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Filosofia

Intercultural
entre o estoicismo e a filosofia Ubuntu
e entre Luc Ferry e Djamila Ribeiro

Partes 1 e 2 (de 3 partes)

Disciplina RAD1607 - Filosofia FEARP USP

Elaborado por Rogério Calia em


colaboração com Mariah Viana

Toda grande filosofia resume em pensamentos uma


experiência fundamental da humanidade.
Luc Ferry

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Introdução
Filosofia intercultural e
pensamento alargado

O filósofo sul africano Mogobe Ramose é um nome de referência na filosofia Ubuntu


e autor do livro “African philosophy through ubuntu” (“Filosofia africana através do
Ubuntu”). Ramose fez elogios às contribuições do filósofo alemão Heinz Kimmerle
para a filosofia intercultural.

Kimmerle passou 6 meses em universidades africanas simplesmente escutando


filósofos africanos. Depois disso, ele fez frequentes viagens de durações menores à
África por mais de 20 anos.

Heinz Kimmerle evitou sistematicamente a tendência dos filósofos ocidentais de


julgarem e inferiorizarem as filosofias de outras culturas.

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Por isso, ele primeiro
realizou escuta ativa para
absorver os conteúdos da
filosofia africana em solo
africano e por filósofos
africanos. Ou seja,
Kimmerle saiu de sua bolha
cognitiva de filósofos
europeus e direcionou-se
rumo a uma jornada de
aprendizagem por imersão
na cultura acadêmica dos
filósofos africanos.
Ao voltar à Alemanha,
Kimmerle registrou tudo o que aprendeu sobre a filosofia africana (por exemplo,
neste livro em alemão na imagem acima “Filosofia Africana no Contexto da Filosofia
Mundial”) e em seguida promoveu diálogos interculturais de igual para igual sem
inferiorizar nem julgar depreciativamente a cultura do outro.

Por fim, ele realizou algumas reflexões comparativas sobre diferenças, semelhanças
e complementaridades entre a filosofia africana, a filosofia européia e as filosofias
de outras regiões do mundo e se perguntou o que a filosofia européia poderia
aprender com os filósofos africanos para enriquecer ainda mais o desenvolvimento
presente e futuro da filosofia européia e mundial em diálogo.

Um exemplo dessa reflexão comparativa é a constatação de que a forte presença


da oralidade na produção e comunicação da filosofia africana se assemelha à
prática filosófica do pensador grego Sócrates. De fato, não temos nenhum texto
escrito de autoria dele, mas sim, relatos de seus alunos sobre diálogos marcados
pela oralidade em reflexão livre e colaborativa nos espaços públicos em praças e
ruas de Atenas.

A ideia de diálogo intercultural proposta por Heinz Kimmerle tem semelhança com a
ideia de “pensamento alargado” de Kant desenvolvida também por Luc Ferry nos
capítulos 4 e 6 do seu livro “Aprender a Viver: Filosofia para os novos tempos”.
“Pensamento alargado” é justamente a capacidade de mover-se para fora de sua
própria bolha cognitiva e cultural com a intenção de conhecer e se interessar pela
cultura do outro. A prática do “pensamento alargado” amplia o leque de perspectivas
e pode enriquecer o próprio desenvolvimento tornando-o mais significativo e com
mais sentido nas redes de interconexões humanas.

Luc Ferry passou por uma experiência prática de diálogo pelo pensamento alargado
com o filósofo francês André Comte-Sponville.

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Um dia, escrevi um livro com meu amigo André
Comte-Sponville, o filósofo materialista pelo qual
tenho o maior respeito e amizade. Tudo nos
opunha: tínhamos aproximadamente a mesma
idade, poderíamos ter sido competidores. André
vinha, politicamente, do comunismo; eu, da direita
republicana e do gaullismo. Filosoficamente ele se
inspirava completamente em Spinoza e nas
sabedorias do Oriente; eu, em Kant e no
cristianismo. Encontramo-nos e, em vez de nos
odiar, como teria sido simples fazê-lo, começamos
a acreditar um no outro, quero dizer, a não supor
a priori que o outro estava de má-fé, mas a
procurar, com todas as forças, compreender o que
poderia seduzir e convencer numa visão de
mundo diferente da nossa própria.
Graças a André, compreendi a grandeza do
estoicismo, do budismo, do
spinozismo, de todas as
filosofias que nos convidam
a "esperar um pouco
menos e amar um pouco
mais". Compreendi
também o quanto o peso
do passado e do futuro
estraga o gosto do
presente e até gostei mais
de Nietzsche e de sua
doutrina da inocência do
devir. Nem por isso me tornei materialista, mas não posso mais
dispensar o materialismo para descrever e pensar algumas
experiências humanas. Em suma, acredito ter alargado o horizonte
que era o meu até algum tempo atrás.

Essa apostila aqui é um experimento. Em gestão da inovação, chamamos


experimentos assim de “prototipagem”. A intenção desta prototipagem é tentarmos
praticar o “pensamento alargado” de modo inspirado pela filosofia intercultural, ao
realizar exercícios de diálogos sobre nossos aprendizados ao estudarmos a filosofia
ocidental apresentada por Luc Ferry, a filosofia Ubuntu apresentada pelo Prof. Dr.
Wanderson Flor do Nascimento e as reflexões da filósofa brasileira Djamila Ribeiro.

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Parte 1
Estoicismo e Ubuntu
Ao longo de nossa disciplina de Filosofia no curso de Administração, estudaremos
todo o livro do Luc Ferry “Aprender a Viver: Filosofia para os Novos Tempos”. Esse
livro nos apresenta um amplo panorama do desenvolvimento da filosofia ocidental
em cinco fases principais.

No capítulo 1 deste livro, Luc Ferry propõe que as diversas fases da história da
filosofia ocidental sejam estudadas em três diferentes campos de conhecimento do
esforço racional filosófico:

a) A visão de mundo (“teoria”) é o modo como cada fase da história da filosofia


compreende o essencial da realidade e o modo como o ser humano pode
obter conhecimento sobre esses aspectos mais essenciais da realidade.
b) Princípios éticos para a vida prática
c) Busca por sentido de vida existencial, ou seja, busca por uma sabedoria
existencial

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Algumas raízes da civilização ocidental na filosofia
estóica da antiguidade greco-romana
O capítulo 2 do livro do Luc Ferry trata da filosofia estóica que foi inicialmente
desenvolvida por Zenão de Cítio por volta de 300 a.C.
Zenão inspirava-se em toda uma tradição filosófica que inclui Sócrates, Platão,
Aristóteles e Heráclito entre outros pioneiros da filosofia grega.

a) Visão de mundo

Os sábios estóicos contemplavam os fenômenos do mundo e do universo. E essa


atividade contemplativa resultava na constatação de que existe um todo organizado,
coerente e harmonioso que era denominado de “cosmos".

Pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do


mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os
gregos designam pelo nome de cosmos.

Além disso, os estóicos observavam que havia toda uma racionalidade imanente (ou
seja, inerente) que eles denominavam de “logos”.

Os estóicos não pensavam que essa harmonia e essa racionalidade fossem


mecânicas e sem vida, mas eles consideravam que esse todo harmonioso e
racional pulsa vida, é animado (expressa algo semelhante aos sentimentos como os
seres humanos e animais os expressam) e é verdadeiramente “divino”.

Essa concepção de “divino” pelo estoicismo é completamente diferente da noção de


divino de muitos religiosos no cristianismo, judaísmo e islamismo. Para os estóicos,
o logos divino não está “fora” do mundo num “além” distante da vida dos seres
humanos num “céu” espiritual imaginário e transcendente. O estoicismo entendia
que o logos divino está presente na imanência, por ser compreendido como a
estrutura inerente do mundo e de tudo que nos cerca.

A palavra grega que deu origem ao nosso termo “teoria” significava ver o divino nas
coisas, ou seja, ver o essencial nas coisas. Portanto, a visão de mundo dos estóicos
era resultado de uma atividade contemplativa que identificava a harmonia e a
racionalidade viva inerente ao todo.

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É, pois, esse divino, que não tem nada de um Deus pessoal, mas se
confunde com a ordem do mundo, que os estóicos nos convidam a
contemplar (theorein).

Atualmente, podemos encontrar nos atuais ecologistas um modelo mental


semelhante ao modelo mental dos estóicos. A ecologia é uma ciência que busca
compreender o todo dos ecossistemas e identificar os equilíbrios e harmonias que
expressam a racionalidade auto-reguladora dos processos vitais da natureza em
múltiplas interações entre plantas, animais, solo, rios, mares e condições
meteorológicas.

b) Busca por princípios éticos para a vida prática

A atividade teórica dos estóicos visava criar uma visão de mundo para buscar
sentido na realidade que nos cerca e servir de inspiração à vida prática dos seres
humanos.
Imagine um fabricante de um violão (um luthier). Ele se vê diante de dezenas de
peças no seu balcão. Quando ele pega entre os dedos um pequeno componente do
violão, o artesão já tem em mente o lugar daquela pequena peça no futuro violão
como um todo. De modo semelhante, os pensadores estóicos buscavam contemplar
o todo (visão de mundo) com a intenção prática de se ajustar a esse todo
harmonioso e inerentemente racional.
Portanto, a concepção de justiça pelo estoicismo estava relacionada com a noção
de se ajustar ao todo, ou seja, de você “encontrar o teu lugar” no todo.

O pensador romano, Cícero, descreveu o que ele aprendeu com o estoicismo para a
vida ética: "Aquele que quer viver de acordo com a natureza deve partir da visão de
conjunto do mundo e da previdência"

c) A busca de sentido de vida existencial (busca de sabedoria)

“Soteriologia” é o termo técnico utilizado tanto na filosofia, quanto nas teologias, e


que significa o estudo sobre a busca por “salvação” diante dos medos da morte e
dos medos das mudanças que ocorrem ao longo da nossa vida, entre outros medos
decorrentes de nossas angústias e inseguranças existenciais. No caso do
estoicismo, a ideia de busca de “salvação” não é imaginada no sentido religioso (por
meio do instrumento da fé e de crenças), mas no sentido filosófico (por meio do
exercício da racionalidade humana).

Epicteto era um importante filósofo estóico na Roma antiga que não escrevia textos
filosóficos, mas ensinava filosofia pela oralidade ao falar livremente ao público de

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seus alunos que o escutavam. Ele considerava que
não precisamos temer a nossa morte, porque, de
algum modo modificado, continuaremos existindo no
todo cósmico e harmonioso, mesmo depois da morte.
Um aluno de Epicteto escreveu esse ensinamento do
seu mestre: “As folhas caem, o figo seco substitui o
figo fresco, a uva seca, o cacho maduro, eis, para ti,
palavras de mau agouro! De fato, aí só existe
transformação de estados anteriores em outros; não
existe destruição, mas um arranjo e uma disposição
bem regulados. A emigração não é senão uma
pequena mudança. A morte é uma mudança maior, mas não vai do ser atual ao não
ser, e sim ao não ser do ser atual. — Então, não serei mais? — Tu não serás mais o
que és, mas outra coisa da qual o mundo precisará”.

Em reflexão semelhante, o imperador romano Marco


Aurélio, que também foi um importante filósofo estóico,
escreveu no livro dele que mais tarde recebeu de
outra pessoa o título de “Meditações” (máxima 14 no
capítulo IV): “É como parte que existes; desaparecerás
no elemento que te gerou; ou melhor, serás retomado
na sua razão seminal por via de transformação”

A palavra “seminal” se refere à qualidade da semente.


Portanto, Marco Aurélio pensa que depois da morte,
nós seremos integrados com a “semente” da
racionalidade cósmica que tudo organiza e tudo
harmoniza. Era essa a ideia do logos.

Para os estóicos, o sentido de vida existencial e a


sabedoria de vida são atingidos por meio de exercícios mentais para treinar atitudes
mentais. Uma das atitudes mentais que os sábios estóicos exercitavam é
semelhante à atitude mental treinada pelos monges budistas de buscar superar a
tendência humana de ruminar sobre o passado ou se preocupar excessivamente
com o futuro para que possamos viver com pleno senso de presença no momento
presente.

Marco Aurélio escreve: “Lembra-te de que cada um de nós só vive no momento


presente, no instante. O resto é o passado, ou o obscuro futuro. Pequena é, pois, na
verdade, a extensão da vida.”

É mais ou menos segundo esse modelo que o estoicismo nos estimula


à reconciliação com o que é, com o presente tal como ele é, para além
de nossas esperanças e de nossos remorsos.

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Outro desafio importante é o de superar a nossa tendência a nos apegarmos às
pessoas e nos apegarmos às coisas, apesar de sabermos que tudo na vida é
transitório. Neste sentido, lemos as palavras faladas por Epicteto sobre o apego: “O
primeiro e principal exercício, o que conduz de imediato às portas do bem, consiste,
quando uma coisa nos prende, em considerar que ela não é daquelas que não nos
podem ser tiradas”.

Epicteto considera que a busca de sentido de vida existencial é dificultada pela


ilusão de tentarmos constantemente encontrar a nossa felicidade em coisas ou
pessoas fora de nós ao invés de buscá-la dentro de nós mesmos: “(...) ao procurar
sempre fora de ti a felicidade que jamais poderás encontrar; é porque procuras onde
ela não está e que deixas de procurar onde ela está”.

Para os sábios estóicos, os momentos de vida com mais sentido existencial são
momentos de superação da percepção de dualidade entre o sujeito e o mundo que
o cerca. Em momentos de contemplação, podemos intuir a harmonia da vida que
observamos. Essa experiência pode nos levar a amar a realidade como ela é e a
obtermos momentos que nos parecem que “ficam” por serem especialmente
significativos.

Essa é a ideia chave do “amor fati”, ou seja, a atitude mental de amar a realidade
como ela é.

Tente lembrar, por exemplo, dos momentos mais significativos de conexão com a
natureza na tua biografia: ao contemplar um céu estrelado, ou então, ao observar
sem pressa um pôr do sol ou uma paisagem, ou então, ao colocar um óculos
aquático para observar o magnífico jogo de cores e formas dos peixes e algas
debaixo da água do mar.

É para esses momentos de graça que ele nos convida, e para


multiplicá-los, torná-los tão numerosos quanto possível, ele nos
sugere, de preferência, a mudança de nossos desejos, e não a da
ordem do mundo.

Nestes momentos de contemplação, não estamos necessariamente em busca de


“falhas” ou de “oportunidades de melhorias”. Não temos a atitude de desejar mudar
as cores dos peixes ou o brilho das estrelas. Não estamos mais presos a uma lógica
instrumental de certo e errado em busca de tarefas e mais tarefas a serem feitas.

Há, com efeito, momentos em que não estamos dispostos a


transformar o mundo, mas simplesmente a amá-lo e a experimentar
com todas as nossas forças as belezas e as alegrias que ele nos
oferece.

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Momentos contemplativos de conexão com a natureza proporcionam experiências
preciosas que podem mudar sutilmente, ao menos por alguns momentos, a nossa
percepção de relação com o tempo.
Momentos que não escorrem como areia caindo entre os dedos de nossas mãos.
Momentos que não escorrem como areia caindo na ampulheta num fluxo constante
demonstrando visualmente que o tempo cronológico não pára. Os momentos de
nossa vida escapam continuamente de nós. Nenhum momento parece que “fica”
diante da incessante impermanência, como dizem os budistas.

É, em todo caso, quando a


coincidência entre nós e o
mundo que nos cerca se
torna perfeita, quando a
concordância se faz por si
mesma, sem
constrangimento, na
harmonia, que, de repente, o
tempo parece anulado,
dando lugar a um presente
que parece durar, um
presente, por assim dizer,
dotado de espessura, cuja serenidade não é corrompida por nada do
que passou ou vira.

Momentos especiais de conexão com a natureza podem sim trazer uma experiência
subjetiva de “supressão do tempo” de tão significativo que são estes momentos para
a nossa busca por sentido de vida com alguma satisfação existencial.

Há momentos de graça na vida; instantes em que temos o sentimento


raro de estarmos enfim reconciliados com o mundo.
Fazer com que a vida inteira se pareça com tais instantes, eis, no
fundo, o ideal da sabedoria. É nesse ponto que tocamos em algo da
ordem da salvação, na medida em que nada mais pode perturbar a
serenidade que nasce da abolição dos medos associados às outras
dimensões do tempo.

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Filosofia Ubuntu - Um breve roteiro de estudo
Gratidão à Letícia Faria por indicar o livro da Adriana
Barbosa e gratidão ao Cainã Nascimento por indicar o
livro do Nei Lopes e Luiz Antônio Simas

Nelson Mandela

Nelson Mandela foi um líder e administrador público admirado mundialmente por


conduzir com sucesso a fase de transição do regime racista do apartheid na África
do Sul para uma democracia pautada pelo respeito e diálogo nas relações étnico
raciais.

Na África nós temos um conceito conhecido como ubuntu, com base


no reconhecimento que nós somente somos pessoas, por causa de
outras pessoas. Nelson Mandela

Recomendo que você assista esse pequeno vídeo de Mandela explicando alguns
aspectos da filosofia Ubuntu (com opção de legenda em português):
https://www.youtube.com/watch?v=9QnEaKZ_4kY

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Mandela foi ganhador do prêmio Nobel da Paz
em 1993. No site do prêmio Nobel, o professor
universitário Anders Hallengren escreveu um
artigo sobre alguns marcos biográficos de
Nelson Mandela praticando a filosofia Ubuntu
como líder e administrador.

Mandela passou 27 anos na prisão e foi eleito o


primeiro presidente negro da Africa do Sul em
1994.

A verdade do antigo ditado bantu umuntu


ngumuntu ngabantu (somos pessoas através de
outras pessoas) muitas vezes lhe vinha à mente.
E ele viu, talvez mais claramente do que a
maioria dos seus contemporâneos, a
inevitabilidade da “interdependência mútua” na
condição humana, em que “as bases comuns são maiores e mais
duradouras do que as diferenças que dividem”.

Anders Hallengren considera que Mandela desenvolveu uma visão de mundo muito
única que o ajudou a ser um líder efetivo na tensa situação pós- aparthaid.

Mandela foi filho de um líder de uma tribo da etnia Xhosa, na África do Sul, que faz
parte do grupo de línguas e culturas Bantu.

Um conceito central nesta cultura de língua Xhosa, como na tradição


Bantu em geral, é Ubuntu, fraternidade.

Durante sua juventude, Mandela fez parte do grupo que criou a Liga da Juventude
do ANC no Centro Social de Homens Bantu, em 1944.

(...) o manifesto sublinhou que o africano, em contraste com o homem


branco, considera o universo como um todo orgânico em progresso no
sentido da harmonia, onde as partes individuais existem apenas como
aspectos desta unidade universal.

Hallengren considera que a constituição de 1996 da nação sul africana inspirou-se


na filosofia ubuntu.

Na sua Palestra do Nobel, Nelson Mandela referiu-se à visão orgânica


do mundo já expressa no manifesto de 1944, autodenominando-se um
mero representante dos milhões de pessoas em todo o mundo que

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“reconheceram que uma lesão a um é uma lesão a todos”; que é a
essência da filosofia do Ubuntu aplicada universalmente.

Uma ideia geral sobre as filosofias africanas

No livro “Filosofias Africanas”, Nei Lopes e Luiz Antonio Simas explicam de modo
simples e direto alguns focos essenciais das filosofias africanas.

Para os fins deste livro, Universo é o conjunto de tudo aquilo que


existe na terra, no mar, no espaço e além dele; organizado em um
sistema de forças comunicantes entre si.

Os povos africanos têm uma visão de que o


universo não é algo estático, mas sim um
organismo em transformação e crescimento.
Em alguns povos, essa ideia é simbolizada
numa semente que brota.

As comunidades africanas honravam a força


vital que faz as sementes das plantações
gerarem o alimento e que faz os bebês
nascerem e crescerem nas tribos.

(...) a compreensão do mundo deles tinha em


comum a ideia de que todos os seres
compartilham uma mesma energia vital;
aquela que faz crescer as folhas quando
chegam as chuvas; que faz crescer as crias
dos animais e dos humanos.
Participando da mesma vida, os seres
desenvolvem laços de profunda fraternidade

Ao agradecer pela força vital que beneficia a nós e a todos os seres vivos, os povos
africanos tinham uma atitude social de incluir as pessoas e não de excluí-las.

Dentro dessa perspectiva, conforme a boa herança africana, o indivíduo se


situa no mundo não se afirmando contra o “outro” e contra aquilo que
supostamente não lhe diz respeito, mas se percebendo como uma parte da
Natureza, força ativa que estabeleceu e conserva a ordem natural de tudo
que existe.

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Então, para o africano, o valor supremo da existência é a Energia que
percorre a rede única que conecta todos os seres do Universo. E o bem
maior é captar dela o máximo de sua intensidade.

Ao observar a generosidade da força vital, os povos africanos se inspiraram para


praticar a generosidade como expressão de uma vida que faz sentido.

Nos costumes imemoriais africanos, a mais completa expressão da energia


vital é a existência intensa e generosa: a vida plena

Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento - O conceito de Ubuntu

Tudo que vimos até aqui neste roteiro de estudo foi uma preparação para a parte
mais importante que é você ler como o Professor Wanderson Flor do Nascimento
explica a ideia do Ubuntu. O Prof. Dr. Wanderson do Nascimento é docente de
Filosofia Africana na Universidade de Brasília - UNB.
Por gentileza, leia estas 6 páginas do livro online gratuito dele “Entre apostas e
heranças. Contornos africanos e afro-brasileiros na educação e no ensino de
filosofia no Brasil”. Dentro do capítulo “ubuntu, ancestralidade e formação”, você
encontrará o tópico “ubuntu e a afirmação da integração comunitária” da página 45 à
51 na numeração das páginas em branco (que é o mesmo trecho da paginação 47 a
53 na numeração do aplicativo / software pdf) -
https://philpapers.org/archive/NASEAE.pdf

Ubuntu, de um modo geral, é a humanidade pensada desde a


interconexão fundamental entre tudo o que pode ser humano

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Veremos com mais detalhes abaixo que a
pesquisadora sul-africana Dra. Itayi
Mutsonziwa constatou alguns paralelos entre
ubuntu e budismo. Deste modo, quando eu
leio este trecho do Professor Wanderson
Flores do Nascimento, penso num paralelo
com uma ideia semelhante do famoso monge
budista vietnamês Thich Nhat Hanh. Esse
mestre budista dizia que a pessoa que pratica
um auto conhecimento meditativo mais
aprofundado pode chegar à seguinte experiência de seu sujeito: eu não sou, mas eu
“inter-sou”. Ou seja, nós somos graças às nossas múltiplas interconexões. Inter-ser
(em inglês: “interbeing”).

De modo semelhante, também penso nas ideias do Professor Otto Scharmer do


MIT. Ele considera que os sistemas sociais diferenciam-se em sistemas que
enfatizam a lógica do ego versus os sistemas sociais que enfatizam a lógica das
nossas interconexões (ele resume essa segunda modalidade como sistemas sociais
com a lógica do “eco”, já que o termo “eco” em grego, significa a nossa “casa”).

(...) ubu, se referiria ao princípio fundamental da existência de tudo o


que há, ao passo que ntu seria a manifestação articulada, constante e
dinâmica deste mesmo princípio

Pelo que eu compreendi ao ler o Professor Wanderson Flor do Nascimento e o


Professor Mogobe Ramose, ubuntu é uma concepção de humanidade bastante
abrangente e dinâmica partindo de uma visão existencial da nossa experiência com
o nosso ser interconectado com o todo da existência. Deste modo, entendo que
Ubuntu seria a experiência humana conectada com o princípio geral do ser em
constante movimento de desdobramentos e manifestações das expressões das
forças de vida no nosso senso de humanidade em múltiplos contextos práticos e
existenciais.

(...) se existimos enquanto humanos é porque estamos conectadas/os


a todas as outras coisas existentes e, exatamente por isto, a todo o
restante da humanidade, de maneira que o que temos de humano é
sempre interdependente e plural

Essa ideia é frequentemente difundida de modo simplificado na expressão


explicativa para ubuntu como “eu sou, porque nós somos”.

Diversas traduções para o termo ubuntu tendem a identificá-lo com


“humanidade”, apontando para uma articulação entre um modo de ser

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e, de outro lado, uma relação com a comunidade, com o entorno, com
o ambiente.

Esse senso de comunidade é muito presente em vários colegas afrodescendentes


da nossa comunidade USP como podemos constatar nestas falas de alunos,
pesquisadores e funcionários do campus de São Paulo (vídeo gentilmente
compartilhado pela Prof. Dra. Ana Claudia Camargo Gonçalves Germani da
Faculdade de Medicina USP da Capital de São Paulo -
https://www.youtube.com/watch?v=sRqNaj3WzhA

(...) ubuntu estaria mais próximo do “sendo” que do “ser” e apontaria


para o que temos em comum; de modo que uma tradução mais
pontual seria “sendo em função do que temos em comum, do que nos
cerca” (Ramose, 2010, p. 8-9).

Interessante este modo mais criterioso de utilizar a linguagem. Quando falamos do


“ser”, parece que estamos nos referindo a algo meio abstrato, já pronto e estanque,
mas, quando falamos “sendo em função do que temos em comum, do que nos
cerca”, estamos indicando uma experiência existencial continuamente viva e atuante
no agora dando fundamentação à nossa consciência participativa.
Durante o esforço para compreender este aspecto do ubuntu, aqui também, eu
busco referenciais mais familiares para mim. O professor universitário de física,
Arthur Zajonc, nos EUA, é autor de um livro de meditação para exercitar a
consciência participativa em interconexão (ZAJONC, Arthur. Meditation as
contemplative inquiry: When knowing becomes love. SteinerBooks, 2008.)

(...) ubuntu se mostra como um interessante conceito que nos mostra


a radical proposta de integração entre comunidade, natureza,
ancestralidade na formação das pessoas.

Esse trecho acima é essencial para estudarmos o livro da Adriana Barbosa e para
estudarmos com mais profundidade o livro da Djamila Ribeiro e identificarmos em
que medida estas autoras expressam a formação do sujeito em interconexão com a
natureza, a ancestralidade e a comunidade.

Se há alguma pessoa que seja desconsiderada como


humana, sub-humanizada, a humanidade sofre como um
todo.

Esse aspecto da compaixão é bastante relevante na


filosofia ubuntu. A pesquisadora e empresária
sul-africana Dra. Itayi Mutsonziwa realizou, em 2020, um
doutorado na Universidade de Pretória, na faculdade de
administração, no qual desenvolveu uma escala

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psicométrica para aferir o grau de atitudes mentais consonantes com a ideia de
ubuntu nas pessoas que trabalham nas empresas. Depois de conversar com vários
especialistas na filosofia ubuntu e realizar mensurações quantitativas, Matsuzawa
constatou três atributos principais da experiência mental que as pessoas têm com o
ubuntu na África do Sul: Interconexão, senso de humanidade e compaixão.
Ela também identificou a consonância da sabedoria ubuntu com o budismo e o
confucionismo entre outras filosofias não européias.
https://repository.up.ac.za/handle/2263/79761

(...) é preciso que nos comovamos com qualquer situação precária que
atinja alguém e passemos a nos posicionar sobre isso. E longe de ser
um gesto meramente altruísta, é uma postura de responsabilidade
com a totalidade da humanidade que habita em cada um dos
existentes humanos.

Professor Bas’Ilele Malomalo - Manifestações do Ubuntu no Brasil

O Professor Doutor Bas’Ilele Malomalo é


originário do Congo na África e atua como
docente numa universidade brasileira em
parceria com países africanos de língua
portuguesa, a Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira -
Unilab.

Em entrevista para a revista online do


Instituto Humanitas Unisinos (IHU), Bas’Ilele
Malomalo reflete sobre as manifestações da
filosofia Ubuntu no Brasil.

IHU On-Line – Como um princípio ético


nascido na África, que manifestações do ubuntu podemos encontrar na
cultura brasileira ou afro-brasileira, tão marcada por raízes africanas?

Bas’Ilele Malomalo – É preciso voltar à história para capturar as


manifestações do ubuntu em suas diásporas transatlânticas. No Brasil, a
noção do ubuntu chega com os escravizados africanos a partir do século XVI.
Estes trouxeram a sua cultura nos seus corpos, e ela foi reinventada a partir
do novo contexto da escravidão. Por isso, falar de ubuntu no Brasil é falar de
solidariedade e resistência. Como outros registros histórico-antropológicos
que expressam o “ubuntu afro-brasileiro”, podemos citar os quilombos, as

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religiões afro-brasileiras, irmandades negras, movimentos negros, congadas,
moçambique, imprensas negras.

Adriana Barbosa - Trechos do livro “Preta Potência”

No sentido dessa reflexão do Professor Bas’Ilele


Malomalo, eu penso que uma outra
manifestação da sabedoria africana Ubuntu no
Brasil poderia ser encontrada no trabalho da
empreendedora social Adriana Barbosa que
liderou os 22 anos de desenvolvimento da “Feira
Preta” desde 2002 até a versão atual que deverá
ocorrer em maio de 2024 no parque Ibirapuera
na cidade de São Paulo.
A fascinante história do desenvolvimento desse
empreendimento e do desenvolvimento dela
como líder está escrita no livro “Preta potência:
como a resistência e a ancestralidade me
ajudaram a criar o maior evento de cultura negra
da América Latina.”

Recomendo que você tente identificar nestes


trechos da Adriana Barbosa, os elementos da
filosofia Ubuntu que o Prof. Dr. Wanderson
Flores do Nascimento nos explicou: “ubuntu se
mostra como um interessante conceito que nos
mostra a radical proposta de integração entre
comunidade, natureza, ancestralidade na
formação das pessoas”. E lembrar também
como ele explicou que o senso de humanidade
da sabedoria Ubuntu enfatiza a interconexão e a
colaboração.

Adriana compartilha sobre o início de sua


jornada no empreendedorismo. Tudo começa
quando há espaço para a criatividade
empreendedora.

Sem saber se daria certo e sem dinheiro, fiz o que qualquer pessoa
jovem deveria ter o direito de fazer: imaginei.
Ser empreendedor é sair da zona de conforto e assumir riscos. E isso pode ser um
processo muito solitário e angustiante se não houver pessoas que escutem,

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compreendam e apoiem a futura empreendedora. Adriana escreve sobre a
importância de ter contado com um grupo de amigas negras que a acolheram e
apoiaram moralmente nas fases iniciais de elaboração da ideia da futura Feira
Preta.

Respeitando as particularidades e o ser único e individual que somos,


definitivamente as mulheres negras têm muitas inteligências, dores e
vitórias em comum.

Para viabilizar o início do empreendimento, Adriana contou com a confiança e o


dinheiro da avó dela que ajudou, por exemplo, a pagar a passagem de ônibus para
Adriana ir até os locais decisivos de negociação com futuros parceiros e apoiadores
do empreendimento. Além disso, a avó e a bisavó dela foram exemplos de atitude
empreendedora.

Quem me vê hoje não enxerga todas as mulheres que vieram antes de


mim e sustentaram minha caminhada até aqui.

A empreendedora honra todo o esforço das pessoas mais velhas que deram a
fundamentação para ela alçar voo empreendedor.

De tanta escassez e ausência, sou o futuro de pessoas que lutaram


muito para preservar traços da nossa cultura, talentos, inteligência e
habilidades ancestrais.

Represento o sonho mais impossível para minhas avós. Elas se


empenharam em criar formas de sobreviver para que os seus
descendentes crescessem mais livres. E conseguiram.

(...) por acreditar nesse legado, tenho trabalhado para transformar a


sobrevivência negra em uma vida cada vez mais livre e realizada.
Às vezes me espanta perceber como a liberdade é recente para nós.

Na cidade de São Paulo, a família da Adriana foi morar no bairro do Bixiga


(atualmente denominado bairro da “Bela Vista”) que é justamente a região onde os
arqueólogos identificaram o primeiro quilombo da cidade de São Paulo que é o
Quilombo do Saracura, de acordo com o nome do pequeno rio que percorria por
esse local e que hoje está canalizado debaixo de avenidas.
Adriana se inspira na história da busca por liberdade que resultou nos quilombos ao
longo dos séculos no Brasil.

Quando a ideia da Feira nasceu, imaginei um quilombo. Imaginei


construir um espaço onde fosse possível encontrar liberdade em um
chão acolhedor, com cheiro e sabor de um futuro bom.

19
A Feira Preta começou com um pequeno público na cidade de São Paulo e foi
gradativamente aumentando a sua abrangência para maiores públicos e mais
cidades ao longo de duas décadas de existência.

O fato de a Feira Preta ser reconhecida e receber público de outros


municípios e até de outros estados causou ressonância, como uma
pedra jogada em um lago. Quando atiramos a pedra, ela move a
superfície da água, formando uma onda, que vai criando outras ondas
circulares, cada vez maiores.

As várias parcerias que viabilizaram a Feira Preta surgiram de uma intenção


compartilhada de colaboração e solidariedade.

As pessoas que frequentam a Feira, embora diferentes entre si, estão


interessadas em proteger umas às outras, em ser o caminhar do rio da
nossa irmandade e em vislumbrar a colheita de um fortalecimento
individual e coletivo.

Adriana entende que a forma de empreender na Feira Preta é diferente das teorias
de empreendedorismo mais difundidas na literatura profissional.

A nossa forma de fazer é orgânica e não está atrelada à cultura


empreendedora que encontramos nos livros de administração.

Em vários trechos do livro, Adriana relata a importância da busca por


autoconhecimento.

Sem nos conhecermos como indivíduos, é difícil encontrar o nosso


próprio trajeto.

A Feira Preta beneficiou o desenvolvimento de mais de 2 mil empresas parceiras


em diferentes regiões do Brasil. Além disso, Adriana também iniciou projetos de
qualificação de profissionais e empreendedores.

Adriana Barbosa comenta que ela participou de uma pesquisa sobre


empreendedorismo de afrodescendentes no Brasil com mais de 1200 participantes
entrevistados em todo o território nacional. Um terço dos empreendedores negros
tiveram crédito negado pelos bancos. Isso é uma proporção três vezes maior do que
para empreendedores brancos. Adriana considera que isso é um efeito de
estereótipos racistas que devem ser vencidos para que os profissionais negros
recebam o mesmo grau de confiança do mercado que os profissionais brancos
recebem.

20
Também carregamos o peso de não poder errar. Qualquer erro pode ser
usado como reforço de estereótipos racistas que questionam a nossa
capacidade ou nossa inteligência enquanto grupo.

Eu trabalhei na 3M, uma empresa multinacional inovadora que tinha uma política
corporativa oficial de “tolerância ao erro”. Inovação é feita de novas ideias que
funcionam. Fazer novas ideias funcionarem é um processo que envolve
necessariamente muitos erros para se chegar aos acertos que levarão ao
amadurecimento da nova ideia até ela ser realmente viável e efetiva. Por isso,
imagino que esse efeito do racismo descrito pela Adriana requeira uma intenção
muito forte para ser superado e permitir o desenvolvimento de inovadores que
driblem estes estereótipos em organizações que saibam diminuir os vieses mentais
raciais.

Adriana também busca inspiração nas pioneiras do empreendedorismo negro no


Brasil da época colonial que eram as mulheres escravisadas que vendiam itens
comestíveis pelas ruas das cidades para realizarem um sonho mais significativo.

Gosto de recordar a história das quituteiras,


mulheres que carregavam seus tabuleiros
na cabeça e circulavam pela cidade
vendendo quitutes. Normalmente, além da
sobrevivência, o objetivo delas era comprar
a própria liberdade.

Nosso desafio é transcender resistência


para existência. Alcançar o bem-viver,
conceito que tem sido utilizado pelo
movimento de mulheres negras brasileiras
como uma das formas de reivindicar a vida
digna da nossa população.

Compartilho com você que até os meus cinquenta e um anos de idade, eu


praticamente não tinha nenhum conhecimento fundamentado sobre relações étnico
raciais. Eu só sabia de informações superficiais e tendia a acreditar no mito da
democracia racial. Não acredito mais.
Nos últimos dois anos, tenho estudado e pesquisado intensivamente esse assunto o
que incluiu dezenas de diálogos em profundidade no estado de São Paulo e na
Bahia e a leitura de dezenas de livros e artigos. De todo esse conteúdo, uma das
frases mais enigmáticas que eu encontrei é esta aqui que consta do livro da
Adriana:

Esperamos a chegada do momento em que os negócios liderados por


pessoas negras também não sejam vistos apenas por um viés racializado.

21
Fico tentando compreender essa frase misteriosa. Imagino a Adriana vindo até mim
e me falando: “Olá, eu sou uma empreendedora negra, mas não quero que você,
pessoa branca, me racialize em todos os momentos”. Em síntese essa frase me
parece dizer algo como: “Olá, eu sou uma empreendedora negra que espera por
alguns momentos em que eu não seja vista como pessoa negra”. Um paradoxo?

Essa frase da Adriana me lembra as meditações zen budistas Koan de frases


enigmáticas e paradoxais como, por exemplo, a meditação proposta pelo monge
Norman Fischer “Think, not thinking” (pense, não pensando).

Qual é o significado dessa frase da Adriana Barbosa? Afinal, ela é uma


empreendedora que autodefine-se uma pessoa negra liderando um negócio. Será
que ela não está se auto-racializando ao afirmar-se como mulher negra
empreendedora da Feira Preta?

Mesmo com estas aparentes contradições, essa frase da Adriana faz bastante
sentido para mim depois desse mergulho que realizei em diálogos e estudos sobre
relações étnico raciais. Um motivo se refere ao estilo da filosofia Ubuntu que é
dinâmico num fluxo de significados que podem mudar de acordo com novos
contextos e novos momentos. E o outro motivo é pelo conteúdo. Ao longo dos
séculos, as pessoas afrodescendentes ressignificaram o entendimento sobre a cor
de pele que era utilizada como marcador social pelos escravocratas europeus de
1444 (primeiro leilão de escravizados africanos em Portugal, segundo o livro do
Laurentino Gomes - “Escravidão - Volume I”) até 1888 no Brasil (Lei Áurea). Para
legitimar o lucrativo mercado de venda de pessoas africanas escravizadas,
religiosos, filósofos e cientístas por séculos fabricaram ideias de supremacia branca.
Os movimentos negros no Brasil, nos EUA e em outras regiões do mundo decidiram
ressinignicar o termo “negro” (em inglês “black”) para expressar a valorização da
cultura africana e afrodiaspórica (que inclui a cultura afro-brasielira) e para
demandar o fim de injustiças raciais e desigualdades. Foi isso o que eu compreendi
até agora como leigo interessado em aprender mais sobre relações étnico raciais.

Por isso, penso que quando uma pessoa branca fala constantemente o termo
“negro” em todas as situações sem fazer uso de um tato étnico-racial, ela pode estar
sendo inconveniente ao trazer tematicas de racialização em momentos fora de
contexto, nos quais o lider afrodescendente interlocutor preferiria falar de outros
temas e contribuir com outros conhecimentos, não necessáriamente ligados sempre
ao viés racial.

Não sei se estou compreendendo a frase da Adriana de modo adequado. O que sei
é que a frase dela me convida ao movimento, me convida a ativar um sensor social
étnico-racial para me deixar guiar pelo colega afrodescendente em quais momentos
para ele faz sentido as temáticas raciais e em quais momentos não.

22
De modo semelhante, como homem, sinto que não faz sentido eu sempre falar de
machismo. E também não faz sentido eu nunca falar de machismo. Mas faz mais
sentido eu conversar sobre machismo, quando uma mulher traz o tema, sem que
eu, como homem, force o tema machismo de modo automático e pedante em todos
os momentos, mesmo em situações em que o tema não faça sentido para ela.

O mais interessante dessa frase enigmática da Adriana é que ela me incentiva a


continuar meditando, dialogando e buscando melhores relações étnico-raciais,
mesmo nos momentos em que temáticas raciais não sejam demandadas. Nem
sempre o silêncio é omissão. Contexto e tato social podem servir de bússola.

O tempo coloca cada folha no seu lugar, acomoda os sentimentos, dá sentido


ao que antes parecia ser só um punhado de dor guardado dentro da gente

Penso que essa frase sobre o tempo que dá sentido à dor é uma poética imagem
para ilustrar o processo de ressignificação.

A ideia de interconexão e solidariedade do Ubuntu se expressa também nestas


frases da Adriana:

Os conceitos com que busco trabalhar são baseados na economia circular e


na economia do compartilhamento

Faz tempo que a Feira Preta trabalha com o conceito de ecossistema. Isso
significa que a gente não vai existir se não for conectado, entrelaçado como
uma rede de empreendimentos e com esse olhar sistêmico de transformação.

(...) essa é a minha história no meio da de tantas outras pessoas potentes


que estão atravessando matas para que a gente chegue mais longe. Para
mim, é isso: cada um de nós, respeitando sua individualidade, sua trajetória,
seu talento, tem a função de levar todos nós adiante.

Em 2020, Adriana Barbosa recebeu um importante reconhecimento internacional da


Fundação Schwab, no Fórum Econômico Mundial, em reconhecimento pelas
contribuições dela ao desenvolvimento sustentável.
(https://www.schwabfound.org/awardees/adriana-barbosa/)

Por curiosidade, coloco aqui o acesso ao Trabalho de Conclusão de Curso que a


Adriana Barbosa realizou em 2009 na pós graduação dela na ECA USP -
https://celacc.eca.usp.br/pt-br/tcc_celacc/feira-preta-outra-economia-economia-criati
va

23
Perguntas:
a) Quais foram as 3 a 5 ideias sobre as Filosofias Africanas (trechos do Nei Lopes e
Luiz Antonio Simas) e sobre a Filosofia Ubuntu (texto do Prof. Dr. Wanderson Flor
do Nascimento) que mais te proporcionaram um novo aprendizado e ou que mais
fizeram sentido para você?

b) Que relação você vê entre essas ideias filosóficas e os casos de Nelson Mandela
e Adriana Barbosa?

c) Faça uma reflexão comparativa entre a filosofia estóica greco-romana (que você
estudou no capítulo 2 do livro do Luc Ferry “Aprender a Viver: Filosofia para os
Novos Tempos”) e a filosofia Ubuntu.

Material Complementar Opcional - alguns vídeos:


1. Vídeo da televisão britânica BBC Brasil - “Ubuntu: o que significa essa filosofia
africana e como pode nos ajudar nos desafios do hoje”
https://www.youtube.com/watch?v=KaQSIvWV7wo&t=1s

2. Uma entrevista muito interessante com o professor Wanderson Flor do


Nascimento - “Ontologia Ubuntu e outras vozes africanas | Entrevista com
Wanderson Flor do Nascimento” (sobre Ubuntu nos minutos de 18:38 a 26:30)
https://www.youtube.com/watch?v=3bR86Ft3iBE

3. Uma entrevista com Adriana Barbosa sobre a Feira Preta - “CEO da Feira Preta
fala como o evento impactou o próprio processo de racialização” -
https://www.youtube.com/watch?v=lLNjTJY_-r4

4. Uma palestra TED de um profissional norte americano sobre Ubuntu no ambiente


de trabalho - (Em inglês. Você pode acionar a legenda em português) - “Ubuntu: The
One Word to Change How You Work, Live and Lead”
https://www.ted.com/talks/shola_richards_ubuntu_the_one_word_to_change_how_y
ou_work_live_and_lead

5. O Professor Dr. Morris Mthombeni da Universidade de Pretória na África do Sul


fala sobre liderança Ubuntu em inglês - “Ubuntu Leadership: Reflections of an
African Philosophy That Shifts How You Lead”. -
https://www.youtube.com/watch?v=fcqgqbukzLY&t=483s

24
Parte 2
Luc Ferry e Djamila
Ribeiro

Sobre inovações filosóficas de pensadores cristãos


Luc Ferry mostra, no capítulo 3, que pensadores cristãos (sobretudo Agostinho e
Tomás de Aquino) realizaram inovações filosóficas que, ao longo dos séculos,
deixaram de ser limitadas ao contexto religioso para se tornarem ideias laicas (não
religiosas) significativamente influentes até hoje na civilização contemporânea.

a) Visão de Mundo (“teoria”)

A visão de mundo dos cristãos é religiosa. É a visão de que o Logos, que é a


estrutura racional do universo para os estóicos, encarnou-se em Jesus Cristo. Essa
visão de mundo foi obtida pelo instrumento da fé religiosa e não pelo instrumento da
prática da racionalidade.
Apesar dessa ideia ter natureza religiosa e não necessariamente ter origem
racional-filosófica, foi ela que inspirou Agostinho a refletir racionalmente sobre a
dignidade humana. As reflexões racionais do sacerdote cristão Agostinho
tornaram-se uma explicação influente sobre a ideia da dignidade humana. Mais
especificamente, Agostinho demonstrou que a dignidade humana se fundamenta na
ideia do “livre arbítrio” de cada indivíduo. E é essa concepção de “livre arbítrio”
elaborada por Agostinho e outros filósofos cristãos que possibilitou significativas
inovações filosóficas racionais nos princípios propostos para a vida ética em
sociedade como veremos em breve com mais detalhes.

Em síntese, Agostinho inspirou-se numa noção religiosa da encarnação do Logos


cósmico no Jesus Cristo para elaborar a ideia de valorização da individualidade
humana pelo atributo do “livre-arbítrio” como fundamentação da dignidade humana.
Como todos somos iguais na nossa dignidade humana por todos nós sermos
dotados do “livre-arbítrio”, essa inovação filosófica dos pensadores cristãos inspirou

25
a definição do princípio da igual dignidade em todos os seres humanos como
diretriz para organizar a convivência prática nas sociedades ocidentais.

(...) apoiando-se na definição da pessoa humana e num pensamento


inédito do amor, o cristianismo vai deixar marcas incomparáveis na
história das ideias.

No Evangelho de João, o termo grego


“Logos” é traduzido como “Verbo” em
francês e portugues. Logos também é
traduzido para o alemão como “Wort”,
que significa “Palavra”.
O trecho “E o Verbo se fez carne e
habitou entre nós” no Evangelho de
João era tido como muito ousado e
sem sentido pelos estóicos. Como a
estrutura racional do cosmos poderia
se limitar a uma única pessoa em
Jesus Cristo?
Esse desentendimento sobre o uso
da ideia de “Logos” resultou até num
processo jurídico no Império Romano
que condenou São Justino à morte.

Para os pensadores gregos em geral (...) supor que um homem,


qualquer um, mesmo o Cristo, seja o logos, o “Verbo encarnado” (...): é
atribuir o caráter de divindade a um simples humano.

b) Princípios éticos para a vida prática em sociedade

Como vimos, a religião cristã limitou o campo da reflexão filosófica racional que
praticamente não teve nenhum papel na construção da nova visão de mundo após a
fase de predominância do estoicismo no público das massas cultas na civilização
ocidental. Esse fato, da racionalidade filosófica ter sido limitada poderia nos levar a
imaginar que seriam ruins as consequências dessa visão de mundo religiosa no
plano ético. No entanto, Luc Ferry, que é um filósofo contemporâneo ateu, considera
que as contribuições dos filósofos cristãos no plano ético foram muito racionais e
benéficas para a vida prática nas sociedades ocidentais. O autor do livro considera
até mesmo que os filósofos cristãos participaram do nascimento da ideia moderna
de humanidade.

26
Na Grécia clássica, muitos filósofos consideravam que as pessoas tidas como
“melhores” (com “mais virtudes”), mais fortes, mais “belas”, mais inteligentes
deveriam comandar as demais pessoas. Essa é a ideia da “aristocracia” que
literalmente significaria o “governo dos melhores”.

Os filósofos cristãos discordam dessa visão aristocrática e argumentam que uma


pessoa pode utilizar de sua inteligência, força e beleza para cometer crimes.
Portanto, as qualidades pessoais não são necessariamente éticas em si mesmas. O
que é ético é justamente o “livre arbitrio”, ou seja, a escolha que a pessoa faz de
como vai usar sua inteligência, força e beleza e demais capacidades de modo
benéfico para a vida em sociedade.

Para os filósofos cristãos, a dignidade humana é fundamentada justamente nessa


característica do “livre arbítrio”.

Além disso, a ideia do livre arbítrio proporcionou uma nova reflexão sobre a
igualdade entre todas as pessoas. As pessoas são muito diferentes entre si, porque
as capacidades e qualidades humanas são distribuídas de modo desigual entre elas
e não de modo igual. No entanto, todos os seres humanos são igualmente
portadores da dignidade humana, porque cada ser humano pode escolher
livremente (“livre arbítrio”) o modo como vai utilizar suas capacidades e qualidades.
Portanto, todos nós somos iguais na nossa dignidade humana, porque todos nós
temos o dom do livre arbítrio.

Por meio dessa elaborada reflexão racional, as idéias dos filósofos cristãos sobre a
dignidade humana e sobre o livre arbítrio resultaram na ideia do princípio da
igualdade entre todos os seres humanos. Essas ideias vão ser retomadas na
Revolução Francesa pelo lema “Liberdade, igualdade e fraternidade”.

O mundo grego era aristocrático, hierarquizado e tinha base na escravidão. Em


contraposição, os filósofos cristãos analisados por Luc Ferry propunham o princípio
da igualdade em nossa dignidade humana ao expressarem que “somos todos
irmãos”.

O cristianismo vai trazer (...) a noção de que a humanidade é


fundamentalmente uma e que os homens são iguais em dignidade

Observação: Eu não concordo com a utilização do termo “homem” para significar


“ser humano”. Penso que, atualmente, é mais respeitoso às mulheres utilizar o
termo “ser humano”.

Luc Ferry considera que essa ideia dos filósofos cristãos sobre a igualdade na
dignidade humana é uma ideia decisiva no desenvolvimento das democracias
ocidentais.

27
(...) a ideia de igual dignidade de todos os seres humanos faz sua
primeira aparição: então, o cristianismo estará mais ou menos
secretamente na origem da democracia moderna.

Além disso, o autor considera que os filósofos cristãos vão contrapor o princípio de
aristocracia dos gregos clássicos, pelo princípio da “meritocracia” no sentido das
pessoas que fazem bom uso do seu “livre arbítrio” individual ao realizar boas
escolhas sobre o modo como vão utilizar as suas capacidades pessoais na vida
prática em sociedade.

(...) com o cristianismo, saímos do universo aristocrático para entrar no


da “meritocracia”, quer dizer, num mundo que vai, inicialmente e antes
de tudo, valorizar não as qualidades naturais da origem, mas o mérito
que cada um desenvolve ao usá-las.

Uma outra importante contribuição do cristianismo para a vida ética, segundo Luc
Ferry, é a grande ênfase na consciência individual de cada pessoa para refletir
sobre as atitudes que consideram ser mais justas em situações práticas específicas.
Como exemplo, o autor comenta essa passagem da Bíblia cristã sobre a mulher
adúltera (no capítulo 8 do Evangelho de João):

“Porém Jesus foi para o monte das Oliveiras. E, pela manhã cedo, voltou
para o templo, e todo o povo vinha ter com ele, e, assentando-se, os
ensinava. E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em
adultério. E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi
apanhada, no próprio ato, adulterando, e, na lei, nos mandou Moisés que as
tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isso diziam eles, tentando-o,
para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com
o dedo na terra. E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se e
disse-lhes: Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire
pedra contra ela. E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra. Quando ouviram
isso, saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficaram
só Jesus e a mulher, que estava no meio. E, endireitando-se Jesus e não
vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles
teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E
disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais.”
(https://www.biblegateway.com/passage/?search=Jo%C3%A3o%208%3A1-1
1&version=ARC)

Luc Ferry (que, como já vimos, é um filósofo contemporâneo ateu) considera que
esse trecho é um convite para que cada pessoa visite a voz de sua própria
consciência antes de julgar uma outra pessoa ao seguir normas e regras
burocráticas automaticamente sem refletir. Não se trata de negar o cumprimento das

28
leis, mas de promover a justiça de modo complementar às leis, por meio da
interiorização da reflexão na consciência pessoal e no diálogo.

É porque o cristianismo concede esse enorme lugar à consciência, ao


espírito, mais do que à letra, que ele não vai impor praticamente
nenhuma juridicidade à vida cotidiana.

c) Busca de sentido de vida existencial (sabedoria)

(...) a partir daquele momento, na doutrina cristã, a razão deve ser


inteiramente submissa à fé que a conduz.

Ao longo dos séculos, os líderes religiosos cristãos limitaram o campo de atuação


da filosofia que se tornou uma disciplina nas escolas de teologia cristã. A filosofia foi
subordinada à religião e colocada como “escolástica”.

(...) filosofa-se sobre o sentido das Escrituras ou sobre a natureza


como obra de Deus, mas não mais sobre as finalidades últimas da
vida humana.

Luc Ferry considera que essa subordinação da racionalidade filosófica por líderes
religiosos cristãos gerou uma limitação que manteve-se até os dias de hoje nos
campos de atuação da filosofia, apesar da limitação atual não ser mais comandada
pela religião.
A filosofia deixou de ser “amor à sabedoria” como indica a tradução literal do termo
“filosofia” do grego para o português. Isso porque, desde o fim da difusão do
estoicismo, o ocidente não enfatiza mais o campo da filosofia referente à busca por
sentido de vida existencial, mas tem focado quase exclusivamente nos dois outros
campos da filosofia que são a visão de mundo e os princípios éticos para a vida
prática.

Os filósofos cristãos propuseram princípios éticos a partir de reflexões racionais, no


entanto, a visão de mundo e a busca de sentido existencial dos líderes cristãos
eram religiosas por serem pautadas pela fé cristã e não pelo uso da racionalidade.

Os pensadores cristãos, de modo semelhante ao modo dos monges budistas e dos


sábios estóicos, alertavam para os riscos da modalidade do amor que gera apegos.
O amor-apego gera sofrimento, porque tudo passa. Momentos de amor apego vão
passar, as pessoas pelas quais temos amor apego vão envelhecer, morrer e, antes
disso, elas podem passar por mudanças pessoais e deixar de nos amar. Por causa
de tudo isso, o amor apego é praticamente uma garantia de sofrimento, já que
apegar-se é justamente não se conformar com as inevitáveis mudanças e perdas.

29
No entanto, os pensadores cristãos recomendam uma modalidade de amor com
atributos religiosos (e diferente do amor-apego) que eles denominam de “amor em
Deus” por acreditarem que essa modalidade de amor “é mais forte do que a morte”.

Agostinho, por exemplo, relata: “a morte da minha mãe não era desgraça, ela ainda
estava viva na principal parte de si mesma”. A mãe de Agostinho já era cristã antes
dele. Ele considera que a melhor parte do ser dele como do ser da mãe dele seria o
amor que cada um deles tem por Deus ao cultivar o senso do sagrado. Com isso,
Agostinho poderia amar a mãe dele na modalidade de amor denominada de “amor
em Deus” que, na crença cristã, possibilitaria a expectativa religiosa de superar a
morte, ao imaginarem a perspectiva de mãe e filho voltarem a se encontrar depois
da morte.

Essa experiência religiosa de “amor em Deus” também poderia ser expandida além
do círculo da família de uma pessoa e abranger seus “amigos em Deus”. Nas
palavras de Santo Agostinho: “Só não perde nenhum de seus amigos aquele que só
ama alguém Naquele que não se pode perder nunca”

Obviamente, essa proposta de sentido de vida existencial e de “salvação” é


plenamente religiosa, sendo acessível não por meio do exercício da racionalidade,
mas pelo exercício da fé no cristianismo. No entanto, essa ideia cristã do amor será
adaptada de modo laico (não religioso) pelo próprio Luc Ferry (no último capítulo do
livro) em novas propostas racionais de busca de sentido de vida existencial.

O impacto da ciência sobre a filosofia. O


Humanismo e a Filosofia Moderna

Entre os anos 1540 e 1690, Copérnico, Galileu, Descartes e Newton iniciaram uma
revolução científica que abalou fortemente as visões de mundo propostas pelo
estoicismo e pelo Cristianismo. Agora, os seres humanos cultos na Europa
sentiam-se sem um cosmos e sem uma lógica divina para fundamentar a busca
racional por uma visão de mundo, por princípios éticos e por sentido de vida
existencial.

a) Visão de mundo

Nos séculos anteriores a essa revolução científica, alguns líderes religiosos cristãos
tinham inventado dogmas sobre temas como a idade do nosso planeta, as relações

30
entre os planetas e o sol, a idade das espécies, entre outros temas. No entanto, os
novos resultados empíricos e teóricos dos cientistas geraram evidências científicas
que negaram estes dogmas dos líderes religiosos, o que prejudicou a confiança das
pessoas na possibilidade da religião proporcionar uma visão de mundo realmente
racional.

Além disso, a prática do raciocínio crítico necessária para produzir pesquisas


científicas não era compatível com a fé cega no autoritarismo de líderes religiosos
que optaram pelo dogmatismo.

A visão de mundo na época do modernismo fundamentava-se no método


experimental das investigações científicas. Os pesquisadores realizavam e realizam
experimentos para encontrar as relações de causa e efeito (relações de
causalidade) que explicam cientificamente os fenômenos da natureza e da
sociedade. O médico e cientista francês Claude Bernard, por exemplo, realizou
experimentos com diferentes amostras de coelhos para demonstrar que o açúcar
presente no sangue dos animais (efeito) era produzido no fígado (causa).

Portanto, a visão de mundo agora não era mais contemplativa como a dos estóicos,
mas ela se tornou influenciada pela atitude investigativa e experimental dos
cientistas que passam a praticar a atividade intelectual conceitual com base em
fatos observáveis para propor as leis de causalidade que visam explicar os diversos
fenômenos da natureza e da sociedade.

b) Princípios éticos para a vida em sociedade

A nova visão de mundo com base nos resultados das pesquisas experimentais
substituiu os referenciais anteriores (cosmos e divindade). Agora, a nova visão de
mundo científica inspirava os pensadores ocidentais na busca por novos princípios
éticos para a vida prática em sociedade. Por este motivo, os filósofos modernos
buscaram embasar novas referências e inspirações numa renovada compreensão
sobre a natureza do próprio ser humano. É por isso que denomina-se essa nova
fase de “humanismo”.
Humanismo é a denominação para essa intenção de fundamentar a nova civilização
ocidental não na compreensão do cosmos nem da divindade, mas sim na renovada
compreensão sobre as características únicas e distintivas dos seres humanos em
relação aos animais.

A Declaração dos Direitos do Homem, escrita em 1789 é um dos resultados dessa


inovação dos filósofos do modernismo para a vida ética. Esse documento não tem
base na ideia de cosmos, nem na ideia de divindade, mas apenas na ideia racional

31
do que é o ser humano: “Art.1.º Os Homens nascem e são livres e iguais em
direitos”.

Rousseau foi o filósofo francês que propôs que a característica mais essencial do
ser humano é a liberdade. Ele denominou essa liberdade de “perfectabilidade”. Os
animais não têm liberdade, porque são limitados pela programação inflexível do
instinto animal. É a natureza que faz com que um pombo seja relativamente perfeito
como pombo que se alimenta de grãos. É a natureza que faz com que um gato seja
relativamente perfeito como gato que se alimenta de carne. Um pombo não pode
escolher em liberdade desenvolver habilidades de gato e nem um gato pode
escolher livremente desenvolver habilidades de pombo. A natureza já programou,
com considerável grau de perfeição, o comportamento de cada um desses animais
de modo determinístico de acordo com o instinto de cada espécie animal.

Diferente dos animais, o ser humano conta com muito mais margem de escolha livre
para se aperfeiçoar (“perfectabilidade”) em novas capacidade que ele não possuía
ao nascer. Portanto, Rousseau considera que a característica única do ser humano
que o diferencia dos animais é a perfectibilidade, ou seja, é um considerável grau de
liberdade em relação aos instintos para desenvolver e aperfeiçoar novas
capacidades por escolha própria.

Além disso, o ser humano pode usar a sua liberdade para realizar projetos
intencionais de maldade (por exemplo, ao fabricar instrumentos de tortura) e
também pode usar a sua liberdade para realizar projetos que expressam
generosidade.

(...) o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar
uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo,
a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural
para garantir a proteção dos mais fracos.

Kant desenvolveu a ideia de “imperativos categóricos”. Essa ideia parte da


constatação de que existe um lado potencialmente egoísta em todas as pessoas.
Esse lado egoísta dos seres humanos tende a forçá-los a agir apenas em benefício
próprio sem levar em conta as necessidades e direitos das outras pessoas.
Por este motivo, Kant considera que uma ação verdadeiramente ética deveria ser
desinteressada do próprio egoísmo e deveria também ser voltada para o bem
comum e não apenas para o benefício próprio.

Se eu seguisse sempre a minha natureza animal, é provável que o


bem comum e o interesse geral teriam de esperar muito até que eu me
dignasse a considerar sua eventual existência.

32
Para Kant, a pessoa madura tem a possibilidade de exercer a sua liberdade para
escolher ações pelo princípio dos “imperativos categóricos”. Essa escolha surge de
um senso de dever e de responsabilidade com o bem coletivo.

Se fôssemos naturalmente bons, naturalmente orientados para o bem,


não haveria necessidade de recorrer a ordens imperativas.

Kant também considera que a pessoa que exerce a sua liberdade para realizar uma
ação desinteressada do egoísmo e voltada para o bem comum está demonstrando
a sua “boa vontade”. Atos de “boa vontade” por respeitar os “imperativos
categóricos” que superam os egoísmos pessoais são atos que geram “mérito”
social, por beneficiarem o bem comum.

(...) todos nós temos dificuldade em realizar nosso dever, em seguir os


mandamentos da moral, apesar de reconhecermos sua legitimidade.
Há, pois, mérito em agir bem, em preferir o interesse geral ao
interesse particular, o bem comum ao egoísmo.

Os estóicos consideravam que o todo é mais importante do que as partes. Em


termos humanos e sociais, isso significa que o indivíduo não é mais importante do
que o todo social em que ele se insere. Mas para os pensadores do modernismo,
essa relação de importância se inverte. Como eles consideram que o todo é uma
ficção, então, o que importa é o indivíduo concreto, já que é do conjunto de
indivíduos concretos que surge algum todo social mais ou menos indefinido.

Um mal entendido muito frequente das pessoas que falam automaticamente pelo
senso comum sem refletir é a ideia completamente errada de que “individualismo”
seria sinônimo de “egoísmo”. Não é.

Você vê que o termo individualismo não designa, como se pensa


habitualmente, o egoísmo, mas quase o oposto, o nascimento de um
mundo moral no seio do qual indivíduos, pessoas, são valorizados na
medida de suas capacidades de se desprenderam da lógica do
egoísmo natural para construir um universo ético artificial.

Ainda antes de Rousseau e Kant, foi Descartes quem realizou decisivas


contribuições para a filosofia ocidental.

Muitos intelectuais que viviam na mesma época de Descartes consideravam que o


cosmos dos estóicos e a divindade dos cristãos não eram mais referenciais
suficientemente adequados para embasar racionalmente os pilares da visão de
mundo e da vida ética em sociedade. As pessoas duvidavam das antigas certezas e
essas dúvidas geravam sentimentos de insegurança.

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Descartes transformou essa fragilidade das incessantes dúvidas em uma força.
Trata-se da força da experiência da consciência subjetiva como base de toda e
qualquer atividade racional.

Esse filósofo e matemático francês que fundou a era moderna na história das ideias
realizou uma corajosa simulação mental. Ele colocou diante de sua consciência toda
uma lista das certezas que lhe foram trazidas pela sua educação na família, igreja,
escola e faculdade. Em seguida, ele desenvolveu uma abordagem metódica e
sistemática para duvidar de cada uma das suas antigas certezas. Com isso, ele
notou que nenhuma das suas antigas certezas resistia ao poder estrondoso da
dúvida intencional gerada pelo seu raciocínio crítico. Portanto, nenhuma de suas
certezas antigas continuava a ter o poder de fundamentar um senso de verdade em
sua consciência.

Isso significa que, ao pensar criticamente sobre cada uma de suas antigas certezas,
ele não sentia-se mais ancorado em um senso de realidade confiável. Suas antigas
certezas não proporcionavam mais ao Descartes nenhuma experiência mental de
sentir-se conscientemente existente.

(...) é preciso rejeitar todos os “argumentos de autoridade”. Chamamos


“argumentos de autoridade” as crenças impostas de fora como
verdades absolutas por instituições dotadas de poderes que não se
tem o direito de discutir, ainda menos de questionar: a família, os
professores, os sacerdotes etc.

Como resultado, Descartes percebeu que a atividade corajosa de praticar


plenamente a lucidez do raciocínio crítico para duvidar de tudo lhe proporcionava
uma experiência mental única de tão desperta e autoconsciente. Essa experiência
mental permitiu ele notar que, ao duvidar das antigas certezas, ele percebia-se sim
conscientemente existente. E como duvidar é um ato do pensamento crítico, ele
sintetizou o resultado dessa sua corajosa simulação mental com a famosa frase:
“penso, logo existo” (em latim “Cogito ergo sum”).

Descartes, que depois de ter posto todas as crenças anteriores em


dúvida, toma a iniciativa de reconstruir a filosofia inteira sobre algo
sólido: uma certeza inquebrantável, a do sujeito que toma posse de si
mesmo, em total transparência, e que a partir daí só confia em si.

Já que essa experiência do raciocínio crítico foi realizada no “laboratório mental” da


própria consciência de Descartes, os filósofos depois dele dizem que Descartes
demonstrou a importância da “subjetividade”, ou seja, da experiência mental da
consciência humana com ela mesma, como uma das principais características do
humanismo do modernismo.

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Você observará que (...) para Descartes (...) é o homem, o sujeito
humano, que se torna o fundamento de todos os pensamentos e de
todos os projetos

Essa autoconsciência demonstrada por Descartes pode ser uma nova fonte
inabalável de autoconfiança em cada sujeito humano.

Daí a natureza nova, fundada na consciência individual, e não mais na


tradição, da única certeza que se impõe antes de todas as outras: a do
sujeito em sua relação consigo mesmo.

Obviamente, a capacidade de confiar na própria reflexão e na própria consciência


não exclui a possibilidade de compreender e concordar com a opinião de outra
pessoa que faça sentido racional para você.

Parece-me que com essas poucas explicações você já pode perceber


melhor em que sentido se diz que a filosofia moderna é uma filosofia
do “sujeito”, um humanismo, e até mesmo um antropocentrismo, quer
dizer, no sentido etimológico, uma visão do mundo que coloca o
homem (anthropos, em grego) — e não o cosmos ou a divindade — no
centro de tudo.

c) Busca de sentido existencial

Apesar do modernismo ser fundamentado na visão de mundo decorrente das


avançadas pesquisas científicas experimentais e na liberdade que rompe as
correntes do autoritarismo ultrapassado, o modernismo decepcionou na tentativa de
gerar soluções para as questões existenciais.

Basicamente, o modernismo gerou diferentes modalidades de ideologias para


justificar o sentido existencial da vida e também para justificar argumentos que
queriam convencer as pessoas para sacrificar suas vidas em nome de um “ideal
maior”: como por exemplo o ideal do nacionalismo (nazismo e facismo foram
modalidades de ideologias nacionalistas), ou o ideal da revolução comunista, ou
então, o cientificismo representado por escritores como Júlio Verne que
argumentava que os cientistas que realizassem descobertas e invenções seriam
como que “eternizados”.

Dito claramente, três modos de salvar a vida, ou de justificar a morte,


dá no mesmo, sacrificando-a em benefício de uma causa superior: a
revolução, a pátria, a ciência.

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Apesar destas três desajeitadas propostas de busca de sentido existencial pela
fabricação de ideologias, Luc Ferry apresenta uma outra proposta mais sensata que
é a ideia de Kant de “pensamento alargado”.

É Kant, na linha de Rousseau, quem lança pela primeira vez a ideia


crucial de “pensamento alargado” como sentido da vida humana.

A pessoa que se fecha no modo de pensar com o qual está confortavelmente mais
habituada limita-se a si mesma e conta com um portfólio de menos experiências e
escassos recursos cognitivos para dar mais sentido e senso de direção aos rumos
de sua vida. Na linguagem atual, poderíamos explicar essa ideia em termos da
atitude de fechar-se em sua própria “bolha cognitiva e afetiva”.

Em contraposição, a pessoa que consegue ir além de sua bolha cognitiva para


aprender sobre outras culturas, amplia seus horizontes e ganha novas perspectivas
para compreender melhor o modo de pensar das outras pessoas e para ressignificar
o seu próprio modo de pensar. Isso enriquece substancialmente o leque de opções
e de recursos cognitivos para dar ainda mais sentido às suas próprias trajetórias
futuras.

O pensamento alargado, para ele, é o contrário do espírito limitado, é


o pensamento que consegue se libertar da situação particular de
origem para se elevar até a compreensão do outro.

Um exemplo do pensamento alargado é a aprendizagem de um idioma estrangeiro.


Dominar um novo idioma nos dá acesso a novas culturas e a novos modos de
pensar e de viver. Isso pode enriquecer o leque de nossas possibilidades na busca
por sentido existencial.

No capítulo 6 do livro, Luc Ferry retomará essa ideia do pensamento alargado


proposta por Kant para desenvolvê-la e adaptá-la como modo de ampliação de
horizontes e de enriquecimento dos processos de autoconhecimento de cada um de
nós como sujeitos em diálogo.

Desprendendo-se das particularidades iniciais, entra-se, pois, em mais


humanidade.

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As fases iniciais da trajetória de formação de sujeito
da filósofa Djamila Ribeiro
Com o intuito de praticarmos o “pensamento alargado” proposto por Kant e Luc
Ferry e tentarmos exercitar-nos na prática da “filosofia intercultural” elogiada por
Mogobe Ramose e proposta por Heinz Kimmerle, estudaremos, na sequência,
reflexões sobre o livro “Cartas para a minha avó” da filósofa brasileira Djamila
Ribeiro.

Como vimos no texto do Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento, a filosofia


africana Ubuntu é uma expressão da experiência do processo de formação de
sujeito das pessoas integrantes das culturas africanas. Essa formação de sujeito
ocorre em conexão essencial com a comunidade, a natureza e a ancestralidade.
Também vimos que o Prof Dr. Bas'Ilele Malomalo reconhece manifestações da
sabedoria Ubuntu também em solo brasileiro nos quilombos, no movimento negro e
em outras expressões da cultura afrobrasileira.

Djamila Ribeiro é uma filósofa brasileira que tem recebido significativo


reconhecimento nacional e internacional. Será que nos relatos em primeira pessoa
dela em suas cartas para a sua falecida avó Antônia, nós podemos encontrar
algumas pistas da sabedoria Ubuntu? Será que Djamila Ribeiro enfatiza o papel da
ancestralidade, comunidade e natureza no seu processo pessoal de formação de
sujeito enquanto pessoa e enquanto filósofa?

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Sobre a Carta 1

Querida vó Antônia,

Minhas lembranças de você têm gosto de manga verde e doce de


abóbora. Têm cheiro de feijão e jantar às seis da tarde. Você me
adoçava a boca e benzia a alma.

Ao longo do livro, a autora relata que a avó materna, Dona Antonia (falecida aos 68
anos de idade, quando Djamila tinha 12 anos de idade), trouxe amor e afeto para o
processo de formação de sujeito da menina Djamila. Na fase adulta, Djamila soube
colher ainda mais aprendizados desta relação avó-neta, por meio de renovadas
reflexões sobre suas memórias com a avó. Esse amor e afeto da avó protegeram
Djamila de ciclos de brutalização.

Eu amava passar minhas férias na sua casa, sentir o amor em sua


melhor forma.

Djamila morava com sua mãe, pai e irmãos na cidade de Santos, no litoral do
estado de São Paulo e viajava para Piracicaba, no interior do estado de São Paulo,
para passar as férias na casa de sua avó materna.

Numa destas férias, a menina Djamila foi picada por uma abelha.

(...) você passou uma mistura de ervas que fez meu braço desinchar
rápido, e logo eu estava na rua de novo.

Djamila descreve várias cenas detalhadas com demonstrações de carinho e amor


que recebeu de sua avó. Dona Antônia também era benzedeira requisitada na
vizinhança e várias vezes benzeu a neta Djamila.

Hoje tento entender o significado de certo mistério que te envolvia. As


histórias de ninar que você me contava, tão doces e delicadas

Djamila escreveu as cartas para a falecida avó em tom de diálogo entre duas
mulheres adultas que querem compreender-se mutuamente ainda mais. A autora
expressa perguntas que gostaria de fazer para conhecer melhor a sua avó.

Nunca consegui perguntar a você como foi criar sete filhos com meu
avô. (...) Como você lidava com o racismo. Será que pensava sobre
isso ou foi forçada a naturalizá-lo? Eu não tive tempo de lhe perguntar
nada disso. Quais eram os seus sonhos, seus medos.

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Sobre a Carta 2

Nesta carta, Djamila relata para a avó falecida como foi difícil lidar com o luto pela
morte da mãe dela, a Dona Erani, que faleceu com 51 anos de idade, quando a
autora tinha 20 anos de idade.
No dia do enterro da mãe, uma vizinha, ao invés de acolher o sofrimento da jovem
Djamila, falou para ela “ser forte”.

(...) o que vi foi a crueldade de se esperar que uma jovem de vinte


anos fosse forte no dia da despedida de sua mãe

A autora complementa contando sobre a indiferença de outras pessoas que


tentavam consolá-la pela perda da mãe com frases de efeito ditas sem empatia.
Com isso, a jovem Djamila desenvolveu, naquela fase de vida, um hábito de
dessensibilizar-se do próprio sofrimento.

Acreditei que eu precisava ser forte e me recusei a entrar em contato


com a dor.

Sobre a Carta 3

Nesta carta, Djamila relata para avó sobre momentos da infância dela. Aos seis
anos de idade as meninas vizinhas questionaram se faria sentido Djamila brincar
com as bonecas brancas. O pai de Djamila ouviu estas falas e comprou bonecas
negras para Djamila e a irmã dela.

posso dizer que não foi fácil ser uma menina preta em um bairro
majoritariamente branco.

A menina Djamila gostava de contemplar o céu estrelado.

Eu também amava olhar pela janela do meu quarto à noite, tentando


ver as estrelas. Sentia saudade de algo que não sabia nomear.

Djamila relata como seu pai e sua mãe foram brutalizados durante a vida deles e
como eles tentavam ser bem rigorosos com os filhos no intuito de “prepará-los” para
a falta de gentileza que encontrariam ao longo dos anos e décadas nas
convivências em sociedade.

A autora relata como era tenso passar a infância sob pressão dos adultos que
expressavam constantemente que ela e os irmãos nunca poderiam praticar nenhum
erro, sob ameaças de severas consequências caso o erro acontecesse.

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(...) mas éramos crianças, íamos errar — e somos seres humanos,
vamos errar. Essa rigidez, porém, acabou acentuando os problemas
de autoestima que o racismo nos causa. Lá em casa, vó, crescemos
entendendo que errar era mais um privilégio de brancos.

Além disso, a menina Djamila ouvia dos adultos que ela não poderia apanhar na
escola nem na rua, senão ela apanharia mais uma vez em casa. Essa falta de
acolhimento era acompanhada por uma justificativa:

“Estou te preparando para a vida”. Preparar para a vida, quando se


trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender
a lidar com a brutalidade do mundo. É um ciclo que se propaga
impedindo a gente de ser, somente ser.

Sobre a Carta 7

Djamila relata que recebeu uma


foto da avó Antônia que lhe foi
enviada pelo seu irmão mais velho.
Ela descreve com muito carinho e
admiração a postura altiva da avó,
os trajes e, sobretudo, o olhar firme
de cumplicidade e apoio.

Um olhar penetrante, forte e, de


novo, altivo.

Djamila reconhece esse olhar de


cumplicidade e apoio também na
mãe dela, Dona Erani.

Essa cumplicidade, porém, tinha


um sentido mais profundo: o de me
proteger das violências que
somente mulheres sofrem.

Djamila considera que os olhares


protetivos da mãe dela a educaram
para indignar-se contra as
injustiças praticadas às mulheres.

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Em seguida, ela apresenta uma reflexão a partir da religiosidade de matriz africana
de como as mais velhas e as mais novas encontram-se em mútua colaboração e
parceria: As mais velhas preparando o caminho para as mais novas e as mais
novas dando continuidade ao legado das mais velhas.

Ao ver seus olhos na foto, entendi de onde herdei os meus.

Sobre a Carta 9

O pai de Djamila, o Francisco, era estivador (carregador de cargas) no porto de


Santos. Era inteligente, culto, tinha muitos livros e era o grande apoiador que
incentivava o desenvolvimento intelectual da Djamila.

Djamila também honra todo o esforço da mãe para cuidar e proteger os filhos.
Enquanto o pai incentivou o desenvolvimento intelectual da Djamila, a mãe serviu de
referência (“modelar”) para atitudes de coragem perante os desafios da vida.

Quando falamos na frente das visitas que nós a entendíamos, lembro


como se fosse hoje da emoção que ela tentou disfarçar. A partir
daquele dia, nossa relação foi mudando.

Ao sentir-se compreendida, a mãe de Djamila deixou de ser tão rigorosa. Mãe e


filhas tornaram-se amigas e saiam juntas para se divertir e para conversar de igual
para igual.
Quando era jovem antes de ser mãe, Erani queria ser jogadora de basquete, mas foi
podada pelos familiares.

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Erani disse para as filhas que saiu de uma escravidão (ser empregada doméstica
em São Paulo) para entrar em outra escravidão (ser dona de casa sob as diretrizes
e a dependência financeira do marido que a traia).
As amigas da Djamila gostavam muito da sabedoria de vida nos conselhos de Dona
Erani. Elas admiravam a inteligência da mãe da Djamila.

Demorei a entender, mas minha mãe foi um espírito livre enjaulado.

Apesar de tantas dificuldades que podaram a sua autonomia pessoal ao longo da


vida, Dona Erani sentiu-se mais livre ao ser compreendida pelas filhas.

Minha mãe teve suas asas cortadas por muitas tesouras, e dizer a ela
que a compreendíamos foi como fazer um pedaço se colar.

Sobre a Carta 17

Djamila conta que a mãe dela com frequência recebia comentários críticos e até
maldosos de vizinhas que tentavam diminuí-la, apesar do grande esforço de Dona
Erani ao caprichar na limpeza do apartamento e no preparo dos lanches, por
exemplo, nas reuniões de mulheres que ocorriam lá para promover a venda de
utensílios plásticos Tupperware. Uma vizinha criticou que o apartamento dela era
muito pequeno e outra vizinha criticou as rachaduras em seus pés.

Dona Erani foi uma mulher com os pés rachados e os olhos tristes. E
foram raras as vezes que alguém, em vez de olhá-la com desprezo ou
desdém, perguntou qual era a história por trás daqueles olhos
castanhos-escuros.

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Perguntas:
a) Ao estudar Luc Ferry, quais são as principais diferenças que você percebe no
significado das palavras “individualismo” e “meritocracia” na filosofia versus no
senso comum?

b) Na reflexão de Luc Ferry, quais foram os principais marcos no desenvolvimento


das ideias sobre “liberdade”, “igualdade”, “consciência” e formação do “sujeito”

c) Num tópico chamado “A título de conclusão” Luc Ferry escreve que "Toda grande
filosofia resume em pensamentos uma experiência fundamental da humanidade".
Quais são os pensamentos da Djamila que mais te proporcionaram aprendizado
sobre a experiência dela no processo de formação do sujeito?

Fontes:
BARBOSA, Adriana. Preta potência: como a resistência e a ancestralidade me
ajudaram a criar o maior evento de cultura negra da América Latina. HARLEQUIN,
2021.

FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Objetiva, 2010.

HALLENGREN, Anders. Nelson Mandela and the rainbow of culture. 2017. -


Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1993/mandela/article/

KIMMERLE, Heinz. Afrikanische Philosophie im Kontext der Weltphilosophie.


2005.

LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias africanas: uma introdução. Editora
José Olympio, 2020.

MALOMALO, Bas’Ilele. “Eu só existo porque nós existimos”: a ética Ubuntu.


Entrevista concedida a Moises Sbardelotto. Revista do Instituto Humanitas
Unisinos-IHU On-line. Edição, v. 353, 2010.

DO NASCIMENTO, Wanderson Flor. Entre apostas e heranças: contornos africanos


e afro-brasileiros na educação e no ensino de filosofia no Brasil. 2020. Disponível
em - https://philpapers.org/archive/NASEAE.pdf

RAMOSE, Mogobe B. African philosophy through Ubuntu. 1999.

RIBEIRO, Djamila. Cartas para minha avó. Companhia das Letras, 2021.

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