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Gérard Lebrun
Organização de
Cardos Alberto Ribeiro de Moura
Mana Lúcia M. O. Cacciola
Mana Kawano
SBD-FFLCH-USP
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COSACNAIFY
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20900013446
7 Hpreienfafão,por Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Ll Sobre esta edição
i9 Porquefilósofo?
z7 Pascal: a doutrina das figuras
37 JspaZavrm ou os preconceitos da infância
53 O cego e o filósofo ou o nascimento da antropologia
67 A especulação
travestida
89 A dialética pacificadora
129 A idéia de epistemologizi
i45 A óozzrade de Charing-Cross
i69 Além-do-homem e homem total
i99 Uma escatologia para a moral
225 Contrato social ou negócio de otário?
237 Hobbes aquém do liberalismo
z53 David Hume no álbum de família de Husserl
z73 Hegel, leitor de Aristóteles
z97 Hobbes e a instituição da verdade
3z7 A mutação da obra de arte
34i Transgredir a finitude
355 Quem era Dioniso?
379 O conceito de paixão
397 Sombra e luz em Platão
4l3 Berkeley ou Ze.fcepl;gazema/grá /u;
433 A noção de "semelhança" de Descartes a Leibniz
45i A neutralização do prazer
48i Sobre a tecnofobia
5o9 Hegel e a "ingenuidade" cartesiana
543 O transcendental e sua imagem
567 A antinomia e seu conteúdo
io .z4presen.ração
existência, sobre o "valor" da vida. l)ara Lebrun, que nunca disfarçou a
ninguém sua inspiração por Nietzsche, essapreocupação com a "busca
do sentido" só pode ser de ordem religiosa -- aliás, toscamentereligiosa
(pedindo perdão, é claro, pelo pleonasmo). Vem daí sua aversão a essas
narrativas solenemente "fundamentais", a um só tempo modorrentas e
piedosas. Quem se libertou não só da igreja, mas também de seu veneno,
compreenderá a filosofia como uma boa heurística e nada mais.
Mas Lebrun, historiador sempre tão exigente no "quesito" do res-
peito devido aos textos, estavamuito longe de ser usuário do "estru-
turalismo", que se autoproclama detentor dos direitos autorais sobre
a palavra "rigor" -- e é pomposamenteapresentadopor seusformula
dores como o único método "científico" em história da filosofia. Mas,
sinceramente, para que perseverar em descrever a história da filoso-
fia disciplina essencialmente de "interpretação" -- como sendo uma
"ciência"? SÓ se for por cabeçudo assanhamento positivista ou, pior
ainda, para conferir-lhe uma honorabilidade de empréstimo, que só aos
muito ingênuos não soará postiça. !'orque quem leva em conta a prá-
tica de interpretação que se exerce em história da filosofia sabemuito
bem que ela nunca poderá ser submetida às mesmas exigências metó-
dicas que são usuais nas ciências "positivas"..Afinal, nesse domínio da
análise e interpretação de textos a noção de "prova" precisa mesmo
dessasaspas e é também com muita parcimónia e cuidado que sepode
fazer uso, ali, de oposiçõescomo o "verdadeiro e o falso", o "certo e o
errado". Para Lebrun, no limite a história da filosofia é uma atividade
bem mais próxima da crítica literária do que de qualquer ciênciaposi-
tiva. O que não significa, de forma alguma, a proclamação fanfarrona
de algum "liberou geral" muito pelo contrário. A porteira não está
aberta para todo e qualquer tipo de interpretação, e o leitor de bom
senso sempre saberá distinguir muito bem a interpretação forçada, arti-
ficialmente imposta a uma obra, da interpretação "convincente". yem
daí a importância que Lebrun dava à noção hegeliana de aró; rár;o na
análise de textos: a interpretação necessariamente falaciosa, visto que
ela dá crédito a um conceito que permanece extrínseco aos textos que se
analisam. .Para ele, é essa noção que permite entrever melhor o signifi-
cado do trabalho crúíco em história da filosofia. Afinal, o que é "criticar"
uma interpretação? É menos recensear os erros de fato cometidos aqui
e ali por um glosador indolente (escolha parcial de passagens,elisão do
contexto etc.) e mais avaliar a pertinência do fio condutor proposto, a
11
fecundidade de uma idéia diretora, em que medida ela traz mais infor-
maçõesou ilumina melhor o material conceitual que se examina ou, ao
contrário, quanto ela é improdutiva, não "falsa" maspura e simples-
mente arbitrária.
Boasqual é o estatuto do "juízo" que assim se formula? Para alguém
como Lebrun, que nunca apreciou acalentar ilusões bobinhas, ele é
apenas um "juízo de gosto", no sentido que Kant dava à expressão. Isso
significa reconhecer que essa apreciação das interpretações nunca po
dera travestir-se de juízo "objetivo", pretensamente "válido para todos".
Afinal, em históriada filosofia nóssempredevemosdistinguir entre o
plano da "investigação" sobre os textos e o plano da "apreciação" de
uma interpretação de conjunto. E, se no plano da investigação é sempre
possível circunscrever "erros", as coisas não são tão simples no mo-
mento de avaliar uma interpretação em seu todo. Antes de tudo, a vali-
dade de uma interpretação não é nada que se possa decidir mediante
provas"..F se é certo que uma interpretação deve ser suficientemente
fundada para dar lugar a uma discussão sobre textos, é verdade também
que neste momento eu posso estar cerro de que determinada interpre-
tação é inadequada para dar conta da especificidade de um autor, mas
ao mesmo tempo permaneço ;rzcerfode que farei o opositor mudar a
sua "apreciação" da obra, o ieu Juízo de gosto. .áspero poder mostrar-
Ihe, a partir dos textos, que sua chave de leitura não funciona muito
bem, mas não posso alimentar qualquer ilusão de que iegzzr.zmenfe vou
convencê-lo disso. No domínio da "interpretação" nós estamos longe,
muito longe, da objetividade científica e suas "provas". O que também
pode ser formulado de uma maneira que talvez soe chocante demais
aosouvidos de qualquer expr;fde.fá;ezzxcultivado no berço rústico do
cientificismo: em história da filosofia não há a rigor nadaque uma boa
análise de textos não "prove" compreendendo-se isso, evidentemente,
no plano da interpretação de conjunto das obras.
Mas. se a história da filosofia não é "ciência". Lebrun a entenderá
como uma disciplina de d/re/fo filosófica..Afinal, o historiador não se
limita a reportar os conceitos de um autor às funções que este origi-
nalmente lhes atribuía, aos problemas que eles deveriam resolver ou
ajudar a reformular..Fle também retraça a gênese dos conceitos filosó-
ficos, o momento em que eles são retomadosdo passadoe reformula-
dos no interior de determinada doutrina. Quando se procura circuns-
crever a originalidade adquirida por um conceito que o autor recebe da
lz Apresentação
tradição, é sempre preciso investigar o momento em que esseconceito
foi determinado de maneira distinta, recebeuuma feição até então in-
suspeitada. É quando se descobrem cumplicidades inesperadas entre
doutrinas superficialmente rivais. Na verdade, é apenasrestituindo
uma filosofia à rede conceptual a que está ligada que se compreende
melhor a influência que ela ainda exerce sobre nós. Para Lebrun, é
nessesmomentos de perplexidade, em face de dificuldades não previs-
tas, que a história da filosofia precisa ser metodologicamente inventiva.
E. se é assim, ela é uma atividade essencialmente filosófica -- se enten-
dermos por filosofia aquilo que qualquer "doutrina" será em algum
momento, a saber, uma prática "reflexionante", no sentido kantiano da
palavra, quer dizer, uma atividade de pensamento que, não podendo
satisfazer-secom os conceitos já disponíveis, é levada a criar os con-
ceitos novos de que necessita.
.Mas Lebrun sabia muito bem que, circunscrevendo dessamaneira
o conteúdo "filosófico" da história da filosofia, corria-se sempre o risco
de atrair, para essadisciplina, o rancoroso desprezode todos aqueles
que permanecem siderados por uma eterna "busca do sentido". O reli-
gioso que procura o "sentido da vida", assim como seu gêmeo fanático
que cultua o "sentido da história", dirá que uma narrativa da filoso-
fia assim empreendida é inteiramente fútil e esse diagnóstico decerto
ecoarácomo uma música nos ouvidos "utilitaristas" do distinto público.
Afinal, a "necessidade de sentido" pelo menos parecia responder, de
alguma maneira, à questão de saberpara gae fazer história da filoso-
fia. Que "motivo" justificador da filosofia se pode contrapor a isso?
Lebrun Ihe oporá uma paixão que a muitos parecerá excessivamente
modesta e sem brilho: a czar;os;Jade.Mas entendamos bem o que se quer
dizer com isso: não se trata de fazer o panegírico de um desejo erudito
de indefinido acúmulo de informações em filosofia..;Essa "curiosidade"
lebruniana aponta antespara aquilo que define o "espírito livre", tal
como Nietzsche o descrevia: nunca deixar de variar as perspectivas,
não se prender a convicções definitivas, fazer do pensamento uma ex-
perimentaçãocontinuada,preferir a vida de auto-extraviodo nâmade
ao repouso "convicto" do sedentário. Enfim, tudo aquilo que a língua
francesa exprime tão bem com a palavra dí@aWTemenr.Renunciar a essa
'curiosidade" é o supremo atentado contra o espírito: ela é a garantia
de não travestir preconceitos em certezas, de não renunciar ao exame
permanente ela é a paixão que nos livra do "dogmatismo:
i3
:Era essemesmo viés antidogmático que norteava Lebrun en-
quanto crítico da cultura ou das ideol.ogias. O que evidentemente
não podia ser nem de longe vislumbrado pelo sectário obtuso (outro
pleonasmo). Vem daí que volta e meia o apresentassemcomo um pen-
sador "reacionário", alguém que seguiria um roteiro já clássico de
ex-militante do Partido ComunistaFrancês(de fato freqüentadopor
ele, na Juventude),que, após desiludir-se com a "esquerda", vira a ca
sacae volta-se, furibundo, contra os antigos "companheiros". O que
é um puro e simples delírio. Afinal, Lebrun nunca contrapunha a uma
ideologia "de esquerda" a sua concorrente "de direita". Na verdade,
'z gzzaZgzzer
zzmade/m ele simplesmente opunha fatos comprovados ou
análisesde conceitos..jlm primeiro lugar, ele se inquietava muito com
essesmodos de pensamentoque de forma sistemáticase recusam a
levar em conta a observação dos fatos e a análise das realidades, ideá-
rios teimosamenteabstratosque se preocupam apenascom a coerên
cia em relação aos seus"princípios", desprezandosolenementetudo
aquilo que estádiante do nariz de qualquer um..A essesque são tão
impermeáveis à "experiência" quanto os "primitivos" de Lévy-Bruhl,
vale a penatentar chama-losde volta à terra firme, mesmosemqual-
quer garantia de que com isso eles despertarão de seu sono dogmático.
Assim, diante do "liberal" que cultua o ie4=mademan e profetiza que
todas as mazelas sociais se resolverão com o "empreendedorismo", tal-
vez seja útil relembrar que em nossas sociedades de assalariados, com
produção económica de escalae globalizadas, não é tão simples assim
para um (?/7;ce-óoW trancar-seno quintal de casae, depois de algum
tempo, sair de lá como um novo Henry Ford. E o que dizer para o ideó-
logo botocudo que teima em afirmar que o Estado é uma "ficção"?
Opor-lhe conceitos e argumentos? Certamente seria perda de tempo-
É melhor perguntar-lhe, de maneira mais simplese direta, se ele não
paga imposto de renda... Assim, não é difícil imaginar o que Lebrun
pensaria se presenciasse a inacreditável expansão da falta de juízo que
nos assola hoje em dia: esseCrítico do "culturalismo" de que Galbraith
se servia para analisar o fenómeno da "pobreza" acharia simplesmente
hilariante o novo "psicologismo" recentemente difundido entre nós,
que situa na "falta de abeto" o principal problema de uma sociedade
subdesenvolvida quando o social é "coisa" e problemas oó/ef;voi
como o desempregoe a baixa renda não encontram sua solução em um
bom abraço ou do lado das terapias de grupo-
i4 Hpreienrafcb
O que o leitor encontrará nos textos aqui publicados é a aliança
muito íntima entre cultura filosófica, inventiçidade e espírito crítico.
A regra sempre observada por Lebrun enquanto escritor era a mesma
que norteava seu trabalho como professor, e que ele preconizava como
muito saudável a todos: os escritos sempre precisam começar com a
formulação de um "problema" bem delimitado (o que nos livra do
comentário infinito, assim como lhes dá o fio condutor e a estrutura),
que deve ser perseguido até seu desenlace e auscultado em seus desdo-
bramentos. Mas é claro que no seu caso esse desenlace era geralmente
surpreendente e muito apropriado para abalar as certezasas mais arrai-
gadas, as convicções as mais caras ao leitor, ou os lugares-comuns so-
nolentamenteconsagradospela história da filosofia. Enquantoescri-
tor, Lebrun se comportava como no seu dia-a-dia: ele era o contrário
mesmo de um pedante. Vinha inclusive daí o seu horror ao texto caver-
nosamente obscuro, que, sob o véu de uma suposta "profundidade" ou
'dificuldade" do tema, na verdade, atesta apenas a pouca familiaridade
e muita desavença do autor com seu assunto. Afinal, o que está com-
preendido semprepode ser bem explicado e exposto de maneira inte-
ligível. Esseintelectual de prosa tão sofisticada considerava a "clareza"
como o mais alto valor a ser perseguido na escrita. Para Lebrun ela até
mesmo se confundia com a elegância em história da filosofia.
Cultos..âlbertojilibeirode Monta
l
Sobre esta edição
* Extraído de Esrzzdos
Ceórap, l 5, jan.-mar., í976, com a seguinte indicação em nota de ro-
dapé: "Os textos aqui publicados alimentaram a mesa-redonda sob mesmo título promo-
vida pela SBPC,em sua xxvll Reunião Anual, realizada em julho de i97}, na cidade de Belo
Horizonte". O número de ExfzzdoiCEóraptraz ainda, como respostas à pergunta "Por que
filósofo?", textos de João Carlos Brum Torres, José Arthur Giannotti, Rubens R. Torres
Filho, JoséHenrique Santos e Bento Prado Jr. Dado o teor do texto, optou-se por incluí-lo
no início destevolume, abrindo-seassimuma exceçãoà ordem cronológica pela qual os
outros textos estão organizados.
acreditem serem eles descendentes de Sócrates; mas neles apenas vejo
sobrinhos de Victor Cousin. A agr(ya ;on depÃ;ZoiopÀ;e,
na França, tem
pouca coisa a ver com a questão do Ser e muito com o aprendizado de
uma retórica e de um saber mínimo que garantem à banca que o jovem
professor não aborrecera demasiadamenteseus alunos, nem lhes dirá
frivolidades. De que serviria evocar aqui as sombras dos pensadores
gregos? Imaginem Sócratesouvindo uma lição de Teeteto sobre a "in-
dução" ou Alcibíades sobre o "amor como modo de conhecimento"?
Passemosda filosofia escolar para a literatura filosófica: outra ra-
zão nos proíbe de atribuir uma significação que não seja sociocultural à
expressãosingular do "filosofar". O que existe em comum entre um es-
tudo de filosofia analítica e a meditação heideggeriana sobre uma pala-
vra arcaica? A filosofia não possui mais unidade do que um arquipélago.
E certos filósofos têm tanta consciência dessa disseminação de terri-
tórios que tentam desesperadamente compensarpor um alinhamento
doutrinal sua inevitável especialização neste tempo em que se apa'
gam todos os grandes sistemasde referência (como o tomismo), ten-
tam colocar-se sob a dependência de um pensador do século xix (Marx,
Freud. Nietzsche), ou tomar uma ciência humana (economia, linguís-
tica) como paradigma de suas pesquisas. "Marxismo", "freudismo",
"estruturalismo". Essas etiquetas deixam transparecer, contudo, que
ainda não se renunciou à grande vontade de sistemados velhos tempos-
A realidade, infelizmente, é mais melancólica. Sob a capa do "esmo"
assumido,o que fazem os melhoresdessesfilósofos? Quer história da
filosofia (bons comentáriosde texto sobreo autor predileto), quer um
trabalho monográfico a respeito duma ciência humana. Sem dúvida
ainda sepermanece "filósofo", pois não se esquece,de tempos em tem-
pos, de invocar grandes conceitos e clamar pela WLaemcÃa@unitária
(reconstituindo os lugares em branco e as lacunas do Talmude) .Mas
o que significa essecompromisso com a "filosofia"? Parece-meque
a razão de ser dessa obstinação em se dizer "filósofo" reside inteira-
mente na distância à qual não se quer renunciar -- entre uma inves-
tigação fecunda, porque localizada, e a pretensão a um saber absoluto
(ainda que este seja útil àquela como as idéias sobre o casamento fo-
ram a Russell quando escrevia os Prl/zczp;oa).'.bto,por certo, no melhor
dos casos.Deixemos de lado os ingênuos, espiritualistas de preferência,
que teimam em dogmatizar como em lgoo ' aquelesque continuam a
determinar o ser da linguagem ou do espaço sobre a base científica de
21
r
os dois planos. .A partir daí a filosofia p(5deser investida duma vocação
bem determinada: fixar a essência, delimitar as regiões eidéticas, discer-
nir os princípios -- entendendo-se que, na prática, nenhuma episteme
poderia substituí-la. Se o filósofo tem direito à dialética e ao Zog;Aóa
é
na medida em que procura o universal por seuspróprios meios, em que
seu método nada tem a ver, seguramente,com o método de uma dis-
ciplina regional, porque somente a ele cabe co f; zz/raquilo a respeito
de que fala o técnico I'ingênuo". É flagrante que essaoriginalidade do
filosófico em relação ao matemático seapresentetanto no momento em
que surge a metafísicaespecialquanto na Crítica kantianal que tange
os sinos fúnebres daquela. Ainda aqui é uma sorte para o filósofo que
ele se embasbaquecom o conceito de triângulo, ou que seja incapaz de
uma definição ao iniciar sua investigação: é sinal de que seu saber não
é homogêneo ao saber que a ma Àesú parecia ter monopolizado (e que
as ciênciaspositivas vão logo substituir). E sabemosque se, com Aris-
tóteles. a dialética, arte de interrogar e investigar à margem do saber,
resume-sea um instrumento legítimo do filósofo, a identificação entre
d/a/áflco e.pZoi(@coserá total depois de Kant -- e, em parte, graças a ele.
A filosofia, um falso saber?Não, por certo. Os filósofos tomaram suas
precauções: é um saber homónimo a nossos saberes "finitos", "positi-
vos","ingénuos
Não estou pensandoaqui simplesmenteem Hegel, masem quase
todos os grandes nomes da filosofia moderna depois de Kant. Que se
tomem os "idealistas alemães" (.Na z'r7Ã;/OJopÃ;e contra ciência), os
:desmistificadores" (Marx contra a economia política), a fenomeno-
logia (Husserl e as ciênciaspositivas): surge por toda parte a mesma
preocupação de situar-se num discurso que,porprirzc@zo, não possa ser
atingido pelas objeções fomentadas por uma ciência positiva, a mesma
pretensãode operar uma totalização, uma crítica ou uma fundação que
11
H não mais prestem contas a um código de significações ]á disponível, in-
clusive, seguramente e talvez sobretudo, à lógica formal (Fichte, Hegel,
Husserl). Existem exceçõesilustres, sei disso. Comte e Bergson, no-
tadamente, tiveram a modéstia (a honestidadeou a imprudência) de
falar a linguagem do homem comum, daquele que pode ser chamado a
ÉI prestar contas à ciência (comparemos, por exemplo, a coragem infeliz
11
de Z)zzrafãoe i;mzz/ra/ze;Jadecom a obra-prima de esperteza epistemoló-
gica que é a Krüís de Husserl). Mas, em geral, enrolado em seu discurso,
protegido por essecorpusde significaçõesque uma sintaxe original
z3
Acaba de pronunciar a palavra eiiénc;a; mas quando pretendi deter-
minar uma essência?Perguntam-me: "por que filósofo?" e, em res-
posta, me pergunto por que me deram o gosto de determinar essências,
por que logo retirei disso um prazer tão vivo. Acontece que naquela
época, no que me diz respeito, eu me acreditava marxista, entretanto,
como ainda não se ensinava a "ler" O cap/fa/, era preciso recorrer às
condições transcendentais", lançar mão do "Conceito" hegeliano, tão
cómodo. Para articular a história -- do mesmo modo, para contraba-
lançar -- convinha recolher algumas essências materiais no coração do
vivido. Bagagem de bazar, admito. Mas que cada filósofo licenciado
opere um sincero retorno a seu passado; muitos encontrarão uma
Er{/eÀzzng
mais nobre? É no curso desta, entretanto, que aprenderam
assima marcar o sentido de todas as palavras traduzidas do alemão
que permanecem seuspontos de referência ("para-si", "em-si", "cien-
tificidade" , "lei-de-essência", "universal concreto" etc.). Falando assim
não pretendo insinuar que nossaformação tenha nos transformado em
papagaios; não, ela fez de nós... filósofos. Não pretendo dizer que nos
mergulhou num elemento rarefeito, longe do "concreto" (onde pode
este se alojar?): não, ela nos educou -- segundo o acaso das influências e
dasleituras para a ;nre/lk/ó//idade.Deu-nos o meio de discernir uma
GeierÍmãs;g'te;l, na qual os ingênuos só vêem fatos diversos, aconteci-
mentos amontoados.
1l querem uma prova? Consultem um verdadeiro filólogo sobre o
destino da palavrapÃúü ou da palavra aalÃe;a ou ainda um historiador
do judaísmo sobre a história de Moisés. Vocês ficarão decepcionados:
lá nada mais há do que sentidos heteróclitos que se encavalam aqui,
nada além de presunções, muitas vezes contraditórias (em ciências hu-
manas, o rigor conduz freqüentemente à constatação da dispersão, da
desordem)..Em seguida, abram Heidegger ou Freud: encontrarão o pa-
lácio de Versalhes no lugar da floresta virgem lá, um sentido unívoco
do qual seguimoso declínio e a latência; aqui, uma intriga bem mon-
tada. Então, "por que filósofo?" porque até mesmo as crianças, dizia
Hegel, gostam de encontrar um encadeamentoe uma conclusão nos
contos. Descrever a filosofia como uma retórica consiste, pois, somente
em comentaro ideal de inteligibilidade que ela difunde. Insistir no fato
de ela corresponder à necessidade retórica do adolescente ocidental não
significa despreza-la. Comprometidos com essadireção, alguns acabam
efetivamente por transformar-se em MhsemcÃaÚ/erbastante retorcidos,
z4 Por que$Íósofo?
sabendo localizar uma Gei a/z ou um Zmammen'gang, assim como seus
predecessores-- e praticarão o óegründentalvez mais habilmente do que
estes(aqui é preciso falar alemão). Não me cabe, pois, a censura de
caricaturar a filosofia. É que, desdeo momento em que Kant nos mos-
trou os perigos que nos reserva a Dedução transcendental (se a Terra,
num único dia, passasse de um clima tórrido para o glacial), filosofar
passoua consistir principalmente em expulsar o acaso,decifrar a todo
custo uma legalidade sob o fortuito que se dá na superfície.}lspecifi-
camentefilosófico é o problema de compreender o funcionamento de
uma configuração a partir de uma lei que Ihe é infusa (é preciso que
haja uma), conforme à ordem que se exprz«.enela (é preciso que haja
uma) quer se trate de compreender a possibilidade do juízo a partir da
afinidade dos materiais sintéticos ou, de maneira mais desembaraçada,
a sociedade feudal a partir do moinho de vento... Sempre que apÃúü
da coisa contiver uma unificação apr;on ou um encadeamento "lógico",
o filósofo triunfará.
;Até aí nada de grave; nada que deva levar-nos a desconfiar de
uma ginásticapara o intelecto, tão formadora como a álgebra ou a ver-
sãopara o latim. O desastreaparecequando a procura pelo universal
é levada a sério e quando os usuários do código só raramente têm a
lucidez de tomar o "transcendental". o "conceito" ou a "infra-estru-
tura" simplesmente como peçasdeste jogo apaixonante da linguagem
que é o jogo do iene;doa /odo côro. Longe de mim querer iniciar um
processode intenções. Pergunto-me, contudo, se a questão que nos
foi proposta não supõe que o filosofar seja uma coça sér/a, porquanto
não se perguntaria o porquê de um jogo... É bem verdade que, como
filósofos, não mais sabemosjogar, como sabiam os gregos. Retome-
mos Aristóteles. Não temos vontade de perguntar-lhe: "por que filó-
sofo?". Primeiro porque ele nos diz em poucaspalavras,no umbral da
Mera@ú;ca:para nunca se admirar da incomensurabilidade da diagonal,
mas unicamente de ela ter sido tomada como algo admirável. Em suma,
para se convencer de que a Justiça reina nas coisas. Depois, e sobretudo,
porque sua prática descuidada desmente muitas vezes o caráter sério do
objetivo. Hn'ínX:e,diz ele, tem este sentido, depois outro e mais outro;
tentemos este primeiro que talvez reúna todos e vamos ver no que dá.
Tal é o estilo dessejogo. 9u ainda: diga-me,qual fórmula convéma
todos os tipos de alma? De minha parte não a velo; Górgias teria razão?
Deixa-se que a dispersão atinja seu mais alto grau, depois, quando tudo
parece perdido, se entrevê que apesar de tudo há um meio de domi-
nar a desordem,há um pólo unificador de todos os usos da palavra
"saúde". E, cada vez que se desfaz o espedaçamento das significações,
responde-secom o fato à questão:"por que filósofo?". Mas o jogo é de
tal modo bem conduzido que não se tem vontade de interrompê-lo com
essa questão indiscreta.
.Mas, chegando a este ponto, o historiador da filosofia constata
que há muito ele se separou do filósofo. Em virtude de ter freqüentado
os alquimistasdo Lógos unificador, criou o hábito de não ver senãoo
tema,infinitamente renovável,de um exercíciointelectual. Não pre-
tende mais por sua conta retomar a busca do universal: ele já não mais
é filósofo. O que ganhou por ter atravessado esse país fantástico? Pois
bem, justamente isto: um dia sentir o desejode quebrar seusbrinquedos,
romper op z /e e, por fim, exclamar: o que importa o filosofar? De que
isso lhes serve, a vocês que teimam em se transformar nos instrumentos
da repressão ocidental, de seusuniversais, de suas leis de essência,de
seu aparelho de racionalidade -- vocês, auxiliares da iegzzranfamora/?
Esta é a questão que ele põe de agora em diante àqueles que pretendem
residir em alguma "Verdade" ou em alguma "Justiça". Então, que se
meça quanto, uma vez mais, deve ser completa a vitória da antifilo
sofra deste que "sempre permanece, junto de toda a humanidade, na
ofensiva, e não possui qualquer estaçãofixa, nenhuma residência, que
estivesse em todas as ocasiões obrigado a defenderá".'
G]Â.. {X?
Pascal: a doutrina das figuras
tudo quanto sepode saber de Deus pode ser demomtrada poí rales quenào é
preciso bucar senão ern nós mesmos, e m quais somente nosso espírito é capa {
defornecer. Por isso, pensei que não seria fora depropósito entremostrar aqui
\. 4 que caminho épreciso tomarpara chegar ao conhecimentode Deus com
mais$zcitidade e certeza do que conhecemos m coisas deste mundos
+ Extraído dos Anais do iv Congresso Nacional de Filosonla, Fortaleza, ig6z. Não há men-
ção dotradutor.
i. Cf. L. Goídmann,Ze Dleü cacÃá.Paras:Gallimard, t955.
z. René Descarnes, Zeí .44Zdífar;om métapJÍy=ígzzes.
Paras: Gallimard, Pléiade, s.d., p. z58led.
bus.: .44edífafões,in Z)eicarfei. São Paulo: Abril Cultural, i979 Os pensadores].
3. Blaise Pascal, Penséei,z4zIA numeração de Pemáei corresponde à da edição das Oeavres
de .B/aüe /laica/, ed. L. Brunschvicg e P. Boutroux, i4 v. Paras: Hachette [lgo8-igz6] (ed.
bus.: PEmamenros,in Foca/, trad. Sérvio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, s.d. -- Os pen-
sadores)
W
4. No século xvn é que se chamará "apagógico" (apagagéeú adúnaron)o método que con-
siste em comparar a quantidade estudada a um limite superior e a um limite inferior e a
estabelecerque a diferença é menor do que qualquer outra dada. Esse método, que contém
uma aproximação da noção moderna de "limite", é claramente exposto por Pascal em carta
a Carcavi. Cf. Pascal,Oeuvresço/np/êles,
ed. J. Chevalier. Paria:Gallimard, Pléiade, i954,
PP. z3z-33.
5. In Oeul,rex co/np/êles, P. 46i
6. "Não sedeve tomar por verdadeiro senãoascoisascujo contrário Ihe pareça falso." Expôr
geomé n'gaze,in Oelzvres co/np/ares, p' 585.
7. Cf. R. Descartes, Oezzl,res
deZ)escarros,
ed. Ch. Adam e P. Tannery (AT),v. i, p' 49o;
v.ii9P. 275
8. Acerca da condenação das provas metafísicas, cf. Pascal, P2mées, p. 543-
9.Id.,ibid., p. 242-
11
ro.Id.,ibid., 547
.l.Id.,ibid., 64z
EZ.Id.,ibid., 571
[3.]d.,ibid., 76z
z9
Se Deus não tivesse se exprimido por "figuras", os judeus, incapa-
zesde interessar-sepelo "espírito", oa teriam deixado de ser "os depo-
sitários da esperado Messias", ozzteriam anunciado sua vinda, e depois
reconhecido Jesus Cristo; mas, nessas condições, quem nos garantiria
que o aparecimento deste não seria um "golpe preparado"? Assim, a
divindade de Cristo é validada duas vezes: a) na medida em que é anun-
ciado pelos profetas; b) na medida em que não podemos suspeitar que
ele tenha sido criação dos judeus, afastando-se,portanto, o argumento
da testemunha complacente.'' Essa argumentação mostra que, para
Pascal,o duplo sentido deve ter por si mesmoum significado. Ora, por
que seria asstmf
111
3t
o corolário de um conhecimento racional de Düs; z) se Deus fosse
cognoscívelsem equívocopela "luz natural", a doutrina do pecado
original não teria mais sentido. Era quaseo caso em Descartese é o
caso em Espinosa. Ao contrário, se nosso conhecimento imaginativo de
Deus é o sinal de nossa condição decaída, e não somente uma alienação
superável, cumpre ver nisso a contraprova do fato de que os homens
não merecem ter acessoa um conhecimento universal de Deus,:: sendo
a impossibilidade do Saber absoluto e o caráter essencial do pecado ori-
ginal, aliás, dois conceitos inseparáveis.
Por conseguinte, seos profetas hebreus precisaram recorrer a ima-
gens contraditórias ou extravagantes,não foi devido à sua"grossura",
mas porque não podemos conhecer Deus de outro modo, a não ser por
imagens e no equívoco.
lv
11
zz. "Porque tantos homens se tornam indignos de sua clemência,ele quis deixa-los na pri-
vação do bem que eles não querem. Portanto, não era Justoque ele aparecessede maneira
manifestamente divina, e absolutamente capaz de convencer todos os homens [--]" (id.,
bid., 43o)
Bastante próximo daquele de que se ri e contra quem se indigna Descartes nas Quintas
Respostas(Zesa4édi a iam mé apÃWs;gazes,p' 489):
Em Pascal como em Malebranche, "carnal" designa a impossibilidade de visar a figura
como âgura.
5.B. Pascal,Peméei,p.678.
z6.Id.,ibid.,p. 684.
3z PacaL= a cloutrinadmjigurm
contrárias se harmonizam".27 Os textos imaginativos levam-nos, assim,
a ultrapassar a imaginação.28 E compreendemos não só que as profecias,
enquanto imaginativas, devem ser levadas a sério, ao invés de ser lan-
çadasà conta da ignorância dos profetas, mas também que elas são as
ún/c'zi capazesde nos convencer da divindade de Cristo. Se a ;maxi/z'z-
fão é marca de nossaqueda, ascon/raiz õei da ;magüafâo, forçando-nos
a fazer uma distinção entre realidade e figuras, dão-nos a possibilidade
de entrever o verdadeiro Deus.
Vale notar que essasolução de conciliação /pressupõe que "todo
autor tem um sentido com o qual se harmonizam todas as passagens
contrárias, ou não tem sentido algum".29 Noutras palavras, sempre
serápossívelencontrar um ponto de vista a partir do qual possaser
dissolvida a "contrariedade", pois, duma verdadeira contradição, sem-
pre é possível decidir por um ou por outro dos termos contraditórios.
Posição que nos leva a aceitar, no absoluto, o princípio do terceiro
excluído.3' Descartes, por sua vez, recusava conceder ao terceiro ex-
cluído essavalidade absoluta. À falta de uma idéia clara e distinta,
quer da impossibilidade, quer da possibilidade do número finito, re-
cusa decidir entre a existência ou a absurdidade do maior de todos os
númerosn Pascal,ao contrário, por não mais falar a linguagemdas
idéias claras e distintas, porém a da simples coerção geométrica,': sem-
pre conserva a possibilidade de dec;dír: mesmo quando não mais posso
z7.Id.,ibid
z8. "Sobre o próprio absurdo, o espírito pula, porque não pode continuar nele. Essaaparên
cia não pode enganar. Portanto, cumpre ver um além. Essessinais libertam-nos dos sinais.
Ao contrário, por meio de sinais de razoável aparênciachegamos a pensar os sinais e pega-
nos o costume. Tal é a velhice do espírito [-.]" (Alain, Prapoi aízr /a reÁ]gzon, Pauis: puF, igJ7,
PP. 35-36).
2g. B. Pascal, Penzsées,
p. 684
3o. B. Pascal, Oerzvrei co/np/êles, pp. J85-86
3i "]-.] do simples fato de eu perceber que nunca posso, enumerando, chegar ao maior de
todos os números, e daí eu conhecerque existe algo, em matéria de números, que ultrapassa
minhas forças , posso concluir necessariamente não que existe na verdade um número infi-
nito, nem tampouco que suaexistência imp]ica contradição]-.]"(Descartes, Zei ]l/e'dz'falho
méfap47sígzzei
[SegundasRespostas],ed. cit., p. 375;trad. cit., p. l 57).
3z. "Vedes que entrei no estilo geométrico; e, para continua-lo, não vos falarei mais do que
por proposições, corolários, advertências etc." (B. Pascal, Oeüvrei como/êles,p. 226). Ao
contrário de Descarnes, Pascal aprecia tanto o método sintético(id., ibid., p. 576), que faz
pouco caso da análise e do aparato das notações algébricas (id., ibid., p. i.4z8).
33
conceber, sempre posso decidir da verdade de um conceito ou da exis-
tência de um ser."
É digno de nota que essaposição "antiintuicionista" e essavalida-
ção do terceiro excluído, além da evidência, seja comum a Pascal e Kant.
Certamente, para Kant, o terceiro excluído não tem força probatória,
senãoem matemática.;' Contudo, mesmo em filosofia, pode ajudar-nos
a descobrir as falsas contradições, tais como a tese e a antítese das duas
primeiras Antinomias, ambasigualmente falsas.Do mesmomodo, de
acordo com o fragmento 684, quando os dois termos da contradição
parecem igualmente verdadeiros, deve-se entendê-los de tal sorte que
deixem de ser contraditórios. Da mesma maneira, ainda como essa
supressãodas contradições não pode efetuar-se, segundo Kant, senão
pela distinção entre fenómenos e coisas-em-si,;; assim também as "con-
trariedades aparentes" das Escrituras são resolvidas por Pascal graças à
distinção entre "figuras" e realidade.3'
O princípio que comandaa doutrina das "figuras" pode, pois,
enunciar-se da seguinte maneira: i) toda contradição real pode ser
resolvida em virtude do terceiro excluído; z) se assimnão for, a contra-
dição será apenas aparente (caso da "oposição dialética" em Kant) e de-
vemos descobrir um ponto de vista que permita dissipa-la. O primado
do raciocínio por absurdo e do conhecimento por negação conduzia à
liquidação de todo conhecimento racional direto de Deus, ao passoque
o primado do terceiro excluído e a possibilidade de localizar e suprimir
as contradições aparentesnão só permitem salvaguardar a verdade das
33. "Mostrei já que sepode muito bem conhecera existência de uma coisa sem Ihe conhecer
, natureza" (Pemées, z33). Inversamente, pode-se definir uma "natureza" sem Ihe pâr a
existência: "Dessa maneira, Euclides define asparalelas e mostra depois que podem existir;
e a definição do círculo precede o postulado que Ihe propõe a possibilidade" (Oeuyrei com
P/;"., P.3*').
34. Immanuel Kant, C'rírlgzze
de /a ralsonp re, trad. A. Tremesaygues e B. Pacaud. Paras:
pup,l95o,P.565
"Mas, se afasto essasuposição ou essaaparência transcendental, a oposição.contradi-
tória das duas afirmações converte-se, então, em uma oposição simplesmente dialética" (id.,
ibid., P. 38o). Cf. B. Pascal, Pemáei, 685. Essapassagemda contradição lógica à oposição
si/np/asma/zla diabéticapressupõe não só que toda contradição sempre pode ser resolvida,
mas também que não pode haver contradição no absoluto. No que esse método se acha nas
antípodasdo "método dialética
36. Não há contradição senão na medida em que suponho que somente a figura é real (o ponto
de vista dos "carnais"), que o mundo é coisa-em-si(metafísica clássica)
4o.Id.,ibid., z6.
4i.Id.,ibid., 22.
bG PmcaL:a doutrinaclm$gur
.Hspcz/atrásou os preconceitos da infância
37
Mais ainda: é possível ler as Co/t$çsõescomo um romance; .dspa/a-
vrm, não. Nada é menos anedótico que essecurto relato, em que as
recordações de infância e de família -- no sentido habitual são redu-
zidas ao mínimo. Se Rousseaudava muita importância ao que chamava
"as causasocasionais", Sartre é menos generoso para com "as forças
externas": "Eis o meu começo: eu fugia, forças externas modelaram
minha fuga e me engendraram".'
Trata-se então de um inventário psicológico? Sobre isso, ainda,
Sartre presta-se menos ao equívoco do que Rousseau. Sem dúvida, o
autor resume o que foram os sonhos e os pensamentos secretos de sua
primeira juventude, mas nunca os apresenta como esboços de um ca-
ráter, etapasde uma "psique" em elaboração.Nenhum relato em pri-
meira pessoapode ser mais pudico nem mais anónimo: trata-se de uma
criança morta que, ela própria, nos é dito, nunca se havia considerado
demasiadamentecomo viva, "um menino muito novo e já velho, já
morto".s Quem fala, de resto?Sartre em ig63. Unicamente ele. E ele
nunca procura ser o porta-voz do menino que foi. Muito pelo contrá-
rio: a essacriança, empresta sua voz, seu estilo. Quem fala? É a criança
Sartre habitada pelo filósofo que se tornou, devorada pelo olhar de um
adulto que, durante muito tempo, não se preocupara com ela. "Meus
primeiros anos, sobretudo, eu os risquei: quando comecei este livro,
precisei de muito tempo para decifra-los sob as usuras. Quando eu
tinha trinta anos, alguns amigos achavam estranho: 'Dir-se-ia que você
não teve pais. Nem infância'."'
Para compreender seu porte desenvolto, sua despreocupaçãopara
com todos os usos da narração íntima, é bom talvez considerarmos um
outro clássico: "Pelo fato de termos sido crianças antes de sermos ho-
mens [...] é quase impossível que nossos julgamentos sejam tão puros
ou tão s(51idos
como seriam setivéssemostido o uso inteiro de nossa
razão desde o ponto de nosso nascimento, e não tivéssemos sido condu-
zidos senãopor ela" (Descartes).'
Sartre é mais violento:
39
perdido -- a queixa de ter podido ser foguete de tolos porque eles eram
adultos. "Minha verdade, meu caráter e meu nome estavam nas mãos dos
adultos: aprendera a me ver com os olhos deles; eu era uma criança, esse
monstro que eles fabricam com seus remorsos."' '
A partir disso, contar sua infância não pode ser outra coisa se-
não força-la às confissões, denunciar bem alto o destino que ela quase
nos traçou -- expulsar de nós, também, os últimos germes dessalonga
doença. Não há nenhuma frase, no relato de Sartre, que não suponha
essebrutal distanciamento.É ele que justifica a ferocidadedos retratos
de família, a ironia que o autor emprega ao evocar o pai que não che-
gou a conhecer toda a cínica alegria que dá ao livro seu ritmo. E tam-
bém ele que faz compreender o curto-circuito contínuo entre o narrador
qüinquagenário e o garoto cuja história ele narra: o acontecimento
passado só tem interesse quando refletido em minha liberdade anual,
criticado por minha consciênciade si e essecomentário perpétuo já
é a "cal viva em que se dissolve a maravilhosa infância". Fale-se de
maldade, como quiser, mas sobretudo não se fale de anacronismo.
É verdade que Sartre, para destruir melhor essepirralho que detesta, o
faz pronunciar suaautocrítica. Mas suafilosofia Ihe dá essedireito. Eu
me comunico inteiramente com aquele queda;: dele, nada é misterioso
ou sagrado;ele não é um Outro, como o jovem em que o amnêstco
em .[e }6Wagezzria óagage, de Jean Anouilh -- hesita em reconhecer-se.
Não há anacronismo e mesmo maldade a não ser na perspectiva,
contestada a partir de O ser e o nada -- da "duração psicológica": se
a espessurado tempo me separassede meu Eu antigo, seria absurdo
sem'dúvida pretender falar em seu nome, julga-lo no~atual. Mas esse
"tempo" é um mito bergsoniano de que Sartre faz tão pouco caso quanto
Bergson do "tempo dos relógios", da mesma forma que esse "Eu" tão
erido é invenção dos insensatos e consolação dos ia/azzd:. Olhando
para trás não percebo nenhum segredo naufragado e nada me separa de
nenhum instante de minha vida, de nenhum rosto que tive. Não há ana-
cronismo a não ser que o autor interprete sua vida de antanho à luz de
suas opiniões de hoje e substitua indevidamente estas no seio daquelas
Mas esseerro de método só seria possível seeu pudesserepartir minha
vida em um "antes" e um "depois". Ora, para Sartre, essescortes em
íz. J.-P. Sartre, Zgrre er Zenáa/zr.Paras:Gallimard, i943, pp. zo5-o6 [ed. liras.: O ler eo /fada
trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, i997]
41
essejorrar contínuo que asseguraao mesmo tempo sua singularidade e
sua unidade. Seria pois desonesta acusar Sartre de ter marcado as cartas ao
trocar seu "Eu" de hoje pelo seuEu de outrora. Através do relato, procu'
remos apenas ver esboçarem-se as primeiras figuras de uma "escolha
livr.«. 6. «ma "escolha livre" entre outras -- tais como as de Baudelaire
ou de meanGenet que Sartre ]á tomou como exemplos nas biografias exis-
tenciais que deles traçou. No passado de Sartre? contado por ele, não há
mais acaso que na vida dessespoetas ou de qualquer homem. Nem mais
necessidade mecânica, naturalmente. Há apenas, desde o começo, um
prometofundamental se não totalmente conhecido, ao menos totalmente
consciente que unificava os sonhos e as loucuras de uma criança. Por
ridículo que tenha sido o garoto pretensioso que Sartre nos descreve, vale
a pena compreender, portanto, com seu exemplo,..como uma liberdade
nova. mesmo afundando-sena irrisão de uma família conformista, pede
abrir seu caminho. Como essapré-história de um para-si foi de qualquer
modo vivida inteiramente (admitamos os pressupostosde Sartre) no modo
do para-si. Deixemos de lado a juventude de Sartre como homem pri-
vado ou como homem célebre: é ele mesmo que nos convida a fazê-lo e
examinemos mais de perto as etapas dessaErÍ;eÀüng que é, mais que o
memorial de um filósofo, a contraprova de uma filosofia.
Na família Schweitzer -- a de seu avâ em que vive o menino Sartre,
todo mundo representa. Ninguém sente a não ser aquilo que representa.
O avâ, patriarca farisaico de barba caudalosa,tira partido de cada efu-
são para representar .4 arfa de ier avó, de Vector Hugo.
42 As palavras ou osprecorzceízos
da Irt#árzc;a
Sartre, mas desconfio dele quando seu talento e sua verve o arrastam
e não julgarem seu avâ de acordo com essa acusação. Aliás, ela me pa-
recepreparar muito bem o que segue.Uma vez que toda a família está
em cena, o menino, por sua vez, torna-se um impostor, atento a adular
o avâ, a executaros gestos que sabeserem esperadosdele. Pois ele o
sabe: o Cog;/o cartesiano não perde seus direitos na família Schweitzer,
assim como em -L:magàzaire não os perde entre os psicopatas. "Uma
transparente certeza estragava tudo: eu era um impostor. Como repre-
sentar a comédia sem a gente saberque a representa?"''
Eis pois o menino desdobrado, representando mesmo na solidão
sua personagem de "pequena maravilha". Em suma, sempre à distân-
cia dela e entretanto com a maior seriedade do mundo. Eis, além disso,
Sartreem um terreno a que é muito afeiçoado:o "comediante" é um de
seusparadigmas preferidos. Ao mesmo tempo em que sabe que não é
sua personagem, o comediante a é inteiramente: não é outra coisa que
suaspalavras e seus gestos. O comediante está a distância dela; mas a
palavra "distância", nessecaso, é uma metáfora enganadora. Enquanto
uma distância separa positivamente uma coisa de outra, nada, aqui, me
separade mim mesmo. Assim, na consciência de si, a simples presença
do genitivo parece indicar que sou dois; mas que se analise essaqua-
lidade: ela se reabsorve em identidade absoluta, coincidência perfeita
consigo mesmo. É por isso que, sendo todos comediantes, somos todos
cabotinos, todos estamosde má-fé. Essadistância, de que antes eu me
orgulhava, nãoe'n.zda.De maneira que, ao descobrir meu cabotinismo
integral, desvendo meu Nada: não havia ninguém sob a máscara. "Ten-
tara refugiar-me em minha verdade solitária; mas eu não dispunha de
verdade alguma."is "Eu era nada."i'
Revelação que, ao mesmo tempo, me introduz a um C})g/zomais puro
e mais rigoroso que o de Descarnes aquele mesmo em que, segundo Sartre,
Descartes não conseguiu manter-se. E certo que Descartes escrevia: "Eu
não sou essareunião de membros que se chama o corpo humano; não sou
um ar tênue penetrante, disseminado por todos essesmembros; não sou um
vento, um sopro, um vapor nem algo que possa fingir e imaginar".''
43
Mas, por meio de todas essasnegações, eu continuo a ser todavia,
segundo Descarnes, uma coisa que pensa. O CoF/fo sartriano não chega
até aí: ".Ezz/zãoera consistente nem permanente; ezznão era o conti-
nuador futuro da obra paterna,eu não eranecessárioà produçãodo
aço: em suma, eu não tinha alma".'*
Mas como encarar por muito tempo uma verdade tão sombria?
A comédia familiar acabade acuar o menino a uma tomada de consciência
da qual ele deve fugir sob pena de loucura e o livro: a pzlrtir de então,
torna-se o recenseamentode algumas figuras da má-fé infantil: "Nasci
para suprir a grande necessidadeque eu tinha de mim mesmo; até en-
tão só (conhecendo as vaidades de um cão de luxo, acuado no orgulho,
tornei-me o Orgulhoso [...]. Neste ponto extremo da humildade, não
podia mais me salvar a não ser invertendo a situação".''
/'r;me;r'zfgura. O menino, espontaneamente,sefaz outro. À comé-
dia oficial que o obrigam a representar, ele acrescenta outra, secreta -- na
qual possaacreditar. Utilizando suasleituras, imagina-seherói, explo-
rador. voando em socorro dos fracos, transpassandoos maus. Mas a
alienaçãoé um empreendimentode fôlego. Não é tão fácil tornar-se
Dom Quixote. No cinemaa que a mãeo levava, o menino pede perfei-
tamente identificar-se com as personagens mas apenas enquanto dura
a proJeção. "Eu sentira sua vitória em meus ossos, todavia era a delas e
não a minha: na rua, eu voltava a ser extranumerárioT."
É preciso, portanto, urdir um novo ardil.
Segzz/zda
Pgzzra. O menino começa a escrever relatos, a princípio
simples plágios ou reminiscênciasque, lentamente, tornam-se obras de
imaginação. Como a adulação familiar favorece isso, ele se deixa levar
pelo jogo. Ele, que se acreditava"de sobra", ei-lo encarregadode um
mandato: escreverá... Tudo iria bem se o avâ, agastado por achar que
viravam a cabeça do garoto, não o convidasse a "encarar as coisas com
lucidez". Habilmente o faz duvidar dessegênio asseguradodepressade-
mais. Sem dúvida, ele é dotado; mas seria essauma razão para que vâ
viver de sua pena"? Entrará na Escola Normal, tornar-se-á professor,
escreveráartigos em um jornal de província... O menino, convencido,
resigna-sea essamissão menos gloriosa. Mas a miragem dissipou-se.
45
o álibi... Pode-se imaginar autocrítica mais rude? Um homem confessa
que sua vida foi forjada à força de imposturas. Suavocação,sua indi-
ferença para consigo, o sacrifício alegre que faz de sua vida pessoal os
livros que escreverá, ele, o anónimo -- tudo nasceu dessa"operação frau-
dulenta". "Desde os nove anos de idade, uma operação privou-me dos
meios de sentir um certo patético que dizem próprio de nossa condição "
[...] Escolhi como porvir um passado de grande morto e tentei viver ao
revés. Entre nove e dez anos, tornei-me completamente póstumo.""
O mandato que ele se havia outrora confiado tornou:se seu caráter:
ele o reconhece. O retrato final que traça de si próprio é um balanço dos
desvios de seu nono ano. "Todos os traços da criança remanescemno
qüinquagenário." E, embora não creia mais que os escritores estejam
destinados a salvar o mundo, ele escreve sempre. "Que outra coisa
fazer?" Daí a confissão final: "Essevelho edifício ruinoso, minha im-
post:ura, é também meu caráter: a gente se desfaz de uma neurose, mas
não secura desipróprio".''
Mas enfim, dir-se-á, essesentido irrisório que o autor confere a
seu passado, e em seguida a sua personalidade inteira, é ainda ele que o
dá. Ao condenar-se totalmente, Sartre se salva. Quer queira, quer não,
ele Joga o "perde-ganha" de toda confissão: pelo fato de reconhecer
meu erro, já estou além dele; ao proclamar minha singularidade, faço-
me universal e restauro a meu favor a dualidade da consciência de si...
Diante dessaacusaçãode farisaísmo sutil, Sartre daria de ombros. Não,
replicaria: não sou nada mais que aquilo que descrevo,colo-me a essa
personagem e seria tota]mente incapaz de Julgar-me do alto de algum
tribunal íntimo, por estaboa razão: esseEu -- qÍie no casoos senhores
me supõem -- não existe. Essa lucidez total é um predicado sem sujeito.
O autor, no momento em que escreve e se condena, não pode ser essa
personagem ardilosa que pretenderia tirar partido de sua confissão: ele
não é mais que seu ato, não estáem lugar algum, não é nada. Uma subje-
tividade pode trapacear; o Nada, não.
Sela.Não imputemos a algum Eu secretoessalucidez frenética:
ela é o outro nome da liberdade. Mas eis aqui, então, outra dificuldade:
essaliberdade, por sua vez, é permanente. E é por isso que'foi tanto
E é por isso que uma leitura otimista pode acompanhar a leitura pessi
mista que fazíamos há pouco. Esse imaginário que Sartre apresenta
47
como alienante é o reverso de uma erdade,por mais deplorável que
el. a julgue hoje: ao escrever seussonhos, o menino se torna «a/me"t.
imaginário. Já em Sa;nl Gemer,Sartre tinha descrito essemomento em
e no momento de "engolfar-se no imaginário", Genet "se apercebe
de que sonha" e, desde então, decide assumir seu sonho, ser sonhador.
;Por essadecisão, escapa ao sonho, uma vez que transforma um sonho
de vontade em vontade de sonho.":' Ora, Sartre imputa a si mesmo
cedo demais essa tomada de consciência que imputa tarde demais a
Genes. "Não era preciso mais. Eu escapavaà comédia: não trabalhava
ainda, porém não brincava mais, o mentiroso encontrava sua verdade
na elaboração de suas mentiras. Eu nasci da escrita [..-]- Eu, isso signi-
ficava: eu que escrevo[...]." 5"
Isso foi sua perdição como homem, assegura-noshoje -- o iní-
cio de uma doença de que acabade se restabelecer. Sem dúvida. Mas
foi também o nascimento de sua liberdade ou antes o encontro com
ela. E é bem o casode dizer mais uma vez que a história avançapelo
seu lado mau. De resto, esseé um enredo que aparecefreqüentemente
em Sartre: é possível conquistar-se contra o imaginário, por ruptura
com os mitos. Mas é possível também conquistar-sepelo .imaginário:
tal obstáculo é tambémuma mediaçãoe essapassagempelo reino das
sombras não é inteiramente negativa. É o imaginário, mesmo desre-
grado, que, de preferência, me anuncia minha liberdade; é a má-& que,
em O ser e o /fada, preludia a análise do para-si. "Se; que sonho ou que
minto, logo sou." Sei que possonadificar o mundo e proletar me no
irreal,' para além dele: sou pois outra coisa que ele e meu verdadeiro
Nada surge por meio dessesfalsos prestígios. Assim o Sa//zrGemeré a
desconti-
fenomenologia otimista de uma consciênciaque passa,sem
nuidade, da contemplação narcisista à liberdade objetiva pela media-
ção do narcisismo refletido em poesia. Em OT'Ãéeno;r, o esquemaé
o mesmo: ao descobrir seu exílio e sua inconsistência no seio de uma
cultura que não é a sua, enfim sua irrealidade, o Negro, espo:tanea
se faz poeta: celebra seu Nada sob o nome de "negritude". Sem
dúvida, essaetapa é ainda mistificante. Mas é sobretudo necessária:
escolhendo ver aquilo que é, ele se desdobrou, não coincide mais
zg Id., Salrzf Ge/zer, comédien er margr. Paras: Gallimard, t95z, p' 3z7 [ed. bus.: Saz/zr Gerler,
arar e mártir. Petrópo]is: Vozes, zooz]
3o.id., Zes.4/aZS,
p. lz7; trad. cit., P-97'
49
r
as!=R=;ei=:;;W:=
da boa-fé do relato. Ao acusar-se, ele não pretende de modo algum justi-
ficar-se obliquamente: pusemo'nos de acordo sobre isso. -Mm e/e#a
aeo me/ior: Justifica brilhantemente seusconceitos.SuaTfâncla catar
trófica, se Ihe damos ouvidos -- ainda é evocada e sempre em termos de
+ Extraídode Z)ücz/rso,
n' 3, i97z. Não há mençãodo tradutor
r
b.nen :.:'::"':;:l.f=':=:;:,.;',::=';;1:;='Ê::;:=:==:i:l:==:
J979-- Ospensadores,
p' 63]
z. Id., Z,Cifra sur Zesa eugZei , in Oez'Traí, ed. cit., p. 85oled. bus.; Garra sopre oi cegaipara o
doi güe vêem,in: Z)ideia . São Paulo= Abril Cultural, i979 Os pensadores].
T
==?;.=::m'==ll:l;!=r=::=:-
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rms respostas de uma
::'::=.;:'=li=ll=T;==H$:.
'
pessoa que vê
pela primeira velho
.,
que rLaa descobeítm
r,
e um $1ósofoque meditou sobreo assuntona escuridão; ou, para falar a
linguagem dos poetas, que velou os olhos para conhecermelhor como ocorre
. . l
a Visão.'
3.Id.,ibid.,p 874.[u.E.]
4.Id.,ibid.,pp.843-44.[N.E.]
57
5.Id.,ibid.,P 889'tN-n.]
59
8.Id.,ibid.,p. 88o-tu.z.]
Em suma, o cego pode iaóer muito bem que coisas nós estamos vendo:
que esta paisagemé bela, que este homem respira, que esta mulher
estánua. Contudo, essascoisas jamais serão w meimm, pois não são
dadasno relancede um olhar. O saberdo cegopode ser tão exato e
minucioso quanto o nosso masnão pode transformar-se em espetá-
culo. O cego, explorando a sua esfera, pode saber o que é o "perto", o
'longe", o "alto", o "baixo"; no entanto, é surpreendente que o cego de
Chesselden, pouco depois da operação, veja sua mão maior do que uma
casa, pois esta pode esconder aquela; que, mesmo depois de ter com
preendido (conceitualmente) que sua casaera maior do que seu quarto,
não consiga compreender como o olho pode, num relâmpago, dar-lhe
essaideia. Antes, o "longínquo" significava para ele um número maior
9.Id.,ibid., p.843.[W.E.]
io. Id., ibid., p. 85O.[N.E.]
6i
l
63
1'
equação sumana:
i4 id. Dider PP' 1'12.-Z7. izg/ei,in ed. cit., P' 888. [N.E.]
l
64 O cego e oPIÓsofo ou o nwcimento da antropologia
não é uma aparência, ao menos existe comoaparénc/a;ao vidente, que,
se considera o objeto da arte belo, só o faz por convenção cultural.
O "bom selvagem" denunciava o nosso mundo cultural como um
pacto arbitrário entre "civilizados"; o cego, como uma convenção en-
tre seresprovidos de um quinto sentido e nada mais...No entanto,
esse"nada mais" desvenda ainda uma verdade deliciosa. um domínio
inesgotável em que o filósofo se compraz, quando o cego (leia-se: o
cientista objetivo) em que ele quer se tornar é substituído pelo vidente
que ele continuasendo.O mito do cegopermitiu ao filósofo reduzir
nosso mundo a uma tênue aparência, mas dessaaparência ele não con-
seguiu se afastar tão radicalmente como Ihe recomendava o raciona-
lismo do século anterior. O ponto de vista do cego é o despojado olhar
do entendimento ou mesmo o equivalente dessaasceseartificial que
os gestaltistasdenominarão visão redzzÍzdae que consiste, por exem-
plo, emolhar um objeto sombreadofora de seu contexto luminoso, de
sorte que ele nos pareça oÓ/et/vamene escuro.Leibniz observava que ao
olharmos um quadro determinado, graças a uma reflexão inconsciente,
interpretamos espontaneamenteo círculo sombreado como uma es-
fera. A experiência inversa é a do cego de nascençaque recupera a
visão: vê as imagensvisuais e nada mais, de tal sorte que as figuras
desenhadasno quadro não Ihe sugeremrelevo. Diríamos hoje que ele
vê espontaneamente
em "visão reduzida". Ora, em oposiçãoa essa
"consciência verdadeira" há a riqueza sempre reencontrada do mundo
visível, a evidência tal de uma aparência que minha visão não pode
evitar coloca-la como verdade.
Bastaque adotemos o ponto de vista do cego para reduzir cultura,
arte, moral, religião ao reflexo de uma aparência. Vejamos o exemplo
da moral:
65
)
* Extraído de 71'a/nÉormaçâo,
n' í, r974- Tradução para a presente edição: Márcio Suzuki
i. Karl Marx, ZzzrKrzzz'#der .f/egeücÃen ecÁrxpÃiZoiopÀielParaa crítica da filosofia do Di
reito de Hegel] (s.e.), i844
z. Ludwig Feuerbach.Z.:Hiie/zcedü cÁrúfia/ziçme,
trad. M. Osier. Paras;rvíaspero,íg68, pp. 2gl
z93]ed. bus.: .4 essénczado Clúfla?zúazo. São Paulo: Papirus, i997].
67
r
l 6% AespecuLação travestida
O Cristianismo a serviço do indivíduo, se quisermos... Mas com
a condição de precisarmos: do indivíduo humanizado, identificado a
seu ser genérico, amostra padronizada do "rebanho". É nesse ponto
que Stirner anuncia Nietzsche e, sem dúvida, o inspira em parte... É
nesseponto também que ele começa a desmascarar Feuerbach como
hegeliano mal-arrependido.' De onde, com efeito, vem esseopróbrio
do "indivíduo por ele mesmo" lançado por Feuerbache pelos feuer-
bachianos?' Ele remonta, pelo menos, aos escritos antropológicos de
Kant: destacado do gênero, o indivíduo nada mais é que sujeito "pato-
lógico", egoísta,devolvido à animalidade. "0 indivíduo particular é o
indivíduo incompleto": esseprincípio pedagógicoabre igualmentea
renome/zoZog;ae o tema repercutiu por todo o sistema hegeliano,no
qual a salvação e a "libertação" do indivíduo se dão sempre ao preço
de uma obliteração de sua diferença, de sua transfiguração no Univer-
sal(o divino ou o Estado...). Nada de muito novo, pois, em Feuerbach.
Bruno Bauer, depois de Stirner, constata: "Em Feuerbach, o indivíduo
deve submeter-seao gênero e servi-lo. Em Feuerbach,o gênero é o
absoluto hegeliano". Que Feuerbach faça a nocividade do Cristianismo
consistir no apego deste ao "indivíduo particular", isso seria, portanto,
uma prova suplementar do seu hegelianismo latente.
Pode-seaté ir mais longe. Não foi Hegel quem forneceu essetó-
pico anticristão a Feuerbach?Um bom indício disso se encontra na
carta de novembro de 1828 enviada pelo jovem Feuerbach a Hegel
com suadissertaçãode habilitação. De fato, é duvidoso que o mestre
tenha apreciado as tesesurra-hegelianas ali defendidas pelo discípulo.
Mas é sintomático que, nessa carta assaz respeitosa, Feuerbach não
tema falar. com bastante naturalidade, do Cristianismo como sendo
o erro mais tenaz a impedir ainda o caminho para a "realização" da
filosofia especulativa:
> social, de uma doutrina da vida em comum, tanto do homem com Deus como dos homens
entre si. Do mesmo modo, toda caracrerúfzfa inlz l,ídHa/sprcPr;a interesse pessoal,capri-
cho,vontade pessoal,particularidade, amor-próprio devia cair, com ele, no maisprofundo
descrédito"(id., ibid.,p. zn).
5. Esta é também a tese defendida por Bruno Bauer em seu artigo dos M)rcldezzrscÃe
B/dizer de
l 844: "Ludwig Feuerbach", que a Jugo/og;aalemã trata à parte.
6. M. Stirner, citando a Ç2üeilâo./udaíca(p. 226), alinha Marx entre os feuerbachianos sequa-
zes do "autêntico ser-genérico'
69
T
relígião],in merÉe,
v. xv, P' :99
lo '4 especulação
travestida
Não causa,pois, surpresaalguma, se em 1828Feuerbach,n.zcondi-
ção de bege//a/zo, considera incompatíveis o "reino" do Cristianismo eo
da nova filosofia. Não causa surpresa alguma se, desde essa data, a morte
do Cristianismo significa a abolição do "Eu finito" disso que Hegel
chama por vezes ironicamente "o indivíduo piedoso".'' Feuerbach,
naquele momento, não tem senão a consciência de radicalizar a aná-
lise hegeliana. Não podemos presumir disso que, mesmo depois de ter
reconhecido em Hegel o restaurador da teologia cristã, ele forme um
conceito de "Cristianismo" que permanece marcado pelo seu apren-
dizado hegeliano?
io. "É claro, então, que o Eu (assim como as inúmeras coisas que dele dependem) cessade
ser considerado como algo de absolutamente firme, como o princípio geral e determinado
do mundo e da representação,que o Eu cessade ser o que era até aqui mais ainda, que o
Eu expira" (Carta de Feuerbacha Hegel, ed. cit., p. n3)
ii. L. Feuerbach,op. cit., p. 447, e a apresentaçãode M. Osier, pp. 58-59
7i
Y'
lz .A especulação t avestida
ele ousa deixar o divino se expandir "até a ponta extrema da realidade
imediata"'S afá gire comem-ágil/. Pela primeira vez, escreve: "Deus
é sujeito e, na condição de subjetividade que aparece, ele não é senão
um indivíduo único. exclusivo".'' Estamos nós desta vez no terreno de
Feuerbach,que desdeentão não teria feito outra coisa senãocriticar
aquilo que Hegel louvava na encarnação?
Nada disso. Olhando mais de perto, percebemos que não se trata,
aqui e lá, nem da mesma encarnação,nem da mesma religião. Quando
fala do Cristianismo, Feuerbach pretende, sempre e em toda parte, reen-
contrar a atitude da consciência religiosa "finita" (para falar a linguagem
hegeliana). Ele jamais separa o sentido dos dogmas e a ideologia que po-
deria deforma-lo. Ora, essadistinção, em Hegel, é capital. Sem ela, não
secompreenderia sua reviravolta no que concerne ao Cristianismo. Mui-
tos traços atestam, por certo, o apego do cristão ao "ser-finito", mas sua
prática, a despeito da aparência, é uma aó/zzrafãodo egoúmo. E é por sua
prática que se deve julga-lo, não pela defasagem que o impede de pensar
plenamente aquilo que ele vive. Assim, é demasiado fácil escarnecer, na
mentalidade cristã, uma "liberdade com relação aosbens terrestres" que
não vai até o abandono do gozo deles. O Cristianismo, é verdade, não é
uma religião do sacrifício material; mas não é "o abandono de uma posse
imediata ou de uma existência natural", observa Hegel, "o que mais atrai
a consciência religiosa"'' não é a cessãode uma colheita ou de um re-
banho. Menos dispendioso, porém mais decisivo, é o sacrifício simbólico
mediante o qual.submeto a Deus minha inteira existência...
Levando-se isso em conta, que significa ainda, para Hegel, o apego
do cristão ao finito? Mesmo que o cristão ie pe/zie ingenuamente como
73
Y'
14 4especuiaçãotravestida
Entendida dessamaneira, a encarnação cristã não é de modo algum essa
união mágica e delirante do finito e do infinito que Feuerbach descre-
vera. Ela não glori6tca nem reabilita o finito: ela o exorciza.
Salta aos olhos que Feuerbach não leve em conta essatesede uma neu-
tra//i.afâo da.Pn/rzzde
no Cristianismo, mesmo para refuta-la. Por quê? E
indiscutível que o cristão é antesde tudo aquele que não renuncia, a não
ser em palavras, a uma particularidade que ele se abstém de sacrificar, e
que sua religião consisteem "identificar imediatamente o ser particular
com a essênciageral". É indiscutível que o Cristianismo é uma divini-
zação do indivíduo finito. Sendo assim, os textos de Hegel relativos à
'morte espiritual" do cristão não merecem que nos detenhamos neles
É evidente ainda que a "subjetividade infinita" cristã, tal como Hegel a
entende, é uma expressão desprovida de sentido. A "subjetividade" não
pode designar outra coisa que a centralização em si do "indivíduo pie
doso", judeu e depois cristão:: e a expressão"subjetividade infinita
é somente característica do procedimento fraudulento que consiste em
proclamar a união mágica, cristã, do finito e do infinito. Eis aí, sem
dúvida, um contra-senso tanto a respeito da filosofia hegeliana como
da dialética. Mas, para Feuerbach, a diabéticanada mais é que essafusão
aberrante de incompatíveis. E isso merece alguma reflexão.
> Crista, chefe da cristandade, passoupela morte e ressuscitou do meio dos mortos. Além
disso, a parte excelentede mim mesmo, minha alma também passoupela morte, e está,com
Cristo, /zoserce/este.Em que, pois, o túmulo, a morte pode me prejudicar?"
zi. G. W. Hegel, GPá,v. xi, p. 4i7; trad. cit., p. z5i
zz. Sobre o egoísmo Judeu-cristão,cf. Z:Elience dEZ
cÀTÚza/lisaze,pp. 465-66, e aspertinentes
observações de J. A. Giannotti em Orz'g;rzeide /a dia/ecrzgzzedu rural/. Paras: Aubier, i97i,
p. 6o [ed. bus.: Origem da dla/éf;cado rraóa/4o.Porco Alegre: L&PM,ig85].
75
z3. Cf. a apresentaçãode Osier, op' Cit., PP' 55'56
l6 4especuLqão travestida
'4 especulaçãoItegeliana identi$ca agora essesdois lados, mas de ta] ma
fieira que, m entanto, subsista fundamerLtalmente a velha contradição eLa
é, portanto, o desenvolvimentocomeqilente, o acabamentode uma verdade
religiosa. Em seu ódio a Heget, a plebe erudita permaneceu bem cega para
não reconhecerque süa doutrina não contradiz, ao menos sob esseupecto, CL
religião eLanão a conta(Mi senãoà maneira pela qual, em geral, o perna'
merLto cultivado e come quente contradiz. a imaginação inculta e incorre quente,
qtte} no e {ctnto, e71urLci(i (i m.esína cais(l."
z4 L. Feuerbach,
op.cit., p. 38i.
z5. G. W. Hegel, Gm,zd/iníerz der PÁz/osopÃíe dei ecÁ i (PÃR) [Linhas fundamentais da falo
sofra do direito],S i85.
77
patronos dessadesmistificação
Z6.L. Feuerbach,J14an$esteipÀI/OJopÀfgüei,
trad. L. Althusser. Paria: pur) i973) P' Z8.
1% ÁespecuLaçãotravestida
boa justamente para despertar a curiosidade erudita. Mais interessante
é op.zrr/'príç de Feuerbach, que o leva a ler Hegel como se este tivesse
lza re.z/idade retomado e salvaguardado do Cristianismo exatamente
aquilo que //fera/mente ele rejeita. Tomemos um último exemplo. A nos
fiarmos em Feuerbach, a concepção que Hegel tem da encarnação não
deve nos iludir: que o divino (a essência humana) tenha podido se reali
zar neire comem-agzzi,Hegel, na realidade, admite-o da mesmamaneira
que os católicos. Sobre esseponto, especulaçãoe "representação" reli
giosa estãode acordo. É preciso que o estejam.
z7- Id., ibid., pp. i4-l5- Nessaspáginas, Feuerbach fala do Messias como sendo o "Dalai
Lama especulativo". A imagem seguramente vem de Hegel (cf. PÁG, v. xi, p. 4l7; trad.
cit., p. 45i; e PARE/,v. xvi, p )ll), mas é digno de nota que Hegel opõe, ao contrário, a
singularidade única de Crista aos Lamas, que são os exemplares múltiplos de um Deus que
permanece substância.
79
a distinguir na polêmica: Hegel é, primeiro, um pensador aZ'i ra o e, se-
So Á especulação
travestida
segredo o finito e o infinito; por sua vez, ele dá ao .Elzs;/zgzz/ar
consistên-
cia bastante para dever impedir de esbanjar a "divindade" por conta do
çerà zma/zo.Feuerbach descobre, em suma, que Hegel ainda é tributário
deste "pensamento finito" ou "pensamento de entendimento" que ele
havia perseguido ao longo da tradição. Voltando contra o próprio Hegel
a acusaçãode "finitismo", sua crítica é, assim, urra-hegeliana.
Que dizer então de Feuerbach pensador da.Pn;ftzde?Expliquemo-
nos. É verdade que a antropologia devolve ao finito aquilo que a abstra-
ção dele havia destacado:o homem é a verdade de Deus, o finito é a
verdade do infinito.3ZMas erraríamos ao acreditar que, por isso, a noção
abstrata de "infinito" é pura e simplesmente anulada. Se fosse assim,
por que Feuerbach teria achado glorioso iz/zePcar,de uma vez por todas,
sem risco de fissura, as essênciasdivina e humana? A palavra dí ;rzo
deve, é claro, ser colocada entre parênteses, mas não é menos verdade
que seria absurdo falar de zz/z;Jadee de zznÊcafão se o divino (religioso)
jamais tivesse sido outra coisa que uma sublimação fantástica. Isso, aliás,
Feuerbachnão aceita ter sugerido:
8i
'\p ;aversão do sentido de
alta"? Trata-se antes
Onde está aqui a "revira
uma tíamferência\
34.id ibid.,pp.44Ó-47
35.Id ibid.,pp.í4o'4:
1 %z Aespeculação tíavesúda
.4 tarefa da l,erdadeira $1oso$a é reconhecer não o frito no infnito, mas, ao
contrário, o não-anito, o infnito noFrito; noutros termos, não de trampor o
frito no in$nito, mm de traí.apor o in$nito nojinito"
Assim, o infinito terá, por nome, género Ázzmanoe não mais .EIWzizlo.
O
que essamudançatraz, porém, de novo à nomenclatura? SÓos atires
mudaram, não os seuspapéis. E não é exagero afirmar mesmo isso?
Por vezes mais parece ter havido simples modificação na distribuição
dospapéisdo que redistribuiçãodeles.A infinitude do "Geúr" deu lu
gar à da espécie.Já para Hegel, contudo, a potência da espécieera uma
/mugemnaizzra/da incompletude do indivíduo em relação ao universal
O "naturalismo" consiste, pois, em tomar essa imagem por verdade úl-
tima? Podemos igualmente nos interrogar sobre a originalidade da tese
"humanista". O indivíduo humano, afirma Feuerbach, é o único ser a
viver numa relaçãocom sua espéciee a objetivar seu gênero. Quanto
a isso, consultemos o léxico hegeliano: veremos que o "Geüf" nada
mais é que a o#el/vagão do género:
36.Id., .44aneÉeileipÁzZosopÁlglzes,
p. iii.
37. G.W. Hegel, Sofremder PÁÍ/oiopÁze[Sistemada filosofia], in Sdazr/icÁeHerÉe,$ 367
adendo,v.ix,p.668.
83
rzuma época defermfnada, eram fldof como OJ/infiel da Ázimarzld'zdee, por essa
:i=,i===i:=,g:i'=iT
:zs=:Ê=,==:,:«'"""
84 .4 esse'iz/afãs rraveitída
de Hegel um "idealista" incorrigível. Cada vez que se entende falar
doutamentedo "idealismo hegeliano", esteja-secerto de que o crítico
(ou o repetidor) não se deu conta de que muitas das ava//afõei hegelianas
poderiam ainda estar alojadas em seu discurso: a expressão"idealismo
hegeliano" é assim-- se tornou o indício seguro dessa divertida inge-
nuidade.Não farei aqui o cômputo dessasavaliações.Citemos duas,
apenas.Que o gênero sejaa destinaçãodo indivíduo, que o universal
se ateste no desaparecimento das limitações, são convicções tenazes
que sobrevivem à "reviravolta" e, quem sabe?, se insinuam através das
"rupturas". A advertência de Stirner deve, portanto, ser levada a sério:
bem poderia ser que a "antropologia", especulação travestida, seja, por
esseviés, "a última metamorfose da religião cristã". Feuerbachse in-
surge contra essaasserção. Mas de que vale a sua defesa?
Stirner, diz ele, pensa que sacrifico o "eu individual e real" a uma
abstração: o Homem. Censura estranha, verdadeiramente, num livro
que é a primeira divinização do indivíduo humano.
4i. L. Feuerbach,.44an#esrei/À//oiopÀígzzei>
p. 224
4z.Id.,ibid.,p. 226.
85
você não pode suprimir esseponto de vista a não ser transpo'tardo esse indi-
vMuo incomparável, dm nuvem etérea de seu egobmo, à intuição temível
profana, quefará, certo, sobressair
a pa'titularidade individual dele, mm
ao mesmotempo também, cleuma maneira incorttestávete inegável, a sua
i.ientidade e a sucocomunidade com os outros indivíduos. Não dÊ menos que o
devido ao indivíduo singular, mas também não Lhedê mab. E somente mslm
H
ateus são gente piedosa"." Não é, com efeito, piedosa a linguagem
que Feuerbach emprega para reprovar: soberba do..único? "Nós nos
sentimoslimitados e imperfeitos [...]. Onde, pois, podemosnos livrar
desse sentimento de limitação senão no pensamento da espécie ili-
mitada [...]? "" Como esquecerminha imperfeição?.Como fazer de
"'-'"-" L'''l'
meu negativo um sonho 'rui .? O fato mesmo
.. .. de
, pâr, sem artifício,
l.
essas questões piedosas mostra quanto a religião é o texto pr/nceps da
43.Id.,ibid.,p zz7
44 M. Stirner, op. cit.) PP- Z3Z'34'
45. L. Feuerbach, il/a/z ÉesespÁI/OJapÁ;gozei,
P. z3o'
86 ÁespecuLação travestida
"antropologia", tanto quanto como da especulação.Não, na Alemanha
dos anos i84o, a crítica da religião não estava de modo algum "Já feita
no essencial". E ainda menos iniciada a crítica dos pressupostosde
Hegel. Aqui começaria a história da verdadeira ideologia alemã: a gaze
SI/r er czrczz crava o resto não passando de querela de seitas.
Substituiçãodo infinito teológico pelo "gênero humano", neutrali-
zação do indivíduo pelo universal: esses únicos traços já fariam d '.4 essa/z-
c;a do Cr&/zanümoum lugar notável da formação daquilo que Nietzsche
detestara e denunciará sob o nome de "idéias modernas" entendamos:
produtos da substituição do Cristianismo. Pois é bem disso que setrata
(e desde a carta de 1828 a Hegel): .fzzóst/[a;ra religião. Donde vem, pois,
a urgência dessatarefa? Feuerbach não faz mistério e suasfrases são
impressionantes, a ponto de justificar a análise de Nietzsche: "Se não
se substitui a divindade pela espécie,deixa-se no indivíduo um vazio
que, necessariamente, será de novo preenchido pela representação de
um Deus, essência personificada da espécie. SÓ a espécie é capaz, num
só lance, de suprimir e de substituir a divindade e a religião"."
Está claro: a Exiénc;a do Crú ;animo não é dedicada aos "niilis-
tas fortes". Deus ou a espécie,no limite pouco importa, desdeque se
evite a mais intolerável das condições; "o vai:;o" e também o mais
intolerável dos suplícios: uma carênciaideal que sabemosjamais será
satisfeita aquilo que Nietzsche chamará de "niilismo", do qual o livro
de Feuerbach é o antídoto, o retardador. E talvez esse fosse um mérito
suficiente para atrair o reconhecimento dos contemporâneos:
87
Y
A dialética pacificadora
89
Y
ii;!iti HZzi:'
Frommann, i949, S 3oZ. Cf. S z78.
:;z:j'=u:=.':u=;:::
5. Platão, Féria/z, iozb-c.
go .4diaLéticapacificadora
dade é a definição da coisa o que sempre acaba por moirrar-ie, sem ter
jamais de comandar.
Para compreender por que as palavras dom/naf.7oe iüómúsâo têm
sentido pejorativo em Hegel, é dessa convicção que é preciso partir,
não de algum pari/'prü ideológico. Não é a desconfiança do autorita-
rismo que faz de Hegel um contemptor da "mera dominação". Certos
textos chegam mesmo a dar a impressão de que o autor sente alguma
dificuldade em conciliar sua ontologia do político e seu conservado-
rismo. Que os governos devam "isolar-se e pâr-se à parte ( HereírzÍe/u/zg
z d H aonderzz/zg)",disso Hegel está convicto. "É pela constituição do
Estado que a abstração do Estado vem à vida e à realidade, mas então
aparecetambém a diferença entre os que comandam e os que obede-
cem." E, no entanto:
Por que os súditos devem viver na obediência, mas sob o mínimo possa
vel de coerção? É que, mesmo sendo o Estado representado por uma
força exterior às esferas particulares como ocorre na monarquia cen-
tralizada moderna --, essaforça deve exercer-se sobre súditos já consen
cientese integrados. Tal é o modo de potência que caracteriza o Estado
monárquico ao sair do mundo feudal.' Pouco importa que o monarca
tenha usado da força para assentarsua autoridade: existe uma dize
rençade naturezaentre o poder que ele exercee o poder que reinava
na poliarquia feudal. Ali cada ponto singular inclusive o suserano, no
ápice-- só se impunha pela coerção (durcÀ Cena/r). Totalmente outra
será a autoridade do monarca, uma vez despojados de sua força os feu
dais. Acabaram-se as tensões entre vontades singulares, acabaram-se os
9i
Y
E)Z ÁdicLlétjcapaci$cadora
democracia é o fascínio que exerce sobre ele a idéia de uma autoridade
que fizesse a norma ser aceita sem coerção por todas as ordens sociais
etodos os cidadãos.
iz. G. W Hegel, Hnr/eiurzgen üáer dz'e Cereal Gare der Péz/osopÀze (GPÀ) [Preleções sobre a
história da filosofia], in Sãmr/zcÁe}HerÉe,/üózZaumsamgaóe,v. xvm, p 3S4.
i3. Id., PÃR, S 278, v. vii, p- 38o
93
Na verdade, porém, unânimes todos eles na fundamental e instintiva hostiti-
dcde corttía toda outra formct de sociedadequenão a do rebartfloante)Homo
(chega/zdo a é própria r#e;fão das conde;ros 'benÃor" e "será'o" ni doeu,
[ü tí\a3txe, diX.uma fórmula socialistas; unânimes rla tenaz regi.stênctacontra
Loja pretensão particular, todo direito particular e pri iLégio \.. ÀI'
u: : ll IHl;
=:='=;==:;:lF
Platão. eu os chamo "servidores das leis". E Rousseau: "Somos livres,
embora sujeitos às leis, mas não quando obedecemos,aum homem [..]
acondiçãodetodoSéiguale,.
'"-u---
"' -" ' ' . ,,
or conseguinte, .
não há nem« senhor
.:.l.:. nem
servo" Nem mesmo Kant, apesar de seu "autocratismo", deixa de in-
?l!iii ü:::i,t;=;.::'==':WX$;:1
admite "um senhor (e;/zerHera)" à cabeça do Estado, essap;lavra é to-
üúii$niiul aíllW
nos de honrar aquele que se distingue pelo vigor ou pela beleza que
a arara e a sopÃroiúnecontinuem a ser os únicos critérios de seleçT
' víduos não são destinados a funções por
EHegel,fazendoeco:"Osind . . .\ : . ;-'--,.
sua personalidadenatural ou pelo nascimento.E preciso que interve
nha o elemento objetivo, representado pelo exame e pela prova de sua
94 .4 dialéticnpacijiqadora
aptidão. Essa prova garante ao Estado que sua necessidade será satis.
feita e, a cada cidadão, que pode agregar-se à classe universal«
Sim, todos unânimes. Que o 'írX:Àe;rz não seja uma disposiçãoda
natureza, eis a idéia que reconcilia "atomistas" e organicistas,pensa
dores do Heriiand e da Hernzz/t#/.O ár#Ãe;rzé uma.»a/zf'io que o chefe
merece assumir,um ma/zdaroque ele sempre pode dizer a que título
exerce: se o comando não é mais o efeito de uma simples preponderar
cia, aquele que comanda deve sempre estar em condições de dar suas
razões, e aquele que obedece, de aprecia-las... É preciso ter uma idéia
bem estranhada potência, constatará Nietzsche ainda, para decidir
dessemodo que está na essênciado poder dar rai.âode si mesmo; mais
exatamente, é preciso ter subscrito aquela frase de Aristóteles: "Querer
o reinado de um homem é querer o reinado de uma besta selvagem".::
Friedrich Nietzsche, Wz'//e {zzr ]14acÁf ( }PVIO [Vontade de potência], in inerte. Leipzig
Alfred Krõner, igzo-i93o} n? 43i.
20. Platão, Górgzla.s,
49ic.
95
zi. Aristoteles, Po/ú;ca, vii} z, i3z3b 29.
96 ''!diabética p=cj$cadora
curiosidade filológica para esseponto, tanto mais que teria de ir a con-
tracorrente de um ideal assimilado por todas as ideologias que nos
são familiares. Essa "potência" carcomida, essa soberania inofensiva,
os liberais não consideram impossível que venha a ser o produto da
evoluçãodassociedadesindustriais; quanto ao outro partido, é para
seu advento que se propõe oficialmente trabalhar (extinção do Estado,
ainda prometida de vez em quando a nossosnetos). Das condições em
que se realizará essa "potência", enfim transparente, podem-se propor
versões opostas. Mas, quanto à forma de potência com que se sonha ou
se finge sonhar, as divergências se esfumam pelo menos no nível da
propaganda e, quem sabe, às vezes até das intenções: será sempre uma
força mansa que neutralizará a desmedida, dominará "a desigualdade
da potência de vida" e fará com que se reabsorvam automaticamente as
tensões.É nessenebuloso ideal que liberalismo e socialismo comungam
ainda.24
Hipocritamente? Pouco importa: para uma análise das inter-
pretaçõesa "hipocrisia" não é um conceito operatório. O importante
é que os adversários se encontram de acordo, Copa da /erra, quanto a
um opr;/«am que julgam pelo menos útil confessar. Ora, é justamente
essemito de uma "potência" que pudesse ser desguarnecida de todo t
aparelho opressivo que governa luminosamente a /7Zoio@ado gire;rode i
Hegel (e, supondo-se que o autor tenha sido o cão de guarda do Estado
prussiano, isso não altera em nada a questão). O oprzmzzm das ideolo-'
gias "oficiais" continua a ser o oprímum hegeliano com a diferença de
darempor um dever-sera realizarou por um processo
;/ze/tzáve/aquilo
que Hegel descreviacomo um já-ier tomando forma em torno dele:
Tirante essepequenodeslocamento,resta que Hegel, melhor que nin-
guém, soube encontrar a Xoúzáem que convergiram e convergem todos
os pensamentospolíticos, quanto ao sentido de certas palavras-chave,
e que, com isso, sua contribuição chega a ser preciosa na circunscri-
ção do campo de investigação do filólogo empenhado em reinscrever
97
il Hil =::gE=1-
mento do Estado centralizador.
:iK ITUHH:::l::=,=,1=::==:::::n
g% AdiaLéticap'cj$c'dará
ficiente, interpretar a Ãomozózei
como um ardil destinado a perpetuar
a desigualdade,como o antepassadoda igualdade formal tal como é
descrita pelos marxistas. Digamos apenas que a como;ó ei está ligada
a um ideal de equilíbrio perfeitamente compatível com a desigualdade
dos bens ou dos estatutos (será encargo dos ricos velar pelas finanças)
ou, mesmo,com a estrita "ozX:e;opragü"
que deve reinar napó/& de
Platão. Ela é um consenso que, estando no princípio dapó#f, conjura
a ameaçada anz#oZh,isto é, de um desenvolvimentotal da desigual-
dade, que engendrada a ;©zzir4a. Desequilíbrios, que seja; mas só até
o ponto em que tornariam possível a interferência na esferamais ou
menos delimitada do outro o frenesi que romperia toda proporção
dos bens e das honras, que levaria cada qual a querer "tomar mais que
szzapar e". Nesse sentido, a aceitação da "similitude" é simplesmente o
sinal de que apó/lk á compreendida como uma máquina de prevenir a
desordem absoluta; não se exprime em um reconhecimento recíproco
ideal, mas sim em cerimónias bem regradas: uma magistratura que os
notáveis exercem cada um por vez, uma ordem de sucessãonos cargos
que nenhuma discórdia vem interromper. "Para os indivíduos que são
semelhantes,o bom e o justo consistemno exercício de seusdireitos
cada um por vez, sendo essa alternância algo igual e semelhante."zP Os
"semelhantes" são antes de tudo aqueles que entram em acordo para
não mais rivalizar sem regra do jogo, aquelescujas diferenças não mais
perturbarão a coexistência,aquelespara quem o exercício de todo po-
der é por natureza não-conflitual.
cE por isso que o .!ÉÊDicoé o contra-exemplo do tirano. Para este,
toda relação, sela qual for, é posta em bloco, cegamente,como rela-
çãode força, ou de jogo: quem vencerá?O homem injusto, diz Platão,
> R. A Gauthier. Louvam: Prestes Universitaires de Louvam, i958, v. u, p- 3z6: "A justiça
não é para os heróis homéricos a virtude por excelência: o que faz o valor, a areré,é a no-
breza, e mais ainda a coragem; sem dúvida é preciso dar a cada um o que é seu, masisso se
faz espontaneamentee não sob a pressão de um direito ou de uma instituição legal imposta
à comunidade:
zg. Aristóteles, Po/úlca> vn 3, i3z5b 7; cf. m, i3, rz83a z3 e ss. Gauüier e Jolif confrontam
essestextos com a seguinte passagem de Eurípides: "A igualdade é para os humanos um
princípio de estabilidade,enquanto contra o mais bem dotado sempreentra em guerra o
menos dotado e ele dá o sinal dos dias de inimizade [-.]. A noite de pálpebra fechada e a c]a-
ridade do so] seguem a passo igua] o círculo do ano, sem que nenhuma das duas se ressinta
ns$::
da vitória da outra" (apud Comentário à ZyrÁzg zea Nzco«zagz'e,n, p. 3z7)
99
idéia aparecia na Repzíó/;ca=
Zusatz, v. x, P- 388)-
\OO A dialéticapaa$cadora
'Que digam dele; é homem honesto"; e ei-lo já cidadão. Enquanto o
'estado de natureza" anulava até mesmo a noção de Teme/Áanze, é
o inverso que se torna inimaginável para o cidadão bem adestrado:
que jamaispossaagir com retidão afirmando suasuperioridade, dLrúz-
gü;rido-ie como/rzdzvz'2lzo
(distinguir-se, em um concurso, como detentor
da competência, é outra coisa). "0 racional é a via principal por onde
todos caminham, onde ninguém se distingue." E quando se observa
que esseadestramento sempre se destinou a consolidar as desigualda-
des, quando se reduz a isso sua função, mascara-se a amplitude desse
ideal de "similitude", perdendo de vista, talvez, sua natureza. Essamo-
déstia de princípio, esseapagamento prévio do ego é uma figura de
normalidade que comandaratanto o comportamento dos dominantes
como o dos dominados que poderá até mesmo integrar-se a ideolo-
gias muito dessemelhantes.Há tantos tipos de Éo//zonz2z
funcionando so-
bre o mito da "similitude", que é pouco provável que esse"ardil" seja
característico de um modo de exploração determinado, ou mesmo do
fenómeno da exploração e muito mais provável que seja sinal de uma
necessidade de segurança.
De resto,falar em normalidade,como acabamosde fazer,ainda
é insuficiente. A palavra só seria inteiramente Justase a "similitude"
fosse apresentadacomo um dei/derarzzm.Ora, ela é mais que isso: é
uma determinação necessariamentepresente na coisa mesma que leva
o nome depó/h, e fora da qual não se poderia conceber nada além da
não-comunicação, do deslocamento de todo vínculo. Que aconteceria,
perguntava-se Platão, se os cidadãos não estivessem convencidos de
que a justiça está inscrita na própria pÃIZizs?"Os homens se deixariam
levar pela regavia da natureza que consiste em viver dominando todos
os outros, em lugar de servir ao outro segundo a lei.";: Se os homens pen-
sassemque apÃúú e'o reino do acaso e do encontro, quepó/zk resistiria
ao "ateísmo ético"? Assim, devem estar convencidos, como por instinto,
de que ao faltarem com os requisitos da equivalência infringem uma lei
da natureza. E a "similitude", muito mais que um conceito normativo,
que seria apenastema de edificação, será um conceito ontológico, que
permitirá evocar uma ameaça vital: "Todas as artes desapareceriam
se (na troca) o que o agente produzisse, em quantidade e em qualidade
ao mesmo tempo, não acarretasse da parte do elemento passivo uma
101
Y'
36. Id., Z)e a/zfma, 4i7 a zo; Z)e geaeralzone ef corrupllonq )24a 10-1 5
37.G. W Hegel, WZ, p. 7i5; trad. cit., i, p. 23).
io3
38. Id., Ert{., S i58, Zusatz, v. vu, P' 349; trad. cit., P- 588
Mas a morte, como toda marca de injustiça, não faz mais que atestar
a fraqueza do gênero biológico: longe de manifestar sua supremacia,
ele só destrói por ser incapaz de comunicar-see, com isso, manifesta
apenas sua impotência para /r a feri/ mesmo a ra á de iezz Ozzzro.Não
é, pois, verdadeiramente universal; não é Zzvrepoféncza.
"0 universal é
a livre potência (d/e.Pe;e MacÃt); é ele mesmo e se difunde em seu Ou-
tro, masnão ao modo da violência; pelo contrário, estáem seu Outro
pacificamente e Junto de si."" Potência inofensiva, pois, que só triunfa
aliondeé dispensada
decoagir.
Desse modo, parece que, para Hegel como para os clássicos gregos,
as diversas figuras da potência (espaçamento hierárquico, comando e
io5
Xo6 ÁdjaLéticapaciÍjcadora
supor que na pó/ü alguns estejam destinados a comandar, como o
adulto comanda o jovem ou o macho comanda a fêmea?
4z. Aristóteles, Po/ú;ca, i, iz, iz59b 4-8. Cf. o capítulo: "0 que é a autoridade?", in H
Arendt, BemeenFhl andFulzzreled. bus.: .Ehireopmsada e ojuiura. 5?ed. São Paulo; Pera
pectiva, zoo5J.
io7
:i l:::=:L:'t *'.
teca, quando mobützaaa a servra essas=luestoes oue nos reporta a ~
lo% Adialéticapaci$cadora
setorrla público o perigo de queum dos grandespolíticos e chefespartidários
em torneio se sin a atraído, no calor do combate, por meios perniciosos e des
trutivos e por investiam suspeitascontra o Estado. O sentido originário dessa
estrctnhctin.stituição, porém, leão é de uma válvula, mm de um estimulantes
oposto de Lado o indivíduo que se destaca, para que desperte outra velologo
agonal dasforças: um pensamento que é hostil à "exclusividade" do génio no
sentido moderno, mm pressupõe que, em uma Ordem natural d© coisas, hâ
setnpre 'párias gênios, que se incitam mutuamente a agir, como também se
mantêm mutuamente n.o Limite da medida. Esse é a núcleo da representçLÇào
helénica do a ghn: eta elegia a supremacict de um só e teme seusperigos, ela
deseja, como meio de proteção contra o génio um segundo génio'~
"Ela execra a supremacia de um só" mas apenas porque a luta pela su-
premacia aparece como o comportamento político normal. Esse texto
deixa transparecer um traço característico da "vontade de potência
mais próxima de um jogo que da guerra total, a luta é semprepela do-
minação, nunca pelo aniquilamento do adversário. "Nosso instinto de
conservação quer que nossos adversários conservem suas forças quer
apenastornar-se senhor deles(Hera üóeri;e werün)."'5 E é justamente
essetraço que, na interpretação do ostracismo, corre o risco de tor-
nar-seo mais desconcertantepara o leitor à maneiradessesfilólogos
inclinados a considerar inautênticos os versos de Hesíodo em que são
celebrados o ódio e a inveja, porque só podem compreender o combate
como um "ato de destruição" ( %ern;c/bfzzngs'tampa.
Essa insensibilidade
para o tema antigo dopó/emoi se voltaria, aliás, contra o próprio Nietz-
sche.facilitando os mais insanos contra-sensossobre a "vontade de
potência", entendida como desenfreamento bestial, frenesi criminoso
(como se, no entanto, a abjeta palavra de ordem nazista zwnz.õsuwcder
./üdiscÃenFraga [solução final da questão judaica] não fosse, ao pé da
letra, expressamenteantinietzschiana). Mas não é preciso evocar esse
io9
l?H:lK iu 8
;!:;HiHU BZ=:1:.1:1:'.11:
na A diabéticapacificadora
volta a ocupar, desse modo, um terreno fam.aliar ao pensamento grego:
saber enter ai oóyefõea, triunfar sobre o contraditor.'9 Mas traz, além
disso e sobretudo, a certeza de que desta vez erradicou-se a própria possi-
bilidade de objetar e de que a vitória é irrecorrível. Basta atentar para
essa certeza de$ecÃamenro, para que a imagem, que se tornou escolar,
do "tribunal crítico" e a incessantemetáforajurídica readquiramuma
importância insuspeitada: significam que as "vitórias" no campo da ra-
zão pura não são mais obtidas pela#orfa dos argumentos concernentes
à coisa. E então será possível restabelecer todo o alcance da analogia
proposta por Kant entre a passagemdo Estado de natureza ao estado
civil e a passagem,na filosofia, da era dogmática à era crítica:
torna-la compatível com a tiberdctde do outro e, por isso, com o bem comum?'
:'.:1::1:
força, ou seja,o retraimento, totalmente arbitrário, ao ponto de vista
49. "Estamos todos habituados a conduzir ainvestigação não visando a coisa mesma, mas o con
tradutor; mesmo quando trabalhamos sós,levamos a investigação até o ponto em que não temos
mais nada a nos objetar(a/zrz/&enz)"(Aristóteles, De caeZo,294b 7-lo). O contexto mostra que
Aristóteles não se satisfaz com essaparada de#acfoda investigação por falta de objeções.
5o. 1. Kant, Xrr) B, p. 493; trad. cit., p. 5i4
lll
l
]\l .4 djaLétjcapac'jic(dota
m;ca; uma recompreensão que fizesse suprimir a oposição (suposta pelo
Entendimento)entre ascategoriasemjogo na Antitética (continuidade/
discrição etc.). Somente a negatividade, desvendando a inconsistência
dessascategorias gueparec/am opoirm, é capaz de desativar para sempre
a polêmica, enquanto o idealismo transcendental limitava-se a amorte-
cer, com um estratagema, seu efeito mais escandaloso:
ii3
'Y'
quem apenasaparente.
de toda sjt:uaçãoconflitual:
\ \G .4 diabética pacificadora
O cutigo não melhora, porquenão passa de uma pmsividade ql-.d&e\Ü, de
um sentimento de impotênciçl diante de um senhor com a quilo crimin.osowão
tem nadaem comum e não quer ter nadaem comum; ,zâa/odepradzzÍz
r
sertãoteimosia, obstinaçãona resistência contra um inimigo cqo jugo seria
vergonhoso suportar, porque então o homem rerturtciaria a si mesmoün
ii7
v'
67. Jean Bernhardt, P/arda et /e maZéaa/úme ancien. Paris: Payot, i97i, p. 64.
68. Cf. o texto de Aetius citado por Bernhardt(p. 66): "Alcmeon diz que o que faz o vínculo
da saúde é a úonom/a dmpolérzcím, úmido e seco, quente e frio, amargo e doce, e assim por
diante, enquanto a monarquia de uma delascausaa doença: a monarquia de uma ou de outra
é destruidora
ii9
Y'
\ la .{ djaLética pcLcjficadora
costuma censurar a Hegel? A palavra significa, em linhas gerais, que o
filósofo maquilou o "concreto", a fim de pâr melhor um fim aos con-
flitos, reais e tenazes, "em Idéia"... E a réplica, então, é fácil: basta abrir
os olhos para ver que os conflitos não são nunca arbitrados pela Idéia,
que a proliferação da "plebe" não é nunca neutralizada pelo Estado
etc. Ao redor do "palácio de idéias" em ruínas,o agcínnuncacessou
de esbravejar. Mesmo assim, é notável que essapolêmica volte contra
Hegel a crítica que ele mesmo havia feito à solução kantiana das Anti-
nomias: Kant também era um "mistificador", já que a "solução crítica:
não havia erradicado realmente o conflito. Diante dela, a filosofia espe-
culativa é eminentemente "desmistificadora", já que toma o cuidado de
pâr fora de jogo apr( r;a /lüzgaagem
da agonúr/ca.E é por isso, definiti-
vamente, que Hegel se sai bem em todos os processos de "mistificação"
que puderam ser inventados contra ele tanto quanto Espinosa perante
os "imaginativos". O astrónomo, responde ele de antemão, deixa-se
impressionar pela opinião de que os astros são tão grandes quanto apa-
rentam? "Não mais que o capitão de um barco se incomodaria com a
opinião de que o barco está em repouso e as margens avançam."'' Por
que o filósofo haveria de embaraçar-se com "aqueles que apelam para
a realidade efetiva"? Todo o "concreto" que puderam acusar Hegel de
escamotear,ele não o recusa, ou não o recusaria; replica, otÜeplicaria,
que nós ojaZamoi aó.ffr'zramenfe. Não é agzzlZogazedesignamos por "luta
de classes" ou "poder de classe" que Hegel recusaria reconhecer; é o
sentido mesmo de /ula ou depoder que ele transforma. No escrito sobre
o Z);re;zonalzzra/ se encontrará uma página muito instrutiva a respeito:
121
da Razão clássica.
iz3
\ 2.4 .4 dietética pacjfjcadora
pficho, tiranicamente. Não pense safar-se argüindo da merapofénc;cz:
fa-
lar assim é blasfemar, supor que o equilíbrio está à mercê da mera força e
de sua irrupção aleatória e não é, portanto, nenhuma norma ontológica.
:TIS::
l::::l:;b':it-«;
.::.:;:llb
,.
8Z. Platão, Fádon, 99c
\ZG .4dialéticapaciflcadoía
O noüs re«: o pn vz/#z o dc,aró/rrárzo(Willkür), pode co«efar ü«' ve{ a pon
Laje, dependede si, enquanto todo o resto é determinado do exterior. Ele não
tem nenhum dever, e portanto nenhum calvo,tampouco, queeLefosse obrigado
a perseguir; se uma ve{ começoll com essemovimento e pâs um alvo para si,
uso era apenas cl respostaé di$cit, Heráctito teria completado um \ogo ';
127
'Y'
A idéia de epistemologia
) velha idectl cientíFco da episteme, o idecLLde um co-
nhecimentocient$co absolutamente certo e demomtrd-
vel, revelou-se um fetiche. .4 exigência de objetividade
=ientí$cü torna inevitável que todo enunciado científico
seja dado, e permaneçanecessariamente,e pata sem-
pre, a título de ensaio.
Karl Popper
* Extraído de J4anuxcnro,v. i, n' i, 1977 Tradução para a presente edição: Mana Adriana
Camargo Cappello
i. Michel Serres,Ze SWKrême
de-Lezónz'{.
Paras:puF,ig86, i, p. 65
iz9
)
z. Thomas Kuhn, .4 esirzzluradm re o/ufõei cjerzrgifaf. SãoPaulo: Perspectiva, í975) P' Zz3'
i3i
Y
7- Esse ponto é bastante esclarecido na bela análise das Regam feita por mean-Luc Marion=
Sur /'anta/arie gme 'íe Z)eicarzesParia: Vnn i975 / Zod óis zir bege/zwarrtO problema da
11
formulada em Aristóteles:
V54 4idéiadeepisternologia
a maior glória da "rarzo"), sua maneira própria deprodui;r enunciados ou
regras que possibilitam sua edificação: trata-se do estilo epãzemoZI)yzco-
Determinar dessemodo a idéia de epistemologianão é uma forma
enviesadade declarar: "só há epistemologia positivista"? Se assimo qui
serem... Por que não? Não somos solteironas pudicas e não temos medo
de palavrões. Mas, evidentemente, apenas sob a condição de que não se
entenda positivismo como a decisão radical de só reconhecer sentido às
proposiçõesda ciência empírica positiva o que, de resto, não deixaria
nenhum lugar ao sol para uma epistemologia.'; Digamos então que a
epistemologia, como saber emancipado, só pode nascer porque cinza com
apor/fzvümo desde que se limite cuidadosamente o sentido dessapalavra
ao que foi dito e elaborado no Curdode.ÁZoi(Z#a
posa/zvade Comte. Pois
parece-nos ser nele que, pela primeira vez, se vê com toda a clareza a ne-
cessidadeda tarefa epistemológica. Por quê? Porque esselivro de Comte
é o lugar de um debate incessante entre a Idãza de m.zl,üêi/ç -- à qual o autor
não chega a renunciar inteiramente -- e o FaX:fzzm (Zm c/énc; pari/czzZa-
rei, uma vez que cada uma destas, conduzidas a sua "condição enciclopé-
dica", revela-se em sua originalidade. É verdade que Comte nunca perde
de vista asidéias de "coordenação universal", de "método homogêneo"
Como tambémafirma que a matemáticadetém a chave "do modo uni-
forme de raciocinar aplicável a qualquer possível objeto do espírito hu-
mano".'' Mas, por outro lado, vemos ao longo do Cano que os obstáculos
regionais encontrados pela matematização não devem ser interpretados
como fracassos,mas como índices de uma revisão indispensável da no-
ção de saber e a matemática, que de início parecia ser o lugar originário
da "coordenação", nada mais é, no final, que a antecipação meritória, e
hoje "pe'turbadora", do advento do "verdadeiro espírito de conjunto".'s
O Ctzrxoé a desconstrução das Regi desconstrução trabalhosa, árdua
e feita freqüentemente a contragosto. Sim, a astronomia é certamente "o
tipo mais perfeito do método universal que devemos aplicar, /anãogua/zra
poiiúeZ, para a descoberta de leis naturais" -- e é recomendável. antes de
nos lançarmos nas dificuldades da física, examinarmos "um tal modelo"
Mas esse"modelo" deve manter-se como uma idéia reguladora com vistas
i3 Cf. K. Popper,Zag;gaze
de /a dácoz erreiczenfz#gzze.
Paria:Payot, s.d., p. 48 [ed. bus.:
Z(#z ca dapeiglzúa cze/zrz@fa.São Paulo; Cultrix, r97i].
r4' Cf. AugusEe
Comte, Colzrs,
prefácio,p xiv; aula íg, p. r3 [ed. bus.: Geriade//aic#a
poiztil,a, in Comze.São Paulo, Abril Cultural, i978 0s pensadores].
i5. Id., ibid., aula 58, pp. 39i-gz; aula 59, pp- 4z6, 468-6g e Jzi.
T
i7- Gaston Bachez8' PZal5;'/o aula 5íÍ 493 e ]97' Canguilhem, -Etudei d'Xísroíreet de
PÀ. Immanuel Kant, Pragrês de /a má al)/p=lgue- trad. Guillermit. Paras:Vrin, s.d., P. 88.
ig' "De certo ponto de vista, todo juízo cientíâco é um acontecimento.O pesquisadornão sabe
como encontrará aquilo que eje procura; se não fosse assim, já estaria ali ou visível. Talvez seja
a ilusão de uma época, posteriormente refutada, que teria levado a estabelecerum fato, que
surgiu onde não se esperava, no final de uma pesquisa, sem dúvida esclarecida pelos erros da
anterior, mas inconsciente, então, de seu próprio fuNro. Negar essaeventualidade seria admitir
que só há ciência na exploração de idéias ou fatos e nunca na invenção deles. lutaspara além
da palavra "sabemos", há "nem sempre soubemos". Na sombra dessa negação no passado se
dissimulatoda a história de uma questão. E essahistória deve ser escutacomo uma história e
não como uma ciência. Como uma avenmra, e não como uma exposição"(G. Canguilhem,
Xornzafzon d canceprde riWexe, ailx xr//' ef xr///' iíêc/ei. Paras: pur, i955) pp. l 56-57).
i37
Y'
111
\ 3$ .4 ideia de epistemologia
di{ a respeito da "ciência normal" e do paradigma não dil. respeito à evolução
do conhecimento emgera/, m c2e o/tufãode disciplinas particulares.:'
Ora, não seria esta a mais bela homenagem que se poderia render
ao epistemólogo Thomas Kuhn e ao poder fortemente corrosivo de
seulivro? É verdade que, ao fecha-lo, não sabemosmuito bem o que
é zzma c/é/zc/a diante do Eterno. Nem se "zzm.z re o/zzfâo c;enr{7íca" é
um conceito que pode ser definido em duas linhas, uma vez que ele
tem tantas figuras, e que elas são tão variáveis no tecido científico,
os remanejamentos podem atingir escalas muito diferentes, e mesmo
uma ruptura tão nítida quanto a mecânicaquântica pode afetar cada
uma das disciplinas da física de modo bastante diverso... Mas sabe-
mos, por outro lado, que não interessa muito querer a todo preço
abrigar, por recorrência, a dinâmica de Newton na de Einstein. Sa-
bemos que a "ciência normal" nunca olhou para o céu da Verdade,
mas que trabalha simplesmente para resolver seus "quebra-cabeças:
a partir de uma "matriz disciplinar" que é composta de elementos
bastante heteróclitos, e que não é posta em questão a não ser nos
momentos em que há necessidadede redistribuição e de redefinição
de conceitos. Sabemosportanto que é inútil procurar traçar a curva
de algum tipo de progresso cumulativo das ciências e que, de resto,
é preciso deixar a palavra "progresso" para a retórica da banalidade.
Exemplo: quando Dalton decide que vai considerar como processos
químicos propriamente ditos apenas as reações cujos ingredientes se
combinem em proporções fixas, trata-se realmente de um "progresso
da química"? Proclamarei, para usar uma divertida frase feita, que
Dalton fez a química dar "passosde gigante"? É muito mais esclare-
cedor, acredita Kuhn, observar que, depois de Dalton, as manipula-
ções químicas não têm mais o mesmo sentido, que "os químicos não
estabeleceram novas leis experimentais, a partir de Dalton, mas uma
nova forma de praticar a química".:' Não um "progresso", portanto,
mas um novo olhar, uma nova prática que compete à epistemolo-
gia inventariar. Mesmo que essecomentário leve ao rompimento ou
ameacea unidade essencialde uma ciência, não faltarão a Kuhn ava-
listas. Concedamos a palavra a François Jacob, esseoutro iconoclasta,
i39
'Y'
=;i:=UI,=;g=.=:':==1==.=':;:.':E
l:
verdade", mas "constrói a ciência
lv
i4i
em mapa específicose bmtante detalhados.
i43
l
t Extraído de .4/anmcnro,v. i, n' z, i978. Tradução para a presente edição; Mana Kawano.
++Dada a dificuldade de encontrar um equivalente exato em português, optou-se por manter
o termo francês do título original. Seu uso pode ser atestado em nossa língua pelo verbete
óoülade" do Z)/clonar/a .floaaiss de/úzgüaporrugi'eia; "I. tirada espirituosa ou engraçada;
z. pensamentoou dito sutil, original e imprevisto que freqüentementecontrariaproposita-
damentea verdade;3. capricho
i. David cume, .4n .E@üíy Corzcernfrzg Haman UnderTianórzg(EHCD, in Jíumek Engzz;nei, ed.
Selby-Bigge. Oxford: s.d., p. 7o; trad. francesaAndré Leroy. Paras:Aubier, i947, p- l4o
i45
'\
lllS:lZ::Zlll=:i':;'b
=
i46 4boutade de C#aríng-Cross
é a "causa" de um efeito familiar, a produção deste se deve ao poder que,
assim o julgamos, estaria ligado às qualidades simples daquela causa.'
É então que uma segunda ilusão se soma a esta: ao considerarmos um
outro aspecto do ato voluntário, acreditamos descobrir na rede da necessi-
dade um ponto de indiferença, de "relaxamento" (Zooieneia).'Com efeito,
e/tireo moncoe a Grão,não há mais como sentir ou acreditar sentir a mani-
festaçãode uma força coagente; antes o que se percebe é uma ürermpfâo-
Não falta mais nada para que sejamos"levados a supor que há uma dife-
rença entre os efeitos que resultam da corça material e aqueles que nascem
do pensamento e da inteligência".8 Nasce assim o "livre-arbítrio"
Da idéia de que a vontade submete o corpo extraímos então a idéia
depoder; da constataçãoulterior de que a própria vontade não estáapa-
rentemente submetida a nenhum poder, extraímos a idéia de #óerdade.
Isso é o mesmo que dizer que a ilusão da "liberdade", entendida como
ausênciade causa,é a consequência da sobrevaloração, igualmente ilu-
sória, da necessidade "da idéia adicional (some$arzÁer;dea)"' com que
ela foi onerada. Quando já não é mais possível utilizar esseesquema
energético, os homens imaginam haver uma ruptura da necessidade.
Isso ocorre porque eles interpretam a conexão necessáriacomo difusão
de uma força. A exigência forte demais é o que gera a exceção abusiva.
Para desmontar a ilusão, tomar-se-á o exato contrapé desseprocedi-
mento; após ter mostrado que a conexão necessária,onde quer que ela
ocorra, nunca é o indício de uma conexãoreal, e que seu único crité-
rio legítimo é a conjunção constante, "como há a mesma constância e a
mesmainfluência que naquilo que denominamos evidência moral, não
peço mais nada. O resto não passade uma disputa de palavras".:'
Essaanálise já permite pressentir que não é à custa de uma defini-
ção laxista da necessidade que cume pretende identificar a causalidade
i47
}
que noutros"].
i49
\ '
> taiscircumstance,
of voLurttaryor
involurttaty,
thefoundation
of theirwhoLe
tlteoq"q\&..En-
gulo' conter ;rzg rÃePn7zc#/eiof .44ora&,in ]7ümeb E/igzzínei, ed. cit., p. 268; trad. francesa
A. Leroy, ed. cit., p. i85) ["Tratando todas as questões morais no mesmo pé de igualdade
que as leis civis, as quais são protegidas pelas sançõesde ganho ou punição, filósofos, ou
melhor, teólogos disfarçados de filósofos, foram necessariamentelevados a tornar essacir-
cunstância,do voluntário ou involuntário, a fundação de toda a sua teoria"]
r6. Id., ibid., p. z67; trad. cit., p. í83.
i7. Id., 77/W]p. 6og; trad. cit., p. 737-
'7'
Certamente Hume deixa bem claro que se trata de entrar em acordo com
o "commonme". Mas seria essapreocupação forte o suficiente para im-
por-lhe a tripartição: conÃec;me/zzo
demo rraf/ o;prova : argumentos
de causação "completamente livres da dúvida e da incerteza";/roóaó;i-
dade = "evidência que ainda é acompanhada de incerteza"? Não temos
aí praticamente restabelecidaa dupla "necessidade/contingência"?
Não. Pois não é a mesma coisa dizer: "abaixo do certo, há o prová-
vel" e "fora do necessário, há o contingente". Na segunda fórmula eu
reafirmo o sublunar.Com Aristóteles. Contra Leibniz. Afirmo que não
pertence mais à essência de César atravessar o Rubicão do que, à minha,
serdesviado para Egina quando me dirijo a Megara: o acidental é o que
está fora da essência. Na primeira fórmula, não chego a dizer tanto. Não
faço senãodistinguir, por comodidade, duas rubricas da experiência, as
quais me abstenho de transformar em duas regiões do ser: a) as causas
tais que "jamais se encontrou caso algum de falha ou irregularidade
em suas operações"; b) as seqüências tais que, no passado, "diferentes
efeitos se seguiram de causasque, ao gaze
parei/a, eram exatamente si-
milares",:' ou seja, as seqüências nas quais a causa tenha sido circuns-
crita de modo grosseiro demais para que, de uma ocorrência à outra,
ela continue a agir "todas as outras coisas permanecendo iguais" e para
ig. Id., E#Z7, p- 56; trad. cit., p. io3. "One wou Uappear n'diczzZom,
wÃowozz?iaW rÁar ú on/g
proÓaó/e Àeiu/z w;// rúe ro-morros«"(Id., 7'HW. p. iz4; trad. cit., p. zo5) ["Faria uma figura
ridícula alguém que dissesseque é apenasprovável que o sol aparecerá amanhã"].
zo. Id., /2/a] p. 47; trad. cit., p. io6(grifo de Hume)["m z)ufa/zce
Á everyefóeen#ozznd
oV'
anyjaiture or irregularity in their operation"; " di$brent eaectscave beenjourLd tofoLlow from
carnes,wÃícÃare to appearance exac/g xzm;/ar"].
i53
Y
Não se deve entender que a universalidade das leis não ie/a menoipre-
fáría nas ciências naturais do que nas ciências morais. O inverso é que
é verdadeiro: a incerteza das açõeshumanas ou das reaçõesfisiológicas
"/zâoá aupenoràquela que podemos observar cotidianamente nas ações
da matéria onde. devido à mistura e à incerteza das causas.o efeito é
com freqüência variável e incerto".zs Noutras palavras, não é ;mpoisÉ
pe/, sem dúvida, que, no passeio de Charing-Cross, minha bolsa cheia
de ouro saiavoando, no sentido em que é //npoiiúe/ que a soma dos
ângulos de um triângulo equivalha a mais de dois ângulos retos. Mas é
bom que o objetor evite os gracejosóbvios demais:ele deve saberque
em Charing-Cross, naquela manhã, não era de modo algum possível
que minha bolsa saíssevoando, nem tampouco que as leis da natureza
fossem subitamente suspensaspor um Gênio Maligno zombeteiro. Con-
siderando melhor as coisas, o que se anuncia aqui é o advento de um
gênio até muito bom, pois a óozzrade
significa também que o Detetive
supremo que saberia quem deveria passar pela Charing-Cross entre
meio-dia e uma da tarde, conheceriaa fundo a ficha antropométrica
de cada um desses passantes e adivinharia seu temperamento e o seu
z5. Id., ibid., p. 67; trad. cit., p. i35. "]-.] wÀen mediclrzei operara nof w;fà zÀefr wo/zzedpower=;
whenirregular eventofaltam $om any particular cause, the phitosopheTand physician are not
stl,pd'ed at !h' «''aiteí, n« «e «e, temptedto deny, in geK«aí, the n«e«ity -í unia.«.iy of
thoseprhcipÍes by whick the animal economyis conducted:'
z6. Id., 771W,p. i3z; trad. cit., p. zi5
i57
'7'
=X:;:=Ell;=='=i':::=:====
Z8. Id., 7:rlW, PP. z47-48; trad. cit., p. 338. "/cave zrt#err'2.eram rÁeiepn'nczb/ea, fÁat a co z'der
he ínutter Q piãori, any thing nLa# produce any thing, and that we shaLI Rever discover Q remou.
phy any oblect rnay or nlay not be the caule af CLnyotheT, however great OThowever littlc the
esembLartce
may be betwixt trem. Tais eviderttly destToysthe precederttremoning cortcerning
he ccLuseof thought orperception. For tho' there appear no manrler ofconnelian bctwüt motion
or Apagar,the cause is the some with all other caules and effects [-.].7oü re on ao Á rÓ
vhenfTom the mare cortsideíation of the idem, you conclude that 'tis impossibLemotion can ater
produce thought
i59
fofo e o médico
i6i
seria apenasmais um lance do funâmbulo.
Essa conclusãoseria, no entanto, precipitada, pois, embora seja
;
com isso, qualquer hipótese que suponha que o refinamento de nossos
sentidos poderia fazer-nos penetrar o interior das "potências" que ani-
mam os corpos, afastando também qualquer ficção que permita fazer
acreditar que a essência das energias da natureza seja compreensível. Já
não se poderá dizer, com Locke (pois é Locke que Hume visa em pri-
meiro lugar), que se "a visão do homem fosse, com a ajuda do melhor
microscópio,mil ou dezmil vezesmaissutil do queé [...] eleestaria
assimem melhores condiçõespara descobrir a contextura e o movimento
das pequenas partículas das quais cada corpo é composto".;5 O desen-
volvimento da acuidadevisual, por mais prodigioso que se possaima-
gina-lo, não nos permitiria dar sequer um passoadiante no ser dapÃúà,
que permaneceria, como antes, znre;ramenfedexconÀeczda.
.E áprecüo gaze
seja assim para que se combinem perfeitamente "ceticismo limitado" e "Fto-
1(?#aexpenme/zra/". Resta-nos entrever por quê.
Hume gosta de notar que sua filosofa só trará desapontamento
para aquele que não perde asesperançasde chegar "ao princípio último
e original" ("af zÃeor&;Pza/ and z'Zr;mafeprüc@.Ze") e que não se satisfaz
com conhecer "as causas imediatas" ("zÃe ;mmedare camas")." Se essa
pretensão continuar sendo algo mais que um sonho vão para nós que fe-
chamos o 7rafado, "quão desapontados não haveremos de ficar" ("Ãow
m / we óeclhappo;rz/ed").O único resultado de nossaleitura terá sido o
de "fazer com que experimentemos sentimentos tais que parecem tor-
nar ridículos todos os nossos esforços passados e toda nossa indústria
e desencorajar-nos de futuras investigações" ("üro iucà .feno/me,'zx w
soem to Lura indo ridicule all our pmt paira and industry, and to discourcLge
m.»rom$arz'reengz'zr/ei"). Com efeito, já que não há conhecimento ra-
cional possível sobre as questões de fato (malfer= of#acl), o Zrarado não
poderia senãofazer eco à declaração de Locke : "A filosofia da natureza
não é capaz de ser transformada numa ciência".3' Pelo menos seria esse
o sentimento do leitor que insistisse em confrontar a certeza demons-
trativa com a certezaprópria dasquestõesde fato (maffer30Íjacr), a
referência que o saber da experiência faz ao ideal de um conhecimento
"perfeito, claro e absoluto das coisas que nos circundam", é que faz
i63
t64 .4 boutade de CÀarzrzg-Cross
ponto, Locke toma Descartes ao pé da letra: estando estabelecido que
uma tal certeza, na física, está fora de alcance, nela não podemos saber
nada,propriamente falando. Essaresignação é o suficiente para mostrar
que, muito embora a evidência demonstrativa não possa ser transferida
para as questõesde fato, ela pode continuar desempenhandoo papel de
escala de apreciação.
Para que essehorizonte dogmático seja abolido com o pessi-
mismo epistemológico que ele tornava inevitável , é preciso que te-
nhamos certeza de que não haja maü nada na causaçãoalém da união
constante,e que a ambiçãode "ir mais fundo" seja algo que, além de
não ter um objeto preciso, esteja fadado ao fracasso. Com base nisso
podemoscontinuar dizendo que o entendimento humano é ;ncap.zi.de
desvelar os "poderes" da natureza. No entanto é preciso cuidar para
que a palavra zncapai.não venha a significar ou sugerir uma privação,
um fracasso: um ser não poderia fracassar na realização de uma tarefa
que não faria sentido algum para ele. Por exemplo, temos nós o direito
de dizer que nosso entendimento nâo comegaecompreender como se dá
a comunicação do movimento? Locke pensaque sim:
,4 cada dia, a ncperiêrtcia nos fornece idéim claras tanto do movimento pro
du +do pela impukão como daquele produltdo pelo pen.lamento, mw nós não
podemoscompreettdercomo isso seÍal.. Em ambos os caos nossoespírito se vê
igualmente no limite de sum forçmi:
Aqui, portanto, alguma coisa quepoder;a ier irra nos é furtada (por
Deus, movido pela preocupaçãocom nosso bem-estar neste mundo)
Bem diferente dessamiopia do entendimento é a "ignorância", segundo
Hume: desta vez, /zãoÃá nadapara ier velo, e portanto a limitação da
experiência não nos pr;va de nada que seria acessível a um entendi
mento mais capacitado.
Essadistância entre Locke e Hume pode decerto passar desperce
boda.E Locke não chega de fato a afirmar que a contextura dos corpos
é incompreensível para nós? Sem dúvida. Mas qual é a conclusão que
ele tira disso?:
i65
43.Id.,ibid.,iv,3,S i6,P. 45zl
P.iio.
44 D. Humq EHU, P' 5o;trad. cit
45. id., .4/z,4ósrracr, p' 7i'
i67
Além-do-homem e homem total
* Extraído de ]141znmcnzo,
v. z, n? i, i978. Tradução para a presente edição: Mana Lúcia M
O. Cacciola.
i. Adotamos aqui a tradução a/ém-do-domempara a palavra [BermemcÁ,seguindo a sugestão
de Rubens Rodrigues Torres Filho, que também é seguidapor outros comentadoresbrasilei-
ros de Nietzsche.A justificativa pode ser encontrada no comentário léxico de Torres Filho à
sua tradução do Zarafmfra, in JVieiÍscAe.São Paulo: Abril, ig8o Os pensadores, p. zz8
i69
desarmar a bela alma desconfiada. O que encontramos nessestextos?
Antes de tudo, uma "parábola" para um novo processode apmcenra-
menio jamais praticado na história:
WW ,
de modo mais esplêndido?
i7i
Y
lu
\x. V. Eng$Xs, Herrn Eugen Dühàngs Umwállungder W'issemc mÍt (dnti-Dühringb; txaa. {lan
ceia in Oezzl,reico/np/êles,ed. cit., p. 3zz.
iz. K. Marx, Grzzndráçie,
trad. cit., pp. 63-64.
i3. K. Marx e F. Engels, Z)ze dezzncãeJ2/eoá)gze(Z)O;trad. francesa. Pauis: Ed. Sociales, i953) p. 67.
r4. Conceito empregadopor Hegel para referir-se à "História do Mundo", enquantoestaé ma
nifestação do Espírito Absoluto, possuindo um sentido.[N.T.]
i73
'v'
i8. O autor serefere à coleçãode imagens de Epinal, igreja gótica e romana, a lestede Paria.
[N.,.]
ig Texto dos Grunc/ríçsecitado por K. Papaioannou, in .44arxef/ei mzarxüfer.Paras:Galli-
mard, s.d., p. zii.
zo. Vladimir Lênin, Z)ezzxr'zcl;grei de /a iodcz/-dZmocra/z'e]tgo5]. Cf. a seguinte passagem
de Engels (i848), citada por R. Dangeville no seu interessanteprefácio aos textos sobre o
Para' de cZmse.Paria: Maspero, i973> b p. 63: "Continuai a combater valentemente, graciosos
senhoresdo capital. Durante o curto momento atual ainda temos necessidadede vós; é-nos
preciso mesmo, aqui e ali, vossa dominação. Deveis varrer para longe de nossocaminho as
formas patriarcais(pré-capitalistas); deveis centralizar; deveis transformar as classesmais
ou menos possuidoras em autênticos proletários, em recrutas para nós; deveis com vossas
fábricas e redes de comércio fornecer-nos a base e os meios materiais necessáriospara a
emancipaçãodo proletariado]-.]"
zx. F. Engels, .La Gzzerrecl l/e izzisxe,in .f)arr/ de cZmie,trad. R. Dangeville, ed. cit., p. 34-
i75
' .
H
\ l6 Além-do-homem e homem Local
instituía mas de modo bem explícito entre o saber imediato e o saber
especulativo, ou ainda entre o Cristianismo e a filosofia.:s Esta homo-
logia nos Grzzndrüse
é gritante: notem que se trata semprede abolir as
limitações, de derrubar asbarreiras, de fazer os bloqueios ir pelos ares,
para devolver o livre curso ao crescimento ou ao destino da humani-
dade que as relações de produção, que estaríamos tentados a chamar de
representativas",ocultavam e entravavam.Pois ocorre o mesmo.com
a relaçãoentre a religião e o Saber Absoluto hegeliano: o capitalismo
também não diz outra coisa que o socialismo, mas o diz de modo de-
sajeitado, absurdo; cabe a nós instituir a verdadeira sintaxe... Prossiga-
mos com a transposição: para que seperguntar quais seriam os limites
de validez do tipo industrial de desenvolvimento tomado como base e
como norma? Hegel alguma vez se inquietou com o fato de que o Cris-
tianismo fosse "o texto" da filosofia? Uma despreocupação responde
à outra. Mas então nos surpreendemos um pouco menos com o pouco
interesse de alguns textos futurológos de Marx: eles servem exatamente
para mascarar a dificuldade, que não deve ser evocada. Em suma,ci-
nismo à parte, essestextos anunciam maravilhosamente o i/otan que
Stalin terá a tranqüila audáciade lançar durante o Grande Expurgo: "A
vida tornou-se melhor, a vida tornou-se mais alegre". Mas, em vez de
nos dar uma idéia de como nossos netos empregarão seu tempo (pesca
de manhã, educação à tarde...), o que nos interessaria é saber em que
terá sido transformada a atitude em relação ao trabalho e à indústria, ou
como repercutirá a cooperação"voluntária e consciente" sobre aque-
les que a praticarão. Não uma nova utopia, mas pelo menos as gran-
deslinhas de uma perspectiva que nos indicaria em que a .B//dzz/zg
teria
mudado de direção, em que haveria mzzrafão.Tomo aqui o leitor por
testemunha: ele não deixou de ouvir narrativas de viagem de "simpati-
zantes" que voltam dos países socialistas. Deixemos de lado o stalinista
impenitente que ainda se arrisca em falar de reeducação pelo trabalho
ou o simpatizante "vitoriano", que Ihe assegura que prostituição e ho
mossexualismo desapareceramlá como as ciáticas na gruta de Lurdes;
deixemos de lado as narrações de milagres e de "maravilhas". Não fi
camos chocados com a ;m@;de{ da apologia? As pessoas na rua têm um
z5. Encontraremos em Engels (Z)ía/ecfz'güede /a na ure, trad. cit., p. i83) uma descrição do
capitalismo como reino da imediaticidade, no sentido hegeliano: incapacidade de preve' "as
conseqüênciaslongínquas dasações", de planificar
i77
i
i79
'Y
i81
'T
"'u :.:::==!%.=:=:.;!=
x;:::i: 3E :a:i'=,u=ii:=.'ri::;'i:;n.=.RT
i=:==á
Impelida por sua avidez imaciávet (.m clmses dirigentes ) não dirãojamais=
bata, até que$naLmente a opressão atiça seu apogeu e se torne absoluta-
mente in.suportáve! e que o desespero dê aos oprimidos a força que sua coragem
anu/ada Áá séculosnâopódÉ dar-ZZes[...]. Z)ora an e fazeinão lazer.zrãomaü
no seu selo um indivíduo qualquer que nào se contente em ser e permanecer
semelhante a to(ios.
3z- Johann Gottlieb Fichte, Z)exlírza/londe /'Zomme, trad. Mentor. Paras: Union Généraie
d'Éditons, ig65, p. zz7
33' Operar sobre as tesesfilosóficas é, por exemplo, pretender fazer a partilha daquilo que
havia de utilizável para Marx na dialética hegeliana e daquilo que ali havia de "metafí-
i83
l
Essa "raça futura", não a pensemos, pois, em relação a nós, nem no com-
parativo, nem no superlativo. "Pode até mesmo ser que essaraça futura
pareça pior que a presente, pois ela será mais franca tanto no bem como
no mal.";9 O além-do-homem não poderia fazer figura de "fim último"
de poiso processo histórico. Não poderia ser o tema de uma predicação:
36. Martin H eidegger, ]VierÍscÁe,v. n; trad. francesa. Paria: Gallimard, s.d., pp. li7-i8.
37. F. Nietzsche, Ecce pomo, in merÉe, vm, ed. cit., p. 338led. bus.; Ecce como, trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, l995].
38. Id., WZ4,n? iooi: "0 alvo não é a humanidade, mas o além-do-homem
39.id., C/nex'zgemã/7e
BerracÁrü/zgen,
iv, in ed. cit., n, p. 384;trad. cit., p. z94-
i85
l86 ,4/ám-do-domem e domem !ofa/
a toda pedagogiano sentido tradicional: "Não mais falarei ao povo: é
pela última vez que falei a um morto [...]. É aos solitários que cantarei
meu canto". Não mais se trata de designar aos homens o futuro do goza/
sãoporradorei.4zDeve-se ousar dizer-lhes, ao contrário, que jamais houve
ainda humanidade, mas, sob essenome, um desmoronamento crescente
de forças, compensado pela formação de um mito: "a espéciehumana"
como ser coletivo investido de uma missão. E as idéias adquiridas de
m'zrzzrafãoda ÃÚ/ór;a, de e o/zzfão,de processo,são apenas figuras dessa
fabulação mórbida. Outras tantas variações que executam, sobre o tema
da rega afâo da Ãzzman;Jade,"os doutores do alvo da existência". Outros
tantos modos de esquivar-se da única questão pedagógica séria: que tipo
de homem deve-se querer? Questão radicalmente nova, essa,porque não
visa mais a dar aos homens o universal que lhes tinha sido ocultado ou
injustamente subtraído; ela não prolonga o Z)ücürTOioóre a dei&uaZ2ade;
ela não desemboca mais num novo "alvo da existência". mas numa nova
maneira de pâr a questão " JmoÍzz?","para que fim? "
A novidade dessaproblemática é percebida particularmente bem no
primeiro aforismo de Gazec/êrzcza.Até aqui, diz Nietzsche, ninguém ousou
'desvelar a comédia da existência". Ninguém ousou te representar "em tua
miséria de mosca e de rã". É que "os doutores do alvo da existência" não
querem de modo algum que "ríamos da existência e de nós mesmos". Eles
propõem também ao indivíduo um fim que efetivamente o torna, "por al-
gum tempo, interessante a seuspróprios olhos", de modo que os homens
têm doravante necessidadedessa"confiança periódica na vida", que lhes
foi infundada. "De tempos em tempos, o homem deve crer que sabe por
que existe..." Mas, em realidade, a despeito de todos tanto doutores como
discípulos , é somente o ü ereise da expúze que é protegido, a ioóre ; é/zc;a
da expéc/eque é garantida por um pouco mais de tempo '; Também nada
i87
i994,PP.94 e ss'
45- F. Nietzsche, }P:/U,n: 864.
46: F. Engels, .4/zrz-Z)ÜÁrzng.Cf. Z,e RÓ/e de /a pzo/erre dam /'Züfaz re, rrad. Botigelli. Paria:
ÊditionsSociales,
i97i, pp- 3i-3z
47. Personagem criado por Henri Monier para caricaturar o pequeno-burguês limitado e
satisfeito consigo e cujo conformismo seexprime em solenesbobagens.[N.T.]
i89
senso comum", em todo caso, as engole como hóstias. Elas são, ao que
parece, indispensáveis a todo prometo revolucionário; estão integradas
ao "humanismo". Não queremosdizer que o marxismo se reduzaa
como um "analisador"? .
Há um outro temaotimista e "humanista" que a literatura marxista
::m==:=':i;=':'z=tn:Uh?3:==1;1'
de vida genérico, de que o indivíduo não seja mais que um ser gene-
rico determinado", esta "evidência" está gravada na base de apoio do
marxismo. Ela é mesmo indispensável para a definição da consciência
48. K. Marx, iUarzmcnn de 1844, trad. Bottigelli. Paria: Éditions Sociales, s.d., p- go'
ÉI
i9i
i
Domesticação ou adestramento
espécie,enão noindivíduo
i93
\ g4. '4Lém-do-homeme homem total
de poder que ele pretende exercer gozandochegarsidavei.. Parece-me que é
na vizinhança dessaidéia (reencontrada hoje por Cornelius Castoriadis)
que é preciso buscar compreender o "aristocratismo" de Nietzsche. Signi-
ficaria então que, em ie furando da -8zZ2tz/zg,
de nada serve subverter a
organização social, se não se educa (ou se não se permite que se eduque)
uma ozzrrahumanidade, zzm.zozzlr'zr'zfa. "Chega um momento em que
o homem tem um acréscimo de força a seu serviço: a ciência conduz a
estaescravidão da natureza. O homem beneficia-se então de lazer para
formar-se como algo novo, mais alto. Mo a arúrocrac;a."54
De onde poderiam vir esses"aristocratas", essessobreexcedentes
livres o bastantepara sedesprender da decadência?Do próprio excesso
dessa, é certo. É a única resposta possível. E é por isso que os espíritos
livres devem ser os últimos a querer por um fim à decadência."A igua-
lação do homem europeu é o grande progresso que não podemos parar;
deveríamos ainda acelera-lo."ssAté a chegada do socialismo? Por que
não? Não é impossível que o socialismo deva ser o gestor mais eficaz
dos termiteiros por vir. As experiências socialistas serãomesmo indis-
pensáveis: é unicamente ao tê-las atravessado que nos convenceremos
de que a nossa "civilização", decididamente, não mais oferece recursos
políticos contra o envilecimento. É somente quando, contra todas as
expectativas, "a voz rouca" do socialismo tiver "retomado o grito de
guerra: o máximopoiiúe/ de Enfado" que irrompera, com força ainda
maior, o grito de união oposto: "o múímopoiiüe/ de Exf.zdo".sóSe a
escaladado "socialismo" é desejável, é porque ela acelerará prodigiosa-
mente a "dZcade/zce":"as mesmas condições que desenvolvem o envile-
cimento do rebanho desenvolvem também o condutor de animais".s7
Reencontramos aí um esquemabem conhecido: a salvação surge
somente no ponto de extremo perigo. Não é impossível que por esse
traço, Nietzsche, em que Ihe pese, pague seu tributo ao século xíx. Mas
isso é tudo que ele Ihe concede: quanto ao resto, o além-do-homem
guarda seu anonimato. Tratar-se-á de uma casta de engenheiros prome-
téicos voltada à exploração planetária? Não parece, ainda que o reino do
i95
58. F. Nietzsche, W7H,n? 764-
59-id., ibid., n? 8g8.
6o.ld.,ibid.,n' 998
6t . Aristóteles, Po/z'rica,ni, i3.
6Z. Id., Homens }HeírÉa/np$ in }«érre, ed. cit., v. i.
i97
não é sem tempo, meus amtgosf
i99
:==::U;Êri
ua--u '"' '' '
::ji=i:.=:i?;:i=; =\l:==r;',=2b:lE
tal em face da razão prática, contribuiria
longedeserumanoçãomargi , . .: i..;.'...-..-----.
üiiiiiün x lvTy
para garantir a supremaciada razão prática. É essaa hipl
201
'Y
9. G. Krüger, ' 43'lg ra/e cÀe{Kart, trad. Régnier. Paras:Beauchesne, ig6i, P. iZ9'
io. Cf. 1.Kant, Z)erSrrezldérÃaÉü/ ãlen(S/re;f)[0 conflito das faculdades], in Kann Geiamme/ e
ScÃ/#en,v-vn, p. 8g.
[i. ]d., ]@r', p. 5z5; trad. cit., p. 546
lz. A primeira formulação, diz Kant, refere-se à forma da máxima (universalidade) a se
funda, à matéria da máxima (finalidade) a terceira, a "uma determinação completa de
todas as máximas [-.] a saber, que todas as máximas derivadas de nossalegislação própria
devem concorrer tanto para um reino possível dos fins quanto para um reino da natureza
(Grz.nd/egzzrzgJ
p- 436; trad. cit., p. i63)
zo3
f
tempo, o ponto de vista de todo ser racionável enquanto legislador"'; --
é conscientizar-me de que pertencer ao "mundo inteligível" é a mesma
zo5
pouco que sela,divisar um ultramundo.
207
outro aspectoda atividade autonómica: Cabe aqui insistir, com Krüger,23
no fato de que as leis morais ião amóémma/zdamenros
e que, portanto,
comportam 'conseqüências"-- cabeaqui recordar que, por m;ior que
seja o rigor com que Kant exclui tais efeitos enquanto motivos para a von-
tade . ao mesmo tempo e/e com;dera irzre;rama/zre/zafzzra/que essesmesmos
efeitos este)ampresentes". Desde que fique claro que a efetuação do reino
dos fins não poderá, sem contradição grosseira: constituir o motivo para
a obediência à Lei, também é verdade que essaIdéia deve ser muito mais
do que um esquemacamada que apenas servissepar; conferir um sentido
mais concreto à máxima da universalidade. Assim poderia ser se o ato do
sujeito autónomo consistisse simplesmente em dec/arar-semembro, de di-
reito, de uma ordem supranatural. Ora, o sujeito autónomo, como vimos,
está multo longe de tal soberba -- de tal estilo de "grão-senhor". O que ele
afirma, em cada zzmde sem aios, é apenas.que o reino dos uns do qual eie se
torna digno poderá adquirir a realidade de uma natureza -- e que a sua açao
desinteressadade hoje contribui para a produção futura desseefeito.
11
O efeito subietivo desta Lei, querdiTer, Q intenção conforme a esta tei e por aLcE
Lecessitctda,
de trabalhar para 'ealilar o Bem Soberanopraticamente possa
ve/Jsupõe, pelo menos, que este último seja possível leria prarzcamenre
mpossÍvel almejar o ob)eto de um conceito que, no fundo, seria volto e ca
"«te de objeto"
zo9
l.to Um,a.escatotogia para a moral.
tive, foi porque elesconcentravama "moral kantiana" na estrita obser.
vância da Lei, como se a moralidade devesseconsistir exclusivamente
em sentir o seu impacto. Mas o imperativo, por si mesmo, não ordena
nenhuma ação; .ea moralidade é também oprÚe o de ag/r sob a Idéia da
autonomia. Portanto, ela ramóé/né "causalidadeno mundo", como re.
corda o prefácio da ReZzk;ão.E, desseponto de vista, é impossível que o
homem "se atenda unicamente ao que prescreve a razão pura
3o. 1. Kant, eáklan) p. 7; trad. cit., p. 26. Sobre a impossibilidade de fato de uma determi-
nação voluntária no homem sem a representaçãode um fim e sobre a necessidadede que o
homem seinteresse pelo resultado da ação eferuada por dever, cf. id., ibid., pp. 4-5-
211
conformar-se ao supra-sensível.
zi3
'Y
r.{ão (Vernunfteinsicht)."
daldéia.
Mas, como o supremo bem moral nào se rectlila somente mediante o esforço de
uma pessoa singular em direção ao seu próprio clperfeiçoamento morar, uçige
. -i;' 'm «m' tot.tid«de com «ü'm « me.m. .bjeti«, «m .ü«m. de
pe«o«,ó'"- onze«z
an.dm(wohlgesinnter) exc/«.,;va"-e"re
#. g-/e g"f'.,
à unidctde do qualeste bem pode serrecLlilado mu, como CLideia de umcl
tal totalidade enquanto repúbliccl universalfundcLda em Lei.sde virtude é uma
idéta difcrerLte por completo de toda w Leü morais Çquedizem respeito ao
que sctbemos estar em nosso podem, uma ideia que nas impele CLagir com
visou a um Todo quenão sabemos se está, en quanto tal, em nossopoder, poT
comeguinte este dever, por seu género e princípio, é inteiramente dktinto cle
todos os demais'n
44. "E assim que a natureza garante a paz perpétua pelo mecanismo mesmo das inclinações
humanas; e, embora tal garantia não seja suficiente para se poder prever (teoricamente) o
seusurgimento, ela basta, do ponto de vista prático, e faz que seja um dever o tender a esse
objetivo (que não é puramentequimérico)" (Id., Ze8 p. 368;trad. cit., p. 127).
45-1. Kant, J2/ee,p- 3o; trad. cit., p. 78.
46. Id., Sirez'r,p. 88; trad. cit., p. io4
47. Id., rÃ. Praxe, pp 3og-io; trad. cit., p. 55-
217
Que haja uma História, que seja possível e até mesmorecomendável
representam se "o agregado das ações humanas como formando, pelo
menos em linhas gerais, um sistema" -- será isso uma asserçãoteonca,
ou uma asserçãoprático-dogmática? Parece,antes, que aqui entramos
numa rubrica mista: a do ideológico. Por um lado, não seararade [eorü:
"nossa visão é demasiado curta para penetrar o mecanismo secreto do
organismo da natureza", e uma história "composta segundo a idéia do
caminho que o mundo haveria de trilhar, se fosse adaptado.aobleti-
vos racionáveis seguros", pode passar por um prqeto de "romance
Assim, o discurso da GescÀ;calenão pretenderá oferecer uma análise
'ia empina melhor que a história dos historiadores: não é estaa sua
ambição (e Hegel insistirá, bastante, nessa total heterogeneidade dos
lv
Não devemos pTomcter-nos demais acerca dos homem, no seu progresso rumo
ao melhor, parcamsim não rios expormos às3ustm yambarl do político, que
tenderia a tomar esta esperançctcomo sendo o devaneio de uma cctbeçaexal-
tada (Trãumerei eines überspannten Kopfes).:'
219
T
conduta celestial". Se e]a nos remete à ideia de uma Junçãodo fenó-
meno e do supra-sensível,esta não se deve conceber como zzmacon-
recime/zfo
por ír (mesmo em Hegel não haverá?falando-se com rigor,
.;:='1;;
Hi:tÓ.ili«l - . .:,...d. "."«..««J.«..Í' ,.«-.,á#o,«-. w«.,Í«./'
::WS.l=.::=llu-
Z:l:l: H ::i===.'=:
P nin==Rl-
sensível'' supondo, por conseguinte, que a sua animalidade á arena a
condição da qual ela deve ser expulsa. ,
Encarar a humanidade como ser histórico, assim, não é tanto uma
asserçãodoutrinal (teórica, a usarmos os termos próprio:s) quanto um
a"''y"' "-"" pisao homem na sua ambigüidade: não
juízo'dereflexãopeloqualse . . . . ..,Í.,,/
)u zu nte animal e ser racionável, mas animal para for/zar-ie racíon(íve/.
O Opúsculo de i784 abre-se com a constatação dessa ambl.l.idade. De
O dever [das Sollen], gaando fe«?oi afereos o/Zoi apenas o curso da narureÍa,
ttão tem signi$cação alguma. Não podemosperguntar o que deve suceder
[was geschehen so]]] /za /zarareÍa, da mesma /arma gue não podemos zn-
dagar quepropriedadesum círculo gene ter; mas podemosperguntar Q ape
acontece[was geschieht] /za /zarz'feia, o gz'az3 sâo proprz edadei do cz7-
cuLo.Um tal dever exprime somerLtcuma ação possível, cujo princípio não
puscl de meio conceito, enquanto ao contrário o princípio de uma simples
ação rtaturat tem de ser um fenÕmerLO.OTa, a aÇào, quando o dever se aplica
Q eLa, certamerlte deve ser possível sob CLS
condições naturais; estro, porém,
em ve{ de se referirem à determinação da própria vontade, apeou se referem
ao efeito e à comeqüência desta no fenómeno 55
221
Ora. assim vemos que, graças à História, o gazeacon/ece na natureza hu-
v'') " ,
mana,comocorrerdasgeraç es,torna-sesistematicamenteconforme
., . ,, ..
ao gazedeveacontecer,e há, portanto, um "curso da natureza' que dj
=!:i:'=::;
g :: l :: ::iT
vel. É por isso que é tão necessário que os amoreshistóricos sejam cegos:
R
sem essa"genialidade" da humanidade, a filosofia crítica não teria con-
dições de tornar aceitável a idéia de uma junção ent.re sensível,e supra'
sensível, da qual o sujeito moral necessita. É a mrzZcíada ração ÃZçzórica,
e ela só,'(lue torna crível a realização$enomena/ de nossa destinação de
serescr/aios (de coisa-e«2-sz) sem que, com isso, se coloque em ques
1;:1'.il..,,g.h d. ««;í«l d. i«'.liga«.i. .O f;'' d' q«: 'd «T:':'.
haja sobrevivido à supressão,por.Hegel, do supra'sensível.kantiano
constitui uma prova suplementar de que, neste campo, Hegel mais tra-
E;ii;=';.b« J; ""'i;.: k«'i"': '' q«. p''P':;"'".. .; '"«.-:".
Em compensação,o que se eclipsa com o hegelianismo é o elo de
motivação entre moralidade e História. Pense-senos famosossarcas-
mos que Hegel dirige ao "mestre-escola"moralizador, ao "pio indiví-
F duo" que seerige em juiz do Espírito-do-Mundo:ao longo deles.é o
-" u' ' e encontra travestido (até os nossos dias)
"sujeitomoral"kantianoques. . . . .]:..-"
em um limitado filisteu, em "cavalinho que nadacompreeltdedisso
O engraçado dessahistória é que tal depreciação.do"pio indivíduo se
faz pela retomada de um tema já amplamente desenvolvido pelo pro-
prio Kant, a saber, o privilégio da espécie "a#;ma/-rac;orzal.,'r. sobre o
Hdivíduo. É Kant que, contra Rousseau,celebrao advento da cultura
como um ganho para .z Ãzzman;Jade,compensando, e muito, a perdi-
ção que pede acarretar do indivíduo...sóEssestextos,antropoll)gícos
puderam surpreender, a tal ponto que o seu cinismo (ou,.pelo menos,
reu "realismo") tranqüilo parecia destoar da austera eidética do dever
individual. Contudo, não estão nada deslocados no edifício da filoso-
mundano
fia prática. Basta nos situarmos no Ges;cÃspzznX:r
do sujeito
vlrt:uoso que pretende manter firme a sua disposição moral, para c:lm
preendermos que o pena'zmenloda .fãsrór;a é o mais poderoso auxiliar
ra moralidade em ato. Na mesmamedida em que Kant desconfia do
apelo à graça divina e nos desvia da crença em qualquer "intervenção
2.2.2.Uma escatoi.agia
para a moral
sobrenaturalem favor de nossacapacidademoral deficiente" ori-
gem para um "entusiasmo" que inevitavelmente corromperia a inten-
ção morais'--, ele também aprecia favoravelmente a confiança que o
homem haure da idéia de uma moralização irresistível e contínua da
espécie: "a confiança na natureza das coisas, que nos força a ir aonde
não queremos ir por vontade própria".s8 Com efeito, essafé na História
proporciona ao homem uma convicção mais sóbria do que toda espe-
rança religiosa: a de que, executando o mandamento incondicional da
razão, ele também está efetuando uma ação mzz/zdanamene rácio áve/.
Graças a Kant, o militante (moral, e depois político) assim fica sabendo,
semdesprezar,que também colabora no curso mais geral das coisas e
consegue tal garantia sem sequer se transformar, aparentemente, em
utopista ou fanático. Adivinha-se a vantagem.
Daí também provém o cuidado que manifesta o nosso autor, sem
nenhum gosto do paradoxo ou da provocação, em assinalar o cara
ter necessariamente amoral dessa gênese da moralidade na natureza:
o "progresso moral" da humanidade jamais consistirá no aumento da
moralidade dm z/zre/zfões;
sempre será produto de motivos pragmáticos
e egoístas..." Assim como não é por guiar-se por fins objetivos que a
Natureza produz flores, conchas e cristais como que com vistas a nosso
pra:er, mas simplesmente em função do Jogo das leis da química, tam-
bém a prática dos homens só conspira de maneira inteiramente mecâ-
nica para a realização do reino dos fins. Disso, o sujeito virtuoso pode
tirar a convicção de que a sua confiança no curso do mundo se apóia
na natureza das coisas, e não numa iluminação. Essa escatologia para a
moral que é a História kantiana não é portanto, propriamente falando,
o objeto de uma crença: melhor será dizê-la uma representaçãotão ve-
rossímil, tão "razoável" que pode facilmente passarpor ser fundada
cientificamente" (cf. "os expropriadores serão expropriados") e esse
traço faz, da História assim concebida, um tema ;deo/cíg;copor exce-
lência: postulação requerida pela prática mas convertida, sub-repti-
ciamente, em um "saber". Ora, observaremos que o ideológico, aqui,
nasce muito exatamente na juntura da exzkênczaprá /ca da razão pura e
i7.id Re/zg;o/z,
pp. igo-gi; trad. cit., p. z48
í8.id rZ. Prarü, p' 3i3; trad. cit., p. 59.ZeFI p. 365;trad. cit., p- iz3
í9.id Srreir,p- gi; trad. cit., p. ro9; ZZ- Praxe, p. 311; rrad. cit., p. 57
223
do ;n erdffo /enfado sopre'z especzz/afâo.
Assim, por limitar a razão teó-
rica, Kant não tinha apenasque fazer das matemáticase da física uma
concepção limitadora, cuja estreiteza já se salientou ele também de-
sencadeava, para atender às necessidadesda "boa causa", a escatologia
da imanência e seus demónios. Mas isso não será pagar muito caro a
destruição da metafísica clássica?E valeria mesmo a pena .j:lzer da mo
nadologia leibniziana um "conto de fadas", para fazer da J7hfóría uma
dimensão necessária da existência humana?
No início do Ma/zzz.fcr;zo
de Geneóra,lÍousseauentabulaum diálogo
com um homem fictício da sociedadenatural, desconfiado e cínico o
qual ele tenta persuadir da vantagem que o Contrato social Ihe traria
A tarefa é difícil, pois a esse"inimigo do gênero humano" não faltam
argumentos para se recusar a concluir o pacto.
Extraído de it/an calo, v. 3, n? z, ig8o. Tradução para a presente edição: Marca Kawano.
i. Jean-Jacques Rousseau, Z)zzConfiar iocza/ [Primeira versão], in Oeüvres conzp/ires. Paras:
Gallimard, Pléiade, ig64, v. 3, p. z85 [ed. bus.: O co/erra/oiocza/ e alzrroi eicrzzol.São Paulo:
Cultrix, i97i].
z. Id.,ibid., p. z89.
225
3.Id.,ibid.,l, 8, p. 364.
4-ld.,ibid.,ii, 4) p' 375'
11
227
T
H==H:=!
.=5:=::m=
=.'=u=;=::u-
:
:i=.'11:1=15.T==':;=.=::=:u l:,li'l:=:ÍiiiT:i."":'
9. Id., Z)zzCorzlrariacfa/, iÍ, 6, P. 379'
229
'Y
2)1
maravilhoso artifício "o povo pactuaconsigo mesmo?ou sela, o povo
como corpo, na qualidade de Soberano,com os indivíduos na qualidade
de súditos"?:3 Essa forma põe "os indivíduos" literalmente no mesmo
plano que o Soberano,e nisso ela é enganadora. E certo que opovo pac'
tua consigo mesmo. O povo, mas não Pedra, não Paulo, você ou eu. E o
Contra o xoc;aZ2'se explica perfeitamente quanto a esseponto' Aquele que
pactuando com o outro na verdade pactua 'p'n;s consigo mesmo é o So-
berano. Portanto é ele que não precisa se prender a nenhum comprontisso
assumido (ou pelo menos preces; fazê-lo tão pouco.quanto em Hobbes)
Para que então submetê-lo a alguma lei fundamental? De que serveuma
garantia de suas boas intenções se ele nada mais é do que o ponto de con-
vergência do interesse de todos por cada um? Mas a situação do Tdi:lduo
enquanto membro do povo é menosinvejável, pois.elenão pactu;.com o
Soberano como o dr. Jekyll poderia fazer com M. Hyde: é com zzmOzzrro
que ele pacrzza.Por isso Rousseau toma o cuidado,de escrever que "cada
indivíduo pactua,por ass/mdlÍer, consigo mesmo" (enquanto booerano)-
ue significa essarestrição? Significa simplesmente que cada indivíduo
Em#ío o z da edz&cafãa,
trad. Roberto
Z3. id., Emz/e. Paras: Garnier, lg64, p. 58g [ed. bus
Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, í999].
z4. id., Z)ü Cb/ztrar sacia/, 1, 7.
z5.Id.,ibid.,i, 7,p' 36z-
Z6.Id.,Zhi/e,P-589.
233
Y'
Hãl:i H :jH
crevesse de um modo tão estranho aquilo em que consiste a "absorção
in
das vontades particulares na Vontade Geral:
os elementos dos quais essaforça resulta de certo modo perderam suei indivi-
dualid(üe e seu movimento quando pensaram a integra-la Com efeito, como
Decerto que ela é abolida, pois cada indivíduo perdeu nada mais nada me-
.. sua individualidade -- ou melhor, ele "de certo modo a perdeu,
como acrescenta Durkheim, prudente, a fim de escap;r do absurdo.
A que contradição se pretende escapar com :ssas acrobacias? Ou
1:
melhor: que confusão se quer manter? Essaconfusão é a astúcia suprema
n wl$;1;1:1
de Rousseau, e ê Justamente por meio dela que ele pensava superar a cho-
:: :
décima milésima parte, é bem verdade) e do sujeito deixado inteiramente
à mercê do Príncipe... A única maneira de dissolver essacontradiçãol ao
menos em aparencia, seria recorrer à an6bologta, ou seja, amalgamar dois
conceitos de liberdade que são, na realidade, irredutíveis um ao outro: a
lockiano
liberdade tal como é entendida pelo sujeito do Estado moderno
por instinto e continuamente precavido contra os excessospossíveis da au-
toridade -- e a liberdade do cidadão antigo, daqueleque partic:pava coti-
dianamente da Cidade. Isso porque as referências a Esparsae a Romã não
sãomero coquetismo: o que Rousseaunos propõe reconstruir ê mesmo a
===:'1::=:==.=1:T::::: ll'&=1===:
Émile Durkheim, MPnresgzz;ezz
et Romseazz.
Précurseurs
de /a aocfo/og;e.
Paria:Librairie
Marcel Riviêre et Cie, i953, P. í55
3i. J.-J. Rousseau, Z)zzConrrar sacia/, i, 6, P. 36i
35.td., .Eco/zamzepo/ífigzze,
P' Z5:'
* Extraído de i142zamcn'fa,
v. 4, n? í, ig8o. Tradução para a presente edição: lvfárcio Suzuki.
i. Leo Strauss,Na zra/RlgÁrandHüíoy [Direito natural e história], trad. francesaM. Nathan
e E. Dampierre. Paras:Plon, i954, p. lg6
1.'t. \\(Êles. LeviaLharl, or Manter, Foírn, and Poder of a CommonweaLth EccLesiasticcLL
arLd
CIvl/ [Leviatã, ou Matéria, forma e poder de um Estado ec]esiástico e civil], cap. xvn, trad
francesa F. Tricaud. Paria: Sirey, i97i, p. i78
237
ll\
Do cid(üão.
6. Id., Z%eE/emerzli af .Law .Nbrlzra/a/zdPo&llc, b cap. xvn) S z; trad. francesa L. Roux. Lyon:
L'germes, 1977, p. 220. "Uma vez constituída a sociedade civil, cada cidadão só conserva
o tanto de liberdade que Ihe é necessáriopara viver bem e viver em paz, da mesma maneira
que os outros perdem da liberdade deles justo o que é necessáriopara que já não se tenha
medo deles"(Z)e cave,cap.x, S i).
7- Id., ZevlaiÁan, cap.xiv; trad. cit., p. i3z.
z39
:::::: Glii:lX(l U
BIE: l li in :! :::
11
z4i
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U=;H:=H:HH=i:;;-
11
l
'r
lil Tilil:lll;l':'*"
Z4Z /JoóÓei aguda do /ÍÓera/asma
maneira que possa,quando Ihe falta a proteção da lei."'' Um homem é
agredido e mata o agressor: era a vida do outro ou a sua. Esse homicí-
dio "não é um crime, pois não se presumeque ninguém tenha renun-
ciado, no momento em que se institui a República, à defesa de sua vida
ou de seusmembros, no caso em que a lei não possa intervir a tempo
de socorrê-lo".tó
Um homem, em contrapartida, mata em duelo aqueleque o ultra-
lou: "é um crime". Um outro preferesever livre daqueleque o amea-
çou a reclamara proteção do poder soberano: "é um crime". Hobbes
restringe assim, à medida mais exata, a desculpa de legítima defesa e
isso pela mesma razão que o leva a dar uma extensão igualmente sur-
preendente à desobediência civil: a zín/cacoisa que pode suspender a
obrigação legal e, por isso, me desculpar, é "o temor de um dano físico,
aquele que podemos chamar de remarcotar'zZ, quando não se percebe
outro meio de afastar essedano".'' Ora, nos dois últimos exemplos, o
assassinonão está acuado a tal extremo. Ele não mata para salvar sua
vida, masporqueja/ga que sua respeitabilidadeIhe impõe lavar sua
honra, ou ainda porque./zz©aque é sempre melhor agir por conta pró-
pria... E desta feita ele retoma indevidamente o direito de naturezaao
goza.í
Ãav/a re/zzzncfado.
Matar um homem em duelo ou abater preventi-
vamente um inimigo pessoal é ;mr;zzz;r-meárbitro supremo de minha
honra ou dos meios de zelar por minha segurança.É, portanto, agir
exatamente como em estado de natureza, no qual cada um, "governado
por sua própria razão", assegura como bem entende a sua proteção, tal
como a concebe. "Cada homem, pelo direito de natureza, é ele mesmo
Juiz da necessidade dos meios e da amplitude do perigo."':
Ora, voltar a essacondição é negar a soberania.Pois, se cada um
agisse dessa maneira, mesmo 7zzando a ieg rampa mú;ma não esrzvei.fe
emlogo, o gládio privado seria de novo a instância decisória, e a so-
berania da República não passaria de uma palavra vã. Afora os casos
de legítima defesa Gsica (estritamente estipulados, como se viu), não
tenho portanto direito algum de me afastar da obediência devida ao
Soberano, ou anteslaZgar gue Ãá mo ívoi para dela me afastar, o que já
l 5. Id., ibid., cap.xxvn; rrad. cit., p. 3zz; cf. cap.xxi; trad. cit., p. z34
i6.1d.,ibid.;trad. cit., p. 3zo
i7 Id.,ibid.
i8. Id., Z%e
.E2eme
if oÍ ZaH',cap.xiv) S 8.
z43
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l E:l:ZZ:X IZl:
do governo
19
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n
lei" propria
::i:;;;i=!HE ....
;;:,;:::::;:'=:;=i"«;
z.' T. Hobbes,ZevíatAan,cap' xxwn; trad. cit., P-T84
zz. Nesse sentido, toda reivindicação de liberdade que implique qualquer limitação que seja
da soberania é um absurda:"E, no entanto, por mais absurda que seja,é bem isso que eles
reclamam: eles não sabemque asleis ficam semo poder de protegê-los senão há um gládio
nas mãos de um homem (ou de vários) para fazer cumprir essasleis" (Z,avia/Áan, cap. xxi;
trad. cit.,p. 224).
z3. T. Hobbes, Zev;azÁan, cap. xlv; trad. cit., p. lz8.
245
'Y
\rvA&bVU=n =' ÜP B l
cap.xvlni)trad.cit! P.i86cap.
xxix; trad.cit.,P 344
z6.Id.,ibid.
) soberano tem o direito de punir, mas somente m anões cutpáveis; ele tem
. direito de bater a guerrçt, mas somente quandoa sociedadeé CLtaCCLdCt;
ele
tem o direito de falei leis, mas somente quando essa leis são necessária e
«Ó ' condzFão de «r.«- «nÓo,«« à./«.rzka[...]."
z7' BenJamin Constant, Pnlzczpei de po/ifz'gaze[i 8i S], apud P.-F. lvforeau, Raczrzesdu Zz'ó/ra
/ísme. Paria; Seuil, í978, p. rl4
. C. B. Macpherson) 7%eRn#ízba/Z%eo7 af Poiieisz'3,e/ndzvzdua#fmITeoria política do
individualismo possessivo],trad. francesaM. Fuchs.Paras:Gallimard, í97i, p. z8i.
z47
'Y
111
33.Id.,ibid., p.i56
34' "Dizer que todos os súditos de uma República gozam de uma liberdade sobre tal ou tal
ponto, é dizer que sobre essepon'o não houve ]ei feita; ou então que houve uma, mas que ela
agora está revogada" (Zev;arÁan, cap. xxvi; trad. cit., p. 3 l í).
35'T. Hobbes,Z,el,zarÃan,
cap.xxix; trad.cit., p. 349
36. id., ibid., cap. xxi; trad. cit., p. zz7-
249
Y
='::Sln:i:l';l:'b==:':;"''"::1';E'.=1;
.;.:;;
"-:",
-",,-.-';
l 5a Hobbes aquém do Liberalismo
(
;parcialmente", retraçar essa "gerara//o 'zegzzzvoca", seria objeto de uma
outra exposição.totalmente diferente. O que gostaria simplesmente
de destacaraqui é que as interpretações que fazem do iberalismo a
verdade do sistemade Hobbes são mais engenhosasque convincentes
Conceder-se-á, sem dúvida, que o pressuposto utilitarista de Hobbes
torna, em última instância, o estatuto do cidadão no Ze ;arâ mais fle-
xível que na política do universal que tem seu ponto de partida em
Rousseau:e é engraçadover Kant criticar o espírito "despótico" do sis.
tema de Hobbes enquanto extirpa radicalmente o direito de resistência
dos sujeitos... Mas isso significa apenasque Hobbes não fazia menor
idéia da "liberdade" (quão equívoca é -- ou, ao menos, quão distante
estáda doutrina liberal) de que goza o súdito do Estado universalista.
Isso não significa, sobretudo, que Hobbes teria se preocupado mais em
preservaras liberdadesindividuais. Do fato de que o poder do Ze ;a/â
se estenda legalmente ale' onde comer'z a segurança física do cidadão, não
eve tirar rápido demais a conclusão de que ele Já tem por objetivo a
proteção e a salvaguarda dos direitos naturais do indivíduo.
Constatar isso não é de modo algum voltar à interpretação do
Zevzarãcomo manual de despotismo.É antes a ocasiãode medir a
corça do a,prürz político hobbesiano. Quanto Hobbes nos parece ter
sido mais lúcido que seuscensoresliberais fica claro se lembrarmos
que, à exceçãodos intelectuais que vivem sob regimes totalitários ou
tirânicos, asreivindicações dos homens de hoje se voltam, no essencial.
par; ;s 'egara/zf«f (no emprego, de moradia, na velhice etc.) e não para
um apnmoramento das/zóerdade.f zrzdzvzdaaü.Aliás, essesdois tipos de
reivindicação não podem Subsistirpor muito tempo juntos. Reclamar
mais segurança do Estado, é reclamar mais leis -- e toda lei civil, como
Hobbes vira, não pode senãolimitar um pouco mais a "liberdade natu-
ral" dos cidadãos. Reclamar mais segurança, é forçosamente fazer cres-
cer a potência do "grande Leviatã" e de suasinstâncias de controle
independentemente do regime. Não se deve acreditar, observa B. de
Jouvenel, que os direitos securitários -- que Franklin Decano Roosevelt
chamava de "novos direitos do homem; -- "venham a completar os di-
reitos proclamados pelo século xvín; [...] a mais ]igeira ref]exão faz sen-
tir que eles os contradizem e revogam".'l Nesse sentido, nossos tempos
são os da desforra de Hobbes contra o liberalismo, seu filho bastardo.
* Extraído deit4an scn'ro,v. 5, n' z, abr. ig8z, pp. 37-53 Tradução para a presenteedição
Márcio Suzuki
1. Edmund Husserl, Z)ze Krúü der e zropd&ciçe/z IPhiemcéa#r a/zd die rrarnÍenden aZe PÁêlzome
rzoZog;e(Kr&ü) [A crise da ciência européia e a fenomeno]ogia transcendental], in Hmier/lama
Haia: M. Nijhofr, ig6z, v- 6, p. 8z; trad. francesaG. Granel. Paris:Gallimard, íg6z, p. 93
z53
T
z55
uma subjetividade absoluta, trarucenxlental \- l\.
257
T
iilll::B1:4
;i
.6.Id., ibid.,P.l4z;trad.cit.,P.zo5'
:7- td., ibid., P. i44; trad. cit., P-Zo8.
z59
'T
Granel" (N.T.)]
z4. E. Husserl, respectivamente E.PÁ,i, p. i58; trad. cit., p. 2; e /'7Z, p. zz7; trad. cit., p. 34z.
z5. Cf. E. Husserl,J/édirafzom óarrázenrzea
[in JJüier#ana.baia: M. Nijhoff, i973, v. i], $ 4i.
z6i
'Y'
11
11
263
Y
Tradução de Husserl: aquele que deixou o Z)a@de lado para buscar sem
nenhum proveito o Wze
H
z:l ll =;;1'11:=';1:==::
:::==1/""
H -
P.63
3Z.E. Husserl, Z)le /dee der PÀdnomena/ag;e,
p' 38; trad. cit
33. Id., EPÀ, i, P. z46; trad. cit., P. 3:o'
34' "Não se trata de transformar em ficções as idéias abstratas como dados de uma expe-
nêhcia que têm, certamente, uma experiência [.-] mas têm somente o va]or de experiências-
aparência, como H ume tentou mostrar em relação à experiência externa e aos seus dados; o
propósito do capítulo, ao contrário, é provar que não temos verdadeiramente 'representa-
ções abstratas', que as idéias abstratas não se apresentam absolutamente como dados de uma
experiência' qualquer" (F7Z, pp' zzg-3o; trad. cit., p. )46). Cf. ZogúcÁe C/nrerr zcÁurzgen
ITnvestigaçõesLógicas], n (i). Tübingen: Max Niemeyer, ig68, pp. i87-go
35 E. Husserl,.EPÁ,i, p i63; trad. cit., p. z34
36. Id., ibid., p. i7t; trad. cit., p. z46.
265
1.
z67
'v'
l a H TH =..An A la0
i
Essaslinhas determinam admiravelmente a relação de "causação" em
Hume, isto é, determinam o único sentido que o empirismo pode admi-
11
11
g#
habitual gazea expor;éncía nos$a{ aóser ar entre e/ei.
\\. " The conctusion, whiclt we draw from a presertt object to its absent cume or eKecE, is Rever
founded on anJ quaLities, which we observeirt that object, considerei in itseLf ÇD. cume, Tre-
arúe of Hüman Nblüre, ed. Selby-Bigge e P. H. Nidditch. Oxford: Cíarendon Press, i978,
r>m, g, p. l ii [ed.bus.; Zraradoda na re a Ãamana,trad. Déborah Danowski. SãoPau]o
Ed. Unesp, zooi]
4z. " \. . . \ it's impossibLeto determine, otherwke than by experiertce, wkat wiLLresult from any
p'çaen0«feno,z,or wÃa Á'spreceded ;f" (D. Hume, Zrearúe, 1,m, g, p. ii i)
z69
'Y'
Jade, de que as leis que estabelecesão leb matemática excita, leis dotada
de uma validade e de uma universalidade íigoíosu ? CoIRo seriam simples'
mente expressõesgerais de nossa expectativa habituais ?
271
l
Qualquer coisa que se queira pensar a respeito da análise que Hegel faz de
Aristóteles nas Pre/efõei aoóre a Ãúzóna dafZoao#a, um mérito ao menos
se Ihe deve reconhecer: Hegel voltou à fonte, retornou ao texto do -Efzag/-
nza e isso com dificuldade, sem haver tradução latina --; ele se pâs à sua
escutadireta, com desprezopelo aristotelismo escolar. Somentepor isso,
como observa WI.Wieland,' o comentário hegeliano marca uma "guinada:
na história da interpretação de Aristóteles. Foi Hegel que ousou procla-
mar: "Não se deve procurar em Aristóteles um sistema filosófico".z
Ê necessário,perguntar-se-á, dar-se tanto trabalho, filologicamente,
para encontrar, no final das contas, um Aristóteles feito sob medida? Por
que Hegel leu com tanto cuidado um autor que ele não podia sepropor
senãopara "recuperar"? Aqui, contudo, se coloca uma questão prévia: tem-
se o direito de falar pura e simplesmentede "recuperação"?À primeira
vista, é permitido supor que a relação de Hegel com Aristóteles é mais
complexa. Ê impressionante, por exemplo, ver Hegel a6trmar abruptamen-
te, no início das Hor/eizz/zge/z,
que Aristóteles é, com certeza,o maisfiel
historiador do pensamento grego e que se pode confiar nele: "Para conhe-
cer a filosofia grega, nada melhor do que entender o primeiro livro da sua
Ã/eraOÚ/ca".'Opinião que está longe de ser compartilhada pelos historia-
z73
C
5'Hondt. Paus: pur, i974, P'PP 368e 563; trad. cit., PP' 4i6 e 6o6 ttradução do trecho refeita
IS ,."*;,-,..:-'.
EÜiUI,i':;wu==". «:,-' ,-.«;..
9. Id., ibid., p- 3i8; trad. cit., p- 5i5: "Deus é o espírito, a atividade do puro saber,a atividade
estandonela mesma. Aristóteles compreendeu sobretudo Deus na determinação abstratada
atividade" (;!/aio$a da re/zklãa,edição citada, v. xvi, p. zz8).
io. id., Elz{., S 23a. Zusatz. X, p. 446; trad. cit., p. 6zz.
l i. Estando claro que "(2#bnóam/zg " ou "Manifestação" nâo é para Hegel sinónimo de 'ZFs-
cÃez'u/zg". Na notável "Apresentação" a sua tradução francesa da ElzczcZopédla,Bernard
Bourgeois insiste sobre esseponto e justifica sua tradução de 'Z/lçcÁezizz'/zg
" por "fenóme-
no" ou "aparição" e de ':442zneêeiralzo/z" por "manifestação". A idéia de (2f?ênóarzz/zg, lon-
ge de implicar a doaçãode si a si sobre o modo do "obleto representado", indica, ao contrá-
rio, a superação.dessa"aparição" fenomenal. E a confusão resulta, talvez, da centralização
diva (especialmentena França) da obra de Hegel sobre a Xe,z0«2enoZoyla.É melhor deixar
a palavra a.B. Bourgeois: "Í-.] O saber conceptualde si do saber absoluto é o aparecer dele
mesmo a ele mesmo?como sup'r;ção da apan#ão('Er«Áez ng'), como aparição negando-
se no saber que o saber absoluto toma de suaplena identidade consigo em suasdiferenças
na sua«anz$eirafão
('a4aaz$eirarzon')
de si" (p. 54)
iz. Íd., GPÁ,p. ng; trad. cit., p. 5i7.
r3' Id., FzZoia#a da re/igz'ãa, v. xvl, 5io.
275
''v
i6. "A polêmica de Aristóteles contra Platão consiste então mais precisamente em que a
idéia ptatânica é caracterizadacomo simples dú/zamíse que se faz valer em troca da idéia
que é reconhecida por ambos da mesma maneira como o que é somente verdadeiro, deve-se
consideraressencialmentecomo enérgeza,i.e., como o critério que é absolutamente exterior
e do inferior, ou como a efetividade no sentido enfático da palavra" (Eh{., S í4z Zus., v. x,
pp' 3zi'zz; trad. cit., p. 575).Cf. GPÁ,v. flvm, p 3zz; trad. cit., p. 5ig.
i7' Jean Wahl, Ze À/a/Áeur de/a co c;ancadam /apÁI/oiopÀze de /bege/.Paria: Rieder, igzg,
p' i94' Essaidéia de uma recaídade Hegel "na feitiçaria da metafísica", de uma substituição
do "conceito de Deus pensante"por Deus como Vida infinita é desenvolvidapor L. Land-
grebe no seu Proa/em der Z)za/eAfíÉ.Cf. Günter Rohrmoser, 7%eo;og;eef a/zérzarzan
dam /a
pende düleüne/?ege/.Paras:Beauchesne,i97o, p. 5o-
r8. J. wãhl, op. cit., p. i69
ig. Cf. GP#, v. xvm, p. 399; trad. cit., p. 59i-
zo. Id.. ibid., v. XVH,P. z35;trad. cit., P. 6z
zi. Cf. v. xwn, pp. 3Z7'z8; trad. cit., P. 5z7'
zz. id.. ibid., v. xvn, p. 375;trad. cit., P. l79
liHHHH$;1ü:!;
;;:in:::
jade- " (v. abstraPo do p'ad.Í;t', P contradição como "lei do pensamento", cf. Erz{.,S l i5
v. vni, pp. z68-69.
279
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11
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z81
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283
Y
11
l
esse momento guie .4rÍsróre/es suó/í/zAa.' Porque só a enteléquia separa.
11
11
1
dicionalme x""mobilista", de negalivldadeaté torna-lo irreconhecível. o
mesmo se dá em outras passagens.Se acontece de Hegel violentar o texto
de AristÓteles, como ressalta Aubenque, por várias vezes ele parece .pr?'
ocupado em encontrar no seu discurso a inspiram;ãoprofunda Qe Ansto-
teles e não de seencontrar literalmente em Aristóteles. Assim, nas linhas
PP.ii4-i5
43-Id., ibid., v. xvln, p' 3z'; trad. cit., p. 5:9' Cf. P. Aubenque,op- cit
44- AristÓte]es, ]üera/Zsira, z, Jo39 a 7
45- G. W. Hegel, GPA, v. xvnl, p' 3zz; trad. cit., p. 5zo'
46. É a it/er( /nzca, enfim, entendida na suaautenticidade, que Hegel pensater redescoberto.
Donde os sarcasmosque ele dirige àquelesque crêem inovar porque, por falta de ter lido
Aristóteles ou de o tcr compreendido, não suspeitam sequerque eles não fazem senãorepe-
tir restos do aristotelismo. Cf. GPÁ,v. xvm, pp. 3z5e 5z4;trad. cit., pp. 4] 6 e 6o6.
47. P. Aubenque, op- cit., p. io7. cf. p. io4.
z85
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11
11
1
Ç€
íi. Id., ibid., p. 39o; trad. cit., p. 583."Aristóteles pensa os objetos, os quais, pelo fato de ser
enquanto pensados, são na sua verdade; está aí a sua oz«zb. O que não significa que os obje
tos da natureza sejam por isso eles mesmos pensantes. Os objetos são pensados subjetiva
mente por mim; então meu pensamento é também o conceito da coisa, e este é a substância
da coisa (díe Szzósla/zder Sache)" (p. 33z; trad. cit., p. 35z)
íz. E/zÍ-, S 55z, v. x, p 443. Nessa página Hegel mostra como Platão, por falta de ter aprendi-
do a unidade do substancial e da forma infinita, não podia se representar senão sob a forma
'da verdade pensada, da filosofia", "a verdade que deve residir no Estado". Donde o desejo
que ele formula de que os filósofos sejam reis. É essa mesma separação entre o substancial e
a forma infinita que explica a ausênciada "liberdade subjetiva" na cidade platónica
53.Id.,ibid.,v.x,p.44z
287
t
C
11
como oscseceito':'da, um dos pontos essenciaisque Hegel tem cons-
i:'.:ki:l=$.rT;.;=i.:;?3:;
";'.':'.,-.,;;'
dado de alguma coisa de uno, "pois, como dissendoo enunciado:daa=na deve ser o enun-
um indivíduo". . , ,
z89
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Hegel é a seguinte:
H811glil;l;lU:l: :l
são a rneslna corsa.
6z. G. W. Hegel, GPÁ,v. xvm, p' 3z8. Tradução da ]14er(t/b;ca.io7z a z3.'z6. Sobre a nota
reticente que Kart Michelet consagra a essaleitura, cf. P. Aubenque, op. cit., P' lo4'
63. p. Aubenque, op. cit., P 'o5
64«G. W. Hegel, GPA,v- xvm, p' 335; trad. cit., P 535'
z9i
Y
,.''=::i::=:Si;:U:l::
l :==t=T;,tl==:'«:-
v c acleÕé mais divino queaquilo queo noüs crâ ter de divino'
1.
> movimento em geral não pode concernir a ele". (W. Brõcker, .4rúzófe/ei,pp- 46-47).
Aubenque acusafortemente essadistinção: "Aristóteles distingue claramente entre a imobili-
dade que é contradição do movimento ('zAzfzeizno sentido estrito) e o repouso,que é somente
o seu contrário. A imobilidade é a negaçãodo movimento [-.]; o repouso não é senãoa pri-
vaçãodeste'. (P. Aubenque, Ze Proa/êmede /:É re cÃe .4rüzo/e.Paria:pup, tg6z, p. 4zj).
A estratégiahermenêutica de Hegel é, seguramente,inversa. Aquilo ao que ele é sensível é a
diferença entre o movimento circular contínuo (da esfera) e o movimento rerilíneo e ao fato
deque a imobilidade da ene'rgeza
se anuncia no movimento circular. Assim. nesgamesma
página da /Bica; "(sobre o percurso circular), cada ponto é com o mesmo direito começo
meio e fim; e, por consequência,uma coisa que se move em círculo estásempre no começo e
no fim e ela nunca estáaí".(z65 a 33-z65b i).
7i. AristóLeles,/'bica vni, z65b i. G. W. Hegel,Elz{., S z6i, Zusatz,v. ix> pp. gí-gz; cf. S
z64,v.ix)PP.98-loo.
293
Y
des Verschwindens)
z95
Y'
E
Hobbes e a instituição da verdade
A mean
Mathiot
* Extraído de .14a/zmcnla,v. 6, n' z, ig83. Tradução para a presente edição: Márcio Suzuki.
1. René Descartes, Zei .4deíd!/aria márapÀWsígues.
Terceiras Objeções e Respostas, in Oeuvres
ed. C. Adam e P. Tannery. Paris: Vrin, ig6g, v. ix (i), pp. i38-39
z. Santo Agostinho, Z)e magíçzro, x, xi.
z97
l
Z8, P z4; ed. e trad. francesa Lucy Prenant in Oeüwei. Pauis: Aubier, i97% P' 89
z99
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3oi
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u:i=i:;i:'=m'=\i=zí= z: : : l:
É #:i ii$:=1al;X=u,
como o comem" e "a concepçãomesma que temos do homem, como a
forma ou o movimento". Mas que se deve entenderpor "um obleto ele
l:HIÜliel: Ü .:::==1;
B8$11Ç
som da palavra pedra seja o signo de uma pedra só pode ser en.endido
::J:==='':-'
l$âfàillli:iT:h=.':==
Dado que todo nome tem alguma relação com aquilo que é nomeado \..\ é
Legítimo, em vista da doutrina, utilizar a palavra coisa para tudo aquilo
]ue nomeamos, ainda que nem sempre aquilo querlomeamos seja uma coisa
C exzsze/zfe /za /zczfHreÍa."
D
:==?:===:==::=j=E:=:=:::: '""':1::i=f:=:T
estou acordado:
J/m comoerrei /tomei homem, árvore, pedra são oi notei dw coú mei-
mm, msim também as imagem.sde um homem, de üma árvore, de uma pedra,
representctdma alguém durante o sono, taMbéM têm sem nomes, ainda que
não sejam coisas, mm somente acções efantmmu dm coisa "
Id., ZBeEbme/zn af Z'zp",cap- i, S 8, p. z; trad. francesaL. Roux. Lyon: L'germes, i977, p. i3z-
n. "Ainda que não passem de idéias e de fantasmas ocorrendo interiormente àquele que
imagina, todas essascoisas aparecer-lhe-ão como se fossem exteriores e em nada dependen-
tes de algum poder da mente [-.]. Pois, supondo que o homem permaneça após a destruição
de todas as outras coisas, isto é, que ele pense, imagine e se recorde, ele não terá então nada
mais a pensar.a não ser aquilo que passou' Ora, se observamos atentamente o que fazemos
quando consideramos e raciocinamos, descobriremos que, embora todas as coisas continuem
a subsistir no mundo, não compuramos outra coisa que fantasmas. Pois, quando calculamos
a grandeza e os movimentos do céu e da terra, não nos alçamos ao céu, que podemos dividir
em partes e cujos movimentos medimos, mas permanecemos sentados, em repouso, em nosso
gabinete"(Id., Z)ecopore, n, cap.vn, S i, i, p. g2). ' '
zz. Aliás, melhor seria escrever a palavra ;lz(/epe/zdénc;a
entre aspas,pois se trata, ainda aí
de uma significação que a "redução" hobbesiana ajuda a retraçar a constituição. Que seria o
expafo,pergunta Hobbes, para aquele que tivesse sobrevivido ao aniquilamento do mundo?
A imagem de algo que estavano mundo, enquanto esse"algo« é visado como possuindo um
ser independente do espírito. Suponhamos em seguida que as coisas sejam recriadasnessa
imagem chamada "espaço" e redescobertas como independentes de nós: "eis o que chamados
de copo; e como isso não depende de nosso pensamento,dizemos que é [zmacoça iuósúre/z/e
poria meiga, ou ainda, exísre/zre,
já que existesem nós" (Id., Z)ecorpora,n, cap.wn, S i, i,
p' :o:). Tal é, portanto, o "mea,zzng"ao qual somos remetidos ao ouvir a palavra corpo:
aquilo que, não tendo dependência relativamente a nosso pensamento, coincide com/ou
é coextensivo a alguma parte do espaço". Ora, essasignificação assim constituída nos dá
o direito de pâr algo além das imagens e dos "p/çanrúmara" em sentido amplo?-. Hobbes
por certo, não é um "idealista subjetivo": ele não reduz o Caseao perc+z'.Mas suavontade de
azara antologia não o conduz menos, nessescapítulos vn e vn l do Z)e fo7ore, àquilo
que poderíamos chamar de um exercício de paleofenomenologia.
3o3
Y
t
E.J
11
3o5
P' SZ; .d., TÀeE/emenlsaf Zaw i, cap' w, S 1, P. z6; traí. Roux, P' Í53'
3z. Id., ibid., 1,cap. v> S 8, p. n; trad. cit., pp i49-5o- Cf. Z)e czl,e,p- 36g; PÃz/oiopÁzca/Rüdz-
menn) p' 374 ["derivado do costume e do uso comum de falar"].
33' .'A ignorância dascausase da instituição primeira do direito, da equidade,da lei e da
justiça dispõe os homens a fazer dos costumese do exemplo a regra de suasações,a ponto
de pensar que o injusto é aquilo que se costuma punir [--.], semelhantes nisso às crianças que
não têm outra regra de boas ou más maneirasque os corretivos que recebemde seuspais ou
de seusmestres (Id.: Z zafÀan,ed. cit., pp. í65-66; trad. cit., p.' ioi). Cf. Z)eave, cap-xlv.
Si7,P.Z63;
PÁz/oiopÃzca/Rzzdzme/zzJ,
P.Z8Z. r' '
34-Id., Z%eE7emenriof Zaw, i, cap-iv, S Ti, PP.i6-i7; trad. cit., p. i46.
35-Id., ZevzarÃa,z,
cap' iv, ed. cit., p. io5; trad«cit., p- 3i; id., Z%eE2e«ze,zzs
of Za}«, i, cap.v,
pp.ii3-i4;trad. cit.,p.4o.
3o7
r
36. Id., ZAeE/emenn af Z,aw, n, cap' T.lll . i3, P' i76; trad. cit., P. Z95'
ililii::;x.:=+i::::. .:',
llil':.s;::.'" *'.,
11
'
!
3a8 Hobbes e a instituição da verdade
p;lavra. É exatamenteo que Hobbes faz, cadavez que restabelece,con
tra a tradição, a Justa definição de uma palavra: se, por exemplo, "ape
tite racional" é uma má definição de " on ade", é que essafórmula não
nos permite pensar um ato voluntário que seja contrário à razão, nem
atribuir vontade aos animais o que, segundo Hobbes, vai contra os
dados da observação.'' Mas como saber qual era Justamenteo sentido
de " o/frade" convencionado pelos homens no momento de instaura
ção da linguagem? Parece então que a instauração da linguagem é
somente o emblema, um tanto quanto mítico, do Jemm co«emu,zà,cuja
existência, aliás, é afirmada no início do Zevzarâ, quando Hobbes nova-
mente comenta o Nasce ze Úxzzm.Essa fórmula nos ensina que
4í. Id., Zevza/Ãa/z,cap- vb ed. cit., pp. iz7-z8; trad. cit., p. 56.
4z. Id., ibid. (Introdução),ed.cit., pp 8z-83;trad. cit., p. 6. A mesmaideia volta quando
Hobbes explica por que não há necessidadede escrever ou publicar a lei de natureza: "Pois
tudo o que os homens devem reconhecer como lei, não a partir das palavras dos outros, mas
cada qual segundo sua própria razão, deve ser algo que concorda com a razão de todos (&
agreeaÓ/ero fÁe regiamof a/7 men); ora, nenhuma lei poderia estar nesse caso, a não ser a lei
de natureza" (Id., ibid., cap. xxvi, ed. cit., p. 3 t8; trad. cit., p. z8g)
43' "Pois como pedeocorrer que, a naturezadascoisassendoem toda a parte a mesma,as
línguas no entanto sejam diversas?" (Id., De Áomz)zqcap. io, S z, trad. francesa P.-M. Mau-
rin. Paras:Albert Blanchard,i974, p' i44; ed. Gert, p. 39). Como podeocorrer, perguntava
Descartes, que franceses e alemães pensem as mesmas coisas, se empregam palavras diferen-
tes? Como pode ocorrer, pergunta Hobbes, que os franceses e alemães empreguem palavras
diferentes, se a natureza das coisas é a mesma? É que os nomes não foram impostos pela
naturezados objetos, masdestinados a designar nossasconcepções.De uma tese à outra, há
perda do valor objetivo da idéia, e passagemde uma teoria da representaçãoa uma teoria
empirista da sinalização
3o9
Y'
>
111
i,P-8o
44. T. Hobbe$ Z)e corpora i] cap' vi, S ii
45 . Id., Z)e Àom;ne, cap' x) S z.
46. 'Visto que marca e Signossão necessários para a aquisição da filosofia (as marcas pelas
quais podemos recordar nossos pensamentos, e os signos pelos quais podemos torna-los
conhecidos aos outros), os nomes preenchem essesdois ofícios, mas servem de marcas antes
de ser utilizados como signos. Pois, ainda que um homem estivessesó no mundo. os nomes
Ihe seriam úteis para ajuda-lo a se lembrar; mas, para ensinar a outros (se lá encontrasse ou-
tros que devessem ser ensinados), eles não seriam de nenhum uso. Uma ve; mais. os nomes
tomados isoladamente por eles mesmos, são marcas, pois nos servem para evocar de novo
nossospens'mentos na mente; mas não podem ser signos, a menos que sejam dispostos e
ordenados num discurso de que são partes" (Id., Z)e carpore,i, cap. n, S 3, i, p. l5). Cf. id.,
Z%eE/eme/znof Zaw, cap' xm, S i; .Leva
afã, cap iv, pp. ioi-oz; trad. cit., p. z8
47 John Locke, .4a EsiaWco/zcern;rzg
/7uman C/nderxlandibzg,
in, cap. n, S4; trad. francesa P.
Custe. Paras:Vrin, i97% p. 326
3ii
:: #l::llilí11*
H -
*
o ponto em que o nominalismo se torna incapaz de nos oferecer, mesmo
transpostas, as "vantagens" do essencialismo. Lendo Hobbes, ficamos
surpresospelo fato de que o pacto lingüístico cessamuito rapidamente
de prestar os mesmos serviços que o Verbo divino, pois a possibilidade de
os nomes designarem iem eguzboroconcepções comuns a todos é extrema-
mente restrita. Há, certo, o exemplo da geometria. Mas, pensando bem, o
entendimento sobre as verdades geométricas depende de uma condição
de todo contingente: ele provém de que "não vão de encontro à ambição,
ao lucro ou à concupiscência de ninguém".s: Senão, estejamos seguros de
que aconteceria com a matemática o mesmo que com a doutrina do justo
e do injusto, que é objeto de "disputa perpétua" e de que a geometria
teria os seusLyssenkos. E nada mais normal, uma vez que nenhuma de
nossasconcepçõesé representativa de uma essência,e que não nos con-
fraternizamos em nenhum Logos. Como Jamaishouve consensono que
se refere aos nomes que designam as afecções e as valorizações, isto é, a
maior parte de nossas concepções,s; é o equívoco das denominações e
a variaçãodo sentido conforme os falantes que setorna a regra.
Ainda que a natureza daquilo que concebemosseja a mesma", os
homens não podem evitar, "/rz rÃecommondíçcozzrxei",as significações
"inconstantes". Aquilo que diferentemente concebem, diferentemente o
nomeiam: um dá o nome de crueldade àquilo que o outro chama de./üi-
fzFaetc. Donde o extremo cuidado que é preciso tomar, quando racioci-
namos,para eliminar aquilo que provém "do natural, do temperamento
e das paixõesdo falante", e para circunscrever a "izkn Pca ;o ÜI/zzi re:" 54
3i3
7
58. Cf. J. Locke, op. cir.) m> cap' z- Poder-se-ia tirar de Hobbes uma condenaçãoda litera-
tura de "confissões", que propõe quer o leitor experimentar aquilo que por principio elenão
poder.ia sentir. Conceder-se-á pelo menos que só há ma] pela metade quando mantemos a
consciência da incomunicabilidade de princípio: as metáforas dos poetas são inocentes, pois
professam seu caráter Hutuante" (ZevzarÁan, cap. iv, zh/ne). O mesmo não ocorre com a
retórica, sobre a qual o julgamento de Hobbes é de uma severidade "platónica':; o orador
é aquele que "não se preocupa fm penetrar na natureza das coisas", que "não representa as
coisastais como são" e que faz "todas ascoisas aparecer caosauditores] tais quais sãoem sua
mente" (De czve,cap' ':, S iz, e cap' :o, S l r). Mais exatamente, a malícia do orador provém
de que quer fazer país'r por significação unívoca (o Justo, o Injusto) aquilo que sabe ser a
concepçãoparticular e interessadaque tem do "justo" e do "injusto". Da mesmamaneira.
es associa estreitamente a retórica à sedição (cf. ZZe E/e«-enrf o/' Zal«, n, cap- vln
S i4-i Í)- O bom orador chega a alucinar seu público a fazê-lo crer que "sente uma dor ou
uma pena que não sente". Alucinação que está na origem do fanatismo: os homens crêem
estar em presença.da significação mesma e esquecem que, na condição de "pessoas priva-
das", não têm o direito de se arrogar o conhecimento do Justo e do Injusto condenação
platónica", mas tambémbem antipjatânica da retórica: graçasà "bruxaria" do orador.
creio contemplar a Idéia; torno-me platónico
ig- Nicholas de Malebranche, RecÃercÃe
de /a verzzé,ni, cap- vn, S4
3i5
7
l
::=Tll=?=.::1 :: :==='=.!.:':='ã::=:',=:t'
3i7
admiram", sob o pretexto de que as dispuóss semânticasrelativas aos
valores seriam absolutamente indecidíveis."
lv
E
J'''\
7o' Immanuel Kant, C'rzrz'gzede /a raüon przre("Disciplina da Razão Pura"), trad. francesa
A. Tremesayguee B. Pacaud. Paras:pur, iPSo) p. 5i4
7i- "A filosofia moral deles não passade uma descrição de suaspróprias paixões [...] esses
filósofos fabricam as regras do bom e do mal conforme aquilo que pessoalmenteamam ou
não amam; dessa maneira, sendo os gostos tão diversos quanto são, não há nada sobre o qual
universalmente convenham, e cada um faz, tanto quanto ouse, tudo o que parecebom aos
próprios olhos, o que conduz à subversão da República" (T. Hobbes, Ze zarÁan,cap- XLvi,
p- 686;trad.cit., p. 681)
7z. T. Hobbes, Z)e Áomzlze,cap. xm, S vnr, pp. 68-6g
3i9
houve promessa ou .zcordosobre algo, deve-se consultar o texto das leis.
Para saber se, sim ou não, "uma coisa pode estar inteira em vários luga
res", é preciso apenas voltar ao sentido da palavra tal qual é comumente
empregada.'3Lá, devo reportar-me a um código editado ou divulgado,
e a verdade é feita pelo Soberano.Aqui, devo simplesmente reconhecer
"o que os homens entendem quando dizem que uma coisa está /nre;ra
em alguma parte", e a verdade é obra do nomenclador... Mas, pensando
bem, a diferença será menos nítida quanto parece. Se muitos homens
(extraviados, por exemplo, por alguma escolástica) se pusessem a sus-
tentar que "uma coisa pode estar inteira num lugar e também alhures",
romper-se-ia o "commoncome/zfd'men". E é isso que quasesempre
ocorre, porque os filósofos passaramseu tempo desviando o sentido
das palavras, e não há absurdo que não tenha sido sustentado pela fé
dos autores.Donde a necessidadede reilaóeZecer
azzrom.zfícamenle
esse
"commoncome/zf" e de prescrever publicamente "regras comuns a todos
os homens", a fim de dar cabo da equivocidadedos nomese prevenir
todas as querelas por ela engendradas." É assim que as /eú c/vü são o
acabamentoà nomenclatura.
Hobbes, claro, não exige que os cidadãos passeiem com um Có-
: digo no bolso. Na Cidade, muitos juízos de valor são unânimes sem que
H; seja necessárioaos homens se referir às leis públicas: "o roubo, o adul-
tério sãopecados" etc. "Mas não perguntamosseo roubo é um pecado,
nós perguntamos o que é que se chama de roaóo."" A quem devemos
então nos dirigir? A Sêneca,a são Tomas? Àquele que julgamos ser
depositário da "reta razão"? Mas a "reta razão não existe", e essejuízo
será ele mesmo prontamente contestado. Ora, os homens não poderiam
conviver. se não estivessema todo momento de acordo sobre as verda-
des. A única solução é, portanto, renunciar à esperança quimérica de
fazer "zÃei;ng/e men" como[aú concordar sobrenão importa que ponto
litigioso e delegar à Cidade o cuidado de determinar o que é na verdade
"racionalmente condenável
Nesseponto, é grande a tentação,confessemo-lo,de resumir o
pensamento de Hobbes da seguinte maneira: onde a verdade nos es-
capa, o édito do Príncipe supre o seu lugar. O que seria um completo
;;:l:T.i:=,;:.==, ...;11::;;1::«
.:' ';."-« :","- ":-«-. [~..]
humano cujos membros, esmo'zfaneamenfe,
comungariam da verdade no
qual a ciência, pela evidência de suasdefinições e pelo perfeito encadea-
mento de suas razões, deveria conduzi-los a um acordo, ao menos no
longo prazo- Platão, portanto, se enganou bastante ao pensar que "nem a
lei. nem a ordem é mais forte que a ciência, e [que] o intelecto não pode-
ria, semimpiedade, serservidor ou escravodo quequer que seja".'; Cabe
à ciência expor o verdadeiro; mas, quando se trata de instituir a verdade,
"a lei e a ordem" são mais#or es que ela. Por aí reencontramos este tema
maior de Hobbes: não há "semm commzznú"a fazer parte por essência
da natureza humana; não pode haver garantia de um reconhecimento
recíproco entre os sujeitos racionais. A partir daí, se não houvesse um
"conho/z poH'er" que a todos nos constrangesse a nos comportar como ie
houvesse um "leram commzznú",não haveria prática da verdade a não ser
no gabinete de alguns cientistas e nos colóquios de matemáticos (e ainda
sob a condição de que neles Hobbes não encontre Wallis...), enquanto a
fúria da "confio ersWa,zdc/amoízr"tomaria conta do lado de fora.
Se tal é a função do Colmo/z-wea/zÃ, seria melhor traduzir a palavra
por "República" (res pzzó//ca) do que por Es'ado. pois a palavra Estada
forçosamente faz perder um traço essencial do " Clommo/zwe.z/fÀ":
ela não
indica que somenteno Cam«zo/zwea/rÃ
cessa(ou deveria cessar)todo
litígio semântico, porque é somente nele que a miríade de linguagens
privadas" dá enfim lugar à unidade de uma "linguagem pública". Tra
duzindo Commonwea/fà por Eirado, estaremosportanto mais dispostos a
78. Platão. Z,e&,lx, 875c-d. Essa tese abre, além do mais, a via a uma máxima que Hobbes
julga eminentemente perniciosa: visto que, entre os homens, o intelecto não pode ,Jamais
exercer de fato o árÉÃef/zsobre todas as coisas, (soberano-absoluto, o "rei-filósofo" rapi-
damente se torna urn tirano), mais vale que todos, incluindo o chefe, se submetam às im-
perfeitas "leis escritas". Por ter tomado como ideal a soberaniado saber,minam-seassim
os fundamentos da Cidade, desde que se admite que esseideal é irrealizável. "Outro erro
da política de Aristóteles é aquele segundo o qual, numa República bem ordenada, não são
os homens que deveriam governar, mas as leis [-.] quem crê que a lei, que sem asmãos e
as espadasdos homens não passade palavras e papel, pode fazer-lhe mal? E esteé um dos
erros perniciosos, pois induz os homens, cadavez que não gostem de seuschefes,a se ligar
àquelesque os chamam de tiranos" (T. Hobbes, Z,eviarÁan,cap' XLvi, p' 699-7oo.;.Erad.cit.,
P- 6gi). Nesse texto seconsuma uma completa inversão do platonismo (cf. Pa/úffo, z97b-
3ozb): i) as leis (sungrá«:«.ara) agora já não devem ser colocadas do lado do cosmme Oarn'a
áfÁe):elas nada maissãoque asordensdo Soberano; z) longe de ser urn mal menor e de dever
ser opostas à "constituição mais verdadeira", as leis civis são as únicas regras universais; 3),as
leis já não sesustentamnumaletra morta à qual faltaria o espírito (a epísfénze):
o que faz
delas "palavras e papel" é a ausência da espada da Justiça.
Por brutal e mesmo absurda que seja a arbitragem, ela ao menos nos livra
da vã perseguição da verdade mas aqui estamos bem longe de Hobbes.
-'. . ,.. .
Como,paraele,averdadenão ' '
podeserobjetodeumadescoberta,aim- '" '
possibilidade de descobrir nada tem de desesperador. A verdade é c/1%zda.
não encontradapor contemplação-- e a instituição não é o substituto
dela, mas a condição de possibilidade de seu funcionamento.
323
n: n
!i=Ee'!=:=:
: llBIF
:;:::;1:;
:: 11H;l
ll
tal recém-nascidomonstruoso é um domeme se convém alimenta-lo e
batizá-lo? -- Respostade Leibniz: "Quando duvidamos seum monstro
é homem, duvidamos se possui razão. Quando.soubermos que a possa:,
os teólogos mandarão batizá-lo e os jurisconsultos, alimenta-lo" .''
Se tentarmos situar Hobbes em relação a essapolêmica, percebe-
remos que sua posição é complexa. De um lado, ele seria do partido de
Locke; quem pretende definir uma "essência real" forçosamente peca
por presunção. Mas pode-se concluir daí que tantas STOas cabeças,.tan-
tas, ou quase, 'são as idéias abstratas diversamente.compre:ndidas? E
dar-se à indecidibilidade? Não. Hobbes,por outro lado,
partilha o otimismo.de Leibniz -- mas poT uma razão bem duerente:
como é da natureza da verdade ser mf;fada, e não neve/ada,não é uma
.
análise de essênciamais refinada que nos fornecerá a resposta: é bem
simplesmente o conhecimento da lei da Cidade. Se uma mulher dá à
luz uma criança monstruosa e caso se pergunte se esser.ecém-nascido
=::=:.:.';==:,'L=,'H=:.:1
:= il::: :
;s coisas parecem, a cada cidade, belas e justas, elas também o são para ela,
)25
Y
Reconhecemos a obra de clTtcpelo fato de que nenhuma ideia que eLa suscitct
zm nós, nenhum ato que eLanos sugerepode esgota-ta ou concluí-ta \..l\ e nào
há LembrcLnÇa,
pensamento ou anão quepossa anular-Late o efeito ou libeítaí-
.losinteiramente do seupoder:
3z7
r
IZ i: H: Hj
enttmentofundamental de uma realid(de sublime e inquietante,comagíada
pela presençadivina e pela magia: cl beleza quando multo temperada o.humor
mm este horror sempre estava pressuposto' -- Em que con.slstepata rlõs, agora,
a beleza de um monumento? No que é um belo rosto de mulher sem espír'to:
numa espéciede máscara.
3z9
r
autenticidade que se prende a uma obra poderia resistir por muito
tempo (excetuadoo casodos colecionadores)às reproduções fotográ-
ficas aperfeiçoadas? Por que fazer uma peregrinação ao Louvre ou ao
Rijksmuseum, quando as edições.Skiranos permitem admirar quasetão
bem e analisar melhor ainda a Gíocondaou a Ronda nolzzrna?-- Por que,
dizia-me recentemente uma senhora sensata,ser esmagadapela multi-
dão e correr o risco de me roubarem a bolsa, quando possover melhor
o papa pela televisão? Mesmo levando em conta que Jogo Paulo n não
é uma obra de arte, essareflexãodiz tudo sobrea perdado valor de
autenticidade na era da difusão da imagem. A obra não é mais um À;c
et /zun(que se deve visitar no seu antro, experimentar no seu ambiente.
O modelo do objeto único oferecido num único lugar ("Ame o que
nunca será visto duas vezes") é substituído pelo da partitura musical,
que pode ser executada por uma infinidade de orquestras. O modelo do
;monstro sagrado" que era preciso ver, pelo menos uma vez, "em carne
e osso", no palco, é substituído pelo da imagem fílmica, espalhadaem
mil cópias. Como, nessascondições, poderia continuar funcionando o
}. critério da autenticidade? Mas com isso, acrescentaWalter Benjamin,
"toda a função da arte é subvertida". A arte, por principio, não e mais
uma forma da cultura que nos convoca à contemplação e ao recolhi-
r' mento. Isso é sinal da sua degenerescência?Isso quer dizer que nossa
época, "materialista" e "tecnicista", só poderia deixar eclodir uma arte
de diversão, completada por algumas elucubrações de estetas?
Um dos grandes méritos de Walter Benjamin foi preveni'-nos
contra um diagnósticotão apressado-- já por citar essetexto, tao im
pressionante, de Brecht=
Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção Çdeobra de arteàjá
não pode mais ser-Lhe aplicada; assim sendo, devemos, com prudência e p'e'
:Unção mas sem receio -- íertunciar à noção de obra de arte, caso desejemos
preservar sua fu%ão dentro da própria coisa como tcLIdesignada. Trata-se de
uma fase que é preciso atravessar sem dissimulações; essavirada não é gra
guita, eLaconduza uma tramformação fundamental do objeto e que apaga
seu pensadoa talão'tto quecwo a nova noçãodeva reencontrarseu mo -- e
por quenão?-- não evocará mais quaisquer da Lembrançasvincutadm à sua
7
antiga stgnz#caçdo
33i
Y'
333
Y'
sendo objetos que têm a sua comistência para si' e nossa relação. com elm é
../npre uma reZafãode espetáculo(Anschauen). Ora, 'zamú;ca, exma
db
''-'r' ' -'''- ' ' zr-se, essa não se torna uma objetividade
unção desaparece \-l\ '4o ncterion .
Disso tudo, o que decorre? Quanta mab o olho e o ouvido se prestam ao pen
lamento, mais se aproximam do Limite em que termina a sua sen.suaLidade=
:=ll;l;l:'l::ll. ..;. .'~ó« [...]. .'«ó.' ''"' «'' «: "'* ' f";'=!
coisa. \Mas Nietlsche acrescenta, imediatamente (mostrando que está mau
peTtO da estética clássica do que acreditavahÀ e, por. esta via, chegamos à
barbárie, tão seguramente quanto por quahuer outra.
a sua m-
Walter Benjamin, em certa medida, retomou essestemas.Mas J . .l í. :.
;mexe/zs(anão ser que o filme seja enfadonho): ele as vive como veículos
de informação. E é por isso que a pallte essencial do trabalho fiHmico é a
/montagem,que regula o ritmo segundo o qual ê passadaa informação
Trata-se de um novo tratamento da imagem? Mas a noção clássica
-'-"vn'' ''"-
-' ' i,talvez, quando me apaixonopelapassa'
umparenteouamigomorto;o . . : --
51h'i:Ü ;: 3 1rl
circunstâncias são excepcionais. A maior parte do tempo,.uma imagem
nos interessa porque indica alguma coisa que não está na imagem: pelo
que nos deixa adivinhar, ou pelo que continua a ocultar. Somosmuito
l-'s os detetives do sensívelque os seus voyeürx,Platão dizia que a
contemplação das imagens nos distrai da contemplação das Ideias. Mas,
dessa maneira, estabelecia uma homogeneidade enganosa entre a ope'
mção perceptiva e o ímÜÃt intelectual. Admitamos que secontemplem
as Idéias'.que outra coisa fazer com elas, ]á que, por J?rincípiolelas s:lo
' diante do nosso entendimento? Mas, por
exibidas,eternaseimutáveis, . . . .
meio das imagens, limitamo-nos a nos informar e orientar. Contempla-
mos asIdéias; interpretamos as imagens, e é por isso que asolhamos tão
pouco- E também por isso que nada me parece mais conteslavel do que
opor a civilização da imagem" à do intelecto. Seria melhor dizer que a
-r''" ' ' ráficasoutelevisionadas)nosforçaaum
práticadasimagens(cinemato. . ; .. :.- .
exercício intelectual de outro tipo, a uma compreensão mais concisa, a
uma leitura mais rápida e, talvez, a um melhor domínio do alusivo.
"A Arte", dizia Hegel, "não pode servir-se de s;mp/es s;Frios; deve
dar às significações arrasa/zfa será'e/ que lhes corresponde."'' Mas, a
i3- É interessante notar que essacomparação, que Hege] teria julgado absurda, vai-se for-
mando espontaneamentenos escritos de Delacroix e Baudelaire(.çaZonz#46);em Gauguin,
que fala do "significado musical da cor" em Kandinsky. Mais do que uma metáfora, isso é
o sinal de uma guinada na concepçãoque o pintor formou da "obra de arte" e, simultanea-
mente, do imaginário.
i4- Arthur Schopenhauer,
Z)íe Me/fa& Wz'/Ze
zzndHor=fe//zzng,
suplementoaoLivro m, cap 36
[ed. bus.: O mzzndocomo o/zadeergresenfafâo,trad. M. F. SáCorreia. Rio de Janeiro: Contra-
ponto>zooiJ.
i5. Pierre Francastel, ,4ri ei laca ;güe. Paras:Editions de Minuit, 1956. pp. zzz-z3.
337
'7'
H -
339
Y'
34i
Y
3. td. ibid., P. zoo; trad. cit., P- Zz8. ]d., J.ei ]14ats et/es cÀoies, PP' 3z7 e ss; trad. cit., PP. 4: ' e ss'
34z Transgredira$nitude
ao dever de perceber o que é verdadeiro, não pode ser insensato".4Será
precisoaguardaro comemda epistememoderna -- ou melhor, "a figura
nova" que recebeu"esse velho nome"5-- para que a Finitude não seja
mais pensadacomo um território cujos limites posso traçar, mas sim en
trevista como a própria sombra do homem, como uma opacidade origi-
nária que nenhum exercício da consciência de si jamais poderá dissipar
E dessa "experiência" que brota a analítica moderna da Finitude
to homelnÜ, desde que pensa, desvenda-se a seus próprios olhos apenas sob a
brmct de um ser queja é-- numcl espessuranecessariamentesubjacente, numa
rredutÍveLartterbridade -- um vivo, um instmmento de produção, um veículo
pctra palavra que a ete preexistem.
4- Id., /# rozre de Za#o/ze â/'Hge c/mizgize. z: ed. Paria Gallimard i97%p. S8[ed.bus
::z;
i[T;.].:iz';:,:;=ii:,==':::. \«..
6. Id., ibid., P. 3z4;trad. cit., P.4o8.
7. id., ibid., P. 335; trad. cit., p. 4ZZ.
8. Id., ibid., PP.33S-36;trad. cit., p. 4zZ.
343
r
PP.420'zí
9. Id., .Les]WPli er /es cÀoies,P' 334; trad. cit
io. id., ibid., P. 35z;trad. cit., P. 444'
344 TramgrediíaFnitude
bem poderá marcar, de uma vez por todas, a falência de todo um estilo
de pensamento.
Há, porém, em pelo menosuma outra passagemde Hi paZaPra.ç e
m coúaf, a abertura de um enfoque algo diferente sobre a fenomeno
logia. A analítica da finitude é o que diz Foucault mostra "como
o pensamento pode.escapar de si mesmo", e às vezes acontece que ela
questione o ser do homem, "nessa dimensão pela qual o pensamento
sedirige ao impensado e se articula nele". Incorreríamos, portanto, em
equívoco, se levássemosdemasiado a sério o prometooficial de Husserl.
A fenomenologia não é "a retomada dó uma velha destinação racional
do Ocidente".'' Ela também foi uma filosofia da "era do domem", de
modo que não há o que estranhar se, "apesar de principiar por uma
redução ao .C2)F;zo,ela sempre foi levada a questões, â questão ontoló-
gica". Não há o que estranhar se a fenomenologia, transgredindo-sea
si mesma, foi levada a "pensar o impensado", esse Outro absoluto do
domem, que o pensamento do século xix evocou de maneira intermi-
tente. A fenomenologia, por sinal, não é uma exceção.Outras análises
de Foucault nos dão a entender que a epistememoderna por mais de
uma vez esteve a ponto de .faperar a figura de finitude, ainda aconche-
gante, por ela mesma constituída, e que ela própria nos convida a pro-
blematizar a base na qual trabalhava.
345
Y'
i3- M. Foucault, HÍs gire de /afo/;e, PP' 359'6o; trad. cit., P. 337'
b46 Tramgredira$nitude
psiquiatra não é um médico como os outros, é porque sua tarefa con-
siste, na verdade, em exorcizar por novos meios a antiga Desrazão.
Como explicar, então, o inesperado banimento desseconceito? É
nesseponto que encontramos, pela primeira vez na obra de Foucault, o
grande corte que separa a era da Representação e a era do Homem. A
Desrazão era um conceito típico da Representação. Do louco ela fazia
um homemcegado,apartadoda verdade mais um /me afo no sen-
tido bíblico do que um doente. Com a "loucura" medicalizada.tudo
será bem diferente. Nela, o homem não perde mais o acessoà Verdade.
o contato com o Verbo Divino: essestraços ]á não pertencem, como
sabemos,à "finitude moderna". O que Ihe sucedeé outra coisa:ele se
afasta de sua essência (de ser razoável e de cidadão). Não há dúvida
de que a fronteira entre o alienado e o são de espírito continua nitida-
mente traçada, mas a divisão já não se efetua segundo o mesmo critério.
E que, agora, "o ser humano não secaracteriza por certa relação com a
verdade, masdetém como seubem próprio, a um tempo exposto e es-
condido,uma verdade".'' E o que maisimporta, para o saberdo século
xix, é que essaverdade apenasesteja ocultada e que fazê-la reaparecer
dependa da arte do terapeuta.
Essa nova percepção que se tem do insensato aparece com toda
a clarezano texto da .EbzcicZope'dza
de Hegel a respeito da loucura.'s O
louco deixou que o "gênio mau" da particularidade triunfasse dentro
dele, mas nãoperdezz a raÍâo. Os loucos continuam sendo .f/rrZlcÃe metem,
essênciasmorais, continuam tendo consciênciado Bem e do Mal eé
por isso que o seu lugar é no asilo, não na prisão (nada têm a ver com os
perversos,cujo "único delírio é o do vício", como dizia Royer-Collard
acerca de Sade). O terapeuta, acrescenta Hegel, pode assim apoiar-se
no que há de "racional" no doente para devolvê-lo a seu óesierexSe/Z:r.
ao melhor de si mesmo. O louco é um ser reintegrável na razão.
Essaspáginas contrastam com as que a Xe/zomenoZog;a
do esvai o
consagra ao .Soó/ü,Êode Ra«.eaü (Foucault refere-se a elas). O louco, me-
dicalizado por Pinel, não submete mais o homem racional à prova que o
Sobrinho impunha à "consciência honesta" da .dzeA&rzzng.O discurso de
desrazão do Sobrinho era a "perversão de todos os conceitos e de todas as
347
T
;::;:Z=!;:!EH:HaE-
dade pelo enigma do Loucoque ele é e rLãoé.'
PP.456-57.
i6. M. Foucau]t,/]jsfoíre de/afo/;e, p' 48i; trad. cit
i7. Id., bid., P. 548; trad. cit., PP- 5Z:'ZZ-
'b48 Tramgredira$niude
Este Livro não é escrito em favor de uma medLcincte corLtraoutra, ou CaRiTa
a medicina, emfal,or de uma não-medicina. .Aqui, como em outros lugares:
trclta-se de um estudo estrutural que procura decifrar, rLa espessar'i do histó-
rico, as condiçõesda própria hbtória ~l
349
rzosia comc]é/zcfa[.-] vé izzrgir o gue, perzgoiame/zfe, eil'í o maú próximo de
]ue não podemos penar, objeto pa'a nosso saber, mas que semp'e sefurta dele."
:'==.==;=.;iú':::
::'Ei==1:
:::i :l:lT::
zo. Id.. Z,ei .4/on et /es cÁoleJ,p 387; trad. cit., P. 487
td., Araisaa/zce
de/a c/fnlgüe,p' ' 59;trad. cit., P. i8o-
3SO Traí.sgrecliía$rtimde
morte não se reduz a "uma noite em que a vida se apaga"::: é, antes
de mais nada, a melhor fonte de informações para o médico. "A partir
de agora, é do alto da morte que se podem ver e analisaras dependên-
cias orgânicas e as seqüências patológicas.":; O que foi denominado o
c(
vitalismo" de Bichas consistiu portanto, acima de tudo, no reconhecer
a ligação fundamental entre a vida e a morte". "Foi quando a morte
se tornou o arriar/ concreto da experiência médica que a doença pede
desligar-se da contranatureza e tomar corpo no corpo vivo dos indiví-
duos.":' Foi nessanova problematização que nasceuo conhecimento
objetivo do indivíduo vivo, assim como, acrescentaFoucault, "da expe-
riência da desrazãonasceram todas as psicologias e a própria possibili-
dade da psicologia". Em muitas regiões os novos saberestransferem,
sigilosamente, a verdade do ser humano para uma alteridade indissolúvel -
que, no limite, dissolve o homem. Eles abrem "uma enorme sombra
que as analíticasda finitude tentam dissipar porém em vão. "Esta
sombra que vem de baixo é como um mar que se tentasse beber.":s
necessário sa;r. Não para propor outra coisa: simplesmente para viajar
com toda a liberdade. Era preciso cortar as amarras.E é a partir disso
que adquire sentido a noção -- à primeira vista tão e . , a : de. 'era
do Ão/nem'' positivistas, fenomenólogos, marxistas, vocês não sabem
uv "v"''''' ' ' ) território; eu, porém, fui mais adiante.
quevivemnummesmoeunic . ..J- -....A..;.'lp-.
Parece que Foucault deve ter percebido desdecedo a urgência dessa
transgressão' que o levou a cortar as pontes com a fenomenologia e,
;; ãi'l':;.t:?:=,'i:=i;U:T=;H':=«''çF': e::-
is da obra de Foucault. Importa, porém, ver a que tipo,de.colocações
z7. Paul Veyne, "Foucault révolutionne I'histoire", in Commenf on écnr /'Àistozre. Pauis;
Seuil, i978, P. 383 [ed. bus.: Comose escrevea Àisróna. "Foucault revoluciona a história".
Brasília: Editora da UnB, ig8z, P- i79l-
3SZ Tramgrediía$nitude
Essa curiosidade vinha de mais longe: de uma vontade de ransgredzr,
que devemos tomar todo o cuidado para não confundir nem em Fou-
cault nem em Nietzsche com um furor de destruir.
Convém revermos o diálogo entre o arqueólogo e o filósofo, que fe-
cha a .4rgzzeoZogía
da saber. Você precisou recuar em todas as frentes
diante dos vários estruturalismos, diz o arqueólogo, e, agora, você lhes
propõe um acordo amigável. Reconhece as conquistas deles, mas, em
troca, pede que reconheçam a seriedade das suas problemáticas o seu
direito a indagar sobre a origem, a esboçaruma teleologia da história, a
instaurar os seus apnon materiais... Ora, o arqueólogo recusa-se a firmar
esseacordo com um pensamento que se empenha, diz, em "ocultar a crise
na qual já faz muito tempo que estamos e cuja amplidão só vai crescendo",
crise em que se joga o destino do sujeito transcendental sob todas as suas
formas, o questionamento do ser do homem, "enfim e acima de tudo, a
questãodo sujeito".:8 Nessascondições, é impossível um compromisso,
um meio-termo. E necessário escolher. Ou ficamos nessa"finitude", que
permite a continuação das exegeses, das investigações constitutivas e das
dialéticas. Ou então saímosdela, isto é, invertemos o procedimento dos
filósofos: recusamo-nos a utilizar todos os conceitos-chave repetidos pe-
las analíticasda Finitude(come;énc;a, ;/zdzpz'rezo,
xzÓe/ro)
e vamos procurar
a verdadeira identidade (ou melhor, m verdadeiras ;de,z;Jades) dessas
personagens por demais familiares perguntar quais são as modificações
teóricas, as práticas, os dispositivos que as produziram sob tal forma, em
tal época, em tal área determinada. Já não nos contentaremos, neste caso,
com perguntar de maneira vaga: como é que o homem é sagezfo na vida?
Como é ia/e;ro de uma linguagem mais antiga do que ele? O que os fi-
lósofos chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou "homem" resulta de
milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entrecruzam. São
esses trabalhos que precisamos reconstituir mediante estudos precisos,
exame de arquivos, análise de práticas. Perguntando, por exemplo: como,
no Ocidente, numa época tal, o homem foi feito su/e;ro;/zd/ /dua/? Ou
se fez iÚezro de uma "sexualidade"? É nisso que vai dar a transgressão
da "finitude" boazinha e sem surpresas, na qual estávamos contidos: na
possibilidade de irmos escavar, fuçar em toda parte, até mesmo zombando
daqueles que nos peçam documentos de identidade na possibilidade de
fazer o Sujeito, tornado "sujeito", explodir em mil estilhaços.
z8. M. Foucault,,4rcÁéoZogz'e
du savolr. Paras:Gallimard, ig6g, p. z66
353
menos desconcertante.
H«RIH$1$1Hziilxni
3S4 Traí.sgredlía$nitude
Quem era Dioniso?
* Extraído de Xrz'feno/z,v. z6, n? 74-75) ig85. Tradução: Mana Heloísa Nortenha Barrou.
1. Arthur Schopenhauer, Ze .44orzdecomme vo/onré e/ comme repreaenrafzon,trad. A. Burdeau.
Paras: pur, s.d., pp. i-i7z'73 [ed. bus-' O nzEzndo coado vontade e repreienrafão, trad. M. F. Sá
Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, zooi]
z. Friedrich Nietzsche, Góf en-Z)dmmerü/zg(G-Z)) [Crepúsculo dos ídolos], in mer&e.Leipzig
i=:'
Króner, igzo-i93q v. v) Pp- 18i-8z; trad. francesa J.-C. Hémery, in OezzrexpÁz/osopÁigex
c0/7zp/êles.
Paria:Gallimard, i974, v vm. p- l5i
3J5
do medoe da p/idade. Eu já tinha compreendido quão falaciosaé a
análise aristotélica da tragédia.' . .
glbX:l.nG;!=:fP$:$
deveria, ao menos, indicar-nos, a nós "modernos", que não mais esta-
mos à altura de reencontrar na tragédia essa"bebida de guerreiros ' que
provavam os contemporâneos de Ésquilo a se crer no Nietzsche de
i876, aí estáo que }ádizia, maisou menosclaro, o livro de.]87i
Resta saber se devemos crer nessaafirmação de Nietzsche. Acontece
a um autor filtrar o que relê de si mesmo alguns anos depois. Teria sido o
que aconteceu com Nietzsche quando retornou a.seuprimeiro livros Essa
questãonão é, como poderia parecer, pura erudição. Porque se trata de
L n B A HI rrrl =. .QQ+,\
$=
plásticas. É essecontra-senso que denuncia, em i871, o pequeno escrito
de Nietzsche: MmzÉ zzndWor [Música e pa]avra]. É verdade que uma
música que acompanhauma cena ou uma ação é, muitas veze( o me.
Ihor comentário destas -- mas isso não acontece de maneira alguma por'
que a melodia e o ritmo sejam imitações do visível. É por distração que
cremos nisso, por falta de ter realizado uma distinção fundamental en-
tre dois gêneros de representação: i) aquelas que se manifestam como
sensaçõesde prazer e de desprazer e formam a base que não pode ja-
mais faltar às outras representações ÉhcÃeúzzzng !Xorm universal que se
chamará, com Schopenhauer, a "vontade" e que é simbolizada, na lin-
guagem, pela tonalidade da voz; 2) dessefundo sonoro comum a todas
as línguas, destaca-sea simbólica dos gestos que dá origem à palavra
articulada (sendo entendido que "consoantes e vogais são posições do
órgão da linguagem, portanto gestos"). Somente nessasegunda classe
de representações é possível ser efetuada uma imitação das aparências
papel que só pode ser completamente estranho à música.
De onde se compreendenão somente a originalidade da música,
mas também suasuperioridade sobre asoutras artes. Se é verdade que a
música não cessade despertar imagens no auditório, em contrapartida,
o caminho inverso é impraticável. Contemplem, tanto tempo quanto
queiram, a Santa Cecz'7za
de Rafael escutando o coro dos querubins.
Essa visão não lhes evocará, Jamais, qualquer sonoridade que seja. E
í. id., G7]P.i33
357
T
se, por acaso, ela tivesse evocado uma para o pintor, essenão teria sido
pintor e, sobretudo, não teria sido Rafael, tão profunda é a incompati-
bilidade entre as formas e o som.
io.Id., cr,p.67.
ri. Id., Z);e [ZmcÃu/2des lmerdemIA inocência do devir], v. x, io
359
T
quanto a !ógica e a nüturahdade dos costumes; eta foi cortquistc'da, querida,
ganha; eLafoi a vitória deles.''
36i
Y'
l$f:l:
i7. "Como nasce a Arte? Como remédio ao conhecimento. A vida só é possível pelas ima-
gens do sonho artístico"(Id., [/mcÀK/d, x, 38)-
363
Y'
Este mosaico de palavra, em que cada palavra, po' sua sonoridade, seu lu
gar, sua signi$cação, transmite sua força, à direita, à esquerda e sobre ç)
conjunto, estemínimo de signos, em extemão e em número, atingindo, nesse
ponto, o má)cimo rLa energia dos signos \-l\ todo o restoda poesia pa'ece, em
comparação, vulgar -- simples sentimentalismo tagarela \. .l\?
z9. id., G-Z),in }HerÉe,v. vn, p' '75; trad. cit., p- t46-47-
3o "Minha ambição é dizer em dez frases o que outro diz em um livro o que outro não dí{
em um livro" (ibid., trad. cit., p. i45)
3i. Id., G.-Z),p. l73; trad. cit., p. i44
3z. "Sem um vivo interessepatológico, eu nuncateria conseguidotratar uma situaçãotrá-
gica, e eu as tenho antes evitado que procurado. Não seria uma das vantagens dos Antigos
que o mais alto patético tenha sido para eles apenas um jogo estético, enquanto para nós,
a verdade natural deve estar presente para que uma obra semelhante seja produzida." Essa
observaçãode Goethe é citada no Gr, p. i76.
33. F. Nietzsche, (;Z), trad. cit., p. l 5o
34. Id., Ze }zaWageur er ion amóre]Z)er Manderer urzdse/lz .ScÃarie/z], trad. R. Rovini, in Oezzvrex
pÁÍ/osopÁlgz'eaco/np&fei, v. m(n), p. zz5 "A grandeza de um artista não se mede pelos 'belos
sentimentos' que desperta: somente as mulherzinhas podem crer nisso. Ela se mede pelo grau
em que seaproxima do grande estilo, pelo qual é capazdo grande estilo. Esseestilo tem em >
365
então, uma mutação de Dioniso. Apoio, certo, não figura mais entre os
conceitos de Nietzsche. Mas sua exclusão não é certamente indício de
uma complacência crescente em direção ao orgiástico, de uma concessão
ao "irracionalismo" vulgar.
367
Y
-,
1:11:ill(==:\.'«''~',
368 Que'n era Z)zor:isor
êxtaseé o contrário de uma mentira; nele, o iniciado sai de si mesmo,
esquece sua individualidade factícia e se abandona às forças telúricas.
Ê essa,precisamente, a virtude mágica que o Nietzsche wagneriano re-
conhecia na música de Wagner, "o maior mágico e benfeitor entre os
mortais, o dramaturgodos ditirambos". Escutemo-lo em i876 (quando
ele estáa ponto de denunciar a fraude) exaltar "o sedutor" que ele vai
dentro em pouco estigmatizar como impostor.
369
Y'
lã!=i==H':lm:à
: :: a:l
de toda coerção por regras arbitrárias como se se tratasse de um produto
da simples natureza".4i Dessamaneira, só podemos falar de óe/m-errei
quando "a natureza intervém para dar regras à arte'. , na pe:soa do g:nzo
Nada mais distanciado da concepçãonietzschianado Criador: "mesmo
quando eles têm de destruir palácios e organizar jardins, repugna-lhes
37i
r
56.Id., JP:44,
n?87o.Cf. n' 94o
373
Y'
deixa-lo crer.
Assim,quandoselêno aumento
. .. .. n?
,,--853 da Honzade de Falência
...l......
homem deve ser por natureza men idoso,mais que qualquer outro ser,
deve ser arfüfa" . Não se trata, portanto, de uma arte destinada a mentir,
mas de uma arte que, por essencia, á menu;ra. Em que consiste sua dife-
rença com relação à arte apolínea?
Nietzsche o indica em uma frase lapidar: "o p'óprio fato de que a
i=:=::?
::':=:=::i' T=1::J='= :;==:'=:,
por princípio, à necessidadeque o homem tem de mascararo aspecto
terrível da existência. O mentir não é mais a ação de Apoio, não mais
consisteem nos "divertir" da realidadedionisíaca.E, agora, o prõpr:o
57.id.,ibid., n? 576.
375
T
Nietlsche e a
6o. Gilles De]euze. ]ViefÍscÀeet /a PAz'/osopÀze.
Paria: puB i973) p' i5 [ed. bus
//oioPa. Rio de Janeiro:Ed. Rio, l976]
377
r
Pre$ro dizer que m papões não são contentamentos ou despraleres nem opiniões,
mclstendência, Oll antes, modi$cação da tendência, quevêm da opinião ou do
sentimento e quesão acompanhadas de prazer Olcdespraqer}
* Extraído de Adauto Novaes (org.), Or senzdai dapa&ão. São Paulo: Companhia dasLe-
tras, ig87. Não há mençãodo tradutor.
1. Gotíhied Wilhelm Leibniz, .Azoupeazzx esi.zú sur /'e/Ifendeaze/zr Ázznz'zz'n,n, n, g-
z. René Descartes, Pa.sizo de /yme(parte i, artigo i), in Oezzvreide Z)eicarfei, ed. A-T. Paris
VrIn/CNRS, V. XI, P. 328. [N.E.]
379
'T
está naquilo que faz ocorrer uma forma. Diz-se paciente, ao contrário,
àquele que tem a causa de sua modificação em outra coisa que não ele
mesmo. A potência que caracteriza o paciente não é um poder-operar,
mas um poder-tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que
nele ocorra uma forma nova. A potência passiva estáentão em receber
a forma. Em termos aristotélicas, deve ser lançada à conta da matéria.
Em segundo lugar, padecer consiste essencialmente em ser movido ao
passoque o agente, na medida em que sua atividade própria.está em co-
municar uma forma, não é essencialmentemutável. Ocorre, decerto,que
ele deve mover-se para agir sobre o paciente, mas não enquanto agente.
E porque também ele é um ser que contém matéria. O paciente como tal
e que é, por natureza, um ser mutável, caracterizado pelo movimento.
38o Oconcefrodepafxãa
perca o seu sentido mais amplo deBenómeopaii;vo (sentido que igual-
mente convém às percepções sensíveis, como dirá Descartes) para vir a
designar as percepções da alma. O objetivo do orador, e mais ainda o do
poeta, não consiste apenas em convencer pelos argumentos. É necessá-
rio também que ele toque a mola dos abetos, e utilize os movimentos da
alma que prolongam certas emoções. Dessa forma, é preciso então saber
a propósito de que objeto determinado e por que disposiçãodeterminada
do autor se realizam estasvariações afetivas. "Entendo porpazxõei", diz
Aristóteles na Rezónca,"tudo o que faz variar os juízos e de que se se-
guem sofrimento e prazer."; Assim, sinto cólera quando sinto desejo de
me vingar de uma manifestação de desprezo, de uma humilhação ou in-
sulto. Sinto ódio quando, a qualquer preço, desejo a destruição de alguém,
mesmo que eu não seja testemunha do mal que essealguém sofre.
Essesmovimentos da alma são um dado da natureza humana e não
se trata de extirpá-los nem de condena-los. Com efeito, não é em ra
zão dospárÃeque sentimos,diz Aristóteles, que somos julgados bons
ou maus: isto seria absurdo, pois eles estão inscritos em nosso aparelho
psíquico, e não podemos deixar de senti-los. Ninguém se encoleriza in-
tencionalmente.Ora, a qualificação bom/mau supõe que aqueleque
assim julga escolheu agir assim. Um homem não escolhe as paixões. Ele
não é, então, responsável por elas, mas somente pelo modo como faz
com que elas se submetam à sua ação.É dessemodo que os outros o
julgam sob o aspecto ético, isto é, apreciando seu caráter. SÓpode ser,
aliás, dessaforma. Pois um Juízo ético seria simplesmente impossível se
não houvesse como regular as paixões. A excelência ética (areze0-- que
traduziremosmuito imperfeitamente por v/rrzzde só pode serdetermi-
nada pelo modo de reagir às paixões e, mais precisamente, pelo modo
como um homem pode tempera-las. Sempre que eu ajo de modo a re-
velar meu caráter, meu comportamento emotivo entra em Jogo,pois os
outros não dispõem de outro critério para me Julgar. Sem as paixões,
também não haveria uma escala de valores éticos. Sem as paixões, ou
antes,sem a possibilidade que nós temos de Jóia-/m. Pois as paixões e
asaçõessão movimentos e, como tais, contínuas, isto é, grandezasque
podem ser divididas sempre em partes menores e em graus menores, de
tal forma que, quando ajo, me é sempre possível fixar a intensidade pas-
sional exata apropriada à situação. Sem dúvida, essaescalapassional é
381
limitada. Há um grau além do qual nenhum ser humano pode suportar
uma emoçãoe um grau de apatia abaixo do qual não há como descer (a
ausência absoluta do medo só existe para um deus ou para um animal)
Entre essesdois limites há uma gama na qual se pode estabelecera con-
duta correia ou méd/a, a saber, a que nos permite evitar dois tipos de re-
açõesestereotipadas.No casoda raiva, por,exemplo, a conduta carreta
'variável segundo as circunstâncias) estará tão afastada da suscetibili-
dade extrema que me faz arrebatar à menor suspeita de ofensa quanto da
nsensibilidade extrema (ou vileza) que me faria tolerar palavras ou ates
contrários à minha dignidade. Percebe-seassimque o homem "virtuoso
não é aquele que renunciou às suaspaixões (como seria possível?), nem o
$2. Oconceitadepaixão
do agradável é insaciável e se alimenta de tudo" e que ele crescerá sem
medida se não for reprimido desde a mais tenra infância. "0 desejo é in-
finito por natureza e a maioria passaa vida tentando sacia-lo."4 Todavia,
a educação é mais do que a simples repressão dos desejos. Ela deve levar
os "homens bem-nascidos" a dom;nar suas paixões, isto é, a torna-los
aptos a utiliza-las de forma adequada. No homem bem-educado, opá-
f,6osnão é uma força que colocará permanentemente obstáculos à alma
razoável; ele está a serviço do ZcÜoie em consonância com ele. A boa
educação faz de mim um ser tão perfeitamente "condicionado" que as
paixões estão sempre à minha disposição. Sem dúvida, o homem é um
ser afável, mas essapassividade não o torna foguete das tendênciascon-
tra as quais ele jamais cessariade lutar. Se assim nos representamos as
paixões, é porque o Cristianismo nos fez acreditar na Queda e no Inferno.
Contra essefundo, a "virtude" só pode significar uma batalha contínua
contra minhas pulsões e a "lei" a que devo obedecer. Esquece-se então
de que a "virtude" pode ser determinada como simples questão de bom
gosto e de equilíbrio das paixões em função das circunstâncias.
Análise exageradamenteotimista da condição humana? Digamos
antes:análise alheia a uma mentalidade impregnada de Cristianismo. E
isto, ao menos por dois motivos: em primeiro lugar, Aristóteles não fala
nunca de uma lei moral que me proíba de praticar um ato qualquer. Aqui,
a regulação ética não é exercida por uma lei judaico-cristã, mas pela opi-
nião de um espectadorprudente, que aprovará/desaprovará minha con-
duta e avaliará se eu soube usar convenientemente minhas paixões. Não é
a uma lei que eu devo referir minha conduta, mas à opinião moderada dos
outros. Ora, os outros não mondamminhas entranhas nem meu coração;
não me julgam com base no que sinto, mas na minha maneira de reagir
ao que sinto. O homem não é portanto (ainda) aquele que, no segredo de
si mesmo, consegue a todo momento a vitória sobre si mesmo; é aquele
cujas paixões, à vista de todos, são proporcionais à causa que as produz e
à situação que as suscita. Não se trata de alguém obediente, mas elegante.
E não é exagero dizer que nessesentido a ética aristotélica é mais um tra-
tado de ia o;r-p;vre do que um tratado de moral, na acepçãoque se nos
tornou familiar. Um segundo aspectopermite-nos destacara inatualidade
de Aristóteles. Para ele, não existe uma razão pura prática, como para
Kant. O pensamento, por si mesmo, não é motor, e uma ação não poderia
383
ser a iímp/ei execução de um mandamento da razão. O que me leva a agir
;:; :l:-'o "g««.. /@;doP , «-.P«.. 0«, ' :'"P::T:!:kã'
(órexis)que estabeleceo fim; o primeiro motor de uma ação.e sempre.o
\'' feto' 'l uma pulsão. "A faculdade que move a alma é aquela coam:n.
v"J''' ',,5 Dessa forma não há qualquer conduta que sela capaz de inibir
totalmente as paixões. Toda conduta, inclusive a que se conforma ao /(eas,
deve servir-se das paixões. Essetema, por excelência, opõe.o aristotelismo
sub-
a toda filosofia ou a toda religião que concebaa moralidade como
missão incondicional a um /figos-- e particularmente ao estoicismo (o qual,
como se sabe,exerceuinfluência sobre Kant)
Ora, para combater tal tese, é necessário sustentarque um juízo tl:orlco (ou
que uma injunção da prática pura :la razão) sela.suficiente para de J rminar
'ima ação e que um ser razoável afetado de passividade seja cap':.de perse-
'"'- -'"' '
guirumobletivosemsermotiv do poruma
: pulmão.
; . . Não é proibido pensar
.J.../.-a.Á
que tal proeza seja possível e que vzrfz'ososeja sinónimo de rac/ona/:não é
escândalo ser estóico ou kantiano. Contudo, é necessário tomar consciencia
do que essaopção implica, quanto à interpretação que então se dá, apnod,
dará;xão, um obstáculo a ser transposto, uma.força que deve ser vencida.
/" Ora. não é essaa única análisepossívelda "finitude" humana,ou
melhor, da não-autarquia do homem (para evitar a ressonância cristã da
palavra ;finitude") Podemos, .igualmente, vivê-la da maneira descrita
por Aristóteles. Sem dúvida, devemos aprender a viver em conformi-
dade com o Z(Üos,mas sem esquecerque as paixões continuam sendo a
matéria de nossa conduta -- e que só a propósito de Sereipmszonazise
pode falar em co/zdzzlara ouve/ (se deixarmos Deus de lados' Paixão e
razão são inseparáveis, assimcomo a matéria é inseparável da obra.e o
mármore da estátua. Desseponto de vista, ninguém é mais aristotélico
do que Hegel, na Exléf;ca, quando ele.se esforçapor distinguir o que os
gos entendiam porpáfÃos e os modernos entendem porpazxão.
5.id., Z)ea/zzma,
ni, g, 43zb-433a;
cf. Erlcanfcomague'ia,VI,
z, l i39a.
6. M. Pohlenz,Z)febroa (Gõttingen, l97o), i, P. l 5o'
384 Oco/iceiro
depaüãa
A palavras írÀoi é de difícil tradução, pois paixão implica algo de in
significante, baixo como quando dizemos que um homem não deve
sucumbir àspaixões. Aqui, tomamos o termopárÀoi em plano mais ele
vado, sem qualquer nuança de censura ou de egoísmo. Assim é, por
exemplo, que o amor sagrado de Antígona por seu irmão consiste em
uln Farão.f,no sentido grego da palavra. [...] Orestes mata a mãe, não
sob o império de uma dessas pulsões internas da alma, a qual chamaria.
mos depazxão; opárÃo.f que o conduz a esta ação é bem pensado e refle.
tido [.. ]. Deve-se ]imitar opá/Ãos às ações humanas e pensa-lo como o
conteúdo racional essencialpresente no "eu" humano, preenchendo e
penetrando a alma inteira.
Nessas famosas palavras de Hegel, pazxão não tem o sentida que Ihe
damos na expressão"crime passional". A "paixão" de que se trata não
é um impulso que nos leva, ma/gradonono, a praticar uma ação.Ela
é o que dá estilo a uma personalidade, uma unidade a todas as suas
condutas. A paixão, continua Hegel, torna profundos os heróis shakes-
pearianos. OpárÁoi que os anima pode ser simples, como acontece com
o amor entre Julieta e Romeu, mas nem por isso tem a monotonia de
uma idéia fixa. Trata-se antes da tonalidade específica de suas condutas,
da tensão que unifica seus aros sem importar que situação estejam
enfrentando. Em suma, a "paixão" é então constitutiva de um perso-
nagem mas sem transforma-lo num maníaco, num "apaixonado", no
sentido em que são apaixonados, nos romances de Balzac, o avaro, o
pródigo ou o devasso. Stendhal é um dos analistas da paixão assim com-
preendida. Ou, no cinema, Visconti, no filme .Sedlzfãoda car/ze[.çe/zio,
i954] Aqui, o diretor tem tal maestriaem fazer com que o espectador
se torne cúmplice de sua heroína que esta tragédia de desgarramento
amoroso jamais produz o efeito de uma queda ou degradação. Anda
Valli simplesmente cumpre seu destino, como uma personagem da tra-
gédia grega; sua paixão e seu caráter são indissociáveis. Essa vibração
afetiva, que caracteriza os grandes personagenstrágicos, pode levar um
indivíduo à perda e tambémà glória; seja como for, ela escapaà nossa
385
1:: H l H H
qual não pode haver grandes realizações:
e esguecz/nenío.
38G Oconceitodepaixão
justiça com toda a segurança.Não há (ainda) um tribunal aristotélico
da razão. Repartem-se às análises das virtudes da Xr;ca /comagaãa. Ali
observarão que a excelência ética, isto é, a dosagem passional que define
cada virtude, é, em todos os casos, objeto de um difícil ajuste às c;rczzm-
f'ínczm.Requer-se,igualmente, "todo um trabalho" para tornar-se vir-
tuoso. Não é o primeiro que aparece que sabe, em todas as ocasiões.
equilibrar seu.comportamento passional como.onl,án. De onde vem a
dificuldade? É que não há uma fórmula universal desseequilíbrio. E
aquele que em cada caso e por sua conta consegue atingi-lo não pode
basear-seem nenhuma medida que seria válida para todos os homens,
todas as condiçõessociais,para os dois sexosetc. Em suma, para har-
monizar as paixões, não se deve contar com uma Ze/ moral: em nome
da lei só se pode reprimir.
Se a palavrapazkâo está solidamente associadaà da repreiião, é
porque Jãrepresentamos o /ceo.f como uma lei, expressapor um man-
ento que sedirige a todos, ignorantes ou cultos - por uma injunção
tão poderosa que todos os homens (iguais perante Deus e democratica-
mente iguais) seriam capazesde a compreender pela mesma razão. No
fundo, é essainterpretação legislativa do /cedi que nos força a pensar
toda a paixão como um favor de desvario e deslize e a considera-la. de
ão, como suspeita e perigosa. Se é necessáriopensar o Z:koi como
uma lei positiva, então os estóicos estão com a verdade: toda paixão,
desde o seu despertar, ]á infringe a lei que me constitui como um ser ra-
zoável, todas aspaixões, na sua origem, já me conduzem "para fora de
mim mesmo".' Essa condenação das paixões se dá sem apelação. Tente-
mos então medir quanto o conceito depázÁoi se encontra alterado.
O fato de op.ílÃoi ser tido como um fenómeno zrrac;ona/(.í/oyon)
quer dizer que haveria na alma, para os estóicos, uma força capaz
de derrotar o /ogo.f.O desejo, o medo, a cólera, não provêm de uma
alma irracional em nós. De onde vêm eles então?E que significa (ÍZogon)
quando Zenão.define a paixão como uma "pulsão excessiva"? (Ãormé
pZeo/záiozz.fa4i' Se o /l)goi é constitutivo de minha natureza, como pode
o áZogonsurgir em minha alma? Por meio da repõe.fenrafão
OÃanfmü).
Percebo alguma coisa, tenho um sentimento de prazer ou de dor eé
a representação que transforma essefato psicológico em uma re/zdénc;a.
387
Y
11
388 0concezodepazxâo
Compreende-se que Nietzsche se tenha perguntado se os estóicos
ainda eram gregos. Os gregos de antes da Decadência viviam com as
paixões e não co/z/raelas; eles não temiam deixar-se testar por elas. "Do
mínio das paixões, e não enfraquecimento ou extirpação das paixões
Quanto maior é a força do querer, tanto mais liberdade damos às pai
xões." '' Nada é mais antiestóico. Aos olhos de Nietzsche, a afazia estóica
é um remédio cuja utilização é o sintoma da mais profunda fraqueza. Os
estóicos, apesar das aparências, são os filósofos da vontade fraca. da von-
tade incapaz de enfrentar as perturbações da alma. "É preciso destruir as
paixões": esta é a decisão ingênua que torna danosos a maioria dos as-
cetismos. Danosos, não por serem "repressivos", mas porque partem da
idéia de que é impossível viver uma paixão sem ser totalmente dominado
por ela, e porque são, antes de tudo, sensíveis aoperzko da paixão.
389
Y'
E
39a Ocotlceitodepaixão
feitamente quanto é inútil tentar curar o apaixonado enquanto for presa da
sua crise. Ora, no que diz respeito à noção de rexpomaó;idade, a primeira
opção conduz necessariamente à sua ex emão, a segunda à sua real/#âo,
fato que poderá surpreender o leitor moderno. Ainda que a antropologia
de Aristóteles pareça pressupor um "humanismo", é Aristóteles, todavia,
que se revela o mais rigoroso quanto à determinação da responsabilidade
ética e jurídica. E é o platonismo que se apresenta freqüentemente como
um ascetismo enfadonho, que afirma que ninguém é voluntariamente
mau e que os apaixonados são todos irresponsáveis. Como devemos com-
preender essaslinhas cruzadas?Como a antropologia, que reconhece a
solidariedadeda alma e do corpo, seconcilia com uma moral, no fim das
contas, mais severa que a do platonismo? Refletindo sobre esseaparente
paradoxo, começa-se a compreender por que Aristóteles está bem mais
afastadode nós do que podia parecer há pouco e por que faz o homem
pagar muito caro (sem dúvida, caro demais para nosso gosto) pelo sfalm
de normalidade que o filósofo outorga às paixões. Decerto elas são ino-
centes, "inteiramente boas por natureza", como dirá Descartes. Mas isso
não é motivo para que a cada vez sejamos inocentados daquilo que delas
fazemos. Uma vez que as paixões não são nem mórbidas nem demoníacas,
sou ainda mais responsável pelo mau uso que delas possa fazer.
Restaque possa ter sido vítima de uma infância infeliz em que
meus pais e mentores tenham permitido que meus apetites se tenham
desenvolvido de tal maneira que já não sou capaz de refreá-los. Talvez.
Porém, curiosamente, como apontam os intérpretes, Aristóteles Jamais
evoca as circunstâncias atenuantes que pudessem valorizar minha má
educação. O que afirma, em compensação, é que na vida há sempre um
momento em que cabe apenasa mim não contrair maus hábitos. Poste-
riormente, é tarde demais: é como se eu tivesse lançado uma pedra que
não posso mais recuperar.'' Tornei-me "fraco" para sempre, e sou eu
quem deve ser responsabilizado por isso.
Consideremos um outro exemplo. Um capitão de navio que sevê
sob uma tempestade deve jogar ao mar a carga que prometera conduzir
ao porto. Caso contrário, haverá um naufrágio. Certamente, esseato é
perdoável. E, todavia, nem diríamos que ele agiu sob coafâo. Trata-se
ainda de um ato voluntário. Com efeito, guardemo-nos de fazer restri-
ções à esfera do voluntário. Sem isso, o que faríamos?
39i
C
'b9Z Oconceitoatrairão
a recusa em considerar o comportamento passional como involuntário.
Quanto a esseaspecto,pode até dizer-se que Aristóteles é mais rigo-
roso que os estóicos. Estes consideravam a paixão como voluntária, pois
decorreria da interpretação que dou da minha emoção e da qual sou a
"causa perfeita", assim como de cada um de meus atos. Porém, nota-se
ainda nas descriçõesestóicasque, mesmo que todos os homens tenham
uma natureza razoável, nem todos têm a mesma faculdade de se "adap-
tar às circunstâncias" e que a interpretação errónea, como observamos,
deve-sea um afrouxamento do /(eoi em mim, o que por si só já é um
fenómeno móró;do. Essetipo de análise impossibilita a separaçãoentre
o p'.,i;o/za/ e o paro/ógzco. Para objetá-la, é necessário ver desenhar-se
essa distinção na .Éf;ca /z;comagzzé/a. É preciso não confundir, diz Aris-
tóteles, o intemperante, que pode ceder à tentação repentinamente, com
o desregrado, que optou pela busca sistemática do prazer. Ambos são
censuráveis, mas apenas o último é incurável. Além do mais e á isso
que realmente importa essasduas formas de abandono ao párÃoi de-
vem ser cuidadosamente dissociadas da depravaçãomóró/da, que revela
uma completa ausência da parte superior da alma e que deve situar-se
'para além dos limites da maldade". Essesdepravados que vivem em
busca de prazeres "além da natureza" não podem ser chamados nem de
intemperantes nem de desregrados. "Os que roem as unhas, comem
terra, os sodomitas,escapama qualquer qualificação ética." Sua reali-
dade não se inscreve mais em uma tipologia das paixões, mas se refere
ao que, em termos modernos, se chama de patologia mental. "Aquele
que tinha fobia a doninhas estava sob a influência de uma doença."'9
Seria como se, em seus textos, Aristóteles quisesse desatar a difi-
culdade que encontramos para compreender e mesmo traduzir o termo
gregopá Ãoi. Compreendido como um abetomórbido que posso vir
a controlar, o pá Ãoi carrega originalmente dois conceitos bem dife-
rentes: opmizo/za/, que faz surgir a ética, e opa/o/ogzco, que remete ao
diagnóstico médico. Sabe-se quanto a fronteira entre essesdois domí-
nios varia de acordo com ascivilizações e as épocas:enquanto Aristóte-
les considera os sodomitas como doentes, a época clássicairá situa-los
entre os "desregrados" e ainda no século xvln alguns serão levados
ao suplício. Porém, o que nos interessa no momento não são as f)utua-
ções dessa linha divisória, mas saber se a paixão, tal como foi concebida
393
pelos escritores clássicos, conserva um sentido externo à sólida manu-
tenção dessadivisão.
Pode-se legitimamente chamar de pwi/o/za/ um comportamento
encarado como semivoluntário? Pode-se legitimamente chamar de
apaixonadoalguém que julgamos, enquanto tal, não ser totalmente res-
ponsável? Se respondermos afirmativamente .ou se desconsiderarmos
os conceitos de "vontade" e de "responsabilidade", renunciaremos de
fato à distinção entrepmiíona/ epazo/ck/co.Julien Sorel e Raskholnikov
tornam- sebelos casosclínicos. Ora, assistimos atualmente ao obscure-
cimento dessalinha divisória. Talvez um dos traços mais característicos
de nosso século [xx] tenha sido o crescente deslocamento de condutas
do território da ética para o da terapêutica. Trata-se de um aspecto,,da
modernidade, observou Foucault, distinguir o adulto são e normal, "in-
dagando-lhe o que ainda Ihe resta de infantil, quais as loucuras secretas
que nele habitam e que crime fundamental desejou praticar' :' Como,
então, salvaguardar a especificidade da paixão? Se se compreender que
todo comportamento do indivíduo tem suas raízes nas pulsões, cuja ori-
gem e natureza ele ignora, a paixão só pode ser um elemento eszrcznÃo
em mim, e não se trata mais de integra-la na minha vida, massomente
1 de submetê-la a um tratamento que a enfraquecerá ou exorcizarâ.
Não estaríamosassimretornando por outras vias à inspiração es-
t(bica? Pode-se dizer que a semelhança é pequena, pois nossos atuais
médicos da paixão não têm mais como objetivo tornar o indivíduo sá-
bio ou virtuoso, mas simplesmenteadapta-lo à vida, libertando-o de
suas inibições e angustias. Resta-nos apenas curar os doentes e tratar
deles. é ainda uma antropologia que, animada por esseespírito, escolhe,
de início, considerar Falo/c@;caa paixão, independentemente de suas
intenções libertadoras. O termo /;óer afãs, aliás, já.atesta que a paixão
não me pertence e tem como efeito tornar-me um a/le/fada.Sem dúvida,
não é mais compreendida como uma irrupção da animalidade ou do de-
moníaco no homem. Mas estamosseguros de que os tormentos por ela
provocados não se originam em nós mesmos, e apenas uma terapeutlca
seria capaz de encontrar a razão disso tudo. Para compreender o que
l de paixão .seria necessário
significaessedeclíniodaidéi . .. ,, pâr .o feno
:..
meno em relação com o deslocamentomoderno do "eu" e questiona-la
zo. Michel Foucault, Sawez//er elp zrzzr.Paria: Gallimard, i975, p' :95 [ed. bus.: P,zk;arepzz/zz
r.
Petrópo[is: Vozes,tg87].
394 Oconce;ro
dera;rãa
quanto à idéia de responsabilidade social. Essessão temasmuito vastos
para que sonhemos em aborda-los aqui.
Contentemo-nos com uma observação.
É fato que as sociedades evoluídas vêem esboroar-se as noções
defecado e vú;o. Mas será que a mentalidade moderna se tornou mais
tolerante para com as paixões? A palavra /oZeránc;aseria imprópria:
trata-se antes de uma neutralização do conceito de paixão. Não con
sideramos mais as paixões como componentes do caráter de um indi-
víduo, os quais ele deveria governar, mas como fatores deperfzzróafão
do comportamento que ele é incapaz de controlar unicamente com
suasforças. Estamos então, é verdade, menos inclinados a culpabili
zar o apaixonado, mas isso porque somos antes levados a considera-lo
doente. A medicina ocupa cada vez mais o lugar da ética; a noção de
desvio, o do erro; e a cura, o do castigo. Talvez fossepossível acom
panhar, na literatura, o desenvolvimento desse ascetismo da paixão.
Após Balzac e Stendhal, os romancistas continuaram a representar os
apaixonados.Mas estesnão são mais "monstros sagrados": a inspira-
ção shakespearianaesgotou-se. Tomemos os personagensmais notá-
veis de Dostoiévski ou de Proust. Eles convidam-nos mais a traçar
um dzagnósr;co do que uma gzza/{Pcafão áf/ca. Não inspiram temor ou
piedade, mas antes a curiosidade de decifrar uma conduta que, em
grande parte, são incapazesde controlar. Ora, a paixão só tinha sen-
tido pelo modo de reagir que a ela imputávamos e pelo controle a ela
imposto No momento em que o herói perde essaliberdade, não passa
de um cliente em potencial para um terapeuta.
Assim, atenua-se a paixão essa passividade que não excluía a
responsabilidade.
A exigênciada normalidade continua muito grande mas a infra-
ção da norma é imputada à doença e não a uma vontade má. Essa trans-
formação é característica de uma atitude permissiva? Seria um engano
assimo crer, pois uma moral austera pode perfeitamente contentar-se
com essatesede irresponsabilidade do apaixonado. O platonismo é um
bom exemplo disso. Afinal de contas, foi Platão quem começou a pâr
no mesmo plano/a Áéha/a e Éai noiéhara (paixões e doenças):' e que
descreveu o comportamento passional como um caso clínico. Para des-
pertar a desconfiança quanto à idéia confusa de "permissividade", não
395
poderia fazer melhor do que citar estetrecho de 71mezz,
que, à primeira
vista, pode parecer espantosamente"perm:ssivo
) abeto que comporta uma ou outra dessa perturbações deve ser chamado de
doença, devendo-se admitir que o píale' e a dor excessivos são para a aLmct
l mais grave dm doença. Pois, alegre ao extremo, ao sofrer, pelo efeito cla
doí, a pai)cão contrária, o homem é incapaz-de ver ou escutar com p'eclsdo
não importa o que seja, quandodespropositadamentese ap'essapct'a agar-
rar um objetoou desfazer-sede outro: ele torrLa-sefurioso e inapta ao menor
raciocínio. .assim, aquele em quem a semente éfarta e corre abundantemente
em sua medula, torna-se Louco,durante Q maior parte de sua vida, por ex
cessode prazeres e de dores: sua alma está doente e endoidecido pela ação do
:orpo No entanto, não o comideramos doente, mm voturttariamente peverso.
rodovia, na realidade, a tu)cúria imoderado é, em grande parte, Lamadoença
da alma provocada peru propriedades de uma substância que corre no corpo'
Da mesma forma, toda ve{ que esperamos que a impotência domine a volúpia,
Id., 71meü,8ób-d
396 0conceitodepaixão
Sombra e luz em Platão
ParaAndré L
397
em um "novo uso", restabelecendo-lheo sentido estrito da palavra la-
li iHgn; ;HI
;;h;RH:i:;i;:;::UZ».
Conhecemos certamente a maneira como utilizar a intuição in-
tel.ctual,'quanto mais não seja por co.mparação com os nossos olhos.
1.
i. Rena Descarnes,Regi para a direfão do espz'n'zoEReglzZae].
Lisboa: Edições 7q Regra m, p' zo'
'5t)% SombíaeLulernPLatão
quer espírito, mas para as quais a maioria não se preocupa em dirigir
a atenção.Descarnes,contrariamente a Platão,snão fala então de uma
'performance" filosófica de que o vulgo seria incapaz por causa de sua
miopia: o olhar do filósofo não tem de remontar a uma fonte luminosa
quepermaneceria secretaaos olhos dos outros homens. Esta é para Des-
cartesuma ilusão de responsabilidadedos filósofos gregos.Eram eles
que pretendiam olhar mais a/fo e mais Zo/zgee foram assim os primei-
ros a suscitar o maravilhamento dos ingênuos.' O espírito "perspicaz",
esse,olha deperzo,e do maüper oposiúe/. E não se gabade ter a vista
suficientemente penetrante para dissipar a obscuridade à qual estão con-
denados o resto dos homens. Pois não há "dificuldade" procedente do
fato de que a coisa pela qual se procura esteja enterrada fundo demais
ou colocada a uma distância demasiado grande. "Os conhecimentos das
coisas não devem ser olhados como mais obscuros uns do que outros,
já que todos são da mesma natureza e consistem apenas numa compo-
sição de coisasconhecidas por si mesmas."' A única superioridade do
espírito "perspicaz" está em detectar com a maior acuidade essascoisas
"conhecidas, por si mesmas", cujo encadeamento,se operado conforme
as prescrições do Método, resolve por princípio todas as "dificuldades"
que sepodem oferecer a mim. Não há uma aristocracia do olhar, como
os "filósofos" fizeram com que o vulgo erroneamente acreditasse.
Em segundolugar, o ato de "ver" tr&z em si, para Descartes,a
garantia de sua validade. A intuição é a mais "certa" das operações do
espírito: é uma representaçãotal que "nenÃam.zdzZv;danos fica acerca
do que compreendemos".8
Ora, é em vão que se procuraria na obra
de Platão pela idéia de uma "visão" que bastassepara excluir a dúvida.
Não é a força de uma evidência que mostra que a conversaçãodialética
está terminada e que a investigação logrou seu fim, mas simplesmente a
resistência que uma tese oferece para ser refutada. Assim, na RepzZÓ//ca:
"Ou demonstramos que não dissemosbem, ou enquanto não o fizermos
não afirmemos jamais que [...]".' E no So$xfa."Que nos convençam
de sua falsidade, refutando-a, ou, não lhes sendo possível, que aceitem
399
ili'Ü=:U,=H==:':,3Z=:H5,F=='==;:=:==1:::=';T:-
precht, ig8z.
i3. Platão, Baagüefe, zoie.
i4. Id., RepzZÓ/ica,484c.
4oi
Y'
4o3
Y'
r9. Cf. G. Brykman, Berre/ey:PÀ;/asapAieer apo/agir;gaze.Paris: Vrin, ig8z, PP. 9'' ' e notas-
4o5
Caminho,( 0Fogo
Campos Muro
Parede-tl
BI
11
ZZ.Id., Repzíó#ca,5i6b-c
4o7
Y'
z5. Id., Fádoa, trad. J. Paleikat e J. Cruz Costa in P/aipo. São Paulo: Abril Cultural, s.d
Os pensadores,iogc-foge.
z6. Id., St:/íçfa) 22gc.
4o9
Y'
é adequada.
:Rego a ver que a7üetes que têm o seno comum, e que ainda não estão imbuídos
de opiniões contrária, são de tat forma !evados a abraçar \minltm opta'ões\.que
parece que elas não poderão deixar, com o tempo, de ser recebiam pela maioria
dos homens, e ouso ctté dileí, pelos mak sen.gatos'
lt
;Á"'l:l ! ::il=:=:=;U:::i :j'=:ll«, ;..«.:" ';??!:-
Paras:
i:i::: :::"==
IHIHl$H$hii
Vrin,ig6z,P.77.
3o- Blaise Pascal, Pzmées, ed. Brunschvicg, seção l i-
3l . Immanuel
Kart,Z)'u/zro/lgra/zdsezgneur
ac/op
é/zagzzêre
capaz/osop/íz'e,
trad.J.Guillermit
Paras:Vrin, ig68, p. ioo-
4ii
Y'
Berkeley ou Zesceprzlgzzema/gre' /zzzl
* Extraído de .44a/zmcrlla,v. ii, n? z, lg88. Tradução para a presente edição: Mana Adriana
Camargo Cappello.
++Preferimos manter a expressãoem francês para não ofuscarmos uma possível referência
do autor a um texto anterior de título bastante semelhante, a saber, "Descartes, scepfzgüe
maZgré /uí", in R. Popkin, ZBe .flrLlo(7 of Scep ;cüm.Pum Eraimux ro SplnoÍa. Berkeley: Uni-
versity of California Press, i979. [N.T.]
i. Encontramos extensabibliografia sobre o tema em C. Turbayne: "cume 's influence on
Berkeley"(Recue /crer ariana/e dé PÁ;/osopÁle,n? i54, ig85). Turbayne acredita que a des-
coberta de duas novas cartas de cume resolve a questão em favor da leiMra de Berkeley.
Cf. R. Popkin, "Did Hume ever read Berkeley" (/furna/ af PÃI/oaopÃW,
i959) e A. Flew,
Hüme; PÁzZoiopÃg of Beber Londres: Routledge& KeganPaul, ig6i
z. Sobre a importância desse argumento e sua freqüência no final do século xvn, cf. G
Brykman, "Príncipe de ressemblanceet hétérogeneitédes idéeschezBerkeley"(Revi'e /nler-
/zalzo/za/e
de PÃI/oaopÃ;e,n' l54>lg85). Brykman cita notadamente(p. 242) as seguinteslinhas
de Simon Foucher: "Nossos sentidos não podem ser juízes da verdade das coisas que são
exteriores a nós, uma vez que não conhecemosde forma alguma essascoisas em sí mesmas.
Ao menos pelos sentidos, só conhecemos as aparências e não poderíamos saber se essas
aparênciasrepresentamas coisas tais como elas são,já que não podemos compara-las com
a realidade dessascoisas que não concebemos; o mesmo ocorre quando não temos acesso
ao modelo de um retrato qualquer, é impossível julgar os defeitos desseretrato sem poder
compara-lo com seu modelo
3. Geotge Bet\:e:lq, Treaüe CoKcerningthe Prima!es ofliuman U7derstanding (Pdm$ímÜ, \ S6.
4i3
alidades secundárias, que só existem na mente.
De minha parte, ve)o deforma evidente que não está em meu poder formar a
r ideia de um corpo externo e em movimento sem Ih conferir também certa cor
1 )u alguma outra qualidade temível que, reconhecidamente,exuta ap'nas na
mente. Em suma, extemão, ligara e movimento, abstraídos de toda m outras
1111E;i.;ã'.
4t4 Berre/ey ou le sceptique malgré lui
Contudo, se aceitamos a crítica dirimente das idéias abstratas, não
há como evitar a conclusão de Berkeley: "nenhuma cor, extensão, ou
qualquer outra qualidade sensível pode existir em um substrato não
pensantefora da mente e, na verdade, não pode existir nenhum objeto
exterior".P Haveria argumento mais forte em favor do ceticismo?, per-
gunta-se então Hume. E, acrescenta, não é de estranhar que tal argu-
mento seja de Berkeley, pois esseautor contribuiu para a propagação do
ceticismo mais do que qualquer outro pensador "antigo ou moderno
Julgando dessemodo, Hume retoma por conta própria a interpre
taçãodo imaterialismo que Berkeley atribui a Hilas, no cerne de seu diá-
logo com Filonous. Assim, quando Filonous critica as "novidades" da
ciência moderna, que nos levam a suspeitar da evidência sensível, filas
protesta. O quê? Você ousa me acusar de tender ao ceticismo? Mas é o
cúmulos "Não estásuficientemente claro que é você quem transforma
todas as coisasem idéias? justamente você, que agora não tem vergo-
nha em me acusarde ceticismo [...].":' Ora, a julgar por Hume, nessa
passagem,Hilas estaria com toda a razão. Filonous-Berkeley pode obJe-
tar que seusistema é o único capaz de erradicar o ceticismo. Entretanto,
observa Hume, "ainda que sua intenção seja outra, todos os seus argu-
mentos são,na realidade, puramente céticos [...]".' '
Decerto não temos aqui um contra-senso cometido por HtXmeem
relação ao pensamento de Berkeley. Este, ele reconhecia, estava conven-
cido de que lutava contra o ceticismo. Entretanto, ao refutar a existência
das substâncias corpóreas independentes, Berkeley se fazia aliado dos
céticos de todos os tempos e se tornava, a contragosto, um mestre do ce-
ticismo. Quer essainterpretação sela ou não legítima, uma coisa é certa:
nessapassagem,cume não atribui à palavra "ceticismo" o mesmo sen-
tido que Ihe atribui Berkeley ao assegurar que o.jg!!eríaJismo bem com-
preendido deve acabarcom todas asdúvidas céticas.Sendo assim, nosso
objetivo serádeterminar qual é o sentido da palavra que permite a Hume
posicionar Berkeley entre os maiores céticos "objetivos", e o sentido que
justifica a pretensão de Berkeley de ser o maior inimigo dessa seita.
4i5
Partindo do início do terceiro diálogo entre filas e Filonous, pro'
curemos ver como funciona o ceticismo tal como Berkeley o entende.
Depois de uma noite de meditação, Hilas reconhece enfim sua derrota: os
argumentosdo imaterialismo são invencíveis. Entretanto, essaconfissão
o conduz diretamente ao ceticismo mais "grosseiro" e "extravagante
;É claro que eu posso, de forma eventual, usar uma pena, tinta e papel
Mas declaro definitivamente que não sei o que é cada um dessesobje-
tos em sua verdadeira natureza. O mesmo vale para todas as outras
coisas corpóreas."'z O que teria acontecido com Hilas? O diagnóstico
de Berkeley é simples. Ocorre que Hilas ainda não renunciou por com'
pleto a referir a ideia sensível à coisa que supostamente ela representa.
Assim como os filósofos, ele pensa imediatamente nas coisas, acredita
que suas idéias sejam cópias de coisas verdadeiras. Por conseguinte,
parece-lhe que a tese imaterialista, cuja força ele acabade reconhecer,
1 redunda numa catástrofe. Uma vez que as coisasque vemos e tocamos
são apenassensações,não podemos de forma alguma extrapolar nosso
campo sensorial; não podemos contar com nenhuma informação rela-
tiva à natureza e à existência daquilo que parece anunciar-se em nossas
idéias. Devemos então,por princípio, deixar de dar qualquer crédito
aos nossos sentidos.
Não é a primeira vez que Hilas, pressionadopela argumentaçãode
11 Filonous, não vê saída senão no ceticismo. Já na segunda parte do diá
logo ele havia sido obrigado a admitir que "nenhuma coisa sensível tem
existência real"is e havia ficado surpreso com o fato de Filonous se recu-
sar a "negar realidade às coisas sensíveis: assim como eu, vice também
deveria render-se ao ceticismo, se fosse conseqüente [...]". De modo
algum, responde Filonous, pois é .você, e não eu, que confunde exiçrén-
c;a rea/ e exüfénc;a aó:o/ufa fora de qualquer espírito; é você, e não eu,
que pensa que as coisas deixam de ter realidade quando lhes negamos
existência abso]uta. De minha parte "eu Jamaisdisse ou pensei que a
realidade das coisas sensíveis devesse ser definida dessa maneira" .''
Mas Hilas não deu atenção a essaadvertência. Ele continua a de-
fender a tese da existência absoluta e a afirmar que o conhecimento só
pode consistir numa representação.Continua a admitir que, para além
[ $. Encontramos uma bela análise da filosofa berkeleiana da idéia, entendida como a consa-
gração da destruição da "representação" no sentido cartesiano, ern Adam Smith, "Berkeley's
Central Argument", in Srudz'eson Berre/ey (Oxford, ig85), p. 5o: "Todo o sistema do repre-
sentacionalismo entrou em colapso. Os estados mentais não são mais intrinsecamente
representação, mas apresentação;
i6. G. Berkeley, Zro& diaZoguesentre //7/ er PÁz'/ontem,p. no; }Hor#sn, p z6o
r7.Id.,ibid.
i8. Id., pnlzc@/eJ, S 86.
[g. Id., Pnrzc#/ei, S 87.
4i7
zo.Id.,ibid., S 56.
zi.Id.,ibid.
/zão(?merecem
izz z'/opressões
como imagem de a/gama caça distinta, oü inde-
pendente e exterior, ama ve g e fazeii(í /zoi Hamm;rem amapercepfãoiz npZei
ejamais nos dão a menor indicação de alguma copa que estivesse além \..l\Z'
4i9
r
Seria então a ração?Menos ainda. "As crianças e os camponeses" não têm
necessidadede nenhum argumento formal para decidir que determinada
percepção é exterior ao espírito .e a razão, cada vez que ela se e.-rce,
só faz solapar ainda mais a suposiçãoda existência contínua. A Imagz-
/zafão é, portanto, a única faculdade capaz.de fomenta-la. Resta então
se perguntar em quais qualidades do percebido se baseia a imaginação
para atribuir certas sensaçoesa ação de um obleto exterior. Nesse ponto,
Hume descartapreviamenteduashipóteses.Em primeiro lugar, não po-
deríamos dizer que concedemos existência contínua às sensaçoes ma:s
vivas; a dor de uma queimadura, por exemplo, é para mim uma sensação,
e de forma alguma cogito aloja-la no fogo.:sEm segundolugar, muito
menos nos decidimos pela existência contínua pautando-nos pelo "cará-
ter involuntário de certasimpressões,como se costumaadmitir". E um
outro motivo que nos leva a acreditar que há corpos exteriores: e que /zao
podemosse/zãocompreender dessemodo a comrá/zc;ade certas impressões,
a despeito de sua interrupção, e a coerénc;ade certas mudanças- J
O fogo estavaacesoquando saí de casa;depois de uma hora de au-
sência, volto e o encontro apagado; "mas não me acostumel a ver, em
outras ocasiões, produzir-se a mesma alteração, em um mesmo lapso de
tempo, quer eu estivesse presente ou ausente, próximo ou distante?
Não podemos deixar de Justificar essasregularidades; e disso se encarrega
nossa imaginação. Mas nos enganamos se co.mpreendemos essepr:cedi-
mento como a indicação ou mesmo como a.buscapor zzm'z
cazzJ'z.
, :te-
mos. diz Hume, confundir esse "tipo de raciocínio por causação .'' com
um raciocínio causalautêntico,fundadona repetiçãoe na conjunção
constante. A simples regularidade de minhas percepções de forma alguma
me autoriza a inferir a existência de um obJeto para além delas.:' Se.a tese
da existência contínua se impõe a nós, é porque ela é o único meio de que
dispomos para unir as aparências descontínuas de acordo com nossa ex-
penencía passada.Apenas uma montagem ad Àocnos permite /zorma#Íara
constância e a coerência que observamos ao nosso redor.
Surge então uma questão; convém falar em erro a propósito.do
mecanismo imaginativo que Hume descreve?Ou, ainda, convém falar
z7- Id« re a ' considerávelcltere 2 ' entre esse raciocínio e o raciocínio causal autêntico, cf.
id., ibid., PP.i97'g8; trad. cit., P-z85.
421
T
Mas para Berkeley essa resposta existe. É o imaterialismo quem final-
mente a fornece, enquanto todos os filósofos, atê então, encontravam-se
na impossibilidade de formula-la corretamente. E isso por uma razão bem
simples, porque não se preventram contra as armadilhas da linguagem.
.HH$HRH;
!::=:===
=!:=;:,
n=!a==:g\==1=J=;=T=
depumdos' de toda sobrecarga imaginativa. Assim se desfaz por conta
propria a problemática falaciosa que nutria o ceticlsmo.
'r' - judo muda de figura se consideramos a tese do "obleto ex-
terior" como uma ;nierpretafâoe não mais como um erro na determi-
nação da causa. Nós nos perguntaremos então se Berkeley não exige
York: BasicBooks,1968,PP.48-49)
34. O que implica que mesmo a cre/zfamais irresistível não é, de forma alguma, garantia de ver-
dade.A esserespeito,David Norton opõe a atitude de Hume à dos âlóso6osdo "senso comum
'Por mais que Hume diga que temos certa propensão natural para acreditar nisto ou naquilo, ele
nunca vai tão longe a ponto de dizer que aquilo em que naturalmente acreditamos deve ser ver-
dade. Hume nunca conRtnde certezapsicológica com conhecimento certo ou a doxa indubitável
com a episteme." lulas,acrescentaNorton, seria um contra-senso pensar que com isso Hume te-
ria fígado que haja objetos exteriores. "Por outro lado, cume não supõe que, por não podermos
justificar nossacrença em entidadesparticulares(objetos que existemde modo independente,
para tomar o mesmo exemplo), fica estabelecido que tais entidades não existem.
423
r
::===-
'..;:;l::ERB=il:H:=:'=.=::=
35. G. Berkeley, Prí/zczp/eJ, S 39-
só.Id.,ibid.,S lol.
a insatisfação de Berkeley em relação ao
}7' Id.o qid.'su 93nha Malherbe quando analisa
método experimental" (OP.cit., PP-34'39)
39-Talvez por isso devamos levar a crítica da evidência sensível em Hume mais a sério do
que havia sugerido John Passmore:"para ser franco, no momento estou tomado por um
sentimento totalmente oposto, e estou mais inclinado a não confiar plenamente nos meus
sentidos, ou em minha imaginação, do que a implicitamente conceder-lhes tal confiança
(D. cume, Zreafüe, p. n7). Passmore atenua consideravelmente o peso dessapassagem
famosa. "No encanto,é apenas em seusmomentos de 'ceticismo excessivo' que cume leva
a sério essanova doutrina. Sua conclusão geral continua sendo a de que 'apenas um bêbado
ou um louco poderia discutir a autoridade da experiência' (E. 36) e que essaboa metodolo-
gia denunciará hipóteses que se recusam a aceitar a experiência como autoridade suprema
(J. Passmore,op. cit., pp. 47-48). Mas, então, fiar-se "nos sentidos ou, sobretudo, na imagi-
nação" como faz o vulgo tornou-se equivalente a aceitar a autoridade da experiência, como
o wúe man? Para nós, o recurso à experiência parece andar junto com a desconfiança em
relação à evidência sensível
4o- G. Berkeley) Pnncp/ei, S i02
41.Id.,ibid.,S ios.
4z' "Os astrónomos por muito tempo ocuparam-se em determinar, a partir dos fenómenos:
os verdadeiros movimentos, ordem e tamanho dos corpos celestes:até que um filósofo, se-
gundo ele próprio levado a raciocinar por um feliz acaso,chegou a determinar também as
leis e as forças pelas quais as revoluções dos planetas são governadas e dirigidas" (D. Hume,
ÉlzgülO' Concern;ngH2zman [/nderxfandüg, p. l4). Esse texto concede à ciência newtoniana
exatamente o valor explicativo que Ihe havia recusado Berkeley. Em //ume e a epüremo/agia.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, lg84, João Paulo Monteiro salientou esse>
425
r
11
46.Id.ibid.,pp. 86-87.
47- G. Berkeley, Z);a/oglzei Cafre//W/ ef Póz'/onoui, p. í68; moras, p. z4z
48. J. Passmore, op- cit., p. go.
4z7
r'
5z. Zagz'gaze de Porá-Rapa/ [Antoine Arnauld e Pierre Nico]e, -La Zoglgzze ozz /'arf de/emer]
(Primeiro discurso).
4z9
Y'
43i
A noção de "semelhança" de Descartes a Leibniz
433
vasto e extensor' artes se contenta em responder: "0 senhor confunde
!::::ÊÜ '=:H=:=:Ks:::F8;
ÜH:ilRH$ :i
z. Id.. ibid., (Objeções e Respostas,3t Objeção, 8? ponto)
6. id., Z)zopfrzgue,
cap-iv, in OeaPrei,iv, pp. l i3-í4-
7. Id., P ilonzf de /'yme, $ 34
8. Id., Regtz/ae(xlt), in Oe res, x, p. 4r4-
9. Id., PnRcpei de pÁ/ZoxopÁie, S i97, in Oeül,res, rv.
io. Eis por que o mais leve desvio no estímulo é capazde produzir uma sensaçãomuito
diferente. Assim, o traçado dessasletras no papel faz o leitor imaginar "combates, tem-
pestades,impetuosidades". Algumas linhas abaixo, o escritor traçou outras letras; agi-
tou a penade maneiraum pouco diferente. Essavariação ínfima bastapara dar ao leitor
'pensamentostotalmente contrários, como de paz, de repouso,de doçura" (Prz'nc4,ex de
pÃÍ/aiopÁie, S i97)
435
Y'
$989:1$ãg
dual é o' movimento ou a $gura dessa espada.
í4' rd., ibid., S 3S5."Não basta,portanto, que Deus simplesmenteordene que uma ferida
excite urn sentimento agradável; é preciso encontrar meios naturais para isso" (Id., ibid.).
l 5. id., Z)zepÀzZosopÁúcÁeScÁr# en [Escritos fijosóâcos], ed. Gerhardt, v. ív, p. 576.
i6.Id..ibid.
i7- Id., E saüde Z%éodz
ce'e,S 356
437
Y'
19
cie de som musical.
l 8. id.. Carta a Bouvet, i7o3, apud ]acques Derrida, Z)e/agrammala/agfe. Paria: Minuit, s.d., P. ii8.
:9 Id , /Uozzveazzxcasais szzr /'érz erzdemerz Àtzmaln, n, iz
Embora toda expíessem os mesmos fenâmerLos, nem poT isso sum expressões
são peTfeitamerLtesemelhantes; Luta que sejam proporcionais; do mesmo modo
que vários espectadores penam ver a mesma coisa, e de fato se compreendem
entre si, embala c(Ma um veja efale de acordo com a medida de süa vista?'
O mesmo não ocorre com uma fonte sonora: através de ecose ressonân-
cias, ela se anuncia comoa meiga por mais tempo e por uma distância
maior. O ouvido capta melhor a sonoridade única que sepropaga pelas
dissonâncias.Sendo assim, ele dará melhor a idéia do que seja a arte de
repreienfar, se quisermos conferir à noção toda a sua amplitude: criar
uma dessemelhança tal que nela ainda apareça o modelo que se mantém
em vista depois uma outra dessemelhança, mais desconcertante e em
que, todavia, a mesmaperformance se repetirá... A cada vez e cada
vez de maneira diferente será "ali exatamente como aqui". A cada vez
ressurgirá "uma maneira de semelhança", mas "não total e por assim
dizer ;rz erm;/zü". "Uma maneira de semelhança" que nos afasta dos
temas cartesianos do gzzadroe da ;mugem. É certo que Descartes notava,
na Z);óprrica, que o mais semelhante intuitivamente nem sempre é o me-
lhor representante da coisa. Mas tratava-se, nessecaso, da deformação
perceptiva, que permite ao espectador representar a coisa de ma/ze;ra
maü.fe/ (a oval representa melhor o círculo do que um círculo).:' Não é
isso o que interessa a Leibniz. Recensear todos os recursos da expreii'ão
não consiste, de forma alguma, em privilegiar as dessemelhançasque
aperfeiçoam a semelhança ;mzfafzva. É antes praticar o procedimento
inverso: perguntar-se-á alé ondeva; a afinidade por meio das mais pro-
fundas dessemelhanças intuitivas; procurar-se-á a "similitude" nas de-
439
Y'
: :::,:,'
: i lllEÜilZHh:.r:n='; '''
4AO A noção de "semelltaltça" de Descarta a Leibnil
O importante não é o reflexo, mas a diversidade dos reflexos. Se todos
os espelhos representassem a mesma cena, a metáfora seria desprovida
de interesse. Mas eles representam-na dz@eren
encare, e a cena só é dita a
mesma enquanto suporta a prova dessasvariações.z' O que é então essa
estranha"similitude", que não se atesta mais nâ reduplicação ou no
decalque?Vejamos nela antesum operador que neutraliza as diferenças
imaginativas e nos impede de considera-las como irredutíveis. As di-
ferenças, distribuímo-las sempre depressa demais. Não tenhamos mais
receio de confundir Teeteto com Teodoro: tenhamos antes receio de
acreditar que percebemos uma outra cidade quando, na verdade, nada
mais fizemos do que percorrê-la algumas léguas a mais sobre pontos
elevados. Tenhamos receio de deixar escapar as variantes.
Assim, à primeira vista não aparecenenhuma semelhançaentre
a geometria que se aprende "somente pela visão" e aquela que o cego
aprende pelo tato. E, no entanto, "é preciso que essasduas geometrias,
a do cego e a do paralítico, se encontrem e concordem entre si e até
mesmo que se reduzam às mesmas idéias, embora, aóso/uiamenre. /zão
Ãga ;mugemcomzz/zi".27
Parece-nostambém que um homem surdo e
mudo de nascença deva estar privado das idéias das coisas "das quais
temos ordinariamente a descrição em palavras".28 Mas que sabemos
disso? Nada proíbe pensar que ele possui essasidéias.
De uma maneira zozaZmen/e
dzÓerenze,
embora possa ser equivalente à
nossa,assim como a escrita dos chineses produz um efeito equivalente
àquele de nosso alfabeto, embora ela seja infinitamente diferente deste e
pudesse parecer inventada por um surdo.
Da mesma forma, só aparentemente as idéias sensíveis "diferem" do
movimento que elas exprimem, mesmo se os cartesianos pensem que elas
diferem /ozoge/feredos movimentos e daquilo que acontecenos obje-
tos".2' Em suma, foi sempre de modo muito precipitado que se descobriu
a heterogeneidade sob a dessemelhança: eis o que prescreve a regra de
z6. É nessesentido que a "história", na acepção de Hegel, será um lugar nobre da repre-
sentação: nela, nenhuma cena se repete, cada povo realiza uma gesta sem precedente (daí o
desprezode Hegel pelas"lições da história"), e o Espírito, todavia, permanece o mex«za,não
porque ele ter-se-ia repetido em segredo assim corno a espéciese repete nos indivíduos
masporque é o ato que dissipa, uma apósa outra, essasdiferenças aparentes.
z7- G. W Leibniz, .Nbaveax eiiaú sur /'e/z endemenrÁzzmaü,n, g, S 8
z8.Id..ibid
z9. Id., ibid., u, zo, S 6.
44i
r
:,HH$1H :li:;:=:.::t.:'"""'''
44z A noção de "semelltmça" de Descarnes a Leibnil.
Além disso,admitir, como Leibniz parecefazer aqui, que a linguagem
é convencional, é ainda conceder demais: Teófilo tenta mostrar a Fi-
lateto que "há algo de natural na origem das palavras, que marca uma
relação entre as coisas e os sons e movimentos dos órgãos da voz".;; E
a tática é semprea mesma:se pudéssemosremontar à língua adâmica
ou descer às "partes insensíveis de nossas percepções sensíveis", reco-
nheceríamos que o princípio de razão nunca se engana; encontraríamos,
sob a não-semelhança aparente, o Jogo da expressão.3' Por certo, a dor
não se assemelhaao movimento do alfinete, mas tem-se refreia de que,
considerandoaté os pequenos movimentos que o alfinete produz na
nossa carne, não encontraríamos "uma maneira de semelhança" com-
parável àquela que une o círculo a suasproleções?3sA azm;#fzzde,
assim
reelaborada, anula qualquer arbitrário.
Chegamosassimao ponto que talvez nospermita medir melhor a
envergadura do "pensamento representativo", tal como Leibniz dele se
utiliza. Limitemo-nos aqui a dois temas: i) o denominado "intelectua-
lismo" leibniziano; 2) a harmonia preestabelecida.
i) Diz-se com freqüência que Leibniz suprimiu, por mera violência
dogmática, toda diferença de natureza entre o sensível e o inteligível, não
deixando, por conseguinte, "aos sentidos senão a desprezível função de
confundir e de deformar as representações do entendimento".3' É seguro
que tal apresentaçãodas coisas permite-nos compreender o que aqui está
443
7
Eii='=:Ê;;n ii l:$
menos expressivado que a idéia clara e distinta: ela é tão pouco.fWuam
H
e/za ; a ao mesmo título que esta, senão
âmago quanto esta, mas é repres. . . -..i=.í.,.l á
üiti Kn zlyHyl
com a coisa.;' Onde quer que sela,toda repres'ntação é fundada em razão.
E vai-se contra essauniversalidade do princípio de razão sempre que se
considera como um szzós;mfo da coisa aquilo que é apropria coça sob um
outro aspecto -- sempre que se imagina tratar-se de um índice aquilo que
é, ainda e sempre, somente um dos perfis da coisa. Ora, é esseerro que a
Üiàl:ii ::iu
tação de uma roda dentada torna minha imaginação incapaz de discernir
r:l:;::=-
W-vdenteslsó veJOuma névoa, que nada tem em comum com a roda em
repouso Mas quando o movimento se torna mais lento, compreendo que
os dentes da roda eram oprópno con ezído,e não a ocm;ão do "transparente
artificial" que eu percebia.;8Essetransparente era uma deformação da
roda, mas, na deformação, é ainda a própria coisa que esta presente.
Portanto, gizar representado não significa mais, nesse caso, estar exposto
mas estar presente de outra
(àvistaouaoentendimento)-- .. . . .....:.'-
maneira.
A diferença é notável. Pois ali onde a palavra represa/zlafâoé com-
.ndida (como em Kant, por exemplo) na classerestritiva da exÃ;ó;f;'
445
saídaSeara eida ntrado nos caracteres aquilo que se exigiu, é sem difi-
l ::
;lxilãlú!=.:::='=;=:;
4AG .4 noção de "semelhava" de Descarnes a lzibni
efeito, a idéia de uma "representação" tão magicamente assegurada que
ela nos dispensa de toda investigação sobre o modo dapreienr #cafão. É
tambémse dar o direito de, habilmente, evitar as questões:como a na-
tureza de uma coisa pode enunciar-se numa outra? Como a existência
de uma coisa pode ser lida naquela de uma outra? Questões que a "si-
militude" leibniziana torna supérfluas, antesque a obra de Hume venha
a torna-las enigmáticas.
A partir daí compreende-se,
em todo caso,que o "quadro" ou a
'imagem" poderiam ser efetivamente apenasemblemasrudimentares da
'representação". Enquanto esta última não possui paradigma melhor do
que o quadro, seu domínio é limitado, suas fronteiras logo são atingidas.
E, sobretudo, restacompreender como se tornou possível algo como um
quadro: não evitamos o -Oez/iex macÃz/za,no sentido preciso de Deus
intervencionista.44 Em compensação, tudo se altera se a "similitude" não
for mais reduzida ao modelo da semelhança imaginativa. E a palavra
"representação"adquire toda a sua#orpa,se, por "quadro", se decide
entender aquilo que Merleau-Ponty entende, na qualidade de neoleibni-
ziano: "Um conjunto organizado que á$ecÁado,masque, estranhamente,
é representativo de todo o resto, possui seussímbolos, seusequivalentes
para tudo o que não é ele. A pintura para o espaço,por exemplo".'s
Nesseponto, o que pode ainda significar, verdadeiramente,repre-
senfafão? Pelo menos um conceito que "ultrapassa as imagens" como
> na percepção,a ier amado a/ e goza/em e de ser ex7/zcada.Nossa alma não tem Janelas,
issoquer dizer /n der IHe/fieü"(M. Merleau-PonW]Ze P,L;ó/eel /7rzvü;óZe.Paria: Gallimard
[ig64), p. z76 [ed. bus.: O viszbe/e o za üzl,e/. São Pau]o: Perspectiva, i97i].
44. "E eu não pensei que aqui sepudesse escutar os filósofos, aliás muito hábeis, que en-
comendamum Deus, como num maquinismo teatral, para o desfecho da peça, sustentando
que Deus ap/lca-ie expreiiamenfea mover os corpos como quer a alma e a dar à alma percep
çõescomo pede o corpo [-.]" (G. W Leibniz, Ekaaü de Z%éadz f&, S 61). A transformação,
no século xvm, do Deus leibniziano em Z)em ex macÁz rzamereceria um longo estudo. Ela
é realizada no S zz da Z)isierrafâa de /77o, em que Kant coloca a harmonia sob a mesma
rubrica que o ocasionalismo. E, em i768, Euler imagina os gracejos aos quais o ])eus leibni-
ziano poderia dedicar-se expressamente:"se, no casode um desregramento de meu corpo,
Deus ajustasse o corpo de um rinoceronte de maneira que seus movimentos fossem tão
conformes àsordens de minha alma, que levantassea pagano momento em que eu gostaria
de levantar a mão [-.] então esseseria meu corpo. Eu me acharia subitamente na forma de
um rinoceronte no meio da África, masapesardisso minha alma prosseguiria as mesmas
operações.Eu teria igualmente a honra de escrever a v. A., masnão sei como, nessecaso,ela
receberia minha carta"(Zef/rei 'i l"&epnrzceiie, 2? parte, carta l 5).
45.M. Merleau-Ponty,Z,e //hz'ó/eef /%n ís;ó/e,p. z77-
447
mostra de maneira admirável Michel Serres no fim de seu livro .Le SWs-
449
:'.:=:i:=: '::ic=:=1;=Z'=:='
;:::==::=:=,
'::
que segurança ela era a garantia.
5z. G. W. Leibniz, /Uouveazlx eis'zís nzr /'en endeme/zr Álzmafn, iv, ii.
+ Extraído de AdauLONovaes (org.), O desço. São Paulo: Companhia das Letras, l 99o Tradu
ção:Hélio Schwartsman
r. Cícero, Z)e$rzz'óm,n, l3
45i
Y
da educação. O objeto primeiro do educador é acostumar as crianças,
desde a idade mais tenra, a "experimentar os prazeres e as dores como
convém",3 e o legislador "deve consagrar-se.quase inteiramente ao p:o:
blema dos prazeres e das dores tanto no indivíduo como na cidade '.'
Será que o objetivo é, então, reprimir a tendência do homem ao prazer
Aqui, uma nova precaução se impõe; Não dá no mesmo condenar a vida
''n''' ' '
degozo,inteiramenteconsagra daàómcadoprazer,efazerdoprazerum
. .. . ,,
mal 'Uma coisa é lançar o opróbrio sobre os "pra:eres vergonhosos",
outra coisa é suspeitarapr;or; do fenómenofisiológico chamadopra er
e, por isso, preconizar o ascetismo. Ora, essa suspeita, :los quase nao a
encontramos no pensamento grego do século iv a.C. .Não a encontra-
mos em A.ristóteles, que, certamente, assimila a vida de gozo (apo/atzs-
fÍX:ásÓús) à do "gado",Smasatribui a Ãedanáao pl:óprio Deus. Não a
encontramos tampouco em Platão, cuja reputação de austeridade só foi
tão solidamentefirmada devido a algunsmal-entendidos.Quando Pla-
tão. no .la/eóo,começa a enumerar as componentes do que é para o,ho-
mem o bem supremo, inclui entre elaso pra'er.(mesmo que em um nível
modesto).E,nasZeís,aconsel
' la mostrar aos .homens que,
. se a,,vida de
453
T
1111
$$ á:::: n:='=='=?=:in
se há sempre estados mistos, mosaicos de satisfação e.insatisfação aos
quais a linguagem dá um valor positivo ou negativo de acordo com a
liÚÜZiãi:X:ll!::: ;H ;:
g. Aristóteles, op. cit., wi, i5, il54a 3o'3t'
::l:i:
454 '4 /zeürra/ilação Jorra er
que eles sejam bons em si mesmos: todos vão concordar que é melhor
estar com saúde do que convalescente.'' Se todos os prazeres fossem
dessanatureza, Antístenes e Espeusipo teriam, então, razão. Mas será
que as coisas são realmente assim? A essa questão, Platão e Aristóteles
respondem, ambos, pela negativa. Mas suas respostas são muito dize.
rentes e vale a pena parar neste ponto. Aqui e lá, pretendemos mostrar
que os prazeres propriamente ditos são bons, mas o modo de seleção
dos candidatos não é o mesmo nem o número de admitidos...
Tentemos compreender qual é a atitude exatade Platão em relação
aos adversários incondicionais do prazer. Reconhece neles pelo menos
um mérito: graças à sua análise, percebemos que há#aÃospra ere.f, "in-
timamente misturados seja à dor, seja a pausas entre dores extremas em
um estado de sofrimento do corpo ou da alma". ' ' São essesprazeres que
a maioria dos homens procura. Contudo, será que é preciso dizer que
essesmsensatos se enganamporgzzeprocuram o prazer? Não. Os gozos
que os interessam não são falsos bens /z.zmedida em gazesão prazeres,
mas sim na medida em que não são realmentepraÍeres. É por isso que os
anui-hedonistasradicais erram: não vêem que sua análisedeveria servir
para fazer-nos distinguir o agradável aparente do agradável autêntico e,
por isso, chegam à conclusão de que a vida de felicidade (ez2l.én, Cuja/-
maná) não poderia incluir prazeres. Ora, Platão, no FzZeóo,só opera a
triagem dos prazeres para determinar quais entre eles teriam direito de
figurar na ezzda/monúz.Pois é preciso que haja prazeres assim. Sabe-se
que a possessãode todos os prazeres na falta da sabedoria @Àróneais)
não constituiria o bem supremo, mas sabe-se também que apenas a pos-
sessãodepÃrórzeiú, sem nenhum prazer, não poderia ser o fim do ho-
mem. Esse segundo ponto, a tradição "platónica" o mantém, em geral,
obscuro. Deixa-se a impressão de que, para Platão, todos os prazeres
seriam suspeitos. Ora, não é bem assim. Os verdadeiros prazeres são
bens, e Platão, como lembra Foucault,'z chega a classificar a apÃrodúz'a
entre "os prazeresmais naturais e necessários".'; O FzZeóo,é verdade. é
menos explícito; se admite prazeres necessários no bem supremo, não
455
Y'
4S6 ArLeuLralilação
dopraler
essênciaoriginal, e não de uma opção sentimental. E, para isso, é preciso
levar em consideração um outro momento da refutação dos adversários
do prazer, que é feita principalmente no livro ix da .RepzZó#ca.
Platão pensa que a maior parte dos prazeres físicos consiste, de fato,
numa cessãoou atenuação da dor. Mas pensa também que não se pode
fazer com que essaconstatação sirva para declarar que o prazer não é de
maneira alguma um bem. Pois, se assim fosse, como poderíamos determi-
nar o eirado ózzmo?Para o corpo, assim como para a alma, há um estado
em que um ser vive em conformidade com sua natureza -- um estado de
saúde,desejávelpor si mesmo.Ora, como determina-lo, seo prazer está
excluído do bem apríorz? Assim, a única saída que se oferece aos pen-
sadores "carrancudos" é dizer que a vida desejável consiste apenas em
não sofrer ou não sofrer mais. Alguns, sem dúvida, sustentamessatese.
Mas acreditas, pergunta Sócrates a Protarco, que eles estejam verdadezra-
me/zrecontentes quando apenas não sentem dor?:' Se eles sinceramente
acham, acrescenta,"é que eles têm uma falsa idéia do prazer, já que a
natureza separou com clareza a ausência de dor e o prazer". E, mais uma
vez, Platão recorre a uma imagem da medicina. O doente tomado pelo
sofrimento pode achar que uma melhora é um estado altamente satisfa-
tório que nada Ihe faz mais bem do que tomar um analgésico ou um
ansiolítico. Mas será que temos o direito nós que estamos saudáveis,
nós, os ormaü de chamar de boa essamelhora que o doente, ele, sente
certamente como boa? De maneira alguma. Essa opinião do doente só
exprime algo relativo. É em relação à dor que acaba de experimentar que
ele se sente bem, assim como uma Jovem nos parece bela em relação a
uma mulher feia, mas pareceria feia se comparada a uma deusa.Assim,
da mesma forma que Hípias parecia ridículo ao dizer que uma mulher
provocante representa a beleza em si, também o doente pareceria ridí-
culo ao acreditar que o bem-estar é o estado que um analgésico Ihe dá.
zo.Id.,ibid.,44c
zi. Id., Repzíó&ca,
S85a
457
Y'
L'erdadeiros são os prazeres que nwcem das cores que chamamos bela, da
maior pQ'te dos perfumes e dos som, de todos os prazerescuictfalta ttão é
penosa riem sensível, CLO
penso que sua presença nos provoca sensaçõesde pLe
nitude, agradáveis, livres de toda dor:'
Nesse caso, "a repleção se produz sem que a vacuidade seja sentida".:s
Resta,porém, que a vacuidade existe... E um único exemplo basta para
mostrar quanto a posição de Platão é, desdelogo, incomoda. Se o prazer
que o saber nos dá é um prazer puro, é somente sob a condição de que ele
não seja precedido de um desejo muito vivo, de uma "fome de aprender"
que, esta sim, seria dolorosa.:' Mas é difícil distinguir a ausência de dor
ou o mal-estar: o próprio Platão,:' compara a ignorância (ágno;a), como
vazio da alma, com a fome e a sede que são "espécies de vazios no estado
do corpo .". A que se deve então a pureza do prazer de saber? A muito
pouca coisa. Suponhamos que eu me ponha a "devorar" um livro que
um amigo me tenha revelado e que me tenha dado vontade de ler: será
que eu ainda experimentaremum prazer puro? Meu prazer será antes a
supressãode um estado negativo percebido, assim como o prazer do fa-
minto que satisfaza fome ou até como o do libertino que realiza seu fan-
tasma...Ontologicamente, onde estaria a diferença? Nada é mais frágil
do que o prazer puro tal qual o define Platão. E Georges Rodier tem ra-
zão ao observar que mesmo os prazeres intelectuais e estéticos "não são
459
Y'
3o. Id., op. cit., vn, l3, ií5zb e ss. Excelente nota explicativa de R. A. Gauthier e J.-Y. Jolif,
OP.ctt.,PP. 793-94.
3i. Sobreo aprofundamento dessetema pelostrágicos, cf. R. A. Gauthier e J.-Y. Jolif, op. cit
P. 789.
461
prazeres intelectuais. Sua intenção era correta, acredita Aristóteles É
preciso, decerto, que o pra"r sejap:ns;do como um bem. Já que todos
os homens aspiram ao prazer, é porque eleso tomam por bom. Sobre
o conteúdo desseprazer declarado bom, a maioria dos homens, sem
dúvida, se engana; mas isso não impede que essavaloração espontânea,
o prazer é bom", possa ser ilusória. Está inscrita em nosso ser, exprime
uma exigência oriunda do fato de viver. Mas nós não compreendemos
isso ou compreendemosmal uma vez que nos obstinamos em colocar o
vivido do prazer em perspectiva com um vivido negativo, na medida em
que pensamos o prazer relativamente a uma carência o ato de beber em
rel;ção à sede, o amor em relação ao desejo, o ato de saber em relação à
ignorância. Seo prazer semp" foi sinónimo de satisfação,Jamaispoderia
ser inteiramente purificado do negativo que ele está apagando, ou, ao
menos, jamais teríamos certezadisso.Assim, é melhor deixar de lado as
noções de desejo, necessidade, carência e, para isso, deixar de descrever
o prazer como um devir o que ele só é acidentalmente. "Não é exato
dizer que o prazer é um devir sentido [aúfÃe érzgérzes//z];
é preciso antes
dizer que e]e é uma atividade [enérge/a]do estado habitual [Áé)ris]con-
forme a natureza e, no ]ugar de iene;do,dizer /zão-enluvado[...]."3:
Para compreender essadefinição de Aristóteles, é preciso referir-
se a exemplos de um registro completamente diferente dos de Platão
quando este descreve, talvez não sem alguma complacência, os maus
prazeres (que, no final das contas, seguem de tão perto os bons.:.).:
amantes epilépticos, suspiros de gozo, gritos agudos etc. É preciso dei-
xar o pitoresco do negativo pela banalidade do cotidiano. Quais são,
em todas as disciplinas, os melhores alunos? Aqueles que se interes-
sam pelo seu trabalho. Quais são, em todas as profissões, os melhores
ecialistas?Aqueles que se apaixonampela prática de seu trabalho,
quando estacoincide com alguma atividade. Estesnão duvidam de que
o prazer seja um bem, o seu bem. "Quais são os seus maiores pra:e'
res?",perguntavaa Edith Piaf um repórter que estavacerto de estar
fazendo uma pergunta indiscreta. "Meu único prazer é cantar; e quando
não puder mais cantar, morrerei", respondeu ela sem um instante de
hesitação. O prazer não é o contrário da abstinência, mas do aborreci-
mento, da carranca; não é o que nos arranca soluções e espasmos,mas,
mais simplesmente, o que vem do feliz exercício de nossasforças ou
463
Para Platão, como para Aristóteles, o axioma tem força total: sabe-
se que o prazer ' verdadeiro é um bem. Mas em que consiste este
ser-bom? É nesteponto que asposições divergem, pois aqui enfrentam-
se duas antologias "medicais". Para Platão, é impossível determinar o
prazer se não o pusermos em contraste com um estado privativo: o pra'
zer que me dá a visão de uma bela forma se segue a um estado de indife-
rença; ao negativo (é sempre n'c'ssário um ponto de partida) se segue
o positivo. Ora, Aristóteles se recusa,precisamente,a pensar o prazer
em relação a qualquer figura que seja negativa, a descrevê-la como uma
completude que tomaria o lugar de uma deficiência. Nada saberemos
da natureza do prazer, se decidirmos que ele deve ser o contrário de
uma carência. Ele é o signo de uma operação cuja realização não pode
ser bloqueada; ele é, portanto, o contrário de um mau funcionamento.
Excluamos, desdelogo, todas asimagens que o representariam como o
episódio ou o resultado de um proc'sso, pois todas contribuíram para
dar-lhe o aspectode um positivo em relaçãoa um negativo. Daí estas
afirmaçõesà primeira vista estranhas-- que Epicuro retomará-- e que,
todas, têm por objetivo fazer-nos largar o uso do código positivo/ne-
gativo: o prazer é perfeito em todos os momentos; ele não aumenta
nem diminui com o tempo; sua duração não tem nenhum efeito sobre
sua qualidade; em suma, "ele consiste mais em repouso (en eremúz) do
que em movimento
'Ele consiste mais em repouso." Ou sela: seria melhor, a escolher,
considera-lo um estado de repouso. Certamente, é evidente que as ati-
vidades fisiológicas (respiração, circulação, atividades sensoriais) não
são estados de repouso: são processos. Mas, se é importante marcar a
diferença entre essesprocessose os movimentos propriamente ditos, é
porque eles apenas reproduzem o mesmo esquemade funcionamento
e porque o tempo nadatraz de novo a essarepetição,enquanto o favor
patológico não intervier. O prazer é o contraponto dessetipo de pro-
cessos vitais -- e é por isso que ele é profundamente bom.
Estranho prazer, a nossos olhos é preciso confessa-lo essepra'
zer monótono, e tão desconcertantepara nós que poderíamospensar
que AristÓteles, de fato, retorna à idéia de que o prazer consiste numa
simples ausência de dor... Mas não acreditemos nisso: essainterpreta'
ção trairia completamenteo pensamentoaristotélico, pois nada há de
mais afastado da inércia do que a e/zárge;ade que aqui se trata. A vida
de um ser é tanto mais agradável quanto mais ele exercer seus órgãos
464 H,zeurra/zÍafâodapraÍer
sensoriais ou seu pensamento; tanto mais agradável que ele dormirá
menos e permanecerá mais tempo desperto. Assim, a mais elevada vida
de prazer é a de Deus, que, sem interrupção, sem sono, goza de um
'prazer uno e simples"." Mas será que tudo isso é convincente o bas
cante para nós? Viver sem sofrimentos, mas também sem desejos, viver
repetitivamente, não seria isso o cúmulo do aborrecimento? É o que
replicará Schopenhauer.E é preciso convir que nós o compreendemos
melhordo que a Aristóteles,e que a vida do Primeiro Motor não nos
tente muito. E assim. Nós, modernos, não podemos prescindir do está
mulante do negativo, e é diHcil para nós conceber um prazer extremo
sem uma pontada de srreii: quando a pessoa amada toca nossa campai
nha com dez minutos de atraso,nosso prazer é bem mais vivo do que se
ela tivesse chegado na hora. Sim, é bem difícil ver algo diverso de um
estado simplesmente indolor e insípido, no prazer energético descrito
por Aristóteles.
Aliás, a coisa não é diferente para o prazer como o compreende
Epicuro: estadoneutro, que parece ser caracterizadoapenaspela isen
ção deinquietação de dor.
.4 abolição de tudo o que so$'e é o Limite da antemão dos praleres= e [á, onde
está aquele que experimenta o prazer, enqucLrttoeLe aí estiver, não estará
.q«[e qüe «fre ou aq«Le que e«á trate o« o. doi'j-to;?'
465
muito provável que Cícero se enganeao atribuir a Epicuro a tesedo
prazer-ausência de dor. Os fragmentos,epicuristas relativos ao praze:
ganham um sentido completamente diferente se admitirmos que Epi-
cum retomou por conta própria o conceito aristotélico de prazer. Epicuro
certamente diz que todos os nossos aros '.visam a afastar de nós o so-
frimento e a dor". Mas "üm'z ve{ gazeisiofo/ rea//lado, a tempe.stade da
alma cessa, pois o ser vivo não tem mais necessidade de se dirigir para
alguma coisa que Ihe falt.enem de procurar,alguma outra coisapara per'
fazer k/eróserazlobem da alma e do corpo"'",. :.. .;':
'r sas são linhas que devem ser compr"ndidas com muita exaf;dão=
a satisfação das necessidadesnaturais do corpo põe fim ao mal-estar
que elasme faziam sentir, e é só elmo -- "quando elasestãoreal zada:
-- que começa o pra:er e que ele se afirma como um estado.inteiramente
positivo. O comentário de Victor Brochard.põe em evidência a com-
pleta identidade da visão de Aristóteles e de Epicuro quanto a esse
ponto preciso, dissipando assimos contra-sensos cometidos por Cicero
e muitos outros. É'verdade, escreveBrochard, que o prazer segundo
Epicuro aparecequando desaparec' a dor, masnão sereduz de ..l eira
'r''-''
alguma a-r"'' ' ' o do negativo, que é. apenas..a.condição
esse desapareciment : ..J.
de sua ocorrência. No momento em que cessao mal-estar, "em virtude
:j u=,:=\==:::.b $1FTl!;
satisfaçãonão é de maneira alguma comp;rável à do convalescentecuja
-""- " ' mas àdo homem sa
febre caiu, 'udável cuja temperatura
. é normal.. ,
Em suma, qual é o sinónimo do prazer bom, do prazell verdadeiro,
tal qual o concebiam Aristóteles e .E11icufo?É a saúde.I'b}2?"m).:e,
mais precisamente, a saúde como a de6ínirá Leriche: "a vida no silo:ncio
dos órgãos". Esse é o sentido do que Epicuro chama cedo/záX:azmrema-
züá: sentimento agradávelque me causao fato de viver, quando toda
ameaça ou ;ncómoda estão descartados. Talvez estejamos agora tocando
o essencial desse "prazer" que os pensadores do século iv a.C. consi-
deravam profundamente bom desde que fosse definido corretamente
Em todo caso, já temos mais condições de interpretar essatese sem fisco
de anacronismos muito grosseiros. Na raiz da convicção de que o pra
zer é incondicionalmente bom, há sem dúvidauma apreciação pos:tava
AG6 .4 neutíalilaçãodopraler
da vida, que se nos tornou estranha -- e da qual Nietzsche tentou reen-
contrar o alcance e a profundidade (mas relegando talvez rapidamente
demais Aristóteles e Epicuro à "decadência").
Aristóteles e depois Epicuro não duvidavam de que o simples fato
de estar vivendo fosse um bem. Se todos os homens prezam a vida não é
porque um impulso absurdo os leva a isso e os cega. A vida é a enl?rge;a
fundamental, a que torna possível (que se nos desculpe essabanalidade)
o desdobramento de todas as nossas atividades sensoriais, intelectuais.
profissionais, estéticas...Não podemos, pois, contentar-nos em dizer
que estamosligados à vida, o que deixa subentendido que nos apega-
mos a ela medrosa, fria, covardemente: a vida, nós a amamos assim
como a amava Heitor da /7zbda, quando diz que está triste por ter de
descer ao Hadem,onde a existência deve ser tão desinteressante... Sim.
pre:amos a vida, a achamos agradável; e é esse sentimento primordial
que dá ao prazer seu sentido e seu valor positivo. Vale a pena citar, aqui,
o texto da Er;ca n/comagz'áz
a:
467
'7'
469
T'
A7o AneutraLilaçãodoprljer
de viver, que o homem tem em comum com os animais e as plantas: é a
atividade de pensar.'s Então, é o prazer que a acomf)anca que será o me
Ihor para o homem. Os outros prazeres, por naturais e necessáriosque
sejam, só serão admitidos na medida em que não limitarem este. Quanto
aos prazeresque concordamos em reconhecer como vergonhosos, "não
devemserchamadosprazeres,senãopor pessoascorrompidas"."
Ora, essahierarquia perde todo o sentido em Epicuro, para quem
apenasa conexãoentre prazer e vida, indicada por Aristóteles, conta. A
manutenção do bem-estar é a única exigência reguladora do comporta-
mento, a única a definir a excelência (arere0 do homem e é na medida
em que indica que essaexigência foi satisfeita que um prazer é bom;
portanto, verdadeiro. É verdade que ainda podemos distinguir entre os
prazeres da alma e os do corpo, mas somente do mesmo modo como dis-
tinguimos os prazeresda visão e da audição sem atribuir privilégio aos
primeiros. Por não possuir, doravante, uma referência ao (['gon e à essên-
cia do homem, tornou-se impossívelatribuir aosprazeresdo espírito uma
prioridade sobre os do ventre. Bem mais, torna-se impossível imaginar
uma vida agradável que não seja fundada a todo instante sobre o bem-estar
físico, pois é "a vida no silêncio dos órgãos" que define a ezzda;monz2z.
En-
fim, não há mais normas objetivas para decidir sobre o valor positivo, ou
seja,sobre a autenticidade do prazer, senãoaquelas que determinam minha
saúde,meu bem-estar. O homem virtuoso é o bom médico de si mesmo.
Desde logo, será que temos o direito de falar de "falsos prazeres",
"prazeres vergonhosos"? Sem dúvida alguma: há prazeres aparentes
que na verdade são perniciosos e entre eles figuram todos aqueles
que a moralidade corrente reprova. Mas por que exatamente é preciso
proscrevê-los?Porque eles podem trazer-me ou me trarão inevitavel-
mente perturbações para a alma e sofrimentos. No lugar de "prazeres
vergonhosos", seria, então, melhor dizer "prazeres estúpidos"
45.Id.,ibid.,i,6,io97b 3z
46.Id.,ibid.,ii76a zz.
47.Epicuro,
Garra
a.44enece%
Sizg
47i
Y'
para repto'par neles, pob seriam cobertos de prazeres po' todos os lados e em
parte alguma estariam submetidosà dor e à adição o queétodo o mal.*s
48. Id., lvláxima 10,apud J. Bollack, op. cit., p. z73' Comentário de C. Bailey, op. cit., P. 354'
49- C. Bailey, op. cit., P. 355'
5o. Cícero, op. cít.) n, 23-24'
473
'7'
limite, com Epicuro, a vida boa pode ser assimilada, de um lado a outro,
ao equilíbrio orgânico, e as palavras X:aün e cones zzmpodem tornar-se
sinónimos de "vantajoso para a minha saúde": é o que vem com o ep:'
purismo. De que serve, então, gritar escandalosamente, se não se puser
em questão a validade do axioma do prazer do qual Epicuro, depois de
tudo, não fez mais do que explorar ao máximo os recursos? Para quem
quiser desafiar o epicurismo, a tática mais eficaz será certamente a mais
radical: consistirá eln abandonar o axioma do prazer.
Poderíamos perguntar: de onde vinha essavontade de desafiar a
qualquer preço o epicurismo? Por que o epicurismo teve desdetão cedo
uma fama tão ruim? Principalmente, parece-nos, porque Epicuro mos-
trava aos olhos de todos a diferença entre a linguagem dos filósofos e a
do senso comum, que Platão e Aristóteles conseguiam mais ou menos
dissimular. Entendamo-nos bem aqui. Que o prazer seja bom, disso os
gregos estavam perfeita e ingenuamente convencidos; mas que o de-
pravado, aquele que abusa do.praz'r, sela um ser Aalás, "imoral", isso
também lhes parecia uma evidência, tanto quanto a nós. Ora, o esforço
dos filósofos, na contracorrente do senso comum, era o de mostrar que
o "esperto",'aos olhos do vulgar, é na verdade um insensato,.ao qual
não é fácil, portanto, imputar responsabilidade moral ou penal: Em re-
gra geral, se se admite que o pra'er é um bem, é preciso considerar os
amantes de "prazeres vergonhosos", ou seja, de "falsos pra'er's", des-
miolados e estúpidos mais do que "espertos". Ora, poucas;teses,ainda
hoje, ferem mais vivamente a moralidade corrente -- e é duvidoso que
tenha sido diferente na Grécia do século lv a.C.: o aforismo socrático
"ninguém é esperto voluntariamente" devia parecer um paradoxo de in-
telectuais... É'provável que o sensocomum ateniense ficassealtamente
desconcertadocom o que podia compreender das análiseséticas da
Academia ou do Liceu e que a reflexão filosófica estivesseem continuo
desaprumo com relação a seu sistema de valorização.
Um exemplo dessadefasagem?O código de valores proposto pe'
los filósofos -- particularmente por Aristóteles está mais próximo do
diagnóstico médico do que da apreciaçãoética do vulgar. Aristóteles,
nas .Éricm, descreve as faltas morais antes de tudo como desvios em re-
i;ãZ à -;m,.i« «-"«.. . f'l' d: "-d«:; h"m"' d' m«m' "'d'
que um médico fala da tensão arterial ou da taxa de glicemia. Eis por
que (no melhor dos casos) beiramos o.conta.a-sensocada vez que tradu-
znnos ararapor "virtude" nos textos filosóficos. A arara é antes a plena
.4 sabedariçl nos eminct que não podemos le'par uma vida agradáveLse não
Levarmos uma vida Taqoável, bela eimta, e que umcl tat vida, raToâvel, bela
e Justa, é irreparável do prazer. Pob virtudes e vicia agradável enraílam-se
rlo mesmo solo: não há vida 'virtuosa que não se)a também agradável'~
475
Y
seríamos obrigados a cliler daquele que não expeíimentct p'deres, daquele que
s(?Pre,gue e/e é/nazz]kakón eínai] /zo Homemo em gazesclPre,#oise e/e o me-
/4or [aristós] de odes oi come ; e a dfÍer dagüe/e gae expor;me/zrapraÍeres
alce,quanto mais eLeexperimenta-tos, durante todo o tempo que experimentar,
[a,zfo mais e/e ganhará em irrzzde]tosoüto [à diaphereín prós aretén] "
53.Id.,ibid.,55b.
416 XnelttraliKaçãodopraqeí
dessaambigüidade para embaraçar o interlocutor.s' Ora, nem Platão nem
Aristóteles acharam útil dissipar de uma vez por todas a ambigüidade. E,
no caso do prazer, preferem delimitar um prazer autêntico, ou seja, um
prazer que possa ser dito bom nos dois sentidos da palavra: i) "agradá-
vel" e z) "conforme a virtude". Em suma,entreo que é bom/mau em
relação à condição biológica e ao estado físico e o que é bom/mau
em relação à ação e ao caráter, a linha de demarcação, no século iv a.C.
não estava firmemente traçada. Coube a Epicuro apaga-la.
Em que consistiu, desdelogo, a revolução estóica? Antes de tudo
numa decisão semântica. Para prevenir qualquer confusão entre o que
tem de bom a boa conduta e o que têm de "bom" todas as outras coi-
sasque são comumente consideradas "bens" (especialmente o prazer),
decidiu-se que apenas a conduta virtuosa merecia essadesignação. SÓa
virtude (entendidacomo obediênciaà Lei) era um bem, só o vício era
um mal e todas as qualidades, todos os estadosdesprovidos de valor
ético (vigor físico, saúde,riqueza, prazer...) não mais deveriam figu-
rar entre os bens e os males. Assim foi construído um novo sistema de
valores no qual a qualificação ética estava isenta de qualquer ambigüi-
dade e tal que o axioma do prazer estava por princípio desprovido de
sentido: seapenasa virtude é boa, como o prazer, de qualquer maneira
que o determinemos, poderia alguma vez ser dito "bom"?
Não tínhamos mais então o direito de dizer que o prazer é bom
nem que a dor é má. Não tínhamos mais o direito de dizer: "uma boa re
feição me faz bem", nem "uma crise de ciática me faz mal". E os adver-
sários do Pórtico não cessavamde se indignar; até que ponto é preciso
levar o gosto pelo paradoxo para sustentar semelhantes insanidadesl E
sem dúvida havia um paradoxo, e um paradoxo insuportável mas, no
fim das contas, apenas para aqueles que pretendiam manter o axioma
do prazer. Pois, a continuação da história mostrou que os homens po-
diam muito bem se acomodar ao "paradoxo" estóico. A verdade é que
esse"paradoxo" já não vale mais desde muito tempo, tão completa foi
a vitória do Pórtico, tanto o seu sistema de valores prevaleceu histori-
camente,como observou Kant de modo surpreendentenuma famosa
página da Crú;ca da rai.âopr.ír;ca. Podia-se muito bem, diz ele, gozar
o estóico que, presa de um violento ataque de gota, gritava: "Dor, tu
não és mál" e, entretanto, é aquele que tinha razão (traduzamos: é no
477
seusistemade notação que nós ainda estamospensando). Nós, alemães,
acrescentaKant, temos a sorte de possuir duas palavras distintas para
designar o bem moral e o bem físico: dm Gur, dm MoÀ/ assim como
duas palavras distintas para designar o mal moral e o mal Hsico: (&zx
AIS ArLeutraLilaçãodopíaler
No artigo consagradoa Epicuro que me serviu de ponto de par-
tida, Vector Brochard afirma que é depois de Epicuro, e devido a sua
tesede unidade do prazer,que
479
Sobre atecnofobia
A Charles Bonnefond
* Extraído de Adauto Novaes(org.), .4 crie da raÍãa. São Paulo: Companhia dasLeiras, i996
Tradução: Paulo Neves.
48i
Y
cuidadosa por prescrições jurídicas, almejando além disso que estas se-
jam formuladas com o máximo de precisão... técnica. Tranqüilizemo-nos:
nada nesselivro minimiza os perigos que estaou aquela intervenção tecno-
lógica "arriscada" poderia trazer para a biosfera ou para a vida animal.
Trata-se apenas de opor a necessidadede análises pelo menos um poucfl
precisas aos que se contentam com conceitos vagos na defesa de interdi-
çõesmuitas vezes imprecisas, e mesmo per:gosamente imprecisas.
É a uma crú;ca da razão técnica que o autor conclama. Mas ele
observa também que os debates tumultuosos amplificados pelos meios
l
de comunicação nada fazem além de retardar o advento dessa crítica
//!Êprmada.Cr;f/car jamais foi sinónimo de demos; ar: ao usarem a pa'
lavra crú;ca,nem Marx nem Kant pregavamuma caçaàs bruxas. Para
eles, criticar era apontar os limites de validade de um discurso que só
tivera condições de sedesenvolver na ignorância ingênua desseslimites.
Os anátemas proferidos pelos "tecnófobos" nos afastam de uma crítica
empreendida nesseespírito de rigor.
Falávamos de "conceitos vagos". Forneçamos alguns exemplos,
muito simples. A começar por "a fécn;ca", da qual se fala como de uma
pessoa moral o que é cómodo para a polêmica.
Ela é sobretudo aquilo que não se reduz a nenhuma dm at\es, aquilo de que
sefala e em quese rema achando sempre entre pa'ênteses.Ninguém ouscLrla
falei, a propósito da cirurgia ou dm telecomunicações,por ex'mpla' m a$T
mações que se falem correntemerLtesobre a têcúca, ou eLm logo se mostra
riam i mtentávels e extravagantes.
3.J.-P.Séria,op.cit., p. 5.
4 Id., bid., PP.J-6.
Í. Utilizo abundantementedois artigos de Bernard Sêve: "Hans Jonaset ]'éthique de la res
ponsabilité", in Esprz'r,out. i99o, e "La Peur comme procédé heuristique", in ,4lzr#onde
men/.çc/'bneéf44zzeconde/nporaúze. Paris: Vrin, i993.
483
Y'
nos que produz. Essepoder que crescecom seu simples exercício, Jonas
denomina-o "poder de ieg z/zdograzz", distinguindo-o do poder ("de pr/-
melro grau") que o homem exerce sobre a natureza graças à técnica, ou
seja, da imagem que se fez tradicionalmente do Ãomo#aóere de seu poder
de intervenção, em princípio sempre controlável, visto que articulado por
uma instância consciente que agede forma voluntária. Foi Bacon quem
criou uma fórmula para esse"poder de primeiro grau": "Saber é poder";
um princípio bem concebido é imediatamente traduzível em uma regra
para minha prática pessoal. Sendo assim, por que pensaríamos em nos
proteger contra os efeitos de uma técnica que é apenasa ap/icafâoda ci-
ência? Mas Bacon não previa que esse"poder" "se tornaria mestre de si
mesmo".' A partir do momento em que o progresso técnico se tornou o
equivalente de uma força natural, é urgente criar um "poder de terceiro
grau" que restitua ao aprendiz de feiticeiro o controle da força que ele
desencadeou: "0 que ê necessário agora", escreve Jonas, "a menos que a
sentença seja ditada pela pr(5pria catástrofe, é u«zpoderioóre opoder". Que
solução poderia propor o pensador "realista"? O fracasso do ideal
baconiano é patente, uma vez que sua aplicação nos conduziu a um ponto
em que a sujeição da natureza transformou-se, de forma absurda, em des-
truição da natureza, em que a prepotência exercida pela espéciehumana
acabou... por colocar em perigo a própria existência desta. Para certifi-
car-se dessefracasso, basta prestar atenção ao crescimento demográfico
exponencial (em grande parte devido aos progressos da higiene) e olhar
de frente a situação afora/g'z;ca que se esboça, a saber, "a iminência de
uma catástrofe universal, caso deixemos as coisas seguir seu curso anual
É verdade que essatomada de consciência é tanto mais difícil porque, no
Ocidente, os espíritos foram formados pelo modo de pensar que Jonas
chama "utópico", contra o qual ele trava um de seusprincipais combates
(talvez o mais digno de interesse) A "utopia" a que ele se refere não deve
ser entendida no sentido etimológico: é a forma de pensamentoque pro-
põe um modelo de comunidade em si mesmo realizável (como a RepzZó#ca
de Platão) e digno de orientar a ação política. As utopias são mitos que
sempre estiveram ligados à ideia de "progresso". Jonas reconhece que às
vezes elas foram "indispensáveis" para orientar a ação das grandes massas
6. Hans Jonas, -Le Pn/zczpe rexpomaóz/zfé, trad. Jean Greisch. Paras: Cena, (i979) l99q P' '93'
7.Id.,ibid.,p. i9i.
8.Id.,ibid.,p. 218
9. Id., ibid., PP.3o-3z. Cf. B. Sêde,op. cit., pp. 73-75
485
Y'
io.B.Sêve,op.cit.,p.77.
r i. "Os alimentos mais 'naturais' ou 'balanceadas' (supondo que as duas exigências não
sejam simplesmente contraditórias) [-.] não são menos industrialmente elaborados, fabrica-
dos e conservados que os outros. São dopados em proteínas, vitaminas, calorias, entidades
naturais. certamente, mas que a natureza não doía dessemodo [...]. Uma vez mais, não se
pode voltar à natureza a não ser complicando o artifício e, portanto, apelandoà competência
dos especialistas desse artiHcio" (J.-P. Séris, op' cit., p- 3z6)
487
conferir-lhe um poder de censurade tamanhaimportância. O próprio
Jonas, diz Bernard Sêve, indica que "não se pode Jamais iaóer.fe no Zango
pra o determinada inovação tecnológica ou medicamentosaterá efeitos
altamente indesejáveis sobre nossos descendentes". O "medo" ;nde#-
rz;doentão não nos inclinará contra a inovação, em favor da abstenção?
Levar em consideração o imperativo não arriscada paralisar qualquer
iniciativa? Sabe-sequanto o imperativo kantiano é limitador do agir.
Mas pelo menos ele inclui um leira, o da universalização em idéia da
norma pessoal que estaria ao alcance de cada um realizar, permitindo
reconhecer se a norma da ação é ou não "moral". Nada disso acontece
com o presente imperativo: nossa simples ignorância do futuro nos im-
pede de decidir sedeterminada ação submete-se ou não à interdição. E
portanto a decisão de aÓmfar o reco possível que deveria, praticamente
sempre,prevalecer. Risco em relaçãoà sobrevivência e à integridade
da espécie, mas também em relação à sobrevivência e à integridade da
natureza, que igualmente tem direito, precisa Jonas, "à proteção para
seupróprio bem" (mesmo excluindo o interesseda espéciehumana).:'
O interesse, nesseponto, do pensamentode Jonas (que não pensa'
mos de modo algum em representar como "obscurantista" ou em cari-
caturar de alguma maneira) é enunciar com firmeza e coerência a tese
de uma submissão de princípio da atividade técnica a uma instância de-
tentora do saberdo Bem. Com Jonas,a ética readquire sua força, preen
chendo as expectativas daqueles que, nos dias de hoje, celebram seu
retorno". É que esse"retorno", segundo ele, é o único meio de pâr
fim (se já não for demasiado tarde) a uma crise cultural e filosófica sem
precedente, "que mesmo um Aristóteles não podia ainda pressentir
489
vável. Mas o fato, como observaSéria,é que a ciência e as técnicassão
com freqüência os melhores instrumentos de proteção do meio ambiente:
"Toda uma vertente da atividade técnica de nosso tempo, e da atividade
mais inventiva, dedica-sea encontrar soluçõesaos problemas colocados
pela técnica".:' E será a técnicos que nos dirigiremos para reciclar resí-
duos, criar motores não poluentes, energias "alternativas". "A natureza
tem ainda necessidade da arte", tem necessidadedela mais do que nunca,
para reparar os danos que o homem Ihe inflige (e que Ihe infligiu, seja
dito de passagem, bem antes da Revolução Industrial). Em suma, não
é difícil fazer surgir aporias lá onde os tecnófobos só apresentam boas
intenções. É uma boa intenção que leva os tecnófobos a lutar contra os
favoresde risco (transporte de hidrocarbonetos, o nuclear), mas é uma
falta de przzdZnc;a
que os faz negligenciar os efeitos possíveisda elimina-
ção brutal destes últimos (para a produção de eletricidade, para a indús-
tria farmacêutica, os fertilizantes...). É forçoso reconhecer que um pen-
samento como o de lonas nos deixa sem fio de Ariadne nesselabirinto.
Outra objeção de Jean-Pierre Séris, que vai na mesma direção, me
parece merecer particular atenção. Seria a hora de recolocar em questão
a imagem convencional do técnico obtuso necessariamenteindiferente
aos problemas do óom zzsodas técnicas, "do ativista prático, necessaria-
mente irresponsável, que se colocaria apenas questões técnicas"." Não é
anteso tecnófobo que, arrebatadopor suapaixão, foda essehíbrido de sr.
Homaiszi e de dr. Fantástico? A ética dos filósofos não tem o monopólio
das precauções contra os perigos do "progresso": são os biólogos, afi-
nal de contas, que chamam a atençãopara novíssimos problemas e dile-
maséticos (e que devem, eles,enfrenta-los em sua prática profissional)
Vale a,pena examinar sob esseângulo a recente revolução biotecno
lógica, exemplo desseimÓrfcamenfoentre ciência e ética. Foi nos anos de
i97o que se descobriu (contrariando, aliás, os prognósticos mais autora
zados) a possibilidade de agir sobre o genoma e de retocar, por meio das
"enzimas de restrição", o programa genético e até mesmo de$aór;
far, por "adições genéticas", plantas resistentes aos parasitas, espécies
animais melhoradas...:: Paroxismo da "utopia" tecnológica: a antiga
49o Soórearecri(?Éoóia
pÀúiç (tanto a de Aristóteles como a da terceira Clú;ca) se via espetacu
larmente transformada num novo domínio dapo&sü.
z3.Id.,ibid.,pp.358-59.
z4.Id.,ibid.,pp.37o>36z
z5.Id.,ibid., p. 363.
49i
a possibilidade de a não-coagulação do sangue ser uma vantagem para o
hemofílico em séculos de "viagens interplanetárias rotineiras".:' Como,
.z#ort/or/,esboçar o perfil do "homem normal" do futuro? Somente seria
capaz disso quem previsse as performances de nosso longínquo "sobri-
nho" e as circunstâncias nas quais elas se realizarão.
Na origem do eugenismo,como na de muitos outros fantasmas
menos especificamente tecnológicos, note-se bem, do que o/u/zlarü m
ou comrrzzr;vúzm--, há, por mais extravagante que isto pareça, o desco-
nhecimento de nosso estado de ignorância mais ou menos total em rela-
ção à "História" por vir. Desconhecimento, ou amcziÃúz,como diziam os
gregos para designar o fato de ignorar... que se ignora. Irreflexão muito
semelhante,por exemplo, à dos utilitaristas quando definiam o valor
moral de um ato pelo saldo de prazer e de sofrimento que eqecausaria,
como se um agente pudesse ser capaz de conhecer as conseqüências to-
tais de cada um de seus atou. Hayek surpreende-se com o fato de pensa-
dores respeitáveisterem assim "deixado de considerar atentamente este
fato crucial que é nossaignorância inelutável da maior parte dos fatos
concretos e proposto uma teoria que postula um conhecimento dos efei-
tos reais de nossas ações individuais".:' A mesma observação vale para
os eugenistasquando pretendem trabalhar para o meZBorame/zlo
da espé-
cie: o simples uso da palavra meZXorarimplica (ou deveria implicar) que
já se possuemos dados relativos a todos os problemas, tanto biológicos
como técnicos, que nossos descendentes enfrentarão...
Mas deixemos de lado essasfanfarronadas futurológicas implícitas.
E perguntemo-nos, ainda com Séris, o que significa esta outra pretensão
de fixar "normas do valor vital. assim como do valor humano".:8 Essa
ambição só seria legítima se a normaó;o/og;c'z#oise aiizm;/áre/ a nora'z
réc/z;ca,isto é, ao modelo ao qual seconforma um fabricante para obter
produtos uniformes neste ou naquele aspecto: i,44 m é a distância norma/
z6. Sobreo caráter incognoscível e não avaliável da utilidade de uma mutação,cf. J-P. Séria,
op- cit., p. 63, e a citação de F. Dagonet: "0 hemofílico morrerá em conseqüência desse
defeito; masum déficit não existeem si, somenteem relação a um meio ou a um tipo de
existência. Em casode viagens interplanetárias rotineiras, não está excluída a possibilidade
de essedesfavorecido se beneficiar com a não-coagulação do sangue, enquanto os terres-
tres normais poderiam sofrer em conseqüênciade uma fisiologia ajustadaà gravidade"(Za
naif/íse du írant. Paria: Hachette tg88, p. i84).
z7. Friedrich August Hayek, Z)ro;t, /égúZadorzef aóeae,trad. Audoin. Paras:PUF,ig8i, v. n>p- z3-
z8. J.-P. Séria, op. cit., p. 37i-
zg. Cf. Georges Canguilhem, Ze J\forma/ ef ZaparÃoioglgzíe.Paria: puF, ig66, p. i76led. bus.: O
mima/e opazoZóB;co.
Rio de Janeiro: Forense, ig87]
3o.Id.,ibid., p.i97.
493
,4 virtude é a mais nobre qualidade dm coisa criada, mas não é a única
quaLHadeboa das criatura: há uma inanidade de outra que atraem a incli-
nação de Deus; de todas essasinclinações resulta o maior bem possível; e o
fato é que se houvesseapenm virtude, se houvesseapenm criatura racionais,
haveria menos bem. Midm viu-se menosrico quando teve apenm ouro?*
495
questão da "legitimação da dominação", isto é, no con)unto de crenças
e de valorizações que asseguraa lealdade dos governados para com o
poder. Na época da economia liberal, fazia-se apelo essencialmenteao
imperativo da estabilidade da propriedade (das relações de produção,
em termos marxistas) para que os "cidadãos ativos" aceitassem os dissa-
bores da dominação. A implantação do sufrágio universal tornava, por
si só, essemodo de justificação insuficiente: o Estado não deve mais
apenasgarantir a liberdade do mercado, mas também zelar pela inte-
gração dos cidadãos na sociedade,sua segurança económica mínima e
mesmo suasoportunidades de promoção social. Essesserão os títulos
principais de "credibilidade", portanto de legitimidade do poder: a ta-
refa propriamentepo/zt;ca muda assim de natureza: ela não consiste mais
em fixar e realizar fins, mas em prevenir as disfunções que ameaçam a
estabilidade de um sistema social. E serão os exWec;a#çrm(administrado-
res, economistas) os mais capacitados a levar a cabo essaprofilaxia, sem
a qual a legitimidade do poder sedesagregaria.Este setornará portanto
cada vez mais dependente das informações e dos prognósticos daqueles,
na medida em que apo/ú/ca passa a se conceber essencialmentecomo
uma busca de soluções para as questões de ordem técnica.;5
Desse modo, o Príncipe acaba ou acabará por ceder seu lugar ao
'conselheiro do Príncipe", e a dominaçãopolítica tradicional se apaga
diante de uma administração preocupadaem manter a sobrevivência do
corpo social. Dessa mudança de essênciada política, Hobbes havia sido o
anunciador: a arte política não está mais ligada, como para Aristóteles, ao
;viver bem" da sociedade, mas simplesmente à sua sobrevivência. Ou ainda,
diz Habermas, a política não depende mais da atividadepránca, mas da ati-
vidade zmrmmena/, que "exerceuma regulação permanente do processo
económico" e, com isso, rac;o/za#Ía todos os aspectos da vida em comum.
Aqui se impõe a referência ao processo de rac;onaZzÍafãoque acom-
panhou, segundo Max Weber, o desenvolvimento do capitalismo. É a
propósito de uma reflexão sobre Max Weber que Marcuse oferece uma
de suas primeiras análises dessatecnicização integral da vida social me-
diante a edificação de grandes aparelhos de regulação (administração,
direito, gestão das empresas etc.). Ao apoderar-se assim do con)unto de
nossas práticas, a rac;ona//Jade / mmenfa/(ZwecÉrarz o/za/z'rdz) substitui
35. Jürgen Habermas, ZecÃn;gz'ee science m/n«ve Idáo/ag;e; pref. e trad. Ladmiral. Paris;
Ga1limard,
i973, pp.4o-4i.
497
ramo da produção, e não mais o apanágio de alguns gênios solitários:
E considera-secomo um material disponível a "capacidade cerebral
existente nos institutos de pesquisae nos laboratórios... Essasubver-
são cultural, analisada especialmente por Serge Moscovici, é bem mais
que o efeito de um simples crescimento das forças produtivas -- e um
dos méritos de Marcuse foi ter sublinhado a originalidade do fenómeno
para o público filosófico. O filósofo, se não estiver atento a isso, se
satisfará facilmente com uma conceptualizaçãoque não mais se aplica
à atualidade. Um único exemplo da profundidade dessa mutação, que
tomo de Moscovici: podemos ainda usar as palavras safio;r-Óa/ree Àa-
ó;//Jade como nos tempos em que essasatividades só diziam respeito
ao cérebro, aos músculos ou ao aparelho sensorial humanos? Com a
autonomia adquirida pelos objetos técnicos, o sapo/r-Óa;renão mais se
limita ao indivíduo biológico; a Àaó;//Jade, portanto, não deve mais ser
compreendida como um conjunto de regras capa:': de seinscrever no
comportamento de um indivíduo de modo a qualifica-lo para .uma ta-
refa específica. "A noção de Ãaó;/idadedeve ceder lugar à de /nÓorma-
fâo: o que se assimila e transmite é certo volume de informações.ope'
ratórias", que não são mais "a propriedade daquele que está associado
a elas".SPMarcuse, indo na mesma direção, observa que o avanço da
"tecnologia" permite a "intercambialidade das funções". "A base sobre
aqual repousava a distinção tradicional entre o saber eipec/a#Íado(técnico)
e o saber a/zí farsa/parece restringir-se."" Esse é um exemplo, entre
outros. da verdadeira mzzfaf'ãoque sofre o indivíduo, uma vez transfor-
mado num componente da "tecnologia
Essa mutação é necessariamente maléfica? Seria imprudente deci-
dir com base em simples impressões e sem diferenciar suficientemente
as etapas sucessivasda técnica como aqueles que, abstratamente, fa-
zem pesar sobre a informática os mesmos agravos que o século xix em
relação às izzm máquinas. Em vez de deplorar por princípio uma nova
forma de "alienação", convém observar que o trabalho, no tempo dos
computadores, reduziu-se menos que nunca a um funcionamento ma
gzz;na/...Eis a ocasião em que esseperigoso singular transistórico, "a
técnica". merece toda a nossadesconfiança. Além disso,não percamos
de vista o papel liberados (relativamente às operaçõesmecanizadas)
39.Id.,ibid.,pp.449-5o.
4o H. Marcuse, apud G. Raulet, op. cit P.iz9.
498 Saóreare'«c#oóia
desempenhado não tanto pelas mágzzü propriamente, mas pelos azz/o
mafíçmoi. Liberação do cérebro para outras tarefas, liberação do arte
são em relação à especialização que o subjugava e, com isso, tem-se um
indivíduo cada vez mais apto à polivalência. E Sériaconvidara os detra
fores da "técnica" a meditar sobre estaslinhas um tanto provocadoras
de Leroi-Gourhan:
4i- André Leroi-Gourhan, Ze .l#/dtz re/npi, pp. 87, gi, apud J.-P. Séria, op. cit., p. rg6
499
'7'
í01
a resignar-se diante do irremediável. E a própria revolta se arriscará a
não ser mais que a imagem invertida dessaresignação: não haverá por-
tanto interrogação sobre o fundamento da tese de Gehlen em si mesma,
nem da filosofia da história que ela pressupõe. Ê desseponto que parte
Habermas para marcar (amigavelmente) a divergência existente entre
Marcuse e ele. Há "complementaridade", aponta, entre Marcusee "a
ideologia que substitui a dominação política pela administração coman-
dada pela ciência". De fato, a reação de Marcuse consiste em estigmattzar
uma deriva da civilização à qual se acomodam os que ele critica, mas que
ele próprio, igualmente,pensaser um fenómenoirreversível: o que foi
chamado. àsvezes irrefletidamente, seu zzropismo
é antesde tudo a resul-
tante dessaconjunção incomoda que torna "ambígua", diz Habermas,
sua concepção da "sociedade tecnicizada". E a ambiguidade, tal como a
formula Habermas, é pesada: Marcuse deve condenar um sistema de do-
minação social e político que se deixou tragar pelo "progresso técnico
(como se a técnica fosse uma "força produtiva") e ao "'teimo tempo deve
caracterizar nossa modernidade pelo fato de a técnica exercer doravante,
por sf mesmae sem intermediário, a função.de opressor (como se ela ti-
vesse se tornado uma "relação de produção"). Quando Marcuse põe fim
a essa ambiguidade, é para se enganar na segunda direção. Ele rejeita a
idéia de que a "tecnologia" teria tido a má sorte de ser utilizada de ma-
neira absurda pelo sistemade dominação que favoreceu sua expansão:
hoje, é aproprü écn/cacomo instância de -B;/du/zgque devemos camba
ter renunciando, sobretudo, à idéia antiquada de sua "neutralidade"
Uma "nova técnica" e -- por que não? uma "nova ciência": a pri
meira qualidade de um filósofo, dizia Kant, é ser coerente. A essasli
nhas de Marcuse por ele citadas, Habermas replica facilmente que não
sepercebe muito bem como se poderia modificar "a estrutura do poder
de manipulação técnica [...] enquanto a espécie humana for orgânica
mente o que ela é". É verdade que a desalienação que Marcuse tem em
vista exigiria, de modo muito literal, a vinda do super-homem... Parece
claro que esseirrealismo é a sançãode sua radicalidade. Tal é a lição
que o leitor extrai desses textos críticos de Habermas: Marcuse foi Zo/zge
48.In J. Habermas,Z%épn
e erprarz'gaze,
t. n. p. iz6
5o3
e de exprimir M coisa que, no entanto, somos capazes de falar. Nesse caso,
judo se pensaria como se nosso cérebro, que comtitui a conxlição material, $-
5i. H. Marcuse,Z)e/'tenro/ayze
â /a ecÁno/Onze
apud G. Raulet,op. cit., p. i33
5o5
pleno direito que a primeira deve "manter seu lugar" de simples execu-
tante, sob a tutela da segunda: a determinação dos fins da ação é algo
demasiado sério para ser confiada a uma faculdade míope e servil. Ora,
talvez esteja na hora de reexaminar essahierarquia "de bom senso" na
qual sobrevivem, mal camuflados, preconceitos vetustos (como a su-
bordinação das artes mecânicas às artes liberais), hierarquia que pode-
ria muito bem ser obsoletanumaépocaem que a figura do "cientista"
substituiu a do técnico, no sentido estrito de "possuidor de um X:noH'-
Àow".Após tão profundas mutações que emparticular tornam difícil
traçar uma demarcação entre técnica e ciência --, o que autoriza, Ão/e,
associar a atividade técnica às idéias de sujeição e de alienação? Não
sugerimos que a essaquestão deva ser respondido: "Absolutamente
nada!", mas simplesmente que seria importante formular essaquestão a
partir de investigações sobre /zoiim técnicas, sem recorrer às velhas mal-
dições. Caso contrário, ao vituperar "a Técnica" transistórica, como ter
certeza de que nossas acusaçõesnão estão superadas? De acordo com
as últimas notícias, os operários não quebram mais como outrora suas
máquinas: coisasque àsvezes convém lembrar aos "intelectuais
Voltemos, para terminar e para terminar brevemente--, à questão
de saber se é de fato à raÍâo z/nzrzzmenfa/
que se deve a confusão do político
e do administrativo que caracteriza o espírito rec/logra /co. Não é antes uma
outra forma da "razão" que deveria ser incriminada? A filosofia grega
clássicapoderia fornecer-nos, sobre esseponto, ao menos uma indicação.
Se Platão atribui um estatuto subalterno às técnicas exercidas por
especialistas,é em razão de sua nezznaZldade.szMarquemos a diferença, diz
1 ele, entre duas atividades: prodzz{/r uma coisa e z ;# ar corre/ame/zreessa
coisa. O técnico tem receitas para a produção, mas não para a utilização
correra. Não é a arte médica, produtora da saúde, que pode decidir se é
útil para o doente ser curado: é uma arte superior (e onisciente) que deve-
ria indicar ao médico, casopor caso,como utilizar melhor seu saber por
exemplo, que futuro homem de bem aZeape/zacurar, que futuro patife é
prl:#en've/ abandonar à sua sorte. Assim se instala a oposição entre o saber
técnico (que me torna detentor de uma competência bem localizada) e um
saber prático, um saber do Bem, certamente inacessível de fato, que seria
o único capaz de permitir uma utilização sempre Judiciosa da arte.
5z.Inspiramo-nos aqui em análisesde Wolfgang Wieland, P/afon zznddle Formar dei ir'h-
senzb pp.l76-79,Z6i-75-
5o7
Y'
* Extraídode,4/za/glzca,
v. 3, n? 1, i998. Tradução: MarcosAndré Gleizer e Antânio Passos
Videira.
Ío9
Y'
5l l
.E', renda no/ado gaze/fada Ãá no penso, logo existo, gazeme segure de gaze
digo a verdade, cxceto quevejo muito claramenteque, para penar, épreciso
existir, julguei que podia tomarpor regra gerar que m coisa que concebemos
ma/ c/ara e mu; d&rznramenfe iãa od verdadesrm [...].'
6. Id., ibid., Quarta parte, A.T., v. vl, p. 33; trad. cit., p. 47-
7. G. W. Hegel, GPÁ,p- i3o; trad. cit., p- i-395 [i936]. Traduçãoabreviadade Hegel. Cf. a
tradução de Picos: "pois nós temos tanta repugnância em conceber que aquilo que pensa
não existe ao mesmo tempo em que pensa" (apud Pierre Garniron, p. t.936) [Abade Picot,
contemporâneo de Descartes, de quem traduziu os Prí c#zapÃ;/oiapÀ/ae,reproduzidos na
edição Adam-Tannery(A.T.)[N.z.]].
8. Que sedeve evitar de confundir com "Tudo aquilo que pensa existe", a premissa maior
do silogismo que pretende, falaciosamente, explicitar o enunciado cartesiano, e que Hegel
critica várias vezes. Cf. G.W Hegel, EnWÉ/apãdíe derpÀz/aiopÀíscÀenWhsemcÃa@en(En{.)
IEnciclopédia das ciências fllosóficas] (i8z7), S 64; trad. francesa B. Bourgeois. Paria: Vrin,
i97olPP.3z9-3o-
g. J.-M. Beyssade, -La PáíZoiopÁleprem;êre de Z)eicarfes. Paras:Flammarion, i979, p. z36.
ro.Id.,ibid.,p. zz8.
ii.Id.,ibid., p.229.
iz. Pierre Gassendi, Quintas Objeções, in Descartes, Oeul,reapÁI'/axopÁzglzei, ed. F. Alquié.
Paras:Garnier, tg65, v. n, p. 7o8. Cf. G.W. Hegel, GPÁ,pp í3z-33; trad. cit., pp. r399-4oo.
r3' R. Descarnes,Quintas Respostas,ed. F. Alquié, v. n, p 79z; trad. J. Guinsburg e Bento
PradoJr., ed.cit., p. i8o.
r
elevar-se ao pensar (donde o interessede fazer com que das .DenX:em fi-
que, em português, como infinitivo substantivado). É o que ocorre, por
exemplo, no artigo g dos Pr/nczpzoi, glosado de perto por Hegel:
Devemos buscctr o que é certo; no certo está Q corte la, o saber como talha sua
formct pura enquanto referindo-se a si. Eis aío pensar; é msim queo enter
dímenzo no iea emó'zrafo [der unbeho]fene Verstand], encamzlzÀa-ie em
direçãoà necessidadedo pemarzs
ii7
Frase notável se a aproximamos das considerações de juventude de He-
gel sobre a "necessidade da filosofia".:' As cisões criadas e consolidadas
pelo entendimento na época moderna (entre espírito e matéria, alma e
corpo, liberdade e necessidade,íé e saber...)acabampor despertarum
interesse, propriamente racional, na conciliação das oposições. Conce-
bemos que essa necessidade racional se anuncie apenas em i/ ousara /zós
por meio do pensamento que consagrava a vitória do entendimento se-
parador em Metafísica. Mas, se esta é, calculada com a maior exatidão, a
posição Ãüzódca de Descartes, qual é exatamente o alcance da metáfora
do vigia? Por mais alta que sejaa significação "espiritual" (cultural) do
momento cartesiano, a questão é saber se a forma que tomou a "me-
tafísica ingênua" como "filosofia cartesiana":' estavaem condição de
marcar uma reviravolta propriamente.pios({Pca.
Dessa "antiga Metafísica [vorma/Üe -MerapÀ7T;A]", da qual o nome
de Descarnes é inseparável, Hegel assinala a grandeza e a ingenuidade.
Esclareçamos rapidamente esses dois pontos.
Seu mérito que Ihe assegura zzmasuperioridade sobre a filosofia
crítica é de ter afirmado "que o pensar apreende o em s; das coisas, que
as coisas não são o que são verdadeiramente senão enquanto coisas pensa-
das".28 As PreZefõex retomam esse tema. O que quer que se possa objetar à
determinação da matéria como substância extensa,não esqueceremosque
Descartes quer apenas pensar; ele não pensa a resistência, a cor etc., ele as
apreende apenas enquanto sensíveis. Tudo isso, diz ele, deve ser recondu-
zido à extensão como sendo suasmodificações particulares; é uma honra
para Descarnester considerado como verdadeiro apenaso que é pensado'
Por inadmissível que seja, notadamente na ciência da vida, sua "filosofia
mecanicista", ela comporta, entretanto, "isto de grande: que o pensar faz
de suasdeterminações de pensamento o que é verdadeiro na natureza".:9
Em todo caso, essainseparabilidade do pensar e do ser é apreendida ime-
diatamente. Donde a observação de que o "saber imediato" de nossosdias
(Jacobi) nada mais faz que retomar ao pé da letra tesescartesianas,em opo-
sição à "filosofia que seesforça emproPar a inseparabilidade do pensar e do
ser". "A filosofia, acrescentaperfidamente Hegel, deve estar totalmente
satisfeita com o que é afirmado e mostrar que suasproposições também
5i9
r
rentes ar;rzzdei filosóficas modernas e realça as carências que lhes são pró-
prias, a fim de mostrar como seimpõe a idéia de uma lógica esp'culativa.
A atitude cartesianavem em primeiro lugar. Suacaracterística:a cons-
ciência filosófica não experimenta ainda "a oposição que ela comporta
Nesse estágio,a posição "de uma subjetividade con ra uma objetividade"
não é tematizada -- e é justamente por isso que é óbvio que as determina-
ções-de-pensamento são aquelas das "coisas". Se não encontramos aqui
o (nefasto) voltar-se sobre o "conhecer subjetivo", que caracterizaráo
pensamento crítico, é porque as condições rop/c desseprocedimento es-
tão ausentes.Ainda não é o caso de nos interrogarmos sobre a faculdade
de conhecer, da qual dependemas representaçõesque consideramos; é
em vão que buscaríamos o equivalente dessa"reflexão transcendental", à
qual, segundo Kant, não podemos nos subtrair "se queremos fazer algum
juízo a/non sobre ascoisas". Semelhanteproblemática é estranhaà cona
mem, assegurada de que sua retidão intrínseca a conduzirá ao verdadeiro,
contanto que ela não tropece, por irreflexão, no caminho da produção
de suas certezas e se contente em examinar com cuidado os conceitos ou
elementos conceituais que ela e/zcon aJ í aí(vo@/zde/z)ou, ainda, ie repre-
senta.É necessárioainda dar a essapalavra toda a força que ela tem em
Hegel: acolher todo conteúdo de pensamento (GedacÀrei) sob uma forma
que não difere daquela que é oferecida por um conteúdo sensível.;s
A metafísica assim constituída será uma "Metafísica do Entendi-
mento", masnum sentidoa ser especificado.Não porqueas determi-
naçõesque emprega sejam "apenassubjetivas e comportem oposição
permanente àquilo que é objetivo", como será o caso na filosofia crítica,
mas porque submete seu objeto ao recorte da represenrafâo,recenseando
ou relegando conteúdos que são dadosporprínc@/o üo/adamenre.Deus
é "criador do mundo", ramóémé "todo poderoso" e, além disso,{am-
1 óém "soberanamentesábio"... Essasrepresentações"ligadas pelo sim-
ples lamóám", o entendimento filosofante as recolhe tais e quais para
estabelecer entre elas relações de necessidade.3' Qual é, pois, o beneficio
Hemosessa representações
suceder-sede uma maneira empírica, quenão é,
pois, jitoso$camente probatória \be'we\senda, a Metafüica apriorística com-
portcl pressuposições de representações onde o pemamento se exerce como ete o
faina empina,comm tentativa, m obsewações,
asexperiênciml
521
Tal é o pensador que se instalou nas PreZefõessobre Descartes, e que temos
o direito de considerar menos semelhante ao original que o "Aristóteles'
ou o "Espinosa". Eis aqui um "Descartes" que não apresentaria nenhuma
"prova filosófica" e cuja filosofia primeira seria um percurso de "repre-
sentações" efetuado sem "método filosófico". Por mais que saibamos
que todo procedimento do entendimento, segundo Hegel, é deformador
do conteúdo racional e, por isso, impróprio em filosofia, permanecemos,
mesmo assim, surpresos por linhas como as que se seguem:
4z- R. Descarnes,Regra v
43' Carta de V. Cousin a Hegel, 1?de agosto de i8z6, in Corresponda/zce,
n? 5i7, trad. J. Car
rêre. Paras;Gallimard, ig67, v. m, p. 5io-
523
r
torna o leitor capaz de "fazer sua" a coisa demonstrada, como se tivesse
sido "ele próprio o seu inventor"." Por que Hegel se Julga, no entanto,
no direito de negligenciar asparticularidades das duas vias?
Voltemos inicialmente às explicaçõesmetodológicas das Segundas
Respostas e a esta precisão de Descartes: se as noções simples que enca-
beçam a exposição sintética são, por sua natureza, mais fáceis de conhecer
que as noções geométricas, elas não o são sempre deparo, em razão dos pre-
conceitos que obscurecem o espírito do leitor. Propostas "totalmente sós",
as primeiras noções metafísicas correm o risco de escapar aos espíritos que
não estão suficientemente apartados do comércio dos sentidos e que, além
disso, são propensos à controvérsia.'s Eis por que é preferível, em MetaH-
sica, usar um discurso tal, que o leitor, seguindo-o, deva "meditar seria-
mente" com o autor. Assim, "preferi escrever meditações e não disputas
ou questões,como fazem os filósofos, ou teoremase problemas,como os
geâmetras [...]".# Retomando os termos de Henri Gouhier, a melhor ma-
neira de evidenciar essedomínio é obtida pela "ordem da exposiçãoque
coincide com a ordem da descoberta" -- o que, de resto, deve impedir-nos
de assimilar a exposição metafísica a um "exercício de geometria pura"-'7
Ora, essamaneira de destacar a especificidade do discurso metafísico não é
algo muito apropriado para chamar a atenção de Hegel.
É verdade que Hegel, àsvezes,parece próximo de fazer filosofica-
mente justiça ao Método cartesiano,considerado no seu tempo assim,
quando ele ressalta no Prefácio da Ãe/romeno/og/ao "lado" positivo da
atividade do entendimento.
Dividir uma representação rios seus elementos originais é remontar aos seus
momentos que, como condição mínima, não tenham a forma da representação
previamente encontrada, mm constituam a propriedade imediata do Si '*
44. R. Descartes, Segundas Respostas>A.T., v. vu, p. zi ["a via pela qual a coisa é descoberta
metodicamente e enquanto aprlori." Em latim, no original. (N.z)]. Cf. Henri Gouhier, Za
Pz ée máfapJÍy=;gaze
de Z)ficar ei. Paria: Vrin, s.d., p. io7-m.
4$. "Eu desejo, com efeito, seguir sempre,ao escrever,esta regra de nada afirmar sobre as-
suntos que seprestam habimalmente à controvérsia, sem dar previamente as razõesque me
conduziram a estas conclusões e que podem, a meus olhos, persuadir disso também os outros'
(R. Descarnes,
Regraxn, A.T-,v- x) pp 4ii-iz; trad. J. Brunschvicg,ed. F. Alquié, i, p. i36).
46. R. Descartes, SegundasRespostas> A.'r, v. vu} p. 123.
47. Cf. H. Gouhier, op. cit., pp. ilo e iiz
48. G. W. BeBeI, "Prefácio", in Ãe/romeno/afiada expúzzotPÃã7zomenoZog/e
dei Geúfei(PAãG)],
trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz. SãoPaulo: Abril, ig8o Os pensadores,p. ig.
Íz7
r
grande parte sumário, e isso por ter ou forçosamente ignorado (no caso
das Regam) ou negligenciado textos que atestam não ser Descarnes apenas
testemunha de um "espírito" novo, mas criador de uma problemática filo-
sófica. Tal é a conclusão a que poderíamos, ou deveríamos, chegar. Toda-
via, poderíamos fazê-lo sem correr o risco de desconhecer a originalidade
da abordagem hegeliana?
Descartes para predispor ao kantismo? A situação que cabe a Kant,
aos olhos de Hegel, seria suficiente para desviar o leitor dessapista genea-
lógica. Em primeiro lugar, como encontrar na ingenuidade da "antiga me-
tafísica" algo que anuncie o "escrúpulo crítico" e a escolhado "conhecer
finito como ponto de vista 6uo e último" ?óoEm segundo lugar, e sobretudo,
lembremo-nos de que Descarnesé daquele tempo no qual nem mesmo se
pressentia a azz/o/zom;a
do conhecimento HilosóGicocom relação às ciências:
é que "naquele tempo" faltava a própria concepção do pensar que impõe a
idéia dessaautonomia. E na Clú/ca, e apenasna Clú;ca, que essaconcepção
aparece. É ali, e apenas ali, que se esboça a virada em direção ao pensa-
mento especulativo como sugere sucintamente Yvon Belaval:
Com .Kanl, o Eu penso com a arzvo de .Descarnes se fra marca /zo lch denke
comtitutivo de rlossomundofenomenal; não restava nada mais do qLLefalerdele
semcessário sobo nome de Conceito o con.stituúvodo mundo em-si epara-rúsf'
aponto de vista da $1oso$akantiarta éo de que o pensar, por seü \poder de\ ra-
ciocínio, chegou a apreender-secomo absoluto e concreto,como !iwe, como \termo\
Último. ELe apreendeu-se como algo tal que ek seja mle mesmo a totalidade \âXes
in a]]em] [...]. O/enz.çar esporta/zroJ em iz meigo delermznanre, co/zcrelo [...].ó2
63. Sobre a precedênciada unidade sintética relativamente à unidade analítica e sua signifi-
cação,cf. G.WI.Hegel, }PZ, Do conceito em geral, in Sdmf/zcÀelaerAe./üóí/ã zmialuXaóe,ed.
Hermann Glockner. Stuttgart: Frommann, i949, v- v, pp. i4-i6; trad. francesaP.-J. Labarriêre
e G. Jarczyk.Paras:Aubier, i977, v nb pp- 45-46.Cf. ImmanuelKant, falira da ra âopzzra,
Analítica Transcendental,B, Si6: Da unidade originariamente sintética da apercepção.
64. G. W. Hegel, WZ, v. v, p- i6; trad. cit., p. 47
J29
r
Seé verdadeque Kant foi o primeiro que libertou o "Eu penso" de sua
ancoragem na "simples representação do eu", compreendemos melhor
que tipo de imaturidade onerava a "certeza imediata do pensar", tal como
ela se oferece em Descartes. Que o pensar seja "o princípio", quere ar
seja equivalente a ser, Descartes, sem dúvida, o afirma e não há nada
a reprovar nessas asserções. Entretanto, essas simples fará f/m ( Hera;-
c'berzz/zgen)
não configuram moi rafõei (Ze/rmo; dessaspáginas sobre
Descartes), de forma que a leitura especulativanão tem dificuldades em
manifestar a sua fragilidade. Assim, quando Descartes confia na media
ção completamente exterior do Deus veraz para garantir a validade das
idéias claras, ele considera o "conhecer subjetivo" e a "realidade efetiva"
como termos distintos que nenhuma "ligação inseparável" une.
Nós começamos por algo de certo, o Eu, o mesmo ponto que em Descarnes,
mm com necessidades e exigência.s completamente dtfererLtes. Á partir desse
Eu, não é, com efeito, o ser que se quer estabelecer, mm a sequência do sis
Lema do pemctr. Descarnescomeça pelo Eu: em seguidct, nós temas, nós en-
contramos ainda outros pensamentos em nõs, de início Q respeito de Deus;
J3i
(7ZTÜX:e/l)e incapaz,por conseguinte,de fazer valer o direito que ele
reivindicava. "A necessidadede desenvolvero determinado partindo
do pensar ainda não existia."'' Mas a cláusula do "ainda não" (alvo fa-
vorito dos adversários da teleologia hegeliana) não deve dissimular que
tudo a//zdaestavapor ser feito, que a hora que não havia soado, que era
tudo menos que a hora do filosofar moderno (:#e/zvo e que as tesescarte-
sianassó têm valor de zrzd/carão para nós, hoje, que estamos,enfim, em
posição de interpreta-las; pois, no seu tempo, elas não enunciavam o gaze
eZm co/além. É necessário avaliar completamente essa abstração da filo-
sofia do entendimento, que a história da filosofia nos levaria a diminuir
se ela nada nTis fosse que uma retrospectiva forçosamente otimista.
Se digo todos os animais, essa expressão tem pouco vatorpara ILHA Zoologia.
Do mesmomodo M patacas divino, absatuto,eternoetc. nãopodem exprimir
o gae /ze/ eira co/zrído[nicht aussprechen,was darin entha]ten ist].':
forma de Dem, outra representação distinta daquela contidano Coglüo, elgn sum
ser e pensar indissolweLmente ligctdos, temosaqui (isso sobaCLforma de umcl
representação que tenho em mim. O conteúdo inteiro dessarepresentação, o onipo-
ente, o suor'lamente sábio etc., são ospredicados que sedão apenm mclb tctrde;
) conteúdo nwsmo é o conteúdo da ideia, ligado à existência, à realidade-efkúva
F%mzoia:.fila-za:f repreienrafõei izzcecler-ie Zeüma nzzanezrae/l#)z/zcaE-.].75
533
r
que falta à prova é simplesmenteDeus comoSz#e;lo ou melhor, em sua
(:#erzzafão
como S©e/zo. Nada de espantoso nisso, visto que "a necessidade
de desenvolvero determinado partindo do pensarainda não existia". Mas,
perguntamo-nos, então, como o discurso do entendimento teria podido
'znzznc;ar,
falando propriamente, uma verdade especulativaque não teria
tido o menor sentido para aquele que o proferia e do qual ele é, no má-
ximo, apenasretrospectiva e longinquamente indicativo. Dizer isso é talvez
orientar-se em direção a uma posição que, para permanecer coerente, colo-
caria logo em perigo a legitimidade da história hegeliana da filosofia. Sem
dúvida, seninguém, verdadeiramente,pode saltar por cima do seutempo,
a determinaçãodos "precursores", em seguida,poderia muito bem ser
apenas da alçada do mero "coquetismo"... Mas deixemos essadivagação
herética. O importante é que a avaliaçãoque Hegel faz do cartesianismo
sejapari;czzZarme/zre
própria para esboça-la. Por que isso?
É que a honra concedida a Descartes só podia ser extremamente pe-
rigosa no regime de pensamento hegeliano. O pensar é o princípio: essa
declaração é de valor inestimávelp.zra nós, cuja ciência mostra esseprin-
cípio em afãs, visto que ela é a dicção do saberque o pensar toma dele
mesmo. Porém, quando atribuímos essasentença a Descarnes, devemos
entenderentãopor pr;/zc'b;oum "mero princípio" (nzzrPrirzÍ+): assim
como /zzzrBegreÓfdesigna o conceito enquanto não se realizou, tal ima-
turidade ocultando, dessamaneira, o sentido mesmo de óegreeÉen, assim
também o "princípio", na acepção restritiva, designa o simples ponto de
partida desprovido de qualquer promessade autodesenvolvimento.
535
r
,4$Loso$ade Descarnes
não podeser,falando comrigor, eternamerLte
vil,a por
seu conteúdo, por aquilo quefa3.de uma $toso$a um dos "produtos científicos
da racionalidade". Com efeito, seuprincípio, ertquarttocomeçaa $1oso$a
moderna, não colocouainda sua atividade no repousode um conteúdoprin-
cipiam\ .À. Eis por que, acercado cartesiartismo, há pouco a ditar, jú que, no
d&cur=o,é o conteúdo que importa [...].83
83. B. Bourgeois, op. cit., pp. 353-54["é o conteúdo que importa") Hege], GPÀ,p. 335(u.E.)].
537
Segunda:Mesmo se concedêssemosque Hegel, ao tomar essaposi-
ção de superioridade em relação a Descartes, valoriza a dàránc/a na qual
se encontra do ilustre "iniciante", poderíamos, todavia, sustentar que
esseponto tem um interessemuito secundárioe que o essencialperma
nece a familiaridade entre o Cog;zo e o Saber aóso/tiro hegeliano, sua ana
morfose. Não é sobre essa base que devemos compreender a relação de
Hegel com Descartes?É o que Heidegger enuncia com força, particular
mente em O conde;zode ex7erzénc;a em bege/. Graças a Descartes, a falo
sofra instalou-se no país da "incondicional certeza de si do saber", sobre
85. Martin Heidegger, /7egeü Begrzêf der E[ÉaÁmng [0 conceito de experiência de Hegel]
in .f/o/{wege.Frankfurt am Main: V. Klostermann, s.d.; trad. francesa W. Brockmeier. Paria
Gallimard, lg6z, p. iio-
86.G. W Hegel, /PZ, Divisão Geral da Lógica,v. iv, p 64; trad. cit., v. i, p- 37-
87. "E preciso considerar como um mérito de Kant ter libertado a metafísica do espírito
como coisa, por conseguinte da alma, e, o que é o mesmo, de ter libertado o espírito da me-
tafísica e da representaçãoe de ter colocado no lugar o Eu" (G.W Hegel, En{., Tl i, Filosofia
do Espírito, S )22;trad. cit., p. ii2).
539
"objetos" oferecem ainda algum interesse, é apenas obliquamente, na
medida em que eles deram ocasião a um pensador de elaborar uma das
categorias das quais a Ciência é a dicção, e a história da filosofia a reme-
moração. Vale dizer que, da Ciência à Metafísica tornada, por sua razão,
objeto de estudo histórico, a distância é imensa. Hegel o diz com toda
clareza no início da Cíénc;ada Áígfca.Ao passo que a Metafísica espe-
cial, na sua ingenuidade, considerava "as formas-do-pensar puras como
aplicadas aos substratos particulares tomados na representação, a alma,
o mundo, Deus", a Lógica, por sua vez, considera essasformas como
"livres em relação a esses substratos". Esses substratos ("Deus" como
cog;ralam, o ego, a união da alma e do corpo-. ) não possuem mais seu lu-
gar num discurso como aquele da Ciência, que mereceria, tanto quanto
a Crítica kantiana, ser chamado de "metafísica da metafísica". A Ciência,
diz ainda Hegel, é "a erdade/racrú;ca" das formas com as quais opera-
vam os metafísicos. Herdade;ra,pois, diferentemente da Crítica kantiana,
ela está depurada de todo preconceito "finitista". Mas, no entanto, crú;ca
e num sentido que retém o essencialdo sentido kantiano:
54i
O transcendental e sua imagem
* Extraído de Eric Alliez (org.), G;#ei Z)e/cale. C/m.zl,;da.P/os(@fa.São Paulo: Editora 34,
zoom. Tradução: Paulo Neves
1. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Qu 'eaf-ce gaze /a/Ãz'/osop/lze?. Paras: Minuit, i99i, p. 8 l [ed.
liras.: O güeé a./í/oioWa?,trad. Bento Prado Jr. e A. A. Mufioz. São Paulo: Editora 34, i99z]
z. G. Deleuze, Z){f?Zre/zfe et rlPér;izan. Paria: PUF,ig68, pp. t78 e i76 [ed. bus.: Z)g rendae
repefzkâo. Rio de Janeiro: Graal, ig88].
543
alongara lista dessesenganos:o inventor da Crítica "traía-a no mo-
mento mesmo em que a concebia".'
Essafórmula nos dá uma primeira vista de olhos do que está em jogo
no debate. Se o conceito de "transcendental" permanece vacante depois de
Kant, é porque a Crítica não conseguiu cumprir sua tarefa de legitimação,
como prova a fragilidade da "fundação" que ela propõe. Fundar o conhe-
cimento a pnon, segundo ela, é administrar a prova de que o emprego das
categorias -- e somente ele Justifica a pretensão à "objetividade" inclusa
em nossos "juízos de experiência". Ora, como essaprova é operada?
'4 prova não mostra que o conceitodado daquele,por exemplo, do que acon-
tecemconduzdiretamentea um outro conceitoqode uma causal, pois talpas-
sagem seria um salto que não se poderia de maneira alguma jmti$car; mas
eLamostra que a própria experiência, por conseguinte o objeto da experiência,
seria impossívetsem tat ligação ~
3. G. De]euze,Nz'erscÁeer /apÀ;/osopÀ;e.
Paris; pur, ig6z, p. 59 [ed. bus.: ]Uz
ef scÀee a
//oioPa. Rio de Janeiro: Semeion, i976]. Aristóteles oferece outro exemplo de um desvio
preliminar devido à força da ilusão representativa. Embora designando à dialética suatarefa
efetiva, "a arte dos problemas e das questões", ele concebe mal "a realizaçãodessatarefa"
aceitando o balizamento dos predicáveis e dos "lugares"(Id., Z){8Zrenceel raPáfZr;oa,pp.
zo7-o8). Como não considera os problemas senão em função de sua possibilidade de so-
lução, ele faz a dialética (natimorta) confundir-se com "um jogo de proposições opostas'
Do mesmo modo, a idéia fecunda de uma crítica imanente da razão permanece inexplorada,
porque "faltava a Kant um método que permitisse julgar a razão por dentro, sem no entanto
contar-lhe o encargo de ser juiz dela mesma" (Id., ibid., p. to4).
4. Immanuel Kant, Cr;ligue de /a raísonFure, trad. Delamarre-Marty. Paria: Gallimard,
Pléiade,s.d., p. t.349; Ak. Ausg., in, p. 5io
Seja como for que se de$na a forma, trata-se cle um estranho procedimento
que consiste em eLevaímo-nos do condicionado à condição para conceber a
corLdição como simples possibilidade do cortclicionado. Eis que nos elevámos
CLum furLdcLmento; mas o fundado continua sendo o que era, independerLte da
aparas:ão gae o]unda, nâo aÚe/ado /or e/a[.. .] .'
5. G. Deleuze, ZoFzgzzedzzsem. Paras: Minuit, ig6g, p. 3o [ed. bus.: Z(Ígfca do xenr;da. Sãa
Paulo: Perspectiva, i974].
6. Cf. ÂÜ'erÍscÁe
er /apÁiZosopÁz
e, pp 4) 97>io4} io7; Z) f?2'vence
ezrcPárlrz
o/z>pp. z36-39,364-45.
545
r
construídos pelo genealogista é que as condições que eles formulam "não
sãomais amplasque o condicionado" e sãocapazesde "aderir" à expe-
riência real em vez de normatizar a pretensa "experiência possível". De-
vem essesconceitos ser chamados "transcendentais"? A diferença é tão
profunda com os Grzz/zdóegregà
kantianos que sucede a Deleuze renun-
ciar à palavra "transcendental": é o que ele faz quando opõe, no NzefÍscÃe,
aos princípios kantianos, "demasiado frouxos [...], simplescondições
para pretensos fatos", a Vontade de Potência, por ele apresentada como
exemplo de um pr;nc#io digno desse nome, já que é alheia ao baliza-
mento representativo (não é nem "una" nem "múltipla") e "inseparável"
de cada caso no qual se determina".' Que os princípios kantianos não
respondam a essessinais, Kant o diz expressamente, quando confessa a
discordância entre o Pr//zÍzpno sentido estrito (conhecimento sintético
por conceitos, de que /zoiio entendimento é incapaz) e o Grzz/zdxa/{,
que
sem dúvida é "princípio", na medida em que não depende de conheci-
mentos mais elevados, mas que todavia tem necessidadede uma prova,
isto é, de um controle de suavalidade "principial" pela apresentaçãodo
papel indispensável que ele desempenhana constituição da experiência
possível.' Ora, não é esseestatuto alheio a enunciados aos quais se dá,
mesmo /alo senizz,a dignidade de princípios? Em vista disso, Deleuze,
nessemomento, julga dever renunciar ao caráter "transcendental" que
inicialmente havia concedido à vontade de potência com a simples fina-
lidade de distingui-la de uma instância psicológica: "a verdade é que os
princípios em Nietzsche não são jamais transcendentais".'
Em que, exatamente, a Vontade de .Potência não pode ser dita
transcendental" no iene;doace;zo?É que ela se investe de determinada
figura de forças, "variável em cada caso". Ela não será concebida, por-
tanto, como uma condzkãodo exercício das forças, mas como um ele-
mento interno à força e que está no princípio da diferença de quan-
tidade das forças que se acham em relação, assim como da qualidade
que cabe a cada uma delas. Nada que ver, portanto, com uma instância
abstratamente "condicionante": "0 que a potência quer é [a/ relação
de forças, /a/ qualidade de forças".:' E, se a Vontade de Potência é dita,
ir . É ao longo de toda a primei ra Cn?z'caque Kant insiste sobre o alcance reduzido da fundação
transcendental, esboçando assim, mesmo antes do Apêndice, o tema cuja elaboração conduzirá
à Cnlzca doJuzto. Cf., entre outros textos, o vigésimo sexto parágrafo da Dedução Transcen-
dental (z: ed.), que sublinha que o entendimento puro não poderia fornecer leis senãoà natu-
reza em gera/ (»rma/crer ipefrafa), e não aos fenómenos enquanto são "empiricamente deter-
minados". As leis relativas aos objecos particulares "não podem ser completamente derivadas
das categorias, embora todas em seu conjunto estejam a elas submetidas" (l. Kant, Cnrzguede Za
raúoPzpzzre,
p' 879).É no mesmo movimento que semostra que possuímosde fato um conheci
mento apdan' performativa e quão exíguo é o campo operatório deste.
Í47
saúda seu "gênio filosófico" e Ihe dedica páginas particularmente esclarece-
doras quanto à sua própria atitude em relação a Kant. "Sou kantiano? Sou
antikantiano?", escreve MaTmon ao anal de seu ensaio de i79o, "isso cabe
ao leitor decidir". Deleuze teria desaprovadoessaslinhas? Também ele
não nutria hostilidade em relação a Kant; também ele sentia admiração pelo
envasamento", mesclada a uma imensaperplexidade diante do que "é cons-
truído em cima".t: Mas há mais do que uma similitude de reação. Lendo
Maímon com Deleuze, percebemos que a vontade de dissipar as penum-
bras da Crítica conduz a questionar de novo a noção de representação.
.4 con.sciência
é a verdadeiraratão Última, o fu'ldamento sobreo qual é contra-
ída a teoria da representação: a distinção e a relação da representação ao objeto
e ao sujeito co«.lacrados como üm fato quejulgo universalmente l,ácido, tal é
CLbme de meti sistema)~
i49
segurança. O que vale essadeterminação se forem dissolvidos, como
fez MaTmon, os pressupostos do "dado" e da "doação"?
i7. G. Deleuze, Ze P/i.. Z,eiónl er /e óarogue. Paras: Minuit, rg88, p. li8 [ed. bus.: .4 doara.
Zezón; e o ó'zrroco.Campinas: Papirus, i99l]. Cf. S. Maimon, op cit., pp. 49-5o.
i8.Id.,ibid.,p. li7
ig S. Malmon>op.cit., cap.i, pp. 5o-5r
zi. 1. Kant. "Carta a Marcus Herz", l8 de maio de t78g, trad. francesa J. Rivelaygue. Paras:
Gallimard, Pléiade, pp. 84o-41.
zz. Um distanciamento no qual o próprio Kant acabarápor seaventurar nos extraordinários
parágrafos76 e 77 da Crúzcadoluqo. Ver sobre esseponto a Apresentação do Eçiaí feita por
j.-B. Scherer: "A .4mez anderse{u/zg]discussão]de Maimon com a Clú;ca da raçãopzzranão
pode realmente formular-se senão nos termos da meditação que Kant inicia na CPúfcada
/uz?o.MaÍmon se antecipa, por assim dizer, ao pensamento de Kant, percebendo de saída e
com uma segurança admiráve] o próprio nó da.filosofia crítica [-.] o problema da mediação
do universale do particular" (S. MaTmon,op. cit., p. zo)-
como afirmam os kantianos, para passar mais facilmente por cima de suas
objeções.:'Ele pensaapenasque a racionalidadeprópria ao sintético a
pnan estálonge de ter sido determinada com suficiente cuidado na Clú;ca
e que sua validade objetiva não foi verdadeiramente legitimada. Em suma,
Hume não foi ainda reduzido ao silêncio.
Não é a nostalgia do "dogmatismo" pré-kantiano que anima MaTmon,
mas a preocupação de estar rigorosamente de acordo com a exigência
de legitimação.Rigorosamente,isto é, de modo que o princípio esteja
'situado exatamenteno nível" do que deve ser fundado, e que seproíba,
por conseguinte,o recursoa critérios exrr/meros como a comzrzzfão
em
matemática, ou ainda a referência a este elemento contingente que é a ex-
perzé/zc:;aros.úe/.
É o que sublinha Gueroult ao comentar um dos exem-
plos favoritos de MaTmon que Deleuze, por sua vez, analisará:z4
z3. Deleuze se insurge contra essa acusaçãofeita a Malmon: Ze P/í. .[eÍÓn; ef /eÓarogzze,
p. il8
Di$Zíence et répétition, p. ZAÇ)-
z4. Id., Z)#Frence er r(péfliian, p. zz6.
z5.M. Gueroult, op. cit., p. 39; S. MaTmon, op. cit., pp. 67 e 6g
z6.Id., op. cit.,p. 44.
553
verter": ele começava, talvez, a "perverter". Quando Deleuze ati'ibui à "filo-
sofia transcendental" ter descoberto "a produção genética do sentido",:' é o
kantismo remodelado nesseespírito que ele tem em vista ou remanejado,se
quiserem. Mas se trata de um "remajenamento fiindamental",:: nem que seja
porque nos livra das idéias antropológicas preconcebidas que parasitavam a
Clt2/cae, em particular, da dualidade, inaugural, do conceito e da intuição. De
fato, o que resta do "kantismo" que nos é familiar, uma vez que essagrande
divisão é reduzida a uma aparência, que seria devida ao estilo próprio de nossa
"ânitude"?:9 Esse "remanejamento" é suâciente, por certo, para tornar irre-
conhecível o espírito de uma obra acima de tudo preocupada em identiâcar
clivagens e traçar fronteiras. Entre a paixão kantiana da separação e a ambição
genética, a divergência é manifesta. É tão manifesta que Malmon nos obriga a
abordar de frente a questão seguinte, que a Clthca mais elude do que resolve:
Com efeito, como pode o entendimento submeter Qseu poder Çasum regr(nÕ o
que não está em seu poder Çosobjetos dadosÜ? Se seguimos o sistema de Kart,
segundoo qual seruibilidade e entendimentosão dum fontes inteiramente dis-
tintas de nosso cotthecimento, a questão, como jú mostrei, é imolúvet"
3z.Id.,ibid.
33. Percebe-seainda melhor ao mesmo tempo a audácia e o extremo rigor dessaleitura de
MaTmonpor Deleuze quando selê conjuntamente o belo estudo de Marcial Guéroult (Za
PÁ;/aiopÁie/ra/Pia/zdenra/ede Sa/omonAdaihon), ao qual Deleuze se refere com frequência e
que é conduzido, não é preciso dizer, dentro de outro espírito.
34. G. Deleuze, Z){#Zrenceef r(bé ;fio/z} p. 224
35.Id.,ibid., p. zz9
r
portanto incitar-nos a reexaminar essapedra angular do kantismo que é
a assimilação das condições das duas séries, isto é, o princípio supremo
dos juízos sintéticos: " nodo objeto é submetido às condiçõesnecessá-
rias da experiência possível".3' Tese seguramente central da Primeira
Crítica: graças a ela é legitimado o "fato" (contestado enquanto tal por
MaTmon)do "juízo de experiência" e nos é dada uma garantia contra
toda falha nesseencadeamentosistemático das percepções segundo re-
gras, que constitui a experzénclapossú'e/.
É-nos dada a certeza de que o
diverso com que lidamos só pode depender da unidade da apercepção, de
que a "objetividade" é talhada à medida de nosso saber. Não fosse assim,
de que modo a palavra mesma co/zÀec;mento
conservaria um sentido?''
Vale dizer que seria inútil pretender legitimar o conhecimento a
prior/ se não supuséssemos uma iemeZÃa/zfa mú;ma entre a natureza do
objeto e a disposição do conhecer.Eis por que Kant observa, na ana-
logia copernicanado segundoPrefácio, que o novo ajuste proposto (e
imitado de Copérnico) tem já a vantagem,desdeo início, de tornar
pelo menos concebível o conhecimento aprzorí:
se, ao contrário, o objeto pomo objeto dos serttidosÕse regula pela ttaturela
de nossafaculdade de intuição, então posso muito bem me representar a pos'
s;ó;/idade (de u,« conÁecl"2e':ro a priori) [.. .]."
Í57
Notemos que já não é de forma alguma o caso, em tal abordagem,
de censurar o "idealismo" ou o "intelectualismo" de Kant, mas apenas
de determinar o mais exaustivamente possível a opção que ele/á Ãavzd
cariado sobre a operação de fundação. Assim, de nada serviria colocas-
sena posição de conte.fiadorda argumentação ou da tesekantiana, pois
se trata apenasde mostrar o e/zcoZB;men
o a que Kant submeteualguns
conceitos-chavecujo sentidoele imporia por muito tempo. E, para esse
fim, mais vale chamar a atençãopara os microprocedimentos que Ihe
serviram para fazer da transcrição representativa do transcendental a
forma canónica deste.'2"Re-compreender" Kant, sob esseângulo, con-
sistirá primeiro em auscultarseu texto de modo a não deixar passarne-
nhuma das "evidências" que consagrafn a prioridade dada permanente-
mente, e sub-repticiamente, à exigência de semelhança.
Ora, é demasiado diHcil tirar do esconderijo todas as formas que
esseprimado sorrateiro da semelhançapode assumir.Pode-seter uma
idéia dessadificuldade seguindo Deleuze nos verdadeiros "exercícios
práticos" que -D{Êerenfa
e repef4âopropõe, retraçandoo declínio muito
lento do modelo da semelhançaem morfogênese e os golpes desferidos
contra este pela leitura diferencial, em termos de intensidade.'3
4z. Michel Foucault, em seu artigo "Theatrum philosophicum", sublinha o caráter literal-
mente nâo suó ersz'voda !eitura dos autores que é característica de Deleuze: "Subverter o
platonismo é toma-lo do alto (distância vertical da ironia) e recupera-lo em sua origem.
Perverter o platonismo é segui-lo até em seu extremo derajhe, [-.] é descobrir [...] o descen
tramento que ele operou para tornar a centrar-se em torno do lvlodelo, da Idéia e do Mesmo;
é descentrar-seem relação a ele para jogar (como em toda perversão) com assuperfícies ao
]ado. A ironia se eleva e subverte; o humor se deixa cair e perverte [...]" (M. Foucault, Z)zzs
ef ácrzzs.Paria: Gallimard, 1994,t. n, p. 78).
43. G. Deleuze, Z)ze#Zrence e rápéfz1laa,
pp. 3ig e ss.
44. Id., ibid., p. 3z3. Grifo nosso.
o que desaparece é aperta lado Tutor designável dos termos de uma reLcLÇãa,
559
a dijbrença não está mais entre o movimento e o repomo, mm na pura varia-
bilidade da velocidades'
56i
Contudo, deve-se realmente falar de preconcezro?
A palavra pode sugeria'
que o autor simplesmente careceu de vigilância crítica sobre esseou aquele
ponto e tomar assimcomo um "erro" pontual o que é o efeito da pertença
à representação, a qual é compreendida por Deleuze, quando descreve
sua formação, como um sistema cuja própria coeré/zc;a
destina ao fracasso
qualquer programa de fundação.Para nos convencermos disso,basta to-
mar, no labirinto da Representação,um dos caminhos que conduzem a
essa contrafação de "fundação" que é o "transcendental" kantiano.
Um dos traços dominantes da representação, como se sabe, é o total
desconhecimento do que seja o proa/emórzco: cego à diferença de natureza
entre o problemático e o proposicional, o "representativo" só pode conce-
ber o que ele chama "problema" a partir de sua resolubilidade, como se o
rema problemático não fosse mais que a sombra que a reis (proposicional) já
profeta, tese que em breve Ihe dará "resposta"- 5' Na crítica deleuziana, essa
jü ;ZiÍaf.2odoproa/em.ír;cooperada pela representaçãoé uma importante en-
cruzilhada onde têm origem três temas, que se achamassim em ressonância:
i) A heterogeneidade, repetimos, do problemático e do proposicional:
Quando um $1ósofo critica outro, é a partir de probtemw e num plano que não
eram os do outro e que falem fundir os antigos conceitos como sepode fundir um
ccLrlhãopctra dele obter nova arma. Não se estajcLrnab no mesmo plano?~
Í3.Id.,ibid
54. G. Deleuze e F. Guattari, Qü 'eir-ce gazeZapÀzZoiopÁ;e.P,
pp. 3z-33
55.G. Deleuze,.Zogígzze
dü seno.f,
p. 128.
i63
poderiam ser autenticados).s' Nessa pressuposiçãorecíproca do funda-
mento e do fundado remetidos sem fim um ao outro, não está manifesto
o bloqueio ao transcendental que a representação implica?
Não é esseo caráter mais gerar do fundamento, que essecírculo que eLeor-
ganiza seja também o círculo vicioso da prova, em que a representaçãodeve
provar ctquilo que a pro'pa, assim como ainda em Kart Q possibilidade da
experiência serve deprova à sua própria prova ?:
565
o caos. a desordem absoluta. Muitos se satisfazemcom essaposição. E, para
esses,é um pouco como se Bergson jamais tivessefeito se dissolver "a idéia
de desordem", ou ainda como se Nietzsche não tivesse acabado por exi-
gir, contra Schopenhauer, pensar a individuação separ'ndo-a do princípio
apolíneo que havia confiscado abusivamente seu sentido. O quê? Bergson
e Nietzsche transformados em intercessores do transcendental autêntico?
Sim, pelo menos na medida em que eles nos fazem suspeitar que o Ego e o
Eu não são de modo algum as figuras insuperáveis da zrzdfv/duafâo.
A antinomia e seuconteúdo
567
se esseselogios esporádicos não deveriam ser colocados no mesmo rol da
homenagem feita por Kant ao "ilustre Wolff". Como quer que seja, não
é pondo nos pratos da balança elogios e estocadas agressivas que se deci-
dirá, pelo sim ou pelo não, se Hegel deu de antemãoseu aval à interpreta-
ção "continuísta". Valerá mais a pena analisar um exemplo preciso e um
exemplo (a releitura das antinomias) que, à primeira vista, parece ser favo-
rável à representação de um Hegel que teria desejado inserir o kantismo na
sua árvore genealógica. Quanto a saber se isso não passade uma questão
de "pequena história" é o que o exercício mesmo nos ensinará.
Tomemos para começar, a título de prospecções, dois textos que,
emboradistinguindo um lado "bom" e um lado "mau" do kantismo,
indicam uma continuidade entre Crítica e filosofia especulativa.
O primeiro dessestextos é o breve histórico com o qual se abre a
Zcíglca.4Ele representa como umaperda e como uma vo/ a a rás o declí-
nio de fato da "antiga Metafísica", que tinha pelo menosa seu crédito
não considerar as formas-do-pensar como inaptas a apreender algo da
"natureza das coisas". "Mas o entendimento reflexionante se apossou
da filosofia", e seu triunfo (provavelmente o da .dze#:&ra/zg)marcou
"a renúncia da razão a si mesma"; "ela se limitou a conhecer apenas a
verdade subjetiva, a conhecer apenas o fenómeno, a conhecer apenas
aquilo a que não corresponde a natureza da própria Coisa". Essarefle-
xão, contudo, chegou, no mesmo movimento, "à intelecção do conflito
das determinações do entendimento" e, por isso, deu "zzmgrandepm.ço
/cega/ o" em direção à verdadeira concepçãoda razão. Por que "ne-
ga / o"? Porque essa intelecção não foi "levada a seu termo", e essa
reflexão não deu "o último passo que conduz ao ponto mais elevado'
Assim, a solução crítica das antinomias para trocar a coisa em miúdos
é apresentadacomo um revés, que teria ocorrido, se podemos nos
aproveitar da comparação, na última tacada, quando a vitória estava à
vista (em si e para nós). Que descuido foi esse,no último minuto?
[Esia ;nle/ecfão] caz' nesse egzzzboco, /zo goza/ a raÍâo meiga e/errar(í em con-
tradição comigo; eLanão reconhecequea contradição é precisamenteo ato
de elevar a ratão acima das Limitaçõesdo entendimento e o ato de solucionar
essa mesma Limitações5
J69
objetividade" (no sentido kantiano da palavra) não é ela mesma senão
algo de subjetivo, quando é determinada e é preciso fazê-lo relativa-
mente à z/zaóa/áve/partilha "subjetivo/objetivo". É por isso, igualmente,
que a Crítica pode muito bem seinterrogar sobre o terreno de "validade
objetiva" das categorias, mas sedispensade examinar o conteúdo delas
/zeZmmeimm epor eZmmeimm, isto é, sem levar em conta essapartilha e
todo o recenseamento prévio. Ora, é precisamente a (tímida) aparição do
examedo conrezídona Dialética Transcendental que permite ver nela algo
como um "segEZ/zdo
fada" da Crítica. De ondevem essamudançade pro-
cedimento? Ela provém de que agora se trata dos objetos da Metafísica e
de que Kant, no que concerne a eles, deve examinar ágil;Zogaze
e/e chama
de "aplicação das categorias ao incondicionado'
Mas, no exame da aplicação, comose di{ quea rabo faria categoria para o
conhecimentode sem objetos, o conteúdo das categoria ousa a ser dkcutido
=lomenos segundo algumas determinaçoeb ou ao menos haveria att UHCLoca-
sião graça à qual ele poderia passar a ser discutido?
ri. Id., J(n'r;# der reí ze/z%ér/zünf(Kr})[Crítica da razão pura], in canis Geiamaze/[e S(Ãrzglen,
v ui, p. 28); trad. francesaDelamarre e Marty, in OezzvreipÁ;ZoiopÀlguei,
v. i, p- l o7i
r2. Martia] Guerou]t, "Jugement de Hege] sur ]'Antithétique". Re zzede ]ldZtapÁWrigzze
ef de
j14ora/e, i93ilP. i49
S7i
que "com asantinomias Kant de modo algum descobriu a razãoconcreta'
e que, por conseguinte, "o julgamento de Hegel sobre a Antinomia da ra-
zãopura estáerrado, ponto por ponto"-'' Ora, seráque Hegel algumdia
acreditou descobrir na J/zl;fá ;ca as primícias de uma "razão concreta"? E
pode-se dizer que seu juízo aqui marca "o ponto culminante" de uma re-
interpretação irênica do kantismo, em direção à qual ele seinclina desde
i8o8? Se essefosse somente um ponto factual, poderia parecer inapro-
priado procurar argumentos especiososcontra o grande historiador que foi
Gueroult, mas gostaríamosde mostrar que esseaparente "ponto factual"
determina bastante profundamente nossa abordagem de Hegel.
No caso presente, um texto pode ser decisivo. É uma página do
Conceito Geral da Z(ig/ca," que é importante reler, pois Gueroult a in-
voca em apoio à sua análise.
Essapágina rende, antes de mais nada, uma reiterada homenagem
a Kant, por ter posto fim à assimilaçãoda "dialética" à "arte de exibir
embustese de produzir ilusões". E Hegel precisa, a esserespeito, o in-
teressedas apresentaçõesdas quatro contradições da cosmologia racio-
nal, por mais defeituosas que sejam:
Mas a ideia universal queelepâs nofundamento e à qual, por isso, deu valor,
é a objetividade da aparência e a necessidade cim contradições qüe pertencem
à naturezadm determinações-do-remar,e isso, é verdade, emprimeiro lugar,
rla medida em queessa determinações sãoaplicada pela ra=Íãoàs coisas-em-
si; masjmtamertte o que etu são na ra;tão e em relação àquilo que é em si,
üso á, &, a xua na ure a [...].'
i6. G. W Hegel, .Ebz{.,i! ed., trad. cit., p. i97. Sobre o conceito de ap/icafão em Kant, vide
G. Lehmann, .Beírrólgezir GeicÃzcAreünc//n e?relalíon der PÃ;ZoiopÀze
Kanrr. Berlim: Walter
de Gruyter, ig6g, em particular os estudos "Kritizismus und kritisches Motiv" e "Anwen
dung und Uebergang'
i7. 1. Kant, Pro/egamena {zz eírzer./edên Éü/@éen .44efap47=z'É(Pro/eg)[Prolegâmenos a toda
metafísica futura], in canis Gesamme/re ScÁn@en, v. n, p- 32g; trad. Rivelaygue, in Oezzl,rei
pÀÍZaiopÀ;gues,
v. n>p. io7
i8. Claude Piché, .Kanref iei gzkonei. Paras:Vrin, i995> p. 97.
ig. 1. Kant, Krrl p zo3; trad. cit., pp. 97i-7z.
573
T
É, portanto, essemodo de questionamento que Hegel põe em causa
quando rejeita a cláusula tópica do zzio.Por que dar prioridade à ques-
tão de saber em g ze err/ ór;o esseconceito puro é com certeza de ser-
ventia e pode ser utilizado semriscos? Ê somenteentão,diz Kant, que
serei propr;er'ír;o e não simplesmentepoiizz;dordesseconceito; mas fica
subtendido que, num caso e noutro, a minha relação com esseconceito
é ;mfrzzmena/. Na condição de usuário, estarei bem seguro de possuir
a técnica de uso que evitará para mim qualquer surpresadesagradável?
A "desconfiança" que aqui se manifesta é a mesmaque, para Hegel,
deve despertar a Verdade;radeicon@a/zfa./;Zoi(8ca aquela que tem por
objeto a preconcepção do ato de conhecer entendido como um rezo e
que detecta nessa representação a origem da irrestrita "desconfiança
quanto à confiabilidade do instrumento.Z'Procedendo dessamaneira, a
verdadeira desconfiança filosófica confere à representação"instrumen-
talista" um máximo poder de bloqueio, pois estaimpede até mesmo que
se vislumbre outro modo possível de investigação das determinações
do pensamento, além daquele que consiste em responder à exigência de
um usuário-do-conhecimento"escaldado" e, desde então, prioritaria-
mente preocupado com segzzranfa.Recorrer sistematicamente ao ope'
rador da apZlcafâoe, de maneira mais geral, à tópica do mo é aquilo que
nos distancia ao máximo de uma simples investigação sobre o sentido
das categorias deixadas em seu livre jogo. E esseprocedimento mostra,
por si só, quanto a Crítica opera na esteira da "consciência ordinária
575
solução posso ser direcionado, se estou convencido, como Kant, de que
não há faculdade cujo exercício possaser inteiramente patológico e de
que semprese pode determinar um bom e um mau uso dos.conceitos
puros? A única chave do enigma levantado pelas antinomias só poderá
consistir num e/zga/zoque levou o usuário a armar dessesconceitos e
a aplica-los desastrosamente.Cabe à Crítica indicar o engano e des-
montar o mecanismodo mal-entendido.Eis o único caminho possível
para quem só pensa em termos de arí/zi.afãs,para quem, portanto, já
está certo de que a aparência suspeita, ocasionada pelas antinomias, não
é, sÚagoza/#oro cm-o,devido à nalzzreÍados conceitos puros, que per-
maneceacima de qualquer suspeita.Por certo, o que Hegel contesta
é essepressuposto,comum à Crítica e a seu leitor ainda "dogmático",
que já de início torna qualquer consideração supérflua, em virtude do
mero conteúdo dos conceitospuros. Que "todos os vícios de sub-rep-
ção sempre devam ser atribuídos a uma falha de julgamento, jamais ao
entendimento ou a razão",z' estaé uma daquelas frases de Kant que
mostra melhor quanto seria úzzífz/uma investigação "lógica" no sentido
de Hegel. Em compensação,somente quando nos livrámos da tópica
do mo é que nos podemos perguntar se engendrar contradições não faz
parte da natureza de conceitos de certo tipo. Isso equivale a dizer que
Hegel examina)ustamenteo mesmoconflito que Kant. Masessemelão
conflito é recolocado numa configuração tal que não pede o mesmo
modo de solução. Ninguém, ao que saibamos, realçou mais fortemente
essadivergência dep/úzczp;oque Bernard Bourgeois, especialmenteem
sua "Apresentação" à -Elzczc/opád/a.Hegel concede de bom grado que
o kantismo estabeleceu a incapacidade de as determinações do enten-
dimento "se apoderarem do verdadeiro". Mas essaconstatação, para
Kant, não pode ser senãouma afirmação de no.çi.zfinitude, uma vez
que a finidade das categoriasnão Ihe aparececomo inscrita na natureza
mesma delas. Aliás, como essaúltima tese faria sentido para ele? O seu
modo mesmo de questionar Ihe vedava essa ".EbK/cÃf'
cer não possui outra forram de pemamento que m categori Fritas. .4 esses
dois respeitos, essasantinomia merecem umcl crítica que eLucidarâ melhor
577
ossem pontos de vista e o seu método, tendo em vista que eLa Liberará o traço
capital em questãoda forma inútil rla quaLfoi comtrangido a entrai.'
Ora, que resta de uma antinomia kantiana depois que tenham sido "li-
berados", das provas da tese e, em seguida, das da antítese, "toda su-
pernuidade inútil e toda bizarrice"? Asseguremo-nos, depari;da, de
que dela já não restará pedra sobre pedra. Que esper;nça pode haver,
a partir de então, de apreender o "conteúdo da antinomia"? A questão
permanece sem solução. Mas será talvez analisando de perto a defecti-
bilidade da exposição kantiana que se terá oportunidade de determinar
'zgzzelm amenle e/a#a{/a oó tufão. Detenhamo-nos, pois, na crítica que
a Lógica avança das provas da segunda Antinomia.
Tomemos o partidário da [eie ("Toda substânciacompostaé feita
de partes simples") e sigamos sua demonstração por absurdo.:* Aquele
que sustenta que as substâncias compostas não são constituídas de partes
simples, mas que são iomenre co/npoi m, deve convir que a supressão em
pensamento de toda composição não Ihe deixaria mais nada para pensar
-- nem o composto, nem o simples (que se acha excluído ex szzppos;r;o,ze).
Para se safar dali, resta-lhe escolher um dos termos da alternativa se-
guinte: ozzdeclarar "impossível suprimir em pens;mento toda composi-
ção", ozzconcordar que existe alguma coisa (o simples) aquém do com-
posto -- e ele reconhecerá sua derrota... Ora, a primeira via está fechada
para ele -- e é portanto nesseponto, nota Hegel, que tudo se decide. Qual
é o argumento? Tendo em vista, prossegue a "prova", que a composição
é uma relaçãoco/zr;ngenre
entre as substâncias,a impossibilidade (que
estásendo invocada) de suprimir a composição já implica que /zão«2aü se
poderralar ./e 'Szzósf'ínc;m".Ora, como o que se queria era decidir sobre
a constituição das "substânciascompostas", a questãoé evidente ea
primeira via, impraticável. Quem não vê, observa Hegel, que o finitista
arranjou tudo de modo a fazer deslizar num parêntese,e como se se tra-
tasse de uma "coisa acessória", o essencial da própria tese? Se somente
merece o nome de iaóa á/zc;aalguma coisa tal que a composição Ihe seja
exterior e contingente, é que não há "substâncias"... a não ser simples
É fácil descobrir a petição de princípio. A prova, na realidade, consiste
em recusar,de início, que haja alguma coisa que seja substancial e contí
Í79
da coisa-em-si -- e cada uma dessas sub-repções atesta a não-disso-
ciação, característica do dogmatismo, de "fenómeno" e "coisa-em-si",
que é a mo/a d an /rzom;m.n Rebaixar cada prova a uma argúcia que
camuíla uma petição de princípio é, sem dúvida, anular a análise do
"dogmatismo", que Kant, na condição de "redator" das provas, tinha
tido o cuidado de fazer aflorar.3:E mostrar quão derrisórias são essas
argúcias é, sem dúvida, fazer vir abaixo a antinomia tal qual havia sido
construída por Kant. Masdeve-seconcluir daí, com Gueroult, que He-
gel teria decididamente tomado liberdades inadmissíveis com o texto
de Kant? É que Gueroult permanece fiel a sua hipótese de trabalho, se-
gundo a qual Hegel ter-se-ia obstinado em "constituir", mesmo que de
maneira insolente, um "kantismo hegelianizado". E se não fosse nada
disso?;; Parece antes que Hegel, leitor meticuloso da Antitética, teria
recusadoa demonstrar qualquer interessepor uma tal representação
do conflito e que, censurando-o de futilizar a .fzzó-refrão,constitutiva,
segundo Kant, da Antinomia, repreendemo-lo simplesmente por não
[er levado a sério o esboço kantiano. Algo a que Hegel não se furta.
Que não haja nada a poupar na Antitética, Hegel o mostra, aliás, com
estrépito, no desdém mesmo com que arrasa asprovas, se se lembra da
extrema importância tática que lhes era dada por Kant.;' Não é por nada
que Kant "se empenha em responder" pela validade das oito provas ;5 Essa
3i. A análise mais precisa desse mecanismo se encontra, sem dúvida, no fim da 7: Seção da Anti-
nomia, quando se desmonta "o embustedialético, chamado aopÁümajgurae dzrlzoniç",que ocorre
na interpretação do silogismo matricial da cosmologia. Krl', p. 344; trad. cit., i, pp- i-i44'45
3z. O cuidado que Kant dedica ao "redigir" corretamente asoito provas e a defender a reti
dão delas torna por vezes delicada a separação entre essa "vedação" e a análise que sustenta
a se/zzfãocrz ;ca. Daí o cuidado que ele toma, por exemplo, em assinalar expressamente ao
leitor a diferença entre a resposta crítica à questão sobre a finitude/inflnitude do mundo,
quanto ao tempo e ao espaço,e a prova (dogmática) da antítese, que pretendia estabelecera
ln#nímderea/do mundo. Krr! p. 356;trad. cit., i, p. i.í59, nota.
33. É digno de nota que o artigo de Gueroult contribui bastantepara colocar essaquestão na
espírito do leitor. Suasanálises põem à luz, de maneira tão convincente, o disparateque há
entre o dispositivo antinâmico e a releitura hegeliana, que elas acabampor lançar suspeição
sobre a hipótese de trabalho de que ele partiu. Acabamos por flm nos perguntando seé pos-
sível que Hegel tenha seobstinado em "hegelianizar" Kant, forçando a esseponto o sentido
dos textos.- -- O artigo de Gueroult é de extrema riqueza, e não é por conveniência que o
chamamos de "altamente estimulante:
34. O comentário de Pierre Garniron, na suabela edição dasZefom i zr /'%ü o;rede /apÁl;o-
sopÁfe.
Paras:Vrin, i979, v. vii, pp- i.gzo'z5, traz um preciosoesclarecimentoà leitura que
Hegel faz do texto kantiano.
35.1. Kant, Pro/eg.,S 5zb,p. 34i, nota;trad. cit., p. izz-
7ê-se por aí que as prova dadas acima du quatro antinomias nào eram embus
tes, mais iam ao fundo da coisa, sob a pressuposição de que osfenâmenos e üm
mundo temível que compreende a todos eles em si mesmo eram coisa-em-si."
Oía, u prova que Kart aduz.parte suu teses e antíteses devem na realidade
fer co«..;;deram«,
comosímpZeiprov" apare,êles(Scheinbeweise), I'úro gue
aquilo que deve serprovadojá está sempre contido nm pressuposições de que
separte, e que é somentepelo procedimento apagógico, cheio de redundância,
que se produ X.a apaTêncict de umcl mediação?'
i8i
cada uma das proposições opostas; por outro, convencido de que não po-
dia tratar-se de uma contradição autêntica, ele estava disposto a buscar a
má interpretação que devia ter engendrado aquela aparência. É preciso
supor, diz Kant, que é "absolutamente impossível" pâr um termo ao con-
flito "seguindo a via dogmática habitual".;9 Assim, o terreno estavapre-
parado para uma conversão metodológica: em vez de escrutar as respostas
cosmológicas ("o mundo finito", "o mundo infinito"), "examinar a pró-
pria questão (cosmológica) e ver se ela não estaria assentadanuma pres-
suposiçãodesprovida de fundamento".40Não seargumentaraa propósito
de um "conceito impossível"?De um "círculo quadrado", é tão falso di-
zer "ele é quadrado", quanto "ele é redondo". Em cosmologiaracional
falta, pois, encontrar o "conceito impossível", a admissãoirrefletida do
qual teria feito surgir uma oposição que, desde então, passariafalsamente
por "analítica".'i Se conviermos que "o conjunto dos$enóme/zox existen-
tes como coça-em-i;" é similar a "cúczz/ogzzadrado",
bastaráfazer valer
a regra non enzZsnzzüzi znfpraedícara para erradicar a pseudo-oposição
contraditória.4z A esse preço a "contradição desaparece".43
Os protagonistas dogmáticos e seu público haviam, portanto, sido
enganados por "provas aparentes". E, se não podiam suspeitar disso, foi
em razão do crédito que davam a essasprovas opostas, mai apagogzcm.
Admitamos que essasprovas estavam isentasde paralogismos. Admita-
mos também que não se contentavam em pâr em relevo os erros cometidos
pelo adversário.Mas isso seria suficiente para torna-las confiáveis? Kant
tacitamente fez com que se acreditassenisso no decorrer da exposição
dasquatro antinomias, tirando assimpartido da candura dos dogmáticos,
cada um dos quais, pensandoque para triunfar Ihe bastava estabele-
cer o absurdo da tese adversa, monta para si mesmo a armadilha que o
prendera. Kant (na condição de escriba) respondia pela correfâode cada
demonstração. Da sua correção, mas não da suaperrirzén(/a,como ele vai
se explicar na seqüência:"A prova apagógicaé a verdadeira ilusão que
sempre enganou aquelesque admiram a solidez de nossos raciocinado-
res dogmáticos [...]".« Capaz de zrzdicaruma verdade (pela falsidade da
45. Que o metafísico não pense em dar o que é devido às "condições subjetivas" é o tema
diretor dos axiomassub-reptícios na Z)isierlafâo de t77o. Sobre a antiguidade dessafigura
de "qüiproquó" no pensamentokantiano, cf. a Reflexão Sois. ]n: F.-X. Chenet, ]Maamcnf
Je Z)zzúóozzrgef cÀoü de r477ex/am. Paras: Vrin, ig88, p. l 54-
46. 1. Kant, XrF', p. 5t5;trad. cit., 1, p. i.356. Cf. íd., -Logo'É,
in Kanrs Gesamme/re
ScÁn$en,
v- ix) p- 7l; trad. francesa Guillermit. Paras, Vrin: i97o, p. 8o
47 Sobre essamodificação do sentido de apag(ígico,cf. P.-J. Labarriêre e G. Jarczyk, Zogí-
gzze,
nota a 1,p. i76. Cf. P. Garniron, op cit., p. i.gz7.
i83
para a "pedagogia" crítica senãoporque estatinha necessidadede pro-
vas em suas formas habituais.
Donde provém entãoa fraquezada argumentação?Na Antitética,
ela provém da maneira laxista de demonstrar, que é do agrado dos dogmá-
ticos e que Kant desempenhacom brio: produzindo provas por absurdo,
ele pasticha o método dogmático, e com bastante habilidade (é ao menos
o que se crê), para que os metafísicos,nada e/zco/errando
a onerar, sejam
finalmente obrigados a reconhecer que, na cosmologia tal qual praticam,
é perfeitamente possível provar quatro proposições e seus contrários.
Para Hegel, o .ScÀez/zÓeweís
provém mais simplesmentedo fato que se
tem a audácia de apresentar como "prova" uma mal disfarçada petição
de princípio. E essediagnóstico, confessemo-lo, serve muito bem para
desconcertar o leitor que enlrozznojogo da Antitética kantiana. Esta é
construída de maneira tal, que o metafísico não possa por fim se esquivar
à seguinte escolha: ozzo entrechoque sem fim das refutações recíprocas
semprebem-sucedidas,ou a certezaaliviante, trazida pela Crítica, de
que aqui não cabe a pretensãode apresentarprovas. Se nos deixamos
levar por essaaposta,as críticas de Hegel aparecerão,à primeira vista,
o?0'rÃepo//zr. Parece estranho que se pretenda julgar o valor da Antité-
tica somente pela fatura das provas que, a despeito da importância tática
delas, são, mesmo assim, intrinsecamente falaciosas. Contudo, é mesmo
pelo prazer de denegrir Kant que Hegel se deixa levar por esseexame
fútil? O que somente Ihe importa é que as provas arreia/liam, {odw, zzma
pez4ão depr/rzc@;omal dissimulada. Ora, trata-se simplesmente de uma
habilidade? Sem dúvida, e bem grave se o que está em questão é, como
quer Kant, enviar aos dogmáticos o mais espetacularultimato. Mas, caso
se queira se livrar da "intriga", tal qual Kant a montou, essa petição de
princípio inscrita nas provas poderá ser interpretada de zzmama/ze/r'zz/z-
e/ramenzeozzzra.Para compreendê-lo, basta seguir os passos hegelianos.
Kant havia, portanto, escolhido o melhor terreno de ataque pos-
sível, zzmave{ consz/fzzZ2Zo
o ;de.z/z
imo rr'zaicendemra/:
o lugar em que a
determinação do incondicionado toma a forma de uma determinação
da rora#dadedos$enómenoi.Ele selecionou na tábua das categorias, se-
gundo o critério da seriação,quatro itens próprios para constituir as
Idéias cosmológicas. Depois ele se desdobrou para forjar quatro pares
de proposições aparentemente contraditórias e legitimamente refutadas
umas pelas outras. Estava estabelecida a Antinomia. É deplorável, para
o desenrolar dessaintriga, que as refutações não tenham sombra sequer
585
também separar as significações em jogo (aqui "limitado/ilimitado")
dos suportes representativos (mundo, tempo, espaço) nos quais se en-
contram inseridas. E então poderíamos nos perguntar se cada parte não
teria ;moó/#i:.zdoo momentode um conceito antes que essemomento
passasse(necessariamente) para o seu oposto. Um ie de er/a no "limi-
tado", dado que se crê já tê-lo fixado "de uma vez por todas"; o outro
se deter;a no "ilimitado" ele também dzi. o /ím;ze, embora sob a condi-
ção de que o sentido deste é ultrapassar-se rumo a seu outro.
Em suma, cada partido não tem posição a formular numa Safa a
não ser porque ele se atam (sem saber) a um aspecto da alternância.
E a petição de princípio é, antes de mais nada, a notificação de que é
esse"recorte" que ele, de sua parte, privilegia. "As antinomias kantia-
nas, consideradas mais de perto, não compreendem nada mais que a
afirmação realmente simples de cada um dos momentos opostos na an-
tinomia."'9 0 mero fato de afirmar que minha "pausa-nesta-imagem",
no percurso do espectro da significação em Jogo, é a única digna de
interesse é o que me faz ganhar momentaneamente vantagem sobre um
antagonista que poderá, em pouco tempo, me dar o troco. Eis por que,
nessejogo, é sempreo atacanteque vence. Eis, igualmente, por que o
marca pode durar indefinidamente.
49. Id., ibid., v. iv, pp. z86-87; trad. cit., pp. zz8-zg.
5o.id., ibid., pp. z88-8g; trad. cit., p. z3i
Karts traí à Lu{ quatro contradições: é pouco, po' toda parte há antinomias.
Em todo conceito, éfáciLfaleí l,er uma contradição; pois o conceito é concreto,
não }tá determinação simples ELe contém, pois, determinações distinta, e
estro são, no mesmo impante, opostas; são essa contradições que Kartt cha-
mava de antinomias. Isso é importante, mm vai contra a intenção de Kart '
Devir, ser-aí etc. e qualquer outro conceito poderiam , por comeguinte, forne-
cer, cada üm deles, sua antinomia particular, e poder-se-iam , portanto, esta
belecer tantas antinomia quantos são os conceitos estabelecidos. O ceticbmo
antigo não poupou esforços para mostrar essa contradição oü, ainda, a anta
52
comia em todos os conceitos que encontrava nas CLênctm.
5i . Id., Hor/esfinge,z üóer díe GeicÁzcÁre der PA;/oiopÀie (GPÁ) [Preleções sobre história da
filosofia], in }Herle. FrankfurE am Main: Suhrkamp, í97o, v xx, p' 356; trad. cit., p. i'87z
52.id., ibid., v. iv, P. zz7; trad. cit., p. i74.
587
Y
Não havia, pois, contradição real alguma da ra {ão consigo mesma. \..l\
Não há, portanto, propriamente polémica atgttma no campo da ratão pura?*
589
'v'
59i
'v'
593
'v
6g.G.W Hegel, /PZ, v. iv, p 228;trad. cit., i, p. i74. Cf. GPÃ,p 359;trad. cit., vu, p. i.874.
7o.Id., ibid., p. z38;trad. cit., p. i83. Grifos nossos.
Sei quanta diferença há entre escrever uma palavra ao acaso, semfalei a res
peito uma repelão mais Longae mais externa, e percebernessclpalavrcl uma
sér;eadmzr(íve/de co egüé/zczm[...].
i95
com Alain Renaut, que Hegel encontra no criticismo "um pensamento
da cisão, ali onde a Crú;ca da ra ãopzzratinha todavia os meios de cons-
truir um pensamentoda reconciliação" ou, para continuar ainda com
ele, que a Crítica, aos olhos de Hegel, eleva-se, é certo, por intermitên-
ciasao "ponto de vista especulativo", maspara "tornar a cair bem de-
pressa dele".73 tornar a ca;r é a palavra exata. É assim que Kant alcança
a justa concepção da "objetividade", maspara [o'nar a (air no ramerrão
do "idealismo subjetivo"." A imagem dominante de Kant é aquela de
um pensamento em constante recaía e que não cessa de ceder aos seus
demónios: trivialidade da .4z{/l/ãrzz/zg,
primado outorgado à intuição
sensível e ao dado, cumplicidade profunda com Hume." Caso se queira
absolutamentetraduzir a reaçãode Hegel a Kant em termos de movi-
mento de humor, não seria, portanto, o casode falar de malevolência,
mas de perplexidade diante de um malogro flagrante. Pensemosnesta
expressão)á pronta, e ]á envelhecida,que por ve:'s servia aoscríticos
literários para dar às suascríticas "demolidoras" uma aparência de ur-
banidade: "o autor perdeu um bom tema
Com isso, porém, não sevolta sub-repticiamenteà cómoda lenda
do "dogmatismo hegeliano"? Certamente não, se levamos em conside-
ração a arie de /er própria a Hegel. O que quisemos destacar, na análise
das antinomias, é que, sob a condição de se ter em linha de conta a
altura do sobrevoo ou o ângulo de visão escolhido por Hegel, nada
seencontra nessaleitura que não tenha o suporte de um texto de Kant.
Essa "crítica" de Kant é, sobretudo, uma.P/aragemque nada tem que ver
com uma distribuição dos bons e maus momentos em função de uma
Verdade maciçamente estabelecida.Não é usando pesadascertezasdou-
trinais que Hegel desvelaa parcialidadedas opçõeskantianas.E antes
o mapeamento dessasopções que faz sobressair o valor e a riqueza da
tópica hegeliana. Pense-seapenasno partido que Hegel tira do fato de
Kant ter restringido sua investigação ao uso das categorias, negligen
dando assimo exameda suanatureza e deixando à Z(@/cao cuidado
de ser a "verdadeira crítica" das formas do pensar ("verdadeira", por
que liberada das pressuposiçõesexternas à própria coisa) " Se a com
73. A. Renaut, Pr(ÍÉace /a Critique de la raison pure. Paria: Aubier, i997, PP' 38-39.
74. G.W. Hegel, E/z{., Conceito Preliminar. S 4í. Adendo z.
75- Sobre a relação de Kant com Hume ao olhar de Hegel, consulte-se o belo estudo de B
Mabille, "La figure de Hume chez Hegel" (CaÁzersPÁI/alara;suei, n? 6i, dez. i994)
76. G.W. Hegel, mZ, Divisão Geral,v. iv, p- 65; trad. cit., i, p. 37-
597
Sobre o autor
i99
LIVROS
Agostinho, santo zl4) z97) 3lz> 533 Bacon, Francês 484, 489
Annas, Juba 4oo Bergson, Henri zz, 4o> 4z9, 543, 566
6oi
Brõcker, Walter z8i, z93 Demócrito 454
Brunschvicg, Léon 12g, l3z-33) i57'58, Derrida, Jacques438
40194109527 Desanti, Jean i4z-43
Brykman, G. 4o4, 4l3 Descartes, René 27-28, 3i 33, 38-39, 4í
Burman, Frans 433 43-44>499 6z-63, i3i-3z> i38, l51, i57)
Burnham, James l94 l64, i8o, i83-84,z53-55}z58,26l-62,
Z97-30093059307, 30993i6, 34Z, 379,
Cálicles 95-g6, i75 38i, 39í, 397-9994oi) 4o5) 4lq 424}
Canguilhem, Georges i36-37, 493 43i, 433-39,44i-4z, 5o9-l6, 5l8-i9,
Carcavi, Pierre de z8 5zl-39) 54i9 557) 56z
Freud, Sigmund zo, z4 z34} z49) z73-95> 3z8, 33t-34) 336 37,
Füchs, Kart 367 347-48, 36t, 368, 384-86, 4o6, 433, 44i>
5o9-4i) 56z, 567-8i, 583-85, 587-88,
Galbraith, John Kenneth í4 59o,59z,594-96
Galileu Galilei, dito i37 Heidegger,Martin g, z4, iz3) l 84-85,
Garniron, Pierre 27395lq 5i2, 5l5, 58o, 352}363, 365,378,538
583 Henry, Michel 84
Garve, Christian 58i, 585, 588, 59z Fieraclito ilo, ll7-20) i2z, 125-z7}
z78-
Gassendi, Pierre 434) 5t3 8o
6o3
226, 25o,z54-56, 26o, 26), z69-7o) 272: Mabille, B. 596
z8z, 3l8-i9, 3z8-z9) 33% 351) 37o-7% Macherey) Pierre 283
537, 539, 543-49, 55i-58, 56o-61, 563 Malebranche, Nicolas de 3o, 3% i57-58,
64, 567-77,58o-84, 586-9o, 59z-97 3l5944z
Kautsky,Karl i74 Malherbe, Michel 4n, 4z4
6o5
Sólon 3ó8 Veyne, Paul 35z
Spenceb Herbert i7z Vidal-Naquet, Pierre io6
Stalin, losif Vissarionovitch Vieillard-Baron,Jean-Louis i88
Djugatchvili, duro i77 Visconti, Luchino 385
Stendhal (Henry Beyle) 385, 395 Voelke,A.-J. 39z
Stirner, Max 68-6g, 74, 8z, 85-87, 122 l9i Voltaire, François Made Arouet, dz/o 53
Strauss, Le0 226, z37-399 24% 248 55,59, i64, 366
Swift, Jonathan 53 Vuillemin, J. 124, 281
rSeção; BC
iÉb7ÊÊtéÜÜiÊ \:]
Tombo: 277751
Aquisição; Compra / RUSP
Proa. /EDUSP
Edição
MARRA KAWANO
Preparação
EUGÊNIOVINCI DE MORAES
Revisão
CARLA MELLO MOREIRA
Prometográfico da coleção
RAUL LOUREIRO
Capa
LUCIANAFACCHIN
Composição
JUSSARA FINO
Ilustração da capa
CARLOS ZILIO
Foto do autor
1986, FOTO JOAO PIREX / AE
A editoraagradecea DanielleLebrun
Bibliografia
ISBN 85-7503-50&5
06-3102 CDD-109
COSACNAIFY
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