da memória in-visível, encantada de flo­
mento. E porque as mulheres do rio também lina, mas esse é o texto que ela escreveu em na qual não se conhece o passo, mas adivinha­ resta densa e clareira, atualizada nos quintais
se encontram nos morros do Rio, essa força meu corpo, um testemunho e uma herança a -se o ritmo. O compasso é um mistério fagoci­ das Senhoras, no cantinho das feiras, na praça
teve o testemunho-vivo de Maria Lata D’água, dizer que a literatura, a história e a filosofia se tado a cada passo, certeiro ou em falso, mas do bairro, na baixa do cais... sempre quintais
a passista da Portela que sambava com uma arquivam nos corpos, antes das tumbas do pa­ gingando (n)o Tempo Todo. em sua forma disforme de disfarces habituais.
lata de 20 litros de água na cabeça. A ela de­ pel, nos convocando a pensar uma filosofia co­ Meu território é o quintal! Afinal, saltei de Quintais diacrônicos. Quintais atemporais.
vemos a marchinha “Lata d’água na cabeça/ reográfica (koreos = dança, movimento/ grafia um para o outro, ao léu, sob a chuva, sobre o Afinal, o que é o espaço sideral senão o disfar­
Lá vai Maria, lá vai Maria/... Lutando pelo = escrita), aprendiz e herdeira de corporeida­ solo, sob o céu. O quintal de Mariana é o mais ce de um grandíssimo quintal?
pão de cada dia/ Sonhando com a vida do as­ des que se sabem entre potes e rudias, entre afetivo – onde plantei filosofia e agora colho Quintal das crianças, do sol a brilhar.
falto/ Que acaba onde o morro principia”. Um outros movimentos e (r)existências. saudade. O quintal da minha infância, com Quintal da bagunça, do sarau de poemas,

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A rua é nóix
No asfalto, há leis e éticas, todas no plural, onde o papo é reto.
É preciso pegar a visão, escutar o catuque dos mais velhos

Marcelo José Derzi Moraes

V
ai, Marcinho, tá no ponto? Liber­ sidades de um povo em tempos e espaços múl­
O quintal é o mundo nononononon ta DJ! A rua é nóix! Sempre com tiplos, que se repete numa atmosfera espectral
letra minúscula, porque não é o que ultrapassa a lógica temporal predominan­
Nós da totalidade, uma vez que te: tudo nosso, nada deles. O nóix traz no cor­
do varal de roupas, de poesia pendurada nas A beleza é a deriva da liberdade, tal como a não sabemos exatamente quem ou quantos po heranças africanas e indígenas. A partir dos
cordas – poemas e roupas a quarar, de linhas onda é a deriva do mar. A estética é a deriva da somos, quem faz parte ou não, quem está den­ subúrbios, botecos, favelas, terreiros, sambas e
de carretel empapadas de cerol para a batalha ancestralidade, tal como a liberdade é a conse­ tro ou fora. Mas, se pegar para um, vai pegar estádios, o nóix enquanto grupo se manifesta
das pipas no céu, das brincadeiras proibidas, quência de gingar. A ginga é a síntese da expe­ para geral. Longe do narcisismo do Eu, heran­ nos funkeiros e funkeiras, transbordando dos
das delícias do sexo, do desconforto neces­ riência africana, tal como o samba a expressão ças cartesianas difíceis de abandonar, o nóix é bailes, diluindo o corredor nas ruas, no ho­
sário da casinha; da pracinha dos namorados da brasilidade. No Terreiro habita a África in­ sempre mais que um. Mesmo sozinho, na mis­ rário de trabalho, na praia ou na madrugada.
para encontros vigiados, do fundo da igreja teira, no embate social, na macropolítica ou na são, existe algo para além da presença física do O nóix são os corpos negros, brancos, mestiços,
(quintal proibido) para os primeiros pecados... política rasteira da cidade. Na micropolítica do eu e do outro. Assumindo nossas ancestrali­ indígenas, favelados, suburbanos, travestis,
Das miudezas fui tecendo meu mosaico. imaginário está a Terra inteira. No corpo que dades, convivemos com os espíritos daqueles mulheres, macumbeiros, evangélicos, traba­
Prosaico, despretensioso, um desarticula­ ginga a mandinga da manha contra os ardores que já se foram, mas que vivem entre nóix: Cut lhadores, vagabundos e todos que enfrentam
do mundo foi revelando seu brilho, mavioso da maldade, faz-se o texto-carne da ancestra­ Vive. Mas joga o braço e puxa a mão, joga a per­ a vida cotidiana de estar na rua, que antes de
diamante! Num só instante todo o fulgor de lidade. No mito e no rito que atualizam a saga­ na e puxa o pé, vários problemas nos rodeiam. tudo é pesadona. Contra a violência da inter­
outros mundos. Duradouro e impermanente, cidade, outra vez fecunda a matripotenciali­ Lidando com vacilações dogmáticas, nóix se­ pretação dominante, sem lombrar, partimos
desafiando a ciência e o oculto, um mistério dade. No chão do Quilombo uma vez mais há guimos contrariando as estatísticas, esperando na disciplina, no Pavunense ou CCIP, entor­
dizendo mundo na carne de sua experiência, re-existência contra a perversidade. No Movi­ os 5 minutinhos de alegria. O nóix opera pela tando o corredor, respeitando a área neutra, ao
sem trair, no entanto, o escuro que lhe dá a mento Negro, outra vez e uma vez mais, a ânsia lógica dos bondes de galera, do lado A ou lado som do “Spring Love” ou do “Don’t Stop the
tessitura do instante, eterno ou presente, pe­ por liberdade. Nossos passos vêm de longe. Seu B. Quem é amigo fecha com a gente, quem é Rock”. Mas presem dogali se o oka marfor.
queno ou gigante. Diante de acontecimento nome? Ancestralidade! alemão rala. Porque o fechamento é o funda­ Na rua, há leis e éticas, todas no plural,
tão fulgurante – e simples – bailando minhas O território que me constitui é feito de mento ético das ruas. Recebe-se quem chega onde o papo é reto. É preciso pegar a visão, es­
células num mar de sangue, compreendi açúcar e sal. Vai do quintal de vó Mariana ao de boa, na paz, mas, se vacila, vai. cutar o catuque dado pelos mais velhos, que,
que Exu é a sinapse do Universo tal como Oru­ espaço sideral. Vai das políticas de inclusão Com i e x, o nóix demarca um sotaque, um com suas histórias, narram saberes e proce­
milá é a sagacidade do viajante, à deriva, na às rasuras no esquema geral. Atravessa, pela registro local, um lugar, o pretuguês de Lélia deres que nos mantêm sobreviventes nas ruas.
sabedoria do Todo equivalente à Multiplicida­ porta dos fundos, interligando quintais, na Gonzalez. Desobedecendo à instituída norma Assim, podemos entender e conhecer os códi­
RAFEL FREIRE/PEXELS

de. Sem identidade, porque, criação constante, pele da gente escura que brilha feito diaman­ culta, o nóix – escrito ou falado – revela sua gos e as línguas que estão espalhados pela ci­
sou obra de arte que vai do arame ao diaman­ te, uma sabedoria telúrica, erótica, política, potência operando à margem da obediência à dade, nos muros, nas alturas, no asfalto e nos
te, sempre e sempre singular, sempre e sem­ lúdica, abissal. O quintal da Ancestralidade é linguagem fonética dominante. O nóix é a po­ corpos, pensando e usando outros dispositivos
pre derivante. o mundo. Meu território é ancestral! tência da contaminação diferencial das diver­ de interpretação. Nas ruas, jogamos com as

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dossiê

Da zona norte à zona sul, da baixada ao ou­


tro lado da poça. No 457 ou no 254, no 638 ou
no 464, a cidade é desenhada por um surf sem
prancha, nos calotes, nos tetos e nos mergulhos
das roletas. Transbordando afetos, a cidade
espectral brilha como raio, rápida como flecha.
Todos que passam ou que ficam, que vão ou que
retornam, escrevem uma paisagem. No balan­
ço do trem, ao som das ambulâncias e viaturas,
perdeu, é tudo nosso. De ponta a ponta, contra
uma mitologia branca, uma mitologia das co­
res, de verde e rosa, azul e branco, vermelho e
preto e preto e branco. Os cheiros de gordura,
Baile funk em favela carioca de frituras, das frutas, do valão, dos perfumes
e dos mijos dão vida à cidade. A cidade produz
um tipo de nóix formado por forças, sobrevi­
vente diante de espaços que acolhem e excluem,
leis, não com a Lei, pois, no estado de exceção matam e geram vida.
da rua, as leis se reinventam, são manipuladas Para chegar em casa, evita-se ao máximo
e quebradas. No asfalto, a lei do retorno sempre o Souza Aguiar e o espaço incondicional por
tem volta, trazendo algo novo e diferente, nem excelência, o Caju. A vida segue no café na
sempre agradável. Porque a cobrança é certa, e Central, na cerveja na Uruguaiana, no podrão
quem deve paga na rua, na esquina, na encru­ na Lapa, na saideira na Ceará. Lugares onde
zilhada. Ela faz o mundo girar, ensina Andréia chegamos e de onde partimos, sabendo que
Lourenço. Na lógica do retorno, quem manda na madrugada o bicho pega, sem a garantia de
de dia é o Sol e quem manda de noite é a Lua. que se vai voltar, atento ao carro da carne que
E é entre luz e sombra que aqueles que operam pode passar. Ligado que o kaô na sul é diferente
à margem rabiscam a madrugada. do desenrolo na zona oeste; que enquadrar ou
Partindo para o trabalho, voltando da praia, ser enquadrado entrando na quadra é sempre o
perdido na noitada, gingado ao som da Furacão contexto que define se pisa devagar ou se chega
ou A Coisona, de Cyclone, de Camaleão e de de bicho. Porque jogo é jogado, já diz J. C. Diouf.
Charlotte, coitada da Telemar. Segurando fir­ No conceito do contexto, o papo tem que
me no Santa Cruz para a Central; de Vila Isabel ser bem dado, reto, porque senão fica ruim
para Madureira, da Abolição para o Arpoador; para o seu lado, uma vez que é o desenrolo
de Cascadura para Barra, passando pela Merck que abre caminho. Atravessando o túnel ou­
e a de Deus, lembrando do Country. Subindo tra cidade se apresenta. O nóix marginaliza a
o Buraco, desce no Pedregulho, entra no beco, cidade, descentraliza os centros. Porque esta­
pula o muro, sai na principal, para na praça, no mos em todos os espaços, marcando presença
sobe e desce, fecha na Feira. De trem, de bus, de muitas maneiras, produzindo rastros que
de camelo, sozinho, no duque ou de bonde, deixamos pelas sombras. Sempre protegidos
dando perdido ou aplicando o sete, estamos pelo povo de rua, donos das ruas e das encru­
nas ruas e becos, marquises e vielas, avenidas zilhadas por direito. Esses movimentos nem
e praias, passarelas e buracos, bares e terreiros, sempre são regidos pela moral dominante,
quadras e favelas, bailes e pagodes, feijoadas pela lei institucionalizada, mas por saberes
BEN PIVEN

e churrascos. Encarando a Brasil, resistimos à e conhecimentos que partem do “meu lugar”,


passarela 9, entramos no Chapa. como diria Arlindo Cruz.

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