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Maria abriu os olhos no escuro.

Estava mais acostumada a acordar no escuro do que na luz.

Seu despertador gritava dentro da escuridão, logo ao lado da sua cabeça deitada sob o
travesseiro. Maria o odiava, como odiava muitas coisas, mas o colocou ali de propósito.

Acordaria por bem ou por mal.

Ela ergueu o tronco ao apoiar os braços sob o colchão e ligou o abajur mais próximo da sua
cama, atrás do despertador desesperado. Descobriu que a luz amarelada do abajur não
machucava seus olhos acostumados com o escuro ao acordar; ela esticou o braço e pegou
o relógio entre os dedos para desligá-lo, vendo o horário em seguida.

Faltavam vinte minutos para as seis horas da tarde.

Teria que correr se quisesse pegar o ônibus.

Maria quis arrancar os olhos por um instante. Talvez se o fizesse, poderia ignorar o horário
a traindo mais uma vez.
Bufando, ela jogou o cobertor longe - considerando que o processo de sair da cama era
mais fácil quando o fazia com raiva, e pulou para fora do seu colchão, ligando rapidamente
mais dois abajures em estantes diferentes e uma luminária presa na parede.

Chamar o recinto em que perambulava agora de casa era um esforço diário.


Esforço que Maria não dominava.

A palavra com que se referia ao ambiente na mente - sempre na mente, pois não falava
com ninguém sobre - era toca. Não no sentido aconchegante da palavra, que por vezes é
relacionado com um escapismo e conforto, mas sim no sentido que Maria era um animal
pequeno vivendo em um buraco ainda menor para se proteger.

Maria deu sorte e reconhecia isso, por mais que reclamasse mentalmente. No seu primeiro
ano da faculdade, quando foi para a capital sem ideia de onde poderia morar, ela achou um
senhor que se interessou em ajudá-la e alugar uma das suas casas para ela, aceitando
esperar quando tivesse dinheiro o suficiente para pagar o aluguel.

Maria nunca entendeu a confiança que o proprietário colocou em uma garota de dezessete
anos na época, mas não abriria a boca sobre.

Essa casa se localizava aos fundos, no andar inferior, de um terreno grande com mais três
sobrados que dividiam o mesmo quintal e que apenas possuíam paredes de separação
entre si. Os sobrados eram bonitos, claramente de classe média para cima, em um bairro
que pendia mais para esse lado, por mais que não tivesse expurgado todas as pessoas
pobres ainda.

Atualmente, Maria era uma das suas pessoas pobres.


Diferente dos seus vizinhos, o lugar em que morava, sua toca, não possuía muitas divisões,
sendo um quadrado pequeno com apenas três janelas, duas na sala de entrada e uma no
banheiro, com apenas duas portas: a da sala de entrada e a do banheiro. Também não
possuía lâmpadas, por isso Maria o encheu de luminárias e abajures quando não tinha a luz
do dia como iluminação.

Suas janelas viviam abertas a todo instante, para tornar a toca menos sufocante, permitindo
a circulação do ar úmido e pesado da cidade.

Seguiu direto para o banheiro e tomou um banho rápido, terminando de se vestir na marca
dos dez minutos. Vestiu a única jaqueta que tinha, que era de sarja verde camuflada, e
como era seu ritual de todos os dias daqueles quatro anos em que morava sozinha, foi até o
único porta retrato da casa pendurado na parede ao lado da porta, mandou um beijo sobre
o rosto do garoto na foto e saiu em seguida.

O porta retrato ficava ao lado da porta exatamente para Maria não perder tempo antes de
sair. A foto era dela mesma com quatorze anos abraçada com um garoto mais alto e mais
velho que servia como seu reflexo, com cabelos cacheados e armados escuros e cheios,
pele negra e olhos amendoados mais claros que os dela.

Chegou ao ponto junto com o ônibus, morando apenas há uma quadra de distância. Esse e
o baixo valor do aluguel (mas que se tornava caro para ela) eram os privilégios da toca.

Desceu no terminal, subiu em outro ônibus, e por fim desceu em uma das grandes avenidas
do centro, repleta das mais diferentes pessoas que aproveitavam o sábado à noite. Quando
olhava para cima, não via nenhuma estrela no céu, apenas os prédios altos e largos,
tampando boa parte do horizonte atrás deles.

Outro (pequeno) privilégio que ela tinha (e contava todos religiosamente) era que a
lanchonete de fast food em que trabalhava ficava na mesma rua que o seu ponto de ônibus.
Era assim que evitava ser marcada com atraso várias vezes na semana.

Seu gerente já a tratava mal o suficiente sem que o desse motivos para isso.

Vestiu o uniforme dos faxineiros, guardando a jaqueta e a mochila no armário junto com a
identidade. Quando saía da sala dos funcionários, não era mais Maria de tanto que
dissociava a mente das tarefas realizadas pelo corpo.

Quatro anos atrás a ideia de limpar um estabelecimento comercial a enfurecia.

Agora, Maria se adaptou exatamente como animais pequenos se adaptam a condições


desfavoráveis.

Ainda era melhor do que trabalhar no caixa, pois assim quase não interagia com os clientes
ou com os funcionários. Eles costumavam fingir que ela não existia, e Maria não se
importava de não existir naqueles momentos.
Era sempre assim: Após algumas horas, a lanchonete esvaziava e Maria encontrava-se
desocupada com frequência, tornando o turno mais lento do que realmente era. Eram três
horas em ponto da madrugada quando um casal entrou na lanchonete, indo sentar em uma
mesa contra a parede antes de pedir.

Os olhos de Maria caíram sobre o casal.


Normalmente, Maria não bisbilhotava os clientes. Dificilmente sentia interesse por qualquer
coisa quando estava no trabalho. Porém, no momento que olhou para o casal, ficou vidrada
como uma mariposa perseguindo a luz.

– Ok, que tal Cassandra? A gente pode chamar ‘ela de Cassie.

– Ela vai nascer com cinquenta anos? – a mulher riu com deboche, arqueando uma
sobrancelha para o homem. – Então o garoto vai ter que se chamar Benjamin ‘pra combinar.

– Cassandra significa “a que brilha sobre os homens”.

Maria viu que o homem não olhava para a mulher, talvez nem a ouvisse de tão ocupado que
estava lendo um livro fino, com páginas muito brancas que reluziam sob as luzes da
lanchonete, e uma capa que Maria não conseguia ler, mas estava dividida entre azul bebê e
rosa pastel.

– ‘Larga esse livro, antes que eu dê com ele na tua cabeça. Por quê você ainda acha que
significado é argumento? Eu não quero saber se o significado do nome lá na Suécia é
bonito, eu não vou nomear a minha filha com nome de velha.

A mulher esticou a mão e arrancou o livro do homem ao exclamar.

Os olhos dele cresceram por baixo dos óculos ao olhar para ela.

Ele demorou um instante em silêncio para falar em seguida.

– Então… Você prefere nome de santa?

– Cala a boca, Otávio.

- Eu ‘tô perguntando de verdade!

Os dois não poderiam passar dos vinte anos. Maria daria menos para eles pela forma que
agiam juntos. A mulher parecia alta, mesmo sentada, com uma figura magra e uma barriga
inchada e bem redonda que denunciava sua gravidez. Ela era branca como um papel,
assim como o tal de Otávio, e tinha longos cabelos lisos e loiros, quase brancos.

Seus olhos brilhavam em verde contra as luzes da lanchonete com certa malícia, um
divertimento às custas do tormento alheio. Otávio também era loiro de olhos verdes, mas
seu semblante era irritantemente inocente, quase infantil.
– Não pense que eu não percebi que você ‘tá obcecado com a menina. Até agora não me
disse um nome ‘pro menino ‘desse livreto de banca seu.

Após acusá-lo, a mulher jogou o livro de volta para Otávio, que lutou com as próprias mãos
para pegá-lo.

– Não é verdade, você rejeita todos, não ia fazer diferença se fosse do menino da menina.

– Claro.

Ela transbordava ironia, até mesmo sorrindo de forma amarela quando Otávio ergueu os
olhos para ela novamente. Ele parecia indignado agora.

– Eu só sinto que a menina vai nascer primeiro. Quero estar preparado ‘pra isso.

– ‘Tá sentindo errado. O menino ‘tá mais abaixo ‘no útero do que a menina, então ele
provavelmente nasce primeiro. Com a posição dele no último ultrassom que a gente fez, eu
duvido muito que isso mude.

– ‘Tá bom, Nina, você está certa como sempre, mas como você quer nomeá-lo, então?

– Eu quero que ele nasça primeiro. Depois eu decido isso.

– Aí já é muito descuidado! A criança vai nascer sem nome por quanto tempo? Eu não sei
como você não tem ansiedade, Nina. Eu tremo que nem vara verde só de pensar que faltam
só quatro meses ‘pra gente conhecer os nossos filhos.

– Não é você que tá carregando os dois por aí, então aquieta o seu cu.

Maria sentiu uma forte onda de enjôo.

Vendo os dois ali, tão tarde em uma lanchonete do centro e jogando livros um no outro
enquanto enrolavam para pedir, Maria sentiu que era um choque de realidade. Não entendia
exatamente como ou o motivo, mas abalou o momento em que vivia.

Eles não poderiam passar da sua idade, mas já eram pais. Seriam pais. Estavam em um
relacionamento estável, esperando por duas crianças ao mesmo tempo, e poderiam gastar
dinheiro em um fast food de madrugada sem se prejudicarem com os gastos do resto do
mês.

E os gastos de toda uma vida sustentando duas crianças.

Enquanto tentava engolir a onda de enjôo e acalmar sua barriga, os olhos castanhos de
Maria se encontraram com os esverdeados de Nina.

Nina a encarou diretamente como se a tivesse visto várias vezes antes. Como se Maria não
fosse nada de novo, ou de interessante ou de intimidante. Era apenas algo, compondo o
cenário da sua vida naquele momento.
Ela era bonita, era óbvio que era bonita, só não era o tipo de Maria. Então não era atração
que fazia Maria ter uma onda de calafrio pelo corpo, encolher os ombros e seu enjôo piorar
dentro do seu corpo.

Duas crianças.

Sua mente cantou para ela.

Um menino e uma menina.

O menino mais velho, Eddie. Maria, mais nova.

Então, Nina cortou o contato visual.

Ela aceitou a ajuda que Otávio ofereceu para que se levantasse do banco, indo de mãos
dadas com ele até o balcão para que pedissem juntos. Maria ainda estava confusa, mas ela
aproveitou a chance que teve para fugir e se esconder.

Não viu mais Nina naquela noite, mas continuou sentindo o desconforto daquela situação
dentro da própria pele.

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