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Os textos reunidos emPsicanálise das certezas que lhe dá o

e Hospital- A criança e sua dor revestimento fálico do corpo. sadio.


são obra, em sua maioria, de Afinal, que função tem a dor para a
autoras já conhecidas do público­ psicanálise? Nesta obra, a dor é o
leitor através do livro Psicanálise e real que coloca a criança frente a
Hospital editado também pela sua tarefa de se inscrever na
Revinter. Os trabalhos ora linguagem à custa de seu próprio
apresentados têm como tema desejo, de entrar na estrutura a
central a criança, mais partir de uma escolha que ela terá
especificamente a criança em que fazer para se constituir como
situações de crises vividas num sujeito. Um sujeito cuja diferença é
hospital geral, campo de atuação marcada pelo desejo, pela falta que,
destas autoras psicanalistas que embora motivo de dor, é também o
apresentam a elaboração teórica de que nos impulsiona para as buscas
sua práxis orientada por conceitos que nos levarão "da dor de existir
freudianos e lacanianos e pela ética ao prazer de viver".
da psicanálise. Estas e outras questões são
É difícil não associar hospital com abordadas pelas autoras com
doença e dor. Mas quando se trata profundo respeito ao sujeito do
da dor de uma criança, o que pode inconsciente, à importância que
ela nos dizer? Qual o enigma tem a palavra dos pacientes e a
contido na dor de uma criança experi�ncia dos pais, na situação de
internada? Seria a sua dor a urgência hospitalar. Psicanálise e
expressão máxima da verdade do Hospital- A criança e sua dor,
sujeito que está por advir? mais que escrita de uma
É seguindo esse rastro deixado pela experiência acumulada, é uma
dor da criança interna/internada que articulação bem fundamentada
vamos encontrar, nesta obra, textos teoricamente, que muita
onde as autoras tratam de pontos contribuição traz sobre os
que fizeram questões ao longo processos psíquicos por que passa
desses anos de prática hospitalar, uma criança, desde a sua condição
tais como o sentimento de culpa de infans até o seu despertar como
dos pais diante de sua criança presa sujeito desejante, e como dissemos,
ao leito de uma UTI; a irrupção do numa situação muito especial - a
real como contingência da vida do de internação em um hospital geral.
ser falante; o luto na criança como
fator estruturante de sua Berenicy Raelmy Silva
subjetividade; o (in)esperado
encontro com a falha/falta nos pais
e nas próprias crianças, desalojadas
de sua "majestade de bebês" pela
própria doença; a importância do
olhar quando dirigido a um
paciente hospitalizado e desprovido
I

PSICANALISE E HOSPITAL
A criança e sua dor

Organizadora
Marisa Decat de Moura
Psicóloga
Psicanalista
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
Coordenadora da Clínica de Psicologia e Psicanálise
do Hospital Mater Dei
Belo Horizonte - MG

T@íbhoteta jf reullíana

REVINTER
Psicanálise e Hospital- A Criança e Sua Dor

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Autores

ClÁUDIA PEDROSA SOARES


Psicóloga
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei
- Belo Horizonte - MG

EIAINE MARIA DO CARMO DIAS DE SOUZA


Psicóloga
Psicanalista
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei
- Belo Horizonte - MG

GilDA VAZ RODRIGUES


Psicanalista
Belo Horizonte-MG

JACQUELINE ESTEVES PENA KELLES


Psicóloga
Membro do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais - CPMG
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Ma ter Dei
- Belo Horizonte - MG

JOSEANE APARECIDA DE SOUSA BRANT


Psicóloga
Psicanalista
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Ma ter Dei
- Belo Horizonte - MG
LÉA NEVES MOHALLEM
Psicóloga
Psicanalista
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei
- Belo Horizonte - MG

LISLEY CRISTINA SILVA DE OLIVEIRA


Psicóloga
Psicanalista
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Ma ter Dei
- Belo Horizonte - MG

MARIA DE LOURDES GUIMARÃ ES DE ALMEIDA BARROS


Psicóloga
Psicanalista
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei
- Belo Horizonte - MG

MARIA DOLORES LUSTOSA CABRAL


Psicóloga
Psicanalista
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG

MARIA LUISA DUARTE VILELA


Psicanalista
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG

MARISA D ECAT DE MOURA


Psicóloga
Psicanalista
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
Coordenadora da Equipe da Clínica de Psicologia e Psicanálise do
H ospital Mater Dei - Belo H orizonte - MG

PAULA VAZ RODRIGUES


Psicóloga
Psicanalista
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei
- Belo Horizonte - MG
ROSILU DE FERREIRA BARBOSA
Médica Pediatra
lntensivista Neonatologista
Subchefe da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - UTIP -
Hospital Mater Dei - Belo Horizonte - M G

SANDRA SEARA KRUEL


Psicanalista
Mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de Paris V
Psicóloga da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais -
Fhemig
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG

STEI.A CARDOSO DE CARVALHO


Psicóloga
Psicanalista
Membro do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais - CPMG
Membro da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Ma ter Dei
- Belo Horizonte - MG

WANDA AVEUNO
Psicanalista
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
Ao Dr.José Orleans da Costa e equipe da
Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica - UTIP
pelo pioneirismo de suas idéias
que nos convocaram a uma
prática exigente e inovadorfl
I ntrodução

Considerar a criança inocente e incapaz é um dito d o adulto?


Sabemos que escutar o que a criança tem a dizer é importante.
Por quê?
É permitir-lhe pensar, dizer sua verdade, inventar e dar sentido à
sua história.
Mas como?
Se a criança encontra o silêncio das pessoas que a cercam, ela se
calará.
Se, pelo contrário, encontra pessoas que conseguem ouvi-la, ela
com certeza falará.
Sobre o quê?
Sua mensagem é sempre singular. Poderá falar de suas fantasias, de
seus medos...
Falar é preventivo.
Previne de quê?
De outras formas de falar
Como o "estar doente", por exemplo.
Do dito paralisante do adulto
Sobre a inocência da criança
Precisamos ir além ...
É a partir de nossa prática no hospital, na Unidade de Terapia
Intensiva Pediátrica (UTIP), que se tornou possível o nosso desejo
de compartilhar formulações teóricas, reflexões e questionamentos
sobre "a criança e sua dor".

Nossos agradecimentos a todos que, com suas contribuições pre­


ciosas, fizeram parte da construção deste livro.
E é nosso desejo que o estilo de cada trabalho aqui apresentado
convoque o leitor a colocar algo de si.

Comissão Editorial
Prefácio

Só as crianças têm segredos,


dos quais mais tarde já nem lembram!
A dor talvez é um deles.
Ficamos aturdidos diante da criança. Considerada inocente, diz
ela a verdade. A verdade sai pela boca das crianças, diz o adágio.
Até a Idade Média, o filho do homem em tenra e baixa idade
era simplesmente um homem em tamanho pequeno. Depois veio a
i nfància! Ou seja, o período em que o interessado não fala! Jn-fans,
quer dizer não-fala! Por isso, falamos da criança: os pais falam das
crianças, os educadores são solicitados a fazer palestras sobre a
infància, os psicólogos intervêm, fazendo reeducação. "Ça par/e de
fui", dizem os franceses.
Uma das perguntas sobre a criança vem a ser a questão do
trauma (a dor de existir?), definido, por vezes, como resultado de
sedução ou violência, por parte do adulto. Já não sabemos mais,
nem temos condições de pesquisar até que ponto a criança consen­
te. Já nem podemos imaginar que o trauma é a marca do que ela
tanto temia, a revelação de algo já sabido, a saber, a dor de existir.
O "segredo" da criança faz frente ao adulto que indaga.
Ou jogamos o jogo da criança ou nada acontecerá, pois ela não
tem nenhuma razão para escutar nossas perguntas enfadonhas. Para
os adultos parece bastante definir a criança como aquele que não
trabalha, não deve trabalhar; deve ir à escola, já que seu saber de
nada vale.
Quero dizer que vejo duas definições para o inconsciente,
ambas aceitáveis, porém são duas. Primeira: o inconsciente estaria
-ligado às palavras, palavras que envolvem o nascimento de u ma
criança, seu nome, sua fala.
Segunda: o inconsciente seria uma i nvenção, uma descoberta,
mas prefiro dizer invenção que fazem certos seres diante da própria
dor de existir. Não há palavras para nomear a dor de existir.
Freud, certa vez, relatou o sonho de um pai cujo fi lho falecido
era velado, em volta as velas, num cômodo ao lado do quarto onde
ele se retirara. A noite envolvia o corpo do filho, as velas riscavam
a noite e o corpo. Havia um bom tempo que já era tarde. O pai
adormecido, vira em sonho o filho que lhe dizia: pai não vês que
estou queimando?
De que se queixava o filho? De não ter sido cuidado, amado o
bastante? Já não carecia esse tipo de queixa.
Prolongaria o pai seu sono ao pensar que o filho não havia
morrido? Cuidados do pai teriam a morte evitado? De que se
acusava o sonhador, pai? De nada, tudo já havia acontecido.
Vamos ao que interessa:
"Como se o pai não soubesse, de acordo com o seu desejo, que
o filho estava morto", diz Freud ("sefon son voeu", diz a tradução em
francês).
Como se o filho tivesse assumido pelo pai ("de acordo com ... ")
a dor de existir, uma vez o filho morto. O sintagma "de acordo
com ... " aponta para o inconsciente. Diria que o termo "de acordo
com " (sefon, em francês) já é bastante para marcar a entrada em
...

jogo de um outro tipo de produção. Quanto ao que se passa entre


pai e filho, nada nos autoriza a ver em "de acordo ...com" outra coisa
que a dor de existir.

Após leitura atenta dos capítulos que compõem este livro cujo
prefácio escrevo, continuo a pensar na criança, agora já marcada­
mente sob o impacto de imagens provenientes dessa leitura. São
psicólogas as autoras, mulheres que escrevem. A escrita das mulhe­
res foi um acontecimento notável nos últimos anos. Não que não
as houvesse escritoras, elas sempre existiram e de grande porte.
Mas, agora em nosso tempo, os temas da psicologia, da psica­
nálise, para citar as duas disciplinas que nos reúnem na mesma
profissão, conhecem tratamento original, marcado pela presença
atuante de mulheres nos afazeres da profissão. Atendimento em
consultório, trabalho em instituições, no hospital, para citar o caso
presente.
Ao cabo de algum tempo, a experiência acumulada solicita uma
nova tarefa, desta vez a escrita, dada ao público em forma de livro.
Se me fosse permitido, quero reconhecer não só a competência
profissional, mas o trato delicado com a matéria. A maneira de
encarar as mais duras situações da vida e da morte, já que atestadas
no hospital, no Cfl.
Quero também participar do trabalho que é aqui apresentado;
trago alguns parágrafos sobre a matéria.

O corpo
Malgrado a materialidade inevitável, a singularidade do corpo
faz dele algo intocável. O chamado "campo operatório" recupera e
institucionaliza o corpo graças a um certo número de enunciados.
(A cena mostrada na iconografia da época inclui o professor empo­
leirado na sua cátedra ao ditar orientação para o cirurgião logo
abaixo debruçado sobre o corpo do paciente). O corpo só é admi­
tido explicitamente graças ao que está prescrito pelos enunciados,
pelos livros de medicina (Veja-se "O anatomista", best-seller entre
nós recentemente). Os corpos estão submetidos aos enunciados.
Ele se mostra e é mostrado sob o efeito de um viés proveniente dos
enunciados. Trata-se de um corpo legal, corpo atribuído.
O corpo pode se apresentar explicitamente, como objeto de
conhecimento, inconscientemente assumido ou não, e ser lugar
para a produção de morte, pois que a subjetividade obscura fecha
o espaço, desconhecendo a verdade do acontecimento doença.
Por outro lado, o corpo próprio da subjetividade é animado por
certa mobilidade; o espaço subjetivo é experimentação a partir do
acontecimento (doença, dor, eventual cirurgia, no caso do paciente
hospitalizado). O pós-operatório revela curiosas situações em torno
do desconhecimento do que aconteceu exatamente durante a cirur­
gia. O membro fantasma é caso extremo, porém ilustra bem o que
temos em mente. Numerosas cirurgias cujo campo operatório está
situado na região genital são fonte de impotência, nem sempre
justificadas pela medicina. A intervenção explícita da enfermeira
pode ser inadequada. Nem tampouco o corpo pode ser considerado
como fictício como no caso da histérica.

A dor
A dor fisica é u m ponto de interrogação para a medicina e para
a Psicologia. Sua realidade será sempre inseparável dos efeitos
subjetivos que ela produz.
Sinal de alerta quanto a uma possível enfermidade, signo pa­
tognomônico quando indica, de forma inequívoca, uma determina­
da lesão ou enfermidade, ela nunca se manifesta como um dado
fisico quantificável. Quando não conseguimos objetivá-la como
sinal de uma lesão, ela se converte em sintoma para a medicina.
A principal dificuldade para o médico reside no fato de que a
dor só pode lhe ser transmitida pela palavra do doente. Na ausência
de lesão que a justifique, a dor perde seu estatuto de sinal de alarme
para converter-se em enigma, tanto para o médico quanto para
quem a sofre.
Para a Psicanálise a dor é experimentada no corpo não redutível
ao organismo, já que ela implica na existência de um sujeito. A
redução do corpo ao organismo excluiria a erogeneidade corporal.
O acontecimento doença, dor, passa sempre por um corpo; essa
a marca de nossa leitura materialista. O sujeito virá depois.
Assim, para se falar em subjetivar a dor, ou responsabilidade do
sujeito pelo seu "gozo", temos que distinguir três tipos de subjeti­
vidade:
1 . Frente ao acontecimento dor, doença, morte -
Subjetividade produtiva -
História de Vida >>>>>>> (Dor, doença)
Corpo
Neste caso há subjetividade produtiva, o corpo está sob a barra .
O corpo suporta tudo, mas em posição inexplícita. A verdade s e faz
acompanhar de um certo esquecimento do corpo (Platão, Spinoza).
Não há necessidade de que ele seja explicitado para que o presente
(dor, morte) se produza. O corpo pode estar "de lado". Entusiasmo,
Felicidade, Prazer, são do corpo mas ao nível do inexplícito.
2. Subjetividade reativa -
Denegação da Hist. de Vida >>>>> (Dor, doença)
História de Vida/Corpo prescrito
Neste caso, há subjetividade reativa, há reprodução do passado
(queixas repetidas), a única produção neste tipo de subjetividade.
O corpo permanece inexplícito, duplamente inexplícito; o único
lugar onde o corpo é explfdto será encontrado na "subjetividade
obscura", terceiro tipo nessa série.
Antes de falar na "subjetividade obscura", vou dar um exemplo
por o nde tudo vai ficar claro.
Há nudez do corpo subjetivo quando não estando adstrito a se
mostrar sob a lei, ele é, se mostra tal como é. Não um corpo
substancial enfim visível, mas em estado de se mostrar sem estar
sob' a lei. É bem este o caso quando se trata da nudez amorosa, da
desnudação como ocasião do amor sexuado. Enfim, o corpo inex­
plícito permanece inexplícito, mas nu de maneira essencial. A nudez
não pode ser obscura, nem o toque ou aproximação do corpo do
paciente; em caso contrário ambos são assimiláveis à pornografia.
3. Subjetividade obscura.
Neste caso, há ocultação, e não produção, nem mesmo reprodu­
ção. Há produção de morte.
Corpo >>>> Hist. de Vida >>>> Corpo prescrito pela Lei
(Dor, Doença)
Há um fechamento sobre o corpo, da H istoria de Vida sobre o
corpo; este só é admitido, aceitável como corpo prescrito pela lei,
pela ciência, pela religião, pela neurose (ver casos de anorexia,
bulimia, regime exagerado de emagrecimento).
Aqui, em se tratando dessa subjetividade, temos um caso de
corpo explícito, acima da barra. O corpo deve se mostrar, mas
sempre prescrito pela letra, corpo submetido à letra, constrangido
pela lei. Se ele se mostra, terá que se mostrar sob esse constrangi­
mento. O sujeito obscuro não cria tempo, ele não é criação, mas,
sacrificio do presente no presente, criação de morte. Mesmo o
sujeito reativo é criador de tempo, tempo passado no presente.
O corpo sob a lei vem a ser verdadeiro emblema do sujeito
obscuro. Exemplo a ser examinado: a roupa que encobre o que não
deve ser mostrado. Toda roupa supõe um sujeito obscuro.
Produção, Reprodução, Ocultação - são operações do sujeito.
A intervenção da Psicanálise no Hospital (CTI , por exemplo) buscaria
levar o paciente a um nível de subjetividade produtiva, para a qual
o corpo é inexplícito.

A violência
Já não admitimos a violência quando esta vem perturbar nosso
sossego de habitantes da grande cidade; ora, no sistema social
vigente _encontramos situações onde vão se desenvolver gestos de
violência. Eventualmente esses são levados ao hospital. Curiosa­
mente, já não temos nenhuma tolerância para com os distúrbios,
para com o aparato do sagrado e o sacrificio cruento, o excesso; o
sistema vigente, garantidor do bem-estar, nos promete o equilíbrio
das contas do governo, o planejamento a médio prazo, o aumento
da esperança de vida.
Sabemos nós que a morte, a doença, estão entre nós, como sinal
talvez invertido do que somos; imagem, retrata ela bem o de que
somos capazes. O doente, para nós, já não pode ser visto, tal como
fi zeram os antigos, como um caso predestinado (os reis taumatur­
gos se deixavam tocar e tocavam os doentes, curando assim os seus
súditos), pois somos contemporâneos do discurso da ciência, a mais
eficiente de que se tem notícia nos anais dos séculos.
Ao lidar com alguém inapto à subjetivação, teríamos que sus­
tentar até o último instante, em condições marcadas pela doença,
a possibilidade de que algo aconteça; um ínfimo movimento sendo
o bastante, pois ele pode fazer surgir o sujeito, raro, pontual, capaz
de denunciar tentativas de referência única a um grande Outro
tirânico, e unificador, a uma promessa imaginária.
Os capítulos do livro cujo prefácio você está lendo, falam de:
"a criança - do mito à estrutura", "a criança e as estruturas
clínicas", "um amor tecido pela duplicidade", "uma verdade com
estrutura de ficção", "a dor da intancia", "há uma Psicanálise do
corpo?", "o luto na criança", "a criança que se cala", "na identifica­
ção com a doença crônica, a i nsistência do sujeito", "da dor de
existir ao prazer de viver", "na corda bamba da morte ... ou da vida?",
"laços: o jogo da ciranda narcísica - pais e filhos", "olhar como
gesto ... ", "o mal-estar da culpa", "a criança e sua dor: do I da cruz
ao v da vida".
Acompanhei alguns desses textos enquanto eles eram escritos;
sei o que eles custaram, o que eles evocam. Senti-me acompanhado
por cada um deles enquanto escrevia a minha parte. Espero que
m i nha contribuição seja reconhecida como a parte que me coube.

Célio Garcia
Sumário

A DOR DA INFÂNCIA
Rosilu de Ferreira Barbosa

DA DOR DE EXISTIR AO PRAZER DE VIVER 5


Gilda Voz Rodrigues

OUfAR COMO GESIU... • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 15


Lia Neves Mohal/em

A CRIANÇA QUE SE CALA • . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 27


üs/ey Cristina Silva de Oliveira

O LliTO NA CRIANÇA • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 33
Stela Cardoso de Carvalho

UMA VERDADE COM ESTRtmJRA DE FICÇÃQ.PSICANÁUSE E O FANTASMA NA


PRÁTICA HOSPITAlAR COM CRIANÇAS 47• • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

Sandra Seara Kruel

NA IDENTIFICAÇÃO COM A DOENÇA CRÔNICA, A INSIS1ÍNCIA DO SUJEITO • • 57


Paula Vaz Rodrigues

lAÇOS: O JOGO DA CIRANDA NARÓSICA- PAIS E FILHOS • • • • • • • • • 67


Wanda Avelino

uuM AMOR TEaDO PElA DUPUaDADE" 79


Maria Luisa Duarte Vilela

NA CORDA BAMBA DA MOKTE... OU DA VIDA? A CRIANÇA E A INSUFICIÊNCIA


RENAL CRÔNICA • • • • • . . • • • • •89 • • . • • • • • • • • • • • • • • • •

joseane Aparecida de Sousa Brant

HÁ UMA PSICANÁUSE DO CORPO? • • • • • • • • • • • • • • • • • • • : • • 105


Cláudia Pedrosa Soares

A CRIANÇA E AS ESTRUTIJRAS CÚNICAS • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 117


jacqueline Esteves Pena Kel/es
O MAL-ESTAR DA CUlPA . • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • • • • • 1 29
Elaine Maria do Carmo Dias de Souza, Maria de Lourdes G. A. Barros

A CRIANÇA E SUA DOR: DO L DA CRUZ AO V DA VIDA 139


Maria Dolores Lustosa Cabral

A CRIANÇA- DO MITOÀESTRliTURA • . • • • • • • • • • • • • • • • • • 1 47
Marisa Decat de Moura
A Dor da I nfância

Rosilu de Ferreira Barbosa

A i nfância consegue reunir o melhor da espécie humana: pure­


za, inocência e esperança. Reunir não significa manter. Mas é fácil
entender por que encanta a todos, inspira afeto e proteção, induz
ao compromisso, resulta em preservação. A identificação com o que
fomos (quase sempre) emociona, mobiliza e prioriza o cuidado. Da
fecundação ao nascimento, do crescimento ao desenvolvimento, u m
longo caminho s e apresenta: o d a semente promissora n o solo in­
certo. justo seria, que não faltasse sol e chuva, na medida exata da
necessidade de cada uma, que possibilitasse a formação de vida sa­
dia, resistente então à falta e à perda - à dor.
Se quem gera herdou e convive com a falta que transmitirá,
sofreu perdas e nem sempre conhece a extensão de sua doença,
como garantir um produto sadio, reconhecer e evitar a proliferação
da dor?
Sofre a criança de dor doída e de dor de amor. Sofremos todos,
que (re)conhecemos essas dores. Por nossas lágrimas não consola­
das, pelo alívio atrasado, pela falta do colo, pelo grito abafado. Pela
nossa/deles, indiferença e incompetência.
Dói o choro não atendido, a fome não saciada, o abraço não
apertado, o beijo não recebido; doem os gritos desnecessários, a
falta de atenção e a impaciência, a injustiça, a mentira e a violência.
Doem as quedas, escoriações e fraturas, as suturas, as injeções e
queimaduras, a barriga, o dente e os ouvidos. Dói para crescer,
engolir, para tossir e respirar. Doem as agulhas, os drenos, tubos e
1
2 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

cateteres, os abscessos e tumores. Doem a vergonha e a intolerân­


cia.
Faz falta a educação, a nutrição, a oportunidade. Fazem falta o
pai e a mãe, a família e os amigos, o namorado na esquina, a volta
para casa, a comida na mesa. É importante o elogio, o apoio, a
escuta, a liberdade e a recompensa. São necessários os limites,
modelos e referências: a regra e o jogo.
A prevenção e o tratamento da dor na i nfância começa na
atenção à gestante, continua nos cuidados e na (recente) valorização
da dor do recém-nascido, na vigilância do estabelecimento do
vínculo mãe-filho, através da puericultura, vacinação e alfabetiza­
ção. Depois é preciso cuidar dos medos, dos dentes, dos vermes e
das infecções; compreender e orientar o adolescente.
O pronto reconhecimento da dor de qualquer origem, o diag­
nóstico e a abordagem terapêutica precoce podem reduzir seu
i mpacto no futuro, e até impedir o aparecimento de seqüelas.
Talvez seja necessário usar o coração e todos os sentidos para o
entendimento total desses seres humanos em formação, únicos e
complexos, universos de necessidades e manifestações somáticas
e emocionais intimamente relacionadas e dependentes.
A criança física e gravemente enferma é acolhida com a angústia
de quem espreita a morte. Prossegue a busca da origem e repercus­
são do mal, na vítima também, muitas vezes, da incompreensão da
família e da ciência. A aparente e superestimada fragilidade da
criança, assusta e impede a verdadeira comunicação. Considerada
indefesa frente a seu genótipo, fenótipo e ambiente, sua fisiopato­
logia desafia aqueles que ainda não se identificaram com a l ingua­
gem e o olhar próprios de cada faixa etária. Todos os detalhes
i mportam: cada som ou movimento muscular, cheiros e cores.
Registramos pesos, cálculos, volumes, temperaturas. Preocupam o
excesso de luz e ruído, o calor, a sucção, o embalo, o desconforto;
mas também a febre, o gemido, a falta do grito ou do choro, o
vômito, palidez e cianose. Sucedem-se i nterferências e agressões
de toda ordem, na procura desesperada de respostas e soluções. A
iatrogcnia e a ética nos levam de.uma dor à outra, no exercício do
prnfissionulismo técnico e moral. Por fim misturamos a tristeza com
"é!lt•grin, n fru11traçllo com o sucesso, o cansaço com o entusiasmo,
A DOR DA INFÂ NCIA 3

a vida com a morte, numa conduta irreversível de busca da recupe­


ração.
A recuperação não só da vida, mas antes do bem-estar e da paz,
ou, pelo menos, da dignidade. Nesse momento precisamos dos
limites precisos da ética e do respeito ao corpo humano, às crenças
e às famílias; da nossa disponibilidade de perda, das nossas experi­
ências com a dor, da nossa fantasia de morte.
De um lado a doença, do outro o universo do sofrimento e da
ansiedade paterna e familiar, assim como dos muitos envolvidos
circunstancialmente numa atuação profissional que precisa conter
a dor do outro. Num emaranhado de relações e intenções, há de se
administrar expectativas e divergências.
Parece, entã�. que a dor - injusta e incompreensível - da
intancia consegue reunir tempos diferentes de vida: da identificação
com o passado à atuação no presente, pela preocupação com o
futuro. Completa-se com dor o ciclo da vida, uma vez que é mesmo
assim que tem de ser vivida. Mas ainda nos resta o sorriso, a música,
a poesia, o sol e o mar, a paixão, as montanhas ...
Da Dor de Existir ao Prazer de Viver

Gilda Vaz Rodrigues

"Ó minh'alma não almeje a imortalidade, mas esgote


o campo do possível. "

Píndaro

Proponho-me aqui falar de dor.


Falar da dor é falar de algo sem um campo definido. É falar de
algo que circula entre os diversos campos que compõem esse
complexo universo do ser humano.
Podemos abordar a dor a partir do campo somático, tomá-la
como elemento psíquico ou explorar todas as suas intercorrências
no campo social. Podemos até mesmo deixá-la ao encargo dos
poetas, artistas, magos e religiosos. Mas pretendo abordá-la a partir
do que a psicanálise teria a dizer sobre a dor.
Desde as suas primeiras elaborações teóricas sobre o funcio­
namento do aparelho psíquico, Freud assinalou o caráter econômi­
co da dor no psiquismo humano.
A dor denuncia u�a alteração no equilíbrio das relações de
tensão entre um campo de forças que interagem. Tais forças, por
sua vez, não se restringem a um ú nico campo, elas incluem elemen­
tos orgânicos, psicológicos e sociais. Portanto, falar de dor não é
uma tarefa simples.
Para não me perder nos inúmeros desvios que tal abordagem
poderia nos levar, pretendo abordar a questão da dor por um prisma
extremamente específico e rigorosamente psicanalítico:
5
6 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Tentaremos pensar a dor como o ponto limite frente ao campo


de das Ding. Fronteira entre prazer e gozo, esse entre-dois que
constitui o campo da pulsão.
Tomemos como ponto de partida algumas considerações sobre
das Ding.
O campo de das Ding corresponde à parte não reconhecida pela
operação simbólica . Sua existência consiste numa antecedência
lógica de algo que permaneceria como um vazio central, um ponto
de hiância na estrutura, em estreita correlação com o conceito de
real em l..a c an.
Trata-se de um ponto de i mpossibilidade na estrutura simbóli-
ca.
Embora os dois conceitos se aproximem, das Ding não é objeto
a. O objeto a é o que cai da operação simbólica, implicando num
caráter de corte, queda, ruptura.
Das Ding antecede à própria operação simbólica, não chegando
a entrar no processo e permanecendo como não assimilável, con­
forme elaborou Freud desde cedo em seu "Projeto para uma psico­
logia científica" (1 895). Ainda nesse mesmo texto, Freud i rá abordar
a questão da dor e da vivência de dor (Schmerzerlebniss).
Um organismo vivo porta dispositivos capazes de proteger a
vida contra fatores internos e externos que a ameaçam. O fracasso
desses dispositivos levam à dor e, mais além, à morte.
A dor decorre de um excesso de excitação é da i nvasão i ntensa
do que Freud chama de Q (quantidade de energia psíquica).
A dor aparece no Projeto como resultante do fracasso dos
dispositivos que o aparelho psíquico dispõe para neutralizar essa
irrupção e transbordamento de energia: a descarga e a fuga.
Constata-se, portanto, que a dor decorre da impossibilidade de
descarga ou fuga, ou seja, de colocar-se em movimento.
É nessa direção que pretendo formular a função da dor na
economia psíquica e situá-la topologicamente.
Assinala-se uma estreita homologia entre reação de dor e
i mpossibilidade de reação motora.
Lacan também reafirma essa homologia quando se refere à dor.
Em seu seminário sobre "A ética da psicanálise", ele vem ao
encontro desse ponto, assinalando que "na organização da medula
DA DOR DE EXISTIR AO PRAZER DE VIVER 7

espinhal, os neurônios e axônios da dor encontram-se no mesmo nível, no


mesmo lugar que certos neurônios e axônios vinculados à motricidade
tônica".1
Lacan concebe a dor como um campo que, na ordem da exis­
tência, abre-se precisamente no limite em que não há possibilidade
para mover-se. Nesse sentido, poderíamos pensar a dor como
decorrente da impotência do ser frente ao desejo do Outro, desse
grande Outro que quer a minha morte, ao qual estou inapelavel­
mente submetido. Sua lei se impõe de forma irredutível, não me
oferecendo saída senão a de submeter-me a esse Outro que dita
meu fim, mas, paradoxalmente, minha condição de existência.
O que causa dor é minha imobilidade, é não poder fazer nada
com relação a isso.
Também os mitos nos oferecem elementos de uma sabedoria
que nos reforçam nessa articulação.
Dafne se transforma em árvore sob a pressão de uma dor da
qual não pode escapar.
Dor que se petrifica. A dor como uma pedra no peito.
Essa é também a idéia que a neurose nos oferece - fixação,
adesividade da libido, inércia do fantasma - levando ao mais extre­
mo sofrimento, pela própria impotência de escapar desse estado.
A primeira das formas que a neurose dispõe, a inibição,já atesta
essa impossibilidade de mover-se. Também no sintoma e na angús­
tia observa-se esse caráter de fixação e imobilidade.
Convém, entretanto, distinguir a dor como um fato de estrutu­
ra, e, nesse sentido, ela se define como "a dor de existir", e a dor
como barreira e tamponamento à própria dor de existir, aquela que
se torna um prazer em si, sendo incorporada à economia do gozo.
"Não está para qualquer um acolher a verdade como um gemido",
dissera Uican em algum lugar.
Podemos ouvir essa frase como um caminho ético que é, antes
de tudo, a ética do significante à qual o homem está submetido, o
que lhe impõe a ex-sistência de das Ding como "o que do real padece
dessa relação inicial com o significante" .2 Paradoxo fundante, ponto de
libertação e, ao mesmo tempo, a mais severa servidão, que condena
o homem a uma vacilação essencial: de um lado, o sujeito do
8 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

significante como um ponto puro sem diversidade, sem qualidades


e, de outro, toda a dimensão de seu pathos.
Nesse sentido, a dor de existir é correlativa da existência da
pulsão como pulsão de morte, puro silêncio, onde não há nada a
dizer, nem a se esperar do Outro nem de ninguém; momento de
puro desamparo (Hilj1osigkeit) que nos coloca diante de nossa con­
dição humana.
Essa é a dor como um fato de estrutura, inevitável e ética. Ético
por ser um imperativo, uma exigência da própria estrutura inscrever
essa falta.
Vamos encontrar nos extremos das formulações filosóficas e
nas mais diversas modalidades clínicas a presença desse imperativo.
Na filosofia a dor ocupa um lugar de destaque, pois, na busca
do essencial no ser humano, ela vem marcar esse ponto limite.
O estoicismo, por exemplo, sistema filosófico criado por Zenon
de Citio (Chipre), fi lósofo grego (342-270 a.C.), já preconizava um
distanciamento com relação aos males físicos e uma postura impas­
s ível com relação à dor.
Os estóicos recusavam a subjetivação da dor, sustentando uma
ética de exclusão do que se passa ao n ível do corpo colocando-se
como puro espectador. Uma forma de marcar a independência do
sujeito frente ao próprio corpo.
Também em Kant vamos encontrar, em sua Crítica da Razão
Prática, o trecho da transposição do horizonte de Schmerz, da dor,
como correlativa do ato ético. Momento em que o dever ético leva
o homem a arrancar de si próprio aquilo que constitui seu pathos:
afetos, laços, emoções, interesses pessoais, e agir unicamente
movido pela Lei Moral, que o reduz a um puro sujeito do significante
destituído de toda qualidade sensível e subjetiva.
A dor evoca aí o ponto limite de pura perda, onde se apresenta
a divisão do sujeito.
Sade, num outro extremo, também vai na mesma direção,
demonstrando a estrutura imaginária desse limite. Ele nos indica o
acesso a esse espaço, avançando sem temor . n em piedade em
d ireção ao próximo, no qual, através de seus ato�. faz aparecer a
divisão que impõe o acesso a das Ding. Daí, o horror. Decorre daí,
DA DOR DE EXISTIR AO PRAZER DE VIVER 9

também , a própria reação que sua obra provoca por arrancar-nos


de nossos princípios morais.
A lei sadiana pode ser identificada com a pulsão de morte, com
seus efeitos de despedaçamento, dispersão e destruição. Ela avança
num mais além do princípio do prazer em direção a esse espaço
que é de uma outra ordem, fora da representação, provocando a
Spaltung que evoca o $.
Sade o faz escandalizando, abrindo esse espaço de das Ding ,
provocando horror, pois despedaça o corpo d o Outro, arrancan­
do-lhe suas normas, regras, padrões morais, valores sociais e afeti­
vos. Despedaça o objeto total e o reconduz a seu verdadeiro
estatuto: objeto parcial. A fantasia sadiana é a de fragmentar o
cor po. Encontramos isso na base da estrutura:
"O ponto de partida desde os prim6rdios da simbolização
é a expulsão, a Ausstossung, uma forma de aparição do
3
ser sob a forma de não ser".
Lacan irá assinalar em seu seminário sobre a Angústia que o que
o perverso busca não é propriamente o sofrimento do outro, mas
a sua angústia.
É interessante essa referência, pois a produção da angústia
articula-se ao acesso a um ponto puro do sujeito: o sujeito de pura
angústia.
A dor aqui se confunde com a própr ia angústia. Dor no peito,
aperto na garganta, são sinais da dor que o perverso produz no
corpo do outro.
Poderíamos questionar: Quem é o sujeito e quem é o objeto na
fantasia sadiana?
Comumente se pensa que a vítima é a que está do lado do
objeto. A contribuição de Lacan a esse tema é exatamente a reversão
dessas posições. Para ele, a vítima está do lado do sujeito.
Aquele que é o agente do ato perverso está do lado do objeto
a. Ele encarna esse objeto separador. Do seu lado não há angústia,
nem vacilação, ele recusa a divisão em si e a projeta no outro,
perseguindo a aparição pura do sujeito através da dor, da separação
de todo o pathos, da perda de suas qualidades e subjetividade.
Trata-se da própria ação do objeto a encarnado produzindo o efeito
10 PSICAN ÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

separador e destitutivo que impõe o surgimento do sujeito no


outro, que a recebe em posição masoquista.
Assim, na fenomenologia sado-masoquista, os jogos da dor
servem de prolongamento do prazer-desprazer, mantendo o fun­
cionamento ao nível deste princípio, não chegando ao mais além
onde o gozo apresenta a sua face verdadeira: o horror de das Ding
como vazio, morte, enfim, a dor de existir.
Podemos dizer que, através desses jogos, não se chega à dor
de existir decorrente da experiência da castração simbólica. Lançan­
do a dor no corpo do outro, ela adquire consistência e pode assim
ser manipulada, controlada, dominada e cultivada.
A economia da dor nas relações sado-masoquistas acaba por se
parecer com a dos bens, tornando-se um bem em si, que pode ser
compartilhado.
Em "O Problema Econômico do Masoquismo", Freud i rá assinalar
que
"Quando dor e prazer não mais são sinais de alarme, mas
podem ser alvo em si mesmos, o princípio do prazer é pa­
ralisado, o vigia de nossa vida anímica narcotizado".
Essa referência em Freud é mais uma confirmação do caráter de
imobilidade e fixação da dor, aqui , usando a própria dor como
barreira à dor de existir.
Sabemos que a dor começa onde o prazer termina. Um pouco
mais de prazer e caímos na dor. Se abraçamos um corpo um pouco
mais forte, causamos dor. Não sabemos, às vezes, se é prazer ou
dor. Portanto, a dor consiste na primeira forma de se atravessar os
limites do prazer e produzir um excesso, um mais além.
Às vezes é assim que o gozo feminino se apresenta, como um
a mais que não se sabe se é prazer ou dor, daí se falar em
masoquismo feminino.
Vejamos agora uma das formas mais puras que a dor de existir
irá tomar, que é a melancolia.
A dor, na melancolia, será abordada por Freud no final de
"Inibição, Sintoma e Angústia", como decorrente da concentração
de i nvestimento narcísico no local onde se operou a perda do objeto
esvaziando o eu.
DA DOR DE EXISTIR AO PRAZER DE VIVER 11

O melancólico concentra-se nesse ponto d e fuga, onde se deu


a ferida narcísica, a queda do objeto, e permanece ali fixado,
inundado por uma dor psíquica semelhante à própria dor fisica que
o invade ao nível do corpo.
Essa dor que vemos modelar a canção do melancólico é a dor
em estado puro. A dor da queda do objeto, a dor psíquica propria­
mente dita, a dor de existir.
Podemos encontrar na literatura, de uma maneira geral, e na
leitura psicanalítica, referências preciosas sobre esse momento.
Ouvimos este significante no real, no grito arrancado do peito
do psicótico que emerge de sua boca aberta ante o indizível vazio.
Lacan irá se referir a isso como o "milagre do uivo" (Brüflenwunder).
O uivo como um puro significante no real, que acontece quando
o psicótico cai do discurso onde ele está instavelmente suspenso.
O grito cumpre aí a função de sujeito que se projeta no real
como puro significante, cuja presença como tal é o próprio grito.
É o que vemos estampado na tela do pintor dinamarquês
Munch, que se intitula: O grito.
O grito emerge como presentificação da coisa, das Ding, lançan­
do o sujeito num abismo temporal.
São momentos que pontuamos como indicadores da proximi­
dade da fronteira, da beira do abismo onde a verdade, ao se
anunciar, não deixa mais nada a dizer.
O grito como um significante puro, no real, presentifica a dor
de existir como fato de estrutura.
Outro momento trágico onde se evoca essa dor, encontramos
em Antígona, de Sófocles.
Ao deparar-se com o cadáver do irmão já em putrefação e
Insepulto, Antígona grita sua dor. "Ela reaparece do outro lado do
cadáver do irmão soltando gemidos como pássaros cujos filhotes lhes
foram arrebatados. "4
O gemido de dor, significante puro que suporta a verdade que
� sempre um corpo.
Imagem singular, que exprime o momento na vida em que
10mos confrontados com uma verdade da qual não conseguimos
desviar os .>lhos, nem fechá-los. Aquilo nos invade, entra pelos
nossos sentidos, e a dor vem marcar o limite dessa margem em que
12 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

o nosso ser se separa de seus bens e perde, nesse momento, sua


forma. Daí, a "careta", a contração da fisionomia.
Estamos tentando demarcar aqui uma das fronteiras, a que mais
nos aproxima do inominável de das Ding.
Essa fronteira, essa margem, constitui a barreira, a última antes
de se deparar com o horror de das Ding, a barreira do belo, que se
apresenta aqui como a perda da forma, poderíamos dizer, humana
de ser.
Não se trata da função do belo como padrão de beleza, ou como
ideal estético, mas como elemento mínimo que dá forma a uma
subjetividade.
O belo constitui o último anteparo antes de se deparar com o
que há além dessa margem. Ultrapassá-la é se haver com a morte
derradeira.
É comum àqueles que trabalham em hospitais lidar com paci­
entes que morrem sem ultrapassar essa barreira. Dizemos que
morreram dignamente, sem perderem a forma de suas subjetivida­
des. Enquanto existem outros que ultrapassam o limite dessa
margem e chegam a perder totalmente a forma que tinham em vida.
A verdade não é bonita de se ver, por isso o belo vem recobri-la.
A verdade é feia. Cada vez que soa para nós a sua hora, não
chegamos perto.
É por isso que só o morto humano exige sepultura, pois
repõe-se a barreira do belo, dando ao morto novamente uma forma.
Isso me remete a um sonho de Freud, na noite após o enterro
de seu pai. Ele sonha com um cemitério onde se lê numa placa:
"Pede-se fechar um olho".
Freud interroga-se sobre o sentido dessa frase. Se um olho deve
ser fechado, implica que o outro deva permanecer aberto.
Talvez o destino do homem só possa ser pensado no intervalo
desse entre-dois, onde ele desperta, encara a verdade e logo depois,
como sonhou Freud: "Pede-se fechar um olho".
A barreira da dor está logo ali, como um limite, até onde
podemos suportar a proximidade de das Ding.
Não se trata de rejeitar o inconsciente, pois, ao fazê-lo, assegu­
ramos-lhe seu retorno no real; porém, de sustentarmo-nos nessa
báscula, que define o estatuto do sujeito dividido ($).
DA DOR DE EXISTIR AO PRAZER DE VIVER 13

Sendo assim, o sujeito que a psicanálise faz advir s e afirma n a


experiência da subjetividade d o tempo. Tempo que deve ser pen­
sado como abertura e fechamento do inconsciente, ou, como no
sonho de Freud, o abrir de um olho e o fechar do outro.
Se o que procuramos nessa abordagem sobre a dor é destacar
sua relação com a imobilidade ou a "morosidade" do funcio­
namento psíquico, é ainda nessa direção que pensaremos a saída
que a psicanálise oferece frente à dor de existir.

"É à motricidade que cabe afunção de regular, para o or­


ganismo, o nível de tensão suportável, homeostático. "5

Desde o início, o tratamento psicanalítico atenua o sofrimento


ao colocar o sintoma para deslizar metonimicamente através da
associação livre. Portanto, pondo a cadeia significante em movimen­
to.

Embora isso não seja suficiente, constitui o que poderíamos


chamar de um efeito terapêutico da psicanálise, que se anuncia num
primeiro tempo. No final desse percurso, o descolamento com
relação às verdades que o analisante isolou desse trabalho liberando
a pulsão das representações às quais estava fixado, permitirá um
movimento contínuo de endereçamento ao Outro do inominável,
do femi ni no, do Outro radical. Esse movimento possibilita que o
sujeito passe da dor de existir ao prazer de viver, que se sustenta
na falta estrutural que se chama desejo.

REFERÊNCIAS BIBUOGRÁACAS

I. LACAN, )acques. O seminário - livro 7- A ética da psicanálise, p. 78.

2. LACAN, )acques, op. cit., cap. V e VI, p. 58-90.


3. VI DAL, Eduardo A. Além do princípio do prazer: A torção de 1 920. Re vista
da Letra Freudiana - Pulsão e gozo, ano XI, n. 1O, 1 1, 12.
4. LACAN, )acques, op. cit ., p. 320.
S. LACAN, )acques, op. cit., p. 77.
14 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de. Rio de janeiro: l mago, v. I .
. Além do princípio do prazer. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
-cõmpletas de. Rio de janeiro: lmago, v. XVIII.
___ . Inibição, sintoma e angústia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de. Rio de janeiro: lmago, v. XX.
___ . O problema econômico do masoquismo. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de. Rio de janeiro: I mago, v. XIX.
KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise - o legado de Freud e La­
can. Verbete - Dor. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1996.
lACAN, Jacques. O seminário livro 7 - A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
-

Zahar, 1988.
___ . O seminário - livro 3 As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
-

___ . Kant com Sade. Écrits. Paris: Seuil, 1966.


MILLER, Jacques-Alain. Sobre Kant com Sade. Lacan elucidado: palestras no Brasil.
Rio deJaneiro:Jorge Zahar, 1997. p. 153-218.
VIDAL, Eduardo A. Além do princípio do prazer: a torção de 1 920. Revista da Letra
Freudiana, ano XI, n. 10, l i , 12. Rio deJaneiro, Dumará.
Olhar com o Gesto . . .

Léa Neves Mohallem

"jamais me olhas
1
onde te vejo"

Um olhar...
O olhar...
O olhar presente ... Um último olhar... À espera de um olhar... O
olhar diz mais que mil palavras ... Olhar que não se esquece ...
Um olhar de rabo de olho.. .
Olhar enigma, olhar que fascina, olhar que paralisa.
Como diz Lacan, só podemos ver a partir de um ponto, mas na
nossa existência somos olhados de todos os lados.
Olhar. De todos os objetos é o que está mais próximo da
castração, portanto, também é o que está mais perto do desejo do
sujeito.
O olhar presentifica-se e intensifica-se no hospital. Traços,
cenas, flashes que marcam para sempre não só o paciente, o
familiar, mas também o profissional que lá está.
Chama-nos a atenção quanto esta questão do olhar fica marcada
na experiência de cada um. E a partir da observação desses traços,
desses olhares que perpassam o sujeito é que surgiu o interesse por
tate tema.
Qual a importância do olhar para a psicanálise? E para o trabalho
do psicanalista no hospital?
Percorrendo o estudo sobre o Estádio do Espelho, sobre o
narcisismo, a constituição do Eu, alienação e separação, podemos
15
16 PSICANÁLISE E HOSPITAL -'- A CRIANÇA E SUA DOR

pensar na importância da funç�o do analista para a sustentação do


sujeito através de um outro olhar. De um olhar que permite e
sustenta a identificação necessária em uma vivência de urgência e
também a direção de um outro olhar que possibilita a presença do
vazio, do Real, precipitando um efeito de verdade para o sujeito.
O sujeito, por não ser todo imagem, está fora da representação
e é por isto que tenta fazer-se reconhecer no espelho do Outro.

Podemos abordar a relação do sujeito com o Outro através de


três momentos importantes no ensino de Lacan, tendo como ponto
de referência o Estádio do Espelho.
• Em um primeiro tempo - IMAGINÁRIO - Lacan faz da imagem
o centro da causalidade psíquica, onde o sujeito constrói e re­
conhece a sua imagem. Este momento é considerado como fun­
damental na constituição do sujeito.
• Em um segundo temp o - SIMB Ó LICO - ele relativiza o Estádio
do Espelho, privilegiando a ordem simbólica, a linguagem.

Utiliza o modelo óptico marcando os efeitos de refração que


condicionam a clivagem do Simbólico e do Imaginário.

"Distinção cuja importância ensinamos para a constru­


ção do sujeito, a partir do momento em que é preciso pen­
sar o sujeito como o sujeito onde isso podefalar, sem que
ele (disso) nada saiba fe é preciso dizer que ele não saiba
2
nada (disso) enquantofala.J"

Essa força da palavra é designada como Outro. Lacan trabalha


a questão do Ideal do Eu como uma formação que surge neste lugar
simbólico.
• No terceiro tempo - REAL - ocorre uma guinada em sua obra
já que articula o olhar como objeto a. Na experiência do espelho
marca o ponto onde o sujeito olha mas não vê seu olhar. Há nes­
ta experiência algo, da ordem do Real, impossível de ser espe­
cularizável ou simbolizado, que é especificamente o objeto a.
OLHAR COMO G ESTO ... 17

A Função d o Olhar

Em se tratando de um hospital, como é estar diante de um


paciente deitado em um leito, olhar suas feridas, seu corpo cheio
de aparelhos? É uma criança que chega à Unidade de Tratamento
Intensivo Pediátrico - UTIP - após um acidente e a vemos passar
· por i ntervenções urgentes e invasivas para salvar-lhe a vida. É um
outro paciente que fica com seu corpo inerte pela tetraplegia ou
pelo coma ... Mistério sobre a morte. Mas, também, é passar pelo
berçário e ver lá bebês recém-nascidos. Pessoas passam lá em
frente, atônitas, fascinadas com o milagre da vida.
Pacientes internados que mobilizam não só seus parentes,
pessoas amigas, pessoas de sua cidade, mas também os profissio­
nais do hospital.
O bservamos que em certos acidentes dramáticos, que deixam
mortes e seqüelas, algum dispositivo é acionado, quase como um
pavio que é aceso. Escutamos as pessoas dizerem:
"Preciso ir lá para ver"
ou
"Preciso saber o que aconteceu,
mas não agüento ver"
Em seu seminário Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psica­
nálise, de 1 964, Lacan, quando trabalha a questão do esquema
óptico, propõe como fundamental a esquize (como hiância, como
descontinuidade) do olho e do olhar, corte que levará a visão a uma
outra realidade. Assim rompe com o ideal de visibilidade presente
para alguns filósofos - o sincretismo do olho e do olhar funcionava,
até então, articulado com a consciência do indivíduo, como esco­
toma do próprio olhar.
Podemos pensar: a que corte Lacan se refere quando diz que
abrirá a visão do sujeito para outra realidade?
Será que podemos, então, fazer uma articulação deste corte
com a experiência de urgência vivida pelo sujeito em uma interna­
ção?
Sabemos que, depois de experiências traumáticas, as pessoas
dizem que passam a ver o mundo de forma diferente, passam a ver
e ter novos valores como referência de vida.
18 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

A esquize, assim, comporta então uma forma de relação entre


o olho e o sujeito enquanto que o olhar, estando do lado das coisas
e do mundo, pode fazer precipitar o Real da castração.

"O olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha


contingência simbólica do que encontramos no horizonte
e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a
falta constitutiva da angústia de castração. ,.3
(...) "Eles têm olhos para não ver. Para não ver o quê?­
justamente que as coisas têm a ver com eles, que elas os
4
olham."
É na esquize entre olho e olhar que se manifesta a pulsão
escópica. Esta caracteriza-se por ser uma pulsão particular, propi­
ciadora para a construção de álibis pelo sujeito, mas remetendo
este também ao abismo da castração. Ou seja, podemos dizer do
olhar não só como tamponador Imaginário mas como direção ao
Simbólico e também sustentado pelo Real da castração.
O paciente internado em um hospital, ao ter seu corpo orgânico
afetado, pode ver desmoronar seu álibi Imaginário. Álibi que o
sujeito construiu durante a vida e que, ao se romper a barreira do
belo, pode ser levado como conseqüência ao encontro do Real, no
abismo da castração.
Podemos nos perguntar por que o outro (semelhante) precisa
tanto olhar para o paciente. Será que uma forma de sustentar seu
álibi não seria: "Isto aconteceu com ele; olhando posso construir .
um saber que me proteja?" Ou: "Não vendo, posso me proteger e
evitar que Isso algum dia possa acontecer comigo?"
Lembro-me de um familiar que ao entrar no CTI para visitar o
paciente, diz: "Quero entrar, mas preciso que você me leve pois vou
de olhos fechados". E depois de visitá-lo, ao sair, acrescenta: "Entrei
de olhos fechados e vi tudo o que não queria ver" .
. O que é isto que faz com que as pessoas precisem ir lá ... para
"ver" e se acalmar, outros têm horror do que vêem. Uns precisam
"ver de novo, ver mais um pouco", outros viram o rosto de lado,
outros não suportam nem ver?
Alguns familiares, ao entrarem no CTI, olham primeiro para os
aparelhos, levantam o lençol para reconhecer, para ver as mudanças
OLHAR COMO GESTO ... 19

n o corpo d o paciente e s ó depois s e sentem à vontade para olhar


nos olhos de quem está ali. Alguns entram com cerimônia, como se
entrassem em um lugar sagrado, olhando seu parente só de longe.
Uns falam muito, outros ficam sem palavras ...
Ver o corpo de alguém que não está adornado pelo Falo, ver o
outro reduzido, muitas vezes, ao corpo orgânico, quando em coma
ou com morte cerebral. Ver e não reconhecer o outro em suas
vestimentas imaginárias.
Pela aproximação ou pelo afastamento, o que é isso que atrai
tanto em um hospital?
Acredito que podemos fazer uma articulação com a questão do
Saber. Saber sobre a castração. Cada indivíduo vai responder ao
vazio da castração através de seus recursos, ou seja, através de sua
estrutura psíquica. O paciente com estrutura psicótica é colocado
fora deste saber, o neurótico constrói um saber enganador, en­
quanto que o perverso, diante do não-saber, coloca um saber no
lugar da castração.
Será que o álibi do sujeito pode ser o de achar que o hospital
representa o lugar onde vai ter um Saber a mais sobre a Verdade?
Na nossa experiência no CTI, durante o horário de visitas, pode
acontecer que familiares, ao ver o paciente com o corpo ferido, não
suportem e desmaiem. Perdem a sustentação imaginária, especular,
da qual o outro é suporte.
Essa dissolução das imagens que encobrem o Real faz surgir o
objeto a em toda a sua crueza, sem o revestimento narcísico.
É necessário que o analista se ofereça como esse suporte para
que o familiar, neste momento de urgência subjetiva, possa se
refazer do "susto".
Podemos dizer que essas experiências são da ordem do horror
mas também são da ordem do júbilo, da fascinação.
Sabemos que a experiência da fascinação se produz no limite
do Imaginário. O eu já não se reconhece mais porque lhe faltam as
Imagens em que se ancorava. Assim, tanto a fascinação quanto o
Jllbilo são tentativas de recobrir essa fenda.
Consideramos o olhar como o objeto mais evanescente, mais
próximo da castração, por isso, do desejo.
20 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Em seu l ivro O Olhar em Psicanálise, Nasio vai nos dizer que o


olhar tem a qualidade de não se ver. De todos os objetos, o olhar
é caracterizado por ser impossível de ser visto. Quando alguém
tenta ver seu olhar no espelho percebe que este é inalcançável.
Lacan faz uma distinção interessante entre os objetos dizendo
que o objeto oral está ligado à demanda ao Outro, o anal à demanda
do Outro, enquanto que o olhar está ligado ao desejo pelo Outro e
a voz ao desejo do Outro.
Podemos pensar sobre aquele familiar que, ao pedir para fechar
os olhos, estava pedindo ao Outro que fosse visto em seu desejo?
Como um recobrimento fálico, um véu para suportar tanta dor?
Que função introduz o véu?
Em seu livro A Lógica na Direção da Cura, Miller nos diz que ver
algo sob um véu tem uma propriedade estrutural essencial. Através
do véu pode-se fazer existir o que não existe; assim sua propriedade
é a de realizar a falta. Talvez por aí possamos dizer que aquele
familiar, através do véu, pôde ver "aquilo" que não queria ver. O
véu é considerado um operador Imaginário que realiza a falta.
No hospital, podemos pensar que esse operador Imaginário, o
véu, torna-se um recurso fundamental para que o sujeito suporte
as marcas daquilo que viu de frente e não suportou: a castração.
Assim, observamos que, apesar de acompanhar o que se passa,
de se ter acesso aos boletins médicos, a pessoa só vê, só se dá conta
daquilo que pode suportar naquele momento. A posteriori é comum
ouvirmos: "Eu sabia, eu estava vendo mas só agora está claro". O
véu. O véu tem a propriedade também de velar aquilo que não pode
ser revelado.
Uma criança é internada na UTI pediátrica. Viajava junto de seu
pai mas, após um acidente, vê o pai morrer ao seu lado.
A família, muito angustiada, preocupava-se em como abordar
isto com o filho já que ele não queria saber nada.
Através da escuta do psicanalista ele pôde falar de si, de sua
vida, de sua família e de seu pai. Quando então fala do pai pede uma
"audiência" com sua mãe.
Percebemos nessas situações como o olhar expressa e traduz
os não-ditos. Há olhares entrecortados, olhares desviados, olhares
de cumplicidade. "Eu pude ler em ·seus olhos."
OLHAR COMO G ESTO ... 21

Em seu texto "A carta roubada", Lacan trabalha a questão do


olhar dizendo de três tempos, ordenando três olhares, vivenciados
por três sujeitos. O primeiro tempo diz de um olhar que não vê
nada; o segundo, de um olhar que vê que o primeiro não vê e se
engana "não vendo" o que o outro esconde; "e o terceiro é o que vê,
desses dois olhares, que eles deixam a descoberto o que é para esconder,
para que disso se apodere quem quiser... "5
Há um tempo necessário para que o fato, advindo do Real, possa
fazer parte da história do sujeito, possa ser inserido em sua cadeia
de significantes. Só então pode ele falar "daquilo" que entre olhares
já era sabido.
Como é importante que o analista construa, com delicadeza,
este tempo com o sujeito!

Do Olhar ao Outro a um Olhar Inconsciente

Palavras de uma médica pediátrica sobre um atendimento


realizado no hospital.

"Quando chegou a ambulância, a primeira sensação foi


de 'choque'. Uma criança toda enrolada emfaixas; o rosto
estava queimado e inchado. Os olhos dos pais transmiti­
am uma intensa dor, muito profunda, quase pavor...
... Eu cheguei pela manhã para examiná-lo. Ele encontra­
va-se deitado, com todo o aparato que seu tratamento exi­
gia. Perguntei-lhe se estava bem e ele me disse: 'Estou óti­
mo' (ele sempre dizia que estava ótimo...). E mansamente
pediu-me para deixá-lo ir ao banheiro, pois não estava se
adaptando à comadre... Fizemos um grande esforço para
tirá-lo do leito e pra ajudá-lo a andar pela primeira vez
após o acidente. Ele subiu o degrau que levava ao banhei­
ro, parou diante de sua imagem no espelho e exclamou:
'Nossa, eu estou horroroso!' ."6
Este episódio ilustra o momento em que a criança, no Estádio
do Espelho, se volta para a mãe na tentativa de ler em seu olhar um
sinal de reconhecimento.
22 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Por estar queimado, o paciente lia no olhar das pessoas não


· mais um reconhecimento. As pessoas e mesmo ele não o reconhe­
ciam naquela imagem.
"As pessoas achavam que eu tinha virado monstro". "Parem de
olhar para mim que eu não gosto". (Sic)
Será que ao pedir que parassem de olhar para ele, para suas
feridas, seu pedido não era exatamente o de ser visto, o de fazer-se
ver?
Fazer-se ver não naquele lugar de "monstro", mas sim a partir
do "não olhar" suas feridas, seria este um pedido para que ele
pudesse ser visto enquanto sujeito?
Olhar como bordejamento, como função daquilo que não se
completa. É também pelo olhar do Outro que ele foi, aos poucos,
reconhecendo-se naquela nova imagem, já que o corpo despedaça­
do encontra sua unidade na imagem do outro, que é sua própria
imagem antecipada.
E é por isto que dissemos que o olhar da mãe é tido como
precursor do Estádio do Espelho. O eu construído à imagem e
semelhança do outro está funcionando no registro narcísico e vai
organizar-se neste momento através de uma imagem especular,
prematuramente ao seu domínio.
Em 1 936, Lacan, no Congresso de Marienbad, apresenta sua
teoria sobre o "Estádio do Espelho".
Por volta dos 6/8 meses, devido à falta de mielinização das fibras
nervosas, o sistema nervoso do bebê ainda encontra-se pouco
desenvolvido.
Através de pesquisas realizadas foi observado que, no que se
refere à coordenação motora, o chimpanzé, nesta fase, consegue
superar o bebê. Mas em relação à imagem, enquanto o chimpanzé
parece entender que é apenas uma imagem que está diante dele no
espelho e não mantém seu interesse por ela, o bebê demonstra
desde então uma relação diferente com sua imagem refletida no
espelho. Pelo seu júbilo sabe-se que ele não só se vê mas se
identifica com aquela imagem.
Esse momento de júbilo e fascinação antecipa para o bebê a
possibilidade de domínio, de controle, mas também vai remetê-lo,
devido a sua prematuração, a um forte sentimento de impotência .
OLHAR COMO G ESTO ... 23

Podemos assim dizer que o Estádio do Espelho é um drama


vivido pelo bebê, cujo circuito interno precipita-se da insuficiência
à antecipação. E que ele, aprisionado nesta identificação necessária,
precisa construir fantasmas que vão de uma imagem fragmentada
do corpo a uma forma de totalidade, que Lacan chama de ortopé­
dica.
Retomando a história da criança que foi queimada, como reco­
nhecê-la naquele corpo? Como reinvestir em seu corpo já que o que
se olha nele reflete uma imagem que não se reconhece? Como o
olhar do outro pode ser suporte para a reconstrução de sua gestalt?
Como ficaria para uma criança internada em uma UTIP sua
imagem corporal, narcísica, em relação à constituição de seu Eu?
Momento em que seu corpo é manipulado, i nvadido. Momento
em que pode haver uma ruptura narcísica entre criança e pais.
Sabemos da importância do olhar dos familiares e dos profis­
sionais neste momento. Trata-se de saber se essa criança ainda tem
um lugar no desejo do Outro ...
"O olhar não mente."
Vemos situações onde o sujeito tenta reconhecer-se pelo olhar
do outro semelhante. Se o olhar desse outro é interpretado como
pena, espanto, esperança ou surpresa, assim ele poderá se "conta­
giar".
Quando os pais entram na UTIP pela primeira vez para "ver" seu
filho prematuro, muitas vezes precisam da referência do profissio­
nal que o viu e através de perguntas e observações vão.se prepa­
rando para o encontro com o filho.
No caso do bebê mal-formado, a fantasia que muitas vezes os
pais costumam trazer é: "Ele viu e suportou, assim eu também
posso".
A relação transferencial, no eixo Imaginário, neste momento,
tem um efeito fundamental. Efeito especular, mas estruturante, no
sentido de possibilitar que a pessoa encontre uma ancoragem neste
outro.
Acreditamos, a partir da nossa experiência, que dentro do
possível, tão logo os pais consigam estar com seu filho, mais terão
condições, através da possibilidade de falar de seu sofrimento, de
conter a angústia advinda deste encontro com o Real.
24 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

i
O que especif camente vem do Outro? Lacan vem dizer que é a
própria imagem especular. A criança é suportada pelo olhar de um
Outro dirigido a ela. Busca esse olhar com e como um pedido de
autentificação de sua existência. É o olhar do Outro que determina
e confere existência ou não ao sujeito.

"Por isso que somos mendigos de olhares. Olhos são es­


pelhos. Cada encontro é um pedido: 'Dize-me, espelho
meu, haverá no mundo alguém mais belo do que eu?'. "7

O reconhecimento desse Outro, pela via do olhar, daquilo que


a criança e mesmo o adulto significa para ele, tem efeitos determi­
nantes na dimensão do desejo para o sujeito.
Em uma experiência violenta, de desamparo, de encontro com
o Real, o recurso Imaginário como ancoragem se faz fundamental
para o sujeito, já que estamos-tratando, neste momento, da clínica
da urgência.
O sujeito aliena-se ao desejo do Outro, através do olhar, na
tentativa de refazer sua unidade narcísica especular. Sabemos que
depois de uma experiência traumática o brilho do olhar daquela
pessoa nunca mais será o mesmo.
Pensando no trabalho do hospital, diante de um paciente
vivendo um momento de extremo desamparo, é função do analista
sustentar o Imaginário até que o sujeito possa aceder novamente à
sua cadeia de significantes. E isto sem perder de vista que a direção
de seu trabalho visa interrogar a posição do sujeito. Sustentando
uma pergunta, um silêncio, uma pontuação, um olhar; o olhar do
analista precisa ser um convite para que o sujeito possa desviar seu
"olhar ao Outro" para dirigir-se a um outro olhar, inconsciente.
A presença do analista faz com que se propague não somente
a comunicação da palavra do paciente, mas fundamentalmente o
deslocamento do discurso.
Palavras de uma paciente: "Você abriu meus olhos".
Abrir os olhos como gesto daquele que desperta. "O homem com
o analista desperta."B
OLHAR COMO G ESTO... 25

REFERÊNOAS BIBLIOGRÁFICAS

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Psicanálise do Campo Freudiano. Belo Horizonte: O lutador, 1 995.
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WINE, N. Pu/são e inconsciente: a sublimação e o advento do sujeito. Rio de janeiro:
Jorge Zahar, 1 992.
A Criança que se Cala

lisley Cristina Silva de Oliveira

"
... umreal, sob a forma
de um impossível de dizer."

Michéle Faiure Jussiarux

S ituações de crises são vividas a todo momento num hospital


aeral e são caracterizadas por dor, doenças, perdas, desespero , de­
aamparo, enfim, possibilidade de ruptura da cadeia significante do
aujeito ali i nternado.
Nessa possibilidade de destituição o que acontece é que a
pessoa pode passar de sujeito do próprio desejo a objeto de desejo
do Outro. Desse Outro que "sabe" o que é melhor para ele, desse
Outro que foi encarregado da tarefa de tratar e, quem sabe, de
curar . .
.

Considerando essa destituição, o sujeito se vê, então, à mercê


do Outro: os horários para remédio, banho, alimentação, etc. são
fixados pelo Outro, esteja ele encarnado pelo médico, enfermeiro
ou atendente.
E com a criança?
A criança já se encontra justamente na fase de construção e
constituição da sua subjetividade.
" ... é inicialmente no Outro que o sujeito apreende essa
causa de desejo, da qual ele poderá, ao mesmo tempo, as­
segurar o lugar como objeto imaginário do desejo do Ou­
tro enquanto ( cp) e encontrar a via significante de suas
-

pulsões ($ <>D) no único ponto que responde a isso: S(l.)."


Robert Lefort em: A Criança no Discurso Analítico
27
28 PSICAN ÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Mas, e quando a criança está hospitalizada?


Se sabemos que a criança necessita desse Outro desejando por
ela (por uma questão de estrutura), num hospital geral não é
diferente. Esse Outro primordial para a criança é também necessário
no hospital durante a sua internação.
A criança deixa a sua casa e a sua família, que são seus contatos
primeiros, para internar-se num hospital cujo significado muitas
vezes ela não sabe.
Por que estar ali?
Além da dor e da doença que lhe acometem, ainda tem que ir
para um lugar muitas vezes desconhecido como um hospital?
Estas podem ser algumas das muitas perguntas que a criança
se faz.
A dor de estar internada pode tomar maior dimensão se esta
criança não puder falar de seu sofrimento.
Considerar banais suas interrogações, pode ser uma tentativa
de tamponar essa dificuldade por parte do adulto, talvez por não
dar conta de escutar que a criança também sofre e, principalmente,
a criança também questiona.
L. é uma criança de cinco anos de idade. Eccontra-se internada
há doze dias. O pedido para atendê-la foi feito pelo pediatra de
plantão.
O analista vai até o leito de L., que está encolhida num canto,
numa posição fetal, com os olhos arregalados, desconfiados e
selvagens.
Estabelecer um vínculo transferencial com esta criança inicial­
mente foi muito diffcil, ela não respondia às perguntas do analista,
insistindo em seu silêncio. O analista tenta se aproximar e criar esse
vínculo.
Diz seu nome, quem é e por que está ali.
Faz algumas perguntas como nome, idade e por que ela está
ali. L. não responde.
Apenas olha para o analista ... um olhar forte e expressivo.
O analista dizia que ela não precisava falar se não quisesse e
que, mesmo assim, estaria ali.
Ficava sempre de frente para ela, sentado ao seu lado.
"Somente" se olhavam.
A CRIANÇA QUE SE CALA 29

Sempre marcava o dia e horário que retornaria para estar com


ela.
A questão era:
Sobre "o quê" essa criança não fala, sobre sua dor?
Que dor? A dor física?
Desta dor ela também não falava, nem manifestava qualquer
sentimento.
Em todos os procedimentos médicos em que é muito comum
as crianças chorarem, como por exemplo injeção, L permanecia em
silêncio, somente esticando o bracinho para que o procedimento
fosse realizado.
É a típica cri:mça que não dá "trabalho".
Mas e a outra dor?
A dor de estar ali, possivelmente destituída de sua subjetivida­
de, diante da doença e internação?
A dor da solidão e do abandono, seria dor da criança sem Outro 7

"... mas o Outro nunca considerou seus apelos em seus sig­


nificantes, o que lhe teria permitido constituir os signifi­
cantes de sua demanda e, para além desta demanda,
enunciar seu desejo... "

Françoise Koehler em: A Criança no Discurso Analítico

Seu histórico informa que L foi abandonada ainda bebê pela


mãe e que morava com o pai, a madrasta e sete irmãos.
No quinto encontro com o analista, L começou a fazer caretas
com nariz e boca sem dizer uma palavra.
O analista começa então a repetir, imitando-a a cada careta.
Quando repetia, ela sorria.
Pronto! Grande avanço.
O analista insistia e persistia, apostando em L
Apostando no sujeito que surgiria atrás daquele silêncio. Um
sujeito sofrendo, questionando e, acima de tudo, desejando.
Era preciso desejar, era o desejo do analista.
30 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

"O desejo do analista é um lugar:


... lugar da causa: o desejo do analista atira, como um
soco, um dizer sobre outro, condensa-o, causa o ato."
Nasio em: A Criança Magn(fica da Psicanálise

No encontro seguinte, o analista se aproxima primeiramente de


outras crianças, quando então L. o chama pelo nome e pede que vá
até ela ...
A partir daí L. falou.
Falou de suas dores, dessa outra dor. Contou sua história, seu
abandono, seu desamparo e solidão.
Primeiro o silêncio, depois a brincadeira através do jogo de
repetição das caretas e, finalmente, o relato em palavras de seu
sofrimento.
Fazer a oferta dessa escuta através deste lugar (analista) poderá
ajudar a criança na elaboração do processo de "interna-ação",
possibilitando a saída do imaginário para o simbólico, ou melhor,
possibilitando uma circulação pelos registros do Real, Imaginário e
Simbólico.
A criança poderá então construir um saber, o seu saber sobre
sua doença.
Mas, por que será tão diffcil para alguns adultos sustentar este
lugar e esta escuta diante de uma criança?
O que será que o adulto não consegue escutar da criança?
Será que escutar a angústia da criança faz suscitar a possibili­
dade de morte?
Será, então, sobre a morte que o adulto não consegue escutar,
muito menos falar?
Mas sobre qual morte? A do outro (no caso, da criança)? Ou a
morte dele mesmo?

" ... o silêncio, o desconhecimento, o engodo em que se re­


fugia o adulto: entre a criança e a morte, na verdade entre
ele mesmo e a morte."
Ginette Raimbault em: A Criança e a Morte
A CRIANÇA QUE SE CALA 31

Morte e sexo, dois temas tabus para a humanidade, dois temas


sem significantes para ressignificá-los.
Em "O Esclarecimento Sexual das Crianças", de 1 907, Freud já
questionava:

"Que propósito se visa atingir negando às crianças, ou aos


jovens, esclarecimento desse tipo sobre a vida sexual dos
seres humanos?... Ou será que se pretende genuína e se­
riamente que mais tarde elas venham a considerar degra­
dante e desprezível tudo o que se relacione com o sexo,
já que seus pais e professores quiseram mantê-las afasta­
das dessas questões o maivr tempo possível?'
Mas o adulto não sabe sequer o que a criança já sabe sobre sexo
e morte. E como poderia saber sem escutá-la?
Talvez deixando-a falar, estando atento às suas brincadeiras,
dando importância às suas perguntas, fazendo-se presente.
A criança, diz Freud no texto "Escritores Criativos e Devaneios":

" ... leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mes-


ma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sé-
rio, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que
a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distin-
gue peifeitamente da realidade, e gosta de ligar seus ob-
jetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis
do mundo reaf'.
Se pensarmos a morte como a impossibilidade de se comunicar
com o outro, o que pensar da criança que se cala?
O que significaria esse silêncio para essa criança?
Seria a própria morte?

BIBLIOGRAFIA

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SEMINÁRIOS E REUNIÕES DE EQUIPE - Realizados no Hospital Mater Dei-BH.
O Luto na Criança
Stela Cardoso de Carvalho

"... é adulto aquele que, qualquer que seja sua idade,


perdeu alguém."

Michel Tormier

A perda de uma pessoa amada é uma das experiências mais do­


lorosas que o ser humano pode sofrer. É penosa não só para quem
a experimenta, como também para quem está junto de quem perde.
Os efeitos da perda em adultos e crianças são diferentes? Quais são
esses efeitos? O objetivo deste trabalho é falar sobre o luto na cri­
ança, mas tratarei, inicialmente, do luto de modo geral. Em nosso tra­
balho desenvolvido no hospital, especificamente no Cfl, nos defron­
tamos todo o tempo com as perdas sofridas pelos parentes que
acompanham a pessoa acometida por doença ou acidente. Atende­
mos não só o paciente mas também os familiares que o acompa­
nham. Tentamos construir um espaço para a fala, para o sujeito po­
der falar do sofrimento e da dor deste momento difícil. "Hoje mais
do que nunca se morre no hospital. A morte recuou e trocou a casa pelo hos­
pital: está ausente do mundo familiar do dia-a-dia." Sendo assim, como
a criança, hoje, participa da dor da perda de uma pessoa importante
em sua vida? E o luto, como ele se dá?
As crianças raramente acompanham seus familiares ao hospital
e, quando lá aparecem, quase sempre é por insistência delas mes­
mas. Isto é justificado pelo adulto como sendo uma necessidade de
poupá-las desse momento considerado tão traumatizante para elas.
Será que participar desse momento é que é traumatizante? Como
então se processa o luto na criança? Como ela vai lidar com o vazio
33
34 PSICAN Á LISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

i nstaurado pelo desaparecimento da pessoa amada? Normalmente


não acompanhamos o trabalho de luto da criança no seu meio
familiar, mas sabemos que o nosso atendimento no hospital é um
momento fundamental revivido nos mínimos detalhes, do qual os
familiares nos dão notícias.
Diante destas questões e outras que, espero, vão surgir durante
este estudo, resolvi tomar como caso clínico o filme " Ponette, à
espera de um anjo", do francês Alain Sarde, que fala sobre uma
criança de 4 anos que perde a mãe num acidente automobilístico
do qual ela é a sobrevivente.
Na primeira cena, o filme nos mostra seu pai tentando falar-lhe
delicadamente sobre a impossibilidade de os médicos salvarem a
sua mãe. Sabemos como é difícil ser portador de uma notícia ruim
- principalmente para uma criança, especificamente a própria
filha. O pai tem a preocupação de proteger a criança contra o real
da morte e a dor da perda. Falar dessas coisas é sentir a sua realidade
com demasiada clareza.
A morte de um ser amado e muito próximo põe fim à atitude
convencional ante a morte. já não é possível negá-la: as pessoas
morrem realmente. Uma nova relação com a morte se faz necessá­
ria.
A partir daí, vemos no desenrolar do filme os momentos-chave
onde Ponette vai elaborando essa perda - perda real do objeto de
amor, mas essa morte não é assimilada imediatamente. É preciso
uma operação que permita a essa criança processar essa perda em
seu psiquismo. É preciso que se processe o trabalho de luto. Como
isto acontece? O que é este trabalho de luto? Qual a sua função?
O luto, antes de Freud, era tema de que se ocupavam poetas,
artistas e escritores.
Freud define o luto como um afeto normal:

"... embora o luto envolva graves afastamentos daquilo


que constitui a atitude normal para com a vida, jamais
nos ocorre considerá-/o como sendo uma condição pato­
lógica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos que
seja superado após certo lapso de tempo, ejulgamos inú-
O LUTO NA C RIANÇA 35

til ou mesmo prejudicial qualquer interferência em rela­


ção a ele".
No fi lme, Ponette não perde só a mãe. Essa morte provoca uma
série de mudanças que excedem o simples desaparecimento da
pessoa. Logo após o enterro, ela vai morar na casa da tia Claire,
viúva e mãe dos seus dois primos, Mathias (que parece ter a mesma
idade dela) e Delphine (um pouco mais velha). Mesmo que esta
estada seja provisória, acontece simultaneamente à perda da mãe.
Ponette "perde um lugar" - antes, pai, mãe, ela e a casa onde
moravam. Havia uma estrutura familiar com seus lugares definidos;
depois, com a saída de um ... mais uma perda.
No caminho para a casa da tia, quando a menina é infonnada
pelo pai que eles estão i ndo para lá, ela pergunta: Lá tem leões?"
"-

Que medos podem estar aparecendo aí nesta fantasia? De que ela


está falando? Poderia estar dizendo dos riscos e da falta de garantia
que a vida agora lhe apresenta?
O que pode significar para a criança a morte de uma pessoa
querida? O que ela entende por morte?
Muitos dirão que a criança não sabe o que é a morte. Mesmo
quando se refere a esta, a idéia que dela faz não é a nossa, isto é,
ela não tem qualquer idéia da morte.
E quanto a nós, adultos?
Quem pode ter a pretensão de saber o que é a morte?
No curso normal da vida, mesmo crianças muito pequenas
encontram exemplos de mortes - um besouro morto, o passarinho
morto na gaiola, o cachorrinho da casa que morre. O fenômeno é
intrigante - ao contrário de todas as suas experiências anteriores
com o animal, a criatura morta está imóvel e não reage a nada que
lhe é feito. Em geral isto provoca curiosidade. O que aconteceu?
Será que ele está dormindo? Nenhuma criança fica muito tempo
nessas circunstâncias sem nenhuma explicação, que lhe será dada
por um adulto ou por outra criança. A partir dessas explicações, ela
desenvolve suas próprias idéias.
- A mamãe morreu. Sabe o que isto significa? - pergunta o
pai.
- Sim, ela vê as coisas com o espelho mágico - responde
Ponette.
36 PSICANÁ LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

A criança parece perceber a morte na realidade do desapare­


cimento do campo visual. Por acaso o mais insuportável na perda
seria o perder de vista? Essa a dimensão do imaginário que rege o
funcionamento mental em seu nível mais primitivo.

"A morte é a curva da estrada,


Morrer é só não ser visto."

Fernando Pessoa

Mas, o ser humano se rege pela dimensão simbólica, instaurada


por uma operação que se funda num campo de perda advinda do
real. A criança, desde muito cedo, convive com a angústia que surge
com o desaparecimento e a surpresa do reaparecimento da mãe. O
simples tampar e destampar do rosto é uma analogia desse jogo
que permite o processo de simbolização. Podemos observar como
são repetitivas na criança essas brincadeiras - deixar cair coisa,
esconde-esconde - que marcam esta etapa como forma de acalmar
a angústia suscitada pela ausência.
Voltando ao filme, chama-me a atenção uma cena em que o pai
de Ponette pede para ela lhe prometer que nunca iria morrer,
impondo-lhe um ritual de jurar e cuspir no chão para concretizar a
promessa. É uma cena de uma emoção muito intensa, na qual a
menina chora muito. É interessante a observação de Ponette, diante
do pedido do pai: - Nem quando eu for bem velha? Isto pode nos
levar a pensar que, para ela, a morte existe, nem que seja só como
privilégio da velhice. E para ele, o pai? Quando será que se começa
a negar a morte?
Falar da morte é essencial tanto quanto escrever sobre suas
conseqüências. A nossa experiência nos permite concluir que o
progresso da medicina contribuiu para o aumento da média e da
qualidade de vida. Adoecer hoje não significa necessariamente que
se vá morrer. Não é fazer como Epicuro que escreveu: "Enquanto se
está vivo a morte não existe e quando ela ocorre não se é mais, logo a
morte não existe". Freud também afirma, em vários de seus trabalhos,
que não existe a noção de morte no inconsciente. Mas a morte
l'Xiste como um fato e se não nos agrada pensar nisso, a morte do
O LUTO NA CRIANÇA 37

outro assim nos obriga. Qual é então a noção que o homem tem da
morte?
"A morte, seguramente nela se pensa, no ponto mesmo
que ela pode dar a ilusão do pensamento: é um significan­
te que conduza dizer toda uma outra coisa. Se ela conduz
ao dizer ela pode muito bem inibir, ao mesmo tempo,
ação, palavra e pensamento, como Freud demonstra. A
morte, esta não se reúne a nada; não se pode sacá-la como
um objeto. Falar dela ou pensar sobre ela não concerne
o fato de gozá-la verdadeiramente."
N"uma sociedade de felicidade e bem-estar, parece que não há
lugar para o sofrimento, a tristeza e a morte.
Segundo Philippe Aries, autor de Sobre a História da Morte no
Ocidente - desde a Idade Média, o homem durante muito tempo foi
senhor absoluto da sua morte e era natural que ele soubesse que
ia morrer. "Tal como se nascia em público, morria-se em público."
As sociedades criaram rituais, cerimônias, que configuram este
caráter público, oficializando inclusive o tempo dedicado ao luto.
O luto constitui um trabalho psíquico de elaboração. Vejamos então
como se processa esse trabalho, no caso da criança.
Segundo a psicanalista Guite Guérin, são necessárias certas
condições para que o luto de um objeto de amor se realize, tais
como uma relação com o outro sem que a ambivalência que lhe é
própria negativize o amor; sem que haja uma identificação total
com o morto; aceitação da morte do outro bem como da sua
própria; e que esta situação atual não remeta a perdas anteriores
não elaboradas.
O luto é um processo que leva à estruturação do sujeito. O
mecanismo da identificação com o morto, onde a criança assume
alguns traços e hábitos da pessoa morta, mantendo-a viva em si
mesma, permite que, repetidas vezes no jogo ou na brincadeira, a
criança represente a singularidade desse objeto de amor, para
sempre perdido na realidade, como numa peça teatral, onde ela
sobrevive identificada com heróis e com as múltiplas mortes que
pode "viver". Paradoxalmente, para poder separar-se, deve-se estar
muito unido; é esta união que permite a condição da separação.
38 PSICANÁ LISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

J.D.Násio acrescenta:
"Não creio que a origem da dor seja a separação. Não,
eu penso, ao contrário, que a dor surge no momento em
que há um superinvestimento da representação do objeto
amado ejá perdido. O que dói no trabalho de luto não é
a ausência do ser querido, mas o reencontro, o investimen­
to, o superinvestimento da representação do ser querido.
Freud fala de ligação e de desligamento dos repre­
sentantes do objeto; acredito precisamente que a dor é
produzida no momento em que é preciso localizar, cen­
tralizar a representação do objeto perdido, como se dian­
te de uma massa enorme de representações você devesse
reparar, cernir, localizar a representação da qual é pre­
ciso se separar. É aí que a dor vem, é isso que dói. Antes
de você se separar, é preciso achar o representante do ob­
jeto do qual você deve se separar. O que dói é reencontrar
novamente a coisa amada para poder enfim se destacar
definitivamente... O que dói é amar novamente, sim, mas
sem que haja a pessoa imaginária que sustenta este
amor".
(Entrevista norueguesa)

Para a criança, perder um dos pais - seu objeto de amor, é


perder também uma referência identificatória, diferentemente do
adulto que somente perde um objeto de amor. Freud vai dizer que,
quando ocorre uma perda do objeto, há uma regressão à identifi­
cação, através da qual a criança se apropria dos traços do objeto
perdido, inserindo-o então em sua economia psíquica. Não é ocupar
o lugar do morto, mas, com o trabalho de elaboração, o obj eto é
assimilado e introjetado simbolicamente. Por isso o trabalho de luto
é estruturante - através da identificação estrutura-se a subjetivi­
dade.
No filme, durante o velório, Ponette e os primos falam, entre
si, da morte, do depois da morte:
- Vão trancá-la com pregos! (Mathias)
- Ela vai para o paraíso. É bonito, ela vai gostar! (Delphine)
O LUTO NA CRIANÇA 39

- Se estiver bem enterrada não tem como voltar. (Mathias)


- Jesus pode colocá-la lá em cima? (Ponette)
- Agora não, mas depois ela pode sair. (Ponette)
- Não dá para sair, senão a gente vira zumbi. A cruz pesada
não deixa ninguém sair. Ficam parecendo estátuas. (Mathias)
- Gosto de viver em cima da terra, detesto ver morto. Se não
puser travesseiro no caixão ela vai se sentir enlatada. Mas se puser,
sua mãe vai dormir muito tempo. Não se preocupe, ela tem um
travesseiro. E além disso, vai dormir muito tempo. (Mathias)
Por estas falas podemos perceber como a criança cria suas
teorias sobre o que não conhece: a morte ... a vida. Freud diz que:

"Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega


a sua primeira florescência, entre os 3 e 5 anos, também
se inicia nela a atividade que se inscreve na pu/são de saber
ou de investigar. Não são interesses teóricos, mas práti­
cos, que põem em marcha a atividade investigatória na
criança. A ameaça trazida para suas condições existenci­
ais pela chegada conhecida ou suspeitada de um novo
bebê, assim como o medo de que esse acontecimento tra­
ga consigo a perda de cuidados e de amor, toma a criança
pensativa e perspicaz. O primeiroproblema de que ela se
ocupa, em consonância com essa história do despertar da
pu/são do saber, não é a questão da diferença sexual, e
sim o enigma: de onde vêm os bebês? Esse também é o
enigma proposto pela Esfinge de Tebas".
Muitas pessoas recordam com clareza as "teorias" em que já
acreditaram sobre a origem dos bebês: eles sairiam do seio, ou o
umbigo se abriria para deixá-los passar; os filhos chegam quando
se come alguma coisa (como nos contos de fada) e nascem pelo
intestino, como na eliminação de fezes. Assim como as crianças
tentam, através de teorias, explicar o nascimento, vemos no filme
essas crianças procurarem uma explicação para a morte.
Quando uma família perde um dos membros, é importante
tentar manter um relacionamento onde se construa um espaço para
que se possa falar da dor, do sofrimento que causa esta perda. Isso
40 PSICANÁ LISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

parece ser possível quando se aceita a morte como fazendo parte


da própria existência.
Ponette não tinha esse espaço para falar da sua mãe. O pai teve
que viajar para Lion , deixando-a na companhia da tia e dos primos.
Refugiando-se na fantasia, ela diz que sua mãe vem brincar com ela
nos sonhos.
- Perguntei a ela onde ela mora. Ela disse que, no céu, há
castelos de todas as cores. O meu, o castelo da mamãe, é vermelho
com o telhado de ouro. É lá que nós moramos.
- É aqui que você mora - retruca Mathias.
- À noite, eu moro com a mamãe. De dia eu moro aqui. Mas
eu prefiro a noite.
Isso se mantém durante algum tempo: Ponette sozinha com
seus sonhos, com a imagem de sua mãe, não querendo brincar com
os primos. Permanece mais no seu quarto, deitada cuidando da
Yoyotte, sua boneca.
Mas, como era esperado, a fantasia não se sustenta perante a
realidade. Logo a mãe deixa de aparecer nos sonhos da filha e ela
então busca ajuda no adulto mais próximo, no caso, a tia Claire, que
lhe dá informações segundo a sua crença religiosa:
- Vem cá. Agora vou contar uma história de verdade. Quando
Jesus morreu, fecharam seu túmulo com uma grande pedra.
- Para ele não sair? - pergunta Ponette, demonstrando
grande interesse.
- Não, para ele poder descansar. Mas, quando vieram vê-lo no
cemitério, a pedra tinha se mexido e Jesus não estava mais lá. Viram
então dois homens que brilhavam. Sabe quem eram?
- Eram príncipes?
- Não, eram anjos. Disseram quejesus não estava mais morto,
que vivia. Jesus veio rever os amigos no mesmo dia. Eles tiveram
medo. Pensaram que fosse um fantasma.
- Delphine falou que os mortos viram espíritos.
- Mas não era um espírito. Jesus estava vivo, tinha ressuscita-
do.
- Ele veio igual?
- É , ele agora está vivo no céu.
- E a mamãe?
O LUTO NA CRIANÇA 41

- 0 quê?
- Vai fazer como ele, vai voltar?
- Está com Jesus. Um dia, todos vão ressuscitar, sua mãe, seu
pai, todo mundo.
- Quando vai ser?
- Vai ser quando Deus quiser.
Depois dessa conversa, Ponette passa a esperar a volta da mãe,
agora não só nos sonhos, mas na realidade mesmo. Mesmo quando
o primo argumenta que o pai dele morreu e não voltou (é a única
referência à morte do pai, só aí ficamos sabendo que eles haviam
perdido o pai - pois não se falava disso), ela responde:
- Porque ninguém o esperou!
E se Jesus volt<?U para seus amigos, por que sua mãe não voltaria
para ela?
- Eu sou mais que uma amiga. Ela é minha mãe!
Quando a tia é avisada pelos filhos de que Ponette não quer
brincar e só fica mesmo esperando de "verdade" o retorno da mãe,
ela fica preocupada, porque inclusive a menina pára de se alimentar
e se isola.
- Ponette, eu lamento.
- O que é lamento?
- Quer dizer que ... ela não voltará.
- Vai, sim!
- Não, Jesus voltou mas os outros não podem voltar.
- Eu sei voar... ( ela já não escuta mais)
- Ela pode te ver, ouvir, ela te ama ... mas não há como voltar.
Não sei explicar de outro jeito. Pára, pára com isso! Ela não voltará,
Ponette, vamos entrar. Hoje sou eu quem manda.
- Não quero, quem manda em mim é Jesus.
- É , mas você está comigo e Jesus quer que eu cuide de você.
Leva a menina à força.
Em diferentes famílias, e diferentes ambientes culturais, as
explicações dadas a uma criança sofrem enormes variações e cren­
ças. Cada um tem sua maneira de dizer da vida e da morte. Diante
da falta de recursos simbólicos da criança, essas explicações religi­
osas, que incluem conceitos tão abstratos sobre a morte e o que
acontece depois desta, dificultam sobremaneira a aceitação pela
42 PSICAN ÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

criança da perda de pessoa tão importante para ela, como a mãe,


abrindo com isso a possibilidade de um encontro com esse objeto
de amor num outro nível - o do i maginário.
Se o adulto usar algo próximo do mundo da criança, como a
morte de bichos, insetos, afirmando-lhe que eles não voltarão a
viver e que um dia todos morrerão, inclusive ele e a própria criança,
esta pode não acreditar a princípio mas acabará aceitando a palavra
do adulto. Se ele lhe disser que ela pode sofrer pela morte de um
ente querido, estará com isso possibilitando a vivência do real de
uma perda.
Não é o que vemos no filme, quando a tia Claire fala da morte
espiritual e não da morte real, dificultando o trabalho de luto para
Ponette. Ela não consegue falar da perda do marido. Paira um
não-dito sobre a morte abrindo um abismo entre o que é dito pela
tia e o desejo de Ponette. A partir daí, esta acredita num reencontro
com a mãe.
Como é difícil, mesmo par:: o adulto, acreditar que uma pessoa
que se ama está morta para sempre e nunca mais voltará! Constatar
que a morte é um fim! Imagine então para a criança.

"Poder aceitar a morte do outro é aceitar um nunca-mais


de olhar, de voz, de ternura, bases das trocas com o outro,
uma ausência defuturo no projeto imaginário comum, o
pontofinal na partitura de um dos instrumentos de nossa
sinfonia fantasmática."
Segundo Freud, "o luto tem uma tarefa psíquica bem precisa a
desempenhar: sua função éfazer com que as lembranças e esperanças do
sobrevivente se desvinculem do morto".
Se a criança consegue, no seu processo de luto, aceitar tanto
que ocorreu uma mudança no seu mundo exterior, como também
a necessidade de realizar mudanças correspondentes em seu
mundo interior e representativo, isto é, a retirada da libido do
objeto perdido, mantendo um traço do mesmo, aí a perda no real
pode se transformar numa falta simbólica.
Ponette, cansada de tentar falar com a mãe e não conseguir, vai
até o cemitério para encontrar-se com ela. Procura por ela, chama-a,
e quando não vê resultado nenhum, num ato desesperado tenta
O lUTO NA CRIANÇA 43

cavar o túmulo da mãe. Nesse instante, podemos pensar que o


cineasta usa do recurso da aparição da mãe como forma de dizer
do processo de simbolização que a criança efetua no fi nal do filme.
- Vim para parar de se preocupar. Vim em carne e osso para
não te assustar, mas sou eu.
Ponette passa a mão suja de barro no rosto da mãe carinho­
samente e diz:
- Eu te procurei com Deus.
- Eu sei. Eu ia embora. Mas quando ia partir para sempre, ouvi
uma voz. Era você. O tempo todo, o tempo todo ... Eu te chamei,
mas foi para dizer que não adiantava mais. E depois recomeçou.
Esta noite você me abraçou. Um espírito tão feliz como sua mãe
não morre. Amanhã Xavier (o pai) vai te levar à festa e você vai se
divertir. A gente pode morrer, mas tem de morrer bem vivo. Mas
depende de você. Aproveite ... tudo, todos. Depois você pode
morrer. Não podemos debochar da vida. Quando quiser, pule e
pegue uma lembrança comigo dentro.
Neste momento, Ponette sente frio, mas a mãe havia levado
uma blusa para ela. Veste na menina, dizendo:
- Agora, precisa ir. O papai vem te buscar. Seja alegre com ele.
Não fico triste quando brinca com ele.
Além da mãe liberar a filha para amar o pai, ela pode também
investir em outros objetos de amor. Deixa com ela a "blusa"
simbolizando o "traço" necessário para que a criança possa perder
a mãe: ela já a tem dentro de si como lembrança.
O objeto perdido obriga a um trabalho de luto, que exige um
tempo onde haverá uma idealização da pessoa amada. Essa ideali­
zação se dá através de um superinvestimento seguida de desinves­
timento quando então a perda do objeto de amor se consumará.
Mas o desaparecimento do ser amado pela morte abre um buraco
que não conduz obrigatoriamente à perda do objeto. Para que esse
objeto atinja esta dimensão significante de objeto perdido para
sempre é preciso que se revista das características do sem retomo
possível. Segundo Guy Clastres,

"é o sem retomo possível que faz passar do registro do


simbólico ao registo do real. No luto, o retomo impossível
44 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

do objeto lhefaz resgatar aquilo que Lacan designou: um


ponto de ex-sistência absoluta".
Tempo conclusivo da operação simbólica que Freud chamou de
castração.
A perda de objetos aos quais a libido está ligada provoca aquilo
que Freud definiu como defusão da pulsão, promovendo a domi­
nância temporária da pulsão de morte com todas as características
que lhe são próprias.
O trabalho de luto reorganiza o campo pulsional, possibilitando
que ele se restabeleça em torno de um representante do objeto
pulsional.
Para concluir, convém ressaltar aqui a Ql'estão que se configura
através do caso da pequena Ponette.
Trata-se de distinguir o que é objero de amor e o que é objeto
de desejo na teoria psicanalítica.
O caso Ponette nos mostra uma situação apropriada para
ilustrar todo o mistério da pretensa regressão do amor à identifica­
ção: o que não podemos assegurar do lado de fora, guardamos sua
imagem do lado de dentro.
Desta forma, vamos constituindo nossa subjetividade, que con­
taria a história de nossos amores através das imagens armazenadas
em nosso eu.
Ponette perde um objeto de amor, o introjeta através da
identificação com uma parte desse objeto e assi m segue seu cami­
nho por esta vida que lhe apresentará novas perdas e novos amores.
Mas, o objeto de desejo é outra coisa. O objeto de desejo é
causa de desejo e é, por sua vez, objeto da pulsão. Portanto, ele é
articulado ao campo do real uma vez que a pulsão é por excelência
pulsão de morte. Ele surge como efeito da operação simbólica que
produz a liberação da pulsão da cadeia onde ela estava fixada,
aderida.
Quando Ponette efetua seu luto, a pulsão está liberada para se
articular em outros objetos, inclusive "brincar com o pai", como lhe
indica a mãe. Durante o processo de luto, a pulsão �tá prisioneira
do acontecimento, e inundada pela cadeia significante que envolve
o fato traumático. Mas, no final, ela é liberada e o efeito disso é a
O LUTO NA CRIANÇA 45

causa de desejo. Enquanto o objeto de amor ficará guardado em


sua lembrança.
"Todo o trágico se baseia numa contradição irreconciliá­
vel. Tão logo se torna possível uma acomodação, desapa­
rece o trágico."
Goethe

BIBLIOGRAFIA

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Uma Verdade com Estrutura de
Ficção
Psicanálise e o Fantasma na Prática
H ospitalar com Crianças

Sandra Seara Kruel

Introdução

E m um instituto de cegos, uma interna sofreu sua segunda ci­


rurgia para glaucoma. Ela estava em acompanhamento psicológico
com uma estagiária, antes e depois da cirurgia. No pós-operatório,
ela chora ao falar do que aconteceu a seu corpo, fato que, revela, não
havia ocorrido na primeira cirurgia. O psicólogo, supervisor do es­
tágio, avaliou esta primeira reação: "Pelo menos ela pôde chorar!".
Agora, podemos perguntar: por que essa reação de choro pode
ser considerada benéfica de alguma maneira? Vamos dizê-lo de
imediato. Um sintoma psicológico se formou. A partir daí, a interna
pode investir o acompanhamento psicológico de outro valor. A
dimensão psíquica se abriu para ela, formando um novo saber sobre
si mesma.
É esse o valor de um sintoma, onde uma verdade que se
ignorava até então pode se manifestar. É o que a psicanálise nos
revela. Vejamos como. Que verdade é essa que se esconderia num
sintoma, no sentido psicanalítico do termo? No processo de uma
psicanálise, descobre-se um apego do sujeito ao sintoma fazendo
47
48 PSICANÁLISE E HOSPITAL -A CRIANÇA E SUA DOR

com que o paciente resista em abandoná-lo, mesmo que seja tão


incômodo. Freud foi quem descobriu esse "benefiçio secundário"
que acompanha o sofrimento mental.
A psicanálise institui o campo da transferência, onde, por falar
ao analista, instala-se um campo de investigação sobre o incons­
ciente, ou em outras palavras, sobre o que o sujeito não sabe, seja
sobre si mesmo, seja sobre outrem de modo geral. É nesse campo
instaurado na transferência que novos saberes sobre o sintoma
surgirão.
Mas, voltemos ao caso citado. Na primeira cirurgia, a criança
interna, sem acompanhamento familiar, não fala, simplesmente
aceita o que lhe acontece com base na confiança que tem no médico.
Na segunda cirurgia, ela tem algo a dizer sobre o que se passou com
seu corpo. O que houve com ela, só ela mesma irá elaborar ao longo
do tempo e de acordo com suas características históricas e pessoais.
Porém essa elaboração é desencadeada na transferência.
Existe um saber possível (embora sempre incompleto), e um
sujeito suposto a este saber, sobre o que acontece em nível do
corpo, sejam sensações, fruições, dores, ou vazios. Esse saber não
se restringe a um único discurso, científico, mitológico, religioso...
O processo de elaboração psíquica usa qualquer um, e cria "ficções
reguladoras", no dizer de Freud, a partir de pedaços de e<>isas
ouvidas e sentidas mas não compreendidas na época. São as fanta­
sias, ou ainda, é o fantasma. A psicanálise tem como método a
escuta da construção do fantasma sob transferência.
Da formação do sintoma passamos para a construção do fantas­
ma, na tentativa de responder à pergunta sobre a verdade que o
sintoma contém. Que verdade é essa? Como que uma verdade pode
estar contida numa ficção, numa fantasia mental?
Ao esbarrar com algo que não sabemos, ou seja, algo da ordem
do inconsciente, elaboramos ficções, fantasias, na tentativa de
compreender como nos situarmos diante do vazio de respostas.

Parte I

Vamos iniciar essa parte falando das fantasias imaginárias típi­


cas desenvolvidas pelas crianças. É típico da vida mental infantil
UMA VERDADE COM ESTRUTURA DE FICÇÃO 49

desenvolver teorias sobre a sexualidade. Freud escreveu sobre elas


i nicialmente em 1 908, no artigo "Teorias Sexuais Infantis". Nesse
artigo, Freud assinala a intensa investigação que a criança realiza
para entender alguns mistérios da vida e como ela monta suas
teorias porque sempre esbarra com o fracasso dessas investigações.
Diz ainda que a vida real fornece aguilhões, que colocam em marcha
as investigações sexuais. Dá como exemplo o nascimento de um
irmãozinho.
Outras fantasias como a da castração, da sedução, do coito
sádico são consideradas protofantasias pois são respostas diretas
às perguntas básicas: de onde vêm os bebês, como surge o impulso
sexual, o porquê da diferença de sexos. Em crianças mais velhas, a
fantasia típica de ser adotado, que Freud assinalou no artigo "Ro­
mance Familiar" de 1 909, surge na idade em que a criança se
decepciona com seus pais pois descobre que eles não são tão
eficientes quanto ela havia imaginado, que não podem resolver
todos os problemas para ela.
Com esses exemplos, o que se quer fazer perceber é a relação
do imaginário com o real. A criança, por um lado, passa por um
sofrimento, sofre uma surpresa, ou por outro, esbarra com um
mistério insolúvel, uma mudança de vida; isso é o que colocamos
como o real. As fantasias imaginárias são respostas a esse não-saber
que surge dessa maneira.
A psicanálise, baseada na noção de inconsciente, parte do
pressuposto de que não podemos saber tudo, que não há um saber
total sobre o próprio sujeito ou sobre outrem, que sempre haverá
enigmas sem respostas. Esse ponto de não-saber é fonte de eterna
possibilidade de mudança e melhoria para o homem, pois ele nunca
permanece estático no mesmo lugar.
Ao mesmo tempo, esse ponto é fonte de angústia, criando
temor, incerteza e i nstabilidade de forma geral. As fantasias surgem
nesse ponto como ancoragens mais seguras, pontos de certezas, e
por causa disso nem sempre são reconhecidas como fruto da
i maginação. O sujeito, com sua fantasia, "sabe", e se orienta com
certa estabilidade no mundo.
Desse modo, podemos avaliar o valor da fantasia na vida
psíquica. Quando se abala uma fantasia desse tipo, surgem momen-
50 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

tos de crise subjetiva, momentos de angústia. A psicanálise sabe


reconhecer que, nesses momentos, o sujeito começa a se colocar
uma série de perguntas, começa a questionar sua vida passada
tentando obter respostas.
A formação de sintomas perturbadores também pode surgir a
partir daí.
É a psicanálise que pode acolher o pedido de ajuda do sujeito
nesse momento, pois considera como inevitável que todo sujeito
passe por algum tipo de crise, mais branda ou mais forte, uma ou
várias, em algum período de sua ,vida.
Assim, no adulto e no adolescente, como é mais comum,
surgem fantasias que não se pode qualificar somente de imaginári­
as, mas sim que possuem caráter simbólico e indicam que o sujeito
está às voltas, em sua vida mental, com sofrimentos importantes e
mesmo básicos, para dizer o mínimo.
É sobre essa fantasia e sua construção cuidadosa, durante uma
psicanálise, que vamos abordar como assunto agora.
Cedo ou tarde, geralmente mais cedo do que tarde, na fase dos
porquês, a pequena criança começa a perceber que a linguagem é
o meio de que o sujeito dispõe para lidar com a questão da certeza
e da i ncerteza.
Com seus intermináveis porquês a criança localiza um ponto de
não-saber. Existem perguntas que os pais não conseguem respon­
der. O que ela se pergunta é: meus pais me dizem isso, mas o que
realmente querem dizer com isso? É a pergunta sobre o desejo do
Outro, com O maiúsculo, pois não se trata do desejo de uma pessoa
específica e sim do desejar de modo geral. Que desejam meus pais
para mim quando me dizem isso? Ou ainda, o que sou no desejo de
meus pais? O que represento para eles? São algumas das formula­
ções que poderíamos dar à questão.
Efetivamente, o desejar indica um ponto mais além (ou mais
aquém) dos pedidos que uma pessoa possa expressar. É um não dito
articulado no dito. O desejar i ndica o ponto mais inacessível, que o
sujeito sempre poderá guardar para si mesmo, sem interferência de
outrem.
UMA VERDADE COM ESTRUTURA DE FICÇÃO 51

É essa a descoberta da criança na linguagem, e que permite a


ela, a partir de então, desenvolver as respostas fantasmáticas que
permitiriam situar seu próprio desejo.
Freud nos fornece um exemplo, que é hoje clássico, da constru­
ção da fantasia até o seu ponto de menor consistência. Mostra como
o sujeito não reconhece qualquer limite em se colocar na posição
de objeto do desejo do Outro, e chega mesmo a considerar em
fantasia a possibilidade de ser objeto do gozo do Outro, na tentativa
de obter um saber sobre o que ele não sabe.
A construção se dá em três tempos nesse exemplo. A primeira
fantasia que o adulto conta de modo relutante, na análise, é a cena
onde uma criança, seu irmão, está sendo espancado pelo pai e o
sujeito tira grande prazer disso. Freud explica essa fantasia através
do Complexo de Édipo, onde o pai não figura somente como
símbolo de autoridade mas também como objeto de amor. Se o pai
espanca seu irmão, é prova de que ama a ele e não ao irmão.
A segunda fantasia é construída implicando o sujeito na sua
fantasia: é o sujeito que agora é espancado pelo pai. Essa fantasia
masoquista é um ponto limite de submissão do sujeito à vontade
de saber-se amado. Faria tudo pelo amor do pai , mesmo deixar-se
espancar. Nesse ponto, é o Outro, sob forma de superego, que
comanda o sujeito, inteiramente submetido à vontade do Outro e
abrindo mão do próprio desejo.
A terceira fantasia já é anônima: um adulto bate numa criança.
O sujeito se objetaliza, imagina perder-se numa total destituição
subjetiva. já não faz mais questão de nada, desde que não seja
obrigado a abrir mão de sua segurança no Outro, desde que não
tenha que se separar e possa contar sempre com alguém para estar
junto. É um ponto de degradação em objeto, um amor ao sofri­
mento, um último agarramento desesperado a um ponto de suporte
estável.
Geralmente, quando o sujeito se imagina nesse ponto, já abriu
mão de muita coisa e consegue perceber que sofre de maneira
ilusória, que essas são cenas de ficção que buscam enquadrar um
sofrimento real de não saber, de não existir estabilidade perma­
nente na vida.
52 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

A construção da fantasia não se limita ao descrito acima, esta é


somente uma parte num campo bem mais amplo. O que gostaría­
mos de exemplificar com isso é a capacidade do inconsciente que,
por ser estruturado como uma linguagem, permite a regulação do
sofrimento real do sujeito na vida. Através da linguagem, pela
fantasia, é possível discernir aqueles objetos que nos escapam e dos
quais nada podemos saber. Um novo saber, uma verdade surge aí.
Geralmente, no final de uma psicanálise, o sujeito não se apega
de modo insistente a sofrimentos que possam ser evitados como
modo de conservar uma estabilidade total ilusória.

Parte 11

Só o discurso psicanalítico leva em conta, como objetivo de seu


tratamento, a decalagem radical entre corpo e psíquico, entre real
e linguagem. As ficções podem ser consideradas como reguladoras
dessa decalagem, recurso à linguagem, próprio do psiquismo hu­
mano, para fora da regulação medicamentosa das sensações corpo­
rais.
Abriríamos um parêntesis, para assinalar a oposição que existe
entre fantasma e toxicomania, uma vez que esta última p rocura a
regulação do gozo fora do fantasma, através do uso de drogas. A
psicanálise assinala essa oposição sem julgamento de valor. Freud
no Mal-Estar na Cultura fala do alívio que a droga pode representar
para o homem. No entanto, o que marca uma oposição maior é que
a toxicomania, mais freqüente em nossos dias, não está dissociada
da cultura dos medicamentos de um modo geral. Fecha parêntesis.
Voltando à nossa paciente que chora, podemos avaliar quanto
que a presença de um acompanhamento psicológico, que faz falar
o paciente, pode influ enciar no procedimento médico-hospitalar.
Veja mos a ética aí envolvida.
.
O tratamento da crise pela psicanálise e seus subsídios teóricos
nos orientará para examinar essa questão. O que é uma crise
subjetiva para a psicanálise? Não é incomum se observar pessoas
que passam por morte de parente próximo, doenças, atentados,
roubos, e outras catástrofes, e não atravessam crises subjetivas,
UMA VERDADE COM ESTRUTURA DE FICÇÃO 53

como seria de esperar. As neuroses de guerra não atingem a todos


que enfrentaram essa cruel realidade. Por outro lado, incidentes de
pequeno porte, de pouca significância para a maioria das pessoas,
parecem afetar alguns com a força de uma catástrofe. A puberdade,
o casamento, o nascimento de um filho, a troca de emprego, a
aposentadoria são considerados críticos, crises "naturais" da exis­
tência social.
Qual a lógica que une essas experiências diversas? Em todos
esses exemplos, o que há de comum é que a concepção de vida,
suas fantasias não foram abaladas. A pessoa sofre mas compreende
o porquê de seu sofrimento. A crise surge quando há um abalo na
certeza que mantinha o sujeito estável até então. Algo que não se
harmoniza com a concepção de até então. Há agora um não-saber.
O atendimento psicológico pré e pós-cirúrgicos, ou durante a
i nternação hospitalar, pode detectar quando há crise subjetiva e
intervir.
A intervenção ética porém não i nclui fornecer ao paciente novas
concepções de vida para pôr no lugar da antiga que se perdeu; esse
é o método do discurso religioso.
A psicanálise trabalha de modo a fazer com que o tempo da
urgência dê lugar ao tempo de compreender. É preciso que o
paciente se coloque a falar do que está lhe acontecendo. A partir
daí é que vão poder se formular as perguntas que estabilizam a crise.
Poderíamos até mesmo perguntar o que surge primeiro, se a
pergunta ou a resposta? É a transferência ao psicanalista que
estabele�e um campo de confiança de que há um saber a ser
extraído da experiência vivida.

Parte 111

As fantasias permeiam tudo o que o homem faz. Na prática de


preparação psicológica para cirurgia ou internação, ou após inter­
nação ou cirurgia de e mergência, o psicanalista colhe, através de
seu método de escuta, as várias fantasias que se constroem. Certo
paciente deficiente mental estava convencido de que uma cirurgia
de correção de uma malformação do pênis era castigo por estar
54 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

sempre sujando o banheiro quando urinava. Certa mulher de meia­


idade fazia uma cirurgia plástica desnecessária como castigo por
não ter acompanhado a cirurgia de sua mãe que veio a falecer. Esse
é um caso contra-indicado para cirurgia. Outra ainda se choca e fica
ressentida com a dor da cirurgia plástica que ela glamourizava. O
medo de morrer durante uma cirurgia deve ser falado pois apare­
cerá cedo ou tarde.
Os exemplos são inúmeros. Os desenhos da figura humana de
crianças amputadas ou fisicamente deformadas são sempre interes­
santes. Nem citamos aqui a questão do paciente psicótico quando
de um tratamento hospitalar. O trabalho na recuperação de bebês
já tidos como terminais, pela medicina, é sempre assombroso, e já
reconhecido.
Daí vemos por que incluir o estudo do fantasma ao falar de
psicologia hospitalar. É preciso saber onde termina o processo de
um atendimento clínico iniciado em ambiente de hospital geral. A
importância desse mundo fantasmático no hospital é assinalada
quando os procedimentos médico-cirúrgicos esbarram com fenô­
menos cuja estranheza denota uma outra dimensão que não a
biológica. O psicanalista, ao trabalhar a crise subjetiva, ou ainda os
sintomas que podem vir a se instalar durante u m período de
i nternação, tem por objetivo, não transformar o paciente em um
objeto sobre o qual se aplicaria uma técnica, mas sim sustentar a
ética da psicanálise, que faz com que o paciente seja sujeito de sua
própria experiência.
A conclusão a que se chega então é de que a realidade psíquica
e o real biológico afetam um ao outro, fazendo com que a psicologia
hospitalar e a psicanálise se instaurem como prática clínica regular
no hospital geral.

BIBUOGRAFIA

FREUD, Sigmund. Sobre a teoria sexual das crianças ( 1 908). ESB. Rio dejaneiro: lma­
go, v.JX.
__ . Romances familiares. ( 1 909). Op.cit., v.IX.
__. Uma criança é espancada: uma criança contribuição ao estudo da origem
das perversões ( 1 9 1 9). Op. cit., v. XXI.
UMA VERDADE COM ESTRUTURA DE FICÇÃO 55

___ . O mal-estar na ávilização ( 1 930). Op.cit., v.XXI.


KRUEL, Sandra S. As entrevistas iniáais em psicanálise com crianças. Reverso n.32.
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LAURENTE, Eric, BIALER, M., BLANCO, B., et.al. La urgencia - El psicoanalista en la
práctica hospitalaria. Grupo de investigación y asistencia sobre la urgencia.
Buenos Aires: Ricardo Vergara Ediciones, 1 988.
Na Identificação com a Doença
Crônica, a Insistência do Sujeito

Paula Vaz Rodrigues

Falar em identificação e em cronicidade, a priori, pode sugerir


uma aproximação conceitual, já que ambos os temas portam em co­
mum a noção de um atrelamento total ou parcial do sujeito. No en­
tanto há de se fazer uma distinção.
Não há nada mais comum que a identificação; ela é inerente ao
próprio ato de pensar. Poderíamos mesmo afirmar que ela é a
operação que funda a subjetividade humana. Afinal, a identificação
primária, assinalada por Freud, constitui a alienação fundamental
que sustentará todo o campo no qual o sujeito se faz representar.
Se a identificação possibilita essa ancoragem, é por reunir em
alguém uma resposta que indica o caminho a ser tomado pelo
sujeito, que ali se apreende como verdadeiramente definido por
aquilo que não é. Revela-se aí uma outra face da identificação -
com o traço unário - a marca da falta.
Por sua vez, aquilo que é crônico, na conceituação de uma
doença orgânica para além da apreensão tomada ao nível do
constructo fundante do sujeito, traz uma marca factual, direta e
consistente.
Se nas ciências médicas o "crônico" vai estar relacionado com
a persistência temporal das doenças no que se refere à sua duração
sintomatológica, pelo viés da psicanálise poderíamos articulá-lo à
persistência de um sintoma que se impõe como repetição. Até aqui,
não haveria uma diferença significativa da abordagem médica, se

57
58 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

não fosse o caráter específico dessa repetição. O que marcaria essa


especificidade é que ela é apreendida por uma outra temporalidade.
Sendo assim, não seria o tempo cronológico o que viria medir a
duração de um sintoma, mas uma temporalidade lógica a apontar
para a existência de algo que insiste em se fazer dizer numa
tentativa de se fazer ouvir: o sujeito. Logo, o que se revela não é da
ordem da "ausculta": mas da "escuta", daquilo que é imperativo pôr
de novo. O crônico, como repetição, portaria não somente os sinais
da doença, mas uma tentativa, via exacerbação dos sintomas, de
impor a hiância constitutiva do inconsciente de onde o sujeito
dividido se confronta com sua divisão.
Com crianças portadoras de doenças crônicas (coagulopatias e
hemoglobinopatias) fez-se possível uma observação do modo com
o qual estas lidam com a cronicidade da doença, assim como do
lugar que a doença vem ocupar na estrutura familiar. Apesar da
consideração que se deve ter à particularidade de cada caso, a nível
identificatório fez-se notar uma certa semelhança na maneira pela
qual algumas acolhiam a "doença crônica". Sem pretender genera­
l izar ou defini r o processo identificatório em crianças portadoras
de doenças crônicas como um todo, o que se segue é produto de
uma escuta que a posteriori reconhece um aspecto comum presente
em grande número dos casos atendidos, o qual diz respeito ao
atrelamento da criança à significação que seria a própria doença e
as repercussões que uma representação desta ordem pode vir a
gerar a nível psíquico e orgânico.
A criança portadora de uma doença "crônica", desde sempre,
sofre os efeitos produzidos por sua doença no seu meio familiar,
visto que o sentimento de culpa e/ou revolta por parte dos pais já
toma possível um vislumbre dos transtornos futuros que esta
realidade factual virá a causar. Com freqüência, apesar do conheci­
mento probabilístico que antecede o nascimento de crianças por­
tadoras da doença, nos casos das doenças genéticas, a comunicação
do diagnóstico aos pais é seguida de espanto, como se no período
de gestação esta ocorrência tivesse sido completamente banida de
suas expectativas. Sabendo que, anteriormente ao nascimento, a
maioria das crianças já possui existência no desejo de quem as
concebe, um diagnóstico dessa ordem, tão precocemente confirma-
NA I DENTIFICAÇÃO COM A DOENÇA CRÓNICA ... 59

do, pode vir a promover u ma espécie de corte nessas expectativas


em relação ao filho, adquirindo um valor de perda que abala a
estrutura narcísica desses pais. Esta perda ou estes sentimentos
ambivalentes que aí são desencadeados, acabam buscando ser
compensados através de cuidados extremos que, ao mesmo tempo
que protegem , vão deixando suas marcas no corpo da criança.
Sabe-se que a criança portadora de uma doença crônica vai requerer
certos cuidados específicos e isso deve estar claro para os seus pais.
Existe uma série de limitações com as quais faz-se necessário
lidar. Porém, o que se verifica em · grande número é um total
tolhimento da capacidade funcional dessas crianças, na medida em
que estas se desenvolvem em meio a restrições que se situam para
além do problema real de que se fazem portadoras. Esta intensa
proteção faz com que, em nome da doença, não se deva brincar,
nem cultivar amizades que poderiam incentivar comportamentos
danosos; tampouco se responsabilizarem pelo comprometimento
escolar, já que a falta de estudo passa a ser explicada pela doença
e pelas internações decorrentes. Os pais, por se sentirem respon­
sáveis pelo corpo da criança que veio ao mundo tão insuficiente­
mente aparelhada, se colocam em posição de responder a este
corpo que passa a ser extensão do próprio corpo deles, obstaculi­
zando a demarcação de limites por parte da criança. Sem um
esclarecimento acerca da própria doença, já que este saber não se
lhe faz reservado, a doença "corre solta" e aí ela pode tudo ser...
A nível subjetivo sabemos que nem sempre há uma causalidade
psfquica decorrente de fenômenos org�nicos, nem uma relação
direta entre o lugar demarcado para essas crianças pelos pais e a
maneira pela qual elas vão apreender seu lugar, sua posição no
mundo, porém esta captação por parte da criança vai sendo cons­
truída de acordo com os fragmentos de realidade que em tomo dela
1e presentificam.
Sabemos que o ser humano, ser de pulsão, diferentemente dos
animais, não dispõe de todos os elementos que anteriormente vêm
marcar suas ações, predizer os caminhos a serem tomados, o objeto
aexual a ser escolhido ou os nomes com os quais ele vai se definir.
Isso não quer dizer que ele também não tenha trilhas traçadas desde
1empre sob a forma do D iscurso do Outro, isto é, aqueles ditos
60 PSICANÁliSE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

referentes ao desejo deste Outro. Porém, o desejo do Outro é ao


mesmo tempo a falta do Outro (,() e por isso não responde total­
mente ao que o sujeito é. Algo do real da pulsão persiste, não
parando de não se inscrever no Outro, algo impossível de ser
nomeado e é esta a forma de o sujeito ex-sistir- fora da linguagem.
Diante dessa falta de nomeação, o sujeito vai viver na busca de uma
significação que o defina, garantindo-lhe existência como ser mar­
cado por algo que desde sempre sabemos perdido ou nunca tido,
em se tratando de ser de linguagem.
O sujeito se constitui via Outro (este Outro da linguagem que
inicialmente se faz encarnado pela figura da mãe), sendo esta quem
vai significar-lhe a realidade, já que este mundo tem que ser
representado por intermédio do simbólico. É na relação com esse
Outro que se faz possível reconhecer-se num corpo. A criança,
transformada na imagem do Outro, passa a ser aquilo que o outro
(especularmente) diz que ela é. Por outro lado, nessa relação
imaginária com a mãe nem tudo é significado ou nomeado, sobra
sempre um resto, que é o que movimenta o sujeito no sentido de
buscar se fazer representar. E é aí que se estrutura o movimento do
desejo ...
Se por um lado o psiquismo humano se constitui nesta hiância
que vem a ser o próprio desejo (campo da falta, do vazio de
significação), este lado da nossa estrutura é a verdade mais repudi­
ada por nós. Há uma tendência do psiquismo de aderir às formas
consistentes, que poderiam dar a ele um sentimento de completude
ou coerência. Paralelo a essa falta, um outro campo se constitui,
formado pelas identificações, que manterá com esse campo da falta
uma posição dialética. O campo das identificações é veiculado pelo
discurso da mãe e conterá certos traços que perpassam as gerações,
repetindo certas posições que nos fazem pensar num j ogo de cartas
marcadas. Porém, estes lugares marcados não se restringem ao que
é veiculado pelo discurso da família. Não se trata apenas de algo
imposto pelo discurso, mas de uma participação do sujeito, na
medida em que ele se identifica a estes lugares mal-ditos.
Penso em um cliente que poderia ilustrar esta questão:
Esta criança, a quem chamarei de Carlos, tinha oito anos e era
portadora de hemofilia.
NA IDENTIFICAÇÃO COM A DOENÇA CRÓNICA ... 61

Carlos já era conhecido pela equipe da i nstituição que freqüen­


tava devido às suas contínuas internações hospitalares nos últimos
anos.
A queixa trazida pela mãe situa-se em tomo das lamentações
colocadas pelo filho, que estava sempre dizendo estar cansado e
querendo morrer. Ela então relata que também está muito cansada,
pois vive para levar o filho ao médico, que esse lhe dá muito trabalho
e essa situação vai acabar matando-a. Ao dizer da preferência de
que o filho não tivesse vindo ao mundo, ela conclui que sua sina é
cuidar dele. Dentro dos cuidados, incluía estar sempre atrás do filho
buscando saber se este tinha fome ou sede, numa tentativa de
antecipar suas vontades. Ao mesmo tempo em que se colocava
nesta posição, esta mãe queixava-se com o filho o tempo todo,
explicitando-lhe a culpa por não poder trabalhar, cuidar de si
própria ou mesmo separar-se do marido com o qual mantinha um
relacionamente turbulento.
Carlos inicialmente pouco fala durante os primeiros atendimen­
tos, o que não quer dizer que com isso não diga muita coisa. Chega
sempre dizendo do cansaço, querendo dormir, insinuando que ali
era mais um lugar no qual era obrigado a estar e esperando
paradoxalmente permanecer nesta posição e, ao mesmo tempo,
poder dizer outra coisa. Ao repetir nas sessões as falas ditas pela
mãe, deparou-se com o comentário do analista que deixa escapar
um dizer que a posteriori assume um valor de ato separador: "Você
está parecendo mulher velha queixando da vida; se é assim pode ir
para casa dormir". Nessa hora Carlos assusta-se e diz: "Pera aí,
mulher velha não; mulher velha é m inha mãe. Eu sou homem e
homem não precisa dormir o tempo todo ..."
Trabalhando com essa criança, fez-se possível perceber o lugar
no qual esta era colocada pela constelação familiar e como ela
respondia de forma fixada nesta posição. Ocupando o lugar de
des-culpa dessa mãe, para não querer saber de si, Carlos era a cruz
de que ela não podia abdicar para seguir a sua sina. Era como doente
que ele interpretava ter um lugar no desejo dessa mãe - isto é, ter
um valor fálico, como a psicanálise vai dizer. Ainda que fosse um
falo negativizado, doente, era enquanto tal que se fazia apêndice
essencial ao cumprimento do destino materno sofredor.
62 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

Para os pais, a doença do filho se!Via de apoio para a encarnação


das d ificuldades do casal, enquanto a criança como um pivô, encar­
nava este lugar ocultando as reais dificuldades dos pais, promoven­
do assim a estabilidade do casal. Ao preço do sofrimento fisico,
Carlos era acolhido nesse desejo do Outro; totalmente aí capturado.
Carlos vivia internado; nos dois sentidos do verbo. As interna­
ções talvez fossem a única separação possível, tanto para ele como
para a mãe, nesse momento de agravamento dos sintomas. O que
se ressalta aqui não é a doença e os sintomas que lhe são inerentes,
mas este a-mais, essa doença suplementar para além da que ele tem
e pela qual ele reconhece sua existência. Neste sentido, i nternar
equivale a separar. Evidentemente, como todo sintoma reflete o
compromisso com a doença e ao mesmo tempo com o sujeito (da
falta). Internado, ele poderia faltar à mãe e vice-versa.
Certa vez, chegou contando sonhos:
"Eu estava soltando pipa à noite. O meu pai estava junto, a pipa
que eu segurava foi subindo ... subindo ... cada vez mais alta ... e eu
fui subindo junto. Aí eu gritava ... paaaai... paaai. .. mas ele não me
ouvia ... e eu sumi."
O sonho de Carlos vem dizer do funcionamento em que se vê
acometido, e angustiado apela ao pai. E qual função tem o pai para
a psicanálise?
O pai simbólico é aquele cuja mediação separa a criança da mãe,
pelo corte do cordão umbilical que os une. O pai é aquilo que deve
ser construído, inventado pela criança a nível simbólico para que
possa barrar o gozo insensato que o prende à mãe.
No sonho de Carlos o que se percebe é a fidelidade da criança
a esta pipa; a isso que talvez possamos equivaler o objeto fático
desse Outro onipotente, encarnado pela figura da mãe. É pela via
d esse enlaçamento à pipa, ou desse cordão umbilical como também
podemos pensar, que a criança vai desaparecendo aos poucos.
Neste momento de angústia, ela apela ao pai, a esta função que
possa vir a separá-la da condição de ser o falo da mãe. Uma tentativa
de existir num mais além daquilo que a mãe deseja é o que está em
j ogo. Cabe enfatizar que não é que a mãe queira o lugar de doente
para o filho. Não se trata de algo volitivo e sim do desejo enquanto
falta, onde a criança se encaixa ocupando o vazio estrutural da mãe.
NA IDENTIFICAÇÃO COM A DOENÇA CRÓNICA ... 63

A criança então "clama ao desejo e sucumbe ao gozo. Nessa oscila­


ção, seu apelo desaparece... No consentimento ao desejo materno, ela
entrega suas armas. . .
Assim, n a afânise do desejo, desaparece o sujeito. O desejo s6 poderá
ser encontrado a duras penas, no ponto em que culmina a morte" - como
disse Paula justo em "Hamlet, a tragédia do desejo".
Em um segundo sonho, ele relata:
"Tinha uma festa em minha casa. M inha mãe mandou eu buscar
doce na casa da vizinha. Quando voltei, vi minha família espalhada,
cada um num canto ... n inguém mexia ... parece até que tinham
morrido ...•
Ao perguntar do que estariam dizendo os sonhos, Carlos diz:
"No primeiro estou indo, subindo e meu pai está ficando; no
outro, eles estão morrendo e eu estou ficando".
Por estes flashes, dá para se pensar na questão que permeia
Carlos através do recurso proporcionado por Lacan, que seriam os
dois círculos de Euler que ele utiliza no Seminário XI para representar
esta relação entre o ser e o sentido.

O sujeito precisa alienar-se no Outro para se constituir, mas isso


não é suficiente para que ele ascenda à posição de sujeito desejante.
É preciso que haja também uma separação.
Se ele escolhe o sentido, ele desaparece enquanto sujeito, mas
sem o sentido ele também não se constitui. É na báscula entre os
dois campos que o sujeito deve advir...

É o que L.acan assinala no Seminário XI:


64 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

"É no intervalo entre esses dois significantes que vige o de­


sejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência
do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele
tem que lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso.
É no que seu desejo está para além ou para aquém no que
ela diz, do que ela intima, do que e/afaz surgir como sen­
tido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de
falta que se constitui o desejo do sujeito".
Se Carlos desaparece enquanto sujeito desejante é porque ele
interpretou que aquilo que ele tem (a doença) se e ncaixa como
resposta ao gozo masoquista da mãe, o que faz com que ele não
apenas tenha a doença, mas com que ele seja isso - uma doença
e apenas isso. Ao se fixar nessa representação da doença, Carlos se
faz representar para o Outro, crendo assim que é isso que o mundo
espera dele, restando-lhe então afirmar-se como doença a cada dia,
via internação.
A angústia desse paciente portador de uma doença crônica se
instala na medida em que não consegue sair disso, dessa condição
de ser doença, que é ao mesmo tempo tamponadora e mortífera.
O que esse atrelamento do sujeito à cronicidade tampona é a
possibilidade de Carlos se ligar na vida e poder viver em lugares
outros que não hospitalizado, isto é, a possibilidade de caminhar
fora do sentido alienante da identificação objetai, já que por esse
caminho restrito não lhe resta outra saída que não o agravamento
dos seus sintomas doentios, única forma de separação que encontra
para tentar sair da relação imaginária com esse Outro (mãe). Tenta­
tiva malograda e ao mesmo tempo bem-sucedida.
Freud já dizia que um sofrimento no corpo muitas vezes prote­
ge o sujeito de um trauma ou sofrimento psíquico.
Se para existir Outrificado, no mundo da linguagem, o sujeito
busca se aderir às formas consistentes, se apagando como sujeito,
o que uma análise pode fazer diante desse impasse? Como a criança
poderia ter um lugar no Outro e ainda assim se posicionar como
um sujeito de desejo?
A psicanálise vai trabalhar com essa dialética alienação-separa­
ção, tentando possibilitar ao sujeito o caminho da interseção entre
esses dois pólos, oferecendo um outro campo.
NA IDENTIFICAÇÃO COM A DOENÇA CRÓNICA ... 65

É na medida em que oferece um espaço, entre dois, um i nteiValo


onde a criança possa ultrapassar a significação que "a doença lhe
impõe", é que essa criança pode faltar a ser doença e, ao mesmo
tempo, existir com sua doença neste mundo.
Se os sintomas correm soltos pelo corpo, é o significante, a
articulação simbólica que pode lhe fazer barreira. É pelo significante
que a criança pode formular sua questão ao Outro e com isso tomar
uma distância do gozo parenta! para se apropriar de um discurso
seu.
A identificação da criança portadora de doenças crôn icas com
a significação da doença não se faz processo raro. As conseqüências
desse atrelamento podem ser verificadas no próprio corpo da
criança. Muitos são os fatores que contribuem para essa colagem.
O analista pode oferecer mais que uma escuta. Ele deve também
oferecer um ato capaz de operar a separação.
Na medida em que a função separadora se opera, possibilita
que a função paterna, surda, se faça ouvir, abrindo espaço para o
corte na relação que a criança até então mantém com as cronicida­
des da sua vida.
Carlos não foi internado durante o período em que esteve em
atendimento. Ainda que o trabalho não tenha chegado ao seu fi nal,
algo aí se promoveu para além da redução dos sintomas.
Uma vez, em uma de suas primeiras sessões, ao cumprimen­
tá-lo, chamando-o pelo nome, ele respondeu com ar de brincadeira:
"Carlos não. O Carlos já morreu, eu sou só um fantasma."
Se um trabalho com esta criança pôde ser feito, possivelmente
o tenha sido porque nessa hora, e talvez pela primeira vez, alguém
acreditou que, enquanto se dizia fantasma, Carlos estava falando
algo de sua verdade e apostou que ele podia ser mais do que isso .
... talvez não tão objeto ...
e mais sujeito de sua vida sofrida ...
o que já é alguma coisa.
66 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de. Rio de janeiro: !mago, 1 976, v.XVIII.
___ . Psicologia de grupo e análise do ego. Cap. VIl - Identificação. Op. cit., v.
XVIII.
J USTO, Paula. Hamlet, a tragédia do desejo. Anais da 111 jornada do ALEPH sobre o
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LACAN, Jacques. O seminário - livro l i - Os quatro conceitos fundamentais da psi­
canálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1 988.
___. O seminário livro 8 A transferência. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1 992.
- -

MOREIRA, Arlete Campolina. É imperativo colocar de novo .. Letra Freudiana Pul­


. -

são e gozo - Rio de janeiro, ano XI, n. 1 0, l i e 1 2,


MOURA, Marisa Decat de.(Org.) Psicanálise e hospital. Rio de janeiro: Revinter, 1 996.
SEMINÁRIOS E REUNIÕES DE EQUIPE - Realizados no Hospital Mater Dei-BH.
Laços: O jogo da Ciranda Narcísica
- Pais e Fi lhos

Wanda Avelino

"O menino de ontem me plange"

Manoel de Barros

Ü que os filhos representariam para os pais? Provavelmente um


desejo esperançoso de completude para a dinâmica narcisista deles.
Os filhos satisfariam seus desejos não realizados.
Pais e filhos, uma relação narcisista que se estabelece sobre o
substrato temporal de dimensão do futuro. Imaginariamente o filho
possibilitaria a renovação dos pais. Viver com i ntensidade as expe­
riências dos filhos congraça aqueles: o filho será um grande homem
no lugar do pai, a filha compensará a mãe tornando-se esposa de
um grande homem.
O trabalho psicanalítico consistiria em matar a criança maravi­
lhosa que atesta os sonhos e desejos dos pais. Serge Leclaire afirma
que não há vida a menos que se pague o preço do assassinato da
imagem primeira na qual se inscreve o nascimento de todos.
Imagem preexistente ao nascimento da criança. Esta ocupa a fan­
tasmática individual de cada um dos pais e, em alguns casos, do
casal. O espaço ocupado pela criança é determinado em relação com
o sistema narcisista da mãe e do pai.
Lacan, no livro Os Complexos Familiares, afirma que os pais
desempenham um papel de "organizadores" no desenvolvimento
psíquico ... Ele os estruturou a partir de sua releitura da teoria do
Édipo freudiano, ou seja, o estatuto da triangulação edípica que é
formado por Pai - Mãe - Filho. Nessa estrutura edípica, segundo

67
68 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

Freud, se estabelecem relações extremamente complexas entre


aqueles três. Relações que implicam para o filho uma renúncia ao
objeto de desejo resultante da operação paterna decorrente da
interdição da mãe.
Na atualidade constata-se o declínio da imago paterna. A estru­
tura edípica ternária é reconsiderada. Lacan a reelabora introduzin­
do a função fálica correlata da função paterna - É dipo quaternário
-, a vertente simbólica do pai como nome - como significante. O
pai, enquanto significante, é apaziguador na 1nedida em que fun­
ciona como princípio de separação em relação ao desejo da mãe.
Caso a função apaziguadora do pai não opere, a relação mãe-fi­
lho predomina dando lugar à função dual do narcisismo. A função
apaziguadora do pai tem lugar quando este tem condição de fazer
de uma mulher, causa de seu desejo, objeto de sua fantasia.
Se se observam configurações diferentes dessa acima referida,
a criança as denuncia como resposta pelo que existe de sintomático
na estrutura familiar. Lacan nas notas a jenny Aubry diz: "O sintoma
da criança pode representar a verdade do par parenta/ sem palavras para
nomeá-/a".
Desde o início, a criança é identificada com o papel e o lugar
que lhe foram determinados. Ponto de origem de sua identificação
sexual e da sua própria identidade. Identidade pendente da repre­
sentação inconsciente, representação essa obscura, difícil de dis­
cernir e por isso mesmo difícil de nomear na medida em que se
encontra i nscrita no inconsciente, isto é, no desejo daqueles que
lhe deram a vida. Vida que tem o compromisso de subjetividade
num futuro de ilusão.
Esta é a situação concernente à criança. E quanto aos pais?
Como eles operam na dinâmica narcísica do filho?
O par parenta! é investido com todas as perfeições inerentes à
onipotência infantil. Freud ( 1 9 1 4) afirma:

"O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do


narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tenta­
tiva de recuperação desse estado. Esse afastamento é oca­
sionado pelo deslocamento da libido em direção a um
LAÇOS: O JOGO DA CIRANDA NARCÍSICA - PAIS E FILHOS 69

ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação provo­


cada pela realização desse ideal".
Os pais, segundo a visão infantil, são os responsáveis pelo
narcisismo perdido. De início são os primeiros heróis que povoam
o ego infantil. O filho estruturalmente opera como o complemento
fálico do sistema narcisista parental. Epopéia narcisista que tende
ao fracasso inexoravelmente, apesar dos processamentos de recusa
da realidade. A unidade pais-filhos imaginária se desmorona mar­
cada pela falta. Processo decorrente de fraturas testadas pela reali­
dade do humano - um ser de linguagem. A desmontagem da
unidade espaço-temporal imaginária dá origem à compulsividade à
repetição de reconquistar aquela perfeição narcísica. Como? Medi­
ante a fusão e confusão com os pais, correndo o risco do fracasso
dada a impossibilidade de obturar a fenda que separa um sujeito
do outro.
A separação ("ser-para-ação") é acompanhada de ressentimento
pela impossibilidade de uma perfeita coincidência especular com
os pais. Esse jogo da ciranda narcísica pais e filhos deriva para um
esvaziamento de toda autonomia e diferença possíveis, comprome­
tendo individuações das partes caracterizadas pela idealização das
mesmas.
Todo aquele atributo de perfeição que os filhos outorgam aos
pais, na fantasia infantil, é algo valioso que eles conservam apenas
para si próprios e que tanto os filhos reivindicam e se ressentem
por não lhes ser oferecido como dádivas. Todo sentimento de
reivindicação é acompanhado de sentimento de culpa. A represália
do filho se apresenta desafiadoramente em relação ao objeto -
pais, e, conseqüentemente, se transfere para o âmbito social: para
os professores, para os cônjuges, para os filhos.
Ambos, pais e filhos, têm uma relação singular com a prospec­
tiva temporal. A perspectiva do futuro se apresenta invadida pela
reivindicação de um passado injusto. Filhos e pais permanecem
ancorados numa temática de tortura e de separação compulsiva.
Tudo parece permeado pelo sentimento de culpa.
A idealização e decorrente supervalorização infantil dos pais
para com os filhos e dos fi lhos para com os pais acarretam funções
70 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

qualitativamente diversas, tanto para a realidade psíquica dos pais


quanto para a dos filhos.
Nessa dança dos sistemas narcisista-simbólico parentais, o filho
deles se apropria, neles se engancha e se reengancha caracterizando
uma luta incessante. São frutos de identificações alienantes que
congelam o psiquismo, paradoxalmente promovem organização.
O abandono das identificações narcisistas quebra a força taná­
tica e pode abrir caminho para uma nova dimensão espaço-temporal
e afetiva. Segundo Lacan, o sujeito, conseqüentemente, vai articular
o que ele é para o Outro. Articulação que lhe possibilita confrontar
a falha no Outro decifrando simbolicamente algo do sintoma e
permitindo ao sujeito uma separação - novo posicionamento com
relação ao desejo do Outro - por meio do deciframento daquelas
identificações alienantes concernentes à história de gerações, pos­
sibilitando o reconhecimento do lugar do sujeito em relação com
as diferenças destas. Borges assim o explícita no poema

Aofilho
Não sou eu que te gerei. São os mortos
São meus pais, seu pai e seus
ancestrais...
Sinto sua multidão. Somos nós
E, entre nós, tu e teus descendentes
Filhos que hás de gerar. Os derradeiros
E os do vermelho Adão. Sou estes outros,
também. A eternidade está nas coisas
Do tempo, que são formas pressurosas

Ciranda da Vida: Pontos e Contrapontos em uma U1l

Tudo acima relatado é pressurosamente vivenciado na UTI onde


as crianças prematuras, no seu desamparo característico, entre a
vida e a morte, gritam por socorro no seu desespero para sobrevi­
ver.
Pensar o lugar da criança no narcisismo dos pais, naquela
situação emergencial de paciente da UTJ, é dolorosamente comple-
LAÇOS: O JOGO DA CIRANDA NARCÍSICA - PAIS E FILHOS 71

xo, aflitivo e desafiante. Há uma aposta de todos que lá estão para


cuidar do paciente ínfans. Aposta que impregna a atmosfera da UTI
-

de esperanças. O poema de Padre Antônio Vieira, em Paixões Huma­


nas, enfatiza essa aposta:
Desejar Ser
"O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos vêem
com amor o que não é, tem ser."
Parece paradoxal a morte espreitando por todos os recantos da
UTI e contudo a vida, ali, se impondo.
A experiência na UTI é enriquecedora. Ela interroga os entraves,
os impasses e labirintos da via amorosa. O outro supostamente
completo está munido de bens para dar, isto é, privado daquilo que
dá, segundo a teoria lacaniana de onde é decorrente a reflexão: "Não
há maior signo do amor do que o dom daquilo que não temos".
O amor lacaniano implica função de falta, onde se articula a
relação do sujeito com o Outro.
A criança internada na UTI abre feridas dolorosas no imaginário
do amor da mãe, mas, paradoxalmente, pode abrir caminho para a
compreensão da experiência de frustração, p rivação e castração do
amor. Amor que sobrevive à sombra daquilo que foi sonhado. A
incompletude fundante do humano ali se presentifica. Com a con­
tribuição de um caso clínico, vamos pensar a problemática de uma
criança na UTI do hospital e qual o seu lugar na relação com o Outro.
A mãe, logo após o parto, se vê privada do convívio íntimo com
seu filho. Seus braços vazios experimentam a solidão radical que
tem lugar muito cedo em suas vidas: dela e do filho.
Seu filho está lá naquela aparelhagem da UTI - máquinas a
substituir a mãe. Esta tem que se preparar para ser mãe de uma
criança que ela não pode ter nos braços. S ente-se só. Manoel d e
Barros com seu verso " O abandono me protege" parece expressar
esta solidão.
A mãe não pode apertar seu filho junto ao peito. A equipe da
UTI lá se encontra para ajudá-la. Seus com ponentes formam um
novo ninho para o bebê. Todos lhe afirmavam ser sua presença
muito importante para a recuperação do filho. "Esqueci das dores
72 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

da cesariana a que fui submetida. Mesmo fragilizada fisicamente, e


pior ainda, moralmente, assim que soube que m inha criança estava
na UTI lá fui ter com ela. Os médicos me pediram para dar tempo
para eu restabelecer e adquirir forças para ir ao encontro dela. Não
pude atendê-los. Meu filho estava lá, precisava de mim tanto quanto
eu dele. Era mister reunir todas as forças para o encontro com meu
filho. Lá estava ele na incubadora. Pequenininho. Frágil. Mas respi­
rando. Passo as mãos na incubadora como se o estivesse acariciando
e vou lhe dizendo coisas: 'Você é muito importante para mim. Vim
aqui lhe dizer quanto o amo'. Algo ali ocorreu. Tenho certeza que
por um segundo ele abriu os olhos. Ele me entendeu." Parafrasean­
do Barros, "aquela máquina poderia um dia milagrar de flores".
Máquina que se transforma sob o manejo profissional e humano
da equipe da UTI, segundo a visão da mãe. Equipe que constan­
temente se prepara para o confronto com a criança em completo
desamparo - sem a mínima condição de fazer face a situações do
mundo fora do útero -, decorrente de uma separação traumática,
patética, daquela pessoa de que fez parte por longos meses de
gravidez. Processo de separação que traz ameaça para o sentimento
de si, tanto para a criança quanto para seus pais. Situação esdrúxula
que sofre ameaça de perder a sustentação que conserva a regulação
narcisista. Sustentação, anteriormente apontada, que se nutre a
partir da imagem de pais salvadores e supervalorizados pelo filho
e da imagem do filho idealizado pelos pais.
Para a psicanálise, o processo de separação é dependente do
de alienação. A criança na UTI fica impedida de viver esse processo.
A mãe relata que os olhares de amigos e parentes a ela dirigidos
eram carregados de angústia e traduzidos por ela como se estives­
sem querendo lhe advertir da possibilidade de não sobrevivência
do filho. "Mas eu me mantia firme, ali no hospital, sem arredar pé.
O ra conversando com meu filho, ora na capela conversando com
Deus. Percebia que eles queriam me poupar maiores sofrimentos.
Dois anos atrás - continua - tive, no mesmo hospital, uma
experiência muito dolorosa. Meu primeiro filho nasceu. Era a minha
primeira gravidez. Voltei da cesariana para o quarto e eles não me
trouxeram a criança. Morreu após o nascimento. Queriam me
i m pedir de vê-la. Exigi tê-la comigo. Mesmo ainda sem condições,
LAÇOS: O JOGO DA CIRANDA NARCfSICA - PAIS E FILHOS 73

ameacei me locomover até onde ela estava. Eu precisava ter a


criança nos meus braços. Trouxeram-na. Pude identificá-Ia, tocá-la,
acariciá-la e nomeá-la. Sim, o mais importante - dar-lhe um nome.
Sem isso não poderia dela me desligar."
Enigma do nascimento que, naquela circunstância, se liga, de
fato, ao da morte, podendo apenas simbolizar dando-lhe um nome.
"Os olhares e silêncios dos parentes e amigos me traziam uma
mensagem dúbia de apreensão e esperança e olhando-os pensava
precisar de muita coragem. Voltei toda a tensão para o pessoal da
equipe da UTI. À pediatra que acompanhou meu bebê, não tenho
palavras para agradecer. Simplesmente ela me acolheu, me ofereceu
sua assistência carinhosa e firme. Ela é a segunda mãe de meu filho.
Meu bebê tem duas mães que zelam por ele. O chefe da equipe da
UTI me orientava. Os olhares dessas pessoas me transmitiam algo
diferente dos olhares dos familiares e amigos. Traduzo-os assim:
conte comigo, conte conosco. Eram cientistas, mas acima de tudo
eram humanos, sensíveis, e sobretudo eram verdadeiros, não me
ocultavam as ocorrências, por pior que fossem, do estado do meu
filho. Perceber suas possibilidades e acima de tudo suas limitações
me infundia condições para lidar com a situação. Claro, ocorriam
falhas mas o comportamento da equipe para enfrentá-las era sur­
preendente. Falhas que eram verbalizadas e assumidas.
Chamavam-me a atenção as reuniões dirigidas pelo chefe da
UTI, com a presença de psicanalistas e outros profissionais do
hospital. Era um espaço para as mães das crianças hospitalizadas,
onde nós podíamos falar de nossas angústias e inseguranças. Um
lugar para questionarmos os procedimentos dispensados aos nos­
sos filhos. Eu sinto que era incluída, fazia parte da equipe.
Comecei a perceber qualquer sinal de alteração no compor­
tamento do meu filho. Se apresentava melhoras, toda equipe fazia
coro comigo na minha alegria. Mas elas eram raras. Muitos
revertérios ocorriam. De um minuto para outro a criança passava a
respirar com mais dificuldade ainda, coração fraquinho, ficava
arroxeado. Eu de fora, infundia-lhe forças: 'coragem, filhinho, seja
bravo. Eu sei que você pode enfrentar mais essa prova. Estou aqui
do seu lado'. Havia horas diffceis. Aprendi a acompanhar suas
reações consultando os registros na maquinaria e no seu corpinho.
74 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Grande alegria a primeira vez que pude tocar-lhe a testa, o braço,


apenas com um dedo, mas já era alguma coisa."
A psicanálise entende que entre mãe e filho se cria um espaço
erógeno partilhado. O infans se apropria daquilo que sua mãe lhe
deixa como marca. Na vivência da entrevistada, percebe-se que
também a criança deixa marca na mãe. A criança começa a respon­
der aos estímulos maternos. Ela tem um papel passivo nos primeiros
momentos de vida. Depois atrai mais e mais a mãe, como relata
Piera Aulagnier:
"A criança é posse particular da relação da mãe com o ho­
mem, algo que reassegura e a marca na sua diferença se­
xual. É o algo-a-mais na condiçãofeminina, não enquanto
realidade mas sim como possibilidade".
O destino de mãe e filho está entrelaçado, não apenas se dá a
repetição em relação à estrutura do Édipo da mãe. Algo novo se cria
a partir daquele laço entre os dois. Uma história nova tem início
para a mbos. Uma dimensão de futuro aí se re-significa.
Retomando a questão do lugar dos pais no tratamento do infans
prematuro, a atitude do chefe da UTI , seu empenho no atendimento
à criança enfatiza que o espaço da cura é dela, mas nele podem
circular outros discursos que ajudam o pequeno paciente a encon­
trar seu caminho. Discursos de outros profissionais que se conju­
gam num esforço de sustentar os primeiros passos do bebê na
aventura da sobrevivência. O médico percebe que os pais, p rinci­
palmente a mãe, precisam aceitar o tratamento e possíveis mudan­
ças que dele decorrem. A sua vivência médica lhe assegura que as
ocorrências e alterações no tratamento do filho podem ameaçar os
pais que, conseqüentemente, podem pôr empecilhos ao progresso
da cura . Desde 1 984 ele criou reuniões com os pais a fi m de
escutá-los e facilitar a verbalização de suas dúvidas e angústias. Sabe
que os pais se encontram culpabilizados e por conseguinte muitas
vezes têm uma visão distorcida da situação angustiosamente vivida.
Os psicanalistas da equipe do hospital ficam de plantão para o
exercício de sua função na UTI. Situação privilegiada pois, segundo
suas palavras, "o psicanalista na UTI juntamente com os médicos e
demais profissionais se encontram perto da morte e do que circula
LAÇOS: O JOGO DA CIRANDA NARCÍSICA - PAIS E FILHOS 75

e m torno dela. O estar de plantão veicula ao psicanalista no hospital


um suposto saber sobre a morte e deste lugar ele é chamado a
intervir". A situação de angústia diante de um perigo iminente pode
provocar rupturas na estabilidade emocional do doente e de seus
familiares. O psicanalista no hospital está de prontidão para intervir
urgentemente, pois ocorrem situações emergenciais que atuam
sobre o psiquismo do indivíduo. Os profissionais no hospital têm o
caráter de "escudo protetor", lembrando aqui Freud que emprega
este termo para designar a necessidade de amparo que se torna uma
exigência quando o indivíduo se defronta com situações traumáticas
de muita angústia e desespero. "Escudo protetor" é, como o próprio
nome diz, proteção contra as transgressões dos mecanismos vitais.
Para este trabalho de urgência na UTI, o psicanalista está atento
para o fato de que a atuação médica tem primazia, dada a desor­
ganização somática da criança prematura. O que exige um vai-e-vem
constante entre os fatos ocorridos e a teoria. Observa-se que na
situação da UTI a formação teórica é constantemente questionada
frente à realidade corporal. A coisa sofrida no real do corpo leva
aquela equipe a se preocupar com um conhecimento pediátrico
informativo, no que se refere à necessidade de um esclarecimento
nosológico. O psicanalista é freqüentemente surpreendido pela
evidência de circunstâncias traumatizantes, face às perturbações
precoces. A deflagração da desorganização somática e seu intri­
camento com o psiquismo tendem a estreitar os estudos da ciência
médica e da psicanálise.
Pelas palavras daquela mãe, nota-se que ela observou o en­
trosamento dos diferentes profissionais que congregam a equipe
da UTI. Faz parte dos planos do chefe da equipe propiciar uma visão
psicanalítica para todos que atuam no trato com as crianças:
fonoaudiólogos, fisioterapeutas, secretárias, enfermeiras e outros
profissionais para aprimorar a escuta do doente e seus familiares e
tam bém o entrosamento dos diferentes componentes da Unidade.
Um espaço onde eles poderiam expressar suas angústias, fragili­
dades, dificuldades frente à situação estressante a que estão expostos.
O chefe da equipe da UTI esclarece que percebe a necessidade
desse espaço para a escuta de pais e também da equipe da UTI,
espaço que não se confunde com análise pessoal. Nesses encontros
76 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

são oferecidas chances para o desmanche de amarrações no refe·


rente aos pais e possibilidades de a equipe conviver e elaborar as
faltas que ocorrerem, tendo o objetivo de maior implicação no
atendimento em curso.
A pediatra que cuidou deste caso, segundo o testemunho da
mãe, realmente se implica no tratamento do prematuro. Ela insistia
naquele ponto: "Você vai ajudar seu filho. Sua presença é de grande
significação para a recuperação do bebê e para você própria".
A entrevistada continua falando de sua vivência. "Meu filho,
durante todo o tempo que lá permaneceu, manifestou um compor·
tamento que nos deixava a todos sempre muito apreensivos. Às
vezes mostrava uma significativa melhora. Outras vezes, uma curta
estabilização seguida de uma recaída apresentava, instantes depois,
uma melhora para logo a seguir ocorrer uma súbita regressão. Um
dia o quadro se agravou. O nenê parecia não dar conta daquela
situação. Falei com ele e com Deus. Disse-lhe: 'colabore meu fi lho,
estamos todos aqui com você. Papai já vai chegar (o pai comparecia
ao hospital todo o tempo que tinha disponível) e ele quer ver você
melhorzinho' ."
A mãe percebia na atitude e olhar das pessoas uma certa
incredibilidade, assim traduzida por ela: "Coitadinha, não quer
encarar a realidade". Teimosa, dizia para si própria que o bebê
venceria aquele impasse. Contava com o pessoal da equipe. Apren­
dera, àquela altura dos acontecimentos, a fazer uma leitura da
atitude deles. "Nunca me mentiam. Mantinham-me i nformada den­
tro de um critério científico acompanhado de uma atitude firme,
segura e humana.
Depois de uns dois meses vieram me dizer que meu filho já
poderia voltar para casa. Tomei-o nos braços e da porta mesmo
voltei apressadamente com ele. O tempo dele lá não terminara. Ele
já na incubadora novamente e eu lhe dando conta do ocorrido. ' Eu
estou aqui com você. Mamãe vai esperar todo tempo que for
necessário para te ajudar'."
Ela foi incansável. Esteve realmente presente, durante 77 dias,
ali ao pé da incubadora na UTI. Seu desempenho caracteriza-se por
atitudes narcísicas importantes e imprescindíveis à situação, sem
as q uais os pais não poderiam ter encontrado forças para vencê-la.
LAÇOS: O JOGO DA CIRANDA NARCfSICA - PAIS E FILHOS 77

Ficou uma seqüela. Um probleminha no pé. O nenê com um ano


e pouco arrastava um pouco ao andar. Submeteu-se à operação de
ligamento de tendão. Faz fisioterapia. Hoje com 4 anos corre e anda
com desenvoltura. Vai bem no colégio. É uma criança muito simpá­
tica, alegre e social. O vídeo do seu primeiro aniversário, que a mãe
mostra para a entrevistadora, registra essa alegria e sociabilidade.
Nessa altura da entrevista o pai chega do trabalho. Participa da
conversa confirmando sua alegria e satisfação com o filho. E mais
ainda, no seu discurso percebe-se seu envolvimento com a criança,
contudo seus olhos estão voltados para a mulher, reivindicando sua
atenção, seu amor.
A psicanálise afirma q;.;� a mãe deve investir libidinalmente o
corpo de seu fil!1o em sua integridade, seja ao nível das zonas
erógenas, seja também ao nível de seus mecanismos funcionais.
Num empenho de que seu bebê ame a vida e opte pela vida. Aquela
mãe se empenhara nisso.
A pediatra acompanha a criança (é sua madrinha) com desvelo
e afeição. Orienta a mãe no sentido de ela dar assistência ao filho,
mas não se esquecer de si mesma e de sua profissão. A mãe acolhe
os aconselhamentos da pediatra mas atua com autonomia.
Esta mãe dá testemunho do trabalho realizado pela equipe da
UTI do hospital geral. Volto a pinçar as palavras do chefe daquela
equipe: "Os pais são muito importantes. O retorno que nos dão dos
serviços que lhes são prestados, principalmente das nossas falhas,
nos possibilita crescer. Eles fazem parte da equipe".
A presença dos pais junto à criança-paciente da lJI'I auxilia o
trabalho a ela dispensado.
Voltando àquelas batalhas travadas no terreno das relações de
tipo narcisista que sofrem afrouxamento, a indiscriminação objetai
conduzindo a uma reestruturação vincular é uma constante. É
mister pôr em jogo a báscula da idealização mediante a qual
retificações valorativas dos pais, do filho e do vínculo entre eles
redimensionem, vez por outra, suas posições e espaços.
O processo de desidealização gradual favorece a reescrita da
própria história. História cheia de lacunas e faltas. A pergunta citada
num dos versos de O Livro das lgnorãças - do poeta Manoel de
Barros - aponta para a possibilidade de uma reescrita da história
78 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

do i ndivíduo: "Pode um homem enriquecer a natureza com a sua


incomp/etude?".

BIBUOGRAFIA
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nada. Rio de janeiro: Record, 1 996.
"Um Amor Tecido pela Duplicidade"

Maria Luisa Duarte Vilela

"When my /ove swears that she is made oftruth,


I do
believe her, though I know she fies"

Shakespeare (sonnet CXXXVIII)

Ao longo de toda a sua vida e obra, Freud vai-se colocar uma


questão com tal vigor, a ponto de ser por ela atormentado: "O que
quer uma mulher?"
Precisar um anseio que fosse especificante feminino, esclarecer
o que significava "ser uma mulher", foram indagações que se
transformaram em um enigma para Freud, e o levaram a percorrer
um longo caminho na tentativa de lançar luz em um terreno tão
obscuro. Freud tenta decifrar o enigma feminino, procura desven­
dar seu segredo, mas sempre esbarra no lado irracional e misterioso
da sexualidade feminina, e sua elaboração teórica culmina em um
impasse. A natureza do querer feminino, assim como o percurso a
ser feito pela menina para assumir seu destino como mulher,
conduziram a teoria freudiana a um obstáculo, porque, no interior
da sexualidade feminina, algo resistia obstinadamente à sexualiza­
ção. A mulher porta e m si outra coisa que não é da ordem do
recalcado, que é impossível de se recalcar e que aponta para o fato
de que o inconsciente tem um limite, que ele não pode dizer tudo.

"Sobre o problema da feminilidade têm meditado


os homens em todos os tempos".
Freud, 1932.

79
80 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

O tornar-se mulher aparece na trajetória freudiana como uma


extensa e laboriosa construção. Em 1 932, Freud, no artigo "A
Feminilidade", ao abordar a relação da menina com sua mãe,
ressaltou: "Esta fase de uma vinculação amorosa anterior ao complexo
de Édipo édecisiva para ofuturo da mulher".Já em 1 925 ele se indagava:
"Como chega a menina a abandoná-la (a mãe) e colocar em seu lugar o
pai como objeto?'
No artigo d� 1 932, ele medita sobre a complexidade da traje­
tória da menina, indagando-se, como ela, partindo da relação inicial
com a mãe, chega a tornar-se mulher. Embora conclua o texto com:
"Se quereis saber mais sobre afeminilidade, podeis consultar vossa própria
experiência de vida, ou perguntar aos poetas, ou esperar que a ciência
possa proporcionar informações mais profundas e mais coerentes", Freud,
neste texto, avança passo a passo delineando o caminho da menina
rumo ao seu futuro como mulher, sem entretanto deixar de apontar
os paradoxos e os obstáculos inerentes a tal percurso.
Mas a feminilidade não se deixa capturar e ao permanecer como
um furo no discurso, como algo da ordem do indizível e inominável,
tem-se prestado a toda sorte de construções, representações e
ilusões. Encontramos neste campo uma diversidade de abordagens
e interpretações que tentam responder às questões suscitadas pelo
mistério feminino. Embora aspectos interessantes tenham sido
leva ntados, os textos pós-freudianos que tratam da questão femi­
nina permanecem atravessados por dúvidas e incertezas. É talvez
no i nterior da teoria lacaniana que vamos encontrar, no que se
refe re à mulher, algo da ordem do novo e do instigante.
Se a teoria freudiana culminou, como foi dito, em um impasse,
ao a bordar o feminino, Freud traçou seus rumos e abriu um caminho
que posteriormente Lacan retomou, trazendo contribuições que
lança ra m novas luzes e permitiram um avanço seguro em um
terreno tão movediço.
Lacan observa, em 1 972, no texto "Mais, ainda", como o destino
da feminilidade na doutrina freudiana é complexo, e ao deslocar a
feminilidade do campo do sexo para o campo do gozo, mostra
como, tanto em Freud como nos pós-freudianos, o gozo feminino
permaneceu uma questão intocada. Lacan vai pontuar como a
"UM AMOR TECIDO PELA D UPLICIDADE" 81

feminilidade é a problemática de um ser não submetido inteiramen­


te ao Édipo e à lei da Castração.
Se tanto o menino como a menina estão sujeitados à lei
instaurada pela metáfora paterna, para a menina esta lei não opera
em sua totalidade, o que a faz situar-se em dois planos diferentes,
ou seja, dentro da lei e ao mesmo tempo em outro espaço fora-da­
lei. Isto equivale dizer que a mulher estaria em parte presa ao gozo
fálico, enquanto uma outra parte dela se situaria naquilo que Lacan
chamou de "gozo Outro" ou "gozo-do-corpo".
O primeiro momento da trajetória da menina é marcado pela
presença de um gozo de ordem passiva, na medida em que ela
ocupa a posição de objeto do Outro. O interessante a ressaltar, e é
um ponto sobre o qual vamos nos deter no texto, é que no final do
percurso da constituição da sexualidade feminina a questão da
posição da mulher como objeto de gozo do Outro volta a se colocar.
Sabemos que cada um em sua história é i nicialmente objeto, é
lançado ao mundo como objeto do desejo de seus pais, ou seja,
antes de ser sujeito, surge inicialmente como um objeto produto
de uma operação que seria o desejo dos pais. Assim, no início, o
sujeito é tomado como objeto, como pequeno a no discurso do
outro e, no tocante ao desejo deste outro, o sujeito ocupa um lugar
a respeito do qual nenhuma escolha é possível, um lugar que lhe é
reservado em termos de sorte, pois não lhe é dado escolher o desejo
no qual será acolhido. Podemos então dizer de algo ocorrido em
nível de um destino, não no sentido de uma fatalidade pura, mas
de um destino marcado por uma contingência estrutural.
Haveria então para cada um uma espécie de constelação signi­
ficante particular, de sorte significante, de "loteria significante",
como frisou Lacan.
Ao falar deste processo, ou da passagem do sujeito da posição
de pequeno a ao lugar de S. jacques-A. Miller ressaltou que o ser
humano, como vivente, nunca pode advir inteiramente como sujei­
to. Neste sentido ele faz uma formulação sobre a existência de uma
escala, de uma gradação , de graus entre a e $ e diz: "O que chamamos
criança e eventualmente a permanência da criança no homem, é a forma
de colocar este resto que de modo algum pode advir".
82 PSICANÁliSE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Assim, a criança, partindo de uma posição inicial de objeto,


emerge como sujeito a partir da massa de significantes que vem do
campo do Outro, sendo necessário, entretanto, um encontro com
um Outro que aceite dar corpo a este lugar, sede do Código; um
outro que, com seu desejo, propõe-lhe um lugar de ser, pois "épelo
desejo do outro que sou".
Falar do Outro é falar de um Outro primordial, é nomear um
lugar e aquele que encarna este lugar, é dizer daquele que está
encarregado de introduzir a criança nas primeiras exigências do
discurso, ou seja, a mãe. Pelo lugar que ocupa na estrutura como
Outro da demanda incondicional de amor, demanda impossível de
satisfazer, a mãe é lugar de um primeiro amor e de uma primeira
decepção. Diante de um pedido de amor incondicional, ela introduz
a criança no discurso de um amor condicional e, assim, toma-se um
personagem decepcionante e alvo de críticas e recriminações. Se a
mãe é o lugar de todas as decepções originais, é importante
entretanto ressaltar que devemos distinguir os efeitos decorrentes
do lugar que ela ocupa na estrutura dos efeitos do desejo materno,
desejo este suportado pelo fantasma da mãe como sujeito.
Lacan, em "Reverso da Psicanálise", coloca: "O papel da mãe é o
desejo da mãe, sempre produz estragos, é como um crocodilo. Isso é a
mãe". Diante do desejo materno a criança indaga: Que sou como ·
objeto a no desejo do outro? Confrontada com a angústia suscitada
pelo vazio, em função da falta do significante que no outro diz do
suj eito, este articula então uma resposta fantasmática. Mas, se por
uma contingência particular fracassar a instituição do sujeito no
fantasma, devido à foraclusão da metáfora paterna, apenas o fan­
tasma materno se apresenta e resta então à criança realizar-se como
obj eto deste fantasma e aí a sua posição é psicótica.
Ou seja, se a criança é um a real no início, tudo consiste, então,
no engendramento de uma metáfora, de forma a substituir o a e
perm itir o advento do sujeito , do $. No caso da criança autista tal
metáfora encontra-se em um grau mínimo e a substituição que
possibilitaria o advir do sujeito fracassa.
Mas a posição da menina, ao se tornar mais tarde mulher, não
é a d e ser capaz de bancar, de suportar o objeto, não é a de fazer-se
semblant de objeto para sustentar o desejo masculino, para se pôr
" U M AMOR TECIDO PELA DUPLICIDADE" 83

n a relação sexual? Não há aí uma inversão da metáfora subjetiva de


que falávamos? Por que para algumas isto é insuportável?
Todo o desenvolvimento freudiano, todas as suas indagações a
respeito do processo complexo da menina para tomar-se mulher,
q uestões que Freud coloca a respeito da mudança de objeto, de
zona erógena, de fim pulsional da menina, não esbarram justamente
n esta questão: "Como pode um sujeito, em se tratando da menina, querer
assumir o lugar de objeto?" É importante frisar que não falamos de
u ma posição masoquista na mulher, que é passível de ocorrer, mas
de uma subjetividade feminina não correlata ao masoquismo, pois
Freud não coloca a feminilidade como análoga ao masoquismo.

Mas no caso de a menina ser, no início , objeto do Outro, sair


desta posição e retornar como semblant de objeto não implica
riscos? Um resvalar, por parte dela, para a posição de objeto do
O utro não se apresenta por vezes no horizonte feminino?

Lacan , para dizer da relação da menina com sua mãe, usou uma
expressão forte, aliás, a mesma, para acentuar a relação da mulher
com o homem: "O homem é uma devastação como a mãe é uma
devastação para a filha". O termo devastação diz certamente do
alheamento do sujeito em relação ao Outro. O sujeito fica sob o
domínio, à mercê da vontade do Outro e o desejo, a demanda e o
gozo deste imperam, ou seja, o sujeito lhes dá a primazia.

Sabemos, entretanto, que nem sempre o homem é uma devas­


tação para a mulher, mas quando isto ocorre, é porque ela saiu do
campo do disfarce, da mascarada, do semblant e caiu na sujeição
realizada. Neste caso, a mulher, em vez de se desenvolver no campo
que consiste em se fantasiar de objeto, "fazer-se semblante de
objeto", desliza para uma identificação com o objeto do Outro e
neste deslizar, neste movimento, coloca seu ser nas mãos do Outro.

Mas como pode um sujeito vir a se colocar como objeto do


Outro 7 Que acidentes na história de uma menina a levam mais tarde,
como mulher, a assumir tal posição, tão arriscada subjetivamente
e tão próxima do masoquismo?
84 PSICAN ÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

"O momento em que a anatomia se põe a significar"


" ...but you, gods, wi/1 give us "Mas com faltas, ó deuses! nos
some faults to fizestes,
make us men." a fim de que pudéssemos ser
homens."

Shakespeare - Anthony and Cleopatra


Act V Scene I

Talvez para pensarmos a respeito do que leva uma menina a


colocar seu ser nas mãos do outro, tenhamos que nos deter neste
momento crucial da i ntancia que é o instante da instalação da
neurose infantil. Este é o momento do descobrimento, por parte da
criança, de uma verdade fundamental: o i nstante da revelação da
falta no Outro, da falta de pênis da mãe. Não se trata aqui de uma
revelação anatômica, mas, como disse C. Soler, "é o momento em
que a anatomia se põe a significar". O que se revela neste instante
ou momento crucial é a natureza do falo, é o ponto de falta do
sujeito. Aqui temos que destacar um elemento de encontro da
criança com aquele que está no lugar do Outro e que se posiciona
como sujeito dividido, ou seja, como a mãe que deixa filtrar o
desejo. O descobrimento por parte da criança de que ela não é o
falo, esta prova do desejo do Outro é um fato que pode se dar ou
não, que depende do Outro e nesta origem podemos dizer que, em
termos de estrutura, há de algum modo uma Tyché.
Se o papel da mãe é o desejo da mãe, sabemos que a criança
responde a este desejo, dá uma resposta a este desejo e esta
resposta é uma forma de subjetivar a castração materna. Ao respon­
der a este desejo, a criança faz uma eleição no sentido de que tal
resposta contém os embriões de gozo que mais tarde irão delimitar
a forma e o uso do fantasma pelo sujeito.
Do ponto de vista de neurose infantil, qual seria a forma
neurótica de responder à percepção da falta no Outro?
Lacan vai dizer que, neste momento, o neurótico hesita, faz uma
vacilação, um pas-hesitation, hesita entre crer no que vê e no que
experimenta. A estratégia neurótica consistiria em sustentar o A e
o l Há um desdobramento do Outro por parte do sujeito que
MUM AMOR TECIDO PELA DUPLJCIDADE" 85

sustenta, a partir de então, um outro castrado e, por outro lado,


um Outro onipotente. O momento do encontro com a falta no Outro
é justamente aquele que balança o sujeito ao nível de suas preten­
sões, de seus apelos e de sua demanda de um amor incondicional.
No caso da neurose infantil, há uma vacilação na aquisição de uma
verdade no campo do saber, na medida em que o sujeito hesita
neste instante do encontro com a falta no Outro, com o desejo do
Outro e vacila em crer na divisão do Outro. A criança enfrenta a
divisão do Outro e a tampona, não abandonando, a partir de então,
o desejo de ser o falo. A criança não quer descobrir, não quer dar-se
conta de que não é o falo e passa, então, a tratar a sua falta a ser
pela demanda de amor dirigida ao Outro. Assim, a posição do
neurótico seria a de recorrer a um outro que lhe daria prazer, que
lhe daria o complemento de ser, de gozo, de amor, enfim, um Outro
que resolveria a sua falta a ser. Mas, em função dessa posição, o
Outro é também, no caso do neurótico, a fonte de suas desgraças
e de seus sofrimentos. Daí advirem as queixas, as recriminações sem
fim a ele dirigidas, pois o neurótico constrói a ficção da castração
como tendo um agente, que seria o Outro, e sobre ele lança a culpa
de todos os seus pesares.
No caso da menina, que incidências poderia ter no seu destino
como mulher esta posição de vacilação quanto à falta no Outro? Se
a sustentação de um Outro onipotente e de um Outro castrado está
articulada a uma inçompetência materna em deixar filtrar o desejo,
em mostrar-se castrada, como pensar a relação da menina com sua
mãe neste tempo inicial onde ela é o objeto de um Outro onipoten­
te?

"Para o destino da menina é preferível que ela te­


nha não uma mãe suficientemente boa, mas uma
mãe suficientemente mulher"

Falar de uma mãe suficientemente mulher é sem dúvida frisar


sua capacidade de desempenhar seu papel em dois lugares distin­
tos, em dois cenários, ou seja, junto ao pai e junto ao filho. Neste
sentido, pai e filho estão encarregados da divisão materna, o que
equivale dizer que a criança não é a única a dividir a mãe, não é
86 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

portanto a responsável pela castração materna, pois a ela e ao pai


cabe a tarefa deste desdobramento.
Mas se porventura a mãe não se desdobrar nesses dois papéis,
como mãe do amor e mãe do desejo, a criança corre o risco de ser
a única a dividi-la, em uma posição que podemos dizer perversa, na
m edida em que o perverso é aquele que busca a divisão do outro,
que nega sua própria castração e busca a falta-a-ser no outro. Mas
a incapacidade materna em se colocar às vezes ao lado do filho e
às vezes ao lado do homem, e neste movimento de báscula presen­
tificar seu desejo, pode levar a criança a u ma posição de oferecer
seu ser ou de se oferecer como complemento materno, como aquilo
que viria tamponar a falta a ser da mãe e a faria toda, talvez até no
s entido de fazê-la apenas mãe, somente mãe, e a criança cairia ou
resvalaria então para o lugar de ser o sintoma da mãe.
Podemos, então, vislumbrar as conseqüências, para a menina,
no que concerne a sua posição como mulher. É interessante pensar
que, mais tarde, a menina, ao desempenhar seu papel como mulher
j unto ao homem, também deverá fazê-lo em dois lugares distintos,
para que ao desejo do homem por ela se acrescente o amor. Por
outr.:> lado, para se posicionar como semblant de objeto no fantasma
do homem, ou para bancar o objeto, não teria ela de estar bem
segura de não ser o objeto que completaria o Outro para poder
então "fazer-se" de objeto?

Não ser objeto do outro, não ser o sintoma da mãe para poder
ser o sintoma do homem?

"Cada menina compreende muito depressa que sua identidade sexual


não pode existir sem estar correlacionada ao desejo masculino. Cada
menina está confrontada com imagens, com idéias de sexo que se apropri­
am dela e a colocam no lugar de objeto. Ela sabe que está destinada a ser
possuída com todas as ressonâncias dessa palavra", disse Colette Soler,
e Lacan acrescenta: por mais que lhe desagrade.

Uma mulher ao "fazer-se-de-mais-de-gozar-do-outro" está no


lugar de objeto, de sintoma e embora algumas se recusem a
desempenhar este papel, a maioria não se furta a tal e faz a escolha
NUM AMOR TECIDO PELA DUPLICIDADE" 87

subjetiva de inserir-se na relação sexual. Ao suportar o objeto para


o outro, ela assim o faz para sustentar o desejo do homem e pelo
valor que ele encerra de portar o falo, de representar o significante.
Ao abordar a questão da transformação do sintoma no final da
análise, Colette Soler afirma que:
"A análise pode levar uma mulher a ceder nas exigências
do amor, o que já é um sucesso, ou seja, aceitar o impos­
sível da estrutura, aceitar ser somente um sintoma para
o outro".
Para terminar, um diálogo de "Antony And Cleopatra", Shakes­
peare. Act I, Scene 111.
Cleopatra dirige-se à sua camareira Charmian e a interroga
como fazer para sustentar o desejo de Marco Antônio por ela.

Cleopatra: What should I do, I do O que devo e o que não devo


not? fazer?
Charmian: In each thing give him Em tudo lhe dê razão, não o
way; cross him in nothing contraries em nada.
Cleopatra: Thou teachest like a Tola, ensina-me justamente a
foo/ - the way to tose him maneira de perdê-lo.

BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina. Em Obras Inéditas de Los Anos 1905
a 1937. Madrid: Biblioteca Nueva, 1 968, tomo 111.
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MILLER, Jacques-Aiain. A lógica na direção da cura. Seminário realizado durante o
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- - · Lacan elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1 997.
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NOMINÉ, Bernard. "Lo Infantil y lo Femenino". Conferencia dictada en 1996.
SOLER, Collette. Finales de analisis. Buenos Aires: Manantial, 1 998.
__ . Variáveis dofim de análise. São Paulo: Papirus, 1 995.
Na Corda Bamba da M o rte . . . Ou da
Vida?
A Criança e a Insuficiência Renal Crônica

joseane Aparedda de Sousa Brant

Introdução

Ao sennos chamados pela equipe de Nefrologia, para o aten­


dimento a pacientes portadores de Insuficiência Renal Crônica (IRQ,
várias questões se tornaram emergentes. Questões para o paciente,
a família os médicos e também para nós psicanalistas.
A relação dos pacientes com seu corpo e o fato de "provocarem"
na equipe de tratamento, sentimentos de angústia, onipotência/im­
potência, frustração com os insucessos, e as dificuldades no vínculo
transferencial demandam reflexões.
Devido a características específicas, a doença renal crônica, na
maioria dos casos, não apresenta sintomas, ou seja, quando se
manifesta já paralisa o rim "jogando o paciente na corda bamba da
morte". Observamos assim que esses pacientes se deparam, já no
início da doença, com algo da ordem do traumático, levando-os a
reações que têm pontos comuns que se colocam subjacentes às
diferenças individuais de cada sujeito.
O corpo do paciente é agressivamente marcado pelos edemas,
cicatrizes de fistula, cortes para i ntrodução de cateteres, além das
89
90 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

complicações metabólicas e uso de medicamentos que causam


iatrogenia.
Do ponto de vista social e afetivo, as relações desses pacientes
se tornam conflitivas, tendo em vista as limitações a que eles se
vêem condenados. Limitações que vão desde os cuidados com a
alimentação e ingestão de líquidos até a impotência sexual.
Para sua sobrevivência, é necessário que o paciente se submeta,
durante quatro horas de cada vez, a duas ou três sessões de
hemodiálise por semana.
Diant� da fala de um médico, "quando é adulto tudo bem ... mas
quando é criança, é diffcil fazer a mesma coisa", nos perguntamos:
Por que é tão angustiante para o adulto tratar com a experiência da
dor e a possibilidade de morte de uma criança? Como a criança
vivenda estas situações? Qual é a especificidade da relação de uma
criança com o seu corpo, quando este é portador de um órgão
"estragado"?
Podemos observar que a criança toca de maneira específica a
subjetividade do adulto, o que nos leva a pensar na constituição do
sujeito e sua relação com o corpo.

Corpo e Linguagem

Partimos do princípio de que o primeiro conhecimento do infans


se dá através das experiências vivenciadas com o próprio corpo, as
quais são marcadas tanto pelas necessidades biológicas como tam­
bém pelos processos psíquicos.
Mas afinal, como podemos definir o corpo? E ainda, de que
corpo estamos tratando?
Quando nos referimos a corpo, inicialmente nos vem a imagem
de algo concebido como organizado, composto de partes com seus
limites e princípios de funcionamento.
O corpo sempre foi objeto do discurso da ciência, e neste ela
nos apresenta uma dicotomia entre o corpo somático e o psíquico.
A biologia e a medicina consideram o corpo como organismo
biológico, o lugar das doenças, da saúde e de suas prevenções.
NA COROA BAMBA DA MORTE ... OU DA VIDA? 91

Nas definições do corpo dadas pela medicina, desde o corpo


anatômico até os mais recentes avanços da biologia, o bserva-se
como traço comum o fato de o corpo somático ser considerado
como uma máquina homeostática, e que, a exemplo da d oação de
órgãos, pode ser disposta em peças separadas.
Segundo Patrick Valas o corpo neste sentido pode ser tomado
por dois modelos:
"O primeiro seria o da máquina tennodinâmica, (. ..) em
que seu equilíbrio é assegurado pelo emprego de forças
de tensão compensadoras e reguladoras cuja energia é
administrada por complexas reaçõesfisico-químicas."
"O segundo modelo define o corpo a partir da máquina
cibernética, ou seja, a inter-relação entre os sistemas imu­
nitários, genéticos e hormonais que constituem o corpo,
se dá por redes de comunicação que transportam mensa­
gens e informações necessárias ao.funcionamento da m á­
quina como um conjunto. Aqui o equillbrio homeostático
não depende mais deforças mecânicas de tensão mas de
redes de comunicação."
Na biologia, o código genético, as informações e m ensagens
que circulam por redes de comunicação, apresentam uma concep­
ção de linguagem diferente da psicanálise.
A linguagem na biologia é "concebida como um eco fisico dos
fenômenos do corpo", as mensagens e informações hormonais são
exatas, funcionam sob a lei do tudo ou nada, ou seja, um órgão só
dá respostas de acordo com a programação do código genético. Por
exemplo: uma glândula mamária jamais produzirá outra coisa que
não seja leite.
Entretanto, se por um lado o saber sobre o corpo é formado em
grande parte pelo conhecimento da ciência, vemos que por outro
este saber coloca dificuldades à medicina científica, principalmente
com relação aos problemas éticos nos casos de inseminação artifi­
cial, doação e transplantes de órgãos, mesmo quando sua realização
é bem-sucedida.
O corpo de que a psicanálise trata é o corpo erógeno, pois o
ser humano, ao ser submetido à linguagem, transforma o o rganismo
92 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

vivo e m corpo. Aqui, tanto o corpo quanto a linguagem remetem a


outras dimensões. A psicanálise, fundamentalmente, opera com a
linguagem, mas diferentemente da ciência, faz surgir o sujeito em
seu d iscurso como resposta do real.
Como vimos a ciência, através do código genético, também faz
uso da linguagem na busca de um saber que interfira no real.
Temos aqui um ponto comum entre ciência e psicanálise, ambas
trabalham os fenômenos da vida e do corpo com os recursos da
linguagem, dos significantes.
Para a psicanálise a linguagem se constitui por uma rede de
significantes cujas mensagens são sempre equívocas e dependem
da m etáfora e da metonímia como leis de seu funcionamento. "A
palavra não tem sentido único... Toda palavra tem sempre um mais-além,
sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos" (Lacan), e é desta
forma que, através da estrutura de lipguagem, a palavra se institui.
Freud ao formular o "aparelho psíquico", cujo funcionamento
é determinado pelo princípio do prazer-tensão-expansão, toma de
empréstimo um referencial termodinâmico, mas ao formalizar os
conceitos de pulsão se distancia da ciência. E é precisamente com
o conceito de pulsão de morte que Freud aponta para um além, para
outra vertente sobre o corpo, indicando assim a autonomia do
simbólico e suas vicissitudes.
S egundo Freud a pulsão é uma força constante (Konstante Kraft),
uma excitação interna (Reiz) que provém de uma fonte endógena
(Quel/e) e que é representada por meio da ação motora, a qual se
direciona para um alvo (Zien.
A pulsão não tem lugar no espaço psíquico, não é consciente
nem inconsciente, sua fonte está numa excitação interna corporal
e ela só encontra expressão no espaço psíquico, como pulsões
parciais, sob a forma de seus representantes. É um conceito limite
entre o somático e o psíquico, e nesta acepção a noção de pulsão
acha-se compreendida entre a NECESSIDADE (corporal-somática) e
o DESEJO (psíquico).
Assim a pulsão, estando apoiada nas zonas erógenas, faz a
libido operar "como uma exigência de trabalhofeita à mente no sentido
de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo".
NA CORDA BAMBA DA MORTE ... OU DA VIDA? 93

Freud no "Projeto de 1 895", ao falar da "experiência de satisfa­


ção", parte da situação de necessidade.
O ser humano, em seu estado de prematuridade neurológica e
desamparo original, por si só não consegue se manter num equilí­
brio homeostático (buscar o alimento, por exemplo). Para obter a
satisfação ele necessita de um outro, um ser falante capaz de lhe
fornecer os objetos adequados à sua sobrevivência.

"O organismo humano é, a princípio, incapaz de levar a


cabo essa ação específica. Ela se efetua por meio de as­
sistência alheia, quando a l!tenção de uma pessoa expe­
riente é atraída para o estado em que se encontra a cri­
ança, mediante a condução da descarga pela via de alte­
ração interna (por exemplo pelo grito da criança). Essa
via de descarga adquire, assim, a importantíssimafunção
secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos se­
res humanos é a fonte primordial de todos os motivos
morais."
Assim, a pulsão que inicialmente se encontra à deriva, vai
estabelecer relações com o mundo e os objetos pela via da lingua­
gem.
Em se tratando da pulsão não estamos falando do organismo
biológico, mas de uma forma especial de corpo que é o corpo
erógeno, o qual se encontra comprometido pela ação do significan­
te, ou seja, de outro ser falante.
Aqui nos perguntamos, que efeitos tem para uma criança com
I RC a ação dos significantes que falam sobre seu corpo doente?
O significado da palavra Hemodiálise (limpeza do sangue -
sangue purificado) chama atenção quando um paciente que ia
submeter-se ao procedimento pela primeira vez e estava com muito
medo, escuta de um familiar: "Não se preocupe pois seu sangue que
está sujo e ruim vai ser sangue bom".
Quais seriam as fantasias do paciente ao ouvir esta fala? E o que
pensar de uma criança "impura"?
Penso que para o paciente é como se o Outro marcasse clara­
mente que ele é portador de um corpo "estragado".
94 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Sabemos que a experiência de satisfação deixa no psiquismo


uma marca que é um traço de percepção, "traço mnêmico" que
Lacan chama de S 1 e que para a psicanálise constitui a base repre­
sentacional do processo pulsional. Isto porque a pulsão, por sua
característica de ser uma força constante, através do "grito", intro­
duz o bebê no campo do Outro. É a função simbólica desse
Outro-mãe que, ao interpretar o grito do bebê, possibilita o surgi­
mento da demanda. Pois, na medida em que o Outro com sua "ação
específica" oferece um objeto que atende à necessidade do bebê,
promove assim a primeira experiência de satisfação .
Podemos pensar que esta "primeira experiência de satisfação"
ocorre num tempo, que chamaremos 1 2 tempo, onde o desejo ainda
não está representado. Isto porque o bebê, neste estado de "urgên­
cia" e desconforto inicial, recebe gratuitamente do Outro um objeto
que atende sua necessidade. A falta, contudo, só é momentânea e
ilusoriamente preenchida.
Essa primeira experiência de satisfação, que se relaciona com
o imed iatismo do corpo do bebê com o corpo da mãe, é que fica
perdida para sempre. Entre essa primeira experiência e outra sub­
seqüente inscreve-se uma perda, pois aquilo que antes veio por
"milagre", agora tem de ser pedi do, a demanda se faz necessária.
No momento em que o estado de necessidade se repetir, a libido
irá re-investir nos traços mnêmicos em busca da satisfação originá­
ria. É desse re-investimento que surge o desejo, o qual buscará sua
realização através da alucinação das percepções, que se tornaram
traços da primeira experiência de satisfação.
É através do re-investimento desses traços que se inaugura o
trabalho psíquico.
Assim o desejo, fundado na falta através da pulsão, na medida
em que se aliena ao simbólico da linguagem, irá se expressar via
demanda. A demanda é pois a expressão do desejo na ordem da
linguagem e neste registro está sempre dirigida ao Outro.
Durante o processo de hemodiálise, os pacientes vivenciam
sentimentos de desamparo e desproteção.
Retomando a experiência de satisfação formulada por Freud,
em que o objeto amparador assume uma importância vital para o
sujeito frente ao seu desamparo original, podemos compreender a
NA CORDA BAMBA DA MORTE... OU DA VIDA? 95

situação de dependência dos pacientes, tanto em relação ao "rim


artificial" (máquina hemodiálise) como também para com a equipe
de tratamento. Ambos são identificados como objetos amparado­
res.
Da mesma forma que para o bebê este tempo de dependência
inicial é fundamental, também para que o paciente com IRC inicie
o tratamento é necessário "aceitar" a dependência da equipe e da
máquina hemodiálise.
Observamos que essa "aceitação" é extremamente dificil para
o paciente. Vimos anteriormente que a doença renal crônica leva à
paralisação e perda do rim. Diante dessa situação, para o paciente,
"aceitar" o tratamento implica que ele "aceite" também que perdeu
um órgão vital para a sua sobrevivência. Mesmo com avanço dos
tratamentos e possibilidade de transplante, o traumático se coloca
na ordem do órgão-objeto para sempre perdido.

Constituição do Sujeito

Seguindo a teoria psicanalítica, é importante elucidarmos al­


guns aspectos fundamentais da constituição do sujeito como: está­
dio do espelho, processos de alienação e separação, e identificação
para que seja possível compreendermos as dificuldades vividas pelo
paciente com I RC.
É interessante observarmos como esses aspectos constitutivos
são ressignificados de forma traumática para o sujeito, podendo
muitas vezes funcionar como i mpedimento para o tratamento do
paciente.
A relação que o paciente estabelece com a máquina de hemo­
diálise, o "rim artificial", é i nicialmente marcada por fantasias de
não ser "dono" de seu corpo, revivência do "corpo esfacelado", não
unificado, e ainda de que seu corpo está sob o controle de outro,
o que é fortalecido pela situação real.
Segundo joel Dor, Lacan define o "Estádio do espelho" como
uma experiência de identificação primordial que a criança faz da
imagem de seu próprio corpo.
96 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

Inicialmente a criança vivenda seu corpo como algo disperso,


não u nificado, "corpo esfacelado".
Assim como ocorre com a pulsão, é através da relação com o
outro que a criança encontra a possibilidade de organização desta
desintegração caótica.
Num 1 º tempo a experiência é vivida como uma confusão entre
si e o outro, ou seja, a criança se vê primeiro na imagem do outro,
momento marcado pelo assujeitamento da criança ao registro
imaginário.
O 212 tempo é decisivo no processo identificatório, no qual a
criança descobre que o outro do espelho não é real, mas uma
imagem, distinguindo assim a imagem do outro, da realidade do
outro.
Ao dialetizar as etapas anteriores, o 312 tempo leva a criança a
perceber que o reflexo do espelho é uma imagem dela própria, e
ao se re-conhecer nesta imagem recupera o corpo esfacelado numa
totalidade unificada. Desta forma, antes da experiência do corpo
individualizado, do advento do esquema corporal, a criança se
re-conhece na imagem do outro, deduzindo daí sua própria ima­
gem.
É um tempo que pressupõe o princípio constitutivo da aliena­
ção do sujeito no campo do outro, onde predomina a ilusão de
fusão, relação imaginária de encontrar aí o seu ser.
E mbora o tempo da alienação seja de vital i mportância para a
constituição do sujeito, é necessário que a criança se separe desta
relação, saia da posição de objeto para a de sujeito desejante. Esse
processo de separação é possível por meio da própria estrutura
significante, no momento em que o sujeito se depara com a falta
no Outro. Processo que se toma constante na vida do ser humano.
Para o paciente portador de IRC, será que é possível dialetizar
uma diálise?
A diálise funciona como um substituto dos rins: filtra o sangue,
elimina as substâncias tóxicas que os rins não conseguem eliminar
e retira o excesso de água do organismo, sendo este processo de
dois tipos:
a) o processo de hemodiálise consiste na colocação de um
cateter no corpo da pessoa, o qual é conectado a uma máquina por
NA CORDA BAMBA DA MORTE ... OU DA VIDA? 97

onde o sangue, ao ser retirado do corpo, é conduzido por uma


bomba até o dialisador, onde é filtrado, retornando ao corpo após
a limpeza;
b) diálise peritoneal que consiste na colocação de um cateter
na barriga e na i ntrodução de uma quantidade de líquido para
dentro e para fora deste cateter, podendo ser: Intermitente, quando
a pessoa comparece ao hospital duas vezes por semana, num espaço
de aproximadamente 24 horas, e faz toda a limpeza do sangue; e
CAPD (Diálise Peritoneal Ambulatorial Contínua), onde o paciente
ou membro da família recebem treinamento para realizar a purifi­
cação do sangue em casa. Neste tipo de diálise os pacientes mos­
tram-se mais preservados para estabelecer relacionamentos inter­
pessoais.
Uma criança, ao iniciar a hemodiálise, expressava medo e
angústia cobrindo o rosto para não ver o processo se realizar.
Sugerimos que a cadeira onde estava a criança fosse colocada um
pouco à frente da máquina, de modo que o processo saísse de seu
campo de visão. O paciente mostrou-se "aliviado" por não ser
"obrigado" a ver o funcionamento da máquina. Começou então a
conversar sobre um filme e após um certo tempo a fazer perguntas
sobre o que estava acontecendo com seu corpo.
Não "ter" que ver a diálise, tomar uma "distância" do que o
angustiava, neste caso, possibilitou uma mudança de sua posição
de assujeitado. Pôde, assim, dialetizar sua diálise e ao falar expres­
sou seus medos e temores sem se sentir em pânico.

Dialisar - Idealizar - Desidealizar

Durante o processo de hemodiálise, o relacionamento médico­


paciente pode tomar as mesmas características da relação diádica
mãe-bebê. Para o paciente o médico, por ser aquele "que sabe"
sobre sua vida e sua morte, é assim colocado no lugar de ideal-do­
eu. Através dessa idealização, o paciente busca tanto a garantia de
sua vida como a recuperação de sua identidade primordial, sua
imagem narcísica.
98 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

No decorrer do tempo, vemos que esse lugar idealizado se toma


insustentável para o médico, já que o paciente, por se encontrar
infantilizado e assujeitado, passa a reivindicar cada vez mais; sua
demanda narcísica é crescente, tomando-se uma sobrecarga.
Este "tempo de alienação", ilusão funcional, também é substi­
tuído pelo tempo de separação, desilusão provocada pela própria
realidade da doença crônica.
Do lado do paciente, ao iniciar o tratamento, os sintomas
fisicos, as dores, o corpo deformado pela doença são aliviados com
a diálise. É como se ele recebesse uma "injeção de vida".
Mas a gravidade da doença continua, com complicações meta­
bólicas e cardiorrespiratórias, além dos efeitos provocados pelo
processo de diálise.
Do lado do médico e equipe de tratamento, as demandas ficam
i ntoleráveis frente a sentimentos de impotência em "curar" o paci­
ente e frustração diante dos procedimentos que não dão certo.
As fantasias persecutórias e a recusa dos pacientes ao tratamen­
to desgastam o vínculo da equipe com o paciente.
De ambos os lados, ocorre a passagem da idealização para a
desidealização, onipotência/impotência.
Hugo Villelli coloca que esta etapa de desidealização pode ter
as seguintes alternativas:
" 1 . Reiteração da demanda narcísica, dirigida ao mesmo
objeto ou a outro que aceite se encarregar dela (regres­
são).
2. Passagem, também regressiva, ao estado de desampa­
ro, extremando as condutas transgressivascomo prova de
revide.
3. Retirada do interesse pelo mundo, depressão, desinte­
resse.
4. Aceitação das limitações mútuas, assumindo tanto os
aspectos conjlitivos como aqueles outros enriquecedores
do vínculo.
Estas diversas alternativas podem suceder-se umas às ou­
tras, sem que as relações médico-pacientesfiquemfixadas
a nenhuma delas em particular".
NA CORDA BAMBA DA MORTE ... OU DA VIDA? 99

As condutas regressivas, a transgressão - principalmente com


relação à dieta -, e a recusa dos tratamentos, inclusive do psica­
nalista, são bastante freqüentes.

Sintoma e Tratamento

Um paciente de 1 1 anos, ao se ver como portador de Insufici­


ência Renal Crônica, demonstrou comportamentos regressivos e
agressivos, tanto com a família como também com a equipe de
tratamento. Sua doença renal se iniciara na primeira infància, tendo
se submetido a tratamentos que de certa forma lhe "garantiram" a
possibilidade de "cura". Quando ocorre o inesperado da doença
crônica, a mudança de equipe e a forma de tratamento se fazem
necessárias, o que provoca reações do paciente e da família com
relação à equipe nova, dificultando assim o "tempo de idealização".
Esse paciente demonstrava i ntensa ligação simbiótica com a
mãe, demandando cuidados regressivos e reagindo com extrema
rebeldia quando não era atendido prontamente em situações que
ele poderia resolver sozinho. Em alguns momentos era como se sua
mãe fosse "responsável" por sua doença.
Freud, no texto "As Exceções", fala das resistências à análise
quando é pedido "ao paciente que renuncie provisoriamente a alguma
satisfação agradável... e se submeta a uma necessidade que se aplica a
todos, encontramos indivíduos que resistem a esse apelo por um motivo
especial. Dizem quejá renunciaram bastante e já sofreram bastante... não
se submeterão mais a qualquer necessidade desagradável, pois são exce­
ções... ". Coloca ainda que há uma razão específica para se sentirem
"exceção", e esta razão está no fato de terem tido na primeira
intancia uma experiência de sofrimento em relação a qual sabem
não terem tido culpa, sendo uma injustiça imposta a eles. Reagem
portanto com rebeldia a esta injustiça, reivindicando privilégios.
Esse paciente ao falar dos medos que sentia da máquina de
hemodiálise, de sentir dor e ver seu sangue, diz: '�á tirei muito
sangue ..." Com isso nos fala que já havia "perdido" muito, e ao
reagir com rebeldia demonstra que a vida me deve algo .. "tenho
.
1 00 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

direito de ser uma exceção". É uma exigência a reparar sua ferida


narcísica.
Outro aspecto importante a ressaltar está no fato de o paciente
ser o PORTADOR de uma doença crônica. Se pensarmos, estes
pacientes carregam em seu corpo uma marca, um significante que
os identifica como aquele que porta-a-dor. A dor está inscrita de
forma cruel em seu corpo. Como pode o paciente simbolizar esta
inscrição, já que ao carregar a dor no corpo, vêm à tona os conflitos
e experiências infantis juntamente com seus sintomas?
Uma criança, em seu primeiro dia de hemodiálise, se mostrava
deprimida e angustiada. O contato inicial foi dificil, contudo foi
sustentado. Isto possibilitou à criança falar sobre sua vida, estudos,
o que gostava de fazer, e gradativamente a expressão triste de seu
rosto foi se modificando. Parece que por algum tempo pôde "es­
quecer" a dor que estava portando. Foi um "esquecimento" breve,
mas marcante porque, enquanto falava de sua vida, sonhos e
desej os futuros, pôde ser sujeito desejante. É um tempo imaginário,
onde se tem a ilusão de completude, de encontrar aí o seu ser, a
sua verdade. Em seguida o paciente passa para um outro tempo em
que, ao questionar sobre transplantes que não dão certo, aponta a
falta no Outro. Falta que ele formula com a fantasia de que "se
falharam com ele vão falhar comigo". Continuando com outros
assuntos, durante os quais ora se reanima, ora desanima, o paciente
fala de seu "medo maior". "Tenho medo de receber o rim de um
cadáver e depois ele voltar para buscá-lo."
Esta fantasia é comum entre os pacientes que necessitam de
transplante, e aqui entra em jogo algo fundamental, pois além da
imagem corporal que está comprometida, a identificação primordi­
al do paciente parece i mpossibilitada.
Como pode um sujeito se identificar com um morto? Como
poderia se re-conhecer num estranho?
No que se refere à "identificação primordial", Lacan coloca que
"o dito primeiro, decreta, aforisa, é oráculo, confere ao Outro sua obscura
autoridade". Assim, o traço unário, S 1 , "por preencher a marca invisível
que o sujeito recebe do significante, aliena este sujeito na identificação
primeira que forma o ideal do eu, I(A)". Desta forma, o que predomina
no i maginário da criança é o desejo onipotente do Outro. E do
NA CORDA BAMBA DA MORTE ... OU DA VIDA? 1 01

p o n to de vista da criança o que interessa na relação mãe-filho é a


demanda de amor que se configura através da presença-ausência
da mãe. O que o sujeito não quer saber é que, na verdade, o Outro
tem o "poder de privar (a criança) da única coisa que a satisfaria"
q u e é seu próprio desejo.
U m paciente diz: "O corpo morre, mas o espírito fica e pode ser
q u e ele não queria doar". Esta fantasia de que o cadáver volta para
bu scar o órgão doado, indica que para o paciente o "órgão-rim"
conti nua vivo, mas também seu "dono" está vivo. A n ível imaginário,
o q u e permanece nesse caso é o desejo onipotente desse Outro
(doador), desejo que não se dirige a ele e portanto não abre espaço
p a ra que seu próprio desejo apareça. Aqui o significante "doador"
ap arece para o receptor como aquele que "doa-a-dor".
Para que um rim seja "recebido" é necessário que ele seja visto
a p e nas como um órgão. O poder de privação do Outro precisa ser
simbolizado, o que é possível na medida em que o "cadáver" é visto
como "morto" e o rim descolado dele é recebido como objeto de
amor.
Além disso, sabemos quanto é diffcil para o ser humano aceitar
a p e rda. Para que o sujeito possa receber é necessário elaborar
primeiro que perdeu algo.
Em alguns pacientes a elaboração dessa perda chega a ser
impossível. Preferem continuar com o seu rim, sem funcionar e
causando complicações a seu organismo, a ter que ficar com o
"va z i o" deixado pela retirada do órgão. "Vazio" que concretiza a
castração como o não-funcionamento do corpo. Aceitar esse "vazio"
depende de como o paciente conseguiu elaborar sua falta originá­
ria.

O Lugar do Analista

A criança portadora de I nsuficiência Renal Crônica apresenta


um atraso significativo em seu desenvolvimento ffsico, o que limita
sua capacidade ffsica e sua auto-estima. Além disso, a idade e o
estágio de desenvolvimento da criança quando ocorre a doença, são
1 02 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

fatores importantes que influenciam nos seus distúrbios emocio­


nais.
A forma como a família lida com a doença é de grande impor­
tância nas respostas da criança ao tratamento. Dialisar significa
depender de uma máquina e, além disso, pôr a própria vida nas
mãos de uma equipe médica. Assim, o vínculo estabelecido entre a
família e a equipe multidisciplinar que cuida da criança com I nsufi­
ciência Renal Crônica é de fundamental importância para a adapta­
ção e evolução desses pacientes ao tratamento dialítico.
O processo de desenvolvimento que leva a criança a uma
conquista gradual do controle sobre o próprio corpo, o mundo
externo e sua independência são alterados com o surgimento da
doença crônica. Além da submissão aos procedimentos necessários
à manutenção da vida, a criança acaba se adaptando a um estilo de
vida que também é crônico.
Um paciente ao se ver dependente e assujeitado ao tratamento,
após um comportamento agressivo por longo período, recusa aten­
dimento psicológico, o que foi compreendido inicialmente como a
forma que encontrou de se ver como sujeito desejante. Em seguida
passa a recusar procedimentos vitais para seu tratamento e fi n al­
mente diz: "Não quero fazer o transplante". O que ele está realmen­
te recusando?
Entendemos que a recusa desse paciente se relaciona com o
fato de não ter "liberdade de escolha", seu desejo não podia
aparecer já que todos desejavam por ele. Sabemos que o desej o do
sujeito se constitui no ponto em que o desejo do Outro falta, seja
desconhecido para ele.
Segundo Lacan é nos intervalos do discurso do Outro, onde o
desej o do Outro é visto como enigma, que surge, na experiência da
criança, a possibilidade de seu próprio desejo emergir. Se o O utro
tem todas as respostas, todo o saber, não há espaço para os "por
quês?" da criança - "por que será que você me diz isso ... o que
queres"? Isto impossibilita a criança de se separar do desejo alie­
nante e onipotente do Outro.
No caso do paciente que recusa o transplante, os sentimentos
provocados na equipe e família foram de angústia e i ndignação.
Como entender por que uma criança recusa esta "sorte e privilégio"?
NA CORDA BAMBA DA MORTE ... OU DA VIDA? 1 03

Neste momento, o paciente recusando o transplante parece "esco­


lher" a morte. Aqui a morte entra em jogo e temos uma estrutura
interessante como no exemplo de Lacan quando fala sobre a escolha
entre a liberdade ou a morte.
"Vocês escolhem a liberdade, muito bem!, é a liberdade
de morrer. Coisa curiosa, nas condições em que lhes dizem
a liberdade ou a morte!, a única prova de liberdade que
vocês podem fazer nas condições que lhes indicam, éjus­
tamente a de escolher a morte, pois aí, vocês demonstram
que vocês têm a liberdade de escolha. "
Quando é "imposto" o transplante, o paciente não tem escolha,
é o Outro que tem o saber sobre sua vida.
Entendemos que desse lugar que o paciente fala, diante da
"liberdade ou a morte", qualquer um que se escolha ele tem os dois.
Com sua recusa, o que o paciente nos pede é a "liberdade de
escolha", a possibilidade de sair da posição alienante.
O paciente repete angustiadamente "não quero ser obrigado a
fazer transplante".
O analista, após escutar a dor e a recusa do paciente, lhe diz
que não será obrigado a fazer o que não queira ... mas é importante
que fale com alguém de seu sofrimento ... assim poderá compreen­
der o que está lhe acontecendo e com "certeza" terá condições de
escolher o que quer.
O lugar do analista não é aquele que tem as respostas para a
dor e o sofrimento do paciente.
O analista se oferece para receber a demanda do paciente,
acolhe a dor, aceita a recusa e marca a possibilidade de o paciente
sair do pânico na medida em que "aposta" que a linguagem levará
o sujeito a encontrar sua "escolha" abrindo caminho para o surgi­
mento do desejo.
Este foi o último encontro do analista com esse paciente, e
soube-se um tempo depois que ele havia concordado com o trans­
plante, após conversar com uma pessoa que já havia se submetido
a um transplante bem-sucedido.
Por várias razões o tratamento psicológico foi interrompido e
alguns meses depois o médico nos informa que o paciente, mesmo
1 04 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

aceitando o transplante, se encontrava diante da seguinte situação:


"Todos os órgãos encontrados não confirmam a prova cruzada, o
que é necessário para o receptor". E nas palavras do médico: "Parece
que tem algo inconsciente aí..." .

BIBLIOGRAFIA

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Há uma Psi canálise do Corpo?

Cláud;a Pedrosa Soares

"Raman Keats sabia uma coisa que era a fonte secreta


de seu poder: sabia que o que os homens desejam não
é a norma social civil, e sim o absurdo, o exagero, o
extravagante - aquilo que pode desencadear nosso
potencial selvagem. Ansiamos por poder nos
transformar, abertamente, no que somos em segredo. "

Salman Rushdie. In: O Último Suspiro do Mouro

'

A primeira vista parece-nos óbvia a resposta ao título do pre­


sente artigo. Responderíamos, rapidamente: Não! A psicanálise não
diz do corpo enquanto carne e sim da subjetividade que o habita. En­
tretanto não podemos desprezar a relação existente entre o corpo
e a subjetividade, principalmente quando um psicanalista trabalha
em um hospital geral, pois sabemos que o corpo, nesta instituição,
é alvo de urgência.
Miller, 1 1 98 1 , nos diz de forma enfática:
"Não há psicanálise do corpo".
E, ainda, nos ajuda, dizendo dessa relação. Em suas palavras:
"O corpo está inscrito e representado no inconsdente".
Se não há uma psicanálise do corpo, podemos, então, pensar
que há uma relação entre o corpo e o sujeito do inconsciente.
A nossa proposta de trabalho é analisar a influência que um
defeito fisico poderia acarretar na subjetividade humana. Para
tanto, faremos uso do estudo de um caso clínico que trará consigo
a intenção de pensarmos a d ireção do tratamento feito pelo psica-

1 05
1 06 PSICANÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

nalista, presente em uma Instituição de saúde, e a importância


desse trabalho para o paciente.

Corpo enquanto Lugar de Causa do Sujeito

O corpo humano, em seu perfeito funcionamento, nos chega


aos olhos apossado de uma fisiologia harmônica, onde os sistemas
e os aparelhos da máquina humana interagem, possibilitando que
a morte seja um acontecimento para um futuro distante. No entan­
to, a única previsão que temos da vida é a morte. Diante dessa
previsão buscam-se projetos de manutenção da vida. Esses projetos
vêm nos dizer, então, que esse corpo contraria a perfeição ideal de
funcionamento e que algo, p resente em sua constituição, falha e
escapa ao controle do homem.
Esse algo que escapa é retomado pela ciência e pela psicanálise
enquanto fonte de trabalho. A ciência intervém nesta falha visando
saber e transformação e a psicanálise situa o sujeito como resposta
a ela.
A ciência aponta para o corpo na sua dimensão biológica,
constituída de partes articuladas e regradas por certos princípios
funcionais de autoconservação. Esse corpo orgânico é dotado de
uma organização que não visa ao sujeito do inconsciente.
Entretanto, não podemos reduzir o corpo humano a um ema­
ranhado de órgãos que se articulam entre si. Esse corpo também
diz de si, o corpo fala. A fala prediz significantes. Esse corpo que
fala requer seu deciframento no simbólico. E é nessa dimensão
simbólica que a psicanálise encontrará seu campo de atuação.
Designaremos, então, o corpo, que se presta aos cuidados da
psicanálise, enquanto uma estrutura significante marcado pela pa­
lavra do Outro.
Ptlmponet e Gerbase,2 1 993, nos diz que:
" ... para Lacan o corpo é sobretudo simbólico, porque é
habitado pela linguagem. Somente investida pela palavra
do Outro a imagem corporal ganha corpo, isto é, com a
aquisição da linguagem, as experiências corporais tor­
nam-se significantes, se codificam e estruturam a sulr
HÁ UMA PSICANÁLISE DO CORPO? 1 07

jetividade. O corpo é, assim, um enigma feito de pala­


vras... Deste ponto de vista, o organismo biológico, afe­
tado pelo significante, transforma-se em corpo. O Isso
freudiano, por um efeito de estrutura de linguagem, pas­
sa a Issofala... Por conseguinte podemos equivaler o cor­
po ao simbólico- o corpo da psicanálise é uma estrutura
significante, designa um lugar, o lugar do Outro. É incor­
poração do simbólico... Se o sujeito é dependente do sig­
nificante e o significante está no campo do Outro, pode­
mos então situar o corpo como um lugar que causa o su­
jeito. Passamos do 'corpo funda o ser' ao 'corpo causa o
sujeito'."
É esse "corpo causa o sujeito" e sua dimensão de enigma que
oferecem ao psicanalista instrumentos de trabalho, hipóteses diag­
nósticas estruturais e direcionamento da cura.
O que a psicanálise poderia, então, oferecer às pessoas que se
apresentam distanciadas dessa imagem corporal idealizada e se
dizem sofrer por isso? Não com rara freqüência as encontramos nos
corredores dos hospitais.
Apesar de atuarem com referências diferentes, a medicina e a
psicanálise convergem para o objetivo de aliviar o ser humano de
seu sofrimento. Atualmente a importância dessa parceria tem se
tornado cada vez mais evidente com a presença dos psicanalistas
nas instituições de saúde. Cada qual trabalhando com o seu saber
em prol do paciente.
Diante do saber que nos compete, focalizemos o nosso trabalho
com esse sujeito que clama por ser ouvido, deixando aos cuidados
da ciência esse corpo em sua pura sintomatologia orgânica. De
agora em diante, sempre que fizermos menção à palavra corpo
estaremos designando-a no sentido psicanalítico, ou seja, enquanto
um lugar que causa o sujeito do inconsciente.

A Constituição do Sujeito do Inconsciente

Sabemos que o corpo não é somente um meio de expressão; é


também lugar de inscrições primitivas que se efetuaram em tempos
1 08 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

inaugurais do sujeito e até mesmo antes que o aparelho psíquico


se encontrasse constituído. O corpo é memória das fantasias da mãe
e dos estímulos internos que sua condição de vivente lhe produz.
Ali, onde a palavra se furta, um som, um movimento, um cheiro
podem estar no lugar de uma representação que falta. Chamamos
de significantes essas marcas deixadas no corpo.
Para pensarmos neste corpo, nada mais pertinente do que
fazermos referência ao sujeito, não só enquanto um lugar de causa,
mas também pela prematuridade do homem ao nascer.
Lacan nos fala em dois momentos, anteriores ao advento do
sujeito, que apontam para a construção da estrutura lingüística na
qual a criança se organizará e que lhe possibilitará, ou não, a posse
de um corpo. Esses dois momentos são: o estágio do espelho e o
jogo do Fort-da.
De início a criança não vivenda seu corpo como uma totalidade
unificada; ela antecipa imagir.ariamente a apreensão e o domínio
de sua unidade corporal pela via de uma identificação à imagem do
semelhante enquanto forma total. Antes dessa antecipação imagi­
nária, a qual Lacan chamou de estágio do espelho, a criança, ainda
em estado de impotência e descoordenação motora, vivenda seu
corpo como algo despedaçado. Após esta identificação fundamental
com o Outro, ocorre uma primeira demarcação de si, mas ainda não
podemos dizer de uma subjetividade no sentido estrito da palavra.
Este momento de conquista da imagem corporal se relaciona à
constituição do eu. Estamos, então, no campo do narcisismo, onde
prevalece o registro do imaginário.
Para sermos mais específicos, a experiência da criança na fase
do estágio do espelho organiza-se em torno de três tempos funda­
mentais.
Inicialmente ocorre uma confusão entre a criança e seu seme­
lhante; é no Outro que ela se percebe e se orienta. O infans se
assuj eita no registro do imaginário. O segundo momento se cons­
titui em um processo fundamental de identificaÇão. Ela percebe que
o Outro do espelho não é um outro real, mas sim uma imagem. No
terceiro momento, há uma dialetização das duas etapas preceden­
tes. A criança está segura de que o reflexo do espelho é só uma
HÁ UMA PSICANÁLISE DO CORPO? 1 09

imagem porque adquire a convicção de que aquela imagem é o


próprio reflexo de seu corpo.
De acordo com a leitura dejoel Dor,3 1 990:

"Re-conhecendo-se através desta imagem, a criança recu­


pera assim a dispersão do corpo esfacelado numa totali­
dade unificada, que é a representação do corpo próprio.
A imagem do corpo é, portanto, estruturante para a iden­
tidade do sujeito, que através dela realiza assim sua iden­
tificação primordial".

Com a aquisição da imagem corporal, a criança se precipita na


fase edípica, fase esta que lhe dará ou não um corpo perpassado
pelo simbólico. O Édipo é elaborado, na perspectiva lacaniana, pela
topologia do significante que a metáfora paterna vem confirmar.
O jogo do Fort-da, trabalhado por Freud em seu texto "Além do
princípio do prazer", exemplifica a realização da metáfora paterna
no processo de acesso ao simbólico.
Nas palavras de Freud,4 1 920:

"Certo dia,jiz uma observação que confirmou meu ponto


de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um
pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe
ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e
brincar com o carretel como sefosse um carro. O que ele
fazia, era segurar o carretel pelo cordão e com muita pe­
rícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha en­
cortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre
as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu
expressivo 'o-o-o-o'. Puxava então o carretel parafora da
cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu
reaparecimento com um alegre 'da' ('ali'). Essa, então, era
a brincadeira completa: desaparecimento e retomo. Via
de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era
incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo,
·
embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava
ao segundo ato.
110 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

A interpretação do jogo tomou-se então óbvia. Ele se re­


lacionava à grande realização cultural da criança, a re­
núncia pulsional (isto é, a renúncia à satisfação pulsional)
que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar.
Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele
próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se en­
contravam ao seu alcance".
O fort-da ilustra o que Lacan denomina de substituição signifi­
cante. O jogo "desaparecimento-retorno" simboliza a presença-au­
sência da mãe. Além disso, esse jogo nos indica que a criança
consegue renunciar ao fato de não ser mais o único objeto de desejo
da mãe. Nessa relação significante a criança adquire a capacidade
de nomear a causa das ausências maternas fazendo referência ao
pai, àquele que detém o falo. Em outras palavras, o que supõe o
acesso à simbolização é essa experiência subjetiva de subtrair a
criança da dimensão do Ser e precipitá-la na dimensão do Ter.
Aceder a tal dialética pressupõe que lhe é possível distinguir a si
próprio da vivência e do substituto convocado a representá-lo.
Essa operação de substituição exige um reposicionamento da
criança. Ela se posicionará diante do Outro não somente como
objeto, mas também enquanto sujeito.
"O advento desse 'sujeito' atualiza-se numa operação
inaugural de linguagem, na qual a criança se esforça
por designar simbolicamente sua renúncia ao objeto
perdido. Tal designação só é possível se estiverfundada
no recalque do significante fálico, nomeado também
5
significante do desejo da mãe"(S 1).
O recalque originário, então, institui o acesso à metáfora do
nome-do-pai, aparece como uma representação organizadora que
assegura a passagem desse real imediato vivido pela criança à sua
simbolização na linguagem. É o momento em que o ser humano se
aferra, se aliena a um significante e diz: "eu sou isso!". Momento
marcado pela alienação primária. Entretanto, essa primeira marca
não diz tudo do sujeito, algo escapa e pede significação, momento
de separação. Um novo significante - $2 , denominado por Lacan
-

Nome-do-Pai, vem tentar dizer desse significante recalcado.


HÁ UMA PSICANÁLISE DO CORPO? 111

O sujeito surge no intervalo entre S 1 e S2 e marca a impossi­


bilidade de se ter acesso a esse primeiro objeto, remetendo o desejo
a uma seqüência infinita de nomes-do pai.

"O desejo permanece, portanto, sempre insatisfeito, pela


necessidade em que se encontrou de se fazer linguagem.
Ele renasce continuamente, uma vez que está sempre,fun­
damentalmente, em outro lugar que não no objeto a que
ele visa ou no significante suscetível de simbolizar este ob­
6
jeto."

A metáfora do nome-do-pai inaugura um momento estruturante


na evolução psíquica da criança. Além de lhe possibilitar seu acesso
à dimensão simbólica, barrando o seu assujeitamento à mãe, esta
operação substitutiva lhe confere o status de sujeito desejante.
Lefort,7 1 991 , nos propõe a função do Nome-do-Pai enquanto
possibilidade de se ter um corpo.

" ... Ter um corpo só pode querer dizer tê-lo pelo Outro no
significante: o corpo é o significado desse significante
naquilo que Lacan definiu como 'ponto de basta'. Neste
sentido, aforclusão do Nome-do-Pai é a separação radical
entre o real do corpo e o significante do Outro. "

Assim podemos pensar que o corpo, no estrito sentido psica­


nalítico, adquire sua existência a partir da linguagem. E só podemos
dizer que há um sujeito do inconsciente se o infans se insere na
cadeia significante, a partir de uma estrutura neurótica, para fazer
discurso. Pois se ele permanece fora do discurso, dizemos de uma
organização psicótica cuja estrutura não toma posse do seu corpo.
Nas palavras de Lefort,8

"todos os conteúdos do corpo, produtos e órgãos, estão


a serviço do gozo do Outro. Diz Schreber: 'Vivi por muito _

tempo sem pulmões, sem fígado, sem intestinos.. O sig­


. •

nificante do Outro, que vem do Outro enquanto tal e não


de um mais-além, exteriorizo por sua voz os conteúdos do
corpo do sujeito".
112 PSICANÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Organizado em tomo da estrutura neurótica, o suj eito é privado


de um saber, situa-o na impossibilidade de retorno ao significante
primordial, fundando, assim, sua existência sobre um não-saber. O
redobramento do significante em 52 é a única forma de dizer desse
significante perdido, S 1 , é uma tentativa de saber sobre si e uma
forma de se separar do Outro. Pois ao longo dos espelhos, o
neurótico marca o Outro e o mundo por essa perda e essa impotên­
cia, assumindo o lugar de obj eto causa de desejo do Outro. É
preciso, então, que esse objeto caia do intervalo do par de signifi­
cantes primordiais, para que o sujeito advenha.
Voltemos à nossa questão inicial. Como podemos pensar os
efeitos de uma má-formação, ou mesmo um defeito fisico adquirido
ao longo da vida, na subj etividade humana?
E ainda: qual seria a direção possível a ser dada pelo analista,
principalmente quando este se encontra em uma Instituição Hospi­
talar?

Do Ser um Corpo para Ter um Corpo

João, uma criança de 9 anos, foi encaminhada pela clínica


médica à equipe de psicanálise de um hospital geral. O psicanalista
se deparou então com a seguinte história:
João nasceu sem ânus. Durante os três primeiros anos de sua
vida submeteu-se a várias cirurgias e prolongadas i nternações. Com
dificuldades em controlar seus esfincteres, fazia-se necessário uma
dieta controlada rigorosamente , rigor no que se refere à quantidade
e qualidade de alimento e aos horários adequados. Porém, se se
sentia frágil do ponto de vista emocional, ansioso e angustiado, suas
fezes eram eliminadas a qualquer hora e/ou lugar, i ndependente da
d ieta utilizada. Elas escapavam ao seu controle.
A oportunidade de se submeter a outra cirurgia foi mais uma
de suas tentativas de se aproximar da "boa forma" e do bom
funcionamento da máquina humana. Ele dizia: "Eu quero ser nor­
mal!"(sic). Além disso, seria a sua "chance" de ampliar seu círculo
social, pois este se restringia somente ao núcleo familiar, na medida
em que evacuava a qualquer hora e em qualquer lugar, causando
HÁ UMA PSICANÁ LISE DO CORPO? 113

um incômodo não s ó a ele mas a todos que s e encontravam à sua


volta. A possibilidade de ir à escola, ao parque, ou mesmo se juntar
aos primos era-lhe motivo de sofrimento, pois o remetia à possibi­
lidade de um descontrole esfincteriano.
A princípio João rejeitou as sessões com o analista dizendo que
precisava de um cirurgião e não de um psicanalista, mas à medida
que um espaço ia sendo oferecido para ouvir o que esse sujeito
estava sofrendo em decorrência dessa falha no corpo, possibilitou­
se-lhe o surgimento de uma demanda ejoão foi podendo expressar
algo além do seu corpo biológico.
A direção do trabalho realizado pelo analista partiu da escuta
de que João estaria possivelmente impedido de ser, na vida, algo
mais do que um Ser desprovido de ânus. Este nível de realidade, no
qual se pensou que João poderia estar fixado, lhe propidava o
mesmo efeito da lembrança encobridora. Ao invés de uma rede
fantasmática, pensou-se na hipótese de João lidar com o vazio, no
qual sua subjetividade se constituiu, através de uma marca de
realidade em seu próprio corpo.
Pensamos, então, na problemática do defeito fisico encaixar na
falta estrutural e servir de apoio imaginário, no qual o sujeito
passaria a se sustentar. Estaríamos, neste caso, na dialética do Ser
e do Ter.
O que essas sessões, em princípio, pretendiam era situar este
defeito fisico na economia psíquica de João e avaliar até que ponto
haveria um investimento a mais na parte afetada pela Má-Formação,
que poderia propiciar a concentração da libido do sujeito neste
órgão especificamente defeituoso.
Sabemos que o excesso de investimento em uma parte especí­
fica do corpo, no caso de João, no orificio anal, possivelmente
poderia propiciar um deslocamento do ponto de sustentação desse
sujeito para esta zona, que hipercatexizada passaria a criar toda
uma sintomatologia em torno dela.
O que justificaria a presença de um analista é justamente essa
concentração de libido em uma parte corporal específica, pois
evidentemente um defeito fisico, seja ele de qualquer porte ou
localização corporal, traz em si transtornos e dificuldades para
aquele que o porta.
1 14 PSICANÁ LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Integrar essa Má-Formação na economia psíquica é cortar os


excessos, os "a mais" de libido localizada nessa parte afetada. É
ainda possibilitar a retirada do Ó rgão Mal-Formado do lugar de
centro e de catalizador da vida psíquica deJoão. Isto, evidentemen­
te, implicaria em retificar sua posição frente ao seu defeito, possi­
bilitando-lhe mais recursos para administrar e lidar com essa marca
de realidade em seu corpo, à medida que o "Nascer Sem Ânus"
ficaria reduzido à sua justa medida e estatuto de uma má-formação
da natureza.

Conclusão

Não podemos dizer que João entrou em análise, aliás não foi
esse o objetivo visado pelo analista. Ao nosso paciente foi oferecido
um outro discurso, no qual ele pudesse obter uma outra saída para
seu sofrimento.
O objetivo era oferecer um espaço à subjetividade, através de
uma escuta analítica, na qual fosse possível que o Defeito Físico
fosse assimilado pela economia psíquica através dos arranjos que
o sujeito faz para significá-lo e integrá-lo em sua vida. Em outras
palavras, propiciar um espaço em que fosse possível abordar a
castração, tocar o real daquele sujeito sem, no entanto, utilizar de
artimanhas tamponadoras, pois, só assim, João poderia criar a sua
própria maneira de lidar com essa falta, não só a nível orgânico mas
também a nível estrutural. A aposta consistia em que João pudesse
viver apesar de sua má-formação e não mais por causa dela.
Além disso, a importância de se ter trabalhado visando ao
sujeito do inconsciente, é também de possibilitar a João a constru­
ção de uma cadeia de significantes ordenados e estruturados em
um sistema simbólico, que tende à homeostase e oferece resistên­
cia às perturbações e modificações da vida cotidiana.

"É preciso que alguém encarnado diga e aposte que seu


corpo pode produzir algo além dele, isto é, além do ser
vivente, que produza sentido. Concerne a esta aposta, en­
tretanto, considerar aquilo que resiste e resistirá sempre
HÁ UMA PSICANÁLISE DO CORPO? 115

à significância, emboraforce a representação. Este ponto


9_
resistente é o aquém do sentido." •

Fazemos, assim, apostas e testemunhamos este corpo, corpo


que podemos dizer agora: "Corpo da Psicanálise".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CPMG.
A Criança e as Estrutu ras Clín i cas

jacqueline Esteves Pena Kelles

I. Entrada e Percurso na Estrutura

Criança: "pequeno sujeito, mas apesar da pequenez, tem


pulsões, sentimentos, emoções... e inconsciente", diz a
1
psicanálise.

Ü indivíduo nasce, e, aos poucos, vai se formando dentro de


um mundo dinâmico, de vivências e relações, onde, submetido a si­
tuações diversas, ele percebe, apreende, retém e responde, cada
qual de um modo particular, dentro da singularidade característica
de cada ser humano.
Inicialmente, este pequeno ser, num estado de total desampa­
ro, vive sua primeira experiência de satisfação basicamente a nível
orgânico, decorrente de uma excitação interna que precisa ser
eliminada. Esse incômodo será aliviado com a ajuda de outro ser,
um ser falante, em geral a mãe, que saberá lhe oferecer o objeto
adequado neste momento e introduzirá essa criança no mundo da
linguagem. Podemos dar como exemplo a fome, que será saciada
organicamente com a ingestão do alimento e virá revestida de uma
sensação prazerosa que a criança registrará e tentará retomar em
várias ocasiões de sua vida.
Este outro ser que cuidou da criança desde o nascimento,
garantindo-lhe a sobrevivência, é percebido fantasiosamente como

117
1 18 PSICAN Á LIS E E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

aquele que tudo tem e tudo pode, sem falhas, aquele que a
psicanálise chama d e "Grande Outro". Mais tarde, a criança desco­
brirá que esse Grande Outro "não é todo", mas sim faltoso. O
momento dessa descoberta é essencial para a base do psiquismo
humano, pois o sujeito terá que lidar com essa falta, em si mesmo .
e no Outro. A satisfação plena nunca será atingida, porém sempre
buscada. Freud dizia que para o homem, a forma de encontrar o
objeto é buscando o objeto do primeiro desmame, " o objeto quefoi
inicialmente o ponto de ligação das primeiras satisfações da criança" .2
Sabemos quão i mportantes são os primeiros anos de vida para
o ser humano. As vivências dessa fase irão indicar a estrutura
psíquica do sujeito. Novamente citando Freud, lembremos que ele
dizia ter a criança uma disposição perversa polimorfa podendo, sob
a influência da sedução,
"ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso mos­
tra que traz em sua disposição a aptidão para elas; por
isso sua execução encontra pouca resistência, já que, con­
forme a idade da criança, os diques anímicos [morais/ con­
tra os excessos sexuais - a vergonha, o asco e a moral
- ainda não foram erigidos ou estão em processo de
construção" .3
A criança tem u m funcionamento psíquico extremamente lábil,
propensa a várias modificações e reordenamentos; portanto a in­
tancia se caracteriza por ser uma fase de construção, de montagem
de uma estrutura que se cristalizará na fase adulta.
A Psicanálise de orientação lacaniana, surgida nos a nos 50
(pri meiros seminários, a partir de 1 953), foi logo influenciada pelo
contexto científico criado pelo estruturalismo. Surgia, na época, a
idéia de uma investigação científica, uma teoria do conhecimento,
própria às ciências humanas. Lacan preocupou-se em acentuar as
relações do desenvolvimento com a estrutura. Para ele, "a incorpo­
ração da estrutura é muito mais precoce, o Outro da linguagem, preexis­
tindo ao sujeito, a palavra determinando desde antes de seu nascimento,
não apenas seu estatuto mas também a vinda de seu ser biológico". 4
Joel Dor, citando Piaget, diz que uma estrutura seria um con­
junto de elementos que promovem arranjos entre si sem recorrer
ao exterior. Pertencem a um sistema limitado que possui leis
A CRIANÇA E AS ESTRUTURAS CL ÍNICAS 119

próprias. Quando rearranjados, esses elementos podem transfor­


mar o sistema.
A lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure, muito auxi­
liou/influenciou a Psicanálise e as pesquisas de Lacan, trazendo
também a questão do significante/significado. Lacan interessou-se
pela fala enquanto linguagem, dirigida a um outro, e estreitamente
relacionada ao ser falante. O estruturalismo privilegiou o simbólico
em oposição ao imaginário. O simbólico assegurava uma linguagem
(metalinguagem) capaz de enunciar frases sobre uma outra lingua­
gem (linguagem-objeto).
Para Lacan, o importante, durante o desenvolvimento, é saber­
mos que há um sujeito que vive e dá sentido ao ocorrido, na
subjetividade, implicando-se. Isto é algo a ser observado e privile­
giado além do tempo cronológico e da maturação do organismo.
Lacan introduziu na teoria analítica a noção do estádio do espelho,
que seria o momento em que a criança reconhece sua própria
imagem, um momento estruturante na construção da realidade.
Com o texto de 1 949 "Le stade du miroir comme formateur de la
fonction du je", incluído em Écrits, vê-se como ele interpreta a
experiência do espelho já conhecida da Psicologia. Alguma coisa se
produz no sujeito, mas o acontecimento não serve como referência
que justificasse progresso no conhecimento; não se trata de matu­
ração psicológica que viesse assegurar unificação de funções. Lacan
constrói uma teoria atenta ao momento em que a criança ainda não
sabe, e assim mesmo reage como (se soubesse), antecipa-se. Em seu
Seminário 4, A Relação de Objeto, Lacan escreve:
"O que é o estádio do espelho? É o momento em que a cri­
ança reconhece sua própria imagem. Mas o estádio do es­
pelho está bem longe de apenas conotarumfenômeno que
se apresenta no desenvolvimento da criança. Ele ilustra o
caráter de conflito da relação dual. Tudo o que a criança
aprende nessa cativação por sua própria imagem é, pre­
cisamente, a distância que há de suas tensões internas,
aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, à iden­
tificação com essa imagem. (...)
... Não é na via da consciência que o sujeito se reconhece,
existe outra coisa e um mais além" .5
1 20 PSICAN ÁliSE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Pensando na questão de "tornar-se sujeito", Lacan observa o


inacabamento (prematuração) evidenciado pela falta de coordena­
ção quanto à percepção interna e externa, em contraste com a
unidade da imagem na qual o sujeito se apreende. O sujeito
encontra e se constitui em algo radicalmente "outro", forma ante­
cipada do que ele nem mesmo é, forma a qual ele estará preso pois
nela vai acreditar. Poderíamos dizer, a imagem se forma por obra
do desejo, muito mais que assentada na objetividade.
Sendo assim, para situarmos a criança nas estruturas clínicas,
em psicanálise, diríamos de preferência entrada e percurso da
criança na estrutura, pois a infãncia é uma fase onde os elementos
básicos estruturais ainda estão sendo estabelecidos. A criança fará
sua entrada na estrutura para percorrê-la ao longo de sua infãncia.
Essa e ntrada se dará ao escolher forçosamente uma forma para
responder ao desejo do Outro. Tentando se situar como sujeito,
pergunta ao Outro: O que quer de mim? Che vuoi? - o que queres?
- nos lembra Lacan. Che vuoi - expressão usada por jacques
Cazotte no romance O diabo enamorado, onde o personagem per­
gunta ao Grande Outro:
- O que quer de mim?
E ele, como todo Grande Outro, responde:
- Eu não quero nada, foi você que me procurou ...
Como o personagem, a criança também pergunta ao Grande
Outro:
- O que devo fazer, como devo me comportar para ser aceita
por você? Iniciará, portanto, uma configuração estrutural, algo ...
apontará para a Neurose, Psicose ou Perversão.
Após um percurso, durante o qual serão estabelecidos e cons­
truídos os elementos básicos, esta configuração tomará uma forma
mais duradoura, por ocasião da adolescência, ao ser ressignificado
o trauma, concretizando-se. Em vez de uma teoria simples de
causalidade, quando para toda causa segue-se um efeito, temos uma
"dupla causalidade", quando a i ncidência do sintoma ocorre, con­
firmando o trauma e dando lugar para o fantasma.

Trauma X� nova ocorrência ==8> Sintoma


A CRIANÇA E AS ESTRUTU RAS CL ÍN ICAS 1 21

Através do sintoma do qual o sujeito se queixa, ou do sintoma


que a criança apresenta é que chegaremos ao seu inconsciente. O
sintoma é uma manifestação de sofrimento; pode ser uma forma
encontrada para se lidar com a falta. A criança, em situação de crise,
de alguma forma expressará sua insatisfação, sua dificuldade ou
sofrimento. Quando não consegue fazê-lo verbalmente, o fará atra­
vés de um comportamento atípico, que se constituirá num sintoma,
e conseqüentemente numa mensagem a ser decifrada.

"Sabemos, comumente, que o sintoma é um distúrbio que


causa sofrimento e remete a um estado doentio do qual
constitui a expressão. Mas, em psicanálise, o sintoma nos
surge de maneira diferente de um distúrbio que causa so­
frimento: ele é, acima de tudo, um mal-estar que se impõe
a nós, além de nós, e nos interpela. Um mal-estar que des­
crevemos com palavras singulares e metáforas inespera­
das. Mas, quer seja um sofrimento, quer uma palavra sin­
gular para dizer o sofrimento, o sintoma é, antes de mais
nada, um ato involuntário, produzido além de qualquer
in tenciona/idade e de qualquer saber consciente. É um ato
que menos remete a um estado doentio do que a um pro­
cesso chamado inconsciente. O sintoma é, para nós, uma
6
manifestação do inconsciente" (grifo nosso).

O sintoma nos ajuda a lidar com a falta, alivia o inconsciente,


descarregando parte da energia (tensão), traz "ganhos" ao sujeito,
ainda que sendo necessário fazer sofrer o Eu.
Tudo que fazemos, toda nossa forma de expressão no mundo
é uma resposta, traduz a maneira encontrada para viver com algo
que sempre falta.

11. O Sintoma da Criança

O sintoma da criança reflete a questão dos pais.


Será a criança, na relação com os pais, o equivalente a um objeto
de gozo, estando submetida ao desejo da mãe (função), e sendo
1 22 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

forçada a realizar objeto(a) do fantasma materno? Ou estará a


criança, apenas, refletindo as verdades do par parenta!? Podemos
lembrar, como exemplo, situações em que a mãe apresenta um
distúrbio de comportamento denominado Síndrome de Münchau­
sen "transferida" - nova modalidade citada pela primeira vez em
1 977, pelo pediatra inglês Roy Meadow, onde a mãe busca atenção
para si própria provocando sintomas em seu filho, apresentando-o
como uma "criança doente", que não melhora nunca, a despeito de
constantes visitas a médicos e hospitais, que não conseguem "ver
o seu problema". A Síndrome de Münchausen é um distúrbio que a
Psiquiatria classifica como factício, caracterizado p'o r sintomas fisi­
cos ou psicológicos, intencionalmente produzidos ou simulados?
Relaciona-se à histeria e à simulação. Seu nome se deve ao lendário
contador de histórias alemão, do século XVIII, que deu origem às
fantásticas "Aventuras do Barão de Münchausen", onde eram nar­
radas histórias surpreendentes e extravagantes, que davam a im­
pressão de chamar a atenção para o seu protagonista.
Recentemente, tivemos informações veiculadas pela i mprensa
de casos que ocorriam no Brasil, com crianças que chegavam aos
consultórios médicos e hospitais levadas por suas mães que relata­
vam estarem elas (as crianças) doentes, com sintomas d iversos. Os
médicos examinavam e nada encontravam que justificasse organi­
camente aqueles sintomas. Mas, numa determinada s ituação, foi
descoberto que um "sangramento" tinha sido forjado pela mãe, que
usou de uma certa substância química. Os argumentos das mães e
a insistência quanto ao não desaparecimento dos sintomas levavam
a procedimentos clínicos e por vezes cirúrgicos, sem necessidade.
Assim, essas mães conseguiam atenção para si ("Coitada, tem um
filho tão doente"), submetendo os filhos ao desejo delas, colocan­
do-os como o objeto que viria tamponar a falta.
Os abusos acima descritos são hoje objeto de atenção de várias
atuações interdisciplinares, especialmente em países avançados,
envolvendo psicólogos, pediatras, psiquiatras, assistentes sociais e
a própria polícia, e determinaram a criação de vários projetos de
aMparo a essas crianças que terminam por ser postas junto às
demais crianças maltratadas. Mas é principalmente no meio social
menos favorecido e nos ambientes familiares estressantes, ou habi-
A CRIANÇA E AS ESTRUTURAS CL ÍN ICAS 1 23

tados por pais que foram, eles mesmos, vítimas de crueldade na


infància, que podemos assistir ao aparecimento de síndromes como
a de Münchausen.s
A criança reflete o que há de sintomático na família, pois está
ligada à presença dos pais, dependendo do adulto, do Grande Outro
da linguagem. Daí podermos dizer que todo trabalho com a criança
nos remete ao adulto. Como diz Lacan em Os Complexos Familiares:

"a fami1ia prevalece na primeira educação, na repressão


dos instintos, na aquisição da língua acertadamente cha­
mada materna. Com isso, ela preside os processosfunda­
mentais do desenvolvimento psíquico, esta organização
das emoções, segundo tipos condicionados pelo meio am­
biente. Transmite estruturas de comportamento e de re­
presentação cujo jogo ultrapassa os limites da consciên­
cia ".

A função do analista seria, a partir de uma escuta específica,


tentar captar o sujeito que ali existe e ajudá-lo a encontrar sua
verdade, desvencilhando-se das questões vinculadas ao par parenta!
(questões mal-elaboradas por seus pais). Seria fazer com que sur­
gisse um "Sujeito de seu próprio desejo".
Falando em sujeito, não podemos esquecer que a criança,
considerada como tal pela psicanálise (sujeito do inconsciente),
também terá uma parcela de responsabilidade. Devemos implicá-la
em seu sintoma, e não responsabilizarmos total e somente os pais.
Segundo Lacan, "somos sempre responsáveis por nossa posição de sujei­
to".

111. A Criança e a Dor da Morte

Num hospital, convivemos com crianças doentes e crianças que


fazem parte da família de paciente. Relatarei um flash de atendi­
mento ocorrido em um Centro de Tratamento Intensivo de um
hospital geral de Belo Horizonte, em que a criança vive a perda de
um ente querido.
1 24 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Um senhor de noventa anos de idade é internado no Cfl em


estado clínico muito grave. A família está sempre presente, acom­
panhando-o. Os médicos fornecem explicações sobre a gravidade
do quadro clínico, dando um prognóstico reservado. Num determi­
nado momento, os filhos do paciente dizem que os netinhos
gostariam muito de ver o avô. São oito crianças com idade entre
cinco e doze anos e, segundo os pais, estão muito angustiadas.
Perguntam se seria possível levá-las àquela unidade. D iante disso,
pensei em reunir essas crianças e tentar ouvi-las nesta angústia.
Marquei para que viessem todas ao hospital, no dia seguinte, para
conversarmos. Vieram as crianças e alguns de seus pais. Estes já
chegaram dizendo:
- Doutora, nós já dissemos a eles que o vovô está muito doente
e talvez não volte mais para a casa. Não queremos esconder nada
deles.
As crianças estavam assustadas, procurando "algo" por todos
os cantos. Entramos numa sala, para reunião, e logo uma delas
perguntou:
- Cadê o vovô. Quero ver o vovô! Estamos com saudade dele,
disseram.
Disse a eles que o vovô estava doente e perguntei-lhes como
estava sendo esta saudade. Diziam adorar o vovô, ele era o melhor
vô do mundo. Lembraram de situações do cotidiano, tais como
brincadeiras, músicas e adivinhações que o avô ensinava. Falavam
muito da falta que sentiam e perguntavam:
- Como ele está? Queremos vê-lo lá dentro.
Uma das mães disse à filha de oito anos:
- Você vai vê-lo depois que ele sair daqui.
A menina respondeu:
- Mas eu quero ver o vovô vivo; não quero vê-lo morto!
Houve um mal-estar. As outras crianças silenciaram e os adultos
também.
O que dizer frente a este confronto inevitável com a morte, com
a perda? Como ajudá-las nessa dor? Muitas vezes pensamos que a
criança não sabe o que é a morte. Mas, e quanto a nós adultos, o
que sabemos da morte? Talvez elas, as crianças, não entendam a
morte com as palavras que nós usamos, utilizando conceitos e mais
A CRIANÇA E AS ESTRUTURAS CL INICAS 125

conceitos para imaginá-la. Segundo Ginette Raimbault, em A Crian­


ça e a Morte, quase todas as crianças possuem u m conhecimento
claro da morte próxima, que é percebida pela criança na sua
realidade de desaparecimento do campo visual.

"Poder aceitar a morte do outro é aceitar um nunca mais


de olhar, de voz, de ternura, bases das trocas com o outro,
uma ausência defuturo no projeto imaginário comum, o
pontofinal na partitura de um dos instrumentos de nossa
9
sinfoniafantasmática. "
É sempre necessário um certo tempo para se viver o luto,
quando este é possível. Há inicialmente uma fase de idealização do
ser amado, como parecia já estar acontecendo com essas crianças,
quando diziam adorar o vovô e que ele era o melhor vô do mundo.
Posteriormente, num processo natural, vai acontecendo um desin­
vestimento indispensável na laboração do luto. Há uma introjeção
do objeto perdido, através de lembranças, e uma liberdade para
novo investimento, para o desenvolvimento de um novo amor.
Existem situações em que o trabalho do luto é impossível, já
que a evolução natural da vivência da perda é determinada pela
estrutura de cada sujeito.
Pode acontecer, por exemplo, uma negação radical da perda, e
desenvolver-se então uma descompensação psicótica. "Há, na psico­
se, uma fuga inicial da realidade, que é sucedida por uma fase ativa de
remodelamento tendo como meta uma alteração dessa difícil realidade",
nos ensina Freud em "A perda da realidade na neurose e na psicose".
É importante dar à criança um espaço para que ela possa falar
de seu sofrimento e iniciar uma elaboração. Neste momento, a
presença do psicanalista com uma escuta específica pode facilitar
o "advir" do sujeito.
Em se tratando de crianças e seu percurso na estrutura, pode­
mos dizer que quando há perda de um ente muito próximo, numa
fase inicial da vida, quando está se formando o mais básico da
personalidade, o caminho pode ser bem dificil.
As pesquisas mostram que distúrbios psicopatológicos são mais
graves e freqüentes quando a perda não elaborada acontece em
1 26 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

tenra idade. A duração subjetiva do luto é mais longa para a criança


do que para o adulto.
Uma morte na família traz para a criança conseqüências que vão
aléin da simples ausência. A morte do outro, querido, deixa cicatri­
zes profundas. É o fim de uma vida, mas para o vivo as relações com
essa vida continuam. A possibilidade da elaboração do luto traz
consigo a possibilidade de uma nova vida.
"Quanto maisjovem é o embrião, mais prejudicial é a me­
nor lesão. Quanto maisjovem é a criança, tanto maiores
-
,F,
"10
serao os eJettos

da fien'da.

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NASIO,J. D. Cinco lições sobre a teoria dejacques Lacan. Rio de janeiro: Jorge Zahar,
1 992.
QUINET, Antônio (org.)jacq•Ies Lacan - a psicanálise e suas conexões. Rio de janeiro:
inago, 1 993.
RAIMBAULT, Ginette. A criança e a morte : crianças doentes falam da morte: proble­
mas da clínica do luto. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1 979 .
SEMINÁRIOS E REUNIÕES DE EQUIPE - Realizados ,,o Hospital Mater Dei-BH.
STYCER, Maurício. Os males fabricados. Folha de S. Paulo, Caderno "Mais!", 18 de
maio de 1 997.
O Mal-Estar da Culpa

Elaine Maria do Carmo Dias de Souza

Maria de Lourdes Guimarães de Almeida Barros

"A alma cativa e obcecada


Enrola-se infinitamente numa espiral de desejo. "

Carlos Drummond de Andrade

N as últimas décadas o mundo tem acompanhado um grande


avanço tecnológico nas Unidades de Tratamento Intensivo - UTis,
o que tem permitido que pessoas que com certeza antigamente mor­
reriam, possam não só sobreviver como vir a ter uma vida produtiva.
Tanto pessoas adultas como crianças, i nclusive aquelas prema­
turamente nascidas, podem se beneficiar desse desenvolvimento
da ciência.
Apesar de todo esse avanço tecnológico e o que representa, a
UTI, mesmo que essencial na recuperação da saúde, é um lugar
mobilizador de muita angústia. Enquanto o aprimoramento tecno­
lógico aparece com mais aparelhos, exames, isto é, uma leitura
orgânica sofisticada acenando com maiores possibilidades de vida,
a subjetividade da pessoa não encontra espaço.
Isto é natural, pois naquele momento o que está em jogo é a
vida da pessoa. Só que o corpo orgânico porta um sujeito que sofre,
que angustia, o que leva esse sujeito a buscar as mais diversas saídas
possíveis.
Observamos que são inúmeros os fatores que determinam a
conduta dos pais e familiares frente a essas situações traumáticas.

1 29
1 30 PSICANÁ LISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

A experiência de ter um filho que corre risco de vida ou com


algumas seqüelas torna-se traumático para o casal, criando uma
situação de ameaça e propiciando o aparecimento da culpa.
Este capítulo trata da trajetória de nossas reflexões acerca do
sofrimento de que padecem alguns pais de crianças organicamente
enfermas e/ou que morrem numa Unidade de Tratamento Intensivo
Pediátrico - UTIP, pela impossibilidade de muitas vezes romper
com as fatalidades impostas pela vida.
Nesse sofrimento dos pais, juntamente com outros fatores, o
sentimento de culpa ocupa um lugar importante.
Freqüentemente o psicanalista escuta durante os atendimen-
tos:
"O que foi que nós fizemos de errado para merecermos isto?"
"Eu não estava aqui na hora. É isto que aumenta minha dor."
"Será que eu fiz tudo que podia?"
"Se eu estivesse aqui poderia ter sido diferente".
"Fiquei muito nervosa com a gravidez porque não estava nos
meus planos ter filho agora. Isto é castigo"!
Uma das mães, frente ao seu bebê morto, gritava desesperada­
mente:
"Me desculpe!"
Inúmeras falas poderiam ser aqui colocadas a título de ilustra­
ção dessa problemática da culpa vivenciada por alguns pais. A partir
�aí tomou-se premente a formalização dessas questões, pois sabe­
mos como é dificil para toda a equipe lidar com essas manifestações
de culpa, inclusive o psicanalista aí inserido.
Temos observado que tanto os profissionais como os familiares
tentam de alguma forma minimizar esta situação mobilizadora de
angústia, pois, como sabemos, não há nada que angustie mais do
que ver o outro angustiado. A angústia não é um afeto conhecido,
que tenha um lugar definido. Sentir angústia estaria relacionado a
uma fragilidade, a um não dar conta frente às situações de limite
do Real.
E qual seria o trabalho do psicanalista diante das manifestações
dessa culpa? Como a psicanálise responderia a esta questão?
Freud já a abordava em seus estudos, uma vez que é inerente
ao ser humano.
-:> MAL-ESTAR DA CULPA 1 31

O pensamento registrado em suas obras é de que existe um


sentimento de culpa que, sob as diferentes formas do remorso,
auto-recriminações e outras sintomatologias, surge de imediato
como sendo inexpiável e "como que constituindo uma infelicidade
interior contínua. "I
A culpa, que tantas conseqüências impõe sobre o desejo, é
pensada por Freud a partir da premissa de que há duas origens do
sentimento de culpa. Uma que surge do medo de uma autoridade
externa, e outra que surge do medo interno do superego, e se refere
à renúncia pulsional. Num primeiro momento a criança se vê
obrigada a renunciar a suas pulsões ao sentir-se ameaçada de perder
o amor da autoridade paterna. E num segundo m omento, a renúncia
é decorrente do medo da severidade do superego, já que o desejo
se mantém e não pode ser escondido. Na verdade o superego sabe,
mas a origem da culpa permanece inconsciente porque o conheci­
mento que ele implica acha-se intimamente vinculado ao complexo
de Édipo, que é inconsciente.
Se nos textos anteriores de Freud a culpa era considerada como
uma reação à sexualidade, nos últimos capítulos de "O mal-estar na
cultura" é vista como uma reação à destrutividade, à maldade
presente no ser humano. A culpa aparece quando alguém faz algo
ou apenas pensa em fazer algo entendido como "mau". Freud
enfatiza a importância do reconhecimento do mal por parte do
sujeito em qualquer um dos casos. Trata-se de uma consciência
moral, produto do supereu. Mas, como é que se faz para discernir
o que é o mal? Freud responde que não necessariamente é aquilo
que é prejudicial ao eu, mas, ao contrário, pode ser algo prazeroso
e desejado por ele. A referência do que é bom ou mau vem do outro.
É o outro que define o que é bom ou mau. E o motivo que faz com
que a pessoa se submeta à exigência desse outro, está no "desam­
paro e na dependência dela em relação a outras pessoas".2 O eu reage
com angústia ante a percepção de que não cumpriu com as exigên­
cias feitas por um ideal, o supereu.
Em outras palavras, toda vez que há uma renúncia pulsional,
que significa uma renúncia ao desejo, aparece a culpa. Quanto mais
o sujeito abre mão de seus desejos, mais o superego se torna
tirânico, aumentando assim a culpa.
1 32 PSICANÁ LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Retomando a problemática dos pais que, frente ao seu filho


doente na UTIP, ou mesmo face à morte do filho, se auto-recrimi­
nam, atribuindo a si mesmos a responsabilidade do fato, o que
significa na verdade abrir mão de seu desejo? Ou paraffasendo
Lacan: "ceder de seu desejo?"
O que pudemos observar durante alguns anos de experiência
em uma UTIP é que muitos pais se cobram uma presença vigilante,
ficando às vezes sem dormir, sem se alimentar, esperando angusti­
ados na porta. Durante alguns anos a visita dos pais à UTI foi aberta,
isto é, sem restrições de horário. Com isto, muitos pais não se
davam o direito de ir para casa, causando muitos conflitos. O
estabelecimento de horários para visitas possibilitou uma certa
contenção a essa exigência constante de presença junto ao filho.
Sabemos da importância da presença dos pais junto ao filho durante
um tratamento, mas, muitas vezes, isto perde seu objetivo e impede
até que eles tenham momentos para cuidar de si mesmos. O
sentimento que perpassa essa presença é muitas vezes o de que se
saírem algo acontece.
Quando os pais se vêem frente à impossibilidade de levar seu
filho para casa devido a situações em que a •;ida está em risco, todos
os seus sonhos, planos e fantasias se desfazem num lampejo.
Submetem-se a toda uma realidade nova e inesperada. Alguns pais
pensam em não registrar o bebê nessa situação e falam em esperar
a alta.
De repente, o primeiro colo desse bebê é a incubadora. Esse
bebê que esperavam estar acariciando, mostrando aos familiares e
amigos - "Sua Majestade o Neném" - está cheio de fios, picado
por agulhas, sob luzes e aparelhos sofisticados e correndo riscos de
vida.
Também a doença, os acidentes interrompem o transcorrer
desse percurso idealizado de algo que ainda está por vir.
"O real que se impõe é obstáculo ao princípio de prazer, isso não tem
jeito. "3 É preciso se confrontar com o Outro que falha.
Quando a doença, o acidente surgem, nunca se está realmente
preparado. Pode-se enfrentá-los e isso é tudo.
O texto de Freud sobre o narcisismo nos esclarece o significado
da criança na economia psíquica do adulto.
O MAL-ESTAR DA CULPA 1 33

A criança que é gerada e nasce, parece ser a realização de u m


desejo consciente, integrado dentro d o plano de vida e em relação
com os ideais sociais e familiares dos pais.
Paralelo à gestação biológica ocorre uma gestação psicológica.
Os pais vão construindo um filho do seu desejo - o filho imaginá­
rio. O desenvolvimento da criança fora da visão dos pais favorece
esta construção. Eles buscam referência na criança que foram u m
dia para construir esse filho imaginário, que terá todas a s qualida­
des, todos os poderes e realizará assim a fantasia infantil dos pais.
Freud no seu texto sobre o narcisismo nos diz:

"A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não
ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como
supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao pra­
zer, restrições à sua vontade própria não a atingirão... ela
será mais uma vez realmente o centro e o âmago da cri­
ação - · Sua Majestade o Bebê', como outrora nós mes­
mos nos imaginávamos. A criança concretizará os sonhos
dourados que os paisjamais realizaram - o menino se
tornará um grande homem e um herói em lugar do pai,
e a menina se casará com um príncipe como compensação
para sua mãe". 4

Portanto, esse filho imaginário terá tudo que os pais não


tiveram, sem as faltas que os pais acreditam ter. No momento do
nascimento, os pais se deparam com o filho real, que não corres­
ponde aos seus ideais. Pode ser uma criança prematura, com
problemas orgân icos, ou uma má-formação. Nesse momento a
culpa pode surgir, pois esses pais se vêem falhos. E ao invés de
lidarem com esse imprevisível, próprio do Real que surpreende e
que é inerente à própria vida, eles se responsabilizam pela falha
como se pudessem evitá-la, assumindo a culpa por algo qt,�e não
puderam impedir. Desta forma eles retomam o controle ou retêm
o domínio do Real em suas mãos. Culpados que são, negam a
impossibilidade, a contingência e o imponderável da vida. Daí o
sentimento de: "Eu poderia ter evitado", pois o Real como lhe é
próprio só pode ser apreensível a posteriori, já aconteceu.
1 34 PSICANÁ LISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

Ainda em Introdução ao Narcisismo, Freudjá dizia que escolhe­


mos inicialmente, como objeto de amor, a mulher que nos alimenta
e o homem que nos protege. É isto que tememos perder e que faz
com que nos submetamos às exigências do outro: a angústia frente
à perda de amor. "De início, portanto, mau é tudo aquilo que, com a
perda de amor, nos faz sentir ameaçados". 5 Portanto, o que nos leva
a fazer a renúncia pulsional é a angústia frente à ameaça da perda.
Na verdade, o trauma é da perda que reativa essa marca
estrutural, constitutiva do sujeito, de que o objeto é sempre perdi­
do.
Os pais, até aí, viviam a ilusão da onipotência e controle sobre
os destinos do filho, e com a experiência de castração passam a
admitir com dor que os limites do corpo são mais estreitos que os
limites do desejo.
Quanto ao analista, caberá propiciar condições de escuta das
diferentes manifestações dessa angústia. Muitas vezes os pais não
encontram palavras adequadas para descrevê-la;
"Sinto um frio enorme na barriga quando chego na UTIP."
Em algumas formas de luto as auto-acusações levam o sujeito
a sentir-se responsável pela morte do ente querido, em razão do
conflito existente entre amor e ódio. Freud se refere a uma espécie
de gozo sádico quando o melancólico tortura a si mesmo com a dor
da perda, o que pode levar em alguns casos a uma destruição.
Na Conferência XXXI, "Novas contribuições à psicanálise".
Freud referindo-se à situação da melancolia, destaca que o senti­
mento de culpa é a conseqüência da luta ou tensão existente entre
o ego e o superego. Mas antes da constituição do superego não se
pode falar em culpa, mas de u m estado de ansiedade social, causada
por um fator de ordem social, exterior ao sujeito.

"Embora um melancólico possa, assim como outras pes­


soas, mostrar um grau maior ou menor de severidade
para consigo mesmo nos seus períodos sadios, durante
um surto melancólico seu superego se torna supersevero,
insulta, humilha e maltrata o pobre ego, ameaça-o com
os mais duros castigos, recrimina-o por atos do passado
mais remoto, que haviam sido considerados, à época, in-
O MAL-ESTAR DA CULPA 1 35

significantes - como se tivesse passado todo o inteTValo


reunindo acusações e apenas tivesse estado esperando por
seu atual acesso de severidade a fim de apresentá-las e
proceder a umjulgamento condenatório, com base nelas.
O superego aplica o mais rígido padrão de moral ao ego
indefeso que lhefica à mercê; representa, em geral, as exi­
gências da moralidade, e compreendemos imediatamente
que nosso sentimento moral de culpa é expressão da ten­
são entre o ego e o superego." 6
Freud acrescenta ainda que o sentimento de culpa no ser
humano é inevitável, pois remonta à morte do pai primevo. Esta
d ívida com o supereu jamais será saldada. Portanto, a culpa é uma
questão de estrutura do ser humano.
"Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é, real­
mente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão
fadados a sentir culpa, porque o sentimento de culpa é
uma expressão tanto do conflito devido à ambivalência,
quanto da eterna luta entre Eros e a pu/são de destruição
ou morte. " 7
Este simbolismo remete à experiência de desprazer vivida pelo
filho, que se submete ao pai, o pai primitivo da primeira identifica­
ção.
Trata-se do primeiro não pronunciado pelo filho a esse pai -
este não dirigido ao outro é o primeiro movimento de separação, o
que gera o sentimento de culpa. É pela via do não que tem acesso
ao desejo, ascendendo à posição de sujeito.
Não estaria a culpa ligada à castração simbólica? Para que o
sujeito passa existir, o outro tem que ser barrado, há que m atar o
outro para ascender a uma posição simbólica.
Quando a criança percebe que a mãe fala dela, mas que não
sabe tudo sobre ela, deixa de ser aquele que a completa, colocan­
do-a como faltosa.
Por outro lado, a mãe se obriga a dar tudo para o filho.
Pais que ficam na UTIP, noite e dia, velando o filho internado e
trazem essas falas: "Não saio porque tenho medo que aconteça algo
na minha ausência".
1 36 PSICANÁ LISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

Eles acreditam que essa relação existe, que é possível garantir


a vida e a saúde do filho, tentam controlar a irrupção do Real.
Tomemos como exemplo o sonho descrito por Freud, da angús­
tia de um pai que, entregue ao sono, vê surgir a imagem de seu fil ho
morto que lhe diz: "Pai, não vês que estou queimando?"
O texto nos fala que esse pai, cansado de ter passado noites em
claro cuidando do filho, deixa-o num quarto ao lado, aos cuidados
de um velho para velá-lo. No entanto, este adormece e não vê a vela
acesa cair e pegar fogo na cama onde estava a criança morta.

"Pai, não vês que estou queimando? Como diz Lacan:


" ...mas, quem sabe, talvez que essas palavras perpetuem
o remorso do pai, de que aquele que ele colocou perto da
cama de seu filho a ser velado, o velhote, não estaria tal­
vez à altura de bem desempenhar sua tarefa .8 ... •

A morte desperta o sujeito para uma realidade faltosa, que faz


parte da vida. O pai culpa o velho pois nesse momento ele vai de
encontro à falha sentida por ele de não dar conta de ver o filho, de
evitar a morte do próprio filho.
A culpa dá uma consistência ao que não tem consistência, isto
é, a dor pura.
Apesar de a culpa implicar numa manifestação visível de dor e
muito desamparo, ainda assim, o que ela tenta é silenciar uma outra
dor i nerente à angústia de castração, isto é, da perda e separação.
Ao i nvés de sentir essa dor, o pai culpa-se a si mesmo e aos
outros. Certamente não estamos tratando das culpas objetivas, pois
elas também existem, mas são tratadas pela justiça comum, a lei da
pólis.
Esse estudo trata, como já foi dito, de uma culpa que é de
estrutura, pois o ser humano se funda é na separação, perda,
rej eição, no não.
É o protótipo do nascimento - para que a criança possa viver
tem que sair do corpo da mãe.
Esta situação repete-se ao longo da vida, vivida mais intensa­
mente nas experiências traumáticas.
O MAL-ESTAR DA CULPA 1 37

Nas palavras de Lacan: "é pensável que toda a linguagem não seja
feita, senão, para não pensar a morte que, com efeito, é a coisa menos
pensável que seja".9
Realmente não se vive pensando na morte, mas ao se deparar
com essa possibilidade, a realidade aparece, realidade esta enco­
berta, muitas vezes, pelo véu da culpa. Culpa que enquanto véu
"operador imaginário", descrito por Mifler, tem a propriedade de
fazer existir o que não existe, porque não se sabe se o véu vela algo
ou nada ...
Enquanto os pais sentem culpa não têm que se haver com a
questão que emerge, o desamparo diante da possibilidade de perda.
Não adianta, portanto, desculpâbilizar, pois esse sentimento
está relacionado à onipotência dos pais, que acreditam imaginaria­
mente que algo poderia ter sido feito.
No atendimento psicanalítico a esses pais, qual seria a tática
utilizada?
O analista não pode entrar nesse jogo i maginário nem para
culpar, nem pára desculpabilizar. Uma conhecida citação de Lacan
nos adverte: "desangustie, mas não descu/pabilize".
O psicanalista, com sua presença, vai acolher as múltiplas
formas que os pais têm de lidar com algo que está mais além. Através
do oferecimento de uma escuta, poderá possibilitar ao sujeito o
adentramento no simbólico pela palavra, nomeando este corte e
integrando-o na sua história. O trabalho será o de testemunhar essa
castração, o sem-sentido.
A palavra orientadora será aquela que possibilita ao sujeito a
retificação subjetiva, em que os pais poderão encontrar as suas
respostas para a dor de existir, saindo da i mpotência para a possi­
bilidade.

REFERÊNCIAS BIBUOGRÁACAS

I. KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado


de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1 996, p.1 04.
2. FREUD, S. O mal-estar na cultura. ESB. Rio de Janeiro: lmago, 1 974, v.
XXI, p. 1 47.
1 38 PSICAN ÁLISE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

3. MANNONI, Maud. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida.


Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1 995, p. 1 1 9 .
4. FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. ESB. Rio de Janeiro: I ma­
go, 1 974, v. XIV, p. 1 08.
5. FREU D, S. O mal-estar na civilização. Op.cit., v. XXI, p. 1 47.
6. FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanál ise: a dissecção
da personalidade psíquica, ESB. Rio de janeiro: lmago, 1 974, v. XXII, p.
79.
7. FREUD, S. O mal-estar na civilização. ESB. Op. it., v. XXI, p. 1 56.
8. LACAN, jacques. O seminário - l ivro 1 1 : Os quatro conceitos fundamen­
tais da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1 979, p. 59.
9. LETRA FREU DIANA - Escola, Psicanálise e Transmissão. Die Verneinung
- A Negação, ano VIII, n .S. Rio de Janeiro: Taurus, p. 3 1

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. O mal-estar na civilização. ESB. Rio de janeiro: lmago, 1 974, v. XXI.


___ . Novas conferências introdutórias sobre psicanálise: a dissecção da perso­
nalidade psíquica. ESB. Rio de janeiro: I mago, 1 974, v. XXII.
___ . Sobre o Narcisismo: uma Introdução. ESB. Rio de janeiro: lmago, 1 974, v.
XN.
LACAN,Jacques. O seminário - livro 1 1 : Os quatro concci•os fundamentais da psi­
canálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1 979.
LETRA FREUDIANA - Escola, Psicanálise e Transmissão. Die Verneinung - A Nega·
ção, ano VIII, n.S. Rio de janeiro: Taurus.
MOURA, Marisa Decat de. (Org.) Psicanálise e hospital. Rio de janeiro: Revinter, 1 996.
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KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan.
Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1 996.
MANNONI, Maud. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio dejaneiro:
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RAIMBAULT, Ginette. A criança e a morte. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1979.
SEMINÁRIOS E REUNIÕES DE EQUIPE - Realizados no Hospital Mater Dei-BH.
A Criança e sua Dor:
do L da Cruz ao V d a Vida

Maria Do/ores Lustosa Cabral

Q uando pensamos psicanálise com criança, sempre nos vem à


mente aquele pequeno que nos é apresentado pelos pais, o que vem
pela mão do outro. Pais investidos de suas fantasias narcísicas, feri­
dos em suas ilusões, culpados.
Ouvindo a criança ela nos ensina - se somos capazes de
escutá-la, sem os revestimentos imaginários com os quais nos foi
apresentada - que também é autora do seu existir.
Esta escuta, advinda do lugar de analista, nos distancia de uma
história factual, de uma abordagem familiar e desenvolvimentista,
pois é com a estrutura e com o discurso da criança que temos de
nos haver. Entretanto, não podemos esquecer que os pais não
podem ser deixados à margem, pois o trabalho com a criança tem
a ver essencialmente com eles e sua transferência. Presença real dos
pais e sua transferência imaginária, que deve ser escutada e traba­
lhada numa estrutura simbólica.
No início, os ditos, os jogos, o brincar apontam sua alienação
no discurso do Outro. Alienação fundante a todo ser falante, pois é
no campo do Outro que ele se faz, que se torna sujeito. Mas ele
paga um tributo ao Outro, que o marca, que atravessa seu corpo,
através dos investimentos, da linguagem, linguagem que marca
cedo demais, e só mais tarde pode ser significada. A criança está ali
assujeitada, e é assim que nos é trazida pela mão do outro - às
vezes sem saber sequer por que foi trazida, e sem saber ao menos
1 39
1 40 PSICAN ÁLISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

a quem está se dirigindo. Alienada em sua dependência frente ao


adulto.
Mas, se temos ouvido para escutá-la, ela vai se situando no
discurso parenta!, e apontando sua própria demanda. E o disposi­
tivo analítico vai possibilitando o caminho da alienação à separação.
A posição de dependência, alienação da criança, coloca a ques­
tão em relação à castração do Outro, e a sua própria é posta ao
desejo parenta!.
No caminho da separação o tempo do porquê se faz presente.
Porquê endereçado ao Outro, na busca do: Que queres?
Assim, vai se despindo das roupagens que lhe são atribuídas, e
no seu despir, desfia suas dores, e essencialmente suas fantasias,
algumas até mesmo macabras, outras de onipotência, poder ... Vai
construindo suas fantasias para fazer barreira ao gozo do Outro.
O dispositivo analítico opera uma torção, do processo de
assujeitamento, da alienação ao processo de separação. Agora o
porquê é de outra ordem, a do Podes perder-me?
Pergunta que se presentifica na fantasia de sua própria morte,
de seu desaparecimento.
A criança está ali com seu jogo, com seu brincar, tecendo sua
história, encenando sua novela familiar. E o analista, por seu lado,
tem como dever ético estar ali investido de seu desejo de analista,
e não como companheiro i maginário estar ali como causador do
desejo de saber, oferecendo-se à sua consumação.
Psicanálise com criança "pode ser a experiência mais radical e
dramática, no sentido de colocar em jogo o recalque originário que aspira
até a representação do próprio analista" ( ...) "Um adulto pode lembrar-se
da análise que fez. Uma criança pode até esquecer que fez análise."'
Lembremos de Hans. E, com esta lembrança, a evocação de uma
cena por mim vivida. Um encontro casual, mãe e filha adolescente,
que outrora, aos 5 anos, fizera análise comigo. A mãe alegremente
se dirige a mim; a adolescente permanece calada. A mãe lhe
pergunta se não se lembrava de mim. Ela responde que não me
conhecia.
Lugar de analista com criança, aquele ao qual podemos até ser
convidados ao esquecimento, a ser perdido sob a barra do recalque.
A CRIANÇA E SUA DOR: DO l DA CRUZ AO V DA VIDA 1 41

Mas esta não é a única radicalidade, que também se apresenta


desde as entrevistas preliminares, convidados que somos à sedu­
ção, à cumplicidade. E por isto mesmo o lugar de analista tem de
ser assumido até suas últimas conseqüências. Somos chamados,
algumas vezes, a compactuar com os ideais sociais e parentais,
ideais de completude, de complementaridade, ideais impossíveis.
Aceitar este lugar é aceitar a impostura, pois é próprio da psicanálise
a radicalidade. Radicalidade que aponta a verdade do ser.
Se o analista não escuta a criança no mais além do dito, não
apústa que a criança tem um saber e pode ser escutada como sujeito
do inconsciente, como analisante de pleno direito.
E é deste lugar de pleno direito que chamo Alice como teste·
munha. Com sua dor fisica e psíquica, no estabelecimento do amor
transferencial, constrói suas fantasias, distancia-se do lugar que
ocupava com os seus sintomas, mas que também assujeitava os pais
no seu gozo e tirania.
Escutando-a sou também testemunha do percurso dessa criança
em sua dor de existir.
Alice iniciara sua análise aos 5 anos, trazida pelos pais em
virtude de várias hospitalizações decorrentes de problemas respi­
ratórios.
À sua sensibilidade, inteligência e perspicácia, acrescenta-se sua
capacidade de elaboração notável, particularmente favorável à sua
análise.
A frase que dá título a este capítulo se deu por volta dos seis
anos. A via escolhida para a elaboração deste trabalho foi a questão
da interpretação. Interpretação que operando pelo significante e
pelo equívoco, incide sobre o real. "Equívoco de escrita que pode
exprimir um significado secreto, perigoso."2
Apresento recortes desse período de análise dividindo-o em 3
tempos.
12 Tempo.
Alice repetidamente começa a escrever seu nome com um traço
no I (t). Faz-se um enigma, e a analista se interroga sobre o porquê
desta grafia, como se quisesse compreender e compreendendo
explicar. Mas não é pela via da compreensão e da explicação que a
1 42 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

interpretação provoca um efeito para que "advenha alguma coisa que


é mais que o dito, 'algo mais'."3
A via do equívoco abala as significações adquiridas, as identifi­
cações vão sendo decantadas na identificação chave que ordena
todas as outras (traço unário).
A interpretação deve indicar, aludir, apontar o caminho para
que a surpresa se instale. E se instalando, instigar um dizer, provo­
car perguntas como: o que isto quer dizer, e outras. Não levar o
sujeito a uma somação de saberes mas, ao contrário, a se separar
das respostas às demandas nas quais se alienou, provocar a divisão
do sujeito.
Diante de sua escrita repetida a analista aponta:
Ah! um tracinho no I. Esta letra tem esse tracinho?
Ela parece não ouvir e continua a escrever o seu nome com o I
cortado. Às vezes apaga, olha, mas o traço está lá, insiste em se
escrever. O traço vai mudando de posição, ora mais em cima do I,
ora mais embaixo, ora vertical. É como se o tracinho se movesse.
Analista - Alice, o tracinho continua, não é? Mas agora ele
parece que está se mexendo, mudando de lugar.
Alice, irritada, responde:
- Olha, Dotares, eu sei tá que esta letra não tem tracinho, mas
a do meu nome tem, tá bom!
Analista - Tem?
Alice - Tem sim. É o traço da cruz.
É como se Alice dissesse: "Eu sei mas mesmo assim ... tenho que
escrever". Esta escrita ultrapassa o aprendido na escola, ela é de
uma outra ordem, do sintoma como traço de uma marca condensa­
dora de gozo, traço do fantasma. "É do lado da escrita que se concentra
aquilo onde tento interrogar o que vem a ser o inconsciente quando digo
que o inconsciente é algo no real."4
Após essa sessão, entra em angústia, tem uma crise, não neces­
sitando hospitalização.
É o a nalista que, pela via da interpretação, vai tocar o ponto de
angústia visando o real, visando este x enigmático que é a presen­
tificação do desejo do Outro.
Este x, este ponto enigmático, parece se articular com as falas
da mãe em relação a Alice, falas cheias de angústia. Fantasias de sua
A CRIANÇA E SUA DOR: DO l DA CRUZ AO V DA VIDA 1 43

morte, como se houvesse uma herança, um destino a ser cumprido


pela filha. Aceitação de Alice, de algo que começou a se articular
antes dela, nas gerações precedentes e que é a ATE familiar?
Uma questão é posta. O fantasma do Outro se faz presente, e
Alice no lugar do objeto do fantasma da mãe, vem dar respostas,
significações e o faz com a cruz em seu nome, com a crucificação
marcada em seu corpo nas diversas hospitalizações, em sua quase
morte.
O I cortado continua, Alice usa sucata para criar seus brinque­
dos, algumas vezes traz bonecas, corta-lhes os cabelos e as roupas.
22 Tempo.
Começa a jogar varetas, conta os pontos, mas não é o que conta.
As varetas são um pre-texto para jogar com as letras e a cruz. Quebra
algumas e vai marcando o chão, o "caminho". O caminho marcado
pelas cruzes revela o peso do real n esta cura.
Analista - Alice, seu cam inho tem tantas cruzes!
Alice - É .
Chora em silêncio, encostando sua cabeça numa almofada.
Aproxima-se da analista, sileciosamente, assenta-se em seu colo, e
continua seu choro.
"O algo mais" fora colocado. A interpretação faz um ato além
do que a própria analista esperava. Radicalidade da psicanálise da
qual não podemos retroceder.
Uma sessão é marcada para o dia seguinte. O casal chega. A mãe
entrega-me a filha que antes trazia no colo. Tomo-a em meu colo,
ofegante, sem ar. já na sala, vai ficando mais angustiada, começa a
chorar, fala baixinho como se tivesse medo de ser ouvida.
- Estou com medo de m orrer ... estou com medo de morrer...
não quero falar, tenho medo, estou sem ar.
Analista - Alice, quem sabe s e você falar o ar pode chegar
devagarinho.
Alice - Hoje, antes de vir para cá, estava no quarto ... meu pai
perto da cama de minha irmã com uma mamadeira na mão. Meu
irmão chegou e minha mãe entrou com uma tesoura na mão. Fiquei
com medo, achei que ela ia cortar o pinto do meu irmão e os meus
cabelos. Meu cabelo é muito bonito, não quero cortar.
Começa a falar do perigo das tesouras.
1 44 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

Nas sessões seguintes abre espaço para suas fantasias de cas­


tração, a respeito do sexo, encenando com as bonecas a relação
sexual.
- De onde eu vim, já sei - ri maliciosamente, e começa a falar
da morte terminando por dizer:
- A gente fica só uma cruz.
Volta a jogar varetas. As cruzes ainda marcam o caminho. Numa
das sessões, olhando o I cortado do seu nome, fala com espanto:
- Olha! Se nós mexermos no tracinho, o I da cruz pode virar o
V da vida.
Convite explicito à analista, no nós. Convite para desarmar o
destino, a fatalidade vaticinada pela mãe?
Mãe enquanto DAS DING, personificando o objeto estranho,
hostil , ameaçador, o fora de significação.
Mãe enquanto DAS DING portadora de um destino, portadora
"das tesouras" e que pode cortar o fio da vida . "O destino é solidário
de uma transmissão, de uma herança, transmissão de um dom ou de uma
maldição."5 Herança de todo vivente - a morte.
O analista é convidado a um lugar. A posição de demiurgo lhe
está interditada, o trabalho é desarmar o destino, e a descoberta
freudiana, segundo Lacan, "ensina a ver nos sintomas uma figuração
que tem relação com afigura do destino, enquanto a psicanálise introduz
a cifragem e o deciframento do inconsciente".6
Alice continua seu caminho. Agora vai brincando com as letras.
- O V da vida pode virar o A do meu nome e da minha vó. Dois
V pode virar M de mamãe, de montanha, montanha é redonda. V
redondo - e ri . E assim vai criando outras marcas com as varetas.
"Um ser que pode levar sua marca, isto basta para que ele possa se
reinscrever noutra parte além dali onde a gravou."7
3° Tempo.
As fantasias de morte, as das tesouras ainda estão presentes.
Agora inscreve o peso do real no campo do Outro. Faz do corpo do
analista, o lugar da castração, da morte. Coloca em seu colo as
cru zes, os objetos quebrados, as bonecas mortas sem cabelos, sem
pernas.
Seu nome já não traz o I da cruz.
A CRIANÇA E SUA DOR: DO l DA CRUZ AO V DA VIDA 145

Começa a desenhar "as flores negras, flores da morte". Nestas


coloca uma cruz pequenina. As flores vão ganhando cores e ela
brinca:
- O a rco-íris tá chegando. Ontem vi um lá na fazenda, atrás
das montanhas.
Utiliza a polifonia e homofonia do nome próprio da analista.
- Dolores, Dolores, não te chamo mais de dores, te chamo de
flores ... flores, te chamo de dô.
Entendo dor e pergunto: dor?
- Não - responde com um riso que parece revelar a ambigüi­
dade com que dissera este fonema.
- Não, de dô. Mas pode ser de dor de barriga, de pé, de cabeça,
daqui não - aponta o peito.
Assumindo o lugar de professora diz:
- Preste atenção! Escreva dó, é dó e vai cantando dó-ré-mi.
- Escreva as notinhas J .J J , cantando continua.
- Vou te chamar de dó-ré-mi, dó-ré-mi.
Letras, fonemas, frases convertidas em notas musicais.
A marca da cruz inscrita de forma dolorosa no seu corpo, no
seu nome, pela análise vai se transformando em poesia e música
presentificadas no seu refrão:
Dolores, Dolores, não te chamo mais de dores, te chamo flores,
flores ...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁACAS

I. V I DAL, Eduardo. Sobre o fantasma. In. HAN$ - Direção da Cura. Psica­


nál ise com criança e adolescente. letra Freudiana. Ano X, n. 9. HAN$ n.
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2. FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana: ESB. Rio de Janeiro:
lmago, v. VI, 1 976. .
3. SOLER, Colette. A s regras d a interpretação. I n . Artigos clínicos. Rio d e Ja­
neiro: Fator, 1 99 1 .
4. ALLOUCH, Jean. Letra a /etra:transcrever, traduzir, transliterar. Citado por
Allouch do seminário " Les non-dupes errent", de Lacan. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1 99 5 .
5. RABINOVICH, D iana S. EI deseo deI psicoanal ista. In Que Hacer de/ Psi­
coanlísta - Los rastros de la transferencia. Buenos Ai res: Manantial, 1 994.
1 46 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

6. LACAN, Jacques. O seminário - livro 8. A transferência. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1 992.
7. ALLOUCH, Jean. Letra a letra: transcrever, traduzir, transl iterar .. Citado
por Jean Allouch do seminário inédito de 1 4/maio/69, de Lacan.

BIBLIOGRAFIA

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2 nov .fJ2, Paris, 1 985.
DUPUIS, René. Symptome et psychosomatique. Nodal - Révue de I'Association Freu­
dienne, 2 nov/92 - Paris, 1 985.
FLÉCHET, Martine Lerude. Quelques remarques sur les symptônes de l'enfant. No­
dal - Révue de I'Associalion Freudienne, 2 nov./92, Paris, l985.
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IX, 1 976.
__ . O tema dos três escrínios. Op.cit. , 1 969, v.XIl.
__ . Construções em análise. Op.cit., 1 975 , v.XXIII.
LACAN, jacques. A terceira - Che vuoi. Porto Alegre; Cooperativa Culturaljacques
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=· L'étourdit. Scilicet 213. Paris; Seuil, 1 973.
__. Duas notas sobre a criança - Carta a jenny Aub ry. ]ornal da Biblioteca de
Cultura, ano I , n. 2, ago.fJ I .
__ . O seminário - livro 1 1 . Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de janeiro; Jorge Zahar, 1 979.
__ . O seminário - livro 7. A ética da psicanálise. Rio de janeiro; Jorge Zahar,
1 988.
MILLER,Judith. (Org.) -A criança no discurso analítico. Rio dejaneiro;jorge Zahar,
1 99 1 .
A Criança - do M ito à Estrutura

Marisa Decat de Moura

"Ustedes saben porqué los niíios


debujan las madres mayores que
las casas?
Es que en las madres empieza
e termina todo. "

Ernesto Sábato

M aria, setenta anos, com doença cardíaca grave e inoperável,


com dificuldade para respirar, "não sai do leito para nada". A equipe
médica preocupada demanda: "Muito deprimida", "ainda tem vida
para viver", "por quê?".

Demora tanto a responder às perguntas que parece não escu­


tá-las. De olhos fechados diz que tem dois filhos e mora com o mais
velho. "O outro morreu tão cedo!". Sua única distração é tecer bico
de crochê em panos de prato. Abre os olhos espantada diante da
pergunta sobre o pai de seus filhos: 'Já faz tanto tempo ... é como
se ele não existisse ... " E de olhos abertos fala do joão que tinha um
"jeito diferente" e que um dia viajou, fimu de voltar para buscá-la
e nunca mais apareceu. Diante da pergunta do por que ela deixou
o João ir embora sem fazer nada, fica perplexa, em silêncio, pensa­
tiva.
1 47
1 48 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

No dia seguinte fala do filho, da nora e dos netos. Questiona a


vida e o psicanalista: "Não tenho estudo mas não sou boba; de que
adianta pensar nessas coisas se vou mesmo morrer?"
Sorri timidamente "pega em flagrante" ao ouvir do psicanalista:
Ah! então você pensa que tem gente que não morre!

Assentada no leito recebe o psicanalista "com uma coisa linda"


que tinha lembrado olhando as árvores pela janela do hospital: O
canavial da roça onde morava com seus pais, "balançando ao vento".
Fala do "riacho clarinho" e seus olhos brilham ao dizer do "jerimum
tão sequinho que brilhava na panela".
Numa "feliz coincidência" a refeição do hospital chega. Diante
do cheiro que também chegou, ambos, psicanalista e paciente, riem
numa cumplicidade:
"Não é o jerimum ..."
Ao riso segue-se um silêncio e depois de u m tempo Maria
acrescenta: "Aquele jerimum não volta mais".
O psicanalista testemunha: "Aquele jerimum não volta mais".

Maria caminha pelos corredores. Alta hospitalar programada,


fala do tempo de agora - seus planos, limites e possibilidades:
"Meus netos precisam de mim". Fazem avaliação deste "tempo
esquisito": uma semana que passou rápido demais. Se despedem:

"Ser psicanalista é emprestar palavra, corpo e serpara ser


feito do que quiser.. . é ter saudade sem reivindicar quando
1
se chega aofim ".

Freud no texto meta psicológico "O inconsciente" (1 9 1 5), ao


dizer que os processos do sistema i nconsciente são atemporais, isto
é, não sofrem o desgaste do tempo, sendo portanto i ndestrutíveis,
nos permite saber que o desejo inconsciente, por não ser sabido
pelo sujeito, para que ele se revele vai precisar de um campo
específico do saber que é a psicanálise. Maria traz significantes de
sua história: cardíaca, coração grande, Joã'), tecer bico de crochê,
canavial, jerimum ... Poderiam ser outros, não i mporta quais. O
importante é o trabalho do psicanalista cem as palavras.
A CRIANÇA- DO MITO À ESTRUTURA 149

A borda tecida do bico de crochê sobre o pano de fundo do


perdido ao faltoso do jerimum nos permite pensar sobre as possi­
bilidades de uma construção com os significantes do sujeito, tam­
bém na instituição hospitalar, onde a duração do tempo cronológi­
co da internação é uma questão para nós.
A alienação do sujeito foi posta à prova pela psicanálise e Freud
nos revelou de forma "milagrosa" o poder da palavra na decifração
dos sintomas quando estes desapareciam misteriosamente.
Lacan vai formalizar o que Freud já tinha evidenciado, que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem mas nem tudo está
na linguagem, está também no além do princípio do prazer.
Nos tropeços da fala é que Freud vai buscar o inconsciente. Ele
privilegia o inconsciente e suas formações e Lacan vai formalizar o
mais além das formas que Freud já havia pontuado: a pulsão de
morte.
O campo da psicanálise como o campo da perda (recalque
originário) se apresenta como o oculto. Freud escreve "Psicanálise
e Telepatia" em 1921, interessante que logo após "Além do Princí­
pio do Prazer", de 1920. Fala então do perigo de que o psicanalista
permita que seu interesse seja arrastado para os fenômenos ocultos
e a psicanálise encarada como misticismo.
A existência desse oculto se apresenta em ato, se manifesta em
um tempo lógico, tempo possível onde o sujeito se encontra
aturdido com os seus ditos.
O psicanalista pode então operar com uma outra temporalida­
de, o tempo lógico, para ouvir o sujeito capaz de mudar sua posição
no mundo. A força viva da intervenção psicanalítica, esta constatada
somente a posteriori, é o efeito sempre presente do sujeito "tocado"
pelo ato do analista.
E então podemos sair do milélgre para o efeito surpreendente
-inclusive para o analista-do advir fugaz do sujeito do incons­
ciente, promovendo uma possível mudança de posição com relação
ao seu sintoma.
O psicanalista vai escutar no discurso do sujeito este não-sabido
e que é contornado pelo material infantil, "o não-sabido se emol­
dura com a moldura do saber", como diz Lacan no Avesso da
Psicanálise. Escutar esta palavrajerimum, que é efeito de um discur-
1 50 PSICANÁ LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

so diferente do discurso religioso cuja resposta é aquela vinda do


Outro, ou do discurso da ciência no qual o sujeito está excluído.

Podemos, a partir da prática na Instituição hospitalar, nos fazer


algumas perguntas:
- Qual a direção do tratamento no hospital?
- Como "receber" as demandas?
- Colocar o paciente para andar? Para quem?
Refletir sobre estas interrogações nos ajuda a pensar em ques­
tões complexas como demandas de "eficiência". "recusas" de aten­
dimento e como escutar aqueles pacientes que "ninguém sabe" o
que fazer com eles, inclusive nós psicanalistas.
Colette Soler, com a liberdade que resulta do rigor teórico, ao
falar sobre o final de análise expressa uma idéia que considero
pertinente para o que gostaria de dizer sobre o tratamento psica­
nalítico no hospital, sabendo não ser este análise-final de análise:
"Em matéria de mudança a psicanálise... acrescenta ao
efeito terapêutico um efeito de revelação. É por este últi­
mo, como aquisição de saber, e solidário com uma mu­
dança que pode dizer-se a-terapêutica, que deixa o sujeito
aliviado, não do seu inconsciente, mas do Outro onde ele,
com seu tormento, alojava seus álibis. Este resultado não
se obtém em todos os casos mas é suficiente que isso se
dê para alguns, e se saiba disso, para que seja visado para
muitos".
Em se tratando da especificidade de um discurso em que só
existe um sujeito, e que não é o analista, este, também no hospital,
está "a serviço" de um sujeito, tornando-se fundamental não a
seleção das demandas, mas a sua resposta a elas. A direção do
trata mento - e ela existe mesmo que seja em um atendimento -
vai d epender, de "maneira absoluta", do que o psicanalista faz com
a demanda.
A formalização teórica de Lacan sobre o lugar do analista nos
oferece recursos para pensar questões ligadas à prática do psicana­
lista no hospital e sua articulação com a ética que a sustenta.
A CRIANÇA - DO MITO À ESTRUTURA 151

Lacan ao dizer que o analista deve prestar-se a ser o secretário


do alienado, o diz com relação à psicose. No próprio título do texto
nos Escritos - "Uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose", fala de sua posição quanto ao tratamento da psicose.
Podemos pensar que o "tratamento possível" se aplicaria também
a outras situações específicas na instituição hospitalar.
Uma das maneiras de o sujeito se articular no vivido é através
da alienação nos significantes da sua história. Cabe ao analista
registrá-los e no momento oportuno subjetivá-los. Secretariar não
é somente anotar - tornar consciente o i nconsciente - mas a
direção do tratamento implica em introduzir o sujeito no discurso,
quando então a vida pode tornar-se mais leve e a questão da morte
menos dolorosa.
E o sujeito pode pegar novamente o fio de sua vida, a cadeia
significante que o analista pode oferecer.
Se "a vida está sempre por um fio" é necessário pegar o fio da
meada, o fio que implica o sujeito na vida.

A Criança é o Pai do Homem?


O infantil no adulto

"E/ hombre sin infancia


tampoco es adulto"
Germán L. Garcia
Sempre nos causa surpresa a vivacidade das lembranças infantis
ligadas ao desejo i nconsciente. Elas têm cor, som, brilho, calor. O..

'1erimum" brilhava. Maria traz viva em seu discurso uma criança.


Afinal, o que é uma criança?
Refleti r sobre esta criança convocada pelo discurso analítico
nos faz pensar sobre o efeito desorganizador que a palavra possi­
bilita, remetendo à responsabilidade da direção da escuta do ana­
lista, ao que ele faz com o que o paciente diz. Isto não nos
esquecendo que, em situação de doença grave, o sujeito vai estar
destituído de maneira violenta dos ancoramentos simbólicos onde
se sustentava.
1 52 PSICANÁ liSE E HOSPITAl - A CRIANÇA E SUA DOR

Portanto, diferente de "se bem não faz mal também não faz", a
responsabilidade ética da direção do atendimento é do analista.
Não podemos deixar de lembrar que toda a obra de Freud nos
revela a importância das ocorrências subjetivas ligadas à história
vivida na infância. O significativo é que Freud formalizou a relação
entre o infantil e o inconsciente, o que assinala a diferença entre a
psicanálise e os outros saberes sobre a criança, marcando a intancia
enquanto constituinte da subjetividade humana. Além disso, ao
escutar o adulto em análise, pôde descobrir que o infantil que
aparece para o analista é uma construção a posteriori, no tratamento.
À medida que Freud rompeu com o saber sobre a patologia infantil,
foi-se tornando evidente a diferença entre os conceitos de criança
e de infantil.
A criança vive o tempo presente. O adulto reconstrói o infantil
com os fragmentos da infância. E este infantil é atual, reencontro
no adulto com a criança que por um processo de ruptura (recalque)
dela se separou.
Em 1 938 - "Esboço de Psicanálise" - Freud, aos 82 anos,
reúne os princípios da psicanálise para anunciá-los de maneira mais
concisa e nos termos mais unívocos, em suas próprias palavras ...
Ao falar da técnica, no capítulo VIl, retoma a questão do papel
desempenhado pelo período da i nfância na constituição do sujeito,
período relacionado com o desamparo e a prematuridade biológica
do vivente. Fala sobre a criança: "A experiência analítica convenceu-nos
da completa verdade da afirmação ouvida com tanta freqüência que a
criança psicologicamente é o pai do adulto e que os acontecimentos de
seus primeiros anos são de importância suprema em sua vida posterior"
(grifo nosso). E como não podia deixar de ser, fala do complexo de
Édipo e do complexo de Castração.
Lacan dos anos 70, no Seminário XVII - O Avesso da Psicanálise,
no capítulo "Do mito à estrutura", ao falar do pai real como
operador estrutural retoma a afirmação de Freud sobre a criança
articulando-a à instância do mestre e ao significante-mestre:
"Se pudemos perceber que a psicanálise nos demonstra
que a criança é o pai do homem, certamente deve haver,
de algum modo, alguma coisa que fez a mediação, que é
A CRIANÇA - DO MITO À ESTRUTURA 1 53

precisamente a instância do mestre na medida em que


este chega a produzir de qualquer significante o signifi­
cante mestre" (grifo nosso).
A partir do próprio título deste capítulo, "Do mito à estrutura",
já podemos pensar sobre a importância de que esta criança -
infantil no adulto - fale, porque ao falar revela o outro lado da
moeda, revela o encontro com o impossível de dizer que ela própria
sustenta. Não podemos deixar de lembrar Lacan dos anos 50
quando já fala da idéia de articular o mito à estrutura, isto é, à
verdade do sujeito. Em 1 953, escreveu "O mito individual do
neurótico e a poesia e verdade da neurose", texto que só tardia­
mente foi publicado por j .-A. Miller em "Ornicar?". Lacan vai tomar
como referência em Freud "O homem dos ratos" e o articula com o
estudo autobiográfico de Goethe,A Poesia e a Verdade. Afinal ele está
falando aos estudantes do College de Philosophie.
Fala então da "constelação original" de onde sai o desenvol­
vimento da personalidade do sujeito.
Em 1 937, época de sua tese de doutorado, já falava em perso­
nalidade e desenvolvimento, significantes que posteriormente vão
desaparecendo de sua obra. Mas desde então coloca a questão da
relação entre a ficção e a verdade. Ao escutar a "constelação
original", a psicanálise tem a pretensão de ir além, ir a algo da ordem
da verdade e não do sentido.
A teorização de Lacan e sua articulação com a clínica levaram a
avanços no conhecimento do psiquismo humano, isto é, do infantil
no adulto.
Ouvimos com freqüência profissionais que cuidam de pacientes
graves dizerem que quando alguém morre, chama pela "mãe" e não
pelo "pai". Afirmação que nos dá o que pensar e que remete à
necessidade de articular esse "pai do homem" com o "Pai" e essa
"Mãe", onde "tudo começa e tudo termina".
No Seminário VII -A ÉtiCa da Psicanálise - 1 959-1 960 - Lacan
fala da mãe enquanto ocupa o lugar de das Ding, e o que estrutura
mais profundamente o inconsciente com o das Ding, a coisa, é a
impossibilidade de satisfação do desejo pela mãe pois ela é a
abolição do mundo inteiro da demanda. Nos diz que "O Bem
Supremo, que é das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem
1 54 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

proibido e que não há outro bem. Tal é o fundamento, derrubado,


invertido, em Freud, da lei mora f' . Na medida em que a lei moral proíbe
o incesto impossível, cria-se o possível, que é a lei do fantasma,
constituindo-se esta a transgressão possível.
O sujeito para que se constitua como tal precisa de uma barra
para não cair na "boca aberta" de das Ding.
O sujeito precisa "tomar distância" de das Ding, precisa de um
pai, pois esta distância é a própria condição da linguagem.
No mesmo seminário Lacan d�fine o pai como sublimação
cri acionista. A criança cria o pai para fazer barreira à m ãe onipoten­
te, das Ding.
Ela cria o pai-herói, o super-homem, o papai-noel. Desde Freud
- 1 905 - "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", já sabe­
mos da criança perverso-polimorfa. A criança vai precisar ir além
dessa pere-versão, dessa versão do pai, sair da posição de objeto
quando o pai então constitui-se enquanto metáfora, a metáfora
paterna.
A psicanálise vai tratar de um tempo que "terá sido". A criança
pai do homem, a criança-pai nos lembra que o que é da ordem do
pai é da ordem da representação e a análise visa ir além, onde o
sujeito se depara com a castração.
Paradoxalmente, sempre nos surpreendemos com o "milagre"
quando o sujeito, diante da castração, ao deixar de dar consistência
ao Outro, lugar onde depositava seus álibis, diante do desamparo,
encontrando-se em um impasse, pode criar passes, saídas possíveis,
já que "aquele jerimum" é um nunca tido e um nunca mais.
A criança se aliena nos significantes do Outro que é a forma
possível de ser amada. A demanda está ligada a esta criança do
a mor, da completude, que precisa entrar na dialética alienação/se­
paração para não "entrar na fôrma".
A criança como pai do homem e não como seu filho, revela que
não sendo conseqüência, efeito do pai, é da ordem do fundamento,
trazendo em si a ordem da criação.
Do movimento mito-estrutura, do mítico onde a criança é
obj eto de Outro absoluto e que se impõe à criança, é necessário ir
além. O mito pretende a verdade, atribuindo sentido e significação
aos acontecimentos. A psicanálise pretende i r além ao escutar o ser
A CRIANÇA - DO MITO À ESTRUTURA 1 55

falante. Ao inscrever-se na cadeia significante e ao falar, esta criança


transmite sua própria castração revestida do mito de sua história,
que sabemos ser da ordem da ficção.
O que esta criança pai do homem fala é da tentativa de dar um
sentido às marcas de sua história, quando através da própria
alienação significante pode "surgir" a verdade sobre sua alienação.
É com a "constelação original", com o infantil no adulto, que o
analista vai trabalhar a construção do fantasma fundamental. E pelo
fato de falar - sempre para alguém - pode mudar a relação com
o mais íntimo de si, mudando de posição na vida - sempre diante
de um outro.

Psicanálise: Bem-Dita Seja!

"Diante do nada a fazer


pode-se fazer o nada"

Maria luisa D. Vilela

Ao fazermos uma clara alusão à religião e ao bem-dizer a


psicanálise, pretendemos não só acentuar a radicalidade de sua
ética como registrar também a "presença de um Outro" sempre
invocado nas situações-limite do humano quando o sujeito sofre
diante do seu desamparo radical.
- Meu Deus! Deus, por quê? Por que comigo?
São situações que, principalmente pelas difi c uldades, exigem o
psicanalista "no seu devido lugar", única possibilidade de oferecer
sua resposta para o sofrimento humano.
Estamos com freqüência ouvindo ser decretada a morte da
psicanálise e também sobre a impossibilidade de sua prática em
instituições hospitalares. No hospital, no seu dia-a-dia e diante de
um Real i nsuportável, nos perguntamos não menos freqüentemen­
te: O que estamos fazendo aqui?
São fatos que falam de dificuldades e exigem formalização e
avanços teóricos para que o psicanalista possa sair da impotên­
cia/onipotência onde é convocado quando "não há nada a fazer",
para dar conta do possível, de ver o sujeito diante de tantos apelos
1 56 PSICANÁ LISE E HO SPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

para o lugar de objeto. O hospital se constitui enquanto um espaço


para i nterlocução, não se limitando a psicanálise à esfera do priva­
do, e não permitindo ao psicanalista esquecer que o seu campo de
trabalho é a vida humana, e nela o sujeito que sofre a dor de existir.
Ao exigir reflexão constante de sua clínica, constitui-se enquan­
to um espaço de trocas enriquecedoras com profissionais de espe­
cialidades diversas e com colegas que praticam a psicanálise, com
quem muito aprendemos através de leituras e troca de experiências,
exigindo abertura frente ao novo e ao diferente e dificultando a
formação de "guetos" e idealização de mestres.
Enfim, uma prática exigente e criativa e um espaço para o
permanente tornar-se analista.
O critério para o trabalho analítico, também nos hospitais, é o
critério ético, o que implica a ética do bem-dizer, isto é, na especi­
ficidade das respostas às demandas quando ao acolhê-las a partir
de uma posição específica, pode respondê-las.
Lacan nos fala dessa especificidade em vários momentos de sua
obra. Num primeiro momento fala do sujeito do enunciado/sujeito
da enunciação. Mais tarde vai falar sobre o dito e o dizer.
Há um dizer inconsciente. O analista "sabe" da di­
visão do sujeito, este não é unívoco.
Se o analista leva este saber em conta, pode respeitosamente,
com firmeza, apostar no sujeito e esperar o seu tempo. Não se trata
de sugestão ou imposição mas de um imperativo ético. Trata-se da
certeza/firmeza que existe um sujeito "além" que vai poder susten­
tar sua divisão neste ponto de certeza antecipada de sua existência.
Podemos então falar de cumplicidade onde o desej o de analista
encontra o desejo do paciente, sendo aquele não desej o fálico nem
desejo de nada, mas desejo enquanto falta, não de nada mas falta
do "jerimum".
"jerimum" que o analista pode reconhecer enquanto significan­
te da falta. O que não tinha acesso à presença não podia ausentar-se;
ao nomear o infantil, este pode ser destituído pela afirmação.
A presença do analista nas situações onde o sujeito se apresenta
como objeto, identificado a ele, nos lembra Diana Rabinovich ao
falar da dificuldade da instalação do Sujeito Suposto Saber e a
necessária paciência do analista. Esta questão nos faz pensar tam-
A CRIANÇA - DO MITO À ESTRUTURA 1 57

bém sobre a importância da construção de uma estrutura terapêu­


tica para que só então algo dela possa se separar. A psicoterapia faz
intetvir a função da fala, a análise é sempre de um discurso.
O fundamental na construção terapêutica é a posição do ana­
lista, detentora da chave para a direção do tratamento, que não
sendo a sugestão/identificação, dirige para a subjetivação.
Psicanalistas acolhem a demanda - também no hospital -
visando a um fim específico: colocar o paciente para andar. A
possibilidade do sucesso terapêutico oferecido pela psicanálise já
era enfatizada por Freud. Quando o psicanalista acolhe a demanda,
"direta" ou "indiretamente" ele promete com a sua oferta um
resultado. Se não fosse assim, se ele não tivesse nada a oferecer,
seria petversão em alto estilo, um grande engodo.
Que o resultado seja específico, é a nossa questão. Como diz
Lacan em "Direção da cura e os princípios de seu poder", "resultado
não como os outros".
A psicanálise não é da ordem dos bens morais. Mas tem um bem
a oferecer. Só pode fazer parte da cultura e enquanto tal ser
reconhecida, se puder oferecer uma resposta para o sofrimento
humano.
Resposta da ordem de um bem-dizer, não se tratando de saber
o porquê, mas de um dizer que faça andar o sujeito.
Se o analista recebe a demanda compromete-se com o possível
e ele sabe e por isso aposta no efeito terapêutico da revelação do
saber inconsciente.
E se é da ordem do possível, não é a doença que desaparece,
mas o sujeito que vai "se virar", mudar sua posição diante dela. O
hospital exige que o psicanalista "caia na real" sem perder o fio que
a psicanálise sustenta, o fio do sujeito. O infantil, a história, o olhar,
o cheiro, o grito, o gesto, a fala, as lembranças constituem o material
que contornará o "horror do não-sabido", horror que se abre com
um vazio de perspectivas e esperanças: "Eu vou mesmo morrer".
Estamos falando de uma prática em uma instituição da/na
cultura - o hospital. E duas questões se impõem: a clínica da
urgência subjetiva e a psicanálise nos tempos de hoje. Uma questão
teórica fundamental, presente na clínica da urgência, é a impulsivi­
dade que sabemos ser da ordem da pulsão, da ordem do ato a nível
1 58 PSICAN Á LISE E HOSPITAL - A CRIANÇA E SUA DOR

estrutural e que, quando articulada à ordem simbólica, à linguagem,


perde força motora. Conseqüentemente, o que não faz parte da
cadeia significante aparece como impulso: anorexia, bulimia, hipe­
ratividade ou "não sair do leito para nada".
Estas, enquanto "patologia do Outro", pois são formas em que
o objeto a não cai e não estando em função de causa torna o Outro
consistente, são um convite ao analista não retroceder, mesmo se
tratando de uma clínica "além" das formações do inconsciente.
Alienação e consistência do Outro se correspondem. Não estan­
do em relação com a cadeia significante são interpretáveis pela via
do ato, inclusive pela palavra da ordem do ato.
O sintoma insuficiente da clínica da urgência chega muitas
vezes ao analista através da angústia do outro, seja profissional ou
familiar, porque submete os outros discursos ao "nada resta a
fazer". Resta ao analista o resto, a possibilidade de construção da
temporalidade no tratamento deste sujeito: um antes e u m depois,
marcado pela descontinuidade.
Torna-se dificil determinarmos as características da época em
que vivemos, exatamente por estarmos inseridos nela. Mas não
podemos deixar de registrar a exigência da pressa, do "tudo para
ontem". E o psicanalista está diante de uma clínica i nserida neste
tempo, e não saudosista de uma "clínica perdida", o que remete o
analista a receber o sujeito que vive hoje, mesmo que preso ao
passado e projetando no futuro a sua vida. Estamos vivendo em uma
época caracterizada pelo individualismo que implica em ruptura dos
laços sociais e queda dos ideais que não funcionam mais como fator
de congregação. Com a globalização nos perguntamos pelo sujeito
e pensamos ser a psicanálise que sustenta a questão do sujeito no
mundo.
Tanto a clínica como o sujeito fazem apelo à p sicanálise e
exigem novas respostas pois os conceitos fundamentais da psica­
nálise foram constituídos com parâmetros de outra época, o que
convida, através dos avanços da ciência, à possibilidade do novo,
do avançar.
A temporalidade hoje, caracterizada pela velocidade, implica
em afetar o instante de ver, momento de concluir e o tempo para
compreender. A pressa em concluir, exigência do d iscurso do
A CRIANÇA - DO MITO À ESTRUTURA 1 59

mestre, convoca o psicanalista enquanto presença capaz de abrir


espaço para o sujeito, sujeito "sufocado" que "pede" para respirar,
sustentando a pressa da conclusão que responde à lógica do signi­
ficante no inconsciente. Trata-se de momentos lógicos onde o
sujeito pode ser tocado no que Lacan formalizou como traço unário,
traço que se repete na vida do sujeito -jerimum - um dos nomes
da falta. É a marca registrada do sujeito, onde ele se reencontra para
confirmar as suas certezas, ele é nessas marcas, "estou vivo".
Ao apropriar-se o sujeito de seu traço, o psicanalista aposta no
seu efeito estruturante, no "nunca mais" que agora é "para sempre".
Nós sabemos e sempre nos surpreendemos como um olhar, u m
toque, uma bem-dita palavra pode mudar a vida das pessoas, isto
às portas do século XXI, tempo de tantos objetos oferecidos para
serem consumidos. Portanto, podemos testemunhar o sujeito por­
que ele nos pede algo que barre essa desenfreada corrida contra o
tempo ... do sujeito para que ele possa "respirar", "viver".
O analista pode então pôr o sujeito para andar... para a vida.

Seis meses depois o psicanalista encontra com o profissional


que cuidava de Maria e este lhe diz que ela havia falecido há duas
semanas: "Imagine, de morte súbita!"
O real é aquilo com o qual não conseguimos nos habituar pois
é da ordem da surpresa, do imponderável.
- A morte não será sempre súbita para quem está vivo?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁACAS

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,

I nd ice Remissivo

Abismo(s) e a insuficiência renal crônica •

temporal, 1 1 89- 1 04
da castração, 1 8 introdução, 89
Amor(es) corpo, 90
lacaniano, 7 1 linguagem, 90
Angústia, 9 constituição do sujeito, 95
produção da, 9 dialisar-idealizar-desidealizar, 97
suscitada pela ausência, 36 sintoma, 99
Atendimento psicológico tratamento, 99
pré-cirúrgico, 53 o lugar do analista, I O I
pós-cirúrgico, 53 e as estruturas clínicas, 1 1 7- 1 26
entrada na, 1 1 7
CAPO (Diálise Peritoneal Ambulatorial percurso na, 1 1 7
Contínua), 97 o sintoma da, 1 2 1
e a dor da morte, 1 23
Castração, 44
e sua dor, 1 39- 1 45
simbólica, 1 0
do L. da Cruz ao V. da Vida,
Coagulopatia(s), 58
1 39-1 45
Completude
do mito à estrutura, 1 47- 1 59
sentimento de, 60
Culpa
ilusão de, 1 00
o mal-estar da, 1 29- 1 37
Complexo de Édipo, 5 1
das Ding
Contração
campo de, 6
da fisionomia, 1 2
considerações sobre, 6
Coordenação motora, 22
ex-sistência de, 7
Criança(s)
espaço de, 9
que se cala, 27-3 1
horror de, 1 0, 1 2
o luto na, 33-45
inominável de, 1 2
prática hospitalar com, 47-55
proximidade de, 1 2
psicanálise na, 47-55
i ntrodução, 47 Decalagem
parte I, 48 radical, 52
parte 11, 52 entre corpo e psíquico, 52
parte 111, 53 Desidealização
fantasma na, 47-55 gradual, 77
introdução, 47-55 processo de, 77
parte I, 48 Doença(s)
parte 11, 52 crônica, 57-65
parte 111, 53 identificação com, 57-65
161
1 62 ÍN DICE REMISSIVO

a insistência do sujeito, 57-65 Glaucoma


persistência temporal das, 57 cirurgia para, 47
Dor(es)
da infància, 1 -3 Hemofilia, 60
prevenção da, 2 Hemoglobinopatia(s), 58
tratamento da, 2 Hiância, 1 7
pronto reconhecimento da, 2 construtiva, 58
de existir, 5- 1 3
e o prazer de viver, 5- 1 3 latrogenia, 90
no psiquismo humano, 5 Identificação
caráter econômico da, 5 mecanismos de, 37
gemido de, l i com o morto, 37
da perda, 33-45 Imaginário
Duplicidade tamponador, 1 8
amor tecido pela, 79-87 limite do, 1 9
operador, 20
Édipo eixo, 23
quaternário, 68 relação transferencial, 23
Energia(s) efeito fundamental, 23
psíquica, 6 Impotência
quantidade de, 6 sentimento de, 22
Estádio do espelho, 1 5 , 1 6 , 2 1 , 23, 95 lnconsciente(s)
imaginário, 1 6 constituição do sujeito do, I 07
simbólico, 1 6 lnsuficiência(s)
real, 1 6 renal crônica, 89- 1 04
Estoicismo, 8 a criança e a , 89- 1 04
Estrutura de Ficção introdução, 89
uma verdade com, 47-55 corpo, 90
introdução, 47 linguagem, 90
parte I, 48 constituição do sujeito, 95
parte 11, 52 dialisar-idealizar-desidealizar,
parte 111, 53 97
Euler sintoma, 99
círculos de, 63 tratamento, 99
o lugar do analista, I O I
Falo, 1 9
Fantasia(s) Libido
construção da, 52 adesividade da, 7
Fantasma(s) Luto
construção do, 48 na criança, 33-45
toxicomania, 52 trabalho de, 42, 43, 44
Ferdinand de Saussure
lingüística estrutural de, 1 1 9 Masoquismo(s)
Funcionamento psíquico feminino, I O
"morosidade" do, 1 3 Melancolia, I O
ÍNDICE REMISSIVO 1 63

"Milagre do uivo", 1 1 Repetição(ões), 57


Morte(s) Resposta fantasmática, 5 1
espiritual, 42
real, 42 Síndrome(s)
pulsão de, 44 de Münchausen, 1 22
Münchausen Sistema(s)
síndrome de, 1 22 naràsista parenta(
complemento fá fico do, 69
Neurose(s) Sofrimento(s)
de guerra, 53 psíquico, 64
Solidão, 7 1
Olhar Subjetividade
como gesto, 1 5-25 do tempo, 1 3
função do, 1 7 experiência da, 1 3
inconsciente, 2 1
d o olhar a o outro a , 2 1 Tamponador(es)
brilho do, 24 imaginário, 1 8
pathos, 8, 9
Toxicomania, 52
Tyché, 84
Pênis
malformação do, 53
UTI
Pulsão(ões)
pontos e contra-pontos em, 70
escópica, 1 8
psicanalista na, 74
d e morte, 44
Impressão e E nc a d e r n a ç a o

. 'MARQUES SARAIVA
GRÁFICOS E EDITORES S A
Te/.: (02 1)502-9498
Só as crianças têm segredos, dos quais mais tarde já nem lembram! A
dor talvez é um deles.
Ficamos aturdidos diante da criança. Considerada inocente, diz ela a
verdade. A verdade sai pela boca das crianças, diz o adágio.
Uma das perguntas sobre a criança vem a ser a questão do trauma (a
dor de existir?), definido, por vezes, como resultado de sedução ou
violência, por parte do adulto. Já não sabemos mais, nem temos
condições de pesquisar até que ponto a criança consente. Já nem
podemos imaginar que o trauma é a marca do que ela tanto temia, a
revelação de algo já sabido, a saber, a dor de existir. O "segredo" da
criança faz frente ao adulto que indaga.
Ao cabo de algum tempo, a experiência acumulada solicita uma nova
tarefa, desta vez a escrita, dada ao público em forma de livro.
Se me fosse permitido, quero reconhecer não só a competência
profissional, mas o trato delicado com a matéria. A maneira de encarar
as mais duras situações da vida e da morte, já que atestadas no
hospital, no CTI.
Célio Garcia

REVINTER

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