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A NNO XIIl Lisboa, 3o de Novemb1·0 de 1911

~ _ REVISTA PUBLICA~A QUINZENALMENTE


~ ""- P 1·op n et:in o, rhrec tor o od1to1·
jVlrCHEL ' ANGELO J..-AJ'1BERTINC

Refac~ão e aomin, Pra~a aos Restauraoores, 4~ a 49, Comp. e impressão T~p. Pin~eiro, R. Jaroim ao Regeaor, ~9 e 41
SU J\l;\[J\JHO : - O Salt cd o. - o~ <:on cc:·t.os de Liszt om Lii;\Joa. - P 1tginais do cst.botita.
- Co1·1·cs po1ulcncia inodita rlo C!iarlri; l\lalher b. - Notas vagas . - Conr.r1·t.os. - Noticbl'io. - Necrolog ia

O Salterio
Lattdate cum itt Psalterio et Cytliara.
Salmo CL.

Corno succede co m todos os instrumentos musicos da antigui-


dade, é impossivel assignalar ao salterio 1 uma data e um logar de
origem, que tenh am alguns visos d'a utenticidade. Sabe-se qu e os
instrum entos exerciam papel preponderante nas civilisações primiti-
vas, mas são de extrema raridade os docum entos biblicos qu e a ell es
se refiram. Citam-n os alguns o livro do propheta Daniel, :t e entre ~
ell es o psanferi111 ou salterio caldeu, que já seria de uso frequente no
tempo de Nabucodonosor.
Dos Assyrios, cuja minu ciosa figuração tanto tem auxiliado as
investigações dos archeo logos, ficaram-nos alguns baixos relevos que
são preciosos para o estud o da fó rma dos seus instrumentos m11sicos
e esclarecem até ás vezes a maneira como eram tocados. Apesar de
ser a harpa o instrumento funda mental das orchestras assyrias, ta m-
bem se encontram, entre os seus musicos, a cithara, o salterio, a flauta
dupla e alguns instrumentos de percussão. Em um grupo de musicos
elami tas, 3 representados em um dos baixos relevos mais conhecidos da
Assyria, ex istente hoje no British Museum , figura o tocador ele sal- Fig. 1 - M usico efamf ta
terio (fig. 1), entre sete harpistas, dois flautistas e um tim baleiro.
Antes de proseguir na citação das varias phases histori cas que acompanharam a evolução
do salteri o. convirá defini r quaes as circ11111stancias que o faze m distinguir de todos os outros
instrum entos classicos da mesma cathegoria - lyra, cithara, harpa. Ora os instrumentos de
1 A ba11cl9:10 c11m a lg uma prna, a ortoL! ra phia cl ~sska da pafnvra. As fo 1·1n11f ~~ :111co~trnr:;- ps1111/enn, psa lérit>n,
psal1er im-dava m 111r tnl\'ez dfreilo a escrc,·er - psu lterio .
~ Cnfcfiz mrn to a obrn conhecida sob 06te a ome, é at h'i bui•la po r m uilv$ n11dor(I~ a 11mn úpora muito poste ri or
(167 n. C.), o quo oní1·11qucco srn ~i velmen t e o so11 \'alôr llocumentaf.
• l:fabilan tea d' l•:lam, r ogiiio bituadn ao orien to do 'rig1·e infe ri or e hojo CiCt ll fl:tcla p(' )a f'(lr,,ia. A ll: ao 7. ~ i.eculc:;
(ª· C.) os ola mHa:; cl csompenhiu·am u111 p:1pcl i111portant e 1i11 historia •ln Asin.
A A RTE M USICAL

cordas caracterisam-se pelas seguintes differenças primordiaes: existencia ou não existencia


de uma caixa sonora; sua fórma; disposição das cordas sobre o tampo harmonico; existencia
ou ausencia do braço, que permitta ao executante encurtar o comprimento das cordas para
produzir varies sons em cada uma d'ellas; e finalmente, modo de ataque das cordas. E' prin-
cipalmente pela disposição das cordas .com respeito á caixa sonora que o salterio diverge dos
seus tres congeneres. Na lyra e na harpa as cordas são collocadas perpendicularmente á caixa,
quando a tem, ou formam angulo com a superficie da mesma; na cithara, o tampo harmonico
corre parallelo com as cordas mas não as acompanha no seu total comprimento 1 ; no salterio
as cordas estão tendidas horizontalmente sobre a caixa sonora e limitam o seu comprimento
ás dimensões d'esta. Para que as cordas variassem de comprimento, afim de produzir os di-
versos sons da escala, deu-se quasi sempre ao salterio a fórma trapesoidal.
Outra das caracteristicas do salterio, a meu vêr, é a maneira por que as suas cordas são
postas em vibração. Contra a op inião de alguns musicographos, que vêem no salterio um ins-
trumento de cordas percutidas~. julgo poder affirmar que tanto entre os povos asiaticos, co mo
no perioclo greco-romano, como ainda na idade méd ia europêa, foi sempre dedilhado o salte-
rio, cio mesmo modo que a harpa. E' preciso não o co nfundir com o santi1~ instrumento arabe
que fo i introdu zido no Occidente por occasião das cruzadas, e cujo representante moderno é
o tympanon ou zimbalon dos hungaros. A'parte a parentell a etymologica e evidente seme-
lhança de fórma, o sa ntir nada tem que vêr com o sa lterio, visto aquellc se tocar co m macetes
011 martellinhos, e este com o plectrurn ou simplesmente co m os dedos. D'este modo de vibra-
ção, tão differente, resultam, quando se quizer averiguar a linhagem directa dos instrumentos
modern os, dois ramos genealogicos que nada tem de commum. Do santir, póde ter nascido a
ideia do c/avicordio, e, apóz graduaes aperfeiçoa mentos, do piano moderno, emquanto que do
salterio, apenas poderia ter resultado, pela adaptação d'um teclado, a espineta, a virginal, o
cravo, mas nunca o piano, que não é um descendente do cravo, como erradamente se tem
dito.
Voltando a analysar o nosso musico elamita da fig. 1, não é difficil constatar o grosseiro
erro de desenho, que consistiu em dispôr as cordas em linha angu lar, sem que possa á pri-
meira vista saber-se como se lhes dava a precisa tensão. E' um pequenino quebra-cabeças, que
os investigadores não puderam resolver durante muito tempo, chegando Fétis a suppôr que
faltaria no desenho uma trave ob liqua por onde as cordas passassem no vertice do angulo.
Para quem conheça a preoccupação de promenor que caracterisa a arte assyria, é esta, como
outras hypotheses que se aventaram, absolutamente inadmissivel, e tudo leva a crêr que a meio
do instrumento, como o representa a fig. 2, que é
uma reconstituição hypothetica do salterio elamita,
havia uma serie de cavalletes para levantar as cor-
das em determinad o ponto, dando-lh es o aspecto an-
gular que o ingenuo desenhista assyrio, forçadamente
ignorante das leis da perspectiva, não soube repro-
duzir.
Fig. 2. - Salt er io primitivo Nos povos assyrios, babyloni cos e egypcios, o
salterio era usado conjunctamente com as harpas e
os outros instrumentos, para a u~m entar a pompa dos sacrifícios e de todas as sole1nnidades
tanto religiosas como profanas. Ô povo hebreu empregou-o especialmente como instrumento
hieratico, allud indo-se a elle em varios salmos como um dos instrumentos mais proprios para
acompanhar os cantices sacros. Tinha 10 cordas, propter numerum decalogi leges, tantas quan-
tas as leis que Deus deu a Moysés. Havia-os de varias fórmas - quadrados, triangulares e com
a fórma de rectangulo truncado obliquamente, tomando, segundo o feitio, os nomes de hazut
ou ascior, cinnor ou llinor, nebel ou nabultun, e tendo respectivamente, segundo o pe Kircher,
10, 32 e 15 cordas 3 As tres fórmas que indico para os salterios hebraicos são as que correm
em todos os repositorios da especialidade, como sendo as que o povo israelita em pregava para
esta fam ilia instrumental; a nomenclatura é que varia por assim dizer em cada auctor que
consultarmos e o termo nebel, por exemp lo, tem-se usado muitas vezes como nome generico e
até para designar instrumentos de outra indole.

1
Nilo ó 1mulontc fazei· afli rmn~õo:> dogmntieas n'esta matcl'ia. Tem-se daclo o nome do cilliara a instrumentos da
mais val'indn fónnii <1 indole. N'cst(\, como em toclos o~ outros estudos quo so lho sogui1·om, hei-do encostar-mo ás pri·
meirns au c:tod<lades, mas não ó raro que ellas pr oprias se contradigam om pontos muito osseneincs ela hi~toria dos ins· .
t rumentos da antiguidade.
' l~ntro outros, o sr. l!)l'llost o Viofra, no sou Diccionurio Mruical (1. ª o 2. n odi<'cOs).
1
4thanasius Kiroher - Musurgia Universalis, tom. I (Itoma, 1650). '
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. Na civilisação greco-romai:ia opsaltérion, o psaltérium e o nabu!ttm são frequentemente


citados pelos compiladores e h1stonographos. Importado dos paizes asiaticos o salterio helle-
nico, segundo Apollodoro, era identico á magadis de 20 cordas. A ma- '
gadis ~ra invenção dos lydios ~o trig:ono ou salterio triangular, que
vem citado em ~1~a das traged1as de Sophocles, provém dos egypcios
e dos povos sem1ticos.
Gevaert, que não póde deixar d'estudar-se quando se quizer falar
sobre a musica antiga, 1 diz que na Grecia se tocaYam estes instrnmen-
tos ou directamente com os dedos ou com um plectrum, em fórma de
gancho de osso, de metal ou de madeira. Este ultimo processo era o
menos antigo e Homero ignorava ainda o uso do plectro. Mas, no di-
zer do erndito musico belga, os instrumentos de origem asiatica não
admittiam o uso d'esse accessorio; eram tocados sempre com os dedos
(psalmos), d'ondc lhes proveiu a denominação commum de psalterio.
O christianismo não se deu pressa em informar a posteridade sobre
quaes fossem os seus instrumentos musicos, e, de resto, não os empre-
gou mu ito nas primeiras eras, considerando-os 111es1110 como sy m-
bolos pagãos e votando-os co nseq uentemente a um relativo ostracismo.
Só no seCLtlo VII é que S .tv Isidoro nos cita ~ quatorze instrum entos de
varias especies, que a tradição havia conservado e que certamente o
christianismo acabou por acceitar, co m mais ou menos repugnancia. En-
tre elles o salterio e este parece que gosou de um certo favo r nos secu-
los subseq uentes, chegando mesmo a considerar-se como instrumento
sacro, a par da harpa. Nota-se até que todos os manuscriptos que se re- l!'ig. 3. - Ba ixo re levo
ferem aos seCLtlos IX a XI representam o propheta David tocando sal- do sec. xr
terio. Na obra de S .to Isidoro, define-se a differença que existia entre
o salterio e a cithara. Na opinião do venerando polygrapho hispalense; - Psalterii et citharce
hrec est differentia, quod psalterium lignum illud concavum unde sonus redditur superius ha-
bet, et deorsum feruntur chordce et desuper sonant. Cithara vero concavitatem ligni inferius
habet. Psalterio antem Hebroei decachordo usi su nt propter numernm decalogum legis». 3
O salterio do seculo XI (fig. 3), reproduzido de um friso da abbadia de S. Jorge de Bos-
cherville, diverge da fórma tradicional (triangu lo cortado e cor-
das horisontaes), pelo que me inclino a suppôr que se trate antes
de uma especie de cithara grosseira e não de um salteri o, como
alguns auctores pretendem.
Já por essa época servia o salterio indistinctamente como
instrum ento liturgico e profano, acompanhando as dansas e can-
ções dos menestreis, que, de castell o em castello, iam divertir
os ocios do feudalismo.
Em uma das poucas obras que conh eço, que se occupem
especialmente do salterio 1, cita-se um trovador, Guiraut de Ca-
lanson (1200), que em uma das suas canções aconselha o uso de
nove instru mentos, recommendando particularmente o salterio
de l O cordas como cousa que todo o bom menestrel devia co-
nhecer :
joglar leri Del salterí
Faraz X cordas estrangir.
Pela citação graphica que faço algures de algumas illumi-
nuras do Caruioneiro do Collegio dos Nobres, que pessoalmente
l!'ii; . 4. - Salterio do sec. XiV decalquei do precioso codice ~, se vê que o instrumento era de
uso vulgar entre os jograes portuguezes do seCLtlo XIII. A fórma
representada n'esse grosseiro desenho, semel hante ao da fig. 4, que reproduz uma antiga illu-
: Fr. Aug. Gevaert- /fot..ire tl tliéorie de la 1T1usique de l" a11/iquité, 2. 0 vol. (Gand, 1881) .
' Apud Ju!ín F. Riaiio - Cdtical & BilJliographical 110tes <.f ear/y spn11i.~h mwic (Londr<.'s, 1887). No terceiro lino
do sou Etimologiarum. Santo Isidoro foz allusiio aos seguintes instrnnH•ntos: - org::mum, tuba, t ibia, Jistula, S!ímbuca,
pnnclurn , cithnr 11, psnltcdu~, l.rra, tympanum, <·ymhala, ~istrum, tintinnahulum o ~ymph <tnium . _
3 Ap111l F elipe Pedrell · E111porio cientifir.o e historico de Organogro{ia music11l ant19ua espotiola 1Ba1·celona 1901),

que cit a nioda, l·omo iirov<.'nicntcs do mesmo documento, estes instrumentos: - cnlomue, lll:itnb'u la, lrn rbitos, phon ninx e
pcctis.
• L . F. Valdrighi - Mttsurgiotia - Scrá nrlola, Pian!J(ortc, Saltiwio (l\fo1lfln11, l87!l).
• Michel'angelo Lambertini - Cho11sot1s el instrmnents (Li~bon, l !l02).
A A RTE Mus ICi\L

minura franceza, parece-me determinar definitivamente o aspecto do salterio medieval. Devia


s~r n'um instrumento semelha nte que Guillot, menestrel de salterio em 1315, fazia as delicias
do cu amo e senhor, o rei Luiz X de frança. E não é de crêr que tenha desmerecido na côrte
franceza o uso do sa lterio, pois lá o vêmos figurar, segund o o testemunho de Ouillaume de
Machaut ', nas festas que o imperador Carlos IV deu e111 honra de Pedro ele Lusig nan, rei de
Chyprc.

' (.; 1i;·o:1i,ta, po!'ta !' 1::11,.,i(-o •!õ ,.,N·1ilo Xl\·. ,\ C'it:i<:ileo a q11!' in!' l'"ti•o <>n<·on tn1-sc em 111n dos ;;c•11s 11ooma~, npud
Emile Travo rs - L P.< i11.</11111tr1•/,< d~ 11111s;.,uc nu XI V s:idP d 11pre1 G11i/l.1w11e de M1.1 clwut. {Pari,.,, l t<81!j .

(Confiwia) . Lambertini.

3.o Ouetto cantado pelos srs. Tamberlick e


Os Concertos de Líszt em Lisboa San ti.
4.o r·antasia sobre motivos ela opera Roberto
do Diabo, sr. Liszt.
Graças á gentileza do illustrc amador, sr. 2.ª PARTE
dr. Manuel f erreira Cardoso, que possue copia
dos jornaes da época e generosamente no-la
facultou para esclarecimento dos lei tores d'esta
revista, vamos transcrever as noticias e pro-
! .o Symphonia.
2.o
3.o
Tarantella de Rossini.
Marcha de Chopin sr. Liszt
!
4.o Polaca dos Puritanos
gram rn as qu e a R evolução de SPtembro publi- 5.o J\ria do Dominó, sr.a Rossi Cassia.
cou em 1845, e que se refere111 aos co ncertos 6.o Rem iniscencias da opera A Somnam-
de f'ranz Liszt em Lisboa. Conservamos a for- bula, sr. Liszt.
ma orig inal da redacção.
28 de janeiro
23 de janeiro
Publica a R evolução de Setembro um folhe-
1.o concerto dado por mr. Li. zt, insigne pia- tim de critica.
n i ta, ulti mamente chegado a esta capital. 30 de janeiro
Constará das segu intes peças ele musica:
3.o concerto de mr. Liszt: constará das se-
I .~ PARTE guintes peças de musica:
J .o Sym phon ia pela orchestra.
I.ª PA RTE
2.o Fantasia sobre motiv os da opera Norma,
ao piano, por mr. Liszt. 1.o Sy mph onia pela orchestra.
3.o Dueto da opera Pia dn' Tolome1~ pelos 2.o Grande concerto de Weber, sr. Liszt.
srs. Tamberlick e Ciabatti. 3.o Cavati na da opera A Embaixatriz, ma-
.+.o Symphonia do Guilherme Te/!, pian o dame Rossi Caccia .
solo, por mr. Liszt. 4.o Variações de bravura, sr. Liszt.
2.ª PARTE 2 .ª PARTE
1.0 Symphonia. t .o Sy111phonia1 orquestra.
2.o Convite á valsa de Weber, piano por 2.o fantasia, sr. Liszt.
111 r. Liszt. 3.o Tercetto pelos srs. Zoboli, Serena Hey e
3.o J\ria da opera Maria Padilla1 sr. Tam- Ciabati.
bcrli ck. · 4.o 'fantasia, sr. Liszt.
4.o Melodia hungara, piano. mr. Liszt.
5.o Galop ch romatico, piano, mr. Liszt. O piano de mr. Liszt é da fabrica de mr.
Boisselot ct Fils de Marselha.
25 de janeiro
6 de fevereiro
2.o concerto do insigne pro~cssor de pian<?,
mr. Liszt. . 4.o concerto de mr. Liszt. Tend o algumas
I.ª PARTE
1~essoas pedido a mr. Liszt o improviso sobre
t .o Symphonia. motivos que. lhe .fossem dad o na occasíão do
2.o Andante de Lucia, sr. Lisz l. concerto, previ ne-se aos srs. amadores e pro-
A A RT E M US ICAL

fessores que quizerem apresentar themas, na mos, a chamar o espi rito discursivo para cer-
occasião do concerto, quer sejam escri ptos ou tos pontos, a fazer pensai~ abstendo-nos ta nto
vocalmente dados, pedindo-se a improvisação quanto possível de demonstracões, e da logica
sobre tal ou tal peça de musica, que mr. Liszt propria das mathemat icas. '
os receberá, e executará uma fantasia sobre al- Para conseguir este fim parece-nos ind ispen-
guns d'esses themas, que lhe forem offerecidos. vel visar a uma grande concisão. Qua ntas ve-
zes, ao folhea rmos esses respeitaveis volu mes
8 de fevereiro que marcaram na historia do saber hu mano.
temos sentido a nece:;sidade de resumir, de
Concerto de mr. Liszt a beneficio da mendi- condensar. E o resu mo nos nossos dias torna-
cidade. se urgente, duplamente urgente, se pensarmos
J 5 de fevereiro tambem na somma de ideias, de factos, de tra-
balh os de pri meira importancia, que o passado
Beneficio do l.o tenor H. Tamberlick. - nos legou e aos quaes infatigavelmente, a evo-
Opera Ernani. lu ção irá juntando outros.
Mr. .Liszt por obseq ui o ao beneficiado to-
cará 2 peças de musica.

:t 9 de fevereiro O drama lyrico

Sabado 15 do corrente teve Jogar o benefi- Depo!s de term os banido completamente da


cio do sr. Tamberli ck, com a opera Ernam~ e musica dra mat ica, o leit-rnotiv, crêmos agora
um concerto por mr. Liszt e l)addi, que em que devem reapparecer motivos, mas deixando
obseq uio ao beneficiado quizera m abri lhantar isto entregue sem reservas ao gosto, ao instin-
o espectaculo d'esta noute, etc. cto do artista. Não nos oppomos a que, no
drama, ao renovar-se uma ideia, uma situação,
Como se vê, mr. Liszt nu nca teve a cora- surja outra vez o motivo que primitivamente
gem de se exhibir a secco, mesmo porque os as acompanh ou, mas queremos tambem, que
amadores d'aq uell e tempo ta lvez se nã.o dispu- appareça m de novo motivos sem que se lhes
zessem a ouvir durante duas ou tres horas o ligue immed iatamente a ideia concreta; que
mesmo pianista a tocar no mesmo piano, ainda voltem sem. razão apparente até, que venham
quando esse pianista se chamasse nu. Liszt. em absoluto do ocrul to, do subconsciente. Es-
Os seus concertos eram sempre intercallados taremos assim mais perto da natureza, evitando
de peças de canto e precedidos de symphonias questões estereis de pura fo rmula.
de orchestra, e, cousa curiosa de notar-se, sem
n' elles figurarem as obras que hoje temos como II
as melhores da vasta li tteratura lisztiana, e que
o pu blico certa mente não perceberia. A m usica de camara
A audição de 6 de fevereiro é que devia ter
sido especialmente in teressante, já pela raridade Já se tem avançado que a musica de camara,
de um processo a que poucos pianistas d'hoje im propria do sentir moderno, pertence nece~­
se submetteriam, já pelo extremo brilhantismo sariamente a uma epoca anteri or, menos ed u-
com que Liszt se teria desempenhado d'elle, cada a grandes sonoridades orchestraes. Esta
Gomo improv isador genial que era. observação applicava-se naturalmente no seu
mais largo sentido : de que o artista moderno,
livre das preoccupações de technica e numero
de executantes que circumscreviam o bom
Haydn, não se deve sentar á mesa de trabalho
com a resolução à priori de subm etter as ideias
Paginas de esthetica que lhe surjam a tal ou tal combinação de
instrum entos, considerada esta tambem como
uma especie de fórma estabelecida, mas que
faça por assim dizer instrumentação de tudo;
Introducção o que não significa que empregue sempre o
num ero classico da orchestra. D'esta maneira,
Não nos propomos, n'estes modestos estu- em togar de termos trios, quartettos, sympho-
dos, apr-esentar um systema novo, nem tam- nias e outros restos do passado com um forte
pouco (o que discordaria do momento philo- sabor a formula passaríamos a ter . .. musica,
sophico que vamos atravessando) apontar, com sensações, sonoridades. Accrescia ainda que,
a temeridade dos falsos prophetas. o futuro da se a musica de camara era muito especial-
arte contemporanea. Simplesmente nos dispo- mente cqmpativel com a maneira antiga de
A ARTE .M USICAL

escrever, muito especialmente discorda da ma- centar mais nada; mas a citação continúa in-
neira de escrever actual. felizmente n'estes termos: Por outro lado o
Mas por outro lado não existe, nos mais re- auctor póde ter concebido a sua obra sob a
quintad os intellectualistas do nosso tempo influencia de impressões definidas e póde por-
uma sêde do contorno methematico, do recreio tanto querer que o auditoria, d'ellas te nha
exacto e technico, do problema de arte deli- plena conscicncia. O musico-poeta, fa lt o do au-
cado como um instrumento de precisão? ctor de poemas sy mph on icos, dá-se a fareja
Co mo adeante veremos, um dos importan- de reproduzir dar.unente uma imagem cuja
tes . progressos a trazer á musica, seria o de a impressão é clara no sea espírito, uma série de
libertar mais e mais da fórma material, dan- estados d' alma dos quaes elle tem consciencia
do-lhe uma sonoridade de cada vez mais apu- com uma exactidão e uma nitidez absolutas.
rada. Com que direito lhe prohibiriamos o uso de
Ora nós temos exactamente na musica de um programma, para facilitar a comprehensão
camara o meio proprio, como que o quadrinho perfeita da sua obra?
ideal, para descobrir a concepção d'arte mais Esta co ncepção. do estado d'a lrn a da natu-
elevada e as subtis engrenagens das sonorida- reza exacta e de absoluta nitidez, não se nos
des futuras. Não só não a rejeitamos de modo af igura da mais previdente psychologia e alem'
nenhum como inutil, mas antes a rccommcn- de tudo não está em harm onia com a doutrina
dam os em especial ao estudo sério e á reflexão da mola infellectual da primeira rarte da cita-
dos compositores modernos. ção. Essa mola intellectual é que é o verda-
deiro estado d'a lma, indefinível e como tal
III motiva ndo a intervenção da musica. De con-
trario, se queremos a musica a imi tar o exacto,
A musica sympbonica o perfeitamente claro, rebaixamo-la ao nivel
do raciocin io usual : o dos sólidos.
A nossa orientação esthetica e technica na Ora a musica não tem que ser comprehendida
perfeitamente no sentido de theorcma de geo-
musica symphonica será natural111 ente a mesma metria. O papel da musica é dominar o racio-
que deixámos exposta ao tratar a 111 usica de cínio.
camara: inteira liberdade na fónna e nas com-
binações de sonoridades e instrum entos. O nosso musicogTapho porem não só não
Tratando-se de musica symphoni ca, de mu- discute a citação, mas antes accre centa o se-
sica de orchestra, afigura-se-nos opportuno guinte, que é mais um ponto ele vista errado :
estabelecer uma regra, justificada já por todas «Admittimos ce;:-tamente o bem fundado de
as nossas considerações anteriores: preferir esse desejo de ser comprehendiclo custe o que
em musica aos effeitos de intensidade, effeitos custar. Mas, su ppondo mesmo que o processo
de qualidade de som. E, que ao seguir esta sobred ito dê resultado plenamente satisfacto-
regra não haja receio de 111onotonia, mono- rio, não haverá motivo por isso para co nside-
. tono é o espectador que reclama trombones rar a musica que faz uso dos seus recursos
e bombo. n'um sentido derivado corno superior á que se
- Sobre a grande questão da 111 usica sy mpho- move na esphera do seu desti no proprio, e não
nica pura e da musica symphonica descni1tiva, quer representar mais do que e/la é em si e por
sobre a superioridade d'esta ou d'aquella e a si.»
razão de ser esthetica de cada uma, eis o que A esta pueril discussão de superioridades
cita um musicographo celebre ao rematar o entre a musica pura e a musica descripti va só
seu tratado de esthetica: •O programma não temos a responder que : quer a musica seja es-
tem outro fim do que o de indicar a mola in- cripta sobre um trecho litterario e que esse tre-
tellectual da obra ... E' inu til, infantil e a cho seja reprodu zido com cit a, quer a obra
maior parte das vezes falso o estabelecer um não tenh a programma, é no fundo tud o o
programm a para qualquer obra i.istrumental mesmo. Não ha musica pura nem musica des-
já feita querendo assim explicar-lhe a sign ifi- criptiva, a musica é sempre pura ou sem pre
cação porque n'este caso a palavra destru iria descriptiva co mo qu izerem. E' sempre descri-
todo o encanto, profanaria os sentimentos e ptiva porque parte sempre de impressões cuja
despedaçaria as tenues fibras da alma que se causa, por não ser ainda que grosseiramente
revela sob a forma musical exactamente por defi nida em programma, não deixa de ex istir
não se poder exprim ir de outra man e ira ~ . e sempre pura porque o sentido vago proprio
Isto até aqui é excellente. A musica ex iste da musica, ·faz, n'um poema symph onico, com
effcctivamente para fazer sentir o inexprimível que possa mos perfeitamente dispensar o pro~
e onde a palavra, o gesto, as artes plasticas, gramma, visto que o que nos interessa é sentir
cahem impotentes, ahi, de ahi por deante é e pouco · nos importa saber a causa remota e
que triumpha a musica. Era escusado accres- palpavel de onde pa1ii11 o sentim ento:
A ARTE. Nl us1cAL

Da primeira carta, com data de 27 de feve-


Conclusão reiro de 1902, copiamos os seguintes perio-
dos:
Affirmava Socrates só saber uma coisa : que Les fêtes relatives à Victor Hugo ont com-
não sabia nada. Tempos depois, assegurou o mencé cette sema ine, et les journaux de votre
escrupuloso Arcesilau de Pitana, nem isso. pays ont peut-étré apporté déjá la relation de
saber. ces séances 01'1 la musique a te1111 et doit tenir
Depois do que ficou dito sobre a escol ha encore une certainc place. Si vous avez exa-
inteiram ente livre de combinações de instru- min é les programmes, vous aurez constaté que
mentos e de fórmas, não parecerá que as re- tout cela fOt assez misérable et ridicule; je
gras e as fórmas da musica moderna se re- l'avoue avec regref, mais sans étonnement. Ces
sumem nas tres pa lavras: não as haver ? Ião fêtes n'avaient aucun caractere artistique : elles
parecerá· que vamos ~travessa n d.o u~n perio~o releva ient de la Sf11/e po/iiiq11e. Si Victor Hugo
de socratismo ou 111a1s, de arcesilanismo artis- n'avait pas été proscrit pa r l'Empire (que d'ail-
tico? Mas não; grandes verdades se podem leurs ne l'a pas n1 áintenu en ex il, et lui avait
deduzir do actua l estado da musica e, para rouvert les portes de la patrie, ce dont il s'est
evitar qu e demasiadas abstracções façam peri- bien ga rd é de profiter), si clone le poete n'avait
clitar a clareza, vamos definir, embora nos re- pas pris l'attitud e d ' 1111 adversa ire de l'Empire,
pitamos por vezes, as co nclusões a que chegá- jama is la Républiqu e n'aurait songé à célébrer
mos. Afigura-se-nos que o verdadeiro progresso so n apothéose. On lc voit bien, puisq ue la
em musica, seria na technica : cuidar mais cios fran ce co111pte d'autres poetes que lui. tout
effeitos ele qnalidade que dos ele intensidade, aussi purs, tout aussi grands, comme Alfred
na esthetica ir libertando cada vez mais a fór- de Musset, et Alfred de Vigny, et Lamartine.
ma da sua materialidade. Mais ceux-la éta ient noblcs, ils ava ient le culte
O estudo das obras primas do passado deve de la roya uté, et la République lesa jugés in-
ser subordi nado ao principio esthetico de olhar dignes d'honneurs posthumes.
para a obra no seu conjuncto, nas suas pro- ' Pour en reven ir au point qu i nous occupe,
porções geraes, afasta ndo para longe as ideias la musique a pris part à cette apothéose, et de
ligadas a velhas fórmas caducas. . la faço n la plus désordonnéc, la plus anti-
As denominações : musica pura e musica artistiq ue. On a joué des fragmeots d'opéra,
descriptiva, são usualm ente empregadas n ' u~1 qui ne se rapportaient même pas à l'ceuvre de
sentido material demais, menoscabanda o attn- Hugo, eles su ites d'orchestrc quine rappelaient
buto essencial da musica, qu e é : triumphar nullement le héros de la fête; on a fait place
no inconsciente, no indefinivel, onde cahem as en somme aux compositeurs qui s'étaient réu-
outras artes. nis pour obtenir un e place sur les programmes,
et qui éta ient assez puissants ou assez bien en
llha da lll:ltlcil'a, F5ct 11mh1· 0 do 1911. cour pour s'imposcr ... . ....... . ...... .. . .
Luiz de F reítas Branco.
«La politique a changé les mceu rs et pourri
beauco up de choses. Dieu vous en garde, pour
l'honneur de l'a rt en général et de la musique
en particulier !
Correspondencia inedita De outra, datada de 6 de janeiro de 1906:
de Charles Malherbe ... Croyez que de notre coté, un vrai cou-
rant d'amitié nous porte vers les Portugais, ce
petit peuple qui a produit de gra neis hommes
Hoje que a frança deplora a perda recente et fait de grandes choses. Votre roi n'est resté
do notavel publicista e erud ito bibl iothecario que quelques jours ojficie/lement et partout il
da Opera, vem a talho de fouce a publicação a été acclamé; c'est un échange de visites qui
de tudo o que possa defini r-lhe o caracter e o a son im portance, en préparant peuples et gou-
seu modo de pensar sobre as cousas da sua vernements à la paix générale et à la fraternité
arte. Devemos á valiosa amisade do maestro univcrsell e ...
Anton io Soller a permissão de transcrever al-
guns fragmentos de ca rtas que o illustre pro- A ultima, ele 3 de agosto d'este an no, já se.
fessor portu ense recebeu de Charles Malherbe refere ao nosso novo regim en politico: :
e que send o tão honrosas para um como para
outro, nJostram bem quanto eram nobres os «Merci, 1110 11 cher confrere, pour votre aima-
sentimentos do notavcl artista e co m que sy m- bl e et fictel e souvenir à l'occasion de notre fête
pathia se interessava pelo nosso paiz. nati onale. L'li ymn e dont vous m'envoyez la
14 A ARTE M USICAL

musique témoigne de \'OS sympathies pour no- lhinho de quem agora mesmo se celebra o
tre pays, et je souhaite à mon tour qu'avec cen tenario.
des institutions nouvelles, à l'o111bre de son a galeria, felizmente mais numerosa do
fier drapeau, votre patrie grandisse dans le que em geral se suppõe, de grandes cerebros
monde et s' impose au respect eles nations . que ao mesmo tempo fora m grandes corações,
o auctor cio David Cop;m/i'eld, occupa um lo-
E termina com um ca11011e a 4 voi'.es (in in- gar primacial, porque soffrendo uma amargu-
fi11it11m), sobre o segu in te texto: rada infancia, conseguiu á força de paciencia,
de bondade, de ternura, o que raros conseguem,
Vive la j eune et déja /)llissa11te e por essas qualidades se impôs em mais de
République porfugnise .' u 111 meio hostil ou inesthetico.
Este in comparavel artista que uma phanta-
sia riquissima, e dons poderosos de visào e de
analyse tornam unico em determinados asum-
ptos; este authentico e original poeta que com
olhos el e sonho fixou a realidade, tornando-a
divina sem que deixasse de a fa7.er humana;
este perdul ario ela imaginação qu e até nos mais
arriscados vôos d'ella nunca perdeu de vista a
terra que habitava e que anceava tornar me-
lhor, comquanto não lhe disfarçasse os horrores;
este carinho o amigo de todos os fracos, de
todos os infelizes, de todos os desprotegidos,
Cartas a uma senhora merece bem as apotheoses em numero que
agora lh e saudam o nome e lhe enaltecem a
164 .a memoria, e se nas elyseas paragens que os san-
tos desejos elas almas crentes ambicionam para
os eleitos acaso escuta hoje o côro de sauda-
N'estes primeiros arrepios cio inverno que ções ardentes e docemente tocadas de melan-
se approxima invade-nos ás vezes uma tristeza colia e de sa udade, que toda a gente lhe envia,
depressiva e intensa que em vão buscamos deve dar-se por bem pago de quanto padeceu
combater pensando em bella cousas ou invo- e curtiu, porque reconhecerá desvanecido que
cando deliciosos nadas .. . a sua passagem por esta selva e cura onde a
Elia é mais forte que o nosso querer, e ha maldade segue de mãos dadas com a incons-
que mergulhar na onda amarga e supportar- ciencia ou com o cyn ismo, com a ignorancia
lhe o embate brusco. ou com a hypocrisia, foi seguramente das mais
Com um bocadito, porém, de persistencia e fecundas em resu ltados uteis e em consolações
de serenidade, consegue-se afinal libertar o es- sobera nas.
pírito e desanuviar a fronte, e de ordinario As immortaes figuras que em minutos de
basta para isso recorrer á aud iç.-1o de umas no- inspiração sagrada inscu lpiu n'esse barro es-
tas de musica ou á leitura de meia duzia de tranho que é a palavra; os conflictos de pai-
paginas onde palpite a alma de algum auctor xões, de interesses, de sentimentos em que com
amado. o seu genio as fez mover e animar; as largas
Felizes os que sem sairem do seu lar podem e luminosas syntheses que n'um ar á primeira
proporcionar-se este regalo uni co, e abençoa- vista desprevenido e ligeiro cl'esses conflictos
dos quantos na terra passaram espalhando a soube extrahir; e, sobredourando tudo, a pro-
harm onia e a belleza corporisadas aos nossos funda a indefectivel bondade que fortemente
olhos, aos nossos ouvidos, cm inestimaveis animou cada período saído da sua penna, tão
obras que por ellas vivem. alto coll ocam o seu nome, que nem a povos
São então duplamente bemfeitores os privi- distanciados da cultura europeia é licito des-
legiados humanos que tal serviço nos prestam, conhecê-lo.
e quando succede por exemplo que um d'esses Oickens pertence á resumida galeria dos que,
a quem recorremos já na propria ex istencia em mesmo mortos, eternamente vão encaminhando
que se moveu, nos dá a melhor e a mais edi- os vivos, porq'ue elle não fo i apenas o escriptor
ficante das lições, o simples facto de á sua de quem os criticos disseram haver i11augurado
sombra momentaneamente nos acolhermos re- a new sty/e of english novel, não.
presenta por si só um generoso viatico de ale- Junto a esse novo estylo de novela ou á par-
gria physica e de saude mental. ticular maneira na afabulação que passou a
Eis o caso para os que porventura hajam caracterisar esta fórma d'arte, desde que a ella
tomado de um volume de Di ckens, o encan- se dedicou, ha a notar o dom da sym pathia
tador e inesquecivel Oickens, venerando ve- viva. da piedade instinctiva que todo o soff.ri-
A A RTE M USICAL
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mento lhe mereceu e o poderoso sopro de sen- bre e inspirada conce.pção d'arte que o geni0
tida e humana compaixão que amplamente tocou.
penetra a sctructura de toda a sua obra. Em resumo, Dickens foi duplamente uma
Começando muito novo a ver e a fixar em veneranda encarnação da real bondade e do
descripções de uma exactidão fl agrante o infin- superior talento, que vivendo na i111111aterial
davel fo rmigueiro mundano que á sua vista região da poesia d'ella se serv iu in cessa nte para
se movimentava, Dickens, pela feição nativa do tornar o mundo mais bello, a l111111an idade
seu modo de ser psychico, não olh ou a natu- mais justa, a existencia mais clara.
reza como um azedo, ou como um pessimista, Abençoado espírito que a J\merica um dia
e d'ahi a porção de luminosa graça que resum- recebeu em festa e que a 1nglaterra levando
bra de quasi todas as paginas que infatigavel para \XIestm inster considerou um dos seus ofo-
foi desentranhando da phantasia ou colhendo riosos filhos, um d'aquelles que pela imm~sa
na observação. luz que sobre ella projectaram, melhor farão
Outros romancistas pujantes, assombrosos para lhe perpetuarem a lingua e a historia que
visionadores d'almas e pintores gcniaes da so- os alterosos couraçados com que se orgulha ou
ciedade feriram, é certo, nota diversa pintando as in calculaveis riquezas de que se ufa na.
sobretudo cm escuro sem que com isso falseas- Uma simpl es pen na d'aço e varias resmas de
sem a verdade; Dickens traba lhou quasi sem- papel, porqt1e sobre ellas passou o gcni o, tor-
pre cm tons claros, escolhendo mesmo ás vezes naram este despretenci oso inglez um immortal
os tons rosados, e egualmcnte se manteve sem- e divino homem que nunca mais se esquece.
pre na verdade e na vida.
Affonso V argas.
Casado com a filha de um escriptor musi-
cal, dir-sc-hia que muito cedo a mulher influiu
na sua visão tornando-a ai nela ma is harrno-
nica e ma is suave do que elia já o era por ins-
ti ncto.
Como quer qu e seja, o auctor do Oliver .
Twisf, se magistralmente deu o ca lafrio do hor- ·
rivcl quando entendeu necessario fazê-fá, pa- ·
rece que de preferencia se comprazia em idear,
como dis e, quadrinhos d'uma tonalidade ro-
sea, e obretudo o que fez sempre foi polvi-
lhar de graça, de humom~ até de riso verda- Para dar conta dos dois ultimos concertos
deiro os benemeritos livros que concebeu e de Vianna da Motta, bastaria dizer que foram
publicou. dois completos e decisivos triurn phos para o
Em todo o caso na sua personalidade artís- grande artista portuguez.
tica ha todas as notas, e até a seri e dos seus Desde a Sonata de Liszt, com que encabe-
adm ira veis contos do Natal, onde fulge aquella çou o primeiro d'esses programm as, e que é,
perola The Chimes, bri lhantemente o demons- não só uma das mais intensas e interessantes
tra. expressões da sonata cyclica, mas sem duvida
Aqui temos o que era o artista; o homem, alguma uma das paginas maestras do grande
esse foi simplesmente adoravel, d'uma alegria compositor, até á capitosa Fantasia lm11gara,
esfusiante e inexgotavel e de uma abnegação, com orchestra, com que fechava o segundo
d'uma generosidade, d'uma candura que mal dos programmas a que nos estamo referindo,
se comprehendem em creaturas complicadas e Vianna da Motta não deixou de ter o seu pu-
cerebraes como são em geral as chamadas blico, e bem numeroso era elle felizmente, sus-
gentes de lettras. penso ante as suas poderosas facu ldades de
Repet idas vezes elle falou em publi co para gra nde musico e vibrante de enthusiasmo a
agitar questões do mais nobre humanitarismo, cada um a das manifestações do seu profundo
ou desenvolver problemas de grande alcance saber, da sua techn ica em polgante e, porque
social, a miude realisou leituras para fins car.i- não dizei-o tambem, da sua prod igiosa me-
tativos e altruístas e até no levantado intuito moria !
de espalhar um pouco de paz, de amor, de Ta u Iti ma matinée foi o notavel concertista
concordia na sociedade do seu tempo. secundado por uma orchestra, que sob a acer-
fez sorrir muitas boccas mas fez enxugar tada e diligente direcção de Pedro Blanch lhe
egualmc11te muitas lagrimas, d'aquellas que a acompanhou o admiravel Concerto em mi be-
miscria e a fome derramam, o que não quer mol e a Fantasia fwngara, tocando ta111bem 1
dizer que tambem não houvesse feito derra- com unan ime applauso, o poema sy111pho11ico,
mar imrn ensas, d'aquellas.que a co111111oção1 o Les Pré/ades.
enlevo, a propria doçura arrancam d'uma no- Fora cios programmas, e em bis, Via nn a da
l 6 A A RTE M USICAL

1\\otta tocou Soin'es de Vie1111e e Le R.uisseau lhe concedesse a admissão na orchestra, a ti-
de Schubert-Liszt, Marche des R.uines d' Athe- tulo de praticante.
nes de Beethoven-Liszt e Polacca em mi de *
Weber. **
1 o proximo domingo, e tambem no thea- Sobre os seis concertos que se deram em
tro da Republica, ha outra matinée com or- Heidelberg como homenage m á memoria de
chestra. Liszt, lêmos no Commercio do Porto um inte-
ressante compfe-rendu, firmado pelo notavel
pianista portuense, sr. Luiz Costa, que, como
ha tempos noticiámos, se encontra n'aquella
cidade em viagem artistica.
Os programmas eram, no dizer de Luiz
Costa, interessantissimos, abrangendo as di-
versas phases e variados aspectos de Liszt com-
positor; a sua execução, em qu e figuravam
Ricardo Strauss, Schilli ngs, Risler, Hausegger,
Busoni e outros grandes artistas, não foi me-
nos ad miravel.
PORTUGAL Dos seis concertos de Busoni cm Berli m, to-
dos dedicados á obra pianistica cte Liszt, tam-
lo dia 21 realisou-se um concurso para o bem o estudioso artista portuense promette
Jogar de ).o flauta e oita~ino na orchestra do enviar uma chronica á referida folha do norte.
theatro ele S. Carlos, assim como um exame Agradecemos-! he pen horadamen te os bellos
para 1.0 violino de fileira na mesma orchestra. programmas commentados que nos mandou,
Foram concorrentes na primeira prova os srs. d'esses seis recitais, que são por certo uma das
Eduardo Augusto Dias, Domingos Lacombe e mais grandiosas manifestações d'arte que a
Alfredo Vicente d' Almeida e na segunda o sr. actual idade consagra ao celebre mestre hu n-
Raul el e Campos. garo.
As obras sobre que versaram os exames de *"'*
flauta e oitavino foram as seguintes: á esco- Recebemos e muito agradecemos o 2.o nu-
lha dos candidatos e pela ordem em que os mero do Boletim da Associação de Classe
citámos: Bolero de Krakamp, variações sobre dos Musicos Portugnezes. Alem de desenvol-
a Lucrecia, Míg1wn de Galli; imposta pelo vidas notas sobre o movimento associativo,
jury e á primeira vista, Arabesque de Cathé- correspondencia da Associação, etc., traz inte-
rin e ; transporte, a primeira parte da obra an- ressantes artigos sobre a Confederação flltema-
terior, meio tom abaixo; no oitavino, fragmen- cional dos Musicos e A orc!zestra 110 theatro da
tos do 1.o acto do Otello de Verdi e do 3.o Opera Comica em Paris.
acto da Damnation de Fatlst, sendo estes ulti-
mos trechos dados pelo jury com dois dias de *
antecedencia. **
o exame de violino, a peça apresentada Ha grande interesse em assistir ao concerto,
pelo candidato foi o 1.o andamento do 7.o que promovem a distincta cantora, sr.a D.
Concerto ele Beriot e os trechos á primeira Africa S. Cabral, e seu irmão o conhecido pro-
vista eram do 1.o acto cio R.igolefto, do 4.o acto fessor Aroldo Silva.
da Aida e do 1.0 acto do Otello. Esta festa, de cujo bello programma já fa-
O jury que a Associação de Classe dos lámos no numero anterior, effectua-se em 4 de
Musicos Porfuguezes nomeou para dar pare- dezembro proximo no salão da /llustração Por-
cer sobre o merecimento cios alludidos artis- tugueza. Não é licito duvidar de que será um
tas, era constituído pelos seguintes professores: dos concertos mais concorridos da época, não
freitas Gazul (presidente), Ernesto Vieira, só pelo reconhecido valôr dos promotores,
Manoel Tavares, João E. ela Cunha e Silva, como pelo merecimento excepcional dos artis-
José H. dos Santos, lnnocencio Pereira e Se- tas que com elles collaboram, e que são, como
vero da Silva, sendo os ultimos dois vogaes já dissemos o violoncellista João Passos e o
substituiclos, para o exame de violino, pelos violinista Pavia de Magalhães.
srs. Ivo ela Cunha e Silva e J. C. ela Costa. Obtem-se os bilhetes nos armazens de mu-
Para o togar de 3.o flauta e oitavino, foi sica.
preferido e nomeado o terceiro candidato, sr. *
Alfredo Vicente d'Almeicla e quanto ao Jogar **
de t.o violino, entendeu o jury que o sr. Cam- A 22 d'este mez teve Jogar na egreja dos
pos não estava no caso de o exercer clefini tiva- Martyrcs a festa a Santa Cecil ia, pro movida
111cnlc, se ndo no e111la11lo de parecer que se pela respectiva irmandade,
A A RTE M USICAL

Executaram-se uma Missa de freitas Gazul, brandt, para violino e piano, Me1111f'f de Orla
que o proprio auctor dirigiu, uma Abertura e tres peça Nenia, Lamento, Pierrot-Sérénade,
em mi bemol de fr. José Marque e dois pe- de Randegger. Techniclt des Bogens versa so-
quenos trechos de Schumann . bre a parte mais importante do ensino do vio-
lino: o arco. O auctor trata o assumpto com
toda a minucia não esquecendo a resp iração
- cio executa1itc. Recommendamos aos violin is-
Tem a nossa revista que felicitar-se pela col · tas e professores este tratado, cuja parte litte-
laboração, por tantos titules valiosa, de um raria (tambcm em inglez e francez) não é a
dos nossos mais estudiosos artistas, o sr. Luiz menos notavel.
de Freitas Branco, que honra estas columnas São intere antes as peças de violin o e piano;
com um primoroso artigo sobre esthetica mu- difficeis as duas ultimas, embora bem escriptas
sical, que será certamente muito apreciado para o instrumento e as outras medianamente
pelos nossos leitores. difficeis. Toda hão-de agradar aos nossos ama-
Ao moço compositor e nosso illustre amigo, dores da especialidade.
agradecemos a distincção recebida e a pro- *
messa, deveras captivante, de mais larga par- * ,~
ticipação nos nossos trabalhos.
A demissão do notavel maestro Breton do
logar de d irector do Conservatorio de Madrid
**• deu Jogar a um grande movimento de pro-
A' 1 hora da tarde de hoje, real isa-se no sa-
testo e a manifestações de extrema sympathia
por parte de toda a classe musical do visinho
lão do Conservatorio a sessão solem ne para reino.
distribuição de premios aos alumnos que mais Em 26 cl'este mez celebrou-se em 1\\adrid
se distinguiram na época transada. um banquete de homenagem ao maestro, as-
A sessão será seguida de um concerto, em sistin do grande quantidade ele musicos cele-
que tomam parte os alumnos das duas escolas, bres, ind ividualidades da primeira sociedade
de Musica e Arte de Representar. madri lena e alguns personagens politicos.
O ill ustre ministro ele Portugal em Madrid,
*** sr. José Relvas, convidado para o banquete,
tomou parte n'elle, sendo verdadeiramente
Da Ex.ma Sr.a D. Sophia de Sousa Viterbo, acclamado com vivas ao seu paiz.
recebemos o opusculo A ordem de Christo e a Ao toas!, o ministro produziu um eloquente
musica sa!Jrada nas suas igrejas do continente, discurso, fazendo o elogio do povo hespanhol
obra post11uma de seu pae, o erudito escriptor e demonstra ndo que os dois paizes teem con-
Dr. Sousa Viterbo, cujo fallecimento fo i tão dições para se tornarem duas grandes poten-
grande perda para a arte nacional. Esta obra, cias, tornando a peninsula iberica centro de
amplamente documentada, trata do mov imento uma activa e cxhuberante civilisação.
musical do convento de Christo, do hospital e A seguir s. ex.:1 dissertou largamente sobre
igreja de Nossa Senhora dos Açougues em 111 usica, analysanclo a ob ra dos mais em inentes
Montemór-o- ovo, das igrejas de Nossa Se- compositores, e referindo-se. sobretudo, á in-
nh ora da Conceição, de Santa Marinha, em fluencia hespanh ola. A musica classica foi um
Lisboa ; de S. João de Abrantes e das igrejas dos themas mais desenvolvidos pelo illustre
matrizes da villa de Niza e de S. Thiago da ministro, que durante largo tempo teve a es-
villa de Soure. Insere no fim uma lista dos cutai-o no mais religioso dos silencios todos
mestres de capella, instrumentistas, cantores e os convidados. Ao terminar, uma extraordina-
tangedores de orgão, mencionados durante a ria ovação coroou as suas palavras, cuja boa
obra. impressão fo i excellente.
Os artistas hespanhoes residentes no Porto,
*** e alguns portug'Ltezes, tarn bem realisara m na
Encontra-se entre nós o pianista austríaco mesma data de 26 um banquete de adhesão,
Adolphe Borschke, que é um dos discípulos sendo a commissão organ isadora d'essa home-
laureados de Em il Sauer e Leschetizky. nagem composta pelos srs. Pedro Bianca, José
E' provavel que dê um concerto em Lisboa. Bonet, Juan Casaux, Gõrner e Xapelli. A' festa,
que teve logar no Hotel Europa, d'aquella ci-
dade, presidiram os srs. Manoel de avarro e
ESTRANGEIRO Moreno Rosales, respectivamente consul e vice-
consu 1 de Hespanha no Porto.
Recebemos da casa Schott de Bruxellas : Foi muito brindado o insigne maestro, sendo
para violino, Technik des Bogens de Hilde- o seu nome acclamado co m ardor por todos os
188 A ARTE MUSICAL

convivas,· que enviaram telegrammas para Ma- Nasceu Emílio Lami em 1834, conieçando,
drid, dando conta do acto imponente que se muito creança, o estudo do piano sob a direc-
realisou. ção de seu pae. Aos 14 a1111os já leccionava,
No fim do banquete, que decorreu sempre dizem os seus biographos. De 1860 a 1880,
no meio do maior enthusiasmo, o sr. Medina quasi se póde dizer que não havia um grande
tirou varias photographias, com destino aos concerto em Lisboa, para que Emílio Lami não
jornaes illustrados de Madrid, como prova de fosse convidado ou que não fosse por elle pro-
que os artistas hespanhoes aqui residentes não prio organisado. Apresentava-se muitas vezes
esqueceram o seu paiz de origem, no momento como solista, tocando as suas fantasias de con-
em que se consagrava o eminente maestro certo, a Marta, a Traviata, o R.igoletto, o Gui-
Breton. lherme Tell, peças à variations, ao gosto da
* época, que tinham sem-
** pre um exito retum-
À excellen te harpista, Henriette Ren ié, fu n- bante. Nos seus concer-
dou em Paris um septimino de harpas, que tos, · que tinham Jogar
deve dar proximamente o seu primeiro con- ora nas salas do Casino
certo. Demonio ! Tanta harpa junta faz-nos Lisbonense ou da As-
lembrar o dito de Rossini a proposito das sociação R.ecreativa, ora
flautas! nos salões de S. Car-
los, de D. Maria ou da
Trindade, produziram-
O Ménesfrel dá-nos not icia de quaes são as se tambem muitas vezes
composições que fe lix Weingartner tem actual- as suas peças concer-
mente entre mãos: - uma nova versão do Obe- tantes, o trio da Mar-
ron de Weber, uma opera Cain e Abel, um ta para piano, harpa e
Concerto para violino e umajoyeuse Ouverture barmonium, o do Ema-
para orchestra. ni para piano, violon-
cello e harmonium, o dueto do Rigoletto para
*** saxopbone e piano, e muitas outras obras do
mesmo genero, que o publico se não cançava
Jacques Thibaud, o notavel violinista que o de applaudir.
nosso paiz teve occasião de adm irar já por Em 1863 foi chamado para S. Carlos, como
tres vezes (1901, 1903, 1905) vae fazer uma maestro concertatore. Ausentando-se porem
grande tournée na Suissa, onde dará nada me- Gui lherme Cossoul n'essa occasião, teve Lam i
nos de 107 concertos. que _empunhar a batuta em substituição d'a-
As principaes cidades que visitará são Vevey, quelle optimo artista, e tão dignamente sedes-
Lausanne, Genebra, Montreux e Basilea. empenhou do encargo que esteve durante mais
de quatro annos no mesmo theatro, na quali-
dade de 2.o director e ensaiador.
foi tambem professor da Casa Pia e do Con-
servatorio. Tanto ahi, como no magisterio par-
ticular, creou uma legião de discípulos de
piano, de orgão, de canto, e entre elles alguns
que depois se notabilisaram.
Na enorme lista de producções que deixou
Emílio Lami contam-se obras de orchestra,
banda, musica de camara, solos para canto e
para quasi todos os instrumentos. A relação
Mais um dos artistas, e dos optimos artis- minuciosa de todas essas producções figura no
tas, da velha guarda, que nos deixa para sem- n.o 140 do Confemporaneo (1884).
pre: Emílio Lami. · Descance em paz o indefesso trabalhador e
Consciencioso professor de piano, concer- notavel musico que foi Emílio Lami. A Arte
tista em moda durante mais de vinte annos, Musical, que tinha n'elle um verdadeiro ami-
compositor infatigavel, acompanhador e leitor go, não póde deixar de lastimar profunda-
como certamente não tivemos outro, critico mente uma perda tão sensível para o nosso pe-
musical de pulso, e, por cima de tudo isso, es- queno mundo d'arte, cumprindo-lhe tambem
pirituoso cavaqueador cheio de verve e ironia apresentar á sua virtuosa esposa, a sr.a D. Car-
-- eis o que era ou tinha sido esse velho de lota freire de Andrade Lami, a expressão bem
quasi 80 annos, que por ahi víamos ás vezes, sentida da sua condolencia.
a luctar ainda e a trabalhar sempre, alquebrado
pela idade e quasi cego.

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