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A Matemática Através dos Tempos: um guia fácil e prático para professores e entusiastas/

por William P. Berlinghoff, Fernando Q. Gouvêa; tradução Elza F. Gomide, Helena Castro. São Paulo: Edgard
Blucher, 2008. ISBN: 978-85-212-0454-1

ABSTRAÇÃO, COMPUTADORES E NOVAS APLICAÇÕES


O fim do século XIX foi marcado por um evento importante. Em 1900, os organizadores do
Congresso Internacional de Matemática convidaram David Hilbert (1862-1943), então o mais
eminente matemático alemão, para fazer uma conferência. O discurso de Hilbert focalizou o papel de
problemas não resolvidos na condução da pesquisa matemática. Ele esboçou 23 problemas que
achava que seriam importantes no novo século. Na maior parte,
adivinhou corretamente. A investigação desses problemas levou,
diretamente ou indiretamente, a muitos avanços na matemática. A
solução de apenas uma parte de um problema de Hilbert trazia
reconhecimento internacional para quem o resolvesse.
Mas mesmo Hilbert não podia prever como a matemática
cresceria no século XX. Havia cada vez mais matemáticos, revistas
e sociedades profissionais. O crescimento fenomenal que tinha
começado nos anos 1800 continuava, e o conhecimento matemático
dobrava a cada 20 anos mais ou menos. Mais matemática original foi produzida depois que os
astronautas caminharam pela primeira vez na Lua do que em todos os séculos anteriores. Na verdade,
calcula-se que 95% da matemática conhecida hoje tenha sido produzida a partir de 1900. Centenas
de periódicos publicados no mundo todo dedicam a maior parte de seu espaço à matemática. A cada
ano, a revista de resumos Mathematical Reviews publica milhares de páginas de sinopses de artigos
recentes contendo novos resultados. O século XX (e talvez o novo século também) é justificadamente
chamado de “idade de ouro da matemática”.
A quantidade, porém, não é a chave para a posição única que a era corrente ocupa na história
da matemática. Sob essa assombrosa proliferação de conhecimento, há uma tendência fundamental
em direção à unidade senda a sua base a abstração. Tal unidade conceitual levou as duas direções. De
um lado, novos e mais abstratos subcampos da matemática emergiram para se tornar áreas
estabelecidas de pesquisa de direito próprio. De outro, pesquisadores trabalhando em problemas
clássicos verdadeiramente grandes, como o Último Teorema de Fermat ou os 23 problemas de Hilbert,
se tornaram cada vez mais hábeis na utilização de técnicas novas de uma área da matemática para
responder a questões antigas de outra. Em consequência, o século XX é uma época em que muitas
questões antigas foram finalmente respondidas e muitas questões novas apareceram.
O aumento na simples quantidade matemática e no nível de abstração inevitavelmente levou
ao aumento da especialização. Hoje em dia, a maior parte dos matemáticos conhece bem sua área de
pesquisa; em menor grau, os tópicos circundantes; e muito pouco sobre partes distantes do tema. O
poder unificador do ponto de vista abstrato compensa isso um pouco, mas só realmente os melhores
matemáticos têm uma visão completa a respeito do assunto. Dado tudo isso, não podemos fornecer
mais do que uma breve e muito incompleta descrição da matemática do século XX. Escolhemos
salientar o debate sobre os fundamentos da matemática, o papel da abstração, a invenção do
computador e o amplo espectro de novas aplicações.
Nas primeiras décadas do século XX, os matemáticos e filósofos investigaram os fundamentos
do assunto. O que é um número? O conhecimento matemático é certo? Podemos demonstrar que é
impossível para a matemática se contradizer? Houve intenso debate sobre essas questões. De um lado
estavam os "formalistas", achando que podiam entender a matemática em termos de manipulação
formal de símbolos. A ideia era de que, assim, eles podiam evitar difíceis questões filosóficas sobre
a existência de objetos matemáticos. Uma parte crucial de seu programa era mostrar que tal
manipulação formal nunca poderia levar a uma contradição. De outro lado estavam os
"intuicionistas", que argumentavam que muitas ideias matemáticas, na verdade, não eram bem
fundamentadas. Queriam reformar todo o assunto, eliminando a maior parte dos apelos a conjuntos
infinitos e rejeitando a “lei do meio excluído” (o princípio aristotélico que dizia que, se é possível
demonstrar que a negação de A é falsa, então A deve ser verdadeira).
Nenhuma das correntes perdurou. As propostas dos intuicionistas eram radicais demais para
a maioria dos matemáticos. As ideias dos formalistas eram mais próximas de serem aceitáveis, mas
seu programa perdeu muito de sua atração depois dos anos 1930. O motivo foi que Kurt Gödel (1906-
1978) encontrou um modo de demonstrar que era impossível encontrar uma demonstração de que não
surgiriam contradições. O trabalho de Gödel estabeleceu pela primeira vez que algumas coisas não
podiam ser demonstradas.
Isso teve um efeito curioso. Para os matemáticos trabalhando em fundamentos, era um golpe
real, e que teria que ser absorvido de alguma forma. Porém, para outros matemáticos, significava
basicamente que o trabalho em fundamentos não lhes poderia dar muito auxílio na resolução de
grandes problemas. Assim, eles continuaram o trabalho de tentar demonstrar teoremas e resolver
problemas.
Quando se deu o debate fundamental, o movimento em direção à abstração se tornou tema
dominante da matemática no começo do século. Não era só porque estava na moda (embora, com
certeza, isso fosse parte da questão). Era também porque o método abstrato era poderoso. Usando-o,
velhos problemas foram resolvidos ou observados a partir de novas perspectivas. Logo a matemática
foi dominada pelos analistas abstratos, pela topologia, teoria da medida, análise funcional e outras
áreas afins. Essencialmente, eram generalizações do material desenvolvido no século XIX, tomando
um ponto de vista abstrato, que revelou quais ideias eram importantes e quais não eram. Os resultados
foram, frequentemente, novas descobertas.
Em nenhum lugar a mudança era tão visível quanto na álgebra. O tema tornou-se mais geral
do que jamais tinha sido. A percepção de Galois de que se deve considerar classes inteiras de
operações algébricas de uma só vez foi tomada e estendida por Emmy Noether (1882-1935) e Emil
Artin (1898-1962). Nas mãos deles, a estrutura e a linguagem da álgebra abstrata tornaram-se um
instrumento poderoso.
No fim dos anos 1930, um grupo de jovens matemáticos franceses se reuniu com a intenção
de revolucionar o assunto. Eles achavam que as novas ideias não tinham sido suficientemente
internalizadas pela comunidade matemática, especialmente na França. Era hora de derrubar a "velha
guarda". Seu plano era fazer duas coisas. Primeiro, coletivamente, escreveriam um livro-texto em
muitos volumes, um compêndio de toda a matemática fundamental. Com um aceno a Euclides, eles
o chamaram de Elementos de Matemática. Como escreviam coletivamente, adotaram um
pseudônimo: o autor do novo Elementos era Nicolas Bourbaki.26
Os membros do grupo Bourbaki divertiam-se muito com sua persona coletiva. Criaram uma
biografia para Nicolas Bourbaki, deram-lhe uma posição universitária e até, em certa ocasião,
enviaram convites para o casamento de sua filha. Quando a Enciclopédia Britânica disse que
Bourbaki era um pseudônimo coletivo e que, portanto, não existia tal pessoa, eles receberam uma
carta zangada do “próprio Bourbaki”, questionando a existência do autor da afirmação na
enciclopédia! Os fundadores de Bourbaki acreditavam que a matemática criativa é primariamente um
esporte para jovens, de modo que concordaram em se retirar do grupo antes dos 50 anos e eleger
colegas mais jovens para substituí-los.27 Assim, Bourbaki se tornou uma renomada, mas misteriosa,
presença internacional, sempre no auge de sua produtividade profissional, fornecendo ao mundo
científico uma série contínua de exposições modernas, claras e corretas em todas as áreas da
matemática contemporânea.
Havia uma segunda parte na estratégia do grupo Bourbaki. Eles decidiram manter um
seminário regular - que se tornou conhecido como o "Seminário Bourbaki" - sobre o que se passava
na matemática. Agora realizado em Paris três vezes por ano, é ainda um dos mais importantes
seminários sobre progressos recentes na área, e no qual os melhores estudiosos discutem novas ideias
importantes e teoremas ante uma audiência repleta de matemáticos de todo o mundo.
A influência de Bourbaki foi sentida sobretudo por meio dos Elementos. Como levaram muitos
anos para serem escritos, seu impacto ocorreu por volta de meados do século ou depois. Esses livros
assumem um ponto de vista abstrato, sem compromissos. No entanto, dão uma exposição precisa e
confiável de cada um dos campos que cobrem. Muitos censuram Bourbaki por ter conduzido
professores de matemática a adotar uma abordagem formal e abstrata. Mas a verdade é que os
Elementos de Matemática nunca foram pensados como modelo de pedagogia matemática. Em vez
disso, esses volumes tinham a intenção de reunir, formalizar e tornar precisos grandes pedaços da
matemática, e isso foi feito com sucesso (na maior parte).
Nas últimas décadas do século, Bourbaki pareceu ter perdido parte da energia original que
"ele" tinha. O Seminário ainda continua com força, mas a taxa de publicação dos Elementos se
reduziu, arrastando-se. Em parte, isso se deve ao sucesso do programa de Bourbaki, mas também
reflete uma mudança na disposição dos matemáticos, movimento afastando-se da abstração e
aproximando-se das aplicações.
A segunda metade do século XX é marcada também pela invenção e pelo desenvolvimento
dos computadores. (Ver Esboços 23 e 24.) No início, os matemáticos estavam profundamente
envolvidos nesse processo. Eles analisaram as possibilidades das novas máquinas, inventaram a
noção de “programa de computador”, ajudaram a construir os primeiros esquemas e forneceram
problemas difíceis para testá-los. Logo, porém, a ciência da computação seguiu seu próprio caminho
e se concentrou em seus próprios problemas.

26 Sugere-se que o nome “Bourbaki” foi inspirado por uma estátua em Nancy, França, do general Charles D.
S. Bourbaki da Guerra Franco-Prussiana. A motivação para “Nicolas” não é clara, mas sua escolha tem
iniciais, N. B., um bônus atrativo.
27 Diz-se que alguns dos fundadores originais lamentaram ter feito essa regra quando chegou o momento de

saírem.
É como instrumentos que os computadores tiveram seu maior impacto na matemática. Os
computadores mudaram a matemática pelo menos de três modos. Primeiro, permitiram que os
matemáticos testassem conjecturas e descobrissem novos resultados. Suponha que se está tentando
descobrir se existem infinitos primos na forma n² + 1, um problema ainda não resolvido. Pode-se
testar se isso é provável ou não usando o computador para conferir vários milhões de valores n e
testando o número resultante para primalidade. Se encontrarmos
muitos primos, podemos ficar persuadidos de que, de fato, existirão
infinitos deles. Observe que isso não decide a questão. Ainda está
para ser feito o trabalho duro de achar uma demonstração. Mas isso
pode oferecer pistas e nos deixar mais ou menos confiantes de que o
que estamos tentando demonstrar é verdadeiro.
A segunda modificação está ligada a simulação e
visualização. Os computadores podem fazer figuras a partir de dados,
figuras que frequentemente são muito mais esclarecedoras do que os dados numéricos por si sós.
Além disso, podemos usar cálculos numéricos para soluções aproximadas de equações. Assim,
podemos usá-las para entender situações cuja descrição precisa é complicada demais para uma análise
matemática completa. Isso, é claro, revolucionou a matemática aplicada. Hoje, soluções aproximadas
de equações diferenciais complicadas são parte central do trabalho. Contudo, também teve impacto
na matemática pura. Um bom exemplo desse efeito é a descoberta dos fractais. Tais estruturas
altamente complexas tinham sido consideradas antes, no começo do século XX, mas então só
pareciam horrendamente complicadas e impossíveis de serem tratadas. Porém, depois que
aprendemos a usar computadores para traçar suas figuras, descobrimos que os fractais podem ser
belos, e todo um novo campo da matemática nasceu.
-A terceira mudança se relaciona com o que é conhecido como sistemas de computação
algébrica. São programas de computador que podem "fazer álgebra". Podem trabalhar com
polinômios, funções trigonométricas exponenciais e muito mais. Podem somar, multiplicar, fatorar,
encontrar derivadas e integrais e calcular aproximações de séries.
Em outras palavras, podem fazer muito do que
costumava ser o conteúdo computacional da matemática
escolar e universitária. Como esses sistemas tornaram-se
amplamente disponíveis, há cada vez menos razão para ensinar
os estudantes a fazer cálculos elaborados manualmente. Em
consequência, os matemáticos agora estão repensando o
deveria ser ensinado e como.
O século XX viu também urna grande ampliação quanto a aplicações da matemática. No final
do século XIX, "matemática aplicada" era quase sinônimo de "física matemática". Isso rapidamente
mudou. Provavelmente, a primeira mudança foi o desenvolvimento da estatística na maior parte
visando a aplicações em biologia. O valor da estatística como instrumento para analisar dados logo
se tornou evidente para os estudiosos em toda parte, e outras aplicações seguiram-se rapidamente.
(Ver Esboço 22 para a história do começo da estatística.)
Viu-se a utilidade de mais e mais ideias matemáticas. A física matemática começou a usar
probabilidade e estatística, geometria riemanniana, espaços de Hilbert e teoria dos grupos. Os
químicos descobriram que a cristalografia tinha uma grande componente matemática. Ideias
topológicas se mostraram relevantes para o estudo da forma de moléculas. Biólogos usaram equações
diferenciais para modelar a disseminação de doenças e o crescimento de populações de animais.
Começando na Primeira Guerra Mundial, governos descobriram que pensar matematicamente
os problemas levava a resultados úteis, e nasceu a "pesquisa operacional". Na Segunda Grande
Guerra, matemáticos tiveram um papel crucial de muitos modos, com mais fama ao desenvolver a
ciência da criptografia e quebrar o código alemão Enigma. Redes de telefonia e, mais tarde, a internet
foram estudadas matematicamente. A "programação linear" foi desenvolvida para lidar com o fato de
determinar o "melhor modo" de fazer coisas em toda espécie de áreas, desde a indústria, passando
pela governamental, até a área militar. Modelagem por computador permite toda espécie de novas
aplicações à biologia, da dinâmica de populações ao estudo da circulação do sangue, dos neurônios,
e de como os animais se movem. Finalmente, no término do século, a matemática e a física se uniram
outra vez para produzir novas e sofisticadas teorias físicas.
Os historiadores apenas começaram a observar mais cuidadosamente o conjunto da história
da matemática no século XX. Duas boas visões gerais são [67] e [141] — ambas usam os problemas
de Hilbert como guia para o período. O livro de Gray focaliza mais a matemática, enquanto Yandell
está mais interessado nos matemáticos. Veja também [3] e [4], que contêm interessantes perfis de
matemáticos do século XX.

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