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exame 2021

12
HISTÓRIA A
António Ribeiro
Lia Ribeiro

REVISÃO CIENTÍFICA
Manuel Loff
Ilídio Silva

ATUAL E COMPLETO
Explicação de todos os conteúdos

200 questões com resposta detalhada

Teste diagnóstico
com feedback online imediato

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exame
12
HISTÓRIA A
Avelino Ribeiro

REVISÃO CIENTÍFICA
Manuel Loff
Ilídio Silva
NOTA INTRODUTÓRIA

Testes e Exame História A – 12.o ano é um instrumento orientador e facilitador


da aprendizagem dos alunos de 12.o Ano – História A – tendo em vista, funda-
mentalmente, a condensação de informação histórica relevante conciliando a
aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento das competências necessárias
para o sucesso e a excelência nos testes e no Exame Nacional de História A, que,
em 2013-2014, integrará conteúdos programáticos dos 11.° e 12.° anos e, a partir
de 2014-2015, dos 10.°, 11.° e 12.° anos de escolaridade.

Os alunos de História A do 12.o ano encontrarão neste trabalho, que abrange


os programas destes 3 anos do ensino secundário:

• orientações sobre métodos de trabalho;

• conteúdos essenciais que serão objeto de estudo e avaliação nas aulas,


nos testes e no Exame Nacional;

• exercitação das aprendizagens através de questões orientadoras do


estudo, na banda externa das páginas, e questões para exame, no final
de cada módulo;

• propostas de resolução das questões-tipo, dos testes e das questões para


exame em http://leyaeducacao.com;

• recolha dos exames nacionais de História desde 2007 e respetivas pro-


postas de resolução em http://leyaeducacao.com.

Não obstante estes apoios, importa ter em conta que o objetivo da excelên-
cia exige um grande investimento pessoal no trabalho e capacidade de orga-
nizar os saberes, com autonomia e alguma originalidade, em contextos inter-
pretativos coerentes, críticos e reflexivos.

A História é uma ciência fascinante. Sem ela vaguearíamos num mundo sem
referências, perderíamos o norte, a identidade. Mas também é verdade que,
se o seu estudo não requer capacidades específicas de ordem anormalmente
elevada, exige muito de cada um.

Bom trabalho!

O Autor
Índice 3

ÍNDICE

1. Como estudar para obter resultados de excelência............................................................. 6


2. Como abordar um teste escrito ou exame ........................................................................... 7
o
3. Prova de Exame Nacional de 12. Ano – História A ............................................................. 8
4. Interpretação das questões dos testes e do Exame Nacional de História A ...................... 9

10.° Ano
Módulo 1 | Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania
e império na antiguidade clássica
Unidade 1 – O modelo ateniense......................................................................................... 10

Unidade 2 – O modelo romano............................................................................................ 15

Unidade 3 – O espaço civilizacional greco-latino à beira da mudança.............................. 20

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 22

Módulo 2 | Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV –


espaços, poderes e vivências
Unidade 1 – A identidade civilizacional da Europa Ocidental ............................................ 25

Unidade 2 – O espaço português – a consolidação de um reino cristão ibérico .............. 32

Unidade 3 – Valores, vivências e quotidiano ...................................................................... 41

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 46

Módulo 3 | A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos,


sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI
Unidade 1 – A geografia cultural europeia de Quatrocentos e Quinhentos....................... 48

Unidade 2 – O alargamento do conhecimento do mundo .................................................. 51

Unidade 3 – A produção cultural ........................................................................................ 54

Unidade 4 – A renovação da espiritualidade e religiosidade............................................. 62

Unidade 5 – As novas representações da Humanidade ..................................................... 66

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 69

11.° Ano
Módulo 4 | A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas
coloniais
Unidade 1 – A população da Europa nos séculos XVII e XVIII: crises e crescimento ....... 71

Unidade 2 – A Europa dos estados absolutos e a Europa dos parlamentos .................... 74

Unidade 3 – Triunfo dos estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII ....... 80

Unidade 4 – Construção da modernidade europeia............................................................ 87

QUESTÕES PARA EXAME ...................................................................................................... 91


4 Índice

ÍNDICE

Módulo 5 | O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos


XVIII e XIX
Unidade 1 – A Revolução Americana, uma revolução fundadora ....................................... 93

Unidade 2 – A Revolução Francesa – paradigma das revoluções liberais e burguesas ... 95

Unidade 3 – A geografia dos movimentos revolucionários na primeira metade do século


XIX: as vagas revolucionárias liberais e nacionais........................................ 99

Unidade 4 – A implantação do liberalismo em Portugal .................................................... 101

Unidade 5 – O legado do liberalismo na primeira metade do século XIX ........................ 106

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 109

Módulo 6 | Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas


Unidade 1 – As transformações económicas na Europa e no Mundo ................................. 111

Unidade 2 – A afirmação da sociedade industrial e urbana............................................... 119

Unidade 3 – Evolução democrática, nacionalismo e imperialismo ..................................... 125

Unidade 4 – Portugal, uma sociedade capitalista dependente .......................................... 128

Unidade 5 – Os caminhos da cultura.................................................................................. 132

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 137

12.° Ano
Módulo 7 | Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira
metade do século XX
Unidade 1 – As transformações das primeiras décadas do século XX .............................. 139
1.1. Um novo equilíbrio global ............................................................................................ 139
1.2. A implantação do marxismo-leninismo na Rússia: construção do modelo soviético .. 144
1.3. A regressão do demoliberalismo.................................................................................. 147
1.4. Mutações nos comportamentos e na cultura............................................................... 149
1.5. Portugal no primeiro pós-guerra .................................................................................. 160

Unidade 2 – O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 1930 ............. 165
2.1. A Grande Depressão e o seu impacto social............................................................... 165
2.2. As opções totalitárias................................................................................................... 168
2.3. A resistência das democracias liberais......................................................................... 171
2.4. A dimensão social e política da cultura ...................................................................... 173
2.5. Portugal e o Estado Novo ............................................................................................ 181

Unidade 3 – A degradação do ambiente internacional....................................................... 187


3.1. A irradiação do fascismo no mundo ............................................................................ 187
3.2. Reações aos totalitarismos fascistas ........................................................................... 188

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 190


Índice 5

Módulo 8 | Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início


da década de 1980 – opções internas e contexto internacional
Unidade 1 – Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico.............................. 196
1.1. A reconstrução do pós-guerra ...................................................................................... 197
1.2. O tempo da Guerra Fria – a consolidação de um mundo bipolar.............................. 203
1.3. A afirmação de novas potências .................................................................................. 214
1.4. O termo da prosperidade económica: origens e efeitos............................................. 220

Unidade 2 – Portugal: do autoritarismo à democracia ...................................................... 224


2.1. Imobilismo político e crescimento económico do pós-guerra a 1974 ........................ 224
2.2. Da revolução à estabilização da democracia .............................................................. 234
2.3. O significado internacional da revolução portuguesa................................................. 243

Unidade 3 – As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX ..... 245


3.1. A importância dos polos culturais anglo-americanos. A reflexão sobre a condição
humana nas artes e nas letras. O progresso científico e a inovação tecnológica ..... 245
3.2. A evolução dos media ................................................................................................. 249
3.3. Alterações na estrutura social e nos comportamentos............................................... 252

QUESTÕES PARA EXAME ..................................................................................................... 257

Módulo 9 | Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações


socioculturais no mundo atual
Unidade 1 – O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia
norte-sul .......................................................................................................... 261
1.1. O colapso do bloco soviético e a reorganização do mapa político da Europa de Leste.
Os problemas da transição para a economia de mercado.......................................... 262
1.2. Os polos do desenvolvimento económico................................................................... 265
1.3. Permanência de focos de tensão em regiões periféricas............................................ 279

Unidade 2 – A viragem para uma outra era ...................................................................... 288


2.1. Mutações sociopolíticas e novo modelo económico................................................... 288
2.2. Dimensões da ciência e da cultura no contexto da globalização............................... 301

Unidade 3 – Portugal no novo quadro internacional ......................................................... 309


3.1. A integração europeia e as suas implicações ............................................................. 309
3.2. As relações com os países lusófonos e com a área ibero-americana......................... 311

QUESTÕES PARA EXAME...................................................................................................... 316

Provas/Questões para Exame


• Prova A (11.°/12.° anos) ..................................................................................................... 320
• Prova B (10.°/11.°/12.° anos)............................................................................................... 323
• Prova C (10.°/11.°/12.° anos)............................................................................................... 326
6 Como estudar para obter resultados de excelência

1. Como estudar para obter resultados de excelência

Questões... Respostas... Para reter...

1. Tenho tanto para Primeira decisão: elabore um plano de estudo A planificação do trabalho é tanto
estudar... com alguma antecedência. mais importante quanto maior for
Por onde devo No plano devem constar: a dimensão e complexidade da
começar? tarefa a realizar.
– a calendarização dos dias e das horas que vai
dedicar à preparação do teste ou exame;
- o registo das restantes tarefas que tem de
realizar na escola e fora dela.

2. Tenho tanto para Nas aulas: Não deixe ficar para trás nenhuma
estudar... – sinalize no manual os conteúdos mais matéria por não gostar ou por não
Como poderei saber importantes que, no caso da História, são os a compreender! Os amigos (e o
tudo? conteúdos designados por “estruturantes” no professor é um deles) são para as
Programa da disciplina; ocasiões!
– preste muita atenção às indicações do
professor sobre a avaliação formativa e à Procure sempre entender o que
estrutura e conteúdos dos testes e exames; está a estudar. Optar por decorar
– anote as matérias em que tem dúvidas e que os conteúdos não contribui para a
precisam de um estudo mais atento. compreensão dos mesmos.

No trabalho de casa:
– comece por reler, com atenção, os seus Só interiorizamos os
apontamentos e notas que registou nas conhecimentos que, de algum
aulas; modo, compreendemos e fazem
– interrogue-se regularmente sobre o que é sentido para nós.
mais importante saber sobre as matérias
que está a estudar; Estudar é, essencialmente,
– à medida que vai lendo sublinhe as palavras organizar e integrar as novas
e/ou expressões e afirmações mais informações nos conhecimentos
significativas para as matérias em estudo e que já possuímos.
tome notas;
– à medida que vai estudando procure Procure conhecer-se cada vez
estabelecer mentalmente relações com os melhor - descobrir as suas
conhecimentos de que já dispõe; deste modo, qualidades e dificuldades.
ser-lhe-á mais fácil reter ou memorizar os A motivação, o empenho e a
novos conhecimentos adquiridos; se estudar persistência permitem superar
em grupo, discuta com os(as) colegas os todas (ou quase todas) as
pontos que considera mais importantes e dificuldades.
sobre os que tem dúvidas;
– para facilitar a memorização e a
O trabalho intelectual é física e,
compreensão, recorra a algumas técnicas:
sobretudo, mentalmente
• elaboração de esquemas e/ou de pequenas esgotante. Por isso, deve evitar
sínteses; horários prolongados de estudo,
• anotação de palavras e/ou expressões fazendo regularmente pequenos
significantes; intervalos (Note Bem: nunca faça
• organização de um glossário; “diretas”).
• debate das matérias com um(a) colega;
• estudo intervalado.
Como abordar um teste escrito ou exame 7

2. Como abordar um teste escrito ou exame

Propostas... Para reter...

a) Comece por ler todo o teste ou exame antes de começar a responder; Escrever é um ato de
desta forma, ficará desde logo com uma ideia geral sobre as matérias comunicação e, quanto melhor
e as questões que irá abordar, o seu grau de dificuldade e a questão o fizermos, melhor será a
do tempo. nossa capacidade de sermos
compreendidos da forma que o
b) Nesta primeira leitura assinale, sublinhando ou anotando, os elementos pretendemos ser.
fundamentais dos documentos – palavras e/ou expressões, dados
quantitativos, pormenores das figuras...
Podemos aprender a escrever
c) Antes de iniciar cada resposta, anote e ordene os tópicos de conteúdo bem se criarmos um hábito de
que considera adequados à questão e depois siga-os na elaboração da ler e escrever regularmente.
sua resposta.

d) Na redação das respostas tenha presente que irá ser avaliado, tendo em Escrever bem requer esforço,
consideração os seguintes aspetos: dedicação e concentração.
Também ajuda (e muito) ter
sempre um dicionário e uma
– formulação da questão, em particular do verbo que a introduz, pois gramática por perto.
este define o alcance da mesma. (Consulte o significado dos
verbos mais utilizados nos testes/exames na pág. 9); Não tenha receio da escrita,
– relevância da informação na resposta à questão formulada; dos testes. Aproveite-os para
avaliar e melhorar o seu
– mobilização de informação circunscrita ao assunto em análise;
desempenho.
– articulação (obrigatória) com as fontes;
– forma como a fonte é explorada, sendo valorizada a interpretação Não tenha medo de errar; o erro
e não a mera transcrição; deve ser encarado como um
instrumento para a melhoria.
– correção na transcrição de excertos das fontes e pertinência
desses excertos como suporte de afirmações ou argumentos;
Confie em si próprio, nas suas
– utilização adequada da terminologia específica da disciplina.
capacidades.

e) Em todas as respostas, para além das competências específicas


referidas na alínea anterior, são também avaliadas competências de
comunicação escrita em língua portuguesa, tendo em consideração:
– a estrutura ou a organização do discurso;
– a correção da sintaxe, da pontuação e da ortografia;
– a forma legível da escrita.

NOTA:
O domínio da comunicação escrita em língua portuguesa representa cerca de 10%
da cotação em todos os itens da Prova de Exame Nacional da disciplina de
História A, contribuindo, desta forma, para valorizar a classificação atribuída ao
desempenho de competências específicas da disciplina.
8 Prova de Exame Nacional de 12.o Ano – História A

3. Prova de Exame Nacional de 12.o Ano – História A

OBJETO DE AVALIAÇÃO

• Competências

A Prova de Exame Nacional de História A tem como objeto de avaliação os saberes e competências defi-
nidos nos programas e que foram sendo desenvolvidos ao longo do ciclo de estudos do Ensino Secundá-
rio, concretamente:

– analisar fontes de natureza diversa, distinguindo informação explícita e implícita, assim como os res-
petivos limites para o conhecimento do passado;

– analisar textos historiográficos, identificando a opinião do autor e tomando-a como uma interpretação
suscetível de revisão, em função dos avanços historiográficos;

– situar cronológica e espacialmente acontecimentos e processos relevantes, relacionando-os com os


contextos em que ocorreram;

– identificar a multiplicidade de fatores e a relevância da ação de indivíduos ou grupos, relativamente a


fenómenos históricos circunscritos no tempo e no espaço;

– caracterizar aspetos relevantes da História de Portugal, europeia e mundial;

– relacionar a História de Portugal com a História europeia e mundial, distinguindo articulações dinâmicas
e analogias/especificidades, quer de natureza temática quer de âmbito cronológico, regional ou local;

– mobilizar conhecimentos de realidades históricas estudadas para fundamentar opiniões, relativas a pro-
blemas nacionais e do mundo contemporâneo;

– elaborar e comunicar, com correção linguística, sínteses dos assuntos estudados:

• estabelecendo os seus traços definidores;

• distinguindo situações de rutura e de continuidade;

• utilizando, de forma adequada, terminologia específica.

• Conteúdos

Os conteúdos a avaliar no Exame Nacional da disciplina de História A no ano letivo de 2013-2014 repor-
tam-se às matérias estudadas nos 11.o e 12.o anos, a partir de 2014-2015, nos 3 anos do ciclo de estudos
do Ensino Secundário (10.°/11.°/12.°).

De entre os conteúdos a avaliar, assumem particular importância as matérias consideradas pelos pro-
gramas da disciplina como aprendizagens estruturantes que devem merecer especial atenção.

Assim, na prova de exame nacional as questões incidem sobre os conteúdos de aprofundamento, as apren-
dizagens e os conceitos estruturantes assinalados na abertura de cada unidade com um (*) e dois (**)
astericos, respetivamente.
Prova de Exame Nacional de 12.o Ano – História A 9

4. Interpretação das questões dos testes e do Exame Nacional de História A

A correta interpretação das perguntas ou questões dos testes e do exame nacional de História A é funda-
mental para compreender o seu alcance e adequar os conteúdos das respostas ao solicitado.
Importa, pois, compreender corretamente os significados dos verbos que introduzem as questões.

Verbos Respostas pretendidas / Competências a mobilizar

Pretende-se que separe os elementos (partes) associados a um determinado facto


Analise… histórico ou a uma fonte histórica e/ou historiográfica (texto, quadro, gráfico, mapa...)
e que explicite as suas inter-relações; analisar é decompor, examinar, explicitar, comparar...

Pretende-se que faça um julgamento do valor ou da importância dos dados ou do facto


Avalie… histórico em apreço, que assuma uma atitude crítica; avaliar é julgar, apreciar, estimar,
verificar...

Pretende-se que apresente os elementos definidores, específicos, que distinguem os


Caracterize… factos ou dados históricos apresentados; caracterizar é definir, descrever, distinguir,
rotular, listar...

Pretende-se que clarifique as diferenças entre os dados ou factos históricos


Distinga…
apresentados; distinguir é analisar, calcular, comparar...

Pretende-se que mencione princípios, dados ou elementos sobre o assunto solicitado;


Enuncie…
enunciar é identificar, reconhecer, reproduzir, resumir...

Pretende-se que clarifique factos, dados ou situações; explicitar é clarificar, diferenciar,


Explicite…
interpretar, explicar...

Pretende-se que interprete e exponha de forma inteligível uma ideia, um determinado


Explique…
facto ou dado histórico; explicar é decompor, descrever, explicitar, justificar...

Pretende-se que mencione dados ou elementos; identificar é nomear, listar, rotular,


Identifique…
categorizar...

Pretende-se que explique a informação histórica associada aos documentos apresentados


Interprete…
com base em conhecimentos prévios; interpretar é explicar, descrever, resumir...

Pretende-se que apresente as razões ou argumentos para sustentar uma afirmação,


Justifique…
uma hipótese explicativa, um facto histórico; justificar é fundamentar, suportar, defender...

Pretende-se que identifique, mencione dados, factos; referir é identificar, nomear,


Refira…
mencionar...

Pretende-se que estabeleça relações, associações entre os dados ou factos apresentados;


Relacione…
relacionar é comparar, confrontar, associar...
10 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

10.° Ano Módulo 1


Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade,
cidadania e império na antiguidade clássica
1. O modelo ateniense
2. O modelo romano
3. O espaço civilizacional greco-latino à beira da mudança

Contextualização
As civilizações antigas grega e romana e o Mediterrâneo – espaço de encontro e de sínteses
de povos e culturas –, que lhes serviu de berço, constituem a matriz civilizacional de uma
Cronologia Europa que acolheu e difundiu, à escala do globo, a herança político-cultural clássica que
tem na democracia e no humanismo dos Gregos, e no universalismo e no pragmatismo dos
As grandes etapas da Romanos, os seus pilares cruciais.
evolução política em Atenas
683 a. C.
A oligarquia substitui Unidade 1 O modelo ateniense
a monarquia. Crise política:
legislação de Drácon
SUMÁRIO
(624 a. C.) e Sólon
(594 a. C.). 1.1 A democracia antiga: os direitos dos cidadãos e o exercício dos poderes
560 a. C. 1.2 Uma cultura aberta à cidade
Tirania: Pisístrato
(560-527 a. C.); Hípias APRENDIZAGENS RELEVANTES
e Hiparco (527-514 a. C.).
510 a. C. - Identificar os elementos definidores da polis grega.
Democracia: reformas de - Caracterizar o modelo democrático ateniense: as suas limitações, os fundamentos e os
Clístenes (510-507 a. C.); mecanismos de funcionamento. Analisar o funcionamento da democracia ateniense, real-
Péricles e Efialtes (462 a. C.).
çando as suas qualidades e limitações.
443-429 a. C.
O “Século de Péricles”. CONCEITOS/NOÇÕES
Polis; Ágora; Democracia antiga; Cidadão**; Meteco; Escravo; Ordem arquitetónica

** Aprendizagens e conceitos estruturantes

1.1. A democracia antiga: os direitos dos cidadãos e o exercício de


poderes
O desenvolvimento da democracia na cidade-estado de Atenas resulta de um processo
longo e complexo de luta pela liberdade e igualdade dos cidadãos, traduzido na imple-
mentação de reformas políticas, sociais e económicas sucessivas a partir do século VII a. C.
Fig. 1. Péricles eliminou protagonizadas sobretudo pelos legisladores Drácon, Sólon e Clístenes, atingindo a polis(1)
a posição oligárquica
ateniense o seu apogeu na segunda metade do século V a. C., sob o governo de Péricles
à democracia e projetou
o prestígio e o poderio de (Fig. 1), de 443 a 429 a. C.
Atenas no mundo grego.
O período de 443-429 a. C.,
durante o qual teve uma
posição política dominante,
foi já denominado de (1)
A polis grega caracterizava-se pela sua independência (autonomia/liberdade), pela autossuficiência económica
“século de Péricles”. (autarcia) e pela especificidade do regime e culto (comunidade político-religiosa).
Unidade 1 - O modelo ateniense 11

– O funcionamento da democracia direta


As democracias antigas(2), de que a ateniense é o melhor exemplo, apresentavam
características muito diversas das democracias atuais. A palavra “democracia” tem ori-
gem no vocábulo grego demokratia, “domínio do povo”: eram os próprios cidadãos reu-
nidos em assembleias que tomavam as decisões sobre todos os assuntos de interesse
público. Os cidadãos não delegavam os poderes, exerciam-nos efetivamente. Denomi-
nam-se, por isso, democracias diretas.

Em Atenas, no século V a. C., era a Assembleia Popular ou Eclésia, constituída pela


totalidade dos cidadãos* atenieneses, quem tomava as decisões. Tinha poderes para * Cidadão: em Atenas,
gozava deste estatuto
decidir sobre todos os assuntos de interesse geral. Reunia-se regularmente uma vez por
todo o adulto do sexo
mês e quando especialmente convocada para resolver algum assunto importante. masculino filho de pais
naturais da Ática (região
A iniciativa legislativa estava confiada à Boulé, uma assembleia composta por 500 da Grécia onde está
situada Atenas), que não
membros (bouleutas) escolhidos por sorteio (50 por tribo), que preparava as propostas
tivesse sido
de lei (probouleumata) discutidas e aprovadas nas sessões da Eclésia. expressamente privado
dos seus direitos civis por
Os magistrados eram considerados como servidores do povo. Uns eram escolhidos ter cometido algum crime
por sorteio; outros eram eleitos após um apertado processo de controlo moral e político grave.

(docimasia) e controlados no exercício dos seus mandatos, em regra, anuais.

De todas as magistraturas, a mais antiga era o Arcontado que, em Atenas, substituíra


a monarquia no ano de 683 a. C. No século V a. C. o poder executivo estava entregue a
9 arcontes e 1 secretário, eleitos pela Eclésia. As funções do Arcontado, de início muito
importantes, foram diminuindo à medida que a democracia evoluiu, perdendo poderes em ? Questão
(3)
proveito dos estrategos , o mesmo acontecendo ao Areópago, o tribunal ou conselho
1. Relativamente à
mais antigo de Atenas. democracia ateniense,
refira:
A aplicação da justiça encontrava-se também nas mãos do demos. Com exceção de • três características de
alguns tipos de crimes, o seu exercício pertencia ao Tribunal Popular ou Helieu, consti- natureza democrática;
tuído por 6000 heliastas (cidadãos maiores de 30 anos, sorteados em número de 600 • três limites da participação
democrática.
por cada uma das 10 tribos).

– Os limites da participação democrática


O regime democrático ateniense na Época Clássica baseava-se na isonomia (igualdade
perante a lei), na isocracia (igualdade de participação nos negócios públicos) e na ise-
goria (igualdade de direitos na defesa pública dos seus pontos de vista). Mas também a
liberdade individual e a filantropia (amor pelo homem, com correspondência no termo
cristão caridade). A introdução da mistoforia(4) reforçou o caráter democrático do regime
ao permitir uma participação mais alargada dos cidadãos. Contudo, a democracia direta
dos atenienses tinha limitações importantes:

(2)
Democracias antigas: em Atenas, o poder soberano estava na Assembleia Popular ou Eclésia, constituída por todos
os cidadãos, que tomava decisões por maioria. O conceito moderno de democracia representativa ou parlamentar foi
desenvolvido no século XVIII por pensadores como Montesquieu (divisão de poderes), Rousseau (soberania popular) ou
Voltaire (igualdade de direitos entre todos os homens).
(3)
Estrategos: em Atenas, a partir de 501 a. C., os dez magistrados que se encarregavam do comando dos corpos de
hoplitas (soldados de infantaria). Eram eleitos pela Eclésia.
(4)
Mistoforia: subsídio de participação nas assembleias concedido pelo Estado aos cidadãos mais pobres; o objetivo
era combater o absentismo, estimulando a participação dos cidadãos na vida política.
12 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

– dos prováveis 400 000 habitantes da Ática no século V a. C., apenas uma minoria
de cerca de 40 000 indivíduos seriam cidadãos de pleno direito – os escravos(5)
(c. 200 000) e os metecos ou estrangeiros residentes em Atenas (c. 70 000) não per-
tenciam ao restrito número dos cidadãos com direitos de participação política, tal
como as mulheres, que estavam também excluídas da vida pública;
– a ameaça de uma acusação de ilegalidade (graphê paranomon)(6) limitava iniciati-
vas suscetíveis de serem consideradas inconvenientes ou perigosas pela Eclésia,
Documento 1 apesar da liberdade de tomar a palavra reconhecida a qualquer cidadão;
– ostracismo(7), mecanismo penal instituído para impedir abusos de poder e defender
Principais jogos (festivais
religiosos e atléticos): a democracia, não raras vezes foi utilizado para silenciar ou afastar cidadãos críti-
– Jogos Olímpicos em cos ou indesejáveis;
honra de Zeus, em Olímpia;
– as desigualdades sociais, a escravatura e a política externa imperialista.
– Jogos Píticos, em honra
de Apolo, em Delfos,
de 4 em 4 anos;
– Jogos Ístmicos, em honra
1.2. Uma cultura aberta à cidade
de Poseidon, no Istmo de
Corinto; – As grandes manifestações cívico-religiosas
– Jogos Nemeus, em honra Como em muitas outras cidades gregas, as festas dos atenienses correspondiam não
de Zeus, em Némea,
de 2 em 2 anos. apenas a uma necessidade de lazer e diversão, mas contribuíam sobretudo para um
reforço da coesão da comunidade à volta de uma divindade protetora.

A organização das festividades era responsabilidade


1
dos magistrados. Os atenienses prestavam culto aos
2 mesmos deuses(8) que todos os outros gregos, mas a
1 – Cávea nova
2 – Cávea antiga sua particular devoção ia para aqueles que tinham a seu
3 – Orquestra
cargo a proteção da sua cidade: os deuses e heróis epó-
6
6 4 – Cena
3 5 – Corredor de nimos(9), fundadores da polis e dos genê(10).
5 5 acesso lateral
4 6 – Muros de As festividades mais importantes eram as Panate-
contenção neias – as Pequenas (anuais) e as Grandes Panateneias
(de quatro em quatro anos), em honra de Atena –, e as
Fig. 2. Planta do teatro de Dionísias, em particular as Grandes Dionísias, porventura as mais populares, que celebra-
Epidauro (séc. IV a. C.).
A cávea (bancadas vam o deus Dioniso, deus das festas, do vinho, dos prazeres. Estas grandes manifesta-
escalonadas, escavadas na ções cívico-religiosas, durante as quais se realizavam competições desportivas e cultu-
encosta de uma colina),
a orquestra (espaço rais, estavam abertas a toda a cidade, incluindo os metecos e as mulheres.
central ou semicircular
destinado à atuação de
atores e do coro)
e a cena (servia de fundo)
eram três elementos (5)
Escravos: homens não-livres. Os escravos faziam os trabalhos domésticos e desempenhavam também tarefas eco-
essenciais do teatro grego. nómicas. Isto tornava naturalmente a vida do cidadão mais facilitada e libertava-o para as tarefas intelectuais e da
Expressou-se na tragédia, política.
uma forma literária (6)
Graphê paranomon: lei ou proposta de lei contrária às outras leis.
derivada do culto a Dioniso (7)
Ostracismo: pena de condenação ao exílio temporário (por um período de 10 anos), que exigia 6000 votos, expres-
(destacaram-se Ésquilo, sos em ostraca, ou seja, fragmentos de cerâmica onde era inscrito o nome do cidadão que se pretendia expulsar da
Sófocles e Eurípedes), e na cidade. Foi decretado em Atenas no ano de 510 a. C.
comédia (crítica social (8)
Deuses: representavam forças da Natureza e eram revestidos de forma humana: como os humanos possuíam
e política), na qual se defeitos e virtudes, distinguiam-se destes pela beleza, eterna juventude e imortalidade. As suas histórias consti-
destaca para Aristófanes. tuíam a mitologia grega.
(9)
Epónimo: “aquele que dá o seu nome”. A divindade epónima de Atenas era a deusa Atena.
(10)
Génos: grupo de famílias aristocráticas que se consideravam descendentes de um mesmo antepassado.
Unidade 1 - O modelo ateniense 13

– A educação para o exercício público do poder Cronologia

O sistema de educação procurava conciliar num só programa duas tendências: uma, O teatro: autores e obras
mais antiga, visando a formação de homens vigorosos, guerreiros e atletas com uma mais importantes

sólida preparação moral; a outra, virada para a formação intelectual. A formação para o Ésquilo (525-456 a. C.):
Os Persas (472 a. C.),
exercício da cidadania é essencial para o funcionamento do regime democrático. Os Sete contra Tebas
(467 a. C.), Oréstia
Os rapazes iniciavam os seus estudos por volta dos 7 anos de idade, quando saíam da
(458 a. C.)
companhia das mulheres (do gineceu, espaço feminino) e iniciavam a sua aprendizagem
Sófocles (497-406 a. C.):
em escolas privadas. Os mais ricos eram acompanhados no seu percurso escolar por um Antígona (442 a. C.),
pedagogo, um escravo culto. Na escola, a aprendizagem ficava a cargo de três mestres – Rei Édipo (427 a. C.),
Electra (420-410 a. C.)
o paidotribes, professor de ginástica, o kitharistês, que ensinava música, e o gramático,
Eurípedes (480-406 a. C.):
responsável pelo ensino da leitura, escrita, aritmética e literatura. Esta aprendizagem Medeia (431 a. C.),
prolongava-se até aos 13 ou 14 anos. Hipólito (428 a. C.),
As Troianas (415 a. C.)
A partir dos 15 anos, a educação prosseguia no ginásio (aprendizagem de Matemá-
Aristófanes (445-385 a. C.):
tica e Filosofia) e na palestra(11). Os mais abastados que pretendessem prosseguir os estu- A Assembleia das
dos faziam-no junto de um mestre disponível para os orientar. Mulheres (392 a. C.), As
Rãs (405 a. C.), As Aves
A partir do século V a. C., em Atenas, este modelo de educação orientado para a for- (414 a. C.), As Vespas
(422 a. C.), As Nuvens
mação integral do jovem, futuro cidadão, sofreu a concorrência dos sofistas, professores (423 a. C.)
itinerantes que privilegiavam a retórica(12) (a arte da persuasão) e a dialética (a arte do
debate), habilidades importantes para o cidadão interessado em fazer valer as suas ideias
e levar os restantes a segui-las, ou seja, fazer demagogia e alcançar o sucesso político.

A B
– A arquitetura como expressão do culto público e da procura da harmonia
O objetivo primordial dos Gregos era criar edifícios simultaneamente funcionais e
belos. Na Grécia encontramos edifícios públicos destinados a fins religiosos, como os
templos e os teatros, e construções civis, normalmente situados na ágora*, como giná-
sios, palestras, estádios e pórticos. Fig. 3. Esquema simplificado
da ordem dórica (A) e da
De todos estes edifícios, o templo foi o que mereceu uma maior atenção dos Gregos. ordem jónica (B).
A planta do templo era constituída por uma sala única, a naos ou cella, onde se encon-
trava a estátua da divindade, o pronaos ou pórtico que dava acesso ao seu interior, um
* Ágora: praça pública
opistódomos, fachada posterior do templo, e o peristilo formado por colunas (colunata) e local de convívio
envolvendo o conjunto. localizada na parte baixa
de Atenas; era aí que se
O esquema de construção do templo assentava numa relação racional e coerente de realizava o mercado e que
se situavam construções
elementos horizontais e verticais que transmitiam a ideia de ordem e proporção. As relacionadas com a vida
ordens arquitetónicas* gregas mais antigas são a dórica e a jónica, contemporâneas mas política.

originárias de regiões distintas da Grécia. Tal facto explica as diferenças de pormenor


observadas num e noutro caso. A coluna dórica (Fig. 3) não tem base e assenta diretamente * Ordens arquitetónicas:
conjunto de regras formais
sobre o estilóbata, o fuste apresenta caneluras de aresta viva e o capitel, constituído pelo
e de proporção que
équino e o ábaco, é muito sóbrio. O entablamento (Fig. 4) é formado pela arquitrave lisa, ligavam entre si, de uma
forma preestabelecida,
pelo friso (dividido em tríglifos e métopas) e encimado por uma cornija.
todas as partes de um
edifício, normalmente um
(11)
Palestra: significa luta em grego. Funcionava como escola de treino físico e também como local de convívio social templo.
masculino, já que mulheres não eram admitidas. Geralmente, eram anexas aos gymnasium (de gymnos, nu em
grego), local fechado para treino.
(12)
Retórica: correntemente, a mesma coisa que oratória. Porém, numa linguagem mais precisa, a retórica designa a
arte teórica de persuadir pela palavra, ao passo que a oratória cuida da sua aplicação na prática.
14 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

A ordem jónica distingue-se da dórica pela coluna ter base, pelo seu fuste ser mais
alto e elegante, com caneluras de aresta chata, e por ter um capitel mais elaborado, com
volutas. A arquitrave é tripartida, dividida por três filas horizontais, o friso é liso e fre-
quentemente decorado com pinturas ou esculturas. Por vezes, as colunas são substituí-
das por figuras femininas (Cariátides) ou masculinas (Atlantes).

Nos finais do século V a. C., surge uma nova ordem arquitetónica, a ordem coríntia,
estruturalmente idêntica à ordem jónica mas diferenciando-se desta por uma maior abun-
dância decorativa e monumentalidade. A diferença mais significativa reside no capitel
(Fig. 5), muito elaborado, decorado com folhas de acanto e folhas de água.

cornija
Capitel dórico.
métopa
friso
tríglifo

arquitrave entablamento

Capitel jónico.

ábaco
capitel
équino

Fig. 4. Pormenor do
caneluras de
Pártenon, templo
aresta viva fuste consagrado à deusa
Atena construído no
Capitel coríntio. séc. V a. C. na acrópole
de Atenas.
Fig. 5. Capitéis das ordens
arquitetónicas gregas.
– A escultura como expressão do culto público e da procura da harmonia
Na Grécia Antiga, a escultura toma como tema principal o homem; o antropomorfismo
é a expressão dominante deste género artístico. Deuses, heróis e atletas, os temas pri-
vilegiados da escultura, estão intimamente ligados à religião e partilham entre si a forma
? Questão
humana (como escreveu Protágoras, c. 492-422 a. C., “o homem é a medida de todas as
1. Que características coisas”). Os deuses gregos são concebidos à imagem e semelhança do homem, mas do
distinguem as ordens
arquitetónicas dórica, homem ideal, anatomicamente perfeito. Tanto na vida como na arte, o grego busca a
jónica e coríntia? harmonia e a perfeição.
Unidade 2 - O modelo romano 15

Unidade 2 O modelo romano Cronologia

Fases da expansão romana


SUMÁRIO 360-218 a. C.
Roma domina a Península
2.1. Roma, cidade ordenadora de um império urbano* Itálica.
2.2. A afirmação imperial de uma cultura urbana pragmática* 264-146 a .C.
Guerras Púnicas: vitória
2.3. A romanização da Península Ibérica, um exemplo de integração de uma região periférica no de Roma e domínio do
universo imperial* Mediterrâneo Ocidental.
58-52 a. C.
Conquista da Gália por Júlio
APRENDIZAGENS RELEVANTES
César.
– Interpretar a extensão do direito de cidadania romana como um processo de integração 115 d. C.
O Império atinge a sua
da pluralidade de regiões no Império*. extensão máxima.
– Identificar na romanização da Península Ibérica os instrumentos de aculturação das popu- A carreira de Augusto:
lações submetidas ao domínio romano*. 44-43 a. C.
Obtém do Senado poderes
– Distinguir formas de organização do espaço nas cidades do Império, tendo em conta as de Propretor.
suas funções cívicas, políticas e culturais**. É designado Cônsul.
27 a. C.
– Reconhecer a importância do legado político e cultural romano para a formação da civili- Adota a designação de
zação europeia ocidental*. “Príncipe” (Princeps).
27-23 a. C.
CONCEITOS/NOÇÕES O Senado confere-lhe
o título de “Imperador”
Urbe**, Império**, Forum, Direito**, Magistratura, Urbanismo**, Pragmatismo, Romanização**, (Imperator) e “Augusto”
Município, Aculturação** (Augustus).
23 a. C.
* Conteúdos de aprofundamento O Povo e o Senado
** Aprendizagens e conceitos estruturantes conferem-lhe o “Poder
Tribunício” (Tribunicia
Potestas).
12 a. C.
2.1. Roma, cidade ordenadora de um império urbano É “Sumo Pontífice”
(Pontifex Maximus).
Constituído ao redor do Mediterrâneo e da relação de forças que se desenvolveram no
10 a. C.
seu seio, o Império Romano levou a cabo a unificação de um espaço vastíssimo que, no seu Recebe o título de “Pai da
Pátria” (Pater Patriae).
apogeu (séculos I e II d. C.), se estendia, de Ocidente para Oriente, da Península Ibérica à
Mesopotâmia, e, de norte para sul, das Ilhas Britânicas ao Egito.
Ao redor do Mar Mediterrâneo erguiam-se os seus principais cen-
tros urbanos: Roma, Cartago, Atenas, Antioquia, Alexandria...

As províncias do Império encontravam-se ligadas por uma


rede viária complexa (Fig. 1) e inovadora, ajustada às necessida-
des militares e às atividades civis, como o comércio e a desloca-
ção dos indivíduos. As vias romanas modificam a paisagem e os
acidentes topográficos não as param nem as desviam, ligando os
territórios mais remotos do Império entre si e cada um deles a
Roma, no centro. Fig. 1. A rede viária romana,
concebida de forma
engenhosa e tecnicamente
– A unidade do mundo imperial: o culto a Roma e ao imperador evoluída, articulava os
principais portos e as cidades
O domínio do Mediterrâneo e a construção do Império* acarretaram elevados custos do Império e ligava-os a
à sociedade romana e importantes consequências políticas. A vastidão dos seus domí- Roma, constituindo desta
forma um instrumento
nios fez com que a Constituição da Roma Republicana, assente no modelo da polis grega, indispensável para
se tornasse cada vez menos eficaz para o governo do Império* que já não pode dispen- a exploração económica das
regiões dominadas e para a
sar o exército e os seus generais. afirmação do domínio imperial.
16 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

* Império: na Roma antiga, É assim que se impõe Júlio César, o conquistador da Gália, que governa sozinho
imperium era o poder
supremo militar e civil do durante alguns meses, nos anos 45 e 44 a. C., após uma sangrenta guerra civil, inves-
rei, e posteriormente dos tido de amplos poderes ditatoriais. Esta experiência política termina abruptamente no
altos magistrados da
República. Com Augusto, ano de 44 a. C. com o seu assassinato às mãos dos seus adversários republicanos. No
o imperium passou entanto, a conservação do Império reclamava cada vez mais o estabelecimento de um
a constituir a base de
legitimação ou regime monárquico.
fundamentação do seu
poder e autoridade e do Caberá a Augusto (63 a. C.–14 d. C.), sobrinho-neto e herdeiro do ditador assassinado,
domínio Romano sobre os após derrotar Marco António, iniciar o regime de Principado(1).
povos submetidos a Roma
(Império Romano). Convictos de que essa era a melhor forma de garantir a coesão do Estado e do Impé-
rio, as autoridades romanas empenharam-se em promover a disseminação dos valores
da romanidade. O culto ao Imperador e o modo de vida romano foram difundidos de um
extremo ao outro do Império (Fig. 2), nas cidades fundadas à imagem de Roma, com
forum, templos e banhos públicos, que as elites
cultas adotaram e tinham orgulho em ostentar.

– A unidade do mundo imperial: a


codificação do Direito
A ideia de lei, imprescindível na vida e no
pensamento dos Romanos, constitui um dos
seus legados mais importantes. A base do
direito civil, aquele que se aplicava aos cida-
dãos romanos, era o costume que, segundo a
tradição, tinha sido codificado na Lei das Doze
Tábuas (449 a. C.).
Fig. 2. A expressão do
Império Romano no tempo Posteriormente, este corpo legislativo, que era a base de todo o direito público e
de Augusto: “Hoje, não
existe ninguém no mundo privado(2) em Roma, acabaria por cair em desuso, ultrapassado pela atividade jurídica do
civilizado que não Senado e dos magistrados, em particular os pretores que, através da publicação de
reconheça Roma a senhora
do Universo e recuse numerosos éditos(3), criaram uma grande quantidade de regulamentos que acabaram por
obedecer-lhe”. tornar-se numa espécie de grande código de direito civil. Sob o Império, o Direito tor-
Dionísio de Halicarnasso
nou-se essencialmente um instrumento para servir os objetivos de centralização política
e administrativa dos imperadores e de afirmação e coesão do Império.

– A unidade do mundo imperial: a progressiva extensão da cidadania


A concessão do direito da cidadania, que inicialmente era um privilégio que se limi-
tava aos Romanos propriamente ditos, vai progressivamente alargar-se às populações
que viviam sob os seus domínios. Primeiro à Itália, no decurso ainda do século I a. C.;
logo de seguida, a um número cada vez maior de povos e cidades, num processo que

(1)
Principado (princeps, primus inter pares = príncipe, o primeiro entre iguais): regime que se baseia no princípio da
aceitação ou consenso geral e que representa um compromisso entre república e monarquia. O príncipe recebe for-
malmente o poder do povo e do Senado. As suas principais características são: reforço do poder executivo (auctoritas)
e respeito pelas formas tradicionais (mores maiorum).
(2)
Direito público e direito privado: o primeiro regula as relações entre os cidadãos e o Estado; o segundo as relações
entre os cidadãos. Havia ainda o jus gentium (à letra, direito das gentes) que regulava as relações de Roma com os
povos do Império. A influência do direito romano sobre os direitos nacionais europeus perdura até à atualidade.
(3)
Éditos: ordens/leis escritas e comunicadas através de anúncios públicos.
Unidade 2 - O modelo romano 17

conheceu um desenvolvimento gradual até à sua generalização nos primeiros anos do Documento 1
século III, pelo Édito de Caracala de 212 d. C. A cidadania romana foi concedida a todos
A generalização da cidadania
os homens livres do Império integrando a pluralidade dos povos no Estado imperial. romana: Édito de Caracala
(212)
Contrariamente ao conceito grego, para os Romanos a cidadania é uma noção aberta.
Todos os que habitam
O critério determinante para um novo cidadão é a adesão aos valores da cidade. Esta o mundo romano são
considerados cidadãos
liberalidade de Roma na atribuição da cidadania constituiu o melhor fator de coesão do
romanos por determinação
Império. do imperador.
Digesto, V, 17
2.2. A afirmação imperial de uma cultura urbana pragmática
- A padronização do urbanismo* * Urbanismo: ordenamento
das construções e do
Urbs Orbi(4), Roma é o centro do Mundo, a cidade por excelência à volta da qual tudo espaço citadino.
gravita e à imagem da qual se erguem novas cidades, segundo o seu modelo político,
cultural e urbanístico. Pode assim falar-se de um tipo de “cidade romana” com um pla-
neamento urbanístico de caráter utilitário, edificada a partir do traçado das vias e tendo
como centro o forum* com os templos, a basílica e a cúria. * Forum: nome dado pelos
romanos à praça principal
Outras construções com fins práticos, como aquedutos, fontes, termas(5) e esgotos, ou da cidade. O seu centro
político, religioso,
recreativos, como ginásios, teatros e anfiteatros, ou ainda obras de caráter comemora- económico e social.
tivo, como arcos de triunfo e colunas monumentais, completavam um conjunto arquite- O mesmo que ágora para
os Gregos.
tónico imponente, sólido e funcional, características próprias de um povo positivo e com
grande sentido de pragmatismo*. * Pragmatismo:
pensamento/atitude que
A admiração por Roma, pelos seus modelos urbanísticos e artísticos e pelo modo de condiciona a validade de
uma ideia ou conhecimento
vida dos Romanos levou os povos do Império, em particular as suas elites, a aceitarem à sua utilidade ou
a supremacia romana, colaborando deste modo na pacificação e na unidade imperial, ou aproveitamento. Por outras
palavras, dá prioridade ao
seja, na pax romana(6), um instrumento fundamental para a segurança e prosperidade do
efeito útil. O pragmatismo
Império. dos Romanos revela-se em
áreas muito diversas: na
religião, na arte, na
– A fixação dos modelos arquitetónicos literatura, no direito,
na política interna e externa.
Os Romanos não criaram um estilo arquitetónico próprio. Expressão do seu espírito
pragmático, a arquitetura romana é essencialmente uma síntese de influências etruscas
e gregas. O plano do templo é herdado dos Etruscos, tal como o arco de volta perfeita
(ou arco romano), um dos elementos fundamentais da sua arquitetura aplicado às pon-
tes, aquedutos e edifícios públicos e privados. A decoração é grega, sendo a ordem corín-
tia a preferida pela sua exuberância e dimensões mais conformes à escala de grandeza
do Império. Não obstante, também inovaram. São criação romana as ordens toscana e
compósita, esta integrando elementos das ordens jónica e coríntia e dois novos materiais
de construção: o cimento (opus caementicium), extremamente resistente, e o ladrilho
(opus latericium) (Fig. 3). Combinados, possibilitaram a construção de abóbadas de gran-
des dimensões e, não obstante, leves. ? Questões

1. Que instrumentos
(4) utilizou Roma no processo
Urbs Orbi: cidade do Mundo.
(5)
de unificação do seu
Termas: edifícios públicos ou privados destinados a banhos, cujo esquema básico é constituído por um vestiário e
Império?
três salas de banhos com piscinas de água fria, tépida e quente, e a sala da caldeira.
(6)
Pax romana: a Paz (Pax) era, para os Romanos, o principal objetivo do que consideravam ser a missão sagrada de 2. Qual o papel do Direito
Roma: formar um vasto império de abundância e bem-estar, sob o governo romano. nesse processo?
18 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

– A fixação dos modelos escultóricos


Na linha da escultura grega e helenística, entre os Romanos também se destacou o
relevo histórico de caráter monumental e narrativo, no qual se faz a exaltação da ordem
política imperial (Fig. 4). A preocupação de perpetuar na pedra esculpida os acontecimen-
tos notáveis de uma época ou de um reinado (historicismo) inspirou outras realizações
do mesmo tipo, como o Altar da Paz (Ara Pacis), de Augusto, o Arco de Tito, ou as colu-
Fig. 3. Mosaico romano nas comemorativas dos imperadores Trajano e Marco Aurélio. Mas a característica mais
(Conímbriga). original da escultura romana é o retrato. A preocupação da representação detalhada dos
traços fisionómicos e do vestuário manifesta um apurado realismo, que chega a deixar
transparecer o próprio caráter psicológico das personagens retratadas.

– A apologia do Império na épica e na historiografia


Do mesmo modo que a arquitetura e a escultura, a preocupação central da poesia
épica e da historiografia passa pela glorificação da grandeza de Roma e do Império. Des-
tacaram-se Virgílio (70-19 a. C.), autor de Eneida, o grande poema épico e étnico dos roma-
nos, a obra onde se diviniza o seu passado e se justifica o Império, Horácio (65-8 a. C.)
e Ovídio (43 a. C.-17 d. C.) que cantam nos seus versos os valores romanos e os feitos
gloriosos do imperador Augusto.
Fig. 4. Busto de Marco A historiografia segue a mesma linha: Tito Lívio (59 a. C.-17 d. C.), o grande historia-
Aurélio (121-180 d. C.).
dor romano, autor de Ab Urbe Condita(7), um trabalho monumental sobre a história de
Roma, exalta as virtudes romanas e a proteção dos deuses na realização do seu destino
? Questão glorioso; Tácito (56/57-120 d. C.), autor de Histórias e Anais, evidencia dotes narrativos
e de análise psicológica; Suetónio (c. 69-140 d. C.), autor de Vidas dos Dozes Césares,
1. Quais os objetivos da
épica e da historiografia uma coleção de biografias imperiais.
romana?
– A formação de uma rede escolar urbana uniformizada
No início da época imperial, a par do interesse pelas artes e literatura, cresce a preo-
cupação com a formação intelectual dos jovens. O objetivo da instrução é promover e
reforçar o projeto imperial, romanizar, pelo que era importante criar uma rede escolar
urbana uniformizada, coerente. Os mestres eram normalmente escravos ou libertos, fre-
quentemente gregos. O litterator, “aquele que ensina as letras”, ensinava as crianças,
rapazes e raparigas, a ler, a escrever e a contar. Esta escola (ludus) para as crianças dos
7 aos 11 anos funcionava em sala ou ao ar livre.

O segundo grau de ensino (“secundário”) começava por volta 12 anos e ia até aos 15
anos e estava a cargo do grammaticus. Estudava-se o latim e o grego, poesia e noções de
história, geografia, astronomia e física. No terceiro grau de ensino (“superior”) os alunos
possuíam mais de 16 anos. A prioridade era o estudo dos prosadores e da retórica. Tal
como entre os gregos, a educação romana fundamentava-se largamente no ensino das
Humanidades(8), tendo em vista a formação de oradores eloquentes e moralmente bem
formados.

(7)
Ab Urbe Condita: desde a fundação da Cidade.
(8)
Humanidades (da palavra latina humanitas): está associada à reflexão filosófica e às atividades culturais, em espe-
cial literárias. Daí que a palavra significasse também “instrução”, “educação”, “cultura”, “letras” e “artes liberais”.
Unidade 2 - O modelo romano 19

2.3. A romanização da Península Ibérica, um exemplo Cronologia


de integração de uma região periférica no universo imperial 218-201 a. C.
II Guerra Púnica: os
Até ao séc. II a. C., o território da Península Ibérica esteve à margem da expansão Romanos instalam-se
imperialista romana. A situação alterou-se em 218 a. C. quando, no contexto da II Guerra na Península Ibérica.
Púnica, os Romanos invadem a Península Ibérica para combater os Cartagineses. Roma 197 a. C.
Conquista romana de Cádis
venceu Cartago e, apercebendo-se da importância económica e estratégica da Península, aos cartagineses.
promoveu a sua conquista e ocupação. Ainda antes do fim da Guerra, em 206 a. C., os A Hispânia fica sob
o controlo de Roma.
Romanos procederam pela primeira vez à divisão da Hispânia em duas províncias, a
155 a. C.
Citerior e a Ulterior. Início da guerra lusitano-
-romana.
Pacificados os resistentes Celtiberos e Lusitanos, o imperador Augusto fixou a orga- 29 a. C.
nização administrativa da Hispânia, dividindo a Ulterior em duas províncias – a Lusitânia Roma impõe o seu domínio
ao espaço hispânico.
(capital Emerita Augusta) e a Bética (capital Cordoba) –, dando à Citerior o nome de Tar-
24 a. C.
raconense estas em Conventus (leis e justiça). Paralelamente estimulou a fixação de vete- Augusto divide a província
ranos das legiões e emigrados de Itália (fundação de colónias), que impulsionaram a Ulterior em duas: Lusitânia
(capital - Emerita Augusta,
romanização*. A presença de mercadores e funcionários dinamizou o comércio e a circu-
Mérida) e Bética (capital –
lação monetária. As villae, grandes unidades de exploração agrícola, abasteciam de Cordoba), dando à Citerior
o nome de Tarraconense.
cereais, vinho, azeite e carne as despensas romanas, a par de outras atividades como o
19 a. C.
fabrico da cerâmica, a mineração, a pesca e a extração do sal.
Conquista definitiva da
As cidades peninsulares indígenas possuíam estatutos político-jurídicos distintos. Península Ibérica.

Dividiam-se em dois tipos: 74 d.C.


O imperador Vespasiano
– estipendiárias – resistentes à conquista, pagavam um tributo (stipendium), mas aos concede o direito de
cidadania (Jus latii minus)
habitantes, livres, era-lhes permitido manter leis próprias e a propriedade da terra; aos hispânicos.
– livres, podendo ser federadas e, como federadas, em alguns casos imunes, isto é, 212
isentas de tributos. Caracala cria a província
da Gallaecia (Galiza).

A algumas cidades, como Olissipo (Lisboa), foi atribuído o estatuto de município


(municipium), dispondo os seus habitantes de direitos de cidadania e autonomia em
graus variáveis. * Romanização: processo
de transformação cultural
Seguindo o modelo da Roma Imperial, nas cidades peninsulares construíram-se edifí- e civilizacional (aculturação)
dos povos submetidos ao
cios públicos utilitários e de lazer, como o forum, templos, termas, aquedutos, teatros e domínio de Roma com
anfiteatros, difundiu-se a língua (latim) e os costumes romanos, entre outros meios ou expressão na adoção, mais
ou menos profunda
instrumentos de um processo de aculturação(9) exemplar e de integração de uma região
e duradoura, da cultura
periférica no universo imperial romano facilitada pelo engenhoso sistema de comunica- romana.
ções romano.

(9)
Aculturação: processo pelo qual um grupo entra em contacto com uma cultura diferente da sua e a assimila total
ou parcialmente.
20 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

Cronologia Unidade 3 O espaço civilizacional greco-latino à beira da mudança


313
SUMÁRIO
Édito de Milão, do
Imperador Constantino: – O império universal romano-cristão
tolerância para todas
as religiões. – A Igreja e a transmissão do legado político-cultural clássico
318-381 – Prenúncios de uma nova geografia política: a presença dos “Bárbaros” no Império
Propagação do Arianismo.
325
APRENDIZAGENS RELEVANTES
Concílio de Niceia: formula
o Credo e reafirma – Reconhecer a importância do legado político-cultural clássico como uma das matrizes da
a divindade de Cristo.
formação da civilização europeia ocidental.**
381
Concílio de Constantinopla:
confirmação dos acordos CONCEITOS/NOÇÕES ESSENCIAIS
de Niceia. Igreja romano-cristã; Civilização**; Época Clássica
391
Teodósio impõe o
Cristianismo como religião * Conteúdos de aprofundamento
oficial do Império e proíbe ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
os antigos cultos aos
deuses.
– O império universal romano-cristão
* Igreja Romano-Cristã: O Imperador Constantino (306-337) (Fig. 1), depois de restaurar a unidade imperial,
comunidade dos fiéis que
seguem o Cristianismo pelo Édito de Milão, de 313, concede a liberdade religiosa e a igualdade de direitos aos
e respeitam a autoridade cristãos e decreta a restituição dos bens anteriormente confiscados à Igreja.
do Papa de Roma.
No entanto, os problemas não terminaram para o Cristianismo. As diversas maneiras
de entender a Fé provocaram várias divisões. As heresias(1) donatista(2) e ariana(3) consti-
tuíram um sério problema para a unidade da fé cristã. Para ultrapassar a questão, Cons-
tantino interveio para pôr ordem na organização da Igreja promovendo a convocação de
um concílio ecuménico(4) , o Concílio de Niceia (325), que condenou o Arianismo e defi-
niu o Credo (dogma) da fé cristã. Superada a crise, o Cristianismo pôde reafirmar o seu
caráter católico (universal), integrando a totalidade dos homens numa única sociedade,
a da comunidade dos fiéis de Cristo, sob o primado da Igreja Romano-Cristã*.

– A Igreja e a transmissão do legado político-cultural clássico


Fig. 1. Constantino,
Ultrapassados os problemas de unidade do dogma cristão e dispondo a Igreja de uma
o Grande, restabeleceu
a unidade imperial organização mais sólida, os Padres da Igreja ou patrística, como são designados os escri-
e governou o Império de tores cristãos dos primeiros séculos, vão dedicar-se a uma intensa atividade intelectual
324 a 337. Em 313, pelo
Édito de Milão, concedeu e doutrinal. Entre os mais importantes Padres da Igreja, destacaram-se Tertuliano, Ata-
a liberdade religiosa násio, Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nisa e João Crisóstomo.
e a igualdade de direitos
aos cristãos.
(1)
Heresia: desvio doutrinário.
(2)
Donatismo: movimento cismático criado pelo bispo Donato, que dividiu a Igreja do Norte de África no século IV.
Os donatistas defendiam que os Sacramentos não eram válidos em si mesmos mas que a sua validade dependia da
Questão dignidade do sacerdote que os ministrava.
? (3)
Arianismo: heresia propagada por Ário (318-381) e seus adeptos, que negava a divindade de Jesus e que deu origem
a uma das mais graves crises da Igreja Primitiva.
1. Qual o papel de (4)
Ecuménico: universal; “concílio ecuménico” porque nele tiveram assento prelados representantes de todo o mundo
Constantino na afirmação
cristão. A intervenção de Constantino instaurou um novo sistema de relações entre a Igreja e o poder político, o cesa-
do Cristianismo no Império ropapismo (ingerência do poder político nos assuntos da Igreja) que, no futuro, iria constituir uma fonte de novos pro-
Romano? blemas para a Igreja.
Unidade 3 - O espaço civilizacional greco-latino à beira da mudança 21

Mas o papel dos Padres não se limitou ao plano doutrinal. Alguns deles revelam uma
grande simpatia pelas línguas e filosofia da Época Clássica* que pensavam poder servir * Época Clássica:
o objetivo da propagação do Cristianismo. Neste particular, sobressaíram Lactâncio, período áureo
das civilizações grega
Santo Ambrósio, S. Jerónimo e Santo Agostinho (Fig. 2), estudiosos dos filósofos heléni- (sécs. V-IV a. C.) e romana
cos e das leis romanas. (sécs. I a. C.–II d. C.).

– Prenúncios de uma nova geografia política: a presença dos “Bárbaros”


no Império
Os primeiros ataques dos Bárbaros (século III) obrigaram os imperadores a reorgani-
zar o sistema defensivo do Império. Esta reorganização permitiu mantê-los em res-
peito, sempre que estes procuram retomar a ofensiva. O Império assim protegido
pôde continuar a subsistir, mas a abertura das fileiras do exército romano aos
Bárbaros ou a sua instalação no seu território trouxe novos problemas:
o exército romano vai-se transformando num exército de mercenários(5) e os
Bárbaros vão-se instalando nos territórios do Império, como “federados(6)”,
julgando resolver, assim, a “questão bárbara”.

As grandes invasões que conduziram à queda de Roma ocorreram no início


do século V: sob pressão dos Hunos, os Germanos invadiram a Itália e, em 410,
Roma foi pilhada pelos Visigodos, de Alarico. Em 452, os Hunos, comandados, por
Átila, penetraram na Itália mas Roma foi poupada. Ao mesmo tempo, instalam-se por
todo o Império diversos reinos bárbaros: os Visigodos, na Hispânia, os Francos no Norte Fig. 2. Santo Agostinho
(354-430) ensinando os
da Gália, os Vândalos na África, etc. Em 476, Odoacro, chefe dos Hérulos, afasta o último
seus discípulos. O seu
Imperador Romano, Rómulo Augústulo (475-476) e provoca a queda e a desagregação pensamento sobre
do Império Romano do Ocidente. a questão da relação
entre ciência e fé pode
resumir-se na célebre
frase: Compreende para
que possas crer, crê para
que possas compreender.

? Questão

1. Que fatores explicam o


declínio do Império
Romano do Ocidente?

Fig. 3. O Império Romano no século IV.

(5)
Mercenários: aquele que serve ou trabalha por um preço ou salário ajustado. Aqui, soldados que combatem por
dinheiro, muitos dos quais recrutados entre os povos Bárbaros.
(6)
Federados: povos inteiros que se encontravam ligados a Roma por meio de um tratado (foedus). Estes povos con-
servavam os seus costumes, a sua organização social e política; ocupam as terras romanas e em compensação for-
necem ao governo imperial um certo número de soldados.
22 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

Questões para Exame


1

Documento 1 | A democracia ateniense na Época Clássica

Não é a habitação que constitui o cidadão: os estrangeiros [metecos] e os escravos não são “cidadãos”,
mas “habitantes”. (...) Não participam, portanto, senão duma maneira imperfeita nos direitos de cidada-
nia. Quase a mesma coisa acontece com as crianças, que não têm ainda idade para estarem inscritos no
recenseamento dos cidadãos (…). Com maioria de razão se devem deliberadamente riscar desta lista os
infames e os proscritos. O que constitui propriamente o cidadão, a sua qualidade verdadeiramente carac-
terística, é o direito de sufrágio nas Assembleias e de participação no exercício do poder público na sua
pátria.
Aristóteles, Tratado da Política, II, Cap. IV.

Documento 2 | O regime político ateniense

Direi em primeiro lugar que é justo que, em Atenas, os pobres e a multidão gozem de mais benefícios
do que os ricos e os bem-nascidos, porque é o povo que embarca nos navios e que faz o poder da cidade.
(...) Também é justo que todos igualmente participem nas magistraturas, sorteadas ou eletivas, e que todo
o cidadão que o peça possa tomar a palavra.
Pseudo-Xenofonte, República Ateniense, 1, 2.

Documento 3 | O exercício do direito de voto

Fig. 1. Uma eleição sob a proteção divina de Atenas, os cidadãos depositavam o voto numa urna
(pintura sobre cerâmica, século V a. C.).
Questões para Exame 23

Documento 4 | A arquitetura e escultura gregas, expressão do culto público e procura da harmonia

Fig. 2. Fachada principal do Pártenon (448-436 a. C.) na Acrópole Fig. 3. Estátua do deus Hermes com o
ateniense. pequeno Dioniso, de Praxíteles (350-330
a. C.).

1.1. Caracterize o regime democrático ateniense nos séculos V e IV a. C. tendo em conta os tópicos a seguir
enunciados:

– os fundamentos da democracia;
– os limites da participação democrática.

Para além dos seus conhecimentos, deve integrar na sua resposta os dados dos documentos 1 a 3.

1.2. Explicite na análise das figuras 2 e 3 a afirmação que titula o documento 4.

Documento 5 | O sentido pragmático dos Romanos

Fig. 4. Pormenor de uma via romana. Fig. 5. Ruínas romanas de Conímbriga.


24 Módulo 1 - Raízes mediterrânicas da civilização europeia – cidade, cidadania e império na antiguidade clássica

Documento 6 | A romanização da Península Ibérica

Aos aldeamentos do Centro e Norte da Península e às “cidades” (oppida) indígenas do sul, os Roma-
nos vão contrapor as suas cidades (urbes), com os seus sistemas próprios de governo e os seus monu-
mentos.
A habitação privada vai sofrer também alterações, embora o novo modelo de casa tenha sido mais
característico do colono romano ou do indígena romanizado de médio ou alto poder económico. Os aldea-
mentos (vici) continuaram a ter a sua tradicional habitação indígena, com algumas modificações, sobre-
tudo a nível de materiais (cobertura de telhado em telhas planas – tegullae (...) – de cerâmica, substituindo
a tradicional cobertura de fibras vegetais, e a utilização de cimentos e argamassa), captação e abasteci-
mento de águas, vias de acesso e um ou outro eventual monumento de tipo religioso ou dedicatório. (...).
Conímbriga é um dos poucos locais onde podemos estudar a casa (domus) romana com alguma segurança.
Aqui as casas ricas desenvolvem-se em torno de um peristilo com um tanque central e zonas ajardinadas.
(...). Os únicos exemplares de “ilhas” (insulae) que conhecemos são os escavados em Conímbriga. (...).
O templo mais conhecido é o impropriamente chamado templo “de Diana”, na cidade de Évora. Seria dedi-
cado, mais provavelmente, ao culto do imperador e de Roma (...). Uma das zonas importantes das cida-
des romanas era o fórum, grande praça retangular ou subquadrangular à volta da qual, ou perto da qual,
se concentravam alguns edifícios públicos: templo, basílica, cúria, mercado. (…) A estes (...) deveremos jun-
tar vários balneários, públicos ou privados (...).

SARAIVA, J. H.(dir.), História de Portugal, vol. 1, Lisboa, Publ. Alfa, pp. 374-376.

2.1. A partir dos dados dos documentos 5 e 6, explicite o sentido pragmático dos Romanos.

2.2. Analise o processo de romanização da Península Ibérica.

A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:

– os objetivos da conquista da Península;

– os instrumentos utilizados no processo de romanização;

– os fatores do seu sucesso.

A sua resposta deve integrar, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis nos documentos
5 e 6.
Unidade 1 - A identidade civilizacional da Europa Ocidental 25

Módulo 2 10.° Ano


Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental
nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências
1. A identidade civilizacional da Europa Ocidental
2. O espaço português – a consolidação de um reino cristão ibérico
3. Valores, vivências e quotidiano

Contextualização
Unida no e pelo Cristianismo e o sistema feudal, a Europa Ocidental nos séculos XIII e XIV
apresenta contudo uma grande diversidade política - impérios, reinos, senhorios e comunas.
É o tempo da conflituosa ordenação das relações entre os poderes espiritual e temporal, do
renascimento das cidades e das novas formas de sociabilidade, cultura e mentalidade que
tiveram a sua origem nesta fase mais dinâmica e criativa da história medieval da Europa
Ocidental. É ainda o tempo da afirmação de Portugal como entidade política autónoma.

Unidade 1 A identidade civilizacional da Europa Ocidental


SUMÁRIO Cronologia
1.1. Poderes e crenças – multiplicidade e unidade Sécs. VIII-XV
1.2. O quadro económico e demográfico – expansão e limites do crescimento Reconquista Cristã na
Península Ibérica.
APRENDIZAGENS RELEVANTES Sécs. XI-XIII
As Cruzadas no Oriente.
- Reconhecer na sociedade europeia medieval fatores de coesão que se sobrepuseram às
permanentes diversidades político-regionais, distinguindo a importância da Igreja nesse Sécs. XI-XIII
Colonização do norte e
processo.
leste da Germânia.
- Reconhecer no surto demográfico do século XIII, na expansão agrária que o acompanhou
1204-1261
e no paralelo desenvolvimento urbano o desencadear de mecanismos favorecedores de O Império Latino do
intercâmbios de ordem local, regional e civilizacional. Oriente.
- Reconhecer o senhorio como o quadro organizador da vida económica e social do mundo Fins séc. XIII
rural tradicional, caracterizando as formas de dominação exercidas sobres as comunida- Avanço turco sobre o
Império Bizantino.
des campesinas**.
Séc. XIV
CONCEITOS/NOÇÕES Termina o movimento de
Reino**; Senhorio**; Comuna; Papado; Igreja Ortodoxa grega; Islão; Burguesia; Economia monetária expansão para o leste.
Fomes, pestes (Peste
* Conteúdos de aprofundamento Negra, 1347-1350) e
guerras (Guerra dos Cem
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
Anos, 1337-1453).

1.1. Poderes e crenças – multiplicidade e unidade


– Uma geografia política diversificada: impérios, reinos, senhorios e comunas
A partir sensivelmente do ano mil, foram desaparecendo as incertezas da Alta Idade
Média e a Europa Ocidental recuperou a estabilidade e a prosperidade. No plano político,
a consolidação do feudalismo proporcionou novas bases de autoridade aos príncipes
26 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

medievais nas suas lutas contra o Sacro Império Romano-Germânico(1) que, desgastado
* Papado: instituição pelas suas lutas contra o Papado*, começa no século XII a dar sinais de fragilidade, per-
pontifícia. Considerados
como representantes de mitindo deste modo a formação de reinos* e ducados fortes. Noutras regiões do Ocidente
Deus, na Idade Média os europeu, em França, na Inglaterra e na Península Ibérica – nos reinos de Castela, de Ara-
Papas juntavam ao seu
enorme prestígio e gão e de Portugal –, verificou-se um processo de afirmação das monarquias hereditárias
autoridades espirituais um assentes numa administração central cada vez mais complexa e controladora.
imenso poder temporal.
* Reino: estado governado Diferentemente, no norte da Península Itálica e no Mar Báltico, áreas comerciais muito
por um regime monárquico ativas, fortalece-se a autonomia política das cidades-estados onde a aristocracia mercan-
ou realeza.
til controla o governo. Veneza e Génova sustentam o seu poder numa hegemonia comer-
* Comuna: cidade
emancipada da tutela cial e militar que vão construindo no Mediterrâneo. Lubeck, sede da Liga Hanseática
senhorial; situação (1241) – uma poderosa associação comercial e militar das cidades alemãs –, impõe o seu
alcançada através de um
processo de luta ou domínio no Mar do Norte. Na Flandres e no Norte de França, o movimento comunal, expri-
simplesmente através da mindo as aspirações de liberdade dos burgueses das cidades, libertou diversas cidades
compra de uma carta de
franquia, a carta comunal. da dependência dos senhores feudais e transferiu para as elites mercantis o governo des-
* Senhorio banal: designa tas cidades emancipadas, as comunas*.
um conjunto de poderes de
origem e natureza pública Na Europa Central e Oriental e em muitos pontos do Ocidente europeu, encontramos,
exercidos pelo senhor num no século XIII e durante bastante tempo mais, os senhorios banais*, ou seja, vastas áreas
território. O titular
acumulava no senhorio onde os senhores exerciam o direito de bannum(2), um direito que no passado pertencia
esse poder jurisdicional ou exclusivamente ao monarca.
político, rendas e, muitas
vezes, património.
– Imprecisão de fronteiras internas e externas
Na Idade Média, as fronteiras dos estados europeus estavam longe de estar estabili-
zadas. O mesmo se verificava relativamente ao exterior. Além disso, o seu traçado não
era rígido nem definitivo. Nos finais do século XIII, Portugal era uma notável exceção,
pois o seu território ficou praticamente definido. O mesmo não se passava no resto da
Península Ibérica onde a presença muçulmana irá prolongar-se até ao século XV.

Na Alemanha, as sucessivas tentativas do Papado e dos imperadores do Sacro Impé-


rio para realizar o sonho de formar uma monarquia universal cristã, integrando todos os
povos do Ocidente, levaram ao aparecimento de numerosos estados. O sonho de uni-
dade deu lugar à fragmentação política e à rivalidade entre os príncipes ávidos de esten-
derem as suas fronteiras e reforçarem o seu poder. No século XIII, o Império transfor-
mara-se numa confederação de estados sob a presidência distante do imperador, num
mosaico de estados praticamente autónomos.

Na Itália, o conflito entre o Papado e o Sacro-Império(3) favoreceu a independência


das cidades e os conflitos no interior destas pelo controlo do poder. Em França, os

(1)
Sacro Império Romano-Germânico: império fundado por Otão I, coroado como imperador pelo papa, em 962, nascido
da união dos territórios orientais do fragmentado Império Carolíngio dividido após a morte do seu fundador Carlos
Magno; subsistiu até 1806, quando foi abolido por Napoleão Bonaparte.
(2)
Direito de bannum: poder de comandar, obrigar e castigar homens livres; ou seja, poderes de caráter militar e judi-
cial e a imposição de serviços e tributos.
(3)
O papa Inocêncio III (1198-1216) pretendeu impor no Ocidente uma espécie de teocracia, procurando submeter todos
os príncipes à sua autoridade, ou seja, à autoridade do representante de Deus na Terra. Estas pretensões provoca-
ram um grave conflito com Frederico II, imperador do Sacro-Império.
Unidade 1 - A identidade civilizacional da Europa Ocidental 27

monarcas feudais recorrem à guerra para unificar o território sob a sua autoridade pro-
curando retirar aos ingleses os domínios que possuem no continente, nomeadamente na
Normandia e na Aquitânia.

As fronteiras externas da Europa estavam também longe de uma estabilização. O longo


período de crescimento económico e demográfico dos séculos XI-XIII impulsionou a
expansão da Europa muito para além dos seus limites geográficos do ano mil. No
extremo ocidental, no sul e no oriente o domínio muçulmano era um fortíssimo obstá-
culo. Por isso, o conflito tornou-se inevitável: na Península Ibérica, a Reconquista Cristã,
iniciada no século VIII, empurrou os Muçulmanos para o norte de África; no oriente, as
Cruzadas permitiram abrir a navegação mediterrânica e os mercados orientais aos Euro-
peus; a norte e a leste, o movimento de colonização estendeu a fronteira da Europa muito
para além do limite tradicional do rio Elba.

O avanço turco a Oriente nos finais do século XIII, a paragem dos arroteamentos e o
regresso da “trilogia sinistra” (fome, peste e guerra) no século XIV iriam interromper de
forma dramática o surto expansionista dos séculos anteriores.

– A organização das crenças: o poder do Bispo de Roma na Igreja ocidental


A Igreja de Roma emergiu da queda do Império Romano do Ocidente, no século V, Cronologia
como a única força organizada e com força e capacidade para se impor numa Europa
1054
onde os povos “bárbaros” recém-instalados procuravam assimilar o legado civilizacional
Cisma entre a Igreja de
romano. O processo de cristianização destes povos deu à Igreja de Roma um enorme Roma e de Bizâncio.
prestígio e autoridade que ela soube capitalizar para influenciar a organização e os com- 1075-1122
A Questão das
portamentos das sociedades europeias e dos poderes políticos. Investiduras.
A Igreja defendia uma organização social triangular: três ordens bem delimitadas, 1198-1216
Pontificado de Inocêncio III.
sendo cada uma delas investida de uma função particular. No topo, os oradores, o clero, 1209-1229
seguido da ordem dos guerreiros, a nobreza, que têm por missão defender o conjunto Cruzada contra os
Albigenses (movimento
do povo, e, finalmente, os mantenedores, o povo, vivendo sob a obrigação de alimentar herético) no sul de França.
as outras duas. Cada uma das três ordens devia, portanto, cooperar na manutenção da 1223
concórdia num mundo ordenado por Deus e, por isso, imutável. Fundação da Ordem dos
Franciscanos.
O crescimento económico e o renascimento urbano iniciado no século XI acabariam 1231
Gregório IX cria a
por mostrar o desfasamento entre este modelo de organização social e a nova realidade.
Inquisição papal.
O resultado foi a desorganização do sistema de relações que a teoria das três ordens
quisera eternizar. Os antagonismos sociais surgiram tanto nos campos como nas cidades
onde o contraste entre a riqueza de uns e a miséria de outros se tornava cada vez mais
escandaloso. No seio da própria Igreja surgiram movimentos reformadores: uns heréti- Questões
?
cos, outros autorreformadores, como as Ordens Mendicantes e as Confrarias, defendendo
1. Qual o modelo de
novas formas de religiosidade mais próximas dos ideais evangélicos da Igreja primitiva.
organização social
Ao mesmo tempo, a difusão de uma cultura laica, à margem dos padrões da moral reli- defendido pela Igreja?
Quais os seus objetivos?
giosa, retirou o monopólio do ensino e da cultura ao clero.
2. Como se explicam os
No domínio do pensamento político, a Igreja impõe o ideal da reconstituição da uni- frequentes conflitos nas
relações entre o Papado e
dade imperial no Ocidente e alimenta o sonho da constituição de uma comunidade polí-
o Império ao longo da
tico religiosa unida sob a autoridade do Papa e do Imperador. Mas a pretensão da Igreja Idade Média?
28 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

de afirmar a superioridade do poder espiritual sobre o temporal marcaria negativamente


as relações entre os dois poderes ao longo de toda a Idade Média.

As lutas dos papas Gregório VII (Fig. 1), no século XI, e de Inocêncio III, no século XIII,
com os imperadores do Sacro-Império marcaram decisivamente essas relações: a ideia
imperial não desapareceria, mas o projeto universalista que a Igreja tentara encarnar
estava, definitivamente, comprometido.

– O reforço da coesão interna face a Bizâncio e ao Islão*


Fig. 1. Iluminura de 1114, O Cristianismo constitui após a queda de Roma a base da unidade da Europa medie-
representando Henrique IV
val, mas esta unidade era muito relativa. Com efeito, a cristandade conheceu vários con-
no momento em que
suplica a presença de flitos envolvendo papas e imperadores, reis e clérigos, tendo na sua origem questões de
Gregório VII para que
natureza política e social misturadas com outras do foro religioso. Destas querelas resul-
este lhe levantasse
a excomunhão. taram naturais quebras de prestígio e a rutura entre Roma e Bizâncio no ano de 1054,
quando o patriarca Bizantino e o legado do papa lançaram anátemas(4) recíprocos, culmi-
nando numa série de crises motivadas por divergências doutrinais e de autoridade.

Confinada ao Ocidente, a Igreja Romana procu-


rou reforçar a coesão combatendo os movimentos
heréticos, como o dos Cátaros ou Albigenses(5), no
século XII, criando a Inquisição para reprimir as
heresias, apostando ao mesmo tempo na pregação
e no exemplo das novas Ordens Mendicantes.

Relativamente ao Islão, a Igreja ocidental, fun-


dada na sua vocação universal, mobilizou as suas

Fig. 2. Partida do rei


energias na luta contra aqueles que considerava
francês Luís IX (1215-1270) como infiéis, inimigos do Cristianismo, e pregou a Guerra Santa (Cruzada) (Fig. 2), tanto
para a Cruzada (1248-1254).
na Península Ibérica (Reconquista Cristã) como no Oriente, na Terra Santa, lugar sagrado
de peregrinação.

*Islão: religião dos


muçulmanos. A palavra 1.2. O quadro económico e demográfico – expansão e limites do
“islão” significa crescimento
“submissão”. O muçulmano
é aquele que se submete
à doutrina de Alá revelada – A expansão agrária
ao profeta Maomé e escrita
no livro sagrado, o Corão, Depois de um período terrível marcado pelas incertezas da vida (fomes, insegurança,
cujo significado em árabe pestes) e pelas ameaças externas (os Vikings, no norte, os Magiares, no centro, os Muçul-
é “recitação”.
manos a oriente e a sul), as primeiras décadas do século XI significaram para a Europa
o regresso da paz e o início de um longo período de expansão económica e de estabili-
dade que se prolongará até aos finais do século XIII.
? Questões

1. Como procurou a Igreja


ocidental reforçar a sua
(4)
coesão interna? Anátemas: excomunhões.
(5)
Cátaros (“puros”) ou Albigenses: criticavam a Igreja Católica, na sua prática e nas suas riquezas, rejeitavam os
2. Que atitude assumiu sacramentos e o culto, negavam a encarnação de Cristo e combatiam o casamento e a procriação. Falhadas as pre-
relativamente ao Islão? gações de S. Bernardo, o Papa pregou contra eles uma cruzada que se transformou numa guerra sangrenta e que
Porquê? termina em 1229.
Unidade 1 - A identidade civilizacional da Europa Ocidental 29

Na origem destas mutações encontra-se um significativo cres-


cimento demográfico que impulsiona os movimentos das Cruza-
das (Oriente), da Reconquista na Península Ibérica e a coloniza-
ção alemã do leste europeu. Mas também explica o
arroteamento(6) de extensas áreas no interior da Europa que até
então se encontravam cobertas por matagais e florestas ou ato-
ladas em pântanos.

Os agentes destas transformações são, nomeadamente, os


Fig. 3. Progressos técnicos
senhores laicos e eclesiásticos e os próprios reis que levaram a cabo profundos arrotea- agrícolas depois do ano
mentos coletivos. mil: a utilização de
instrumentos em ferro
As Ordens Monásticas revelam-se instituições empreendedoras, na tarefa de coloniza- e do cavalo, de estrume
animal e de novos
ção e de ocupação dos solos(7). Do mesmo modo, reis e eclesiásticos unem-se para fun- engenhos de irrigação
dar novas aldeias. Fundam-se assim terras novas e aldeias livres, para onde se procura (nora e picota).

atrair as gentes mais variadas, até mesmo servos em fuga dos seus senhores com pro-
messas de terras e a garantia da sua liberdade pessoal.

Ao mesmo tempo, ocorre uma “revolução” das técnicas agrícolas (Fig. 3):
– a substituição do arado pela charrua, cuja grelha assimétrica permitia não só abrir ? Questões
o solo mas também revirá-lo, arejando-o e facilitando uma melhor distribuição dos
1. Que condições
nutrientes; favoreceram a expansão
agrária na Europa Ocidental
– a introdução da rotação trienal (seguindo a sequência: trigos de inverno, trigos de nos séculos XI-XIII?
primavera, repouso) favoreceu o aumento da produção e da produtividade; 2. Qual a relação entre
– o uso preferencial do cavalo em vez do boi; embora mais caro e mais difícil de man- o aumento da produção
agrícola e o crescimento
ter, o cavalo permite ganhos de tempo no trabalho. demográfico então
verificado?
Apesar de a produtividade da terra continuar reduzida, do século XI ao XIV, a Europa
conseguiu ultrapassar a ameaça das fomes cíclicas, facto que esteve na origem do cres-
cimento demográfico, até então contido, devido à insuficiência da produção agrícola. No
entanto, o equilíbrio demográfico continuava a ser frágil. As sociedades europeias ainda
não estavam suficientemente protegidas das crises de subsistências e da penúria de
homens.

– Dinamização das trocas regionais e afirmação das grandes rotas do comércio


externo Cronologia

1200
O comércio mediterrânico Instituição da feira de
Bruges.
O longo período de expansão económica que caracterizou o Ocidente cristão nos sécu-
1260-1266
los XI-XIII e o movimento das Cruzadas, conjugado com o enfraquecimento do domínio Primeira viagem dos
muçulmano e a melhoria dos meios de transporte marítimos (desenvolvimento da constru- venezianos Niccolo e Mateo
Polo à Ásia.
ção naval, adoção de novos instrumentos e técnicas de orientação e navegação como a
1284
Os Genoveses derrotam
a frota de Pisa e afastam
esta cidade da disputa do
(6)
Arroteamento: desbravamento; transformação de áreas incultas, bravias, em terras cultivadas, produtivas. comércio no Mediterrâneo
(7)
Cluny, Cister e as Ordens Militares promovem ativamente o arroteamento de novas terras.
Oriental.
30 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

bússola, o portulano(8) e a vela triangular), permitiram que os


“italianos” estabelecessem uma rede comercial no Mediterrâ-
neo que durante vários séculos lhes assegurou a prosperidade
económica, constituindo-se como uma ponte privilegiada entre
a Cristandade e os mundos Bizantino e Muçulmano.

Na ligação do Atlântico ao Oriente, os portos mediterrâni-


cos de Barcelona, Génova, Marselha, Tunes, Veneza, Constan-
tinopla e Alexandria constituíam as escalas mais importantes.
Estas correntes comerciais marítimas eram ainda reforçadas
por rotas terrestres que do Oriente confluíam para as margens

Fig. 4. O porto de Génova


do Mar Negro e destas para o Norte da Europa. De entre as
no século XV. cidades mediterrânicas, Veneza é a mais importante, embora nos séculos XII e XIII tivesse
de enfrentar a concorrência de Pisa e Génova (Fig. 4), que lhe disputavam o lucrativo
comércio no Mediterrâneo Oriental.

O Mediterrâneo Oriental era de importância vital para as cidades italianas mas tinha
igualmente um grande interesse comercial para a Europa. Com efeito, era a partir do
comércio nesta área que, através dos “italianos”, os Europeus tinham acesso aos produ-
tos de luxo asiáticos (especiarias, tecidos e fazendas de algodão e de seda, pérolas e
pedras preciosas...), às matérias-primas da Ásia Menor (alúmen e metais), aos couros,
peles e cereais da Rússia e da Roménia, aos escravos da Rússia, ao peixe salgado, vinhos
e sal do Mar Negro. Por outro lado, estes mercados absorviam artigos industriais, sobre-
tudo panos e tecidos, objetos de metal, bronze, estanho ou ferro produzidos nas cida-
des da Flandres, da Inglaterra e do sul da Alemanha. Do norte de África, provinha o ouro
tão necessário à cunhagem de moedas.

? Questões O comércio no Ocidente: principais centros urbanos e rotas comerciais

1. Quais as grandes rotas No Mar do Norte e no Mar Báltico as cidades alemãs adquirem autonomia política e
do comércio mediterrânico tornam-se polos comerciais muito dinâmicos, estendendo a sua influência para além dos
no século XIII?
limites da sua jurisdição e estabelecendo acordos comerciais com outras cidades. Foi
2. Qual a importância do
comércio do Mediterrâneo
neste contexto que se constituiu, em 1241, a poderosa Liga Hanseática, com sede em
Oriental para a Europa? Lubeque, que passou a organizar a proteção militar dos seus pesados navios de carga,
as kogge(9), carregados sobretudo com produtos em quantidade e relativamente baratos
(cereais, madeira, sal). De simples associação criada para a defesa da navegação no Mar
Báltico, a Hansa transformou-se numa importante confederação política e comercial de
cidades mercantis, monopolizando o comércio nesta área e estendendo a sua influência
a todo o norte europeu.

À margem da Hansa, algumas cidades do sul da Alemanha conheceram também um


grande desenvolvimento. Ravensburgo, Nuremberga e Augsburgo, entre outras, puderam
beneficiar, a partir do século XIII, de um período de prosperidade, graças às boas comu-
nicações com o norte de Itália e com a França, ao incremento da indústria têxtil e sobre-
tudo ao investimento na exploração mineira e na metalurgia.

(8)
Portulano: tipo de carta náutica retangular onde se encontravam registadas as linhas de rumo e a localização dos
principais portos da costa Ocidental da Europa, Mar do Norte e Mediterrâneo.
(9)
Kogge: navio de carga com um único mastro e vela quadrangular. Os latinos chamavam-lhe carraca.
Unidade 1 - A identidade civilizacional da Europa Ocidental 31

A ligação entre o norte da Europa e o norte de Itália estabele-


ceu-se num primeiro momento por via terrestre, através das rotas
abertas nos Alpes, tendo como pontos de referência as célebres
cidades-feiras de Champagne (Lagny, Bar-sur-Aube, Provins e Troyes).
Estas feiras, situadas estrategicamente no caminho entre aqueles
dois grandes polos económicos e apoiadas pelas concessões dos
condes da Champagne (isenções fiscais e de salvo-condutos), trans-
formaram a região num mercado aberto e contínuo, num espaço de
encontro quase obrigatório dos mercadores itinerantes oriundos de
todas as partes do Mundo Ocidental.
Fig. 5. S. Mateus
Mas o percurso dos mercadores não terminava nestas cidades-feiras. Para muitos, representado como
mercador e banqueiro, com
a Champagne era apenas uma etapa no caminho da e para a Flandres, onde existiam livros de contabilidade,
várias cidades com feiras e indústrias muito dinâmicas: Bruges, Ypres, Lille e Gand. balanços destinados
ao câmbio e peças de ouro
Bruges era a mais importante. A sua situação privilegiada no centro de uma grande
sobre o balcão. O volume
região industrial e mercantil e no estuário do Zwin, servida pelo anteporto de Damme, e a rapidez das transações
fizeram aumentar
por um porto bem apetrechado e por uma rede de canais navegáveis, transformou-a
a procura do dinheiro
no local ideal para as relações comerciais dos mercadores hanseáticos, ingleses e do e a importância dos
banqueiros.
sul da Europa, nomeadamente “italianos”, bascos, catalães e portugueses. Para além
disto, albergava a praça financeira europeia, a Bolsa (de Buerse, apelido da família pro-
prietária do espaço), procurada por mercadores, cambistas e banqueiros (Fig. 5) de toda
a Europa numa altura em que a economia europeia evoluía cada vez mais para uma
economia monetária*.

– A fragilidade do equilíbrio demográfico * Economia monetária:


economia aberta, onde
Não obstante a prosperidade quase generalizada na Europa nos séculos XI-XIII, a ver- a moeda circula com
dade é que o equilíbrio alcançado entre o crescimento demográfico e a produção agrí- velocidade e em
quantidade fruto da
cola era precário, porque os níveis de produtividade jamais foram melhorados de forma dinâmica das atividades
a afastar a ameaça das fomes. O equilíbrio era mantido à custa de uma conquista per- comerciais e financeiras.
Nos séculos XI-XIII,
manente de novos solos (arroteamentos de florestas, pântanos e baldios). a melhoria dos transportes
marítimos (incremento da
Nos finais do século XIII e princípios do século XIV, atingiu-se uma situação de ten- construção naval),
são entre a população e a produção e a rutura tornou-se inevitável, com a conjugação a adoção de novos
instrumentos e técnicas
de dois fatores com consequências devastadoras: de navegação (portulano,
bússola, vela triangular),
– o abrandamento e a paragem dos arroteamentos em muitas regiões da Europa;
contabilísticas (partida
– o início de uma época de catástrofes climáticas e de maus anos agrícolas. dobrada/deve e haver)
e financeiras (letra de
câmbio e cheque) deram
Estava “lavrado o terreno” onde germinariam as fomes, as epidemias e a crise. A fome um importante contributo
atinge duramente a demografia. Primeiro os pobres, depois todos. As taxas de mortali- para esta dinâmica.

dade elevam-se e a mão de obra torna-se escassa. Menos braços, menos produção. Ao
flagelo da fome junta-se o das epidemias (os corpos mal alimentados estão mais expos-
tos à doença), o das pilhagens e o das guerras. Fecha-se o círculo sinistro. A crise está ? Questão
instalada.
1. Que fatores explicam
a fragilidade do equilíbrio
demográfico na Europa dos
séculos XIII-XV?
32 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

Cronologia Unidade 2 O espaço português – a consolidação de um reino cristão


1096 ibérico
Fundação do Condado
Portucalense. SUMÁRIO
1128
Batalha de S. Mamede: 2.1. A fixação do território – do termo da Reconquista ao estabelecimento e fortalecimento de
D. Afonso Henriques fronteiras*
assume o governo do 2.2. O país urbano e concelhio*
Condado.
2.3. O país rural e senhorial*
1139
2.4. O poder régio, fator estruturante da coesão interna do reino*
Batalha de Ourique:
D. Afonso Henriques
assume o título de rei. APRENDIZAGENS RELEVANTES
1143 – Compreender a especificidade da sociedade portuguesa concelhia, distinguindo a diversi-
Tratado de Zamora:
dade de estatuto dos seus membros e as modalidades de relacionamento com o poder
D. Afonso VII, imperador de
Castela, reconhece o título régio e os poderes senhoriais**.
de rei a D. Afonso – Interpretar a afirmação do poder régio em Portugal como elemento estruturante da coe-
Henriques.
são do país concelhio e do país senhorial e promotor de missões de prestígio e de auto-
1179
nomia do Reino no contexto da cristandade ibérica**.
Bula Manifestis Probatum:
o papa reconhece a
independência do Reino CONCEITOS/NOÇÕES
de Portugal. Reconquista**, Concelho**, Carta de foral, Mesteiral, Imunidade**, Monarquia feudal**, Cúria, Cor-
1249 tes/parlamentos**, Inquirições, Legista
D. Afonso III reconquista
o Algarve. * Conteúdos de aprofundamento
1297 ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
Tratado de Alcanises:
definição das fronteiras
leste de Portugal.

2.1. A fixação do território – do termo da Reconquista ao


estabelecimento e fortalecimento de fronteiras
A definição do território de Portugal, tal como a sua existência
como entidade política independente no oeste peninsular, está inti-
* Reconquista: processo de mamente ligada ao fenómeno da Reconquista*. Pode mesmo afir-
recuperação do domínio
mar-se que Portugal é um produto seu, pois tanto a formação do
da Península Ibérica,
conquistada e ocupada Condado Portucalense (1096)(1) como também a autonomização po-
pelos Muçulmanos
lítica e o alargamento territorial do Reino de Portugal estão-lhe as-
(Sarracenos ou Mouros),
iniciado a partir das sociados.
Astúrias no século VIII
pelos cristãos Com efeito, foram as vitórias no campo de batalha contra o Islão
peninsulares. Tratou-se de que deram a D. Afonso Henriques o prestígio e a autoridade neces-
um movimento lento (até
aos finais do século XV), sários para reivindicar junto das autoridades castelhana e papal o di-
irregular (com avanços reito de usar o título de rei e ser aceite como soberano pelos seus
e recuos) e com
alternância de longos súbditos(2).
períodos de paz e outros
de guerra. (1)
A formação do Condado Portucalense (1096) resultou da doação de D. Afonso VI ao
conde D. Henrique da Borgonha, que se encontrava na Península para ajudar na luta con-
tra os mouros, a título de dote hereditário, pelo casamento deste com D. Teresa, sua
Fig. 1. Definição da fronteira filha.
(2)
leste de Portugal nos fins A partir de 1139, data da vitória na Batalha de Ourique, D. Afonso Henriques assumiu o
do século XIII pelo Tratado título de rei, apesar da sua condição de vassalo de D. Afonso VII, imperador de Leão e
de Alcanises (1297). Castela.
Unidade 2 - O espaço português – a consolidação de um reino cristão ibérico 33

Foi ainda o sucesso militar que lhe permitiu obter um território suficientemente amplo
para viabilizar a existência de Portugal como reino independente, alargando a sua fron-
teira sul até à linha do Tejo-Sado, com a conquista de Santarém (1147) e cuja posse abriu
o caminho à tomada de Lisboa (1147) e feito alcançado com a ajuda dos Cruzados. Segui-
ram-se-lhes as conquistas de Sintra, Almada e Palmela, fortalezas importantes para a de-
fesa de Lisboa e de Alcácer do Sal.

Ao mesmo tempo que se ia processando o alargamento territorial para sul, D. Afonso


Henriques e os seus sucessores dividiam os seus esforços no povoamento e organização
administrativa, económica e social das áreas conquistadas, elementos fundamentais para Fig. 2. D. Dinis (1279-1325),
negociou o Tratado de
a consolidação das fronteiras e para a própria sobrevivência do Reino. Para realizar estes
Alcanises (1297), com
objetivos foram concedidas cartas de foral, criaram-se os primeiros órgãos de administra- Castela.
ção central e fizeram-se importantes doações de terras e privilégios às ordens religiosas
e às ordens militares. A tomada de posse por D. Afonso III, em 1249, das cidades e cas-
telos do Algarve, ainda nas mãos dos Mouros, concretizou o grande objetivo de estender
as fronteiras até ao limite sul do território. Cronologia

A definição do espaço territorial português ficou concluída com a celebração do Tra- 1137-1179
D. Afonso Henriques
tado de Alcanises (Fig. 1) (1297) entre D. Dinis de Portugal (Fig. 2) e D. Fernando IV de
concede forais a Penela
Castela que fixou de forma praticamente definitiva a fronteira leste de Portugal. (1137), Leiria (1142),
Germanelo (1142-1144),
Deste modo, ainda no século XIII, Portugal estabelecia as fronteiras do seu território Arouce (1151) e a Lisboa
que, com pequenas alterações posteriores, haveriam de permanecer até aos nossos dias. (1179).
1186
D. Sancho I doa Almada,
Palmela e Alcácer do Sal
2.2. O país urbano e concelhio à Ordem de Santiago.
1192
– A multiplicação de vilas e cidades concelhias D. Sancho I concede foral
a Penacova.
As formas de povoamento e de organização das populações no território portu-
guês refletem as características do meio geográfico e, sobretudo, as condições histó-
ricas em que se processou a formação do território português, concluída no século XIII.

A configuração retangular, alongada no sentido do litoral, e o acentuado con-


traste natural entre as regiões do norte e do sul, do litoral e do interior condicio-
naram naturalmente a distribuição populacional no território português. O norte,
OCEANO ATL NTICO

em especial a região litoral, dispunha de uma maior densidade humana, mas os


seus núcleos populacionais eram bastante mais reduzidos e muito dispersos. No
século XIII, até ao vale do Tejo, apenas as cidades de Porto, Coimbra, Braga e Gui-
marães tinham alguma dimensão. Os maiores aglomerados populacionais situa-
vam-se no sul, onde havia uma forte tradição urbana romana e muçulmana,
destacando-se Lisboa e Évora, entre outras de menor dimensão, como Santarém,
Elvas, Silves, Faro e Tavira.

Foram as condições históricas ligadas ao avanço da Reconquista Cristã para sul que
terão tido uma influência mais marcante. A conquista e integração do sul no domínio
português implicou importantes movimentos de populações, particularmente do norte
de Portugal mais povoado, para as regiões que iam sendo tomadas aos Mouros,
Fig. 3. Concelhos medievais
fenómeno que acabaria também por favorecer a coesão étnica e cultural do País. portugueses.
34 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

* Carta de foral: documentos Esta tarefa de povoamento – fundamental para assegurar a defesa e promover a explo-
concedidos pelos reis ou
pelos senhores (laicos e ração económica do território – foi incentivada pelos reis através de doações às Ordens
eclesiásticos) que regulavam Religiosas e Militares (Templários, Hospitalários, Calatrava e Santiago) como contrapartida
a vida dos concelhos,
nomeadamente os direitos ao auxílio prestado na luta contra o Islão e às ordens não militares (Cónegos Regrantes
e obrigações dos seus de St.o Agostinho, Cistercienses, Franciscanos e Dominicanos).
habitantes (“vizinhos”), em
particular a administração, Ao mesmo tempo e com idênticos objetivos, reis e senhores (nobres e eclesiásticos)
o fisco e a justiça.
concederam cartas de foral* às vilas e cidades de Portugal. Desta forma foram criados mui-
* Concelho: circunscrição
territorial e administrativa tos concelhos* (Fig. 3), importantes agentes do povoamento.
com um variável grau de
autonomia; cada concelho – A organização do território e do espaço citadino
possuía uma assembleia
de notáveis ou homens- Sob o ponto de vista administrativo, o território português estava dividido em terras
-bons que elegia diversos
magistrados, estando (ou territórios) e em concelhos. As primeiras eram governadas por um rico-homem que,
também o rei aí na qualidade de delegado do rei, superentendia nos atos de administração e de justiça.
representado através de
magistrados nomeados Existiam, ainda, as terras pertencentes às ordens religiosas e ordens religiosas militares,
por si.
gozando de vários privilégios e imunidades, como a isenção fiscal.

Os concelhos eram fundamentalmente de dois tipos: rurais e urbanos. O seu número


? Questão e a sua distribuição geográfica estão diretamente ligados à Reconquista: em número re-

1. Quais eram os objetivos duzido no norte, onde havia uma forte presença senhorial; mais numerosos no sul e nas
dos reis portugueses ao terras do interior, em consequência das necessidades de povoamento e de exploração
doarem terras às Ordens
Religiosas e Militares? económica destas regiões.
Como se explica a sua
concentração no centro As áreas urbanas eram muito restritas. Lisboa, Évora, Porto e Coimbra eram as mais
e sul do País? importantes. A sua população incluía não só mercadores e mesteirais* mas também um
número significativo de camponeses. A separação entre o campo e a cidade estava longe
* Mesteirais: trabalhadores de ser real, coexistindo no interior das muralhas as atividades agrícolas, comerciais e ar-
em ofícios (mesteres) de tesanais.
artesanato ou indústria,
e alguns pequenos A invasão da Península pelos Bárbaros destruiu o modelo urbanístico romano assente
comerciantes (almocreves
e carniceiros); nas cidades no traçado regular das ruas e das praças e substituiu-o pelo emaranhado de ruas e rue-
mais importantes estavam las estreitas e tortuosas, irregularmente calcetadas, sem esgotos, comprimidas por uma
reunidos por profissões
numa mesma rua. A partir muralha circundante, que acompanha as irregularidades do solo (é a cidade a adaptar-se
do século XIII, crescem em
ao espaço, não o contrário). As ruas não eram pensadas para o transporte sobre rodas;
número e em força
económica e nos séculos eram sobretudo para as pessoas ou para os animais de carga utilizados como meios de
XIV e XV vão adquirir poder
na administração local. transporte(3). Algumas das ruas concentravam um mesmo tipo de lojas e ofícios e eram
mesmo identificadas pelos nomes das respetivas atividades: rua
dos sapateiros, dos caldeireiros, etc. Sentiam-se assim mais pro-
tegidos e vigiavam-se mutuamente. É o sentido corporativista tão
caracteristicamente medieval.

No centro da cidade encontravam-se as construções que cons-


tituíam o núcleo cívico da vida citadina: a Sé, para a qual se en-
caminham quase todas as ruas, uma praça aberta para o Paço
Municipal, local de mercado, de festas e de reuniões municipais
(Fig. 4).
Fig. 4. Panorâmica da
cidade de Coimbra. (3)
Nas zonas históricas das nossas principais cidades ainda hoje se podem observar estas características.
Unidade 2 - O espaço português – a consolidação de um reino cristão ibérico 35

As casas de habitação, com dois ou três andares, agrupavam-se em quarteirões, abran-


gendo estábulos, celeiros e lojas térreas abertas por uma só porta para a rua. Muitos des-
tes conjuntos dispunham de pátios interiores em geral com um único acesso da rua. Em
regra, a loja situava-se em baixo e os dormitórios no andar de cima com acesso através
de escadas estreitas. Os seus interiores eram austeros, amplos e pouco iluminados. As la-
reiras davam algum conforto, mas também a ameaça dos incêndios.

Na segunda metade do século XIII, o surto económico e demográfico trouxe algumas


alterações à organização das cidades: em alguns casos alargaram-se as cinturas amuralha-
das; noutros a população instalou-se no seu exterior, formando os arrabaldes.

– O exercício comunitário de poderes concelhios


Os concelhos, criados ou legalizados pelos forais, dispunham de graus variáveis de
autonomia. Esta exprime-se de várias formas: na existência de uma Assembleia Municipal
composta pelos homens-bons, dispondo do direito de eleger os seus magistrados, de
criar leis próprias e de organizar as suas forças militares; na garantia de determinadas li-
berdades individuais, como a posse de bens; e ainda na exclusão do exercício dos direi-
tos senhoriais na área municipal.

A autonomia (em grau variável) das comunidades concelhias era exteriorizada por cer-
tos símbolos: o selo municipal (Fig. 5); o pelourinho, local da execução das sentenças, para
além de símbolo da autonomia; a bandeira e certos emblemas representativos do espírito
Fig. 5. Selo do concelho
de solidariedade coletiva ou ainda certos elementos identificativos do concelho.
de Castelo Mendo,
do século XIII. Os símbolos
Se a autonomia(4) é o elemento essencial do regime do concelho, o exercício comuni-
escolhidos (neste caso a
tário dos poderes é o instrumento decisivo da sua realização. De facto, o concelho é fun- muralha) exprimem
damentalmente uma comunidade de vizinhos(5), embora tal não exclua a existência de sentimentos de autonomia
e de solidariedade coletiva
várias categorias sociais e direitos desiguais para os seus habitantes. das comunidades
concelhias.
Os magistrados eram em número variável e tinham diversas designações nos diferen-
tes concelhos. Os mais importantes eram os juízes, alcaides ou alvasis(6), supremos repre-
sentantes e dirigentes do concelho. Depois, funcionários com funções em áreas específicas:
os meirinhos (fisco e justiça); o almotacé(7) (economia); os mordomos (administração dos
bens concelhios); os sesmeiros (gestão das terras).

O rei estava sempre representado por um ou mais magistrados, por si nomeados: o ? Questão
alcaide ou juiz; o almoxarife (cobrança dos direitos régios); o mordomo do rei, (adminis-
1. Como se exprime
trador dos bens da coroa no concelho). Nos finais do século XIII, princípios do século XIV, a autonomia da vida
com o objetivo de reforçar o controlo real da vida concelhia, foram criados os corregedo- municipal?
res ou juízes de fora parte, delegados do rei nos concelhos e representantes destes nas
cortes. Foram ainda criados novos funcionários administrativos, os vereadores, com poder
de decisão em áreas importantes.

(4)
Com o tempo, sobretudo a partir de D. Afonso III, a política de centralização régia foi restringindo a autonomia muni-
cipal.
(5)
Vizinhos: com origem na palavra latina vicinorum, designa os habitantes com residência permanente na área do
concelho e com posses suficientes para pagar os tributos devidos.
(6)
Alvasis: vocábulo de origem árabe (al-wazir) que designa o mesmo que vereadores de um concelho.
(7)
Almotacé: do termo árabe al-muhtasib.
36 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

– A afirmação política das elites urbanas


O exercício dos poderes concelhios tinha uma natureza comunitária, mas tal não sig-
nifica que existia uma igualdade de direitos entre a comunidade de vizinhos. As diferen-
ças tornam-se mais notadas quando se analisa a superioridade social e económica dos
cavaleiros-vilãos ou homens-bons(8), uma verdadeira elite de proprietários alodiais* e mer-
cadores, sobre os peões(9) (Fig. 6), a grande maioria constituída pelos pequenos proprie-
tários, rendeiros, assalariados e mesteirais com baixos rendimentos.

A superior condição social e económica do cavaleiro-vilão ou homem-bom exprime-se


Fig. 6. Um peão no trabalho
do campo (Tomar, Museu num certo número de privilégios relativos à sua segurança pessoal, à aplicação da justiça
Lapidar do Castelo). e na posição cimeira que detinha na estrutura política concelhia. O seu poder económico
e influência social permitiram-lhes controlar os cargos e magistraturas municipais. Constituiu-
-se deste modo uma oligarquia municipal que foi restringindo cada vez mais a participa-
* Proprietários alodiais: ção política dos peões. Este facto reduziu significativamente o número de participantes nas
proprietários livres de
direitos e deveres assembleias municipais que, a partir do século XIV, passaram a reunir-se em recintos fe-
senhoriais; estavam chados. Daí o nome de “câmara” para designar o edifício onde se reuniam os titulares das
abrangidos pelas
obrigações de “fossadeira” magistraturas municipais.
paga em prestações
agrárias ou serviços
pessoais, para além do 2.3. O país rural e senhorial
pagamento do dízimo
à Igreja e de outras – O exercício do poder senhorial: privilégios e imunidades
imposições.
Como nos demais reinos europeus, em Portugal a nobreza era uma categoria social pri-
vilegiada, distinguindo-se pelo exercício de funções políticas e militares, que faziam dela
um auxiliar imprescindível da realeza. A nobreza, como as restantes ordens sociais, não
constituía uma categoria social homogénea. Na realidade, integravam-na grupos ou clas-
ses com níveis de rendimentos e até de estatuto muito diferenciados. Os ricos-homens,
magnatas conhecidos como nobres de “pendão e caldeira”(10), aproveitaram a luta contra
os Mouros para conquistar os favores do rei a quem os ligam laços de vassalagem, obter
* Imunidade: privilégio que a imunidade*, enriquecer e transformar-se no grupo mais importante de entre os nobres.
dava aos seus titulares um
Abaixo destes ricos-homens situava-se um grupo muito mais numeroso de proprietários
conjunto de regalias como
a isenção de pagamento de aristocratas, os infanções(11), e depois uma nobreza que vivia fundamentalmente do serviço
impostos à coroa, com
militar, os cavaleiros e escudeiros.
a consequente proibição
da entrada dos funcionários
A nobreza senhorial vivia da terra e das rendas dominiais, cobradas em espécie, di-
régios nos seus domínios.
nheiro ou serviço aos camponeses que cultivavam as suas propriedades, as honras, e
sobre os quais exercia uma jurisdição limitada. As honras beneficiavam de um conjunto
de privilégios e imunidades, como o direito de proibição de entrada a funcionários régios,
isenção do pagamento de impostos e autonomia judicial e administrativa.

(8)
Terminada a guerra com os Mouros a designação de “cavaleiro” deixou de fazer sentido e foi sendo substituída pela
de “homem-bom”, uma expressão mais adequada à nova realidade pós-Reconquista, já que recorda a riqueza e a
? Questão honra e não a função militar.
(9)
O termo “peão” tem origem no tipo de participação na guerra; não tendo posses para manter um cavalo e o res-
1. Como se explica a petivo equipamento, o peão combatia a pé.
formação de uma (10)
Esta denominação significa que os ricos-homens tinham o poder e a autoridade para arregimentar sob o seu
oligarquia política nos estandarte cavaleiros e peões e os meios para os sustentar no decurso de uma campanha militar.
concelhos? (11)
A partir do século XIII, os nobres por nascimento passam a ser vulgarmente designados por “fidalgos”.
Unidade 2 - O espaço português – a consolidação de um reino cristão ibérico 37

No entanto, a realeza manteve sempre o controlo sobre o poder senhorial reservando


para si determinados direitos, como a justiça maior (pena de morte ou corte de membros),
ou combatendo-o abertamente.

– A exploração económica do senhorio ? Questões


Os senhorios eclesiásticos (coutos) e laicos (honras e reguengos) eram constituídos por 1. Como se caracterizava
a economia senhorial?
propriedades relativamente extensas (contínuas e/ou descontínuas), num mundo agrário
2. Em que condições viviam
relativamente fechado que procurava a autossuficiência. Uma boa parte da propriedade
e trabalhavam os
senhorial era explorada diretamente pelo seu proprietário (a reserva) através de um homem camponeses dependentes?
da sua confiança e nela trabalhavam sobretudo os servos adscritos (ligados) à terra.

Uma outra parte era dividida em parcelas (casais, quintãs ou vilares) e entregues a
camponeses que as exploravam mediante determinadas condições: pagamento de uma
renda (censo, ração, porção, foro, renda, eirádega, terrádigo...), das geiras ou corveias
(trabalho gratuito ao longo do ano) e da dízima(12) à Igreja, entre outros tributos (peitas,
fintas, talhas...).

A prioridade da vida económica do País, tanto nos senhorios como fora deles, ia para
a produção de subsistências, para o cultivo dos cereais, bem como para a produção de
vinho e azeite, destinados não só ao consumo local como à troca dos excedentes, e ou-
tras atividades como a pastorícia e a criação de gado.

No litoral, a pesca, a extração do sal e o comércio marítimo eram atividades flores-


centes, funcionando até como atração para as gentes do interior.

– A situação social e económica das comunidades rurais dependentes


Mais do que uma extensa propriedade, o senhorio ou domínio senhorial era uma
comunidade hierarquizada de pessoas que viviam e trabalhavam em condições económi-
cas e jurídicas (direitos e obrigações) diferenciadas.

A massa de camponeses dependentes que trabalhava nos senhorios integrava catego-


rias e designações diversas. A população rural no seu conjunto tinha em comum uma vida
de penúria e de pobreza, agravada pelas fortes limitações quanto à sua mobilidade geo-
gráfica, em particular os servos adscritos à terra (com vínculo à terra).

A evolução da servidão veio introduzir significativas diferenças no seio da população


camponesa e estabeleceu novas formas de relação entre o trabalhador e a terra. Desapa-
receu assim a relativa uniformidade do século XI e surgiram diversas categorias de depen-
dentes com condições jurídicas, económicas e sociais distintas.

Ao norte do Douro havia algumas terras senhoriais, com a particularidade de os senho-


res poderem ser escolhidos pelos habitantes. Designavam-se estas terras por beetrias.
Tratavam-se de coletividades de homens livres que, preferindo a segurança à liberdade,
procuravam um nobre que os aceitasse sob a sua proteção.

(12)
Dízima: prestação correspondente a 10% da produção obtida na agricultura, na pesca, na salicultura e em outras
atividades; podia ser convertida em determinado montante de produtos ou de dinheiro.
38 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

Cronologia 2.4. O poder régio, fator estruturante da coesão interna do reino


Reinados dos primeiros reis
– A centralização do poder – justiça, fiscalidade e defesa
de Portugal
1143-1185 À cabeça do Reino encontrava-se o rei: chefiava o exército, administrava a justiça, ga-
D. Afonso Henriques.
rantia a ordem e a paz internas e dirigia as relações externas. Pertencia-lhe ainda, em ex-
1185-1211
clusivo, a prerrogativa de cunhar moeda, ou, como então se dizia, de “bater a moeda”(13).
D. Sancho I.
Por outro lado, os tribunais reais reservavam em exclusivo para si a aplicação da justiça
1211-1223
D. Afonso II. maior (pena de morte ou corte de membros), constituindo este facto uma limitação da ju-
1223-1248 risdição senhorial e ao mesmo tempo uma afirmação clara da supremacia da justiça real.
D. Sancho II. Outro direito era a aposentadoria(14) a que se obrigavam as terras onde o monarca e a sua
1248-1279 corte se instalavam nas deslocações pelo País.
D. Afonso III.
A legitimidade e a força da monarquia portuguesa têm fundamento na tradição visigó-
tica do exercício do poder real em nome de Deus(15); na propriedade de terras adquiridas
ao longo do processo da Reconquista; no caráter patrimonial do poder, indivisível e ina-
lienável, que legitimava a transmissão da realeza de pais para filhos segundo a regra da
primogenitura masculina. Aparentemente os poderes do rei não conheciam limites, já que
das suas decisões não existia apelo. No entanto, o rei jurava obedecer às leis e manter
as liberdades do Reino e proteger o clero e a nobreza, o que significava uma limitação ao
seu poder.

– A reestruturação da administração central e local – o reforço dos poderes da


? Questões
chancelaria e a institucionalização das cortes
1. Qual o significado da
intensificação do papel No desempenho das suas atribuições, o rei era auxiliado por um grupo de altos fun-
legislativo do rei a partir
cionários: o alferes-mor (chefiava o exército na ausência do rei); o mordomo da corte (res-
do século XIII?
ponsável pela administração da casa real); o chanceler (guarda do selo real). Até ao termo
2. Qual o significado da
presença dos procuradores da Reconquista, o primeiro era o mais importante, facto que se explica pela situação de
dos concelhos nas Cortes guerra. Terminada esta, organizou-se, a partir de então, a chancelaria régia à frente da qual
a partir de Leiria (1254)?
estava o chanceler, auxiliado por escrivães e notários, encarregados da redação e valida-
ção dos diplomas.

A partir do século XIII, foi criado o cargo de escrivão da puridade (secretário particu-
lar que acompanhava o rei nas suas deslocações) e foram criados novos funcionários es-
pecializados, como o porteiro-mor (superentendia na cobrança dos impostos) e o
tesoureiro-mor. A administração central integrava ainda um grupo restrito de conselheiros
do rei, a Cúria Régia, formada por favoritos régios, altos funcionários e membros da famí-
lia real. Entretanto, a Cúria daria origem a dois órgãos: o Conselho Régio, composto por
prelados, ricos-homens e militares, e as Cortes*.

* Cortes/parlamentos: As Cortes mais antigas de que há documentação realizaram-se em Coimbra (1211), no


assembleias com funções
essencialmente consultivas reinado de D. Afonso II. A sua importância deriva do facto de terem sido aí aprovadas as
e fiscais, convocadas pelo
rei e constituídas por
(13)
representantes das três O rei chamou a si não só o direito de “bater a moeda”, como também o direito de a “quitar” (quebrar, desvalori-
ordens sociais – clero, zar) ou “levantar” (elevar, revalorizar), ou seja de alterar o valor da moeda.
(14)
nobreza e povo. Aposentadoria: como o termo indica, consistia na hospedagem gratuita ao rei (ou senhores) e respetiva comitiva
quando passavam por uma localidade; tratava-se de um dos mais gravosos encargos suportados pelas populações
dependentes, tanto rurais como urbanas.
(15)
Os primeiros reis referiam sempre essa origem do seu poder, considerando-se por “graça” ou “vontade” de Deus.
Unidade 2 - O espaço português – a consolidação de um reino cristão ibérico 39

primeiras leis gerais que se conhecem no Reino. Em 1254, as Cortes de Leiria contaram Cronologia
já com a participação dos procuradores dos concelhos, o que revela o reconhecimento real
1210
do papel dos concelhos na administração do Reino e o seu interesse no apoio popular à D. Afonso II – 1.a Lei de
Desamortização.
política de controlo do clero e nobreza.
1220
O objetivo de reforço do poder real passou também por um controlo mais rigoroso da Primeiras Inquirições
(D. Afonso II).
administração local: dos concelhos e dos senhorios. Para isso, recorreu ao aumento do nú-
1254
mero e dos poderes de intervenção dos funcionários régios e a medidas legislativas de Reunião das Cortes de
combate à expansão senhorial. Leiria com representantes
do clero, nobreza e dos
concelhos.
– O combate à expansão senhorial e a promoção política das elites urbanas 1258
Inquirições Gerais de
Apesar da supremacia de que beneficiava a realeza, esta teve de impor um conjunto D. Afonso III.
de medidas de fortalecimento do poder real e de centralização administrativa no sentido 1284
Inquirições Gerais de
de limitar as prerrogativas senhoriais e controlar os abusos dos senhores.
D. Dinis.
D. Afonso II (1211-1223) criou o sistema das Confirmações, que obrigava a submeter os 1286
Lei de Desamortização de
títulos ou diplomas de posse dos bens à confirmação do rei, pretendendo desta forma aca- D. Dinis.
bar com os abusos de membros do clero e da nobreza e até dos concelhos, com a apro-
priação indevida de bens da coroa. Esta prática foi seguida por sucessivas Inquirições*, * Inquirições: inquéritos,
que permitiram ao rei identificar as ilegalidades, castigar e recuperar rendimentos. Com ob- a nível nacional, ao estado
dos direitos reais,
jetivos idênticos, foram elaboradas Leis de Desamortização, que proibiam a aquisição de ordenados pelo poder
bens de raiz aos eclesiásticos e às instituições religiosas, com o intuito de travar a con- central. Trata-se de uma
medida de fortalecimento
centração já considerável da propriedade fundiária na posse do clero. do poder real e de
centralização
Este processo de combate à expansão senhorial prosseguiu durante o século XIV. A de- administrativa que visava
bilidade do sistema vassálico* português facilitava a ação de controlo da realeza. D. Fer- combater os abusos contra
os interesses da coroa.
nando recusou o direito de justiça às honras constituídas a partir de 1325, com algumas
* Vassalidade: rede de
exceções. D. João I restringiu o direito de transmissão das terras doadas pela Coroa, me- solidariedades
dida que D. Duarte consagraria na Lei Mental (1434)(16). aristocráticas assente num
vínculo vitalício de
Ao mesmo tempo que prosseguia o combate à expansão do poder senhorial, a realeza dependência pessoal pelo
qual, em troca de
procurou atrair as elites urbanas à sua causa apoiando as suas atividades económicas, fidelidade e apoio, um
abrindo-lhes as portas da administração central e reforçando a sua influência nas estrutu- homem livre (vassalo)
recebe proteção e outras
ras administrativas locais. Mas a grande oportunidade de afirmação política da burguesia recompensas (benefício ou
urbana surgiu com a crise dinástica e a Revolução de 1383-1385. O seu apoio ao Mestre feudo) de um outro
(senhor).
de Avis, proclamado Rei nas Cortes de Coimbra de 1385, trouxe importantes contrapartidas
* Legistas: homens com
às elites urbanas: os legistas* assumiram lugares importantes na administração central, formação jurídica. Nos finais
nomeadamente no Conselho do Rei onde acederam e em maioria; os mercadores reforça- da Idade Média, a política
de centralização régia
ram a sua influência junto da Coroa e beneficiaram de vários apoios reais (Bolsa de abriu-lhes lugares na
Mercadores, 1293, acordos comerciais…); e os mesteirais ascenderam ao governo das cida- administração central,
adquirindo então grande
des desafiando a força, até então dominante, dos proprietários e mercadores(17). importância política.

(16)
Segundo a Lei, a Coroa mantinha os seus direitos sobre as doações régias e estas só poderiam ser herdadas pelo
filho varão legítimo; caso não se verificassem estes pressupostos, tais bens seriam reintegrados na Coroa.
(17)
Nas Cortes de Coimbra de 1385 ficou assente que, de futuro, pertenceria a dois homens de cada mester (ofício) as
seguintes atribuições: a eleição dos magistrados municipais; a designação de funcionários; a elaboração das postu-
ras (leis) municipais; a fixação dos impostos.
40 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

– A afirmação de Portugal no quadro político ibérico


Cerca de um século e meio depois do reconhecimento de D. Afonso Henriques (Fig. 7)
como Rei por parte de Castela no Tratado de Zamora (1143), um novo tratado entre os dois
Reinos, assinado na localidade castelhana de Alcanises (1297), definia de forma pratica-
Fig. 7. Palavra-sinal
Portugal no selo real mente definitiva o território do Reino de Portugal.
de D. Afonso Henriques.
Mas esse facto só por si não podia garantir a viabilidade da independência de Portu-
gal. A resistência à poderosa força de atração de Castela não estava garantida. Era neces-
sário que o País fosse capaz de construir uma identidade ou individualidade nacional,
condição essencial para a sua sobrevivência como Estado independente. D. Dinis, o Rei La-
vrador, estava consciente desse facto quando se reuniu com o rei de Castela em Alcanises.

Por isso, estabilizada a linha de fronteira, as prioridades do seu reinado foram: a de-
fesa, investindo os seus esforços na organização da marinha e na reparação dos castelos
na fronteira para prevenir qualquer invasão de Castela; o fomento do povoamento e das
atividades económicas, em particular da agricultura e do comércio; e a criação de um nú-
cleo cultural português, promovendo uma cultura nacional, fazendo da corte real um polo
de produção e de difusão de cultura (ele mesmo deu o exemplo como poeta e trovador)
e dotando o Reino de escolas e de um Estudo Geral.

Cronologia Os esforços dos nossos monarcas para formarem uma individualidade nacional suficien-
temente forte para afirmar Portugal no quadro político peninsular tiveram a sua grande
1143
Tratado de Zamora. prova na Revolução de 1383-1385 (Fig. 8). Os patriotas agrupados em redor do Mestre de
1248 Avis tinham consciência do que estava em causa com a proclamação da Rainha D. Bea-
(Re)conquista do Algarve.
triz: a sobrevivência de um Estado, mas também a preservação de um sentimento nacio-
1297
Tratado de Alcanises. nal que tinha já então consciência da sua individualidade. Consolidada a independência
1383 nacional, Portugal pôde partir então para a grande empresa planetária dos Descobri-
Morte de D. Fernando:
regência de D. Leonor em mentos.
nome de D. Beatriz
e D. João de Castela.
1384
D. João de Castela cerca
Lisboa.
1385
Cortes de Coimbra:
aclamação de D. João I, Rei
de Portugal.
Batalhas de Aljubarrota,
Trancoso e Valverde.
1415
Conquista de Ceuta: início
da expansão ultramarina
portuguesa.

Fig. 8. A vitória na Batalha de Aljubarrota (14 de agosto de 1385) foi determinante para a consolidação da
identidade nacional e a afirmação de Portugal no quadro político ibérico.
Unidade 3 - Valores, vivências e quotidiano 41

Unidade 3 Valores, vivências e quotidiano


SUMÁRIO

3.1. A experiência urbana


3.2. A vivência cortesã
3.3. A difusão do gosto e da prática das viagens: peregrinações e romarias; negócio e misssões
político-diplomáticas

APRENDIZAGENS RELEVANTES

- Compreender as atitudes e os quadros mentais que enformam a sociedade da época, dis-


tinguindo cultura popular de cultura erudita**. * Arte gótica: expressão
- Desenvolver a sensibilidade estética através da identificação e apreciação de obras artís- com sentido pejorativo
usada a partir do
ticas do período medieval. Renascimento para
- Valorizar formas de organização coletiva da vida em sociedade. qualificar uma arte
“bárbara”, atribuída aos
Godos, invasores do
CONCEITOS/NOÇÕES Ocidente durante a Alta
Confraria, Corporação, Universidade, Cultura erudita**, Cultura popular**, Arte gótica, Época Idade Média; hoje designa
um estilo de arte que se
medieval difundiu na Europa a partir
de França do século XII ao
* Conteúdos de aprofundamento início do século XVI,
** Aprendizagens e conceitos estruturantes caracterizada pelos seus
novos elementos
arquitetónicos (ogivas,
arcobotantes), pelo sentido
do espaço e a integração
3.1. A experiência urbana dos diferentes volumes,
pela verticalidade e beleza
– Uma nova sensibilidade artística – o gótico das suas linhas.

No domínio artístico, o novo espírito do mundo urbano expressa-se na nova


arte gótica*, nascida da rutura com a tradição românica. Com o seu berço na
Ilha-de-França, no Noroeste de França, na primeira metade do século XII, o
estilo gótico é contemporâneo e produto do surto das cidades no Ocidente, um
espaço de prosperidade e liberdade favorável à criatividade e à inovação.

A arquitetura
As construções góticas (Fig. 1) exprimem conceções inteiramente novas: o
edifício é entendido como um todo organizado, cujas partes adotam formas
determinadas segundo a sua função no conjunto; o arco de volta inteira é subs-
tituído pelo arco quebrado ou ogival, inovação que veio resolver o problema
da abóbada sobre o cruzeiro(1); o peso da abóbada em ogiva (com nervuras) é
transportado para os contrafortes exteriores através dos arcobotantes(2), liber-
tando deste modo as paredes e tornando possível rasgar amplas janelas que
solucionaram o problema da iluminação.
Fig. 1. Catedral de Notre-
-Dame de Chartres
(1194-1220). Exuberante
(1)
Cruzeiro: cruzamento da nave central com o transepto. expressão de verticalidade,
(2)
Arcobotante: solução encontrada pelos arquitetos góticos para neutralizar a pressão da abóboda sobre as paredes luminosidade e amplidão
laterais. do gótico clássico.
42 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

Cronologia A primeira grande construção do gótico é a Abadia de Saint-Denis, iniciada em 1137


por iniciativa do Abade Suger. Esta e outras grandes abadias, como a de Saint-Martin-
O Gótico: a arte das catedrais
-des-Champs, exteriores aos grandes centros urbanos, marcaram a primeira fase do gótico,
c. 1144
Abadia de Saint-Denis mas a construção mais representativa do gótico é a catedral. Trata-se de um tipo de
(França). edifício com planta alargada, com uma ou várias naves (a central mais ampla e elevada),
1155-1225
Catedral de Laon. trifório, charola com capelas absidiais e rosáceas. As fachadas apresentam portais, deco-
c. 1163 rados com esculturas e relevos, e torres, de planta quadrada terminada em terraços ou
Início da construção da em flechas. As suas características fundamentais são a verticalidade, luminosidade e
Catedral de Notre-Dame de
Paris. amplidão.
1194-1220
O desejo incontido de manifestar de forma exuberante a alegria pela vida, pela redes-
Catedral de Chartres.
1223 coberta do homem e do mundo, o Gótico evoluiu para fases onde a prioridade era dada
Início da construção da à exuberância decorativa e ao movimento (multiplicação das linhas ascendentes culmi-
Catedral de Burgos.
nando em agulhas e pináculos, o jogo de curvas e contracurvas), culminando no século
1248-1322
Catedral de Colónia. XV, no chamado gótico flamejante (de flama, chama).
1250
Catedral de Siena. A escultura
A escultura gótica revela na sua fase inicial um formalismo e rigidez quase românicos.
Outro aspeto característico da escultura deste período é o seu caráter monumental que
decorre da sua integração na arquitetura.

Nos séculos XII e XIII, a escultura gótica regista uma evolução no sentido de uma
representação mais expressiva, naturalista e humanizada (Fig. 2), ainda que procure um
tipo de beleza ideal e serena dentro de certos convencionalismos. Progressivamente, vai
abandonando a arte monumental, entrando no realismo e tornando-se independente da
arquitetura.
Fig. 2. Virgem com o
Menino (Nuno Pisano, Pisa, A pintura
Igreja de Santa Maria).
Tema muito comum da Na pintura gótica sobressai o vitral (Fig. 3) que aparece como um elemento inte-
escultura gótica. O realismo
e a expressividade da grante da arquitetura. As soluções técnicas encontradas para o problema da descarga
representação transformam do peso das abóbodas permitiu abrir janelas e aumentar substancialmente os espaços
a Virgem numa figura
simples de mulher e mãe,
abertos preenchidos e decorados com o vitral. Para o homem medieval, a luz era uma
igual a tantas outras. forma de manifestação divina, razão pela qual as representações projetadas no interior
das edificações através dos vidros coloridos produziam uma forte impressão mística. As
figuras e cenas mais recriadas nos vitrais são temas religiosos, como a vida de Cristo,
da Virgem e dos santos ou ainda os trabalhos dos diversos ofícios.

Uma outra técnica que marcou a última etapa da pintura gótica é a pintura de retá-
bulos que substitui e impõe-se à pintura mural.

Também a iluminura(3) recuperou gradualmente a sua importância. O renovado inte-


resse por esta técnica de pintura está relacionado com os gostos requintados do mundo
urbano e das cortes europeias.

Fig. 3. Vitral alusivo à (3)


Iluminura: pintura, sobre pergaminhos e manuscritos, de representações de figuras, cenas ou ornatos em minia-
Última Ceia. tura que formavam pequenos quadros num livro, ou ainda decorações das letras maiúsculas.
Unidade 3 - Valores, vivências e quotidiano 43

– As mutações na expressão da religiosidade: ordens mendicantes e confrarias* Cronologia

Como reação à mundanização da Igreja surgiram nos séculos XII-XIII diversas seitas 1210
religiosas, como a dos albigenses(4) e a dos valdenses(5), que condenam a vida de luxo Inocêncio III aprova
a Ordem Franciscana criada
da hierarquia eclesiástica, apregoam o ideal de pobreza e de sacrifício do Sermão da por S. Francisco de Assis.
Montanha, negam o purgatório, as indulgências, o sacerdócio e o culto dos santos, amea- 1209-1229
Cruzada contra os
çando desta forma a autoridade da Igreja Católica e a ortodoxia da Fé. Albigenses (no sul de
França).
O Papado reage com a reunião do IV Concílio de Latrão, em 1215(6), que cria um tri-
1216
bunal episcopal para a perseguição das heresias. Em 1231, Gregório IX coloca-a sob a Honório III confirma
direção e o controlo direto dos delegados pontifícios, criando a Inquisição papal, com a a Ordem Dominicana
fundada por S. Domingos.
missão de combater as doutrinas contrárias à ortodoxia.
1215
IV Concílio de Latrão:
Para este combate o Papado não poderia contar com as velhas instituições monásti-
instituição de um tribunal
cas contemplativas refugiadas nos seus mosteiros. Esse papel foi confiado às novas ins- episcopal - a Inquisição.
tituições religiosas, fundadas nos ideais evangélicos de pobreza e de fraternidade da 1232
O papa Gregório IX cria
Igreja primitiva, as Ordens Mendicantes dos Franciscanos (São Francisco de Assis) e dos a Inquisição papal.
Dominicanos (São Domingos), vocacionadas para o ensino e a pregação.

Estas novas formas de religiosidade motivaram também a ação dos leigos, impulsio-
* Confrarias: irmandades
nando em particular a criação das confrarias*.
constituídas sob
o patrocínio de um santo,
– A expansão do ensino elementar com estatutos e rituais
próprios, reunindo
A evolução demográfica, económica, social e cultural verificada na Europa nos sécu- frequentemente homens
da mesma profissão, tendo
los XII e XIII não poderia deixar de se refletir no ensino. A vida intelectual era até então
como objetivo a prática da
quase exclusivamente um domínio clerical. As escolas catedrais (nas sés episcopais) e as caridade.
escolas monásticas (nos mosteiros) eram totalmente controladas pelas autoridades ecle-
siásticas e destinavam-se à instrução dos homens da Igreja. Por outro lado, o ensino aí
ministrado permanecia essencialmente oral e limitava-se em geral ao ensino do cate-
cismo, escrita, música e aritmética.

Para responder às novas necessidades sociais, a partir de meados do século XII são
criadas escolas laicas. Desta forma, o ensino deixou de estar ligado exclusivamente à
preparação dos futuros clérigos. A prática do comércio tornava indispensável o conheci-
mento da leitura, da escrita e do cálculo. O ensino destas escolas era no entanto de nível
elementar. Todos aqueles que queriam um saber mais completo teriam de procurar as
instituições do clero.

– A fundação de universidades
No contexto do renascimento económico, urbano e cultural dos séculos XII-XIII e cor-
respondendo às novas necessidades e expectativas sociais, alguns mestres com elevado
prestígio reuniram à sua volta estudantes interessados em partilhar dos seus saberes.

(4)
Albigenses (de Albi, no sul da França), ou cátaros (do grego, puros): a difusão desta heresia (sécs. XI-XIV) que pre-
conizava uma renovação moral e espiritual baseada na antítese entre o bem (Deus) e o mal (Satanás) levou o papa
a pregar uma cruzada (guerra) contra eles (1209-1229).
(5)
Valdenses: seita religiosa fundada pelo comerciante de Lyon, Pedro Valdo, que pregava o ideal de pobreza e a per-
feição evangélica, obtendo bastante adesão no norte de Itália.
(6)
O Concílio foi particularmente duro para com os judeus: foram proibidos de ocupar cargos, obrigados a usar um
vestuário que os distinguisse dos demais e confinados a ghettos.
44 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

* Universidade: (universitas Daqui surgiu um novo tipo de comunidade de intelectuais, associando professores e
magistrorum et
scholarium) comunidade alunos, constituídos em corporação, a universitas magistrorum et scholarium. A palavra
ou corporação de mestres universidade* (universitas) significa na Idade Média “corporação”. A expressão que
e alunos, com instituições
próprias, destinada exprime a ideia de universidade, no sentido de instituição escolar, é o estudo geral
a aprofundar os estudos. (studium generale). Sustentados frequentemente pelo soberano e pelo papa, os estudos
Dirigida por um reitor,
dividia-se em Faculdades, gerais dispõem de estatutos próprios e de privilégios como qualquer outra corporação
geralmente quatro: profissional.
Teologia, Direito (canónico
e civil), Medicina e Artes A partir do século XIII, os estudos universitários eram feitos no interior de Faculdades
(letras e ciências); atribuía
os graus de bacharel, especializadas em determinadas matérias. Nem todas as universidades tinham o mesmo
licenciado e mestre. currículo.

O ensino nas universidades era ministrado em latim e o método usado era a escolás-

Cronologia tica, baseado sobretudo na leitura e comentário pelo mestre (ensino magistral) de textos
dos sábios e filósofos antigos. As universidades conferiam os graus de bacharel, licen-
Principais universidades
europeias dos séculos
ciado e doutor.
XII-XIII
Temendo pelo seu prestígio e para evitar desvios das suas doutrinas, a Igreja con-
1119 Bolonha
1125 Montpellier trola a sua criação, bem como as matérias e as práticas de ensino. Em Portugal, a cria-
1150 Paris ção do ensino universitário foi aprovada em 1290 por uma Bula do Papa Nicolau IV, con-
1168 Oxford
1224 Pádua cedida na sequência de uma petição feita em 1288 por vários Abades e Priores e com o
1241 Siena apoio do rei D. Dinis.
1244 Salamanca
1290 Lisboa
3.2. A vivência cortesã
– A cultura leiga e profana nas cortes régias e senhoriais: educação cavaleiresca,
? Questões
amor cortês, culto da memória dos antepassados
1. Como se explica
a criação das O renascimento urbano e o desenvolvimento da burguesia e das atividades económi-
universidades? cas nos séculos XII e XIII foram modificando os padrões de vida, a visão do mundo e a
escala de valores das elites da sociedade medieval. Ao mesmo tempo, a afirmação das
monarquias feudais favoreceram a multiplificação das cortes régias e senhoriais. Os reis
* Cultura popular:
manifestações culturais e senhores acolhem nos seus castelos fortificados intelectuais e artistas para animar e
fundadas na tradição e no prestigiar as respetivas cortes, transformando-as em centros de produção e difusão de
costume, caracterizadas
por uma grande uma cultura leiga e profana. Trata-se de uma cultura popular* de natureza profana abor-
espontaneidade dando, em linguagens vulgares (nacionais), temas diversificados, desde os feitos épicos
e irreverência, produzidas
pelo povo e transmitidas e cavaleirescos à lírica, com objetivos mais lúdicos que didáticos, distinta da cultura
de geração para geração, erudita*.
principalmente, por via oral.

* Cultura erudita: Os ideais cavaleirescos de coragem na luta e de fidelidade aos ideais cristãos inspi-
manifestações culturais raram os cantares épicos, escritos em língua vulgar, como as canções de gesta france-
que expressam
pensamentos estruturados sas, das quais a mais célebre é a Canção de Rolando ou o Poema del Mio Cid (c. 1140),
e produzidas por uma elite na Península Ibérica.
ou minoria de intelectuais,
geralmente pertencentes A partir do século XIII, expande-se a poesia trovadoresca provençal (oriunda da Pro-
às categorias sociais
superiores. É uma cultura vença, região do sul de França) cujo tema fundamental era o amor cortês: um amor-vas-
que a sociedade valoriza salagem envolto em disfarce, ou “mesura”, necessário à preservação do segredo sobre a
como superior ou
dominante. identidade da amada (uma mulher casada). As emoções e as subtilezas de gestos e
Unidade 3 - Valores, vivências e quotidiano 45

linguagem do amor cortês adaptavam-se bem ao gosto cerimonioso e ao artificialismo Cronologia


cortesãos. Ao mesmo tempo, vai-se enraizando nas cortes o gosto pelo romance cortês
Sécs. XI-XII
em prosa, menos rude do que a canção de gesta, de que se destacam Cavaleiros da Canção de Rolando.
Távola Redonda, de Chrétien de Troyes, e Demanda do Santo Graal. c. 1140
Poema del Mio Cid.
Para além da ficção narrativa, as cortes europeias alimentam também um grande inte- Sécs. XII-XIII
Demanda do Santo Graal.
resse pela narração dos factos verídicos, pela narrativa história, sob a forma de crónicas.
1160
O culto da memória dos antepassados está assim na origem do desenvolvimento da his- Tristão e Isolda, de
toriografia, que teve na Península Ibérica um desenvolvimento superior ao do resto da Godofredo de Estrasburgo.
Europa medieval, destacando-se os célebres Annales Portucalenses Veteres (século XII) 1170
Lancelot e Perceval, de
e a Crónica Geral de Espanha (c. 1270) elaborada na corte castelhana de Afonso X, o Chrétien de Troyes.
Sábio (1252-1284) Séc. XIII
Amadis de Gaula
Crónica Geral de Espanha.
3.3. A difusão do gosto e da prática das viagens: peregrinações e
romarias; negócios e missões político-diplomáticas
Cronologia
O interesse e a necessidade do saber fizeram crescer o número das universidades e
1096-1099
das escolas públicas, laicas. Muitos estudantes e clérigos deslocam-se entre os vários Primeira Cruzada ao
centros de culto e de saber. As grandes universidades europeias, como Paris, Bolonha, Oriente.
Oxford, Lovaina ou Salamanca, acolhem estudantes de todas as regiões. 1204
Tomada de Constantinopla
pelos Cruzados.
Ao mesmo tempo, a pregação pelas Ordens Mendicantes de uma religião mais pró-
1260-1266
xima dos ideais evangélicos de pobreza e sacrifício da Igreja primitiva despertou novas Primeira viagem dos
e mais intensas manifestações de religiosidade, incentivando à realização das peregrina- venezianos Niccolo e Mateo
Polo na Ásia.
ções aos principais lugares do culto cristão, em especial, a Terra Santa, Roma e Santiago 1267
de Compostela. Os peregrinos fazem longas jornadas, levam e trazem notícias, promo- Mercadores portugueses
na feira de Lille.
vem o comércio e os serviços.
1271-1295
Marco Polo percorre
O florescimento das cortes régias e senhoriais transformou estas em polos muito ati- o Oriente.
vos de produção e difusão de cultura, atraindo um número crescente de pessoas que aqui 1275
Aparecimento do portulano
procuram proteção, oportunidades de enriquecimento e de promoção social. A vida cor-
(carta marítima).
tesã estimula realizações de caráter lúdico e cultural: saraus, torneios, caçadas, banque-
tes e com eles a circulação de trovadores, jograis, mensageiros...

As casas reais europeias empenhadas em reforçar os seus poderes têm necessidade


de estabelecer alianças e tratados entre si, reunir esforços para enfrentarem a oposição
dos senhorios feudais ou ameaças externas. Daí a importância das missões diplomáticas
em cortes estrangeiras, embaixadas que negoceiam acordos políticos e económicos e
também de natureza amorosa.

Os limites estreitos do senhorio feudal e o sedentarismo quotidiano do homem


medieval não tardarão a ser rompidos de forma decisiva.
46 Módulo 2 - Dinamismo civilizacional da Europa Ocidental nos séculos XIII a XV – espaços, poderes e vivências

Questões para Exame


1

Documento 1 | O trabalho rural num senhorio Documento 2 | O afolhamento trienal


medieval (séc. XIII)
Um grande progresso reside no hábito, iniciado
nos séculos XI-XIII, de fazer três afolhamentos, e não
dois (...). Escusado será dizer que o afolhamento trie-
nal se divulgou com extrema lentidão, a princípio
(...). O novo afolhamento só a pouco e pouco se
desenvolve de forma sistemática. (...). Este facto tor-
nava possível assegurar uma maior variedade e
abundância de alimentos não só para os homens,
mas também para os animais; o aumento da produ-
ção de aveia deu um impulso decisivo na criação de
gado cavalar. Esta (a produção de aveia) é uma das
bases económicas da cavalaria feudal e, é preciso
não esquecer, que o cavalo foi também muito utili-
zado nos trabalhos agrícolas.
UNESCO (1967), Histoire de l´Humanité, vol. I.

Documento 3 | As rotas e o comércio na Europa no século XIII

Mar
do
Norte

1.1. A partir dos documentos 1 a 3, explique o aumento da produção agrícola na Europa Ocidental nos
séculos XI-XIII.

1.2. Explique o dinamismo comercial e financeiro europeu no século XIII (doc. 3).
Questões para Exame 47

Documento 4 | Carta de Foral de Vila Nova de Cerveira (1321)

Dom Dinis (...). A vós, João Soares (...) e a Gil Martins (...) e a (...). Bem sabedes em como era meu
talante(1) de fazer uma póvoa a par do meu castelo de Cerveira, e enviei-vos sobre isso minha carta para
saberdes se havia aí homens que o quisessem povoar e enviaste (dizer) que havia aí peças grandes(2) deles,
que o queria fazer, e que vos pediam para acoileramento(3) dessa póvoa vinte e oito casais.

In Saraiva, J. H. (1983), História de Portugal, Origens-1245, Lisboa, Alfa.

(1)
vontade
(2)
grande número
(3)
divisão do termo em coirelas ou casais.

Documento 5 | As Cortes portuguesas no século XIII Documento 6 | Inquirições de D. Dinis, 1288

Ano Localidade Assunto

1211 Coimbra Leis gerais


1250 Guimarães Reclamações do clero
1254 Leiria Quebra da moeda
1261 Coimbra Quebra da moeda
1273 Santarém Reclamações do clero
1280 Évora Inquirições gerais
1285 Lisboa Inquirições gerais
1288 Guimarães Questões com o clero
1289 Lugar desconhecido Reclamações da nobreza
1291 Coimbra Lei sobre heranças
(ordens religiosas)

2.1. Integre os documentos 4 a 6 na caracterização dos poderes em Portugal na época medieval, especi-
ficando, nomeadamente:

– composição e diversidade de estatuto dos membros da sociedade portuguesa;

– fundamentos da legitimidade e força da monarquia portuguesa;

– o relacionamento do poder régio com os poderes senhoriais e concelhios.


48 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

10.° Ano Módulo 3


A abertura europeia ao mundo – mutações nos
conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

1. A geografia cultural europeia de Quatrocentos e Quinhentos


2. O alargamento do conhecimento do mundo
3. A produção cultural
4. A renovação da espiritualidade e da religiosidade
5. As novas representações da Humanidade

Contextualização
O movimento das Descobertas iniciado pelos Portugueses, logo secundados pelos Espa-
nhóis, iniciou o processo de desencravamento dos diversos “mundos” do Mundo. Ao fazê-lo,
deram à Europa o domínio dos mares e com ele a oportunidade de afirmar a sua hegemonia
sobre o planeta. Ao mesmo tempo, forneceu aos europeus uma nova e correta visão sobre
a geografia física da Terra e sobretudo promoveu o encontro entre povos e culturas que até
então se ignoravam mutuamente, retirando daí a prova da unidade e da universalidade do
género humano.
Em estreita ligação com os Descobrimentos, o Renascimento e o Humanismo operaram uma
verdadeira revolução cultural e social numa Europa que procurou na reinvenção das origens
da sua matriz cultural e na renovação da sua espiritualidade e religiosidade o reencontro
consigo própria e o encontro com o outro. Os tempos medievais não foram, pois, estéreis,
nem uma “época de trevas”, como se pretendeu classificar este longo período histórico.

Unidade 1 A geografia cultural europeia de Quatrocentos e Quinhentos

SUMÁRIO
– Principais centros culturais de produção e difusão de sínteses e inovações
– O cosmopolitismo das cidades hispânicas – importância de Lisboa e Sevilha

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Reconhecer o papel de vanguarda dos Portugueses na abertura europeia ao mundo e a sua
contribuição para a síntese renascentista.

CONCEITOS/NOÇÕES
Navegação astronómica; Cartografia
Unidade 1 - A geografia cultural europeia de Quatrocentos e Quinhentos 49

– Principais centros culturais de produção e difusão de sínteses e inovações


A Europa dos séculos XV e XVI constituiu um tempo e um espaço de produção e difu-
são de novas conceções, valores e atitudes, uma época de grandes reformas que trans-
formaram as formas do pensamento e da atividade humanas e exerceram uma profunda
influência nos domínios das artes, das letras e das ciências.
Este movimento de renovação teve o seu berço em Itália. Em Florença, os Médicis,
agrupam à sua volta uma “academia” de letrados e artistas, exemplo que seria seguido
por outros banqueiros, pelas igrejas e conventos e pelo próprio governo da cidade. Esta
prática de mecenato(1) foi fundamental para fazer de Florença o principal centro artístico
de Quatrocentos.
Nos finais do século XV, a expulsão dos Médicis de Florença e a instabilidade política
? Questão
e social que se lhe seguiu levaram os artistas e letrados a refugiarem-se em Roma cujos
papas Alexandre VI Borgia (1492-1503), Júlio II (1503-1513) e, em especial, Leão X (1513- 1. Como se explica que as
-1521) desejam transformá-la na capital de um império cristão. Milão, Génova e, sobretudo, cidades italianas tenham
sido a “vanguarda” da
Veneza, grande potência comercial, constituem outros tantos polos de arte e cultura. renovação e progresso
cultural nos séculos XV
A partir de Itália, os novos princípios e valores difundiram-se pela Europa ocidental. As e XVI?
peregrinações a Roma, o comércio, as relações diplomáticas entre as cortes europeias, o
gosto pelas viagens, a criação da imprensa moderna (1440) por Gutenberg e os progres-
sos técnicos na navegação favoreceram essa difusão. Em volta das universidades e nas
grandes cidades mercantis, como Paris, Lião, Londres, Praga, Viena, Cracóvia, Augsburgo
e Nuremberga, formaram-se círculos de letrados e artistas que, apoiados pelos monarcas
e pelos homens de negócios, tornaram estas cidades grandes centros de cultura.

– O cosmopolitismo das cidades hispânicas – importância de Lisboa e Sevilha


Cronologia
No século XVI, Lisboa é a cabeça de um vasto e disperso Império que pôs em con-
tacto, através do Atlântico e do Índico, povos da Europa, da África, da América do Sul 1494
Assinatura do Tratado de
(Brasil) e do Extremo Oriente que até então se ignoravam mutuamente. O Porto no estuá-
Tordesilhas entre Portugal
rio do Tejo exporta para os mercados europeus, via Antuérpia, a pimenta e outras espe- e Espanha.
ciarias indianas, o açúcar, as pedras preciosas, o mobiliário de luxo, as madeiras exóti- 1498
Chegada de Vasco da Gama
cas e o ouro, que lhe chegam de todos os quadrantes do Império, e o vinho, a cortiça, à Índia (Calecute).
os corantes naturais e o sal do Reino. É ainda a porta de entrada de numerosos artigos 1500
manufaturados e matérias-primas essenciais: os têxteis ingleses, flamengos, alemães e Pedro Álvares Cabral
descobre o Brasil.
italianos; os metais e a madeira da Alemanha e da Holanda; o trigo embarcado nos por-
1501
tos do norte da Europa... Pedro Álvares Cabral
regressa a Lisboa com
Lisboa é a base de apoio da empresa ultramarina: alberga o principal agente merca- o primeiro carregamento
dor, o monarca e a sua corte, e o organismo regulador e controlador dessa empresa, a de especiarias.
Casa da Índia(2), que dirige e explora o lucrativo comércio oriental das especiarias pela Rota 1502
Fundação da Casa da Índia
do Cabo que, até 1570, o próprio rei reserva para si sob a forma de monopólio régio(3). (Lisboa).
(1)
Mecenato: proteção às letras e às artes, levada a cabo por homens ricos e poderosos, que acolhem e apoiam os
1510
intelectuais e os artistas. Conquista de Goa por
(2)
A Casa da Índia, fundada pelo rei D. Manuel em 1502, cobrava direitos, estabelecia os contratos por conta do rei com Afonso de Albuquerque.
os negociantes e os exploradores, organizava as frotas, controlava a carga e descarga dos navios e fazia o registo 1513
de todos os navios portugueses largados de Lisboa. Chegada dos Portugueses
(3)
Monopólio régio: em 1504, o Estado impôs o seu controlo sobre o comércio do Oriente através da Casa da Índia. Em à China.
1506, a Coroa estabeleceu um monopólio sobre todas as importações de ouro, prata, cobre e coral e sobre o tráfico
entre Goa e as feitorias mais importantes. Neste quadro, que durou até 1570, apenas o Estado podia armar e enviar 1580-1640
navios para o Índico. União Ibérica.
50 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia Capital política e económica, Lisboa é no século XVI uma grande cidade mesmo à
escala europeia, atraindo as elites mercantis e financeiras e culturais de todas as partes
1492
Castela conquista o reino do continente europeu, reforçando o seu caráter cosmopolita.
muçulmano de Granada.
Cristóvão Colombo chega
Sevilha, com a descoberta do Novo Mundo e o tráfico da América (metais preciosos,
às Antilhas. sobretudo a prata(4), as pérolas, os produtos de tinturaria como a cochonilha, o índigo,
1503 corantes e couros), tornou-se na capital do negócio e da banca de Espanha. Servida pelo
Fundação da Casa de
Contratación (Sevilha). porto de Cádis e sede da Casa de Contratación (1503), viu a sua importância crescer em
1519-1522 paralelo com o desenvolvimento da expansão espanhola e conquistou um lugar próprio
Fernando Cortés conquista nas grandes rotas comerciais europeias. A concessão pelo monarca do monopólio do trá-
o Império Asteca e refunda
o México. fico com as Índias Ocidentais a esta cidade transformou-a num polo de atração para os
1524 homens de negócios de toda a Europa: portugueses, flamengos, genoveses, franceses,
Sevilha recebe o monopólio
alemães e bretões. O elevado poder de compra da sua população e os altos salários que
do comércio colonial
espanhol. aí se praticavam proporcionavam ótimas oportunidades de negócios e constituíam pode-
1532 rosos fatores de atração.
Francisco Pizarro conquista
o Império Inca (Peru). Da Europa do Norte, recebe metais, panos, armas, bacalhau e trigo. Exporta vinhos,
1545 azeite e conservas de frutos, e reexporta para a América os géneros alimentícios, armas,
Início da exploração das
minas de prata do Potosi tecidos e utensílios de ferro e cobre, importados dos países europeus, fornecendo-a ainda
(Peru). do mercúrio, um produto essencial para a extração da prata.

No século XVI, Lisboa e Sevilha têm muito em comum: devem a sua fortuna às Des-
cobertas. Por outro lado, apesar da sua importância económica e política, Lisboa e Sevi-
lha não puderam, ou não souberam, tirar todo o partido da supremacia colonial, que deti-
veram e assumir o papel de centro da economia europeia de quinhentos. Esse lugar
coube a Antuérpia que explorou muito bem as suas potencialidades e as fraquezas do
capitalismo ibérico.

O AFLUXO DE METAIS PRECIOSOS MOVIMENTO DOS NAVIOS PORTUGUESES


A SEVILHA COM DESTINO AO ÍNDICO
Anos Ouro (kg) Prata (kg) Partida Chegadas
Anos
de Lisboa ao Oriente
1503-1510 4965 0
1511-1520 9153 0 1500-1509 138 128
1521-1530 4889 148 1510-1519 96 90
1520-1529 76 61
1531-1540 14 466 86 193 1530-1539 80 69
1541-1550 24 957 177 573 1540-1549 61 55
1551-1560 42 620 303 121 1550-1559 51 40
1560-1569 49 42
1561-1570 11 530 942 858 1570-1579 54 51
1571-1580 9429 1 118 592 1580-1589 56 47
1590-1599 44 37
1581-1590 12 101 2 103 027
1591-1600 19 451 2 707 626 Totais 705 620

Vilar, P. (1980), Ouro e Moeda na História, Lisboa, Europa-América, p. 126.

(4)
De início, o valor das remessas do ouro suplantava o da prata. Mas depois de 1560 inverte-se a situação: de 1561 a
1570, Sevilha regista 943 toneladas de prata, contra 11 toneladas e meia de ouro; em 1620, a prata constitui, em peso,
99% das remessas dos metais preciosos americanos.
Unidade 2 - O alargamento do conhecimento do mundo 51

Unidade 2 O alargamento do conhecimento do mundo Cronologia

1502
SUMÁRIO
Planisfério de Cantino.
- O contributo português: inovação técnica; observação e descrição da natureza* 1519
- A matematização do real Planisfério de Pedro Reinel.
– A revolução das conceções cosmológicas* 1552
Planisfério de Lopo
Homem.
APRENDIZAGENS RELEVANTES
1561
- Identificar a emergência e a progressiva consolidação de uma mentalidade quantitativa e Lopo Homem: Atlas
experimental que prepara o advento da ciência moderna e proporciona ao homem um Universal.
maior domínio sobre a natureza. 1568
Publicação do Atlas, de
Fernão Vaz Dourado.
CONCEITOS/NOÇÕES
*Navegação astronómica:
Navegação astronómica; Cartografia; Experiencialismo**; Mentalidade quantitativa; Revolução
navegação tendo como
coperniciana** orientação a altura dos
astros, calculada através
* Conteúdos de aprofundamento
do recurso a instrumentos
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
específicos (astrolábio,
balestilha, regimentos,
tábuas solares). Iniciada
por meados do século XV,
tornou-se indispensável no
– O contributo português: inovação técnica Atlântico para que os
pilotos, durante dias
As grandes Descobertas não teriam sido possíveis sem alguns dos progressos técni-
e dias, só com mar e céu
cos, em particular no domínio da arte de marear, que ocorreram antes e em paralelo com à vista, tivessem uma ideia
do lugar, por precária que
o surto da expansão ultramarina iniciada por Portugal em Quatrocentos. A navegação
fosse, em que a cada
atlântica, bem distinta da do Mediterrâneo(1), levantava novos e complexos problemas momento se encontravam.
que exigiam respostas técnicas adequadas e eficazes.

Por isso, os Portugueses tiveram de mostrar uma grande capacidade de adaptação e


transformação criativas do saber tradicional, recorrendo ao conhecimento fundamentado
dos seus cosmógrafos, matemáticos e astrónomos, imprescindíveis para a navegação
astronómica*, e ao saber adquirido na prática quotidiana pelos nossos navegadores, para
se apetrecharem com os meios técnicos necessários à superação das dificuldades de
orientação e navegação no Atlântico: a utilização da caravela (Fig. 1), uma embarcação
móvel, de casco alongado e resistente e com velas triangulares que lhe permitiam boli-
nar (conjugação da navegação em zigue-zague com os movimentos das velas de forma Fig. 1. Caravela portuguesa,
a poder avançar mesmo com ventos desfavoráveis); a descoberta dos ventos alíseos(2); prato hispano-mourisco,
século XV.
o aperfeiçoamento dos métodos de cálculo da latitude(3); a adaptação criativa do astro-
lábio náutico (Fig. 2) e da carta plana quadrada(4) e o aperfeiçoamento da balestilha e do

(1)
Mediterrâneo: mar interior, estendido em longitude, relativamente calmo e sobretudo bem conhecido; uma carta de
marear e uma bússola eram suficientes para uma navegação segura, tanto mais que os marinheiros têm constante-
mente no seu horizonte visual a linha de costa e as numerosas ilhas. A situação era muito diferente no Atlântico, o
Mar Tenebroso, como era designado entre os Muçulmanos.
(2)
Ventos alíseos: ventos regulares e constantes que sopram de E para O nas regiões intertropicais; de ENE para OSO
no hemisfério norte; e de ESE para ONO no hemisfério sul; a sua regularidade é um fator favorável à navegação.
(3)
Para determinar a latitude os Portugueses começaram por utilizar a constelação Ursa Menor, de que faz parte a
Estrela Polar. O processo para fazer este cálculo era há muito conhecido na Península. O problema era adaptar os ins-
trumentos mais adequados ao uso dos navegadores e elaborar um regimento com regras claras, acessíveis aos pilo-
tos. A determinação da longitude era menos rigorosa, fazendo-se por estimativa.
(4)
As novidades técnico-científicas do astrolábio náutico e da carta plana quadrada representam uma adaptação ino-
vadora do astrolábio plano e da carta-portulano medieval. Fig. 2. Astrolábio náutico.
52 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia quadrante; a elaboração de roteiros com a descrição minuciosa das costas e dos seus
acidentes e a indicação dos perigos a evitar e da extensão dos rumos entre as escalas,
1505-1508
Duarte Pacheco Pereira: guias náuticos(5), livros de marinharia(6), regimentos(7), tábuas solares, escalas de latitude,
Esmeraldo de situ orbis. etc.; melhoria tecnológica das armas de fogo e, em particular, da artilharia.
1537
Pedro Nunes: Tratado da
Esfera.
– O contributo português: observação e descrição da natureza
1538-1539 Os europeus conheciam muito pouco dos outros mundos e tinham deles imagens que
D. João de Castro: Roteiro
de Lisboa a Goa e Roteiro a abertura planetária iniciada pelos Portugueses em Quatrocentos demonstraria serem
de Goa a Diu. erradas (Fig. 3). Com efeito, narrativas fantásticas e mitos relacionados com o mar e os
1562 continentes africano e asiático acabariam por ser destruídos pelos Portugueses através
Garcia da Orta: Colóquios
dos Simples e Drogas da de um saber fundamentado na experiência, isto é, na vivência das coisas. Foi através
Índia. deste experiencialismo* que os nossos marinheiros deram a conhecer ao mundo algu-
mas novidades que contrariavam muito do saber herdado e há muito estabelecido:
*Experiencialismo:
– habitabilidade da zona equatorial;
conhecimento das coisas
adquirido pela prática – comunicabilidade entre os hemisférios norte e sul;
e observação. Trata-se de
uma atitude meramente – ligação entre os oceanos Atlântico e Índico;
empírica que poderíamos
classificar de “pré- – descoberta de uma nova parte do Mundo (o continente americano);
-científica” para a distinguir – esfericidade da Terra, já defendida pelos Gregos, mas contestada maioritariamente
de experimentalismo, uma
atitude científica, onde na época medieval.
à observação se segue
a racionalização
e a experimentação. O contributo dos Portugueses para uma nova visão do Mundo e da Natureza é essen-
cialmente informativo e empírico, porque a preparação intelectual e científica dos nossos
navegadores não lhes permitia ir mais além do que a simples observação das coisas
através dos sentidos. É verdade que em alguns espíritos mais cultos da época
constatamos a preocupação de procurar um conhecimento racional e, portanto,
científico da realidade observada. É o caso de Duarte Pacheco Pereira (1460-
-1533), D. João de Castro (1500-1548), Garcia da Orta (1501-1568), Pedro Nunes
(1502-1578) e Amato Lusitano (1511-1568), que procuraram ir mais além da abor-
dagem empírico-sensorial dos fenómenos observados, mas o seu racionalismo
crítico-experiencial não chegou a traduzir-se numa atitude científica sistemática.

Mas o contributo mais decisivo dos Portugueses terá sido o de ter cons-
truído uma nova visão do Mundo e da Natureza, sobretudo o de ter feito a
demonstração de que não há bestas nem monstros humanos, que a natureza
do género humano é una; também que não há povos nem civilizações infra-
-humanos, ou seja, a ideia de humanidade.
Fig. 3. Imagem medieval do
mundo: o oceano rodeia
a terra como um círculo.

? Questão (5)
Guias náuticos: obras que ensinam as regras da astronomia náutica. O Guia Náutico de Munique (c. 1509) e o de Évora
(c. 1516) constituem os mais antigos textos impressos onde se apresentam as principais regras de pilotagem e os
1. Que contributos deram elementos de navegação astronómica, em uso no princípio do século XVI.
os portugueses para o (6)
Livros de marinharia: espécie de manuais com todas as informações necessárias para a navegação astronómico-
conhecimento no século -oceânica.
XVI? (7)
Regimentos: conjuntos de regras e cálculos que facilitavam o trabalho dos pilotos na determinação da latitude.
Unidade 2 - O alargamento do conhecimento do mundo 53

– A matematização do real
O renovado interesse pela natureza e pela vida quotidiana dos indivíduos e das socie-
dades, que caracterizou o início dos Tempos Modernos, influenciou a formação de uma
nova mentalidade, mais técnica e utilitária, mais racional e rigorosa.

Na origem e no desenvolvimento desta nova atitude mental estão fundamentalmente


três fenómenos marcantes: o movimento das Descobertas, que exigiu respostas objeti-
vas para os novos problemas; a progressiva afirmação do Estado moderno, centralizado
e burocratizado, com novas necessidades – inventariação dos recursos humanos (exérci-
tos, quadros administrativos) e materiais (fisco, movimentos económicos e financeiros);
o incremento da atividade mercantil e das técnicas comerciais e bancárias e de contabi-
lidade que lhe estão associadas.

O Estado e a sociedade são levados assim a calcular, a valorizar o rigor e a quanti- * Mentalidade quantitativa:
ficação, contribuindo assim para a progressiva afirmação de uma mentalidade virada para atitude mental que se
caracteriza pela
o número, para a medida, uma mentalidade quantitativa*. Tudo é mensurável, tudo é valorização do número, do
quantificável, até o próprio tempo. rigor e da medição.

– A revolução das conceções cosmológicas


O universo medieval é o de Aristóteles e de Ptolomeu, um universo fechado e finito, * Revolução coperniciana:
todo ele contido no interior da esfera que se julgava envolver as estrelas fixas, formado revolução operada na
astronomia por Nicolau
por duas partes essencialmente diferentes: o mundo celeste e o mundo sublunar. Copérnico (1473-1543) que
refutou a teoria
O astrónomo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543) iniciou a revolução* que viria a geocêntrica do Universo
alterar por completo a conceção do mundo por parte dos europeus. Na sua obra De revo- defendida desde a
Antiguidade, segundo
lutionibus orbium coelestium (1543), o seu universo é descrito como um espaço geome- a qual a Terra é o centro
trizado, limitado por uma esfera celeste imóvel em cujo centro se encontra o Sol. A Terra imóvel do Universo,
contrapondo-lhe
e os demais planetas e estrelas moviam-se em seu redor (heliocentrismo) (Fig. 4). o heliocentrismo, teoria
segundo a qual é a Terra
O sistema heliocêntrico coperniciano foi considerado herético e moralmente errado que gira em volta do Sol,
pelas autoridades eclesiásticas. Foi por isso que os poucos astrónomos que tinham e não o inverso.

começado a pôr em dúvida a antiga teoria do Universo geocêntrico o tenham feito secre-
tamente com o receio de perseguições por parte da Igreja. As teorias de Copérnico foram
completadas por Kepler (151-1630), que defendeu que as órbitas dos planetas não eram Cronologia
circulares, como afirmara Copérnico, mas sim elíticas.
Principais astrónomos dos
séculos XV-XVII
1473-1543
Nicolau Copérnico.
1546-1601
Tycho Brahe.
1564-1642
Galileo Galilei (Galileu).
1571-1630
Johannes Kepler.
1642-1727
Isaac Newton.

Fig. 4. O universo segundo Copérnico.


54 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Unidade 3 A produção cultural


SUMÁRIO
3.1. Distinção social e mecenato
3.2. Os caminhos abertos pelos humanistas
3.3. A reinvenção das formas artísticas*

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Reconhecer o prestígio da coroa portuguesa na Época Moderna e a função valorizante da
produção artística e literária nacional.
– Identificar no urbanismo, na arquitetura e na pintura a expressão de uma nova conceção
do espaço de caráter antropocêntrico**.
– Identificar na produção cultural renascentista a herança da Antiguidade Clássica e a con-
tinuidade com o período medieval.
– Desenvolver a sensibilidade estética através da identificação e apreciação de obras artís-
ticas e literárias do período renascentista.

CONCEITOS/NOÇÕES
Intelectual; Civilidade; Renascimento**; Humanista**; Antropocentrismo**; Naturalismo; Classi-
cismo**; Perspetiva; Manuelino**

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes

3.1. Distinção social e mecenato


– A ostentação das elites cortesãs e burguesas
Os séculos XV e XVI são favoráveis à afirmação dos homens mais dotados e empreen-
dedores: o progresso económico e o desejo de distinção social das elites arrastam con-
sigo o aumento do luxo e o desenvolvimento da urbanização, da cultura e da sociabi-
lidade(1).

O homem é um ser social, é essa a sua natureza, que se afirma tanto melhor quanto
mais hábil e educado for. Isto leva ao desenvolvimento de padrões de comportamento
em grupo que são cada vez mais refinados e, ao mesmo tempo, a integrar na formação
dos homens e mulheres regras de conduta apropriadas às mais diversas situações. Fala-se
* Civilidade: conjunto de então de civilidade*, devendo referir-se neste contexto a obra de Baldassare Castiglione,
formalidades observadas autor d’O Livro do Cortesão (1528), um educador de “pessoas bem nascidas” que, mais
entre as pessoas
bem-educadas que vivem do que qualquer outro, contribuiu para a conversão da vida cortesã italiana (e europeia)
em sociedade; cortesia, aos valores da civilização. Apóstolo das “boas maneiras”, Castiglione definiu o modelo
delicadeza, polidez,
etiqueta, urbanidade. do que considerava ser o “homem completo”: um militar e diplomata brilhante e um
artista talentoso.

Ao mesmo tempo, a prosperidade económica ofereceu às elites burguesas uma outra


via de afirmação e distinção social: a ostentação de riqueza através da moda do vestuá-
rio, sofisticado e luxuoso, e da festa. O vestuário feminino passou também a ser mais

(1)
Sociabilidade: tendência para viver em sociedade, facto que implica a adoção de modos ou regras adequados.
Unidade 3 - A produção cultural 55

elaborado (corpetes, espartilhos, camisas bordadas, peitilhos...). Os ambientes cortesãos ? Questões


e palacianos valorizam a aparência e a etiqueta. As cortes absolutistas promovem-nas.
1. Como caracteriza
A exteriorização de riqueza era uma forma de afirmação, uma fonte de prestígio. Por isso, a sociedade da época do
o burguês afortunado procura vestir-se como os fidalgos e copiar-lhe os gestos, na espe- Renascimento?

rança de se confundir ou para rivalizar com eles: o sonho de muitos burgueses era o eno- 2. Como explica
a importância atribuída
brecimento e ter os padrões de vida da aristocracia nobre. à moda do vestuário
e à civilidade?
– O estatuto de prestígio dos intelectuais e artistas
Na sociedade quatrocentista e quinhentista a cultura torna-se uma fonte de prestígio
e de reconhecimento social. Conscientes disso, príncipes, nobres e eclesiásticos rodeiam-se
de artistas e intelectuais a quem apoiam e patrocinam as suas obras. É o mecenato(2),
modo de afirmação político e social de quem o pratica mas também importante para o
desenvolvimento da produção intelectual e artística. Os artistas e intelectuais são recom-
pensados pela generosidade dos mecenas (Fig. 1) e pelo reconhecimento social. Este
fenómeno não pode ser explicado senão pela nova difusão da cultura, fruto da aparição
da imprensa, e pelo interesse de um público instruído, cada vez mais numeroso.

– Portugal: o ambiente cultural da corte régia


Em Portugal, o Paço real constituiu o grande foco de irradiação cultural nos séculos Fig. 1. Lourenço, o Magnífico
(1449-1492), duque de
XV e XVI. As razões são claras e encadeiam-se umas nas outras: Florença, modelo dos
– a formação de quadros superiores para as tarefas administrativas e a gestão dos mecenas renascentistas.
(Florença, Galeria dos
empreendimentos ultramarinos centralizados pela Coroa; Ofícios).
– oportunidade para reforçar o prestígio do rei mecenas e da sua corte, colocando
desta forma a cultura ao serviço dos objetivos de afirmação do absolutismo régio(3);
– disponibilidade de meios económico-financeiros (ainda que esta situação fosse mais
precária e aparente do que se pretendia fazer crer) proporcionados pela exploração ? Questão
utramarina, em especial pela “carreira da Índia” no século XVI.
1. Que objetivos se
pretendiam atingir com
Assim se explica o ambicioso programa de grandes construções manuelinas (Paços da a prática do mecenato?
Ribeira, Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém). É ainda neste quadro que se regista
na corte quinhentista portuguesa a presença de intelectuais e artistas estrangeiros de
renome e a concessão de bolsas aos estudantes portugueses que pretendessem formar-se
nos centros culturais de maior prestígio na Europa, como Paris, Lovaina, Oxford e Sala-
manca, entre outros, os chamados bolseiros d´el-rei(4).

Como resultado do mecenatismo real, na década de 1430 e 1440, chegaram ao nosso


País conhecidos humanistas italianos, como Mateus Pisano e Estêvão de Nápoles para
educarem o príncipe D. Afonso (futuro D. Afonso V), entre outros. Os portugueses Diogo
de Gouveia e o seu sobrinho André de Gouveia, que chegaram a ocupar a cátedra da

(2)
Mecenato: a expressão tem a sua origem no nome do romano amigo de Augusto, Caio Mecenas, que se celebrizou
como um importante protetor de homens de letras entre os quais Virgílio e Horácio. Fig. 2. Retrato de Damião
(3)
Absolutismo régio: regime em que o soberano se considera legitimado pela origem divina do seu poder para exer- de Góis (1502-1574), por
cer o poder livre de controlos ou limitações de quaisquer outros poderes. Os regimes absolutistas afirmaram-se na Jan Mabuse. Diplomata,
Europa ocidental entre os séculos XVI e XVIII, em paralelo com a formação do Estado moderno. historiador e humanista
(4)
O número de 41 bolseiros, correspondente à última vintena de anos do reinado de D. Manuel, elevou-se para 177 proeminente nas cortes de
nas duas primeiras décadas do reinado de D. João III. D. Manuel I e de D. João III.
56 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia reitoria da Universidade de Paris, André de Resende, Pedro Nunes, Garcia da Orta, Amato
Lusitano e Damião de Góis (Fig. 2), entre muitos outros, adquiriram projeção e grande
c. 1500
Estatutos manuelinos da notoriedade internacional. Também a reforma da Universidade levada a cabo por D. João III,
Universidade de Coimbra. entre 1533-1535, e a fundação do Colégio das Artes, em 1547, foram realizadas com o
1502
Auto da Visitação ou
contributo decisivo dos antigos bolseiros e dos mestres estrangeiros radicados entre nós.
Monólogo do Vaqueiro,
de Gil Vicente. BOLSAS CONCEDIDAS PELA COROA A ESTUDANTES PORTUGUESES NO ESTRANGEIRO
Início da construção do
Mosteiro dos Jerónimos. 1500-1514 22
1505
Construção do Paço da 1515-1521 19
Ribeira (Lisboa).
1522-1526 27
1513
Embaixada de D. Manuel 1527-1530 64
ao Papa Leão X.
1514 1531-1535 46
Edição das Ordenações
Manuelinas. 1536-1540 40 Dias, J. S.,
A Política Cultural
1515-1519 na Época de D. João III,
1541-1550 21
Edificação da Torre de vol. I, t. I.
Belém.
1521
Morte de D. Manuel 3.2. Os caminhos abertos pelos humanistas
e subida ao trono
de D. João III. – Valorização da Antiguidade Clássica
1547
Fundação do Colégio das Os intelectuais e artistas dos séculos XV e XVI viveram momentos únicos de desco-
Artes. berta: do mundo (Descobrimentos), da natureza e das suas leis (Ciência), da Antiguidade
1572
Publicação de Os Lusíadas,
Clássica.
de Luís de Camões.
O interesse pela Antiguidade greco-latina teve a sua origem nas cidades italianas que,
animadas por um forte impulso de progresso e prosperidade económica, procuraram nas
suas origens a fonte de inspiração e o património cultural capazes de dar resposta às
suas ambições e aos seus ideais. Seguindo o exemplo de Petrarca (1304-1374), um
incomparável investigador de livros antigos, os primeiros a procurar esse caminho foram
essencialmente pesquisadores e colecionadores de obras romanas.
* Humanistas: designação
dada aos estudiosos dos Mas a Antiguidade não foi só romana; grande parte do seu legado encontrava-se
autores e obras da escrito em grego, língua cujo conhecimento era imprescindível para o acesso direto aos
Antiguidade greco-latina.
escritos de autores como Homero e Platão. A conquista, em 1453, de Constantinopla,
* Classicismo: fenómeno
artístico característico do
capital do Império Romano do Oriente, pelos Turcos Otomanos forçou a fuga para a Itá-
Renascimento, que se lia de muitos intelectuais gregos, o que veio reforçar o interesse pela língua e pelas
fundamenta na literatura
e nas artes da Antiguidade
obras dos autores gregos (e hebraicos) antigos estudadas, com racionalidade e sentido
Grega e Romana. crítico, pelos humanistas*.

Esta valorização da Antiguidade Clássica, o Classicismo*, fez-se igualmente sentir tam-


bém no seio da própria Igreja Romana. O papa Nicolau V (1447-1455) funda a Biblioteca
Vaticana e enriquece-a com um grande número de títulos gregos.
? Questão
Da Itália, a paixão pelo grego e pela cultura helénica passou à França, à Inglaterra, à
1. Como se explica o grande Espanha, aos Países Baixos, à Alemanha... Thomas More traduz para latim os Diálogos
interesse dos humanistas
de Luciano (1506), Erasmo elabora uma nova versão do Novo Testamento (1516), Amyot
do século XV pelas obras
e autores clássicos? traduz para o francês as Vidas Paralelas, de Plutarco (1559).
Unidade 3 - A produção cultural 57

– A consciência da modernidade e a afirmação das línguas nacionais


O gosto pelo legado clássico, grego e romano trouxe consigo a crescente rejeição de
alguns modelos herdados do passado. Com efeito, embora não seja possível dizer-se que
o Renascimento (designação dada ao período da História da Europa aproximadamente
entre fins do século XIV e meados do século XVI, caracterizado por um movimento de
renovação cultural e social global que transformou as artes, as letras e as ciências, bem
como todas as demais formas do pensamento e da atividade humanas) se traduza por
uma recusa pura e simples do passado medieval e com ele da visão teocêntrica do
mundo, assiste-se, ao longo dos séculos XV e XVI, a uma revalorização do homem e de
tudo aquilo que lhe é próprio. Esta atitude traz consigo um novo sentido de liberdade e
manifesta-se através da vontade de conhecer e de experimentar, fruto do desejo (e neces-
sidade) de progresso e de um ideal de modernidade.

Daqui resultaram consequências importantes. Por um lado, a atitude de rejeição da


Idade Média que aparecia aos olhos do homem do Renascimento como a “Idade das Tre-
vas”, um tempo obscuro, teocêntrico e dogmático, dominado pelo medo e pelo fanatismo.
Por outro lado, a definição de um modelo do “homem moderno”, caracterizado como um
indivíduo com espírito crítico e senhor de si próprio, confiante nas suas capacidades.
Fig. 3. Erasmo de Roterdão
O desenvolvimento do espírito crítico teve também implicações importantes no domí- (1466-1536), humanista e
nio político. Com efeito, apesar do humanismo europeu ter permanecido fiel às orienta- filósofo holandês e um dos
maiores críticos da
ções gerais do humanismo italiano, a verdade é que a pretensa superioridade da herança imoralidade do clero.
clássica romana e da língua latina vai sendo contestada à medida que se foi difundindo
no Ocidente. Assim, ao lado dos traços comuns vão surgindo diversidades regionais que
se vão acentuando, à medida que as traduções das obras originais e as respetivas publi-
cações promovem o reforço das línguas nacionais que dão a conhecer os respetivos patri-
mónios histórico-culturais nacionais.

– Individualismo, espírito crítico, racionalidade e utopia


É usual dizer-se que o Renascimento descobriu o Homem, libertando-o de todos os
constrangimentos do passado, fossem eles familiares, corporativos, religiosos ou da socie-
dade em geral, e colocou-o no centro do mundo (antropocentrismo*). Contudo, nem a * Antropocentrismo:
Idade Média representou um domínio exclusivo do coletivo sobre o individual, esquecendo conceção que considera
o homem como o centro do
o Homem, nem a Época Moderna viveu livre dos constrangimentos sociais e religiosos. Universo, pelo que lhe são
destinadas todas as
Não havendo assim o corte brutal entre a Idade Média e os Tempos Modernos que coisas, tudo lhe está
os homens do Renascimento defenderam, é verdade que entre uma época e a outra subordinado.

se assiste a um enfraquecimento dos vínculos sociais e à afirmação do indivíduo livre


e confiante que procura impor-se à atenção e à admiração de todos. É o tempo dos
condottieri(5), de banqueiros como os Médicis (Florença) e de aventureiros como César
Bórgia, filho do Papa Alexandre VI, que durante alguns anos dominou a Itália central.

(5)
Condottieri: na Itália do Renascimento, chefes de guerra que comandavam tropas de mercenários e intervinham
nas decisões políticas.
58 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia A paixão do homem renascentista pelo mundo clássico, greco-romano, expressa antes
de tudo a sua oposição a um mundo de valores que considerava envelhecidos e inade-
1511
Erasmo de Roterdão (1469- quados para as suas aspirações e os seus ideais. A convicção de que vivia uma “idade
-1536): O Elogio da Loucura. nova” e a sua vontade de afirmar a sua modernidade em relação a uma época, a Idade
1516
Thomas More (1478-1535): Média, que considerava “bárbara”, estimularam nas elites cultas do tempo um forte espí-
A Utopia. rito crítico. Com efeito, desde o século XV que os principais humanistas europeus fazem
1532 críticas implacáveis à corrupção moral, à ignorância e à hipocrisia da sociedade e dos
François Rabelais (1494-
-1553): Gargântua poderes instituídos, quer fossem eles laicos ou religiosos.
e Pantagrual;
Tommaso di Campanella O melhor exemplo desta ousadia intelectual é Erasmo de Roterdão (1469-1536), o
(1568-1639): Cidade do Sol. humanista mais influente do Renascimento: e O Elogio da Loucura (1511), irónico e mor-
daz, critica a corrupção moral do clero, em particular do Papa e dos bispos, incluindo nas
suas críticas os reis e os príncipes.

Mas o papel dos humanistas não se limitou à denúncia do que consideravam ser os
erros da sociedade do seu tempo. O regresso às fontes antigas encorajou também a cla-
rificação da ideia de progresso através da comparação da realidade do seu tempo com
a ideia – influenciada pelo estudo da herança clássica - de como ela deveria ser. Surgem
assim as “utopias”(6), descrições de modelos de sociedades organizadas segundo princí-
pios diferentes daqueles que vigoravam no mundo real. Trata-se de um género literário
que floresceu na época do Renascimento, cuja designação provém da obra de Thomas
More (1478-1535)(7), A Utopia (1516), e que expressa ao mesmo tempo uma visão otimista
das possibilidades do homem e o profundo divórcio existente entre as aspirações dos
humanistas e a realidade do quotidiano.

François Rabelais (1494-1553), na sua principal obra Gargântua e Pantagruel, confron-


tou a realidade da vida monástica com a abadia por si idealizada, onde a divisa era “faz
o que te apetecer”. Concebida por Tommaso di Campanella (1568-1639), A Cidade do Sol
descreve também uma sociedade ideal situada algures nos mares equatoriais, baseada
em princípios comunitários.

Cronologia 3.3. A reinvenção das formas artísticas


1495-1498 – Imitação e superação dos modelos da antiguidade
Leonardo da Vinci: A Última
Ceia. Os artistas renascentistas não fizeram uma imitação passiva dos modelos clássicos.
1501-1505 Sem esconder a sua enorme admiração por esses modelos, os artistas do Renascimento
Miguel Ângelo: David
(Florença). estabeleceram também com eles uma relação de competição, ou seja, desejaram fazer
1506 melhor do que os gregos e os romanos e alguns deles tiveram mesmo a consciência de
Bramante: projeto da nova
o ter alcançado. Inspirar-se nos Antigos para fazer coisas novas – era esse o seu propó-
basílica de S. Pedro.
1508 sito. A Antiguidade apresenta-se assim aos intelectuais e aos artistas não tanto como um
Miguel Ângelo: frescos da modelo a ser imitado, mas sobretudo como um estímulo à sua superação.
Capela Sistina.
1509
Rafael: salas do Vaticano. (6)
A utopia é uma palavra de origem grega - ου + τοπος (ou topos, não lugar) – consistindo numa idealização da
1586 vida dos homens; ela pressupõe uma atitude crítica em face da realidade e uma exploração das diferenças com um
Vitrúbio: De Architectura determinado modelo ou ideal.
(tratado de arquitetura). (7)
Thomas More acabaria decapitado por oposição aberta ao divórcio e ao cisma com a Igreja Católica de Henrique VIII.
Unidade 3 - A produção cultural 59

Com efeito, os artistas do Renascimento não só revelaram uma técnica superior à dos * Perspetiva: conjunto de
regras de representação
Antigos – nomeadamente no domínio pictórico com a pintura a óleo, a perspetiva* e a que permite a reprodução
introdução do uso da tela – como também foram mais longe nas tentativas de reduzir o tridimensional de um
objeto sobre uma
mundo à medida do homem colocando a arte ao serviço da compreensão racional das superfície plana
aparências do mundo exterior. (bidimensional), uma vez
estabelecido o ponto de
observação.
– A centralidade do observador na arquitetura e na pintura: a perspetiva
matemática
? Questão
Numa época em que os homens se esforçavam para compreender o mundo de um
modo mais científico, as explicações até então admitidas como válidas para esse efeito 1. Qual a atitude dos
artistas renascentistas
já não são suficientes: a razão exige dos homens que se dedicam ao estudo da realidade relativamente aos modelos
natural as provas e a confirmação das suas teses. artísticos clássicos:
imitação e/ou inspiração e
A arte, feita até então em função de uma fé religiosa, procurando na natureza apenas desafio?

aquilo que pode servir o seu ideal, uma vez liberta desta servidão teológica, torna-se
também ela um meio de conhecimento do mundo exterior. A partir de agora, aos olhos
do artista, colocado numa posição de observador, oferece-se um campo imenso de explo-
ração: a infinita variedade dos elementos e das formas do universo, humano e natural.

O século XV recuperava assim a visão racionalista que estava na base do pensamento e


das realizações artísticas da Antiguidade Clássica. Na arquitetura, o racionalismo traduziu-se
na adoção da ordem arquitetónica(8) e no aspeto “matemático” e geométrico dos edifícios.

Na pintura, o objetivo de reproduzir com o maior realismo possível a realidade


humana e natural implicou o recurso à perspetiva, ou seja, ao efeito de profundidade ou
tridimensionalidade nas figuras pintadas, e ao “projeto”(9).

A arte transformou-se desta forma num laboratório “científico” da realidade observada


e as obras de arte tornaram-se construções quase matemáticas. A aproximação à ciência
faz-se através dos métodos da arte e o artista, a seu modo, faz ciência. Votado ao conhe-
cimento da natureza, o artista cumpre deste modo o grande desígnio do Renascimento:
a racionalização das aparências do mundo exterior.

– A racionalidade no urbanismo
As cidades medievais eram constituídas por aglomerados de edifícios, cercados por
muralhas que protegiam as suas populações mas também as isolavam do mundo exte-
rior. O traçado e a configuração da cidade dependiam da muralha(10) que a delimitava,
dos acidentes do terreno e do crescimento da população citadina. No interior da cidade,
as construções acantonavam-se em redor de uma catedral (castelo, abadia ou convento)
para onde convergiam ruas e vielas estreitas e tortuosas por onde circulavam quase
exclusivamente pessoas e animais.

(8)
Ordem arquitetónica: conjunto de regras formais e de proporção que ligavam entre si, de uma forma de antemão
estabelecida, todas as secções de um edifício.
(9)
Projeto: estudo rigoroso, matemático, prévio à execução de uma obra.
(10)
Muralhas: a sua finalidade principal era a proteção, funcionando também como fronteira ou limite, acompanhando
(e condicionando) o crescimento da cidade: se esta aumentava, levantava-se outra muralha. A partir do século XV, os
progressos da artilharia tornaram ilusório o seu papel de proteção.
60 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Como se percebe, estas cidades não podiam satisfazer nem os princípios de raciona-
lidade nem o modo de vida requintado do homem do Renascimento. O objetivo de racio-
nalização que estava no centro das preocupações dos arquitetos renascentistas está tam-
bém presente na organização dos espaços urbanos. Ao fazê-lo, estes arquitetos iniciaram
a história do urbanismo moderno.

? Questões Com efeito, o Renascimento assinala a primeira intervenção urbanística consciente,


através da elaboração de planos geométricos, em xadrez ou em círculos concêntricos,
1. De que forma o
urbanismo moderno considerados como ideais. É esta racionalidade (e utopia) que fundamenta os planos de
expressa a mentalidade do remodelação das velhas cidades medievais, em particular das praças, que constituíam o
homem do Renascimento?
centro monumental dos centros urbanos e um espaço cívico privilegiado.
2. Quais as principais
inovações na pintura e na
escultura do Renascimento? – A expressão naturalista na pintura e na escultura
Os artistas do Renascimento foram mais longe do que quaisquer outros que os pre-
cederam no modo de representar o homem e, acima de tudo, a sua realidade física, natu-
ral. Como foi isso possível?

Em primeiro lugar, através de uma melhor compreensão da anatomia humana tradu-


zida tecnicamente através de inovações da pintura renascentista: os progressos da pin-
tura a óleo que permitem o uso mais subtil da cor, da luz, da sombra e da ilusão do
volume das figuras que reproduzem com precisão as três dimensões ocupadas pelo corpo
humano. Ao mesmo tempo, através da técnica da perspetiva que deu ao artista a possi-
bilidade de traduzir com um rigor matemático, na tela, a realidade exterior onde o homem
se move, o seu meio ambiente rigorosamente retratado nas cores e nas formas e como
tal reconhecível pelo olhar do observador.

Masaccio (1401-1428), o primeiro grande pintor do século XV, foi o grande iniciador
dessa nova maneira de exprimir na tela o volume das coisas e a anatomia dos corpos.
A busca da representação exata da realidade observada levou-o a introduzir a perspetiva
nos grandes planos colocando o observador na posição de espetador privilegiado que sur-
preende as personagens no seu espaço natural (paisagem) ou construído (arquitetura).

* Naturalismo: reprodução Estas inovações – volume, perspetiva e naturalismo* – fizeram escola na pintura
fiel, exata, da natureza,
renascentista. De entre os seus muitos seguidores destacaram-se Piero della Francesca
dos seres ou objetos tal
como são percecionados (1416-1492), Luca Signorelli (1441-1523) e Botticelli (1444-1520), atingindo o seu máximo
no seu estado natural. desenvolvimento no século XVI com Miguel Ângelo (1475-1564) cujos frescos da Capela
Sistina (1508-1512) são uma demonstração impressionante da energia, do vigor e das
potencialidades expressivas da figura humana.

O interesse dos artistas do Renascimento pelo homem e o objetivo de o representar


com a maior precisão possível estão também claramente evidenciados na escultura.
Donatello (1386-1466) ousou, pela primeira vez desde os tempos da antiga Roma, repre-
sentar um corpo nu, um corpo que pretendia ser a cópia fiel da fisionomia e dos movi-
mentos do jovem que lhe terá servido de modelo.

Este naturalismo e realismo constituíam uma novidade, mas estavam perfeitamente


dentro do novo espírito da época, da nova maneira de observar a natureza humana e de
a representar com fidelidade. A perspetiva tornou possível projetar obras proporcionadas
e em atitudes naturais e, sobretudo, dispor as figuras de uma forma idêntica à realidade.
Unidade 3 - A produção cultural 61

– A arte em Portugal: o gótico-manuelino e a afirmação das novas tendências


renascentistas
A arte renascentista chega a Portugal tardiamente e, de início, apenas através de ele-
mentos decorativos, associados às estruturas do Gótico final(11), que no nosso País adqui-
riu características ornamentais próprias, definindo uma arte denominada por alguns de
estilo manuelino*, uma designação e um conceito controversos.

A verdade é que o Renascimento penetrou em Portugal como forma ornamental asso-


ciada à arquitetura da última fase do Gótico. Os elementos decorativos renascentistas –
arabescos(12), grotescos(13), medalhões... – aparecem a decorar formas arquitetónicas
essencialmente góticas (Fig. 4). Uma outra particularidade: foram introduzidos por artis-
tas estrangeiros – biscainhos e galegos na região norte, franceses e italianos, na região
sul – ou por nacionais educados no estrangeiro, dos quais se destaca Francisco da
Holanda (1517-1584). Fig. 4. A janela da Sala do
Capítulo do Convento de
Na arquitetura, João de Castilho (1490-c. 1551) conclui as obras do Mosteiro dos Jeró- Cristo, em Tomar (c. 1510).
nimos, Francisco de Arruda edifica a Torre de Belém e Diogo de Arruda dirige as obras
do Convento de Cristo, em Tomar, cuja Janela da Sala do Capítulo ilustra de forma exu- * Manuelino: o nome
berante a diversidade e o exotismo da gramática decorativa manuelina (heráldica, ele- “Manuelino” deve-se
a Varnhagen (séc. XIX) que
mentos marítimos, vegetalistas e religiosos). Mantendo as estruturas essenciais da arqui- também identificou as
tetura gótica, o manuelino adota novos conceitos de espaço e iluminação (uniformização suas características, tendo
por base elementos
da altura das naves, igrejas-salão…). decorativos genuinamente
nacionais e relacionados
Na escultura, a arte renascentista produziu sobretudo retábulos, esculturas, imagens com os Descobrimentos.
e túmulos onde estão bem patentes duas características fundamentais: a proporção e o Almeida Garrett acolheu
com entusiasmo poético
realismo. Dois grandes artistas estrangeiros deixaram uma vasta e valiosa obra entre nós: o nome de “Manuelino”
Nicolau de Chanterenne e João de Ruão. e transformou-o no
símbolo nacional da épica
Na pintura, a influência renascentista veio sobretudo através da escola flamenga das Descobertas. Esta
perspetiva provocaria uma
(Flandres), cuja influência revela-se na conceção do espaço, no emprego de motivos orna- forte contestação entre os
mentais renascentistas e no realismo da representação da figura humana e da natureza. historiadores e os críticos
de arte que contestam as
Destacaram-se Jorge Afonso (c. 1495-1521) e Vasco Fernandes, mais conhecido por Grão- teses da sua ligação com
-Vasco (1475-1541/42), cuja obra apresenta uma grande originalidade pelo seu vigor a expansão ultramarina
e da originalidade nacional,
expressivo e dramatismo. O Políptico de São Vicente atribuído a Nuno Gonçalves, uma pretendendo ver nele uma
obra que faz um notável “retrato” da sociedade portuguesa quatrocentista, é o quadro evolução do Gótico final
(ou tardo-Gótico).
mais significativo da pintura manuelina, uma arte de síntese que combina a tradição
gótica e a novidade do Renascimento.

(11)
Gótico final (ou tardo-gótico): fase da evolução do Gótico, um estilo que floresceu na Europa do século XII ao século ? Questão
XVI, caracterizada pela pouca sobriedade, estilização e acumulação de elementos decorativos.
(12)
Arabescos: desenhos característicos da arte árabe constituídos por figuras geométricas entrelaçadas e muito orna- 1. Que características
mentadas. definem a arte
(13)
Grotescos: decorações com temas vegetalistas, formas humanas ou figuras de animais. gótico-manuelina?
62 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia Unidade 4 A renovação da espiritualidade e religiosidade


1378 De Ecclesia, de John
Wyclif (1320-1384). SUMÁRIO
1413 De Ecclesia, de Jan 4.1. A Reforma Protestante*
Huss (1369-1415).
1509 Elogio da Loucura, de 4.2. Contrarreforma e Reforma Católica*
Erasmo de Roterdão
(1469-1536). APRENDIZAGENS RELEVANTES
1524 De libero arbítrio, de
Erasmo de Roterdão. – Interpretar as reformas – Protestante e Católica – como um movimento de humanização
e individualização das crenças e de rejuvenescimento do Cristianismo, não obstante a vio-
lência das manifestações de antagonismo religioso durante a Época Moderna**.
Documento 1
CONCEITOS/NOÇÕES
As críticas de Erasmo ao
Papado Reforma**; Heresia; Dogma**; Predestinação; Sacramento; Rito; Concílio; Seminário; Catecismo;
De quantas alegrias e Inquisição; Index; Proselitismo; Missionação**
comodidades se privariam,
de repente, os papas se * Conteúdos de aprofundamento
resolvessem seguir as ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
pisadas de Cristo? (…) Mas,
não temamos estas
infelicidades para os
nossos muito Santos
Padres: eles deixam
a S. Pedro e a S. Paulo os 4.1. A Reforma Protestante
sofrimentos e trabalhos
e guardam para si as
honras e os prazeres que – Individualismo religioso e críticas à Igreja Católica
hoje rodeiam a Santa Sé.
Erasmo de Roterdão,
No início do século XVI, a cristandade ocidental atravessa um tempo particularmente
Elogio da Loucura. sensível da sua história. Vindos do passado, sucedem-se os apelos de reforma dos com-
portamentos e da moral do clero, particularmente escandalosos no topo da hierarquia
? Questão
eclesiástica. Ao desejo de reforma religiosa junta-se o individualismo religioso, uma
1. Que críticas faz Erasmo forma de espiritualidade mais virada para a meditação pessoal e menos interessada na
ao Papado? Que
liturgia, e a vontade de emancipação dos poderes políticos nacionais.
consequências terão tido
para a Igreja?
De resto, a crise da Igreja Romana tivera um momento marcante no Cisma do Oci-
dente (1378-1417), que dividiu a Cristandade durante quase quatro décadas na obediên-
cia a dois pontífices – um sediado em Roma, outro em Avinhão. Também os apelos para
uma reforma da Igreja e do sacerdócio do inglês John Wyclif (c. 1324-1384) e do checo
Jan Huss (1369-1415), entre outros, que denunciaram com vigor o estado de corrupção
moral do clero e desafiaram a autoridade papal, não tiveram correspondência na realiza-
ção das reformas reivindicadas.

O mesmo aconteceu com os humanistas, como Erasmo de Roterdão (1469-1535), que


criticou os excessos do clero e defendeu o regresso à pureza original de uma religião
baseada nas Escrituras, combinando a fé e a razão. O seu pensamento inspiraria uma
corrente de renovação religiosa e moral denominada de erasmismo(1) que, impulsionado
pela invenção da imprensa, conheceu uma larga difusão na Europa.

(1)
Erasmismo: corrente de reforma religiosa inspirada no pensamento de Erasmo; apelava à reforma moral do clero e
preconizava uma vivência religiosa mais conforme o espírito e a moral da Igreja original.
Unidade 4 - A renovação da espiritualidade e religiosidade 63

– A rutura teológica Cronologia

O movimento de rutura teológica foi desencadeado por Martinho Lutero (1483-1546). 1517
A materialização da sua rutura com Roma começou a definir-se em 1515, com a promulga- Afixa as 95 teses na porta
da igreja do castelo de
ção de uma Bula de Indulgência por Leão X, necessitado de dinheiro para levar a cabo as Wittenberg.
obras da Basílica de S. Pedro, em Roma. Em 1517, a pregação das indulgências(2) chegou 1519
Rompe com Roma.
aos arredores de Wittenberg, o que levou a uma reação por parte de Lutero, fazendo afi- 1521
xar na porta da igreja do castelo da cidade as suas 95 teses contra as indulgências (1517). Publica De servo arbítrio.
1522
O papa Leão X condenou as suas teses na bula Exurge Domine e impôs a Lutero a sua Comparece na Dieta de
Worms convocada pelo
retratação sob pena de excomunhão(3). Lutero responde com a publicação de três Manifes-
imperador Carlos V.
tos (1520), dirigidos ao imperador e aos nobres alemães, onde critica violentamente o Papa, 1534
apela à resistência contra as imposições papais e contesta abertamente diversos dogmas* Traduz para alemão
a Bíblia (durante a sua
da Igreja. Nos finais desse ano, Lutero queima publicamente a bula papal e Leão X exco- estada no castelo de
Wartburg).
munga-o. O Príncipe Eleitor do Saxe, Frederico, o Sábio, dá-lhe refúgio no seu castelo de
Wartburg, onde faz a tradução da Bíblia do original grego para a língua alemã e estrutura
* Dogmas: princípios ou
a sua doutrina, que suscitou o apoio de numerosos setores do país. proposições doutrinárias
consideradas como
A rápida difusão do luteranismo na Alemanha (1521-1525) explica-se em parte pelo incontestáveis e
facto de esta ter adquirido uma dimensão política. Com efeito, os princípios luteranos de indiscutíveis.

organização hierárquica da sociedade civil e da substituição da autoridade eclesiástica


pela do Estado serviam bem aos príncipes alemães para justificar a defesa dos seus inte-
resses tanto frente ao poder imperial como contra Roma.

C
– As igrejas reformadas
B
Ao recusar à Igreja o exclusivo da interpretação das Escrituras D
A

e ao proclamar que cada crente é capaz de, por si próprio, percor-


rer o caminho que o leva até Deus, Lutero abriu as portas à forma-
ção de igrejas diferentes e concorrentes (Fig. 1), cada uma corres-
pondendo a uma particular interpretação dessas mesmas
Escrituras.
Fig. 1. Os grandes
A Igreja Calvinista reformadores: Lutero (A):
João Calvino (B); Zwínglio
O êxito da Reforma Protestante fora da Alemanha resulta, em grande parte, da ação (C); Filipe Melanchton (D);
entre outros (gravura
de João Calvino (1509-1564), erudito e teólogo de nacionalidade francesa. Obrigado a alemã do século XVI).
fugir de Paris, Calvino procurou a cidade de Genebra (Suíça) como refúgio, onde a dou-
trina protestante tinha muitos adeptos. Nesta cidade, Calvino estabeleceu uma ditadura
religiosa, um regime de teocracia no qual a sua Igreja controlava a vida pública e privada
* Predestinação: doutrina
e perseguia os dissidentes. Calvino explica a salvação em termos de uma predestinação* segundo a qual Deus
escolhe entre os homens
incerta, argumentando que, embora o homem estivesse predestinado à salvação ou à aqueles que irão salvar-se
condenação, nunca poderia conhecer antecipadamente a sua sorte. e aqueles que vão ser
condenados, retirando
ao homem qualquer
(2)
Indulgências: promessa de remissão dos pecados a todos aqueles que se arrependessem e adquirissem a bula de possibilidade de rejeitar ou
perdão contra uma determinada quantia em dinheiro. aceitar livremente a graça
(3)
Excomunhão: pena eclesiástica que implica a expulsão da comunidade dos fiéis, ou seja, da Igreja. divina.
64 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

A Igreja Anglicana

Na Inglaterra, a Reforma não foi iniciada por homens ligados à Religião mas sim pelo
próprio rei Henrique VIII (1509-1547) (Fig. 2), que retirou a Igreja Inglesa da jurisdição de
Roma, uma vez que o Papa se recusava a conceder-lhe a anulação do seu casamento
com a primeira mulher, Catarina de Aragão. O argumento foi a incapacidade da Rainha
para lhe dar um herdeiro do trono. Decidiu então conceder-se a si próprio o divórcio em
1527-1528, para o que separou a Igreja Inglesa da sua obediência a Roma.

A Reforma Inglesa começou portanto por ser um ato político. Uma vez iniciado o movi-

Fig. 2. Henrique VIII, mento, este tornou-se cada vez mais religioso e protestante. Em 1534, pelo Ato de Supre-
o fundador da Igreja macia, Henrique VIII foi proclamado chefe supremo da Igreja da Inglaterra. Em 1536, dis-
Anglicana, por Holbein.
solveu os mosteiros e confiscou-lhes as propriedades, que distribuiu ou vendeu pelos
seus partidários.
Cronologia

1533
Henrique VIII separa-se da
rainha e casa-se com Ana 4.2. Contrarreforma e Reforma Católica
Bolena.
Clemente VII excomunga-o. – Reafirmação do dogma e do culto tradicional
1534
Ato de Supremacia: Face ao movimento reformador que alastrava pela Europa do Norte, Paulo III (1534-
o Parlamento reconhece
a Igreja estatal Anglicana -1549) convocou, em 1536, um concílio* ecuménico (universal) para a cidade italiana de
e atribui ao rei a suprema Trento. Era o começo da Reforma da Igreja Católica Romana.
autoridade eclesiástica.
Execução de Thomas More.
A primeira tarefa do Concílio consistiu na reafirmação dos dogmas do Catolicismo pos-
1534-1539
Henrique VIII suprime os tos em causa pelas Igrejas reformadas: a reafirmação do Credo, das Sagradas Escrituras
mosteiros e vende os seus
e da Tradição como fontes da revelação divina, a condenação da interpretação individual
bens.
1536 da Bíblia, a reafirmação do valor dos sacramentos, em particular da eucaristia.
João Calvino publica
Institutio Christianae Os resultados do Concílio depressa chegaram aos leigos: em 1566 foi publicado o
Religionis: exposição da
Catecismo* romano, tendo-se igualmente procedido à reforma do Breviário e do Missal,
teoria da predestinação.
1553 que regulavam o culto católico tradicional.
Genebra converte-se no
centro do mundo
protestante. – A reforma disciplinar; o combate ideológico
O Concílio fixou também normas disciplinares relativas à formação e à vida dos
padres – criação de seminários* – e à regulamentação da vida monástica. Ao mesmo
* Concílio: assembleia dos
prelados da Igreja reunida tempo procurou moralizar o comportamento social e religioso do clero cujos excessos
para deliberar sobre
questões de doutrina ou de
davam fortes argumentos às críticas dos reformadores protestantes.
disciplina eclesiástica.
Os reformadores católicos tomaram igualmente medidas de repressão e combate ao
* Catecismo: compêndio ou
manual que contém, Protestantismo, um movimento denominado por Contrarreforma, através da qual a Igreja
de forma elementar,
Romana procurou combater a expansão da heresia protestante e os seus adeptos segui-
a doutrina da Igreja.
* Seminários: casas de dores. Foi reativado e reorganizado o Tribunal do Santo Ofício (ou Inquisição). Onde quer
educação e ensino de que prevalecesse a jurisdição católica, os hereges estavam sujeitos a penas que iam até
jovens que se destinam
à vida eclesiástica. à morte pelo fogo em celebrações públicas e ritualizadas designadas por auto-de-fé.
Unidade 4 - A renovação da espiritualidade e religiosidade 65

O combate ideológico da Contrarreforma estendeu-se também à literatura impressa. Cronologia


A criação da Congregação do Index*, em 1543, teve como objetivo travar a propagação
1524-1535
das ideias reformistas através da censura prévia das obras impressas e da elaboração de Fundação das ordens
religiosas dos Teatinos,
listas de livros cuja leitura passou a ser proibida aos fiéis.
Capuchinhos e Ursalinas.
A Reforma Católica utilizou ainda outros instrumentos: a fundação de novas ordens 1535
Inácio de Loiola funda
monásticas capazes de, pelo seu exemplo de obediência, austeridade e pobreza, reenca- a Companhia de Jesus
(Jesuítas).
minhar e conquistar fiéis pela pregação e pelo ensino. É este espírito de proselitismo*
1542
que está na origem da criação dos Capuchinhos e da Companhia de Jesus (ou Jesuítas), Restabelecimento da
fundada por Santo Inácio de Loyola, em 1540. Inquisição romana.
1545
Este espírito de missionação* que mobiliza os religiosos, como os jesuítas portugue- Primeira sessão do Concílio
de Trento.
ses S. Francisco Xavier (1506-1552), o “apóstolo da Índia”, ou ainda Manuel da Nóbrega,
que missiona no Brasil, contrasta claramente com o clima de intolerância e de guerra
aberta que se verifica um pouco por toda a Europa nos séculos XVI-XVII. * Congregação do Index:
organização religiosa criada
para controlar a circulação
– O impacto da Reforma Católica na sociedade portuguesa das ideias através da
imprensa, recorrendo quer
Em Portugal, tal como na Espanha e na Itália, o movimento da Reforma não teve gran- à censura prévia, quer
des adeptos, em parte devido à existência da Inquisição. à elaboração de catálogos
dos livros suspeitos de
heresia e cuja leitura era
Para fazer face a possíveis avanços da heresia, D. João III (1521-1557) solicitou ao
proibida pela Igreja.
Papa a introdução da Inquisição. A resposta favorável da Santa Sé viria em 1536 pelo
papa Paulo III. A sua atuação estendeu-se ao Ultramar e penalizava os crimes de feitiça- * Proselitismo: atividade ou
zelo em fazer prosélitos,
ria, vigiava a impressão de livros e as práticas heréticas, elegendo como alvo principal ou seja, ganhar novos
adeptos ou seguidores
os cristãos-novos(4) que, duramente perseguidos, veem-se frequentemente obrigados a
para a fé católica.
fugir do país e a pagarem importantes somas em dinheiro para escapar à Inquisição e,
em muitos casos, aos autos-de-fé. Nem as figuras prestigiadas da vida cultural e política * Missionação: ação de
pregação da fé, conversão
foram poupadas. Um caso significativo, entre muitos outros, foi o de Damião de Góis ou evangelização.
(1502-1574), historiador e humanista reputado.

Da ação inquisitorial resultaram importantes consequências:


– instauração de um clima de medo e o controlo do pensamento e da escrita levaram ? Questão

os intelectuais e artistas a refugiarem-se no cultivo dos formalismos estéticos e lite- 1. Que interesses terão
rários(5) esvaziados de conteúdo e fora da realidade; motivado a solicitação de
D. João III ao papa para
– o isolamento cultural do nosso País, afastando-o dos progressos e inovações que criar a Inquisição em
Portugal?
então ocorriam na Europa nos domínios científico e cultural.
– a fuga de pessoas e de capitais para o estrangeiro, em particular para o norte da
Europa, uma região próspera e tolerante, onde os cristãos-novos, os mais visados
pela Inquisição, encontravam refúgio seguro.

(4)
Cristãos-novos: designação dada aos judeus convertidos ao Cristianismo; esta denominação tinha um sentido dis-
criminatório relativamente aos restantes cristãos (velhos).
(5)
Na literatura estão bem presentes no fenómeno do Gongorismo; na arte, no Maneirismo e no Barroco.
66 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia Unidade 5 As novas representações da Humanidade


1492
Cristóvão Colombo atinge
SUMÁRIO
as Antilhas ao serviço de – O encontro de culturas e as dificuldades de aceitação do princípio da unidade do género
Espanha.
humano: evangelização e escravização
1498
Chegada de Vasco da Gama – Os antecedentes da defesa dos direitos humanos
à Índia (Calecute).
1502 APRENDIZAGENS RELEVANTES
Pedro Álvares Cabral
– Interpretar as reformas – Protestante e Católica – como um movimento de humanização
aporta no Brasil.
e individualização das crenças e de rejuvenescimento do Cristianismo, não obstante a vio-
1513
Chegada dos portugueses lência das manifestações de antagonismo religioso durante a Época Moderna**.
à China.
O espanhol Balboa explora CONCEITOS/NOÇÕES
o Ístmo do Panamá. – Miscigenação; Providencialismo; Direitos Humanos**; Racismo; Época moderna
1519-1521
Viagem de circum- * Conteúdos de aprofundamento
-navegação de Fernão ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
Magalhães.
1519-1523
O espanhol Hernán Cortés
conquista o México. – O encontro de culturas e as dificuldades de aceitação do princípio da unidade
1532
O espanhol Francisco
do género humano: evangelização e escravização
Pizarro conquista o Império
Antes do processo de abertura planetária desencadeado pelo movimento das Desco-
Inca (Peru).
1541 bertas na Época Moderna, de que Portugal foi pioneiro, o conhecimento da geografia
Chegada dos portugueses humana e natural do Planeta era muito restrito e essencialmente especulativo e fabuloso.
ao Japão.
Este facto aliado ao isolamento físico e cultural e ao desconhecimento mútuo dos diver-
sos “mundos” do Mundo explicam em parte as atitudes discriminatórias de superioridade
cultural e religiosa (etnocentrismo) dos povos “civilizados” relativamente aos “barbáros”
ou “gentios”(1) e a aceitação de atividades indignas do ser humano como a escravatura
e o respetivo tráfico.

Ao desencravarem os “mundos” até então isolados, os Descobrimentos surpreende-


ram os europeus com a extrema diversidade étnica e civilizacional mas ao mesmo tempo
demonstraram a unidade física do ser humano. Com efeito, o imaginário clássico e medie-
val concebia o ser humano desconhecido, o “outro”, como uma categoria inferior de
homem, física e mentalmente monstruoso, selvagem. Não foi isso que os nossos nave-
gadores encontraram, por exemplo em África, onde verificaram que “a estatura dos
homens é de mediana grandeza; e, tirando-se-lhes a cor da negra, são parecidos com os
Portugueses”(2).

No entanto, nem o vasto conjunto das informações sobre a realidade natural e


humana fornecidas pelos Descobrimentos, nem a evolução dos valores e das atitudes
relativamente ao homem introduzidas pelo Renascimento e pelo Humanismo foram sufi-
* Racismo: ideias ou cientes para modificar o racismo* e o etnocentrismo patentes na forma herdada do pas-
preconceitos que valorizam
sado como os Europeus compreendiam e se relacionavam com o “outro” civilizacional.
as diferenças biológicas
entre os seres humanos,
atribuindo superioridade a (1)
Na Época Moderna, o termo “gentios” (ou pagãos) designava os povos nativos, tidos como “selvagens” ou “primi-
alguns de acordo com a tivos”.
matriz racial. (2)
Pigafetta, F. e Lopes, D. (1951), Relação do Reino do Congo e das Terras Circunvizinhas, Lisboa, ed. R. Capeans,
pp. 26-29.
Unidade 5 - As novas representações da Humanidade 67

A evangelização Cronologia

O encontro dos Portugueses com os povos do continente africano expressou-se em 1482


formas diferentes, conforme as situações. Assim, enquanto os contactos com as regiões Primeiro contacto europeu
com o Congo: Diogo Cão
da costa ocidental e na costa oriental foram superficiais e essencialmente de caráter eco- coloca o Padrão de S. Jorge
nómico, noutras os contactos culturais foram relativamente intensos, tendo a religião na margem esquerda do
rio Zadi ou Nzari (Zaire).
desempenhado um papel importante.
1520
Primeira embaixada
Consentida ou imposta, a verdade é que a evangelização contribuiu para um mudança
portuguesa enviada pelo
do olhar entre africanos e europeus, dois mundos muito desiguais mas que souberam rei D. Manuel I ao Reino do
Ngola (Angola).
encontrar formas de relacionamento e de convivência (Fig. 1).
1542
No Oriente, os Europeus encontraram sociedades evoluídas, estruturadas segundo Francisco Xavier chega
a Goa.
valores e conceitos profundamente diferentes dos seus, o que fez com que o diálogo 1548
tenha sido bem mais difícil de estabelecer. Primeiros Jesuítas no
Brasil.
Até 1542 a missionação no Oriente fora levada a cabo essencialmente pelos Francis- 1554
canos. A sua ação, no entanto, não produziu grandes resultados. Seguiram-se-lhes os O jesuíta Manuel da
Nóbrega funda em
padres Jesuítas. Graças à sua pregação, assistiu-se a conversões em massa um pouco por Piratininga (Brasil)
todo o Oriente(3), mas a percentagem dos convertidos era extremamente diminuta. o Colégio de S. Paulo.
1583
Acresce que a maior parte destas conversões era superficial e não puseram verdadeira- Evangelização pelos
mente em causa a essência hindu ou budista dos novos “cristãos”. Por outro lado, os Franciscanos.
comportamentos de prepotência e intolerância religiosa por parte dos Europeus acaba- 1597
Os missionários cristãos
ram por fazer fracassar a ação missionária. A reação das autoridades indígenas na China são expulsos do Japão.
e no Japão traduziu-se em perseguições sangrentas.

No continente americano, o processo de dominação espanhola do Novo Mundo teve


consequências civilizacionais devastadoras: a destruição quase total das formas de orga-
nização indígenas e o extermínio da população e das culturas florescentes pré-colombia-
nas dos Aztecas, Maias e Incas.

A descoberta do Brasil, em 1500, por Pedro Álvares Cabral, marcou o início da pre-
sença portuguesa no continente americano. No entanto, só algumas décadas mais tarde
é que Portugal encetou a sua colonização sistemática e com ela a missionação, desta-
cando-se neste processo o padre jesuíta português Manuel da Nóbrega, que defendeu a
criação de aldeamentos (ou “reduções”), comunidades organizadas onde os nativos esta- Fig. 1. Crucifixo africano de
riam protegidos da escravização e seriam instruídos na moral e na doutrina cristãs. inspiração cristã (séc. XVI).

A escravização

Com a descoberta do Golfo da Guiné chegaram a Portugal os primeiros escravos negros


? Questão
da costa africana. A partir de então, o interesse pelo escravo africano não pararia de cres-
cer e Portugal intensificou o seu tráfico, tendo o escravo negro sido utilizado fundamen- 1. Que papel desempenhou
a evangelização no
talmente como mão de obra doméstica substituindo o escravo mouro. Em 1486 foi criada
encontro entre
a Casa dos Escravos para organizar este lucrativo comércio. Portugueses e Africanos?

(3)
Em 1576 haveria assim 50 000 cristãos no Sudeste Indiano, número que subiu aos 150 000 na China (em 1635)
e aos 300 000 no Japão (em 1613). Na Etiópia, na década de 20 do século XVII, haveria 200 000.
68 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Cronologia Na primeira metade do século XVI organizou-se o tráfico negreiro entre as costas de
África e as da América para o trabalho nas minas de ouro e de prata mexicanas e perua-
1486
Fundação da Casa dos nas. A colonização do Novo Mundo pelos Espanhóis e o incremento da produção açuca-
Escravos. reira no Brasil fizeram aumentar significativamente a procura de escravos. Com os mer-
1570
cados do litoral já muito enfraquecidos, a procura de peças (escravos) passou a fazer-se
Primeira lei de restrição da
escravidão dos índios do diretamente no interior, quer através de incursões para a sua captura quer através de
Brasil. um comércio organizado. Outra forma de adquirir escravos era através da exigência do
Morte do padre Manuel da
Nóbrega no Rio de Janeiro. pagamento de tributo, sob a forma de escravos, aos sobas ou chefes tribais.
1639
Bula papal de condenação Os efeitos do tráfico esclavagista foram devastadores para as sociedades africanas:
do tráfico de escravos intensificaram-se os conflitos tribais para o aprisionamento de escravos, a população foi
índios.
dizimada e as suas possibilidades de desenvolvimento comprometidas. Para os territó-
1761
Abolição do tráfico de rios de acolhimento, estas migrações forçadas resultaram num recrudescimento das ten-
escravos na metrópole: sões étnico-culturais e no desenvolvimento do fenómeno da miscigenação.
declaravam-se libertos os
escravos que entrassem
em Portugal. – Os antecedentes da defesa dos direitos humanos
Para lá de todo o manancial de informações geográficas e científicas, os Descobrimen-
? Questão tos – e este foi talvez o seu contributo mais importante – demonstraram a semelhança
física do género humano, desmistificando as conceções até então dominantes, que
1. Que consequências
demográficas davam conta de seres misteriosos, de aspeto muito diferente dos europeus, seres sub-
e económicas resultaram -humanos, portanto inferiores.
para o continente africano
da intensificação do tráfico O cronista João de Barros, na I Década, dá-nos uma síntese do pensamento português
de escravos para
a América? sobre esta matéria que revela uma consciência da unidade do homem. No entanto, o seu
pensamento manifesta ainda a tradicional intolerância religiosa que não reconhece legiti-
midade às crenças “infiéis”.

Em Espanha, Bartolomeu de las Casas, padre dominicano que missionou nas Antilhas,
defendeu que se deveria instruir os Índios na fé cristã mas sem violência, pois também
eram filhos de Deus. Um outro dominicano, Francisco de Vitória (c. 1480-1546), contes-
tou princípios e comportamentos nas relações com os pagãos e infiéis questionando
nomeadamente o dever invocado pelos cristãos de obrigar os índios, se necessário pela
força, a obedecer às suas leis. O holandês Hugo Grócio (1583-1645)(4) defendeu a unidade

Direitos Humanos*:
racional e social do homem e a superioridade do direito natural, isto é, dos direitos
constituem as proteções comuns à natureza humana, portanto, a todos os homens. O Protestantismo deu também
mínimas que permitem ao
um contributo importante ao defender a liberdade de consciência, uma pedra essencial
indivíduo viver uma vida
digna, defendido das do edifício dos direitos humanos*.
arbitrariedades do poder;
são, por conseguinte, uma
espécie de espaço
“sagrado”, intransponível,
constituído pelas
chamadas “liberdades
fundamentais” do
indivíduo, do homem.

(4)
Grócio é o fundador da teoria do direito natural moderno; protestante, foi profundamente influenciado pelos juris-
tas espanhóis do século XVI, em especial Francisco Vitória.
Questões para Exame 69

Questões para Exame


1

Documento 1 | As elites urbanas e cortesãs Documento 2 | Os humanistas


europeias dos séculos XV e XVI
Os humanistas interessavam-se por tudo o que
dizia respeito ao homem, mas particularmente pela
natureza humana e por conseguinte por si próprios.
Esta tomada de consciência do eu produziu tam-
bém sem dúvida aqueles aspetos que se encontram
tradicionalmente associados com o Renascimento:
vaidade egoísta, grande imoralidade, ambição da
fama e de um nome imortal.

S. Dresden (1968), O Humanismo no Renascimento,


Porto, Ed. Inova, p. 227.

Fig. 1. O retrato dos Cônjuges Arnolfini, obra de Jan van Eyck


(Londres, Galeria Nacional, 1434).

Documento 3 | A corte de D. Manuel I

1.1. Justifique a importância dada à civilidade pelas elites


urbanas e cortesãs europeias nos séculos XV e XVI
(doc. 1).

1.2. Explicite os interesses dos humanistas enunciados no


documento 2.

1.3. A partir da observação do documento 3, explique a


política cultural da Coroa portuguesa no século XVI.
Fig.2. Rosto das Ordenações Manuelinas
(edição de João Pedro Buonhomini, Lisboa,
1514). Por cima da figura do rei D. Manuel no
trono, a legenda: “O rei governa no Mundo
do mesmo modo que Deus tem poder nos
Céus”.
70 Módulo 3 - A abertura europeia ao mundo – mutações nos conhecimentos, sensibilidades e valores nos séculos XV e XVI

Documento 4 | A arte do Renascimento

Fig. 4. Pormenor de
A Primavera (1482), de
Fig. 3. Igreja de Santo Botticelli: a deusa das flores
André, de Mântua, 1470, primaveris adornada com
obra de Leon Battista. ramos e flores.

Documento 5 | A arte manuelina ou gótico-manuelina

2.1. Identifique nas figs. 3 e 4 (documento 4) três características da


arte do Renascimento.

2.2. Tendo em conta elementos da fig. 5 (documento 5), caracterize


a denominada arte manuelina ou gótico-manuelina.
Fig. 5. Portal sul do Mosteiro dos
Jerónimos, obra de João de Castilho.

3
Documento 6 | A Contrarreforma Católica

Fig. 7. Auto-de-fé em Lisboa.

3.1. Analise a ação da Inquisição em Portugal tendo em conta os seguintes


tópicos de desenvolvimento:
– o interesse régio na sua criação.
– o seu impacto na economia, na ciência e na cultura.
Fig. 6. Rosto do Regimento do
Santo Ofício da Inquisição dos Integre na resposta, para além dos seus conhecimentos, os dados das
reinos de Portugal, de 1640. figuras 6 e 7 (documento 6).
Unidade 1 - A população da Europa nos séculos XVII e XVIII: crises e crescimento 71

Módulo 4 11.° Ano


A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder
e dinâmicas coloniais
1. A população da Europa nos séculos XVII e XVIII: crises e crescimento
2. A Europa dos estados absolutos e a Europa dos parlamentos
3. Triunfo dos estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII
4. Construção da modernidade europeia

Contextualização
A Europa política dos séculos XVII e XVIII caracteriza-se pela afirmação do Estado absoluto
e burocratizado, apoiado nas conceções do absolutismo régio e na sociedade de ordens.
O Estado parlamentar está confinado ao noroeste europeu, às Províncias Unidas e à Inglaterra.
No plano económico, a dinâmica do capitalismo europeu de matriz mercantilista reforçou as
economias nacionais, fomentou os conflitos políticos e as disputas coloniais entre estados.
Na segunda metade do século XVIII, a reunião de um conjunto de condições favoráveis per-
mitiu à Inglaterra ganhar uma vantagem decisiva no arranque para a grande aventura da
industrialização e construir uma hegemonia económica, para a qual também contribuiu a
economia portuguesa e em particular o ouro do Brasil. Cronologia
No domínio cultural, os progressos científicos e técnicos e as mudanças de mentalidade sus-
citados pela filosofia das Luzes alicerçaram a construção da modernidade europeia, cujos 1580-1590
Maus anos agrícolas
princípios e valores inspiraram o projeto político, social e cultural pombalino em Portugal. sucessivos na Europa.
1618-1648
Guerra dos Trinta Anos
e epidemias.
1628-1631
Epidemia de peste na
Unidade 1 A população da Europa nos séculos XVII e XVIII: crises e Alemanha, França e no
norte de Itália.
crescimento 1640-1668
Guerra da Restauração,
entre Portugal e Espanha.
SUMÁRIO
1642-1648
– Fatores de instabilidade demográfica: as crises demográficas Guerra civil em Inglaterra.
– Os mecanismos autorreguladores 1643-1645
– Uma nova demografia a partir de meados do século XVIII Levantamentos
generalizados no sul de
França contra o fisco.
APRENDIZAGENS RELEVANTES
1648-1651
- Reconhecer nas crises demográficas um fator de agravamento das condições do mundo Peste em Espanha.
rural e de perturbação da tendência de crescimento da economia europeia. 1648-1652
Guerra civil (“Fronda”)
CONCEITOS/NOÇÕES e peste em França.
Crise demográfica; Economia pré-industrial** 1665-1666
Grande peste em Londres.
* Conteúdos de aprofundamento 1690-1694
** Aprendizagens e Conceitos estruturantes Surto generalizado de
peste e fome na Europa.
72 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

* Crise demográfica: período – Fatores de instabilidade demográfica: as crises demográficas


mais ou menos prolongado
em que o número de óbitos A irregularidade da evolução da população, traduzida na alternância de tendências de
ultrapassa o número de crescimento e recuo de ritmos e amplitudes variáveis segundo as regiões e as épocas, cons-
nascimentos: o número de
casamentos diminui, bem titui um dos traços mais distintivos da demografia de tipo antigo que caracterizou a Europa
como as taxas de dos séculos XVI a XVIII. As causas desse fenómeno são conhecidas: um equilíbrio frágil
fecundidade e natalidade,
pelo que a população entre o quantitativo da população e as subsistências; as crises demográficas* responsá-
estagna ou declina. veis por quebras populacionais acentuadas nos períodos de rutura desse equilíbrio.

As sociedades do Antigo Regime viveram numa situação de permanente escassez de


recursos alimentares. Por isso, as sociedades viam-se perante um problema caracterís-
* Economia pré-industrial: tico das economias pré-industriais*: para produzir mais eram necessários mais homens,
expressão utilizada para
mas este aumento de braços implicava também mais bocas para alimentar, logo uma
designar uma economia
que não entrou ainda na maior pressão sobre as subsistências. Dois anos consecutivos de más colheitas represen-
era da industrialização: tavam a fome generalizada, epidemias e mortes. Já elevada em anos de produção normal,
essencialmente agrária
e com um setor industrial a mortalidade atingia então níveis catastróficos e instalava-se a crise demográfica. Mesmo em
pouco importante; fraca épocas de relativa normalidade, as taxas de mortalidade eram elevadas devido a malforma-
produtividade agrícola
e industrial; persistência ções genéticas, a acidentes pré-natais (fatores endógenos)(1), à falta de higiene, aos atrasos
de laços e formas de da medicina, a uma alimentação imprópria, acidentes e contágios (fatores exógenos)(2).
exploração de natureza
feudal.
– Os mecanismos autorreguladores
Apesar das potencialidades de crescimento demográfico decorrentes da elevada taxa de
? Questões natalidade e da estrutura jovem da população, nas sociedades de Antigo Regime a taxa de
substituição ou saldo fisiológico(3) situava-se próximo da unidade. Um saldo fisiológico tão
1. Explicite as relações
entre crise alimentar escasso tornava o equilíbrio demográfico precário. Não obstante, existiam mecanismos
e crise demográfica; guerra autorreguladores, isto é, comportamentos biológicos, sociais, morais e religiosos capazes de
e demografia.
contrabalançar os efeitos de uma evolução demográfica irregular, com oscilações de cresci-
2. Enuncie os principais
mecanismos mento excessivo e quebras acentuadas. Constituíam fatores de limitação do crescimento:
autorreguladores da
– o casamento tardio (em média entre os 20 e os 30 anos), conjugado com a fraca
demografia do Antigo
Regime. esperança média de vida e a mobilização dos maridos para a guerra, limitava o
tempo das uniões matrimoniais e a capacidade reprodutora dos casais;
– o celibato definitivo (sobretudo masculino);
– os intervalos intergenésicos relativamente longos(4) (30 meses em média), os abor-
tos espontâneos e a esterilidade feminina precoce;
– a resistência aos casamentos de viúvas e a condenação das conceções pré e extra-
matrimoniais.

Por outro lado, na presença de crises demográficas o regime demográfico antigo con-
servava faculdades de recuperação:
– elevadas taxas de fecundidade e natalidade;
Fig. 1. São Francisco em
– a diminuição da idade no casamento e a sua multiplicação.
Êxtase, c. 1660 (Francisco
de Zurbarán). A morte
(1)
e os seus símbolos eram Fatores endógenos: causas anteriores ao nascimento.
(2)
uma presença constante Fatores exógenos: causas posteriores ao nascimento.
no pensamento e devoção (3)
Diferença entre a mortalidade e a natalidade, ou seja o deve e o haver na contabilidade da população.
quotidianos nos séculos (4)
Intervalos de tempo existentes entre o nascimento dos filhos. Em média eram largos e tendiam a aumentar à
XVII e XVIII. medida que novas crianças nasciam.
Unidade 1 - A população da Europa nos séculos XVII e XVIII: crises e crescimento 73

– Uma nova demografia a partir de meados do século XVIII


Em 1740 os sinais de uma nova tendência demográfica começam a desenhar-se em boa
parte da Europa Ocidental. Primeiro na Grã-Bretanha, que beneficia de uma conjuntura
económica favorável. A diminuição da mortalidade (mais nítida nos adultos, menos visível
e mais lenta nas idades infantil e juvenil) é o indicador mais significativo de uma demo-
grafia nova e explica-se pela diminuição da frequência e da violência das fomes, das epi-
demias e das guerras. Um outro indicador é o aumento da esperança média de vida(5).

Estas transformações processadas, de forma lenta e gradual, na estrutura demográ-


fica das sociedades europeias a partir de meados do século XVIII justificou a designação
de revolução demográfica. Da conjugação da baixa da mortalidade com a manutenção ou
o aumento da natalidade, devido sobretudo à diminuição da idade do casamento e a
casamentos mais numerosos, resultaram importantes ganhos populacionais(6) e foi então
possível contornar as crises demográficas e a penúria de homens que caracterizaram o
regime demográfico antigo.

N.¡
300
200
îbitos
100
50

20
10 Conce›es
5
25
20
15
Casamentos
10
5

1624 1625 1626 1627 1628 Anos

Fig. 2. Crises demográficas e casamentos. Crise de 1625-1627 em Saint-Lambert-de-Levées.

37
35,44 ? Questões
35 34,1 33,84
33,4 33,39
34,0 34,4 34,23
33,3 33,3
Por 1000 habitantes

32,36
1. A partir dos elementos
31,1 30,5 32,0 31,7
31,43
30
29,7
fornecidos, caracterize
27,5 28,8
28,2 o modelo demográfico de
27,9
26,7 25,65 tipo antigo.
26,7
25 26,0
23,14
20,33 21,65
2. Caracterize o novo
19,98 modelo demográfico,
20 20,80
relacionando-o com as
170010 20 30 40 1750 60 70 80 90 1800 10 20 30 40
êndice de natalidade
alterações verificadas na
êndice de mortalidade sociedade europeia na
Fig. 3. A revolução demográfica em Inglaterra. segunda metade do século
XVIII.

(5)
Esperança média de vida: duração média de vida previsível de um indivíduo, consoante as condições de mortalidade
que existem no seu ano de nascimento.
(6)
Este crescimento foi tão notado que suscitou reações alarmistas, destacando-se Thomas Malthus (1766-1834),
autor de Ensaio Sobre o Princípio da População (1798), onde defende que a taxa de crescimento da população segue
uma progressão geométrica e a taxa à subsistência não vai além de uma progressão aritmética, pelo que a fome seria
inevitável. A solução estaria no controlo da natalidade (celibato e casamento tardio), sobretudo para quem não
pudesse (os pobres) assegurar o seu próprio sustento e o dos seus familiares.
74 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

Unidade 2 A Europa dos estados absolutos e a Europa dos


parlamentos
SUMÁRIO
2.1. Estratificação social e poder político nas sociedades de Antigo Regime*
2.2. A Europa dos parlamentos: sociedade e poder político

APRENDIZAGENS RELEVANTES
- Compreender os fundamentos e as formas da organização político-social do Antigo
Regime**.
- Reconhecer a importância da afirmação de parlamentos numa Europa de estados abso-
lutos**.

CONCEITOS/NOÇÕES
Antigo Regime**; Monarquia absoluta**; Ordem/estado**; Estratificação social**; Mobilidade
* Antigo Regime: do social; Sociedade de corte; Parlamento**
francês, Ancien Régime,
* Conteúdos de aprofundamento
expressão pejorativa
criada nos anos anteriores ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
à Revolução Francesa para
designar o conjunto das
instituições políticas,
sociais e jurídicas que os
revolucionários pretendiam
substituir: monarquia 2.1. Estratificação social e poder político nas sociedades de
absoluta, privilégios da
nobreza e do clero, direitos
Antigo Regime
senhoriais, etc. Por
extensão e analogia, é um – A sociedade de ordens assente no privilégio e garantida pelo absolutismo régio
conceito utilizado pela de direito divino
historiografia para
designar o período da A sociedade europeia de Antigo Regime* (sécs. XVI-XVIII) organiza-se em três ordens ou
história europeia do século
XVI às revoluções liberais estados*: o clero, a nobreza e o terceiro estado. A cada ordem corresponde um determi-
(sécs. XVIII ou XIX, nado estatuto, que comporta ao mesmo tempo obrigações e privilégios, justificados pelo
segundo os países).
nascimento ou pela função atribuída a cada ordem. A riqueza não é um critério decisivo.
* Ordem/estado: categoria
ou corpo social tendo por O clero ocupa o primeiro lugar na hierarquia social. O prestígio e o poder espiritual e
base a função
desempenhada na temporal da Igreja junto dos poderes políticos e das sociedades modernas permitiram ao
sociedade e o nascimento, clero beneficiar da proteção dos monarcas absolutos e preservar os seus tradicionais pri-
definia-se por critérios
como a honra, o estatuto vilégios (direito canónico, imunidades, cobrança do dízimo) e manter o seu ascendente
e o prestígio atribuídos
social, cultural e religioso junto das populações.
a essa função.
* Mobilidade social: A nobreza, elite militar e fundiária, constitui o segundo estado e usufrui também de
possibilidade de alteração uma situação privilegiada na estrutura política e social do Antigo Regime.
do posicionamento ou
estatuto social de um Ao terceiro estado, a maioria da população, cabia-lhe a produção de subsistências e
indivíduo. Apesar da
relativa rigidez da o peso dos impostos. Trata-se de uma ordem não privilegiada, muito heterogénea na sua
hierarquia social, no Antigo composição e nos níveis de rendimento.
Regime abriam-se ao
terceiro estado várias vias Apesar da rigidez desta hierarquia, a verdade é que a sociedade do Antigo Regime
de ascensão social:
a entrada no clero desenvolveu uma relativa mobilidade social*. A aquisição de títulos ou de terras cuja
e o enobrecimento (por
posse enobrecesse o acesso a lugares superiores na administração do Estado ou o casa-
concessão ou aquisição de
títulos). mento eram vias possíveis de ascensão social.
Unidade 2 - A Europa dos estados absolutos e a Europa dos parlamentos 75

– Pluralidade de estratos sociais, de comportamentos e de valores


A sociedade de ordens de Antigo Regime foi adquirindo uma crescente complexidade
e uma maior mobilidade relativamente ao modelo feudal. Com efeito, a estratificação
social* englobava no interior de cada uma das ordens um conjunto diversificado de estra- * Estratificação social:
divisão da sociedade em
tos ou classes. No clero, encontramos o clero secular (papa, cardeais, bispos e párocos) estratos, classes ou
e o clero regular (ordens religiosas masculinas e femininas), o alto clero (cardeais, bis- categorias sociais
distintas.
pos e abades ou abadessas) e o baixo clero (párocos ou curas e monges).

Na nobreza encontramos também diferenças substanciais entre uma alta nobreza e


* Monarquia absoluta:
uma baixa ou pequena nobreza muito inferior àquela em níveis de vida e até de esta-
regime monárquico no qual
tuto, nobreza de corte, nobreza provincial, nobreza de toga (administração) e da nobreza o soberano se considera
legitimado por Deus
de espada (exército), por oposição à velha nobreza de sangue ou de linhagem que pro- (origem divina do poder
cura desesperadamente conservar a sua proeminência tradicional. real) para exercer o poder
soberano e absoluto, isto
No terceiro estado o principal fator de diferenciação é o critério de riqueza/pobreza, é, a jurisdição suprema,
livre de controlos ou
destacando-se a burguesia ligada às atividades mais lucrativas, como o comércio, a limitações e a centralização
dos poderes na sua pessoa
banca, a indústria e as profissões liberais e os proprietários fundiários. Abaixo desta, (sagrada).
situa-se a multidão dos explorados e subjugados pelas elites urbanas e rurais: os peque-
nos comerciantes, artífices, camponeses e os vagabundos e mendigos.
* Sociedade de corte:
A hierarquia social expressava-se também nos valores e comportamentos na vida quo- designa o conjunto
numeroso de pessoas que
tidiana. Os indicadores de diferenciação são muito diversificados e constatam-se em viviam na residência e em
domínios tão vulgares como o do vestuário, dos hábitos alimentares, da habitação, das volta do soberano (corte)
e a organização da vida
diversões, dos modos de tratamento, etc. Cada ordem possui um código de conduta pró- cortesã que se tornou
muito complexa,
prio que a identifica com a sua função e estatuto social. As diferenças obviamente mais
cerimoniosa e protocolar
nítidas distinguem os membros das ordens privilegiadas do clero e da nobreza dos não com o absolutismo
monárquico. A corte na
privilegiados do terceiro estado. Idade Moderna era o centro
do poder político da
monarquia, objeto de
– Os modelos estéticos de encenação do poder atração da nobreza
e símbolo do poder
A centralização político-administrativa da monarquia absoluta* e a natureza sagrada e prestígio do soberano.
de um rei, que comunga da Majestade e da proteção divinas e que dispõe da jurisdição O Palácio de Versalhes
constituiu o modelo dos
suprema sobre todos os seus súbditos, exigiam um espaço físico adequado. Assim, nos palácios reais. A sua
centros urbanos mais importantes dos estados, as capitais, começam a erguer-se impo- dimensão (chegou
a albergar 20 000
nentes e luxuosos palácios para albergar a casa real e o numeroso séquito dos cor- pessoas) e luxo incomuns
impressionaram todas as
tesãos.
cortes europeias.
A corte* e a vida cortesã adquiriram, com o absolutismo real, uma dimensão e impor-
tância proporcionais à imagem do poder absoluto e da autoridade suprema que os sobe-
? Questões
ranos reivindicavam para si, pretendendo inculcar nos seus súbditos e projetar para o
exterior das fronteiras do seu Estado. A corte absolutista assentava em dois pilares 1. Caracterize a sociedade
do Antigo Regime.
essenciais: o luxo e magnificência dos espaços onde se movimenta o rei e os cortesãos;
2. Identifique modelos
a hierarquia regulada por uma etiqueta rigorosa englobando as maneiras de estar, de estéticos de encenação
ou representação do poder
vestir, de falar e de gesticular, as precedências e até os divertimentos correspondendo a
absoluto na Europa nos
outras tantas formas de encenação ou representação do poder. séculos XVII e XVIII.
76 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

– Sociedade e poder em Portugal: preponderância da nobreza fundiária


e mercantilizada
A organização e a vida da sociedade portuguesa do Antigo Regime foram profunda-
mente influenciadas por dois fenómenos que marcaram o início dos tempos modernos:
a expansão ultramarina, que transformou Portugal numa potência comercial-marítima; e
a progressiva afirmação do absolutismo régio que, sem pôr em causa a hierarquia social
Cronologia tradicional, determinou alterações significativas nos comportamentos sociais, na compo-
sição das ordens e nas relações destas com o poder.
1706-1750
Reinado de D. João V. Aos nobres que se adaptaram aos novos tempos, instalando-se nas cidades, em espe-
1720
cial na capital, na vizinhança da corte régia, o lugar ideal para obter cargos, títulos, remu-
Fundação da Academia
Real da História. nerações e outras dádivas reais, abriram-se novas fontes de enriquecimento e de valori-
1730 zação social através dos negócios, do exército e da administração do Estado. Definem-se
Construção do Mosteiro
de Mafra.
desta forma no seio da nobreza diferentes categorias funcionais: a nobreza mercantilizada
1732 (cavaleiro-mercador), ligada ao tráfico marítimo, a nobreza de espada, com funções essen-
Início da construção da cialmente militares, e a nobreza de corte, com altas funções administrativas. Numa situa-
Igreja dos Clérigos (Porto).
ção bem diferente encontram-se os fidalgos que continuam agarrados ao preconceito sobre
1733
Conclusão da Torre da o trabalho manual, vivendo na província de rendimentos fundiários (nobreza provincial).
Universidade de Coimbra.
Talha dourada barroca
da Igreja de S. Francisco – Criação do aparelho burocrático do Estado absoluto no século XVII
(Porto).
Primeira ópera portuguesa Em Portugal, o absolutismo real apresenta idênticas tendências gerais de centraliza-
em estilo italiano. ção e burocratização. As tendências centralizadoras do poder real começam a afirmar-se
1746 ainda na Baixa Idade Média e no início da Idade Moderna(1), mas o absolutismo português
Publicação do Verdadeiro
Método de Estudar, de só se estruturou verdadeiramente na segunda metade do século XVII e no século XVIII.
Verney.
1747 Essa estruturação assentou, em primeiro lugar, na reorganização da justiça. Os prin-
Início da construção do cipais tribunais do Reino – a Casa da Suplicação, a Casa do Cível, o Tribunal (ou Mesa)
palácio de Queluz.
do Desembargo do Paço e a Mesa da Consciência e Ordens – foram objeto de diversas
1748
Inauguração do Aqueduto reformas com vista a um controlo régio mais eficaz sobre o exercício da justiça.
das Águas Livres (Lisboa).
No que respeita à governação, o papel das cortes apagou-se quase completamente.
O infante D. Pedro – futuro D. Pedro II – dissolveu-as em 1674 por suposta ingerência
nos negócios do governo, tendo sido reunidas pela última vez em 1697-1698 para jura-
rem herdeiro da coroa o príncipe D. João.

Relativamente aos conselhos, depois de um período mais ativo que se seguiu à res-
tauração da independência, perderam a sua importância em favor de um número restrito
de secretários, favoritos do rei que trabalhavam na sua dependência direta.

A política de centralização e burocratização estendeu-se também aos assuntos econó-


micos e financeiros. Foram introduzidas profundas reformas no sistema das finanças
públicas com o objetivo de uma fiscalização mais apertada, nomeadamente sobre as
alfândegas e a arrecadação dos impostos. A criação de companhias privilegiadas e de
monopólios, tanto para o comércio como para a indústria, serviu também os objetivos de
controlo e centralização económica do absolutismo régio.

(1)
Recorde a instituição das sisas gerais por D. João I, a Lei Mental de D. Duarte, as Ordenações Afonsinas publicadas
pelo regente D. Pedro (1439-1348) e a disciplinação da nobreza por D. João II.
Unidade 2 - A Europa dos estados absolutos e a Europa dos parlamentos 77

– O absolutismo joanino Cronologia

A conjuntura económica favorável da primeira metade do século XVIII, proporcionada 1568


pelo ouro do Brasil e pela exportação do vinho para Inglaterra, deu a D. João V (1706-1750) Sublevação do príncipe
Guilherme de Orange
os meios financeiros necessários para se rodear do aparato exterior, à imagem do monarca contra o domínio espanhol;
francês Luís XIV. Enriqueceu o Paço da Ribeira, residência real à beira Tejo, em Lisboa, e início da luta dos Países
Baixos pela independência.
promoveu a construção de novos espaços palacianos, como o palácio dito “dos Bichos”,
1579
em Belém, o convento-palácio de Mafra e o monumental Aqueduto das Águas Livres União de Utrecht:
constituição das Províncias
(Lisboa). Pela riqueza ornamental e decorativa sobressaem a Biblioteca da Universidade de
Unidas (Províncias do
Coimbra e a Capela de S. João Baptista da Igreja de S. Roque, em Lisboa. Norte, calvinistas).
1581
Ao mesmo tempo, D. João V proporcionou à sua corte o luxo adequado à exaltação Declaração de
da figura de um monarca absoluto e ele próprio assumiu o papel de mecenas da vida Independência das
Províncias Unidas.
cultural, financiando o teatro, a Academia Real de História, a publicação e aquisições de
livros e a construção de bibliotecas.

Não obstante, as realizações joaninas tiveram sobretudo um caráter formal, espetacu-


lar e ornamental, não trazendo grandes inovações ao ambiente cultural tradicional no
País, onde a influência dominante dos jesuítas e da Inquisição se manteve. As novas
ideias que chegavam até nós deviam-se fundamentalmente a um grupo restrito de inte-
lectuais portugueses emigrados, os chamados “estrangeirados”.

No plano da governação, D. João V reforçou o papel da coroa, recrutando um maior


número de burocratas e intelectuais para a administração do Reino, ao mesmo tempo que
controlava a nobreza com a concessão de tenças e de outras dádivas. Restringiu a
influência política dos conselhos, transferindo esse poder para secretários. Para os finais
do seu reinado, e com a quebra nas remessas do ouro do Brasil, a crise económica, a
corrupção e a desorganização administrativa, o poder do Estado fragilizou-se e a nobreza
fortaleceu o seu poder pondo em causa os objetivos da sua política absolutista.

2.2. A Europa dos parlamentos: sociedade e poder político


– Afirmação política da burguesia nas Províncias Unidas, no século XVII
Consumada a libertação política, as Províncias Unidas, criadas em 1579 pela União de
Utrecht, integrando sete províncias do norte dos Países Baixos(2), maioritariamente calvi-
nistas, transformaram-se num espaço de liberdade e de oportunidade para todos aque-
les que eram vítimas da intolerância política e religiosa: protestantes, mouriscos, judeus,
intelectuais e políticos perseguidos pelas monarquias absolutistas europeias. Com a imi-
gração de pessoas vieram também conhecimento e capitais, preciosas mais-valias para o
seu desenvolvimento.

O sistema de monarquia absoluta dominante na Europa não se ajustava a uma socie-


dade burguesa liberal e empreendedora. A luta pela independência e a prosperidade
económica exigiam um sistema político liberal, capaz de conjugar a autonomia das cida-
des e províncias e as necessidades gerais de um Estado unificado. No cimo da hierarquia
política estavam os Estados Gerais, que se reuniam em Haia e que agrupavam os dele-
gados das diferentes províncias.

(2)
Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Groninga, Overijssel e Gueldres.
78 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

Apoiada numa burguesia empreendedora e no papel de Amesterdão, centro econó-


mico e financeiro da Europa, e numa rede de rotas marítimas à escala mundial, as Pro-
víncias Unidas tornam-se uma república burguesa e liberal.

– Grócio e a legitimação do domínio dos mares


Afastada dos portos ibéricos, a Holanda, a mais ativa das sete Províncias Unidas,
encontrou uma alternativa: cruzar os mares e constituir um império colonial.
Fig. 1. Hugo Grócio (1583- Mas esta tarefa não era de realização pacífica. Portugal e Espanha reivindicavam, com
-1645). Jurista e diplomata
holandês. No seu Mare base na prioridade da descoberta e na doação pontifícia (reconhecidos, de uma maneira
Liberum (1609) defendeu geral, pelos outros estados europeus), o direito de exclusividade de navegação e do
a liberdade de navegação
e comércio, contra comércio com as terras e os povos integrados nos respetivos impérios coloniais.
a doutrina do Mare
Clausum, legitimada pela Mas, confiante nas capacidades da sua poderosa marinha e armada, liberta de deve-
Santa Sé, segundo a qual res morais de respeito pelas determinações papais (era protestante, maioritariamente cal-
mares e territórios
pertenciam aos seus vinista), a Holanda avançou com o seu projeto colonial. Um incidente surgido em 1603,
descobridores. a sul da península de Malaca, entre um navio português – a nau Santa Catarina – e dois
navios holandeses da poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais, esteve na ori-
gem da obra de Hugo Grócio (1583-1645) (Fig. 1), De Jure Praedae, onde defendeu a liber-
dade de navegação e comércio para todos os povos (doutrina do mare liberum), contes-
tando as pretensões de Portugal e de Espanha ao direito de monopólio da navegação
(mare clausum).

– Recusa do absolutismo na sociedade inglesa


Apesar da tradição de resistência ao autoritarismo monárquico, cujas raízes remontam
à célebre Magna Carta (1215)(3), os monarcas da dinastia Tudor (1485-1603) instauram o
absolutismo em Inglaterra. Em 1603, Jaime I (1603-1625), rei da Escócia e herdeiro dos
Tudor, proclama-se soberano da Grã-Bretanha e inaugura a dinastia dos Stuart (1603-
-1648). O seu reinado inicia um período de lutas violentas motivadas por conflitos de
natureza política e religiosa. Com Carlos I (1625-1649) acentuam-se as divisões entre o
* Parlamento: assembleia monarca e o Parlamento*. Em 1628, o Parlamento exige, mediante a Petição dos Direitos
representativa: na Baixa
(Bill of Rights), garantias face às detenções arbitrárias e aos impostos.
Idade Média e Moderna, os
parlamentos eram
compostos por
A sublevação dos católicos irlandeses (“matança do Ulster”, 1641) e a detenção de
representantes designados alguns dos principais deputados precipitam a guerra civil (1642-1648), que vai confron-
pelas ordens; na Época
Contemporânea,
tar os partidários da coroa, os “Cavaleiros” e os partidários do Parlamento, conhecidos
a representação política por “Cabeças Redondas”(4). Desta guerra sai vencedor o Parlamento, cujas forças eram
resulta do sufrágio.
comandadas por Olivier Cromwell (1599-1658). Carlos I é executado em 1649 e a monar-
quia abolida. Instaurado o regime republicano (Commonwealth) (1649-1660), a Ingla-
terra passa a ser governada pelo Parlamento.

(3)
Magna Carta (1215): imposta pela aristocracia inglesa ao rei João Sem Terra que ficava obrigado a respeitar as leis
tradicionais e os privilégios da nobreza, a consultar o Tribunal do Rei antes de lançar impostos, a não mandar pren-
der ou condenar alguém sem ser julgado.
(4)
“Cabeças Redondas” (Roundheads): assim designados pelo uso do cabelo muito curto, segundo um uso muito comum
entre os puritanos.
Unidade 2 - A Europa dos estados absolutos e a Europa dos parlamentos 79

Todavia, não por muito tempo. Em 1653, Cromwell assume o título vitalício de Lord Cronologia
Protector, dissolve o Parlamento, inicia uma ditadura pessoal. A sua morte, em 1658,
Inglaterra
abriria caminho à restauração da monarquia com Carlos II (1660-1685), filho do rei deca- 1625-1649
pitado em 1649. Recomeçam as tensões entre a Coroa e o Parlamento. Recusa do absolutismo:
lutas entre a Coroa
A Carlos II sucedeu Jaime II (1685-1688), católico, que tenta a restauração oficial do e o Parlamento.
1628
catolicismo. A reação anglicana irrompe de forma violenta, a oposição parlamentar soli-
O Parlamento impõe
cita a intervenção de Guilherme III de Orange (statouther da Holanda, casado com a filha a Carlos I a Petição de
Direitos (Bill of Rights).
mais velha do rei inglês) e oferece-lhe a coroa inglesa. Jaime II foge para França. Termi-
1642-1648
nava desta forma a pacífica “Revolução Gloriosa” (Glorious Revolution) de 1688, da qual Guerra Civil (Coroa vs.
resultaram importantes consequências: Parlamento).
1649
– a Declaração dos Direitos (Declaration of Rights) de 1689, que impõe importantes Execução de Carlos I
limitações ao poder real; e abolição da Monarquia.
1649-1660
– a divisão de poderes; Regime republicano
(Commonwealth).
– a consagração da superioridade da lei sobre a vontade do rei, isto é, uma monar-
1660-1685
quia controlada pelo Parlamento, ou seja, uma antecipação do regime parlamentar. Restauração da Monarquia
(Carlos II).
1679
– Locke e a justificação do parlamentarismo Publicação do Habeas
Corpus Act.
John Locke(5) (1632-1704) refutou a doutrina do direito divino dos reis defendida pelo
1688
absolutismo. Retomou a doutrina do contrato social, que fundamentou com os seguintes Revolução Gloriosa
(Glorious Revolution).
argumentos:
1689
– o direito de governar vem do consentimento dos governados; Declaração dos Direitos
(Declaration of Rights).
– se um governo tentar governar de forma absoluta e arbitrária, se violar os direitos
naturais do indivíduo pode ser legitimamente derrubado;
– os direitos do indivíduo são absolutos e universais e, como tal, são sagrados, invio-
láveis.

Paralelamente, defendeu a superioridade do poder legislativo sobre o poder executivo,


a supremacia das leis naturais (liberdade, propriedade e segurança) sobre as humanas e
a tolerância religiosa.

(5)
Locke: autor de Dois Tratados sobre o Governo (1689), é considerado como o teórico da “Revolução Gloriosa” inglesa
(1688-1689) e um defensor do parlamentarismo.
80 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

Unidade 3 Triunfo dos estados e dinâmicas económicas nos séculos


XVII e XVIII

SUMÁRIO
3.1. Reforço das economias nacionais e tentativas de controlo do comércio; o equilíbrio europeu
e a disputa das áreas coloniais
* Mercantilismo: termo 3.2. A hegemonia económica britânica: condições de sucesso e arranque industrial
utilizado para designar um 3.3. Portugal – dificuldades e crescimento económico*
conjunto de doutrinas
e práticas económicas APRENDIZAGENS RELEVANTES
elaboradas na Europa, nos
séculos XVI-XVIII, cujas – Compreender a importância do domínio de espaços coloniais para o equilíbrio político dos
características essenciais estados no sistema internacional dos séculos XVII e XVIII**.
são: a preocupação
– Reconhecer, nas práticas mercantilistas, modos de afirmação das economias nacionais**.
metalista ou bulionista,
o intervencionismo e – Identificar o poder social da burguesia nos finais do século XVIII como resultado da dinâ-
dirigismo estatal, o mica mercantil e da aliança com a realeza na luta pelo fortalecimento do poder real.
protecionismo e o – Relacionar a formação de um mercado nacional e o arranque industrial ocorridos na Ingla-
nacionalismo.
terra com as transformações das suas estruturas económicas**.
* Protecionismo: política – Compreender a influência das relações internacionais nas politicas económicas portugue-
económica que privilegia sas e na definição do papel de Portugal no espaço europeu e atlântico**.
os interesses dos
produtores e comerciantes CONCEITOS/NOÇÕES
nacionais relativamente
à concorrência externa. Capitalismo comercial**; Protecionismo**; Mercantilismo**; Balança comercial**; Exclusivo colonial;
São vários os mecanismos Companhia monopolista; Comércio triangular; Tráfico negreiro; Bandeirante; Manufatura; Bolsa de
utilizados para atingir esse valores; Mercado nacional; Revolução industrial**
objetivo: concessão de
subsídios, de monopólios * Conteúdos de aprofundamento ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
e isenções fiscais;
imposição de taxas
aduaneiras e de quotas
à importação; alterações 3.1. Reforço das economias nacionais e tentativas de controlo do
do valor da moeda, etc.
comércio; o equilíbrio europeu e a disputa das áreas coloniais
Era convicção generalizada que o remédio para a crise económica que se fazia
sentir na Europa do século XVII, e a melhor forma de combater a hegemonia
comercial e financeira da Holanda e de Amesterdão, era o reforço das economias
nacionais através da intervenção do Estado na defesa e proteção dos interesses
nacionais face à concorrência estrangeira. Esta era uma política económica a que
se chamou mercantilismo* (Fig. 1), por assentar no comércio.

Apesar da diversidade das formas que tomou nos diferentes países, podemos dis-
tinguir no mercantilismo algumas características gerais comuns:

– o bulionismo (ou metalismo) – a riqueza (e poder) de um país dependeria fun-


damentalmente da maior ou menor abundância de metais preciosos ou de
moeda em circulação;

– o protecionismo*, nacionalismo económico e intervencionismo estatal (imposi-


ção de taxas e outras restrições alfandegárias às importações, concessão de
apoios às indústrias nacionais…);

– o objetivo da balança comercial* favorável;

Fig. 1. O mercantilismo. – o colonialismo (mercados fornecedores de matérias-primas baratas e consumidores).


Unidade 3 - Triunfo dos Estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII 81

O mercantilismo francês ou colbertista * Balança comercial: relação


entre o valor das
O grande obreiro do mercantilismo francês foi Colbert (1619-1683), ministro de Luís importações e das
exportações de
XIV, que com grande sentido prático imprimiu à política mercantilista um cunho muito
mercadorias (bens visíveis)
próprio, que justificou o nome de colbertismo. num determinado período
(em regra, um ano). Diz-se
Colbert adotou uma política dirigista rigorosa e definiu um conjunto de medidas tendo favorável ou positiva
quando o valor das
como objetivo prioritário o fomento industrial: exportações é superior
– criação de manufaturas* protegidas pelo Estado; ao das importações;
desfavorável ou negativa
– agravamento das taxas aduaneiras às importações de mercadorias e à exportação na situação inversa.
de matérias-primas;
* Manufatura: em sentido
– contratação de mão de obra estrangeira especializada; genérico, designa qualquer
– estímulo ao trabalho através de prémios e isenções fiscais; tipo de atividade de
transformação das
– formação de uma rede de vigilância e de regulamentação minuciosa para elevar a matérias-primas em
produtos acabados, pelo
quantidade e a qualidade das manufaturas. que é equivalente
a indústria. Em História,
Paralelamente, Colbert procurou incrementar a exploração colonial através da criação o termo é utilizado para
de companhias comerciais privadas mas com privilégios, como a concessão de monopó- designar o conjunto das
diferentes atividades
lios comerciais, e protegidas pela marinha de guerra. industriais e formas de
organização do trabalho -
Os resultados do colbertismo foram modestos. Apesar do incremento da produção indus- fraca especialização da
trial, em especial a indústria de luxo, como as manufaturas dos Gobelins(1), e do comércio, produção e uso de técnicas
de produção não
persistiram os fatores estruturais que constrangiam a economia francesa: o isolamento dos mecanizadas -
mercados urbanos e rurais, a fraca concentração das empresas, a insuficiente mecanização características de épocas
anteriores à revolução
e a escassez de capitais (investimentos especulativos, aquisição de terras e gastos militares industrial.
e sumptuários da corte). Por outro lado, a intervenção estatal traduziu-se num excesso de
controlo e de regulamentação, uma rigidez que limitou a iniciativa individual e a inovação.

O mercantilismo inglês
Na Inglaterra, a política mercantilista também se caracterizou pela preocupação bulio-
nista, proteção da produção e apoios ao comércio nacional e à marinha, mas a priori-
dade foi para o comércio e o objetivo da balança comercial. Foi esta orientação que ditou:
– os Navigations Acts (entre 1651 e 1673), com o objetivo fomentar o comércio e a
navegação ingleses e combater a hegemonia holandesa;
– a proteção à produção industrial;
– a proteção à produção agrícola através das corn-laws, leis que restringiam as impor-
tações de trigo e apoio ao alargamento das enclosures.

Estes apoios diretos e indiretos à produção, ao comércio e à marinha provocaram ? Questões


naturalmente a reação da Holanda (três guerras consecutivas), mas produziram resulta- 1. Explique as
dos surpreendentes para a economia inglesa, permitindo-lhe afirmar-se como a principal preocupações bulionistas
do mercantilismo.
potência naval europeia no século XVIII.
2. Quais as prioridades da
política mercantilista de
Colbert?
3. Quais as prioridades do
(1)
Gobelins: família de tecelões flamengos, cujas tapeçarias eram famosas pelo seu tipo de ponto rendado. mercantilismo inglês?
82 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

Cronologia O mercantilismo holandês

1713 Diferentemente da generalidade das políticas mercantilistas, os holandeses jamais


Paz de Utrecht: fim da colocaram especiais entraves à circulação dos metais preciosos e das moedas. Aliás, con-
Guerra de Sucessão de
Espanha. A Inglaterra trariando a tradicional preocupação bulionista dos mercantilistas, cunhavam mesmo moe-
incorpora os territórios das comerciais de grande valor utilizadas no comércio externo.
coloniais franceses da
Terra Nova e da Nova Por outro lado, defenderam o princípio da liberdade de navegação (doutrina do mare
Escócia e adquire Gibraltar
e Minorca a Espanha. liberum), o que, de resto, convinha ao seu papel de intermediários marítimos e ao papel
1756-1763 de Amesterdão como grande entreposto comercial e a maior praça financeira da Europa.
Guerra dos Sete Anos.
Por isso, é considerado um “mercantilismo evoluído, moderado e incompleto”, apesar de
1763
Tratado de Paris: fim da terem também recorrido a práticas protecionistas sempre que estavam em causa os seus
Guerra dos Sete Anos. interesses, como foi o caso das companhias comerciais de monopólio, a Companhia das
A Inglaterra adquire
à França o Canadá, o Cabo Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais.
Bretão, a Senegâmbia
e possessões na Índia;
O equilíbrio europeu e a disputa das áreas coloniais
à Espanha a Florida.
1794 O Tratado de Vestefália, em 1648, pôs fim a um longo período de três dezenas de
A Inglaterra conquista
a maior parte das anos de guerra na Europa, a designada Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e ao sonho
Pequenas Antilhas. da constituição de um império cristão sob a autoridade do papa e do imperador.
1796
A Inglaterra conquista aos A nova ordem europeia consagrada em Vestefália assentava no reconhecimento da
Holandeses o Cabo da Boa
Esperança e Ceilão. igualdade soberana dos estados e na independência de todos relativamente à Santa Sé.
1802 Negada, assim, a subordinação dos estados a qualquer autoridade superior, a vida inter-
Constituição do Reino nacional europeia passou a decorrer sob o princípio do equilíbrio de forças ou do equi-
Unido da Grã-Bretanha
e Irlanda. líbrio político. Para concretizar esse princípio era necessário evitar a formação de esta-
dos poderosos que pudessem afirmar uma supremacia ou hegemonia sobre os restantes.

No entanto, o sistema estabelecido em Vestefália não trouxe paz e estabilidade à


Europa. As práticas mercantilistas (protecionistas, nacionalistas) estimularam a disputa
dos mercados, dos transportes, dos mares e dos domínios coloniais e as ambições hege-
? Questão
mónicas das potências europeias geraram inúmeras guerras travadas quer no continente
1. Explicite os interesses quer no ultramar nos séculos XVII e XVIII(2).
das potências nas disputas
das áreas coloniais.

3.2. A hegemonia económica britânica: condições de sucesso e


arranque industrial
Vitoriosa nas guerras com a Holanda e nos confrontos económicos e coloniais com a
França, a Grã-Bretanha afirmou a sua preponderância marítima e abriu um ciclo hegemónico
na economia europeia do século XVIII, beneficiando de um conjunto de condições favoráveis:
* Enclosures: grandes – as inovações agrícolas: a supressão, gradual, do pousio através da rotação contínua
propriedades vedadas,
concentradas nas mãos da de culturas (afolhamento quadrienal); introdução ou alargamento de novas culturas,
nobreza terratenente como o milho, couves, cenouras, beterraba e, sobretudo, a batata; melhoramento
e resultantes da
privatização das terras das alfaias agrícolas; seleção de sementes e de animais; utilização do cavalo; con-
comunais, provocando o centração da propriedade (enclosures*);
êxodo maciço do
campesinato para as (2)
São exemplos: a guerra dos Trinta Anos (1618-1648), as três guerras anglo-holandesas (1652-1664), a guerra
cidades, onde passou franco-inglesa (1666), a guerra franco-holandesa (1667-1668 e 1688), a Guerra da Sucessão de Espanha (1700-1714),
a engrossar o proletariado os ataques holandeses às colónias portuguesas; as disputas coloniais entre ingleses e holandeses e franceses e
urbano. ingleses na América do Norte e no Índico…
Unidade 3 - Triunfo dos Estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII 83

– o surto demográfico e a urbanização: elevados índices de crescimento demográfico,


de rendimentos e de consumo;
– a criação de um mercado nacional vasto e unificado (rede de canais e estradas,
transportes e navegação de cabotagem);
– um sistema financeiro moderno, estável e com grande credibilidade internacio-
nal (elevados stocks de metais preciosos, estabilidade da libra esterlina, rede de
bancos – Banco de Inglaterra e bancos provinciais, privados, country banques –,
Bolsa de Londres – Royal Exchange of London);
– poderio naval e sucesso na política colonial: protecionismo à construção naval e à
marinha e expansionismo colonial (Atos de Navegação e vitória nas guerras trava-
das na Europa e no ultramar com as potências rivais – Holanda e França).

O arranque industrial
A partir de 1750-1760 surgiram em Inglaterra três inovações que revolucionaram o modo
de produção dos bens industriais e tornaram este país pioneiro no arranque (take-off )
industrial (Fig. 2):
– a aplicação de um conjunto de inventos na indústria têxtil;
– a utilização do carvão mineral (em substituição do carvão vegetal);
– a invenção da máquina a vapor.

Fig. 2. A prioridade inglesa na Revolução Industrial.

O têxtil, um setor em grande expansão, foi o primeiro a aplicar os progressos técni- * Pudelagem: do inglês
cos: a “lançadeira volante”, de John Kay (1733), foi aplicada com grande sucesso na tece- puddling; técnica pela qual
se transforma o ferro
lagem; a spinning jenny, de Hargreaves, permitia a uma trabalhadora fiar, ao mesmo fundido em ferro macio,
tempo, vários fios; a water frame (1768), de Highs, e a mule jenny (1780), de Crompton, através da eliminação das
impurezas do ferro fundido
trouxeram à fiação um enorme estímulo. e do carbono por meio da
sua combustão.
Esta revolução das técnicas estendeu-se também à metalurgia. Darby conseguiu utili-
* Laminação: ato de
zar o coque na produção de ferro macio (aço). Henry Cort (1740-1800) registou as paten-
laminar, isto é, a redução
tes da pudelagem* e da laminação*. do metal a lâminas.
84 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

Mas a invenção mais importante foi sem dúvida a máquina a vapor (Fig. 3) de James
Watt (1736-1819), que trouxe como consequência fulcral para o desenvolvimento indus-
trial a possibilidade da utilização industrial da nova forma de energia, o vapor, com todas
as vantagens na economia do trabalho humano e na concorrência internacional.

A reunião de todas as condições referidas, associadas às condições favoráveis de


Fig. 3. A máquina a vapor
de Watt e Boulton (1788). natureza política, social, cultural e mental, explica a prioridade inglesa na Revolução
Industrial*.
* Revolução industrial:
processo de
transformações
económicas, sociais 3.3. Portugal – dificuldades e crescimento económico
e técnico-científicas
ocorridas na Inglaterra – Da crise comercial de finais do século XVII à apropriação do ouro brasileiro pelo
entre 1760/1780 até às
primeiras décadas do mercado britânico
século XIX, período que se
caracterizou pelo aumento O quadro político-económico
substancial da capacidade
produtiva graças Após a Restauração da independência, em 1 de dezembro de 1640, Portugal viu-se
à aplicação à indústria da
máquina a vapor. confrontado com um conjunto de problemas político-militares muito complexos, a que se
acrescentaram outros de natureza económica, ligados à grave crise comercial e financeira
do último quartel do século XVII: o estado de guerra com a Espanha (Guerra da Restau-
? Questões
ração) prolongou-se até 1668; a exportação dos produtos coloniais (açúcar e tabaco bra-
1. Que condições favoráveis sileiros…) reduziu-se drasticamente em resultado da concorrência inglesa e holandesa e
explicam a prioridade
das políticas mercantilistas adotadas pelos países europeus, provocando a queda dos
inglesa no arranque
(take-off) industrial? preços destes bens; os rendimentos do Estado caíram e aumentou a dependência externa
do Reino; o défice da balança comercial e escassez de meios de pagamento agravaram-se.
Entre 1670 e 1692, a crise comercial e financeira atingiu o seu auge.

– As tentativas de remediação: a política manufatureira


Para remediar a situação de crise comercial e financeira, os economistas mercantilis-
tas da época defenderam a implementação de uma política económica manufatureira
capaz de travar o défice da balança comercial e reduzir a dependência do exterior.

Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador em Paris e conhecedor do colbertismo, defen-


deu entusiasticamente as vantagens de uma política de fomento industrial no livro Dis-
curso sobre a introdução das artes no Reino (1675), uma obra que serviu de fundamen-
tação teórica aos dois ministros da Fazenda do rei D. Pedro II, o marquês de Fronteira e
o conde da Ericeira. Do seu programa constaram as seguintes realizações:
– contratação de artífices especializados estrangeiros;
– estabelecimento de novas manufaturas em zonas próximas da produção de maté-
rias-primas e onde havia já uma tradição de produção industrial: vidros (Lisboa),
têxteis (Estremoz, Lisboa, Covilhã, Fundão e Tomar) e fundições de ferro (Lisboa,
Tomar e Figueiró dos Vinhos);
– promulgação de “pragmáticas” proibindo o uso de diversos artigos de luxo;
– concessão de subsídios, privilégios fiscais e de mercado;
– desvalorização da moeda;
– criação de companhias comerciais monopolistas.
Unidade 3 - Triunfo dos Estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII 85

Os resultados da política manufatureira: relativo fracasso


A política de fomento manufatureiro não alcançou os resultados desejados pelos seus
promotores e foi abandonada. Apontam-se três fatores fundamentais:
– a retoma da atividade comercial ligada às exportações do açúcar, tabaco, vinho (em
especial o vinho do Porto) e do azeite a partir de 1692;
– a descoberta de ouro no Brasil (1693-1695), há muito procurado pelos bandeiran- * Bandeirante: colonizador
aventureiro que,
tes*, que permitiu pagar em ouro os défices da balança;
organizado em autênticas
– a sobreposição dos interesses comerciais e agrícolas, em particular os vinícolas, milícias ao som de
tambores e com bandeiras,
patentes na assinatura do Tratado de Methuen (1703). penetrava no interior do
território brasileiro
A apropriação do ouro brasileiro pelo mercado britânico seguindo o curso dos rios
ou o trilho dos “índios” em
A descoberta de ouro no Brasil nos finais do século XVII e a eventualidade de uma busca de nativos e das
riquezas do sertão.
aproximação de Portugal à França, num contexto de acesa rivalidade comercial-marítima
anglo-francesa, reforçaram o papel estratégico do nosso país e consequentemente o
interesse da Grã-Bretanha por este seu aliado tradicional. A celebração do Tratado de
Methuen (1703) foi o corolário desta situação, que também agradava aos setores comer-
cial e vinhateiro portugueses.

As consequências deste tratado para as economias dos respetivos países têm sido
muito discutidas. É reconhecido que o Tratado de Methuen mais não fez do que consa-
grar formalmente situações ou tendências de facto preexistentes. Ou seja, ter-se-á limi-
tado a formalizar a crescente procura dos vinhos portugueses na Grã-Bretanha e dos têx-
teis ingleses no nosso país, onde nunca deixaram de ser adquiridos (por contrabando),
apesar das medidas protecionistas. O efeito mais significativo do Tratado de Methuen
terá sido o reforço (e aceleração) da integração da economia portuguesa na esfera de
influência britânica cujas bases haviam sido já lançadas no tratado de paz anglo-luso de
1642 em que os ingleses obtiveram a liberdade de acesso ao império português.

– A política económica e social pombalina


O afluxo do ouro brasileiro criou em Portugal uma situação de prosperidade que per-
mitiu um reinado de grande brilho ao rei D. João V (1706-1750). No entanto, a diminui-
ção do afluxo daquele metal precioso em meados do século mostrou quão frágil e apa-
rente era essa riqueza e Portugal mergulhou numa nova crise económica.

Foi este cenário de crise que o rei D. José I (1750-1777) e o Marquês de Pombal tive-
ram de enfrentar. Numa primeira fase (até cerca de 1760), a prioridade foi reestruturar o
setor comercial, reprimindo o contrabando e apostando na criação de companhias de
monopólio, com o objetivo de combater a dependência dos estrangeiros, em particular
dos ingleses. Foi nesta perspetiva que criou a Junta do Comércio (1755) e uma série de
companhias comerciais de monopólio – Companhia do Grão-Pará e Maranhão (1755),
Companhia de Pernambuco e Paraíba (1756) e Companhia dos Vinhos do Alto Douro
(1756). A política pombalina de racionalização e moralização estendeu-se também aos
setores financeiro e fiscal – criação do Real Erário (1761) – onde foram centralizados
todos os serviços de arrecadação e depósito das receitas do Estado.
86 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

? Questões A partir de 1770, Pombal adotou um programa de fomento industrial, recorrendo às


habituais práticas mercantilistas: elaboração de pragmáticas(3), criação de novas fábricas
1. Relacione as medidas de
fomento industrial de e reorganização de outras (Fábrica de Chapéus de Pombal, Real Fábrica de Seda do Rato,
Pombal com a conjuntura Real Fábrica de Vidros na Marinha Grande…); concessão de privilégios de fabrico ou
económica-financeira de
Portugal em meados do exclusivos; contratação de artífices estrangeiros...
século XVIII.
Pombal foi afastado do poder após a morte de D. José I, em 1777. A economia por-
2. Integre a execução dos
tuguesa não superara a situação de dependência externa, em particular da Inglaterra, mas
Távoras e a lei de 1769 na
política seguida por o seu domínio deixou de ser tão esmagador.
Pombal relativamente
à nobreza.
A política social pombalina
Apostado em levar à prática o “espírito das Luzes” e promover o progresso do País,
Pombal empenha-se numa política de nivelamento social, combatendo duramente as
ordens privilegiadas: expulsa os Jesuítas e expropria os seus bens (1759); manda execu-
tar os Távoras e o Duque de Aveiro, acusados de conspirarem contra o rei (1759); sub-
mete a Inquisição (1772); promove a renovação dos quadros da nobreza pela concessão
de novos títulos (vinte e três) e pela extinção de outros tantos e a sua reeducação (Colé-
gio dos Nobres, 1761).

Em contrapartida, promoveu a burguesia, em particular o seu estrato mais alto: auto-


riza os comerciantes a constituir morgadios (1769), declara oficialmente o comércio como
“profissão nobre, necessária e proveitosa” (1770) e põe fim à distinção entre “cristãos-
-velhos” e “cristãos-novos” (1773), atraindo o seu apoio financeiro.

Pombal transformou desta forma a alta burguesia em clientela política e económica


do Estado, cumulando-a de privilégios, em prejuízo da pequena e média burguesia e da
pequena e média nobreza, esmagadas pela concorrência estatal e pelos grandes interes-
ses económicos (monopólios).

– A prosperidade comercial de finais do século XVIII


Cruzados Nos finais do século XVIII, a economia portuguesa começa
(105) Total
35 a mostrar sinais de recuperação. A conjuntura económica inter-
nacional era favorável: o arranque da revolução industrial
s
ria

30
do
rca

25 inglesa teve como consequências o aumento da procura de


Me

20 matérias-primas e a reanimação do comércio internacional.


15
A economia portuguesa muito dependente do comércio
10

Ou
colonial, em particular da reexportação dos produtos brasilei-
5 ro
% 100 ros (Fig. 4), retira vantagens da conjuntura. O comércio com a
de ouro
Ásia aumentou. O incremento da procura do açúcar e algodão
50
brasileiros e das produções metropolitanas do vinho, lã e sal
1700 1750 1800
reduzem a dependência da economia nacional das remessas
Fig. 4. A evolução das
exportações brasileiras. do ouro brasileiro. A balança comercial começa a apresentar nos finais do século XVIII
sucessivos saldos positivos. O aumento da quantidade e a diversificação dos produtos
exportados foram acompanhados por uma maior diversificação dos parceiros comerciais.

(3)
Leis que proibiam o uso de certos artigos (importados) considerados de luxo.
Unidade 4 - Construção da modernidade europeia 87

Unidade 4 Construção da modernidade europeia


SUMÁRIO
4.1. O método experimental e o progresso do conhecimento do homem e da natureza Cronologia
4.2. A filosofia das Luzes: apologia da razão, do progresso e do valor do indivíduo*
4.3. Portugal – o projeto pombalino de inspiração iluminista: modernização do Estado e das ins- Progressos técnicos e
tituições científicos do século XVIII
1724
Termómetro – Fahrenheit.
APRENDIZAGENS RELEVANTES 1747
– Valorizar o contributo dos progressos do conhecimento e da afirmação da filosofia das Transmissão da
eletricidade por fio isolado –
Luzes para a construção da modernidade europeia**. Watson.
1752
CONCEITOS/NOÇÕES Para-raios – Franklin.
Iluminismo** 1768
Máquina de fiar – Arkwright.
* Conteúdos de aprofundamento
Telescópio – Herschel.
** Aprendizagens e conceitos estruturantes 1781
Máquina a vapor – James
Watt.
1783
Análise da água – Lavoisier.
1786
Experiências elétricas –
Galvani.

* Método experimental (ou


científico): conjunto dos
procedimentos, fases ou
4.1. O método experimental e o progresso do conhecimento do etapas necessários para
obter conhecimentos
homem e da natureza rigorosos (científicos) por
meio de instrumentos
fiáveis. As suas fases
No século XVII, homens da ciência como Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630) ou essenciais: observação,
formulação da hipótese,
Newton (1642-1727) lutaram empenhadamente contra o dogmatismo e a ignorância, valo- experimentação
rizando a razão e a experiência, guias do conhecimento. Em Novum Organon (1620), Fran- (demonstração ou
refutação da hipótese),
cis Bacon definiu as fases ou etapas do método experimental* que revolucionou e ace- apresentação da tese ou
lerou o progresso do conhecimento. A ideia de John Locke (1632-1704), de que o teoria científica.
conhecimento humano era obtido através dos sentidos, estabeleceu a base teórica para
um interesse sem precedentes pela educação.

Os iluministas do século XVIII acreditavam que a ciência e a educação, libertas do


dogmatismo e do sobrenatural, eram os caminhos para o progresso da Humanidade.

A evolução extraordinária que a ciência e a técnica conheceram na segunda metade


do século XVIII não é alheia a esta nova atitude face ao conhecimento e à educação. Gra-
ças às experiências de Franklin, inventor do para-raios, a Física faz a principal descoberta
desta época: a da eletricidade. As pesquisas de Lavoisier (1743-1794) sobre a composi-
ção do ar e da água fazem nascer uma nova ciência, a Química moderna. O escocês Watt
concebe a primeira máquina a vapor (c. 1769) produzindo utilmente energia, invento que
provocaria uma autêntica revolução na indústria, nos transportes e na organização e
modo de vida das sociedades.
88 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

* Iluminismo: movimento 4.2. A filosofia das Luzes: apologia da razão, do progresso e do


intelectual difundido na
Europa em finais do século valor do indivíduo
XVII e no século XVIII,
centrado principalmente O século XVIII na Europa – “o Século das Luzes”, como lhe chamaram – culminou num
em França, baseado
na confiança, na razão, processo de revisão do pensamento e da ação do Homem, iniciado no século anterior
na defesa dos direitos nos Países Baixos e na Inglaterra e denominado de Iluminismo*.
naturais do indivíduo e
na noção de progresso A ordem, a desigualdade e a hierarquia são agora tidas como contrárias à razão e
histórico, moral e material,
princípios que consideradas como obstáculos à realização plena do Homem. Da apologia da razão
fundamentam propostas decorrem dois princípios fundamentais do Iluminismo: o naturalismo (valorização de tudo
revolucionárias de
organização social, política o que é natural, espontâneo) e o individualismo (o indivíduo e os seus interesses devem
e cultural das sociedades prevalecer, pois a sociedade não é mais do que a soma dos indivíduos ou dos interes-
humanas.
ses individuais).

Os filósofos iluministas acreditavam no progresso, quer dizer, na possibilidade de


transformar o homem e a sociedade para melhor. Essa melhoria passava por um futuro
* Direitos naturais: direitos no qual reinasse a paz e a fraternidade e uma nova ordem política que salvaguardasse
inerentes à natureza
humana - a igualdade os direitos naturais* do indivíduo.
jurídica, liberdade,
segurança e propriedade -
tidos como universais, – A defesa do direito natural, do contrato social e da separação dos poderes
e como tal considerados
invioláveis. O pensamento iluminista não se restringiu à abordagem de questões de natureza filo-
sófica, moral e religiosa, mas refletiu também sobre a realidade política e os seus funda-
mentos. Com efeito, o Iluminismo produziu uma das maiores e mais originais transforma-
ções ao nível do pensamento político, no Ocidente. Montesquieu, com O Espirito das Leis
* Contrato social: doutrina (1748); Jean-Jacques Rousseau, com O Contrato Social (1762).
que se opõe ao princípio
da origem divina do poder, John Locke (1632-1704), em Dois Tratados sobre o Governo (1689), defendeu que o
defendendo que são os
indivíduos que, mediante direito de governar vinha do consentimento dos governados, pelo que se o governo ten-
um pacto – implícito ou tasse governar de forma absoluta e arbitrária, se violasse os direitos naturais do indiví-
explícito –, renunciam em
parte aos seus direitos, duo, perderia a fidelidade dos seus súbditos, podendo então ser legitimamente derru-
de forma voluntária, em bado (teoria do contrato social*).
benefício da convivência
mútua, sem abdicar da sua
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em O Contrato Social (1762), partindo do pressu-
liberdade primitiva.
posto que o homem era naturalmente bom e que o mal, se o havia, tinha a ver com a
sociedade que lhe corrompia a razão e a virtude, propôs um pacto social que implicava
toda a comunidade. Através dele cada indivíduo unia-se a todos, garantindo-se assim a
Cronologia igualdade e a liberdade que, segundo ele, depende da igualdade.

1690 Montesquieu (1689-1755), em O Espírito das Leis (1748), defende a teoria da separa-
John Locke: Tratados do ção de poderes – legislativo, executivo e judicial – ; só haveria liberdade política se estes
Governo Civil.
três poderes não estivessem concentrados nas mesmas mãos.
1748
Montesquieu: O Espírito
das Leis.
1762
J. J. Rousseau: O Contrato
Social.
1763
Voltaire: Tratado da
Tolerância.
Unidade 4 - Construção da modernidade europeia 89

4.3. Portugal – o projeto pombalino de inspiração iluminista * Despotismo iluminado ou


esclarecido: regime político
inspirado nas conceções
– Modernização do Estado e das instituições iluministas, adotado por
monarcas europeus na
A primeira preocupação do governo do Marquês de Pombal foi a racionalização ou segunda metade do século
XVIII. Constituindo a última
modernização do aparelho político administrativo, promovendo para o efeito reformas fase do absolutismo
com vista a restabelecer a autoridade do Estado e a eficiência dos seus serviços. Estes monárquico, o despotismo
caracterizou-se pelo
objetivos enquadram-se nos princípios do despotismo iluminado ou esclarecido*. reforço da centralização
e burocratização do Estado
Foi nesta perspetiva que foram criadas a Junta de Comércio (1755) (controlo do comér- e pela racionalização da
cio e combate ao contrabando), o Real Erário (1761) (centralização e controlo das recei- vida social, económica
e cultural.
tas e despesas) e a Intendência Geral da Polícia de Lisboa (1760).

O controlo pelo Estado do aparelho político implicava sobretudo o afastamento dos


grupos nobiliárquicos e eclesiásticos tradicionais, a restrição ou mesmo extinção dos Cronologia
seus privilégios e das instituições. É neste contexto que procedeu, entre outras medidas,
1755
à expulsão dos jesuítas (1759), à nacionalização da Inquisição (1769) transformada em tri- Criação da Junta de
Comércio; extinção da
bunal régio e à promoção da alta burguesia, visando criar uma clientela política apoiante Mesa do Bem Comum.
e submissa à ação governativa e empenhada na política de fomento económico do País. 1759
Expulsão dos Jesuítas;
início das reformas
– Ordenação do espaço urbano pombalinas de ensino.
1760
Os objetivos do despotismo esclarecido da centralização política e do nivelamento Fundação da Intendência
social tiveram expressão na adoção de uma maior uniformização arquitetónica que limi- Geral da Polícia de Lisboa.
tava a ostentação e sujeitava o traçado das construções citadinas aos planos urbanísti- 1761
Criação do Erário Régio.
cos elaborados e controlados pelos déspotas. O terramoto de 1 de novembro de 1755 e 1769
o incêndio e maremoto que se lhe seguiram deram a Pombal a oportunidade para a reor- Inquisição é convertida em
tribunal régio.
denação urbanística da Baixa de Lisboa (Fig. 1). 1770
O comércio é declarado
“profissão nobre,
necessária e proveitosa”;
extinção da venda e da
hereditariedade nos
empregos e ofícios
públicos.
1771
Criação da Real Mesa
Censória.
1772
Reforma da Universidade.
1773
Supressão da distinção
entre cristãos-velhos
e cristãos-novos.

Fig. 1. Planta para a reconstrução da Baixa Lisboeta depois do terramoto de 1755.


90 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

O plano de reconstrução encomendado por Pombal a Manuel da Maia, e no qual tra-


balharam Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, foi elaborado e executado de uma forma
racional e prática, segundo conceções arquitetónicas e urbanísticas inteiramente novas:
avenidas rasgadas, ruas largas e perpendiculares, algumas das quais com pórticos e colu-
natas, amplas praças e edifícios de dimensões e traça semelhantes e agrupados em quar-
teirões. O Terreiro do Paço dá lugar à “Real Praça do Comércio”, o verdadeiro coração
da nova cidade, com uma bolsa, ladeada por dois torreões, um arco do triunfo e a está-
tua equestre de D. José I no centro.

? Questão O plano é um bom exemplo do novo ordenamento urbanístico da Europa das Luzes,
caracterizado pelo traçado geométrico e radiante das ruas, pela uniformização e simetria
1. Esclareça na
reconstrução da Lisboa das fachadas e pela centralidade dos edifícios, um quadro adequado à consagração do
Pombalina a influência poder do déspota perante o qual todos os poderes se inclinam.
iluminista.

– A reforma do ensino
O setor da educação e do ensino em Portugal, em meados do século XVIII, estava sob
o controlo dos Jesuítas e encontrava-se numa situação de declínio. Ainda no reinado de
D. João V, os “estrangeirados” haviam denunciado esta situação e as consequências
negativas para o País. Sem grande sucesso.

Pombal, inspirado no pensamento e nas obras desses estrangeirados, nomeadamente


Luís António Verney (Verdadeiro Método de Estudar), Ribeiro Sanches (Cartas sobre a
Educação da Mocidade, Método para Aprender a Estudar Medicina e Apontamentos para
Fundar-se uma Universidade Real) e os diplomatas D. Luís da Cunha e Alexandre de Gus-
mão, põe em prática um vasto programa de reformas pedagógicas e culturais:
– decretou a expulsão dos Jesuítas do território nacional e a confiscação dos seus
Cronologia
bens (1759), substituídos por outras ordens religiosas, que praticavam um ensino
1746 mais moderno e atualizado, em especial os Oratorianos;
Luís António Verney:
Verdadeiro Método – ao nível dos chamados estudos menores, criou novas escolas e mais lugares para
de Estudar. “mestres de ler, escrever e contar”;
1759
Instituição da Aula do
– nos estudos secundários criou várias “aulas” (escolas) pelo Reino: Náutica (Lisboa,
Comércio (Lisboa). 1759) e Aula Náutica e de Desenho (Porto), Aula do Comércio (Lisboa) e o Real Colé-
Expulsão dos Jesuítas. gio dos Nobres (1761);
Extinção da Universidade
de Évora. – nos estudos superiores, setor onde as suas reformas foram mais profundas, tomou
Ribeiro Sanches: Carta
sobre a Educação
várias medidas com o objetivo de tornar o ensino universitário mais ajustado aos
da Mocidade. princípios das Luzes e às necessidades de formação dos quadros superiores da
1761 administração do Estado: extinção da Universidade de Évora (1759) e reforma da
Fundação do Real Colégio
dos Nobres. Universidade de Coimbra, criação da Junta de Providência Literária (1770), duas
1768 novas faculdades (Matemática e Filosofia Natural), Observatório Astronómico, Jardim
Criação da Real Mesa Botânico, Laboratório de Química, Gabinete de Física, Museu de História Natural,
Censória.
estudo de Anatomia em cadáveres humanos, sendo criado para o efeito um Teatro
1770
Criação da Junta de Anatómico;
Providência Literária.
– criação do Subsídio Literário (1772) para subsidiar as reformas.
1772
Reforma dos estudos
menores (ensino primário). Fiel aos princípios e práticas centralizadoras do despotismo iluminado, Pombal criou
Novos Estatutos da a Real Mesa Censória (1768), organismo de controlo, que chamou a si o papel de cen-
Universidade de Coimbra.
Criação da Junta do sura da produção cultural, antes exercido pela Inquisição, e a imprensa régia, dotando-se
Subsídio Literário. o Estado com o seu próprio órgão de difusão ideológica.
Questões para Exame 91

Questões para Exame


1

Documento 1 | Crise alimentar e demográfica em Amiens (1692-1695)

Fig. 1.

1.1. Explicite a relação entre a evolução do preço do trigo e a evolução da natalidade e da mortalidade.

Documento 2 | A sociedade do Antigo Regime

No seio das três grandes ordens da nação, encontram-se várias categorias (...). Dessa forma, o clero
abrange duas categorias (…). As posições e as dignidades da nobreza são bem conhecidas: príncipes de
sangue, duques e pares, nobreza que beneficia das honras da corte, nobres com títulos, enfim indivíduos
sem títulos, denominados “escudeiros”. Essas dignidades têm amiúde mais valor que a distinção entre
nobreza de espada e nobreza de toga. (...).
Na frente do terceiro estado, estão os oficiais reais (…). Encontram-se em seguida as “pessoas letradas”
que não são oficiais: formados em universidades, médicos, advogados; depois os “práticos e pessoas de
negócios”: notários, procuradores, enfim os comerciantes e artesãos de ofícios qualificados como “artes”.
Abaixo vêm as “pessoas vis” (expressão que significa pessoas do povo): trabalhadores, “pessoas mecâni-
cas”, senhores com profissão ou sem ela, “homens de braços”, e por fim os “mendigos válidos”, “vagabun-
dos e indigentes”.

Mousnier R. (1967), État et société sou François Ier et pendent le gouvernement personnel de Louis XIV,
in Corvisier, A. (1976), O Mundo Moderno, Lisboa, Ática, p. 285 (adaptado).

Documento 3 | O poder do monarca absoluto

É com toda a razão que se chama deuses aos reis, porque estes exercem na terra um poder que se asse-
melha ao poder divino. Considerai os atributos de Deus e vós os reconhecereis na pessoa do rei. Deus tem
o poder de criar ou de destruir, de fazer ou de desfazer, de dar a vida ou a morte, de julgar toda a gente
sem dar contas a ninguém. Os reis possuem um poder semelhante. A felicidade dos seus súbditos depende
do seu belo prazer; eles podem elevar ou baixar, dispor da vida ou da morte, julgar todos os súbditos sem
ter de dar contas senão a Deus.

Jaime I, 1609.
92 Módulo 4 - A Europa nos séculos XVII e XVIII – sociedade, poder e dinâmicas coloniais

Documento 4 | A Declaração dos Direitos (1689)

(…) Os Lordes espirituais e temporais e os Comuns, (…) constituindo em conjunto a plena e livre repre-
sentação da nação, (...) declaram (…) para assegurar os seus antigos direitos e liberdades:

1. Que o pretenso poder da autoridade real de suspender as leis ou a execução das leis sem o consen-
timento do Parlamento, é ilegal; (...)

8. Que as eleições dos membros do Parlamento devem ser livres; (...)

Dareste, F. R. e Dareeste, P. (1928), Les constitutions modernes (Europa I), Paris.

2.1. Explicite três características da sociedade europeia do Antigo Regime presentes no documento 2.

2.2. Analise a recusa do absolutismo na Inglaterra no século XVII.

A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:

– as raízes históricas da resistência ao absolutismo;

– as dificuldades de implantação do parlamentarismo;

– a importância política da Revolução Gloriosa (1688-1689).

A sua resposta deve integrar, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis nos documentos
(documentos 2 a 4).

Documento 5 | O Contrato Social

(...) resta sempre ao povo o poder supremo de afastar ou mudar os legisladores, se considerar que estes
atuam de maneira oposta à missão que lhes foi confiada. Com efeito, todo o poder delegado que tem uma
missão determinada e uma finalidade fica limitado por estas; se os detentores desse poder se afastam delas
abertamente ou não se mostram empenhados em consegui-las, será forçoso que se ponha fim a essa mis-
são que se lhes confiou. Nesse caso o poder voltará por força a quem antes lho entregou; então este pode
confiá-lo de novo às pessoas que julgue capazes de assegurar a sua própria salvaguarda. Deste modo, a
comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de subtrair-se às tentativas e maquinações de qual-
quer pessoa, inclusivamente dos seus próprios legisladores, sempre que estes sejam tão néscios [incompe-
tentes] ou tão malvados que se proponham levar a cabo maquinações contrárias às liberdades e à proprie-
dade dos indivíduos.

John Locke, (1690), Do Governo Civil, cap. XIII.

3.1. Explicite as conceções de John Locke sobre o contrato social (documento 5).

3.2. Enuncie três propostas dos filósofos iluministas do século XVIII.


Unidade 1 - A Revolução Americana, uma revolução fundadora 93

Módulo 5 11.° Ano


O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas
nos séculos XVIII e XIX
1. A Revolução Americana, uma revolução fundadora Cronologia
2. A Revolução Francesa – paradigma das revoluções liberais e burguesas
1756-1763
3. A geografia dos movimentos revolucionários na primeira metade do século XIX: as Guerra dos Sete Anos.
vagas revolucionárias liberais e nacionais 1765
4. A implantação do liberalismo em Portugal Lei do Selo (Stamp Act) -
imposto de selo sobre
5. O legado do liberalismo político na primeira metade do século XIX todas as publicações.
1773
Contextualização Boicote das colónias ao
chá trazido pela Companhia
No século XVIII, as ideias e propostas iluministas estiveram na origem dos processos de das Índias Ocidentais.
transformação revolucionária das sociedades do Antigo Regime e da construção de uma Encerramento do porto de
nova ordem política e social. Na América, os ideais iluministas influenciaram e acompanha- Boston decretado pela
Inglaterra.
ram o nascimento de uma nova nação, os Estados Unidos, uma referência para os povos e
1774
nações que lutam pela liberdade e igualdade de direitos e pela democracia. Na Europa, a Reunião do 1.º Congresso
Revolução Francesa constituiu o detonador e o paradigma das sucessivas vagas revolucio- de Filadélfia.
nárias que varreram o continente na primeira metade do século XIX. 1775
2.º Congresso de Filadélfia:
Na primeira metade do século XIX, o liberalismo, depois de ultrapassadas as resistências, formação do exército
triunfa também em Portugal. “rebelde”.
As transformações revolucionárias nos domínios social, político e cultural operadas pelo Batalhas de Lexington
e Concord: início da luta
liberalismo, apesar das suas limitações e incoerências, constituem a matriz e um legado militar.
fundamental para as sociedades contemporâneas. 1776 (4 de julho)
Declaração da
Independência.
Unidade 1 A Revolução Americana, uma revolução fundadora 1778
Entrada da França na
guerra ao lado dos
SUMÁRIO rebeldes.
– Nascimento de uma nação sob a égide dos ideais iluministas 1783
Vitória americana na
APRENDIZAGENS RELEVANTES batalha de Yorktown.
1783
– Compreender o fenómeno revolucionário liberal como afirmação da igualdade de direitos e Tratado de Versalhes:
da supremacia do princípio da soberania nacional**. reconhecimento inglês
da independência dos EUA.
CONCEITOS/NOÇÕES 1787
Revolução liberal**; Constituição** Constituição Americana.
1789
* Conteúdos de aprofundamento Eleição do 1.º presidente
** Aprendizagens e conceitos estruturantes dos EUA: George
Washington.

– Nascimento de uma nação sob a égide dos ideais iluministas

O caminho da independência
Apesar de vitoriosa, os elevados custos financeiros da Guerra dos Sete Anos levaram
a Inglaterra a impor pesadas tributações sobre os seu colonos americanos. Entre outros
impostos, o Parlamento britânico aprovou a Lei do Selo (Stamp Act) (1765) que tornava
obrigatório o uso de papel selado.
94 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

* Soberania popular: Os protestos contra esta medida considerada injusta e ilegal não se fizeram esperar.
princípio segundo o qual
o poder supremo do Em dezembro desse ano, o lançamento ao mar pelos colonos no porto de Boston de um
Estado pertence à nação carregamento de chá da Companhia das Índias Orientais (episódio conhecido por Boston
ou ao povo, entendidos
como o conjunto de
Tea Party) levou o governo inglês a decretar o encerramento deste porto e a exigir o
cidadãos que exercem pagamento de uma indemnização. Entretanto, novas imposições fiscais agravaram o
o poder através dos seus
clima de revolta.
órgãos representativos.
Em 1774, reuniu o 1.o Congresso de Filadélfia, que proibiu o comércio com a Ingla-
terra, passando esta a considerar rebeldes os colonos. No 2.o Congresso de Filadélfia
(1775) foi decidido responder à guerra declarada pela metrópole e constituir um exército,
? Questões
cujo comando foi entregue a George Washington. Em 1776, os representantes das coló-
1. Como se explica nias reuniram-se no 3.o Congresso de Filadélfia para aprovar a Declaração da Independên-
a rebelião dos colonos cia dos Estados Unidos: as treze colónias afirmavam-se estados livres e soberanos, invo-
contra a metrópole
inglesa? cando os princípios iluministas dos direitos naturais do homem e da soberania popular*.
2. Esclareça os aspetos Em 1783, a assinatura do Tratado de Versalhes pôs fim ao conflito militar, reconhecendo
de movimento de a Inglaterra a independência das suas antigas colónias. Estava consumado o nascimento
independência
de um novo Estado, os EUA.
e de revolução liberal
presentes na Declaração
de Independência dos EUA. A estruturação do Estado
A criação de um Estado a partir da união das treze colónias não era uma tarefa fácil,
pois havia entre elas importantes diferenças, nomeadamente económicas e religiosas.
* Constituição: em sentido O trabalho dos denominados “Pais Fundadores” (Founding Fathers) do novo Estado,
moderno, é um texto
escrito que é a lei como George Washington, Benjamim Franklin, Thomas Jefferson, James Madison, entre
fundamental de um Estado, outros, afigurava-se, pois, extremamente difícil. Em 17 de setembro de 1787, em Filadélfia,
isto é, de valor superior
e depois de grandes debates, foi possível obter um consenso e assinar um documento
a todas as demais leis.
que constitui a pedra angular do novo Estado e da nação que o tempo iria cimentar: a
Constituição* dos Estados Unidos da América.

Inspirada no sistema político inglês e nos princípios iluministas, a Constituição esta-


* Sistema federal: forma
de organização estadual belece um Estado central forte ao mesmo tempo que garante, pelo sistema federal*,
caracterizada pela a relativa autonomia de cada Estado. Os direitos e liberdades individuais são assegurados
existência de vários
poderes políticos, sendo pelas dez primeiras emendas (Bill of Rights), redigidas por Jefferson e votadas em 1789,
um deles soberano mas a escravatura dos negros é mantida(1) e os índios são excluídos da nação americana.
(o Estado Federal) e os
restantes dependentes Relativamente à organização dos poderes, a Constituição estabelece uma separação
(os Estados Federados).
entre os poderes (legislativo, executivo e judicial) e um sistema de governo presidencia-
lista, em que o chefe de Estado, que é ao mesmo tempo chefe de governo, eleito por
um Colégio Eleitoral escolhido pelos cidadãos eleitores, não depende do parlamento, res-
pondendo politicamente apenas perante o povo. Os tribunais têm o poder de controlo
dos atos dos governantes.

O facto de a revolução americana ter origem num ato de rebeldia contra os alegados
atos de tirania do governo britânico e a natureza democrática do regime favoreceram a
difusão na opinião pública internacional, sobretudo europeia, da imagem de uma revo-
* Revolução liberal:
movimento de rutura com lução liberal*. O seu exemplo inspiraria outros movimentos revolucionários na América e
o Antigo Regime inspirado na Europa, em particular a Revolução Francesa.
nos ideais iluministas de
transformação da vida
social, política e cultural. (1)
A escravatura só será abolida pela 13.a emenda votada no final da Guerra de Secessão (1861-1865).
Unidade 2 - A Revolução Francesa – paradigma das revoluções liberais e burguesas 95

Unidade 2 A Revolução Francesa – paradigma das revoluções


liberais e burguesas

SUMÁRIO
2.1. A França nas vésperas da revolução
2.2. Da Nação soberana ao triunfo da revolução burguesa: a desagregação da ordem social de
Antigo Regime; a monarquia constitucional; a obra da Convenção; o regresso à paz civil e a
nova ordem institucional e jurídica

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Identificar a revolução como momento de rutura e de mudança irreversível de estruturas**.
– Compreender a Revolução Francesa como um exemplo de transformação revolucionária da
ordem social e política de Antigo Regime e de construção de uma nova ordem política e
social.
Cronologia
CONCEITOS/NOÇÕES
Monarquia constitucional**; Soberania nacional**; Sistema representativo**; Estado laico; Sufrágio 1789
Janeiro
censitário
Publicação do panfleto do
* Conteúdos de aprofundamento
abade Siéyès, Qu’est-ce
que le Tiers-État?
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
Fevereiro/maio
Eleições para os Estados
Gerais.
5 de maio
Sessão de abertura dos
Estados Gerais (Versalhes).
20 de junho
2.1. A França nas vésperas da revolução Juramento na Sala do Jogo
da Péla.
As causas da Revolução Francesa são complexas, mas podemos relacioná-la com duas
9 de julho
ordens de fatores: a crise do Antigo Regime, abalado pela propaganda iluminista, e as Proclamação da
Assembleia Nacional
dificuldades de uma conjuntura económico-financeira e política desfavorável que a monar- Constituinte.
quia absoluta se mostrava incapaz de ultrapassar. 14 de julho
Tomada da Bastilha.
A sociedade francesa nos finais do século XVIII, que mantinha na sua estrutura e com- 3-4 de agosto
Decreto de 4 de agosto:
posição as características de Antigo Regime (hierarquizada e trinitária), já não estava
abolição dos direitos
ajustada às realidades e às aspirações de uma burguesia que tinha plena consciência da feudais.
27 de agosto
sua importância económica e da sua escassa representação política; nem de uma nobreza
Declaração dos Direitos
que, empobrecida pela alta dos preços, reforça as imposições feudais sobre os campo- do Homem e do Cidadão.
neses e consome pensões régias a uma coroa numa má situação financeira. Fracassadas 2 de novembro
Nacionalização dos bens
as sucessivas tentativas de reforma dos ministros de Luís XVI, Turgot (1774-1776), Necker do clero.
(1776-1781), Calonne (1783-1787) e Brienne (1787-1788), restava ao soberano como única 1790
13 de fevereiro
saída a convocação de Estados Gerais. Supressão das ordens
religiosas.
A aristocracia e a burguesia estavam de acordo com essa convocação. Mas tinham 12 de julho
objetivos diferentes. Os nobres pretendiam servir-se dos Estados Gerais para travar as Constituição Civil do Clero.

reformas à custa da redução dos seus privilégios. Queriam ainda que os Estados fossem 1791
14 de junho
organizados como em 1614, data em que se haviam reunido pela última vez: as três Lei Le Chapelier: extinção
ordens reuniam e votavam separadamente, tendo cada ordem um número idêntico de das corporações;
aprovação da Constituição
deputados e dispondo de um voto. de 1791.
96 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

Nestas condições, o terceiro estado (burgueses, artesãos e campo-


neses, mais de 80% da população) estaria em minoria. Por isso, con-
testou a convocação dos Estados Gerais nos moldes tradicionais da
monarquia absoluta. O folheto do abade Siéyès, Qu´est-ce que le Tiers-
État? (1789), como os Cadernos de Queixas (Fig. 1), então elaborados,
exprimem um descontentamento generalizado e exigem o cumprimento
de três condições: número dos seus representantes igual à soma dos
da nobreza e do clero, deliberação em comum e votação por cabeça.

As eleições para os Estados Gerais realizaram-se nos meses de feve-


Fig. 1. O Terceiro Estado sob reiro a maio de 1789, tendo sido eleitos cerca de 600 deputados pelo terceiro estado,
os impostos (caricatura de
Adel e Klerus). 300 pelo clero e 280 pela nobreza.

2.2. Da Nação soberana ao triunfo da revolução burguesa


– A desagregação da ordem social de Antigo Regime
? Questão Na abertura dos Estados Gerais a 5 de maio de 1789, em Versalhes, o terceiro estado
consegue uma representação em número idêntico à do clero e nobreza juntos, mas não
1. Explicite a importância
das medidas legislativas consegue fazer aceitar por estas ordens a sua proposta de reunir numa sala comum e
adotadas pela Assembleia
votar por cabeça.
Constituinte (1789-1791)
para a desagregação da
Face ao impasse criado, os deputados do terceiro estado, alegando representar “98%
ordem social do Antigo
Regime em França. da Nação”, proclamam-se Assembleia Nacional (17 de junho), juram não se separar até
à redação de uma Constituição e deliberaram que, a partir de então, nenhum imposto
poderia ser lançado sem o seu consentimento.

Estava dado o primeiro passo para a rutura. O poder do rei era oficialmente abolido
num domínio essencial, as finanças. A 9 de julho, e após novos incidentes com o rei e
num clima de ameaça de insurreição popular, a Assembleia passa a denominar-se Assem-
bleia Constituinte e começa a discutir um projeto de constituição. Entretanto, aprova
várias medidas legislativas revolucionárias:
– o Decreto da noite de 4 de agosto de 1789 (suprime os direitos feudais e todos os
privilégios senhoriais);
– a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (27 de agosto de 1789) que
consagra os princípios da liberdade e igualdade de todos os homens);
– a Constituição Civil do Clero (12 de julho de 1790) que transforma o clero em fun-
* Estado laico: estado cionários do Estado e os seus bens em bens nacionais (Estado laico*);
secular, não religioso, ou
seja, estado que considera – a Lei de Le Chapelier (14 de junho de 1791) que extingue as corporações e proíbe
a religião como uma os trabalhadores de formarem sindicatos, de fazerem reivindicações salariais e
escolha individual, portanto
um domínio perfeitamente greves;
distinto e independente do – a Constituição de 1791 que estabelece a monarquia constitucional e que reconhece
poder político.
aos franceses os direitos e liberdades individuais.
Unidade 2 - A Revolução Francesa – paradigma das revoluções liberais e burguesas 97

– A Monarquia Constitucional* * Monarquia constitucional:


forma de governo em que
Os fundamentos da nova organização política da França revolucionária foram estabe- o poder real está limitado
por outras instituições, em
lecidos pela Constituição de 1791. Na sua base estavam princípios revolucionários da particular por um
soberania popular, da separação dos poderes e da igualdade civil, que não a igualdade parlamento. As normas
fundamentais do sistema
política, pois a Constituição distinguiu duas categorias de cidadãos: os cidadãos ativos político estão definidas na
(os que pagavam certo censo ou imposto) tinham o direito de voto, e os cidadãos pas- constituição.
sivos (restantes) não tinham esse direito(1).

A eleição dos deputados devia fazer-se em dois degraus, ainda segundo um critério * Sufrágio censitário:
sistema eleitoral que limita
de rendimentos: eleitores e deputados. A Constituição de 1791 estabeleceu, deste modo, o direito de voto segundo
um regime de monarquia constitucional censitária* que satisfazia sobretudo a burguesia. critérios de riqueza.

O rei exerce o poder executivo, nomeando os ministros, com o direito de recusar a


sua sanção às leis aprovadas pela Assembleia, ainda que apenas por um período de * Sistema representativo:
forma de organização
tempo determinado (direito de veto suspensivo). O poder legislativo foi atribuído a uma
política fundada no
Assembleia Legislativa e o poder judicial foi confiado a juízes eleitos. princípio da soberania
popular expressa no direito
A Revolução consagrava, deste modo, a queda da monarquia absoluta e o triunfo do de designar através de um
governo representativo* e da doutrina da separação dos poderes. processo eleitoral os
representantes do povo
na ação governativa.
– A obra da Convenção (1792-1795)
A crise económica e sobretudo a intervenção estrangeira em apoio ao Rei, proveniente
das monarquias da Áustria, Prússia e da Rússia, exaltaram os ânimos dos revolucioná- Cronologia

rios. O povo acusou o rei de cumplicidade com os invasores, assaltou o palácio das 1792
Tulherias (20 de junho de 1792). Alguns dias depois a Assembleia Legislativa proclama a 5 de julho
O exército da Prússia
“Pátria em perigo” (11 de julho) e decreta a mobilização obrigatória de todos os France- invade a França.
ses. A 10 de agosto de 1792, na sequência de uma insurreição popular, Luís XVI é 11 de julho
Proclamação pela
deposto. A 22 de setembro desse ano (1792), é proclamada a República. Assembleia Legislativa
da “Pátria em perigo!”.
O governo é entregue a uma Convenção, uma assembleia eleita por sufrágio univer- 9 de agosto
sal, encarregada de estabelecer uma nova constituição. Esta assembleia é dominada por Criação de uma comuna
revolucionária em Paris.
duas forças políticas distintas: os Girondinos(2), que defendiam os interesses da alta bur- 10 de agosto
Insurreição popular:
guesia, adeptos de uma república liberal, e os Jacobinos(3) ou Montanheses, representan-
deposição do Rei.
tes da pequena e média burguesia, liderados por três patriotas e revolucionários: Marat, 20 de setembro
Vitória da França em Valmy.
Danton e Robespierre.
21 de setembro
Convenção.
O julgamento e condenação do rei Luís XVI (decapitado a 21 de janeiro de 1793) abre 22 de setembro
caminho ao período do “Terror” marcado pela adoção de medidas de exceção e pelo radi- Proclamação da República.
calismo revolucionário: a Convenção assume-se como um governo ditatorial; o poder exe- 1793
21 de janeiro
cutivo foi entregue a um Comité de Salvação Pública; foram criados comités de vigilância Execução de Luís XVI.
revolucionária e tribunais revolucionários para julgar os suspeitos de traição, “os inimigos 24 de julho
Constituição do Ano I.
do povo”; foi organizado um exército popular para a luta contra as invasões estrangeiras… 27 de julho
Robespierre no Comité
de Salvação Pública.
(1)
O censo de um cidadão ativo equivalia ao valor de três dias de trabalho, ou seja, 3 libras; o de um eleitor, a 10 dias
7 de setembro
de trabalho, ou seja, 10 libras. Da população francesa, cerca de 4 300 000 eram cidadãos ativos, 3 000 000 cidadãos Grande Terror.
passivos e 50 000 eleitores. 1794
(2)
Girondinos: designação que decorre do facto de uma parte deles serem representantes do departamento da Gironda. Julho
(3)
Jacobinos: nome derivado do facto de reunirem no antigo convento dos Dominicanos, conhecidos em Paris por jaco- Execução de Robespierre:
binos porque o seu primeiro convento fundado no século XIII estava situado na rua de Saint-Jacques. fim do “Grande Terror”.
98 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

Em julho de 1793, Robespierre (1758-1794), o incorruptível, controla o Comité de Sal-


vação Pública e impõe-se à Convenção. Apoiado pelos sans-culottes(4), Robespierre impõe
um regime ditatorial com recurso sistemático à violência. Foi a segunda fase do Terror,
denominada de “Grande Terror” (setembro de 1793-27 de julho de 1794), período
durante o qual a guilhotina não deu tréguas aos “traidores” ou “inimigos do povo” e
até os heróis da Revolução, incluindo o próprio Robespierre, contam-se entre as suas
vítimas.

– O regresso à paz civil e a nova ordem institucional e jurídica


Cronologia A República burguesa (27 de julho de 1794 a 9 de novembro de 1799)
1794 As divisões entre os revolucionários e a reação burguesa no Golpe do 9 de Termidor
27 de julho
(27 de julho de 1794) precipitaram a queda de Robespierre e dos seus partidários. Vol-
Golpe de estado de 9 do
Termidor: queda de tou a moderação à Convenção, os jacobinos e sans-culottes foram perseguidos (“terror
Robespierre.
31 de outubro
branco”), foi aprovada a nova Constituição do Ano III (1795) e restabelecido o voto cen-
Eleição do Diretório. sitário. Para evitar a ditadura, o poder legislativo era partilhado pela Câmara de Deputa-
1795 dos, o Conselho dos Quinhentos, e um Senado, o Conselho dos Anciãos. O poder execu-
Constituição do Ano III.
1799 tivo exercido por um Diretório (5 diretores).
9 de novembro
Golpe de estado de 18 de A persistência da instabilidade política, o aumento da importância política do exército
Brumário; Constituição do e as ambições do jovem general Napoleão Bonaparte explicam o Golpe de 18 de Brumá-
Ano VIII.
rio (9 de novembro de 1799). O Diretório é substituído por um Consulado(5). Em finais de
1804
Código Civil; coroação de 1799, a Constituição do Ano VIII conferiu a Napoleão o título de 1.o cônsul e o poder de
Napoleão imperador.
decisão, institucionalizando a ditadura deste. O passo seguinte seria a sua coroação
1804-1814
Império napoleónico. imperial (1804). O processo revolucionário estabilizou. A Revolução estava terminada.

? Questão QUADRO-SÍNTESE
Principais momentos do período revolucionário em França
1. Qual o significado do
golpe de 18 de Brumário
(1799) para a Revolução 1789 1791 1792 1793 1794 1795 1799 1804 1815
Francesa? Monarquia Constitucional República
Ass. Nacional Ass.
Convenção Diretório Consulado
Constituinte Legislativa Império
República burguesa
República popular • Golpe do 9 de Termidor • Golpe de 18
Revolução Burguesa de Brumário
“Terror” Estabilização do processo revolucionário
• Decretos da noite de 4 de • Comité de Salvação • Constituição do Ano III • Código civil
agosto Pública (1804)
• Declaração dos Direitos do • Tribunal
• Constituição do Ano VIII
Homem e do Cidadão revolucionário
• Constituição Civil do Clero • Política de • Império
• Lei de Le Chapelier descristianização napoleónico
• Constituição de 1791 • Exército popular

(4)
Sans-culottes: à letra, sem calções. Com efeito, vestiam calças e não os calções até ao joelho característicos do
vestuário dos nobres e dos ricos. Usavam ainda um colete (la carmagnole) e um barrete vermelho ornado com uma
pena, inspirado no barrete frígio que os escravos africanos usavam na Roma antiga.
(5)
O Consulado, que substituiu o Diretório, integrava três cônsules provisórios: Siéyès, Ducos e Bonaparte.
Unidade 3 - A geografia dos movimentos revolucionários na primeira metade do século XIX 99

Unidade 3 A geografia dos movimentos revolucionários na primeira


metade do século XIX: as vagas revolucionárias liberais e nacionais

SUMÁRIO
– Vagas revolucionárias liberais e nacionais na Europa pós-napoleónica

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Compreender o fenómeno revolucionário liberal da primeira metade do século XIX como
afirmação da igualdade de direitos e do princípio da soberania nacional sobre o da legiti-
midade dinástica**.

CONCEITOS/NOÇÕES
Monarquia constitucional**; Soberania nacional**; Sistema representativo**; Estado laico; Sufrágio
censitário
Cronologia
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
1814-1815
Congresso de Viena.
1815
Constituição da Santa
– Vagas revolucionárias liberais e nacionais na Europa pós-napoleónica Aliança e da Quádrupla
Aliança.
Vencida a França e o projeto imperialista napoleónico pela resistência dos povos euro- 1817
peus, nos quais se incluiu Portugal, e pelos exércitos da coligação (Grã-Bretanha, Rússia, Revolta liberal e anti-
-portuguesa em
Áustria e Prússia) organizados na frente comum denominada de Quádrupla Aliança, o Pernambuco (Brasil).
objetivo destas potências era agora restaurar a ordem europeia arruinada por cerca de 1819
Independências da
vinte anos de guerra. Venezuela e da Colômbia
(definitivas em 1830).
Foi com esse fim que se reuniram no Congresso de Viena (1814-1815) os vencedores
1820
de Napoleão (Inglaterra, Rússia, Prússia, Áustria, França, Suécia, Espanha e Portugal). Revoluções liberais em
Portugal, Espanha
A orientação geral do Congresso foi a de restaurar na Europa o princípio da legitimidade
e Nápoles.
monárquica posto em causa pelas ideias liberais revolucionárias e, com base nele, defi- 1821
nir uma ordem jurídica internacional fundada no equilíbrio de forças dos estados. Bolívar liberta o Peru.
1822
Para fiscalizar a sua execução e assegurar a sua eficácia, o Congresso criou um dire- Proclamação da
independência do Brasil.
tório formado pela Quádrupla Aliança, na qual se integraria a França, constituindo-se
1823
deste modo uma espécie de governo da Europa formado pelas cinco grandes potências Doutrina Monroe (EUA).
(Pentarquia). Para conjugar as suas políticas sobre as questões internacionais acordaram 1828
A “Revolução de Julho” em
reunir-se periodicamente em congressos. França: abdicação do rei
Carlos X.
Com idêntico objetivo, por iniciativa do czar Alexandre I, foi assinado pela Rússia, Independência da Bélgica.
Prússia e Áustria um tratado que criou a denominada Santa Aliança. No congresso de 1839-1840
Dissolução da
Troppau (1820), definiu-se o seu método de ação: não reconhecimento dos governos Confederação Centro-
nascidos de movimentos revolucionários (princípio da legitimidade) e intervenção militar -Americana: novos estados:
El Salvador, Honduras,
nos estados em que a autoridade legítima fosse ameaçada (princípio da solidariedade). Nicarágua, Costa Rica
e Guatemala.
O sistema funcionou durante pouco mais de uma década. No entanto, rapidamente foi
1848
posto em causa pelo ressurgimento das rivalidades entre as potências e pelas rebeliões Movimentos
liberais. revolucionários em Paris,
Milão, Veneza, Viena
Uma primeira vaga revolucionária ocorreu entre 1820 e 1824, em Espanha, Nápoles, e Praga.
II República em França
Portugal, Grécia e na América (revoltas das colónias espanholas e do Brasil). (1848-1851).
100 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

De modo geral, estes movimentos revolucionários resultaram de conspirações ou


movimentos desencadeados por organizações secretas que, na sua maioria, acabaram
por ser controlados pelos poderes governamentais. Uma segunda, entre 1829 e 1839, em
França, onde a burguesia liberal, com o apoio popular, impôs a abdicação do rei absolu-
tista Carlos IX e a sua substituição por Luís Filipe I, duque de Orleães, o “rei-cidadão”
(1830), na Bélgica, Alemanha, Itália, Polónia, Grécia e no Império Austríaco.

Finalmente, no ano de 1848, “o ano das revoluções”, ocorreram praticamente por toda
a Europa (Fig.1) levantamentos populares, barricadas e insurreições tendo como bandei-
ras a liberdade e o nacionalismo. Na origem desta nova vaga de revoluções estão a
pequena burguesia e as classes operárias em luta contra o sistema capitalista por uma
maior justiça social e pela democratização dos regimes liberais, à mistura com aspirações
nacionalistas. Paris, Viena, Berlim, Praga, Buda, Peste, Turim, Milão assistem a fortes
movimentos insurrecionais.

O saldo destes movimentos revolucionários foi escasso: embora a revolução pare-


cesse triunfante em grande parte da Europa, a verdade é que os monarcas apoiados na
alta burguesia e nas forças conservadoras reagiram e acabaram por conseguir impor-se,
explorando as contradições entre os liberais e nacionalistas. Essas reformas permitiram
à burguesia liberal assumir em quase todos os países o protagonismo político. Ao
mesmo tempo, deram mais força aos movimentos nacionalistas, de caráter unificador (na
Alemanha e na Itália) ou separatista (na Grécia e na Bélgica, por exemplo). No entanto,
as correntes nacionalista e democrática abalaram e reformaram muitos dos princípios
essenciais da organização política, social e cultural do Antigo Regime.

N Revolu›es N
Pa’ses que conquistaram
a independncia
Mar Agita›es revolucion‡rias
Irlanda do
1829 Norte Motins
Limites da Confedera‹o
Germ‰nica Estados
Holanda Hanover Unidos
1830 OCEANO
BŽlgica Hesse Pol—nia ATLåNTICO
OCEANO 1830 1830-1831
ATLåNTICO 1830 Florida
MŽxico Havana
Saxe (1821)
Frana 1830 IMPƒRIO RUSSO Cuba Porto Rico
Viena (Ind.1828) (EUA 1898)
1830 Su’a Prov. Unidas
1830 da AmŽrica
1848 1847 Venezuela
Veneza Central (1819)
1831 (1824-1838) Col™mbia
1848 (1819)
Portugal Mar Equador
1820 Espanha Negro (1822) ImpŽrio
1812 1831 do Brasil
1820 1848 SŽrvia (1822)
IMPƒRIO OTOMANO OCEANO Peru
N‡poles 1830 PACêFICO (1824) Bol’via
1820 (1825) Paraguai
(1811)
Chile
(1818) Uruguai
GrŽcia Campanhas de Bol’var (1828)
1821-1829 1819-1824 Argentina
0 250 km Mar Mediterr‰neo Campanhas de San Martin (1816)
1817-1822
Batalhas decisivas Patag—nia
Fig. 1. As revoluções liberais
Fronteiras dos novos
na Europa e o surto Estados 0 2000 km
independentista na América
Latina (primeira metade do
século XIX).
Unidade 4 - A implantação do liberalismo em Portugal 101

Unidade 4 A implantação do liberalismo em Portugal


SUMÁRIO
4.1. Antecedentes e conjuntura (1807-1820)
4.2. A revolução liberal de 1820 e as dificuldades de implantação da ordem liberal (1820-1834);
precariedade da legislação vintista de caráter socioeconómico; a desagregação do império
atlântico; a Constituição de 1822 e a carta constitucional de 1826*
4.3. O novo ordenamento político e socioeconómico (1834-1851)*: importância da legislação de
Mouzinho da Silveira e dos projetos setembrista e cabralista

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Analisar a interação dos poderes que convergiram no processo revolucionário português**.
– Relacionar a desarticulação do sistema colonial luso-brasileiro e a questão financeira com
a dinâmica de transformação do regime em Portugal*. Cronologia
– Distinguir na persistência das estruturas arcaicas da sociedade portuguesa um fator de
1806
resistência à implantação do liberalismo**.
Napoleão decreta o
Bloqueio Continental
CONCEITOS/NOÇÕES à Inglaterra.
Carta Constitucional**; Vintismo; Cartismo; Setembrismo; Cabralismo 1807-1810
Invasões francesas de
* Conteúdos de aprofundamento Portugal.
** Aprendizagens e conceitos estruturantes 1808
A família real portuguesa
chega ao Brasil.
1815
4.1. Antecedentes e conjuntura (1807-1820) Elevação do Brasil
à categoria de Reino.
Apesar dos obstáculos políticos e das naturais resistências culturais, como o analfa- 1816
betismo e a persistência de uma mentalidade essencialmente conservadora, as ideias Morte de D. Maria I;
D. João VI, rei.
liberais foram-se difundindo no nosso País.
1817
A Maçonaria desempenhou um papel de relevo nessa difusão, apesar de reprimida. Revolta liberal
e antiportuguesa em
As perseguições desencadeadas pelo poder político dificultaram o desenvolvimento das Pernambuco (Brasil).
suas atividades, mas, no início do século XIX, as invasões francesas (1807-1810) vieram Conspiração liberal falhada
em Lisboa: execução de
possibilitar-lhe uma maior liberdade de ação. Para além da Maçonaria e dos militares Gomes Freire.
franceses, os exilados nas grandes capitais europeias, Londres e Paris, em particular, 1818
Fundação do Sinédrio
constituíram outro importante veículo de difusão do liberalismo*, através dos seus escri- (associação secreta
tos e publicações (livros, jornais e panfletos) que faziam introduzir clandestinamente no paramaçónica) no Porto.
País. Alguns destes exilados regressaram a Portugal com as invasões francesas juntando- 1820
Revoluções liberais em
-se aos opositores do regime vigente. Portugal e Espanha.

A conjuntura económica e política


* Liberalismo: movimento
(1) intelectual e político que
A resposta portuguesa ao Bloqueio Continental (1806) decretado por Napoleão não
valoriza o valor
o satisfez e as tropas franco-espanholas invadiram Portugal (1807), sob o comando do fundamental da liberdade
general Junot. Para evitar o aprisionamento e a deposição, a família real portuguesa reti- individual. Enquanto
doutrina política, elaborada
rou-se para o Brasil. Seguiram-se mais duas invasões, em 1808, comandadas por Soult, nos séculos XVIII e XIX,
e em 1810 por Massena. defende a igualdade
jurídica dos cidadãos,
a divisão dos poderes e um
(1)
Para além de exigir o encerramento dos portos portugueses à navegação britânica, Napoleão impôs a confiscação sistema representativo
dos bens dos súbditos ingleses estacionados em Portugal. e constitucional.
102 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

? Questão Durante este período, a crise económica acentuou-se com as destruições provocadas
pela guerra, com o aumento das despesas militares e com os elevados gastos da corte
1. Como se explica o
descontentamento geral do no Brasil. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha passou a dispor do governo de Portugal e
país em 1820? o general Beresford exercia o poder de forma autoritária e até violenta, como ficou
patente na repressão da conspiração de 1817 e do seu presumível líder, o general Gomes
Freire de Andrade, grão-mestre da Maçonaria e combatente da Legião Estrangeira de
Napoleão.

A permanência da família real no Brasil tornara-se incompreensível e inaceitável,


nomeadamente para a burguesia mercantil que via com grande preocupação a progres-
siva emancipação económica e política daquela colónia. Com efeito, a abertura dos por-
tos brasileiros ao comércio internacional (1808) e a elevação do Brasil à categoria de
Reino (1815) prejudicaram seriamente os mercadores nacionais, colocados numa situação
de concorrência com os estrangeiros. A ausência da Corte não tinha já justificação, pois
o motivo que estivera na sua origem estava já perfeitamente ultrapassado com a retirada
das tropas invasoras e a queda definitiva de Napoleão (1815).

Estes acontecimentos provocaram, como é compreensível, um clima de descontenta-


Cronologia
mento geral e deram força à ideologia liberal, tanto mais que esta beneficiava de impor-
1820 tantes apoios externos decorrentes da Revolução Espanhola (1812), da campanha da
Levantamento militar no
Porto (24 de agosto). imprensa desenvolvida pelos exilados portugueses radicados na Europa e pela intensa
Junta Provisional do atividade da Maçonaria.
Governo Supremo do Reino.
1821
Regresso da Família Real 4.2. A revolução liberal de 1820 e as dificuldades de implantação
do Brasil.
1822
da ordem liberal (1820-1834)
Promulgação da primeira
Constituição portuguesa. Em 24 de agosto de 1820, numa altura em que o general Beresford se deslocara ao
1823-1824 Brasil, o levantamento militar no Porto, encabeçado pelo comandante Sepúlveda, pelo
Reação absolutista: coronel Cabreira e pelo brigadeiro António da Silveira e enquadrado pelo Sinédrio, tinha
Vilafrancada e Abrilada.
1826 objetivos muito precisos: exigir o regresso do rei, afastar o domínio britânico e estabe-
Morte de D. João VI. lecer uma monarquia constitucional. Semanas depois, em setembro, aconteceu em Lis-
Carta Constitucional
(D. Pedro). boa um fenómeno idêntico.
D. Pedro abdica da Coroa
de Portugal em benefício Constituída a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e realizadas as eleições
da sua filha, D. Maria da
(1821), por sufrágio indireto, foi solicitado o regresso a Portugal de D. João VI, facto que
Glória.
1828-1834 ocorreu em julho desse ano, ficando o seu filho primogénito, D. Pedro, como regente do
Reinado de D. Miguel Brasil. Chegado ao País, o Rei jurou os fundamentos da Constituição que as Cortes esta-
(restauração do
absolutismo). vam a elaborar. A rainha D. Carlota Joaquina e o seu filho, o infante D. Miguel, recusa-
1832 (8 de julho) ram o juramento.
Desembarque do exército
liberal na praia de Arnosa Esta posição antiliberal da rainha e de D. Miguel, a independência do Brasil (1822) e
do Pampelido (a norte do
Porto). a restauração do regime absoluto em Espanha (1823) encorajaram a tentativa de reposi-
1832-1834 ção do absolutismo em Vila Franca de Xira, conhecida por Vilafrancada, liderada pelo
Guerra civil.
Legislação de Mouzinho infante D. Miguel. Em abril de 1824, verificou-se um novo movimento contrarrevolucioná-
da Silveira. rio, a Abrilada. Apesar de não conseguir restaurar o absolutismo, a reação armada abso-
1834 lutista permitiu ao Rei pôr de lado a Constituição (1822) e governar de forma moderada-
Implantação definitiva
do liberalismo. mente absolutista.
Unidade 4 - A implantação do liberalismo em Portugal 103

A morte de D. João VI (1826) veio criar um problema de difícil resolução. O filho pri-
mogénito, D. Pedro, era o imperador do Brasil. Aclamado em Portugal como D. Pedro IV,
abdicou a favor da sua filha Maria da Glória sob duas condições: o casamento desta com
seu tio D. Miguel e o juramento do novo texto constitucional, a Carta Constitucional* * Carta Constitucional:
(1826), elaborada e outorgada por si. modelo de constituição
formal (escrita), que
De regresso a Lisboa (1828), D. Miguel jura a Carta e assume a regência, mas rapida- é concedida pela Coroa
sem a participação dos
mente esquece os compromissos e restaura a monarquia absoluta. Em 1832, D. Pedro deixa cidadãos e em que a figura
o Brasil, assume a regência em nome de D. Maria II, e lidera o desembarque na metrópole do Monarca assume um
papel mais importante.
do exército liberal reunido nos Açores. A guerra civil (1832-1834) que se lhe seguiu dará a
vitória aos liberais. D. Miguel é obrigado a assinar a Convenção de Évora Monte (1834) e
parte para o exílio. Estava consumado o triunfo definitivo do liberalismo em Portugal.

– Precaridade da legislação vintista* de caráter socioeconómico * Vintismo: corrente


democrática do liberalismo
Embora a elaboração da Constituição fosse sua tarefa fundamental, os deputados das português fiel aos
Cortes aprovaram reformas importantes no domínio socioeconómico: o estabelecimento princípios da Revolução
de 1820 e consagrados no
da liberdade de imprensa; a extinção de direitos senhoriais; a abolição de Inquisição; modelo de organização
a nacionalização dos bens da Coroa (propriedades, capelas, direitos reais e comendas política definido na
Constituição de 1822.
das ordens militares) e a sua venda em hasta pública. A economia portuguesa regista
alguns progressos significativos: a criação do Banco de Lisboa (1821); o início da utilização
da máquina a vapor na indústria e nos transportes fluviais e marítimos (1820-1821); a
criação da Sociedade Promotora da Indústria Nacional (1822). Contudo, uma parte do
esforço de modernização das estruturas económicas e sociais do País perder-se-ia devido
à grave situação das finanças públicas (invasões francesas, ocupação inglesa, gastos mili-
tares, crise económica) e à instabilidade social e política.

– A desagregação do império atlântico


Outro problema que preocupava as Cortes era a evolução da situação no Brasil, cujo
posicionamento face à metrópole, substancialmente modificado com os privilégios con-
cedidos pelo Rei, era contrário aos interesses da burguesia portuguesa. Por isso, as Cor-
tes cedo adotaram uma política tendente a anular os privilégios adquiridos e a devolver
ao Brasil a condição de colónia, senão de direito ao menos de facto. Ordenaram ainda
ao príncipe D. Pedro (Fig. 1) que viesse para a Europa.

Todavia, nem o Brasil queria perder o seu estatuto nem D. Pedro a oportunidade de Fig. 1. D. Pedro IV, Rei de
ser rei de um país como o Brasil. Em maio de 1822, D. Pedro foi designado “Defensor Portugal.

perpétuo do Brasil” e, face à reação das Cortes que pretendiam anular as decisões tor-
radas por D. Pedro, este resolveu-se a proclamar a independência do Brasil. Foi o cha-
mado “Grito do Ipiranga”, em 7 de setembro de 1822. Um mês mais tarde, e seguindo
o exemplo do México, era proclamado imperador. Em 1825, Portugal reconheceu formal-
mente a independência desta sua antiga colónia.

– A Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826


A eleição e reunião das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portu-
guesa (1821) concretizou o primeiro objetivo do movimento revolucionário de 1820. O passo
seguinte seria a elaboração de uma constituição escrita.
104 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

* Cartismo: corrente O primeiro texto constitucional português, a Constituição de 1822, jurada pelo rei
conservadora do
liberalismo português que D. João VI após o seu regresso do Brasil, é um documento progressista e democrático,
defendia o modelo de proclama os direitos e os deveres individuais, afirma a soberania da Nação e consagra a
organização política
definido na Carta independência dos três poderes – legislativo (Cortes), executivo (rei e ministros) e judi-
Constitucional de 1826.
cial (juízes). O rei ficava com escassos poderes, dispondo apenas de veto suspensivo na
elaboração das leis. O governo respondia perante as Cortes.

Este modelo de governação liberal estabelecido acabaria por não ter uma realização
? Questão
efetiva, porque os movimentos contrarrevolucionários de Vilafrancada (1823) e Abrilada
1. Compare os textos (1824) levaram o rei a “colocar a Constituição na gaveta”.
constitucionais da
Constituição de 1822 À morte de D. João VI, em 1826, o País continuava a viver uma situação de indefini-
e da Carta Constitucional
de 1826. ção política e iniciava-se uma sucessão algo conflituosa. A clarificação desta situação che-
garia com a outorga da Carta Constitucional de 1826 por D. Pedro.

A Carta, fonte inspiradora do cartismo*, é um documento claramente conservador:


Cronologia representa uma solução de compromisso visando obter o mais amplo consenso e apoio
1832-1834 possíveis. Definiu uma divisão quadripartida dos poderes – legislativo, moderador,
Legislação liberal de executivo e judicial. O primeiro pertencia às Cortes, compostas de duas Câmaras (bica-
Mouzinho da Silveira.
Guerra civil: liberais contra maralismo) – a Câmara dos Deputados, eleita por quatro anos através de sufrágio
absolutistas.
restrito, indireto e censitário, e a Câmara dos Pares, composta por membros nomeados
1834
Convenção de Évora Monte: sem número fixo pelo rei, vitalícia e hereditariamente. O poder moderador competia ao
fim da guerra civil e vitória
rei, que detinha ainda o poder executivo conjuntamente com o governo.
do liberalismo.
1836 Os poderes do Rei foram bastante alargados: nomeava os Pares, convocava as Cortes
Revolução “Setembrista”.
1842
e podia dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir o governo, suspender os
Golpe de estado de Costa magistrados e vetar as leis decretadas pelas Cortes. Por outro lado, a Carta era aceitável
Cabral: reposição da Carta
(Cartismo*). pelas ordens tradicionais privilegiadas (clero e nobreza) e agradava à alta burguesia.
1846-1847
Revoltas populares da
Maria da Fonte e da
Patuleia.
4.3. O novo ordenamento político e socioeconómico (1834-1851):
1851 importância da legislação de Mouzinho da Silveira e dos projetos
Movimento da
Regeneração. setembrista e cabralista
Deve-se a Mouzinho da Silveira (1790-1848) um conjunto de reformas que moderniza-
ram os velhos e ineficazes sistemas administrativo e judicial do País:
– abolição dos morgados e capelas com rendimento líquido inferior a duzentos mil
réis anuais;
– extinção das sisas, excetuando os bens de raiz, do dízimo e dos forais;
– supressão do privilégio exclusivo da Companhia dos Vinhos do Alto Douro da expor-
tação do vinho e da produção de aguardentes;
– nova divisão administrativa do território nacional em províncias, comarcas e conce-
lhos;
– nova organização judicial do país em círculos judiciais subdivididos em comarcas,
estas em julgados e estes em freguesias; estabelecimento de um Supremo Tribunal
(Lisboa).
Unidade 4 - A implantação do liberalismo em Portugal 105

Esta linha reformadora liberal prosseguiu no governo setembrista* de Passos Manuel, * Setembrismo: fase do
liberalismo português
apoiado na burguesia industrial, no proletariado urbano e na classe média dos comerciantes: entre 1836 (Revolução de
promoveu a reforma no ensino (criação dos liceus nacionais, escolas politécnicas e Setembro) e 1842 (golpe
militar liderado por Costa
médico-cirúrgicas em Lisboa e no Porto e do Conservatório Real de Lisboa); procurou Cabral e pelo Duque da
fomentar a indústria através de uma política protecionista (Pauta Aduaneira de 1837); Terceira), caracterizada
pela restauração dos
apoiou a política de fomento ultramarino impulsionada pelo Marquês de Sá da Bandeira. princípios democráticos do
vintismo.
Em 1842, um novo golpe de estado colocou no poder Costa Cabral e restaurou a
Carta. O “Cabralismo*” prosseguiu a via das reformas no ensino, em especial no ensino
primário (obrigatório dos 7 aos 15 anos), na administração e nos transportes e comuni- * Cabralismo: fase do
liberalismo português
cações.
entre 1842 e 1851 (golpe
político-militar chefiado
Em 1851, um novo golpe de estado, a que se chamou “Regeneração”, pôs fim ao
pelo Marechal-Duque de
regime ditatorial cabralista e à instabilidade decorrente das revoltas populares da Maria Saldanha: movimento da
Regeneração)
da Fonte (1846) e da Patuleia (1847).
protagonizada pelo
ministro Costa Cabral que
restabeleceu a Carta
Constitucional de 1826
QUADRO-SÍNTESE
e governou o País de forma
A implantação do liberalismo em Portugal (1820-1851) autoritária e ditatorial.

1820 21 22 23 24 26 28 32 34 36 42 46 47 1851

Abrilada Guerra Maria da


Cortes civil Fonte
Vilafrancada
Constituintes Carta Revolta Golpe de Patuleia
Constituição Constitucional Setembrista Costa Cabral
de 1822 Convenção de Regeneração
Revolução Évora Monte
Liberal
Cartismo

RESTAURAÇÃO DO
ABSOLUTISMO CARTIS-
VINTISMO ABSOLUTISMO Setembrismo Cabralismo
MODERADO MO (Miguelismo)

ABSOLUTISMO vs. LIBERALISMO


VINTISMO vs. CARTISMO
VINTISMO vs. CARTISMO
106 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

Cronologia Unidade 5 O legado do liberalismo na primeira metade do século XIX


1776
Adam Smith: Investigações SUMÁRIO
Sobre a Natureza e as
Causas da Riqueza das 5.1. O Estado como garante da ordem liberal*
Nações. 5.2. O Romantismo, expressão de ideologia liberal
1803
Jean-Baptiste Say: Tratado
de Economia Política. APRENDIZAGENS RELEVANTES
1817 – Identificar as alterações da mentalidade e dos comportamentos que acompanharam as
David Ricardo: Princípios
revoluções liberais.
de Economia Política
e Tributação. – Valorizar a consciencialização da universalidade dos direitos humanos, a exigência de par-
1830 ticipação cívica dos cidadãos e da legitimidade dos anseios de liberdade dos povos**.
Vaga de revoluções
nacionais na Europa.
CONCEITOS/NOÇÕES
1833
Constituição do Zollverein Liberalismo económico**; Romantismo
na Alemanha.
* Conteúdos de aprofundamento
1838
Fundação da Anti-Corn Law ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
League (Associação contra
as Leis sobre os Cereais),
na Inglaterra.
1846 5.1. O Estado como garante da ordem liberal
Abolição das leis
protecionistas inglesas.
– Liberdades públicas, secularização das instituições e liberalismo económico
Na origem do modelo de organização política e social defendido pelos liberais está
uma grande desconfiança em relação ao poder, pelo que a sua grande preocupação foi
garantir as liberdades públicas que dão ao indivíduo garantias contra o poder e a auto-
ridade civil ou religiosa. Nesta perspetiva, o liberalismo tendia a restringir a área de inter-
venção não só do poder público como do poder eclesiástico. Foi também por essa razão
que o liberalismo criou mecanismos de controlo e fiscalização da ação governativa,
nomeadamente através de representantes eleitos (parlamentos), e promoveu a seculari-
zação das instituições e dos comportamentos.

O Estado jamais deveria controlar, sobrepor-se e muito menos substituir-se à inicia-


tiva individual considerada como o motor do desenvolvimento. Devia apenas garantir o
seu livre exercício, velando pela criação das condições necessárias à sua realização e san-
cionando qualquer tipo de entraves ou distorções ao seu exercício.

No plano económico, o liberalismo considera que o incentivo essencial da atividade


* Liberalismo económico:
doutrina elaborada nos económica é o lucro individual, pelo que deve ter inteira liberdade para o procurar. Ao
séculos XVIII e XIX que se fazê-lo, cada indivíduo é conduzido por uma “mão invisível” que harmoniza o interesse
funda no princípio da
liberdade individual, individual com o interesse comum(1). Por isso, a intervenção estatal não só é inútil como
defende a livre iniciativa prejudicial. Para o liberalismo económico*, a ordem natural não deve ser violentada pela
e o livre comércio (laissez
faire, laissez passer). intervenção do estado, sendo esta apenas justificável quando está em causa a ordem, a
segurança, a justiça e obras e instituições públicas, que não possam ser mantidas pela
? Questão iniciativa privada.

1. Qual o papel do Estado


na vida económica (1)
Mão invisível: este conceito introduzido por Adam Smith sustenta que, embora cada participante tente apenas atin-
segundo a ideologia gir o seu objetivo particular, um sistema de mercado livre funciona, apesar disso, para benefício de todos, como se
liberal? uma benevolente “mão invisível” dirigisse todo o processo.
Unidade 5 - O legado do liberalismo na primeira metade do século XIX 107

– O cidadão, ator político


Revolucionários no domínio dos princípios, a verdade é que os regimes políticos de
inspiração liberal na primeira metade do século XIX estiveram longe de ser um modelo
de coerência revolucionária. O caráter de compromisso entre princípios e práticas liberais
(democráticos com outros antidemocráticos) está presente nos regimes liberais, entre
outros elementos (bicamaralismo, hereditariedade…), na restrição do corpo eleitoral à
minoria dos cidadãos ativos*, definidos segundo determinados critérios ou condições de * Cidadão ativo e cidadão
passivo: o cidadão ativo
natureza económica (censo), cultural (instrução) e outras. Os governantes eram escolhi-
é aquele que usufrui de
dos de entre um número muito limitado de cidadãos e de eleitores. Este sistema eleito- direitos políticos; ao invés,
o cidadão passivo não
ral, assente em regra no sufrágio indireto e censitário*, está longe de respeitar o princí-
dispõe desses direitos,
pio da igualdade jurídica dos cidadãos defendida pelo liberalismo. De resto, o voto era nomeadamente o de eleger
ou ser eleito.
considerado pelos liberais apenas como uma função (e não um direito), uma espécie de
serviço público que a nação solicita a determinada categoria de cidadãos e segundo
regras por si estipuladas. * Sufrágio indireto
e censitário: indireto
Desta forma, o liberalismo estabelece uma divisão política entre o país legal (o con- quando os representantes
são eleitos em fases
junto dos cidadãos ativos) e o país real, que inclui também os excluídos da vida polí- sucessivas, cada uma
delas com um corpo
tica, os cidadãos passivos*, muito mais vasto do que aquele.
eleitoral mais restrito;
diz-se censitário quando
– Os limites da universalidade dos direitos humanos: a problemática da abolição o direito de voto está
limitado a cidadãos que
da escravatura cumpram determinados
requisitos, em particular
A problemática da escravatura havia sido já levantada no passado. No século XVI, já um certo nível de riqueza
os padres espanhóis Francisco de Vitória e Las Casas e jesuítas portugueses notabiliza- ou rendimento (censo).

ram-se, entre outros, na denúncia da natureza perversa da escravização, uma luta preju-
dicada pelos poderosos interesses económicos e preconceitos culturais que lhe estavam * Época Contemporânea:
expressão que designa
associados. o período da história mais
recente iniciado pelas
Foi na Época Contemporânea* que o debate se intensificou ligado à filosofia das revoluções liberais e pela
Luzes, partindo do pressuposto fundamental de que todos os homens são naturalmente revolução industrial até
à atualidade.
livres e iguais. Livres, porque no seu “estado de natureza”, isto é, antes da existência
de qualquer autoridade política, ninguém exercia autoridade sobre outrem; e iguais, por-
que a liberdade era pertença de todos. Para além de naturais, os iluministas considera- Cronologia

vam que estas qualidades ou direitos eram universais, isto é, válidos para todos os 1761
homens enquanto seres dotados de razão. Abolição do tráfico de
escravos na metrópole
Esta conceção foi determinante para os progressos da luta pela abolição do tráfico de (Portugal).
1836
escravos e da escravatura nos séculos XVIII e XIX, em países como a França (II República, Proibição do comércio de
1848), os EUA (13.a Emenda à Constituição, 1865) e em Portugal (decreto de Sá da Ban- escravos nas colónias
portuguesas a sul do
deira, 1869). equador.
1861-1865
Guerra de Secessão (EUA).
1869
Abolição da escravatura em
todos os domínios
portugueses, mantendo-se,
no entanto, os escravos
com alguma ligação
“aos senhores” até 1878.
108 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

Cronologia 5.2. O Romantismo, expressão da ideologia liberal


1797-1804
Primeiro romantismo – Revalorização das raízes históricas das nacionalidades e exaltação da liberdade
alemão.
A. W. e F. Schlegel fundam Na sua essência, o Romantismo* foi um movimento de revolta contra a ilustração do
a revista Athenaeum (1798). Iluminismo, contra o primado da Razão proclamado pelos filósofos do século XVIII.
1796
Início do romantismo Ao valorizar a liberdade, o indivíduo e a rebeldia, os românticos abraçaram e inspira-
inglês – Wordswoth:
Lyrical Ballads. ram a causa da emancipação dos povos face aos impérios. A guerra de libertação dos
Coleridge – A Recantation gregos face ao domínio turco (1821-1829) inspirou poetas e pintores e uniu a intelectua-
(Ode à França).
1802 lidade europeia. Delacroix, por exemplo, associou-se ao sofrimento dos oprimidos habi-
França: Chateaubriand tantes de Quios em luta contra o domínio turco, consagrando-lhes uma das suas obras
– O Génio do Cristianismo.
mais importantes, O Massacre de Quios.

– A explosão do sentimento nas artes plásticas, na literatura e na música


* Romantismo: movimento Elaborado contra a tradição representada pelo academismo e neoclassicismo, o Roman-
cultural de origem anglo-
tismo faz triunfar, desde o fim do século XVIII, mas principalmente no início do século XIX,
-saxónica e germânica
iniciado nos finais do a espontaneidade e a revolta. As transformações verificadas no mundo, sobretudo a Revo-
século XVIII que rejeita
todas as regras lução Francesa, trouxeram para o primeiro plano o indivíduo com as suas inquietações,
estabelecidas pelos pesadelos e sonhos, obsessões, indignações e esperanças. A solidão, a noite e a morte
clássicos e reivindica uma
total liberdade; exalta convivem com a agitação da vida, segundo o artista, o seu temperamento e a sua cultura.
o indivíduo, o sentimento
e os costumes e as No domínio da Literatura, o Romantismo caracteriza-se pela sua oposição ao classi-
tradições particulares das cismo antigo, quer no domínio temático quer formal: às amenidades do bucolismo clás-
épocas, de cada
comunidade, de cada sico opõe o belo horrível, disforme, misterioso, tenebroso ou fantástico; à luminosidade
Nação.
diurna, o enevoado, o noturno o irreal; à ordem e medida o desordenado e o desmesu-
rado; à razão o sentimento; às regras da composição a liberdade estilística. O romântico
exalta o culto do eu (egocentrismo), cultiva a cor local, o pitoresco e o exótico (não
apenas o medievo mas também os elementos africanos, orientais, os ambientes dos
miseráveis, as lendas e mitologias populares…).

Nas artes plásticas e arquitetura, nostálgicos da Natureza selvagem levam a cabo uma
renovação da pintura, nomeadamente através da aguarela, onde impera o imaginário e tons
de dramatismo. Inspirados na literatura do passado, exploram com mestria o movimento e
as cores violentamente contrastantes, e os efeitos de claro-escuro emprestam às suas obras
um vigor e dinamismo impressionantes, novos coloridos e novos ritmos, uma mistura do
real com o imaginário. Na arquitetura, o renovado interesse pelas tradições nacionais,
designadamente medievais, e por realidades exóticas inspiraram os revivalismos históricos,
sínteses de tendências que emprestam aos edifícios ecletismo e virtuosismo técnico.

A música romântica caracteriza-se por um grande dinamismo e propensão para a gran-


diosidade e teatralidade, explorando sistematicamente a alteração das regras. As obras
intimistas enchem-se de um conteúdo emocional intenso; as obras de grande enverga-
dura exprimem uma nova tensão. A orquestra aumenta o número de executantes, os ins-
trumentos diversificam-se. Cultiva-se o virtuosismo e novas formas de expressão musical
como o recital solista ou o poema sinfónico.
Questões para Exame 109

Questões para Exame


1

Documento 1 | As queixas do terceiro estado em França nas vésperas da Revolução

1.o O que é o terceiro estado? Tudo.


2.o Que tem ele sido até ao presente na ordem política? Nada.
3.o Que pretende ele? Ser alguma coisa.
(...). Ora, isto é ao mesmo tempo, uma iniquidade odiosa para a generalidade dos cidadãos e uma trai-
ção para a coisa pública. Quem ousará dizer que terceiro estado não contém em si tudo o que é preciso
para formar uma nação? É forte e robusto mas tem ainda um braço preso às cadeias. (…) Assim, o que é o
terceiro estado? Tudo, mas um tudo atado e oprimido. Que seria ele sem a ordem privilegiada? Tudo, mas
um tudo livre e florescente. Nada pode caminhar sem ele; tudo caminharia infinitamente melhor sem os
outros. (...).

Siéyès, E., Qu’est-ce que le Tiers-État?, in Gothier, L. e Troux, A. (1962), Recueils de Textes d´Histoire.

Documento 2 | O regime censitário

Art.o 2 – Para ser cidadão ativo é preciso: ter nascido ou ter-se tornado francês; ter completado os 25
anos; estar domiciliado na cidade ou no cantão no tempo determinado pela lei; pagar, (…), uma contribui-
ção direta pelo menos igual ao valor de três dias de trabalho (…); não ser criado de servir; (…).
Art.o 7.o – Ninguém poderá ser nomeado eleitor, se não reunir as condições necessárias (…): nas cidades
com mais de 6000 almas, ser proprietário ou usufrutuário de bens avaliados pelo rol das contribuições num
rendimento igual ao valor de 200 dias de trabalho, ou ser locatário de uma habitação avaliada (…) com o
valor de 100 dias de trabalho (…).

Excerto da Constituição Francesa de 1791

1.1. Explicite as reinvindicações do terceiro estado nas vésperas da Revolução Francesa (documento 1).

1.2. Integre os documentos 1 e 2 na análise do caráter burguês da Revolução Francesa no período consi-
derado (1789-1791).

Documento 3 | O processo de emancipação do Brasil

Desenvolvimento interno Resoluções das Cortes Constituintes O caminho da independência

1808 – Abertura dos portos 1821 – Exigência de regresso da 1789 – Inconfidência Mineira.
brasileiros às “nações família real. 1817 – Revolução de Pernambuco.
amigas”. – Formação de Juntas 1821 – Motins no Pará, Baía e Rio
1809 – Fundação da Biblioteca Real Provisórias de Governo de Janeiro.
do Rio de Janeiro. dependentes da metrópole. 1822 – Proclamação da
1815 – Elevação do Brasil à – Subordinação jurídica e independência do Brasil.
categoria de reino. militar do Brasil. 1825 – Reconhecimento da
1822 – Ordem de regresso de independência por Portugal.
D. Pedro.
110 Módulo 5 - O Liberalismo – ideologia e revolução, modelos e práticas nos séculos XVIII e XIX

Documento 4 | Constituição de 1822

Art.o 26 – A soberania reside essencialmente na Nação. Não pode porém ser exercitada senão pelos seus
representantes legalmente eleitos.
Art.o 30 – [Os poderes políticos] são legislativo, executivo e judicial. O primeiro reside nas Cortes com
dependência da sanção do Rei (...). O segundo está no Rei e nos Secretários de Estado, que o exerciam
debaixo da autoridade do mesmo Rei. O terceiro está nos Juízes. Cada um destes poderes é de tal maneira
independente, que um não poderá arrogar a si as atribuições do outro.

Documento 5 | D. Miguel e a Vilafrancada (1823)

Documento 6 | Carta Constitucional (1826)

Art.o 11.o – Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Reino De Portugal são quatro: o poder
legislativo, o poder moderador, o poder executivo e o poder judicial. (...).
Art.o 14.o – As Cortes compõem-se de duas Câmaras: Câmara de Pares e Câmara de Deputados. (...).
Art.o 39.o – A Câmara dos Pares é composta de membros vitalícios e hereditários, nomeados pelo Rei e
sem número fixo. (...).
Art.o 59.o – O Rei dará, ou negará, a sanção a cada decreto dentro (...) que lhe for apresentado. (...).
Art.o 65.o – São excluídos de votar (...): # 5.o - os que não tiverem renda líquida anual cem mil réis (...).

2.1. Relacione as decisões aprovadas nas Cortes Constituintes (documento 3) com a independência do
Brasil.

2.2. Analise as dificuldades da implantação do liberalismo em Portugal na primeira metade do século XIX.
Na sua resposta deve ter em conta os seguintes tópicos de desenvolvimento:
– o contexto histórico da Revolução Liberal de 1820;
– a reação absolutista;
– as divergências entre os liberais.

Para além dos seus conhecimentos, deve integrar na sua resposta os dados dos documentos 3 a 6.
Unidade 1 - As transformações económicas na Europa e no Mundo 111

Módulo 6 11.° Ano


Economia e sociedade; nacionalismos e choques
imperialistas
1. As transformações económicas na Europa e no Mundo
2. A afirmação da sociedade industrial e urbana
3. Evolução democrática, nacionalismo e imperialismo
4. Portugal, uma sociedade capitalista dependente
5. Os caminhos da cultura

Contextualização
Cronologia
A revolução industrial que teve origem na Inglaterra no século XVIII estende-se gradualmente
a novos países ao longo do século XIX, ao mesmo tempo que evolui em termos qualitativos. 1851
O desenvolvimento da industrialização induziu profundas alterações na organização das Primeira Exposição
sociedades e nas relações sociais: a burguesia industrial e financeira reforçou o seu poder Mundial, no Palácio de
Cristal, em Londres.
económico, em grande parte à custa da exploração do proletariado industrial; as classes Máquina de costura de
médias adquiriram peso social e político. Singer.
A extrema precaridade das condições de vida e de trabalho do proletariado suscitou o apa- 1854
recimento das propostas socialistas de transformação revolucionária da sociedade. Sainte-Claire Deville isola
o alumínio.
O liberalismo revolucionário oitocentista despertou os nacionalismos* e gerou o movimento
1856
das nacionalidades caracterizado por uma dupla face: a valorização do Estado-Nação e o Patente do forno elétrico
desenvolvimento de tendências imperialistas. de Siemens.
Em Portugal, depois de uma fase de permanente instabilidade e conflitualidade ideológica Patente do conversor do
inglês Bessemer para
em nada favorável ao arranque industrial, a Regeneração (1851) representou o início de uma o fabrico do aço.
fase de maturidade e de maior realismo bem mais propícia ao desenvolvimento económico 1858
do país. No entanto, as dificuldades políticas e económicas dos finais do século precipitaram Exploração do petróleo na
a queda da monarquia e o triunfo do republicanismo. Pensilvânia (EUA).
As transformações da civilização industrial alteraram também as condições da produção cul- 1866
Descoberta da dinamite
tural e estão na origem do movimento de renovação no pensamento e nas artes de finais do pelo norueguês Nobel.
século XIX/princípios do século XX. 1869
Descoberta do dínamo
elétrico pelo belga
Unidade 1 As transformações económicas na Europa e no Mundo Gramme.
1876
Invenção do telefone pelo
SUMÁRIO
americano Bell.
1.1 A expansão da revolução industrial 1879
1.2. A geografia da industrialização Invenção da lâmpada
1.3. A agudização das diferenças* elétrica de filamentos pelo
americano Edison.
APRENDIZAGENS RELEVANTES 1887
– Relacionar a dinâmica do crescimento industrial com o caráter cumulativo dos progressos Registo da patente
técnicos e a exigência de novas formas de organização do trabalho. do motor de explosão
do alemão Daimler.
– Relacionar os desfasamentos cronológicos e ritmos da industrialização com as relações 1888
de domínio ou de dependência estabelecidas a nível mundial**. Patente do pneumático
– Reconhecer as características das crises do capitalismo liberal. do escocês Dunlop.
1895
CONCEITOS/NOÇÕES Descoberta do raio-X pelo
Progressos cumulativos; Capitalismo industrial**; Estandardização; Livre-cambismo; Crise cíclica alemão Röntgen.
Marconi realiza a primeira
* Conteúdos de aprofundamento ligação telegráfica sem
** Aprendizagens e conceitos estruturantes fios.
112 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

1.1. A expansão da revolução industrial


– Novos inventos e novas fontes de energia; a ligação ciência-técnica
As grandes inovações tecnológicas do século XIX – o telefone, o fonógrafo, o dínamo
e o motor de combustão interna – estão ligadas aos progressos cumulativos* da ciência
e da técnica e da investigação científica que, por sua vez, se centra cada vez mais na
procura de respostas para os problemas levantados pela revolução dos transportes e das
comunicações (caminho de ferro, barco a vapor e telégrafo), ainda na primeira metade do
século, e pela expansão do processo de industrialização fora da Grã-Bretanha. A utiliza-
ção industrial das novas fontes de energia (petróleo e a eletricidade) e das novas tecno-

* Progressos cumulativos:
logias a elas associadas provocou alterações no modo de produção industrial de tal
inovações que ocorrem em forma significativas que se pode falar de uma “segunda revolução industrial”.
paralelo e/ou resultam de
outras num processo de A ligação laboratório-fábrica esteve também na origem do desenvolvimento de várias
interação e/ou de adição.
ciências, como a Química (corantes artificiais, explosivos, produtos farmacêuticos, fertili-

* Cartel: associação de zantes e fotografia).


empresas numa dada
atividade produtiva cujo
Nos finais do século XIX, os novos produtos (celofane, lacas, fibras artificiais, cimento,
propósito é restringir ou betão…), a melhoria da qualidade do aço e a substituição do vapor pela eletricidade fize-
dificultar a concorrência
ram o mundo entrar na era da produção e o consumo de massa.
nessa atividade, exercer
um poder de monopólio
através do – Concentração industrial e bancária
estabelecimento de
acordos relativamente aos No último terço do século XIX, a conjuntura de baixa de preços, o aumento da pro-
preços, às quantidades
produzidas, à repartição cura e as tendências livre cambistas favoreceram a concentração industrial, que se desen-
dos mercados entre si ou volveu através de duas formas:
ainda por outras práticas
do mesmo tipo. – pela associação entre empresas que controlavam uma determinada fase do processo
produtivo, em regra a última (concentração horizontal);
* Holding: sociedade de
controlo de outras – pela integração de diferentes empresas ligadas às diversas fases de produção,
empresas através da desde a obtenção de matérias-primas até à venda do produto final (concentração
aquisição de ações em
quantidade suficiente para vertical).
as dominar.
A primeira forma de concentração (horizontal) deu origem à formação de cartéis* e de
holdings*. O processo de crescimento da dimensão e do poder económico-financeiro das
* Trust: empresa que
empresas produziu ainda uma outra forma de concentração: o trust*. Apesar de diferentes,
resulta frequentemente de
um processo de absorção os objetivos são comuns: contornar a concorrência e assegurar o controlo dos mercados.
de outras empresas
a partir de uma mais Nas vésperas da I Grande Guerra, na maioria dos países industrializados europeus for-
poderosa. Difere do cartel
maram-se estruturas empresariais muito poderosas, verdadeiros impérios industriais. Um
por operar uma fusão
entre as empresas e por poder de tal modo forte que em muitos casos ultrapassava as fronteiras nacionais e se
ter como objetivo
estendia ao estrangeiro (empresas multinacionais*) com o objetivo de explorar as dife-
a eliminação dos seus
concorrentes pelas baixas renças de custos de produção (matérias-primas e trabalho) e encontrar novos mercados
de preços. consumidores. Alguns estados intervieram em defesa dos interesses nacionais e da con-
corrência, restringindo ou até proibindo as fusões e a formação de monopólios(1).
* Empresas multinacionais
ou empresas transnacionais
(ETN): empresas que
operam fora do território (1)
A Lei Sherman proibia “toda a combinação sob a forma de trust ou que de outro modo constitua obstáculo ao comér-
nacional da própria sede. cio entre os estados”, mas os tribunais interpretaram-na de modo tão vago que na realidade nunca teve aplicação.
Unidade 1 - As transformações económicas na Europa e no Mundo 113

A partir de meados do século XIX, os pequenos bancos privados vão dando lugar a ban- Cronologia
cos de maior dimensão, organizados segundo o modelo empresarial de sociedades por
1849-1873
ações*. Este novo tipo de bancos, denominados em França por banques d´affaires e na Conjuntura económica
europeia de expansão.
Grã-Bretanha por joint stock banks, ocupa-se em primeiro lugar do crédito à indústria e só
1852
depois das operações bancárias tradicionais. No último quartel do século, acompanhando Criação do Crédit Mobilier.
a tendência verificada no setor industrial, o sistema bancário tende para a concentração. 1855
Fundação do Creditanstalt
Em França, o Crédit Mobilier dos irmãos Pereire, o Crédit Lyonnais (1863) e a Société Bank (Viena).
1863
Générale (1864) são os exemplos mais importantes de uma “haute-banque” especializada Fundação do Crédit
no crédito à indústria e aos grandes empreendimentos. Na Grã-Bretanha, sobressai o Lyonnais.
Loyds Bank de Londres, na Alemanha, o banco dos Rothschild e o Bank für Händel und 1864
Criação da Société Générale.
Industrie (1853). 1874-1896
Conjuntura económica
A grande produção industrial passou deste modo a estar associada à banca e a viver europeia de recessão.
na dependência da alta finança. O capitalismo industrial* triunfa, colocando-se na lide- 1886
Criação da Peugeot.
rança da economia.

– A racionalização do trabalho * Sociedade por ações:


empresa onde o capital
Comprovada a eficácia da utilização da máquina ferramenta na produção, o objetivo é fracionado em partes
ou ações que podem ser
dos estudiosos do problema foi racionalizar a ligação entre o trabalho mecânico e o tra- adquiridas ou subscritas
balho humano com vista a alcançar a máxima eficiência. por particulares, os
acionistas, que desta forma
F. Taylor (1856-1915) definiu um modelo de “gestão científica de trabalho” tendo se tornam sócios da
empresa, participando nos
como princípios básicos da organização do trabalho (taylorismo): seus resultados – lucros
ou prejuízos – na
– a separação das tarefas mentais (direção, planificação) e de execução; proporção do investimento
realizado.
– uma estreita cooperação entre a direção e o pessoal;
– a divisão metódica (racional) das fases da atividade laboral, eliminando todos os
* Capitalismo industrial:
gestos inúteis, todos os tempos mortos; fase da evolução do
– a máxima simplificação das tarefas de forma a permitir um ritmo uniforme e com- capitalismo iniciada com
a revolução industrial
passado (automatizado) do trabalho. caracterizada por um
elevado desenvolvimento
No início do século XX, o industrial norte-americano Henry Ford (1863-1947) adaptou da atividade produtiva,
pelo investimento maciço
o sistema de Taylor à sua empresa, a Ford Motor Company, desenvolvendo com um
de capital na indústria
enorme sucesso um método assente na produção estandardizada* e em cadeia que ficou e por um forte crescimento
do trabalho assalariado.
conhecido por fordismo.

A produção em série e a criação de uma linha de montagem levaram ao extremo a


* Produção estandardizada
racionalização da ligação entre o trabalho mecânico e humano. Os operários eram chama- ou estandardização:
produção uniformizada,
dos a executar tarefas extremamente simples e rigorosamente encadeadas, sem paragens
sem inovações, do mesmo
ou gastos de tempo inúteis. O trabalhador era incentivado a melhorar a produtividade do modelo ou tipo de produto,
permitindo economias
seu trabalho através de uma política salarial que recompensava os mais produtivos com
de tempo e de custos.
salários mais elevados. Desta forma, Ford conseguiu um aumento espetacular da produ-
ção dos seus automóveis, uma diminuição de custos de produção e dos preços. O auto-
móvel que até então estava apenas ao alcance da gente rica tornou-se num bem acessí-
vel a um número muito maior de bolsas. Foi assim que o seu célebre modelo T, conhecido
nos EUA por Tin Lizzie, vendeu mais de quinze milhões de unidades em dezanove anos.
114 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

1.2. A geografia da industrialização


– A hegemonia inglesa
A prioridade no take-off (arranque ou descolagem) industrial constituiu para a Ingla-
terra uma vantagem competitiva decisiva na luta pela hegemonia no seio da economia
europeia do século XVIII.

A vantagem adquirida no arranque da revolução industrial e os progressos alcança-


dos no desenvolvimento do processo de industrialização transformaram a Inglaterra na
“oficina do mundo”. Em 1873 assegura um terço da produção industrial mundial. A Expo-
sição Universal em Londres (1851) constituiu uma demonstração espetacular da hegemo-
nia industrial britânica e da sua supremacia tecnológica relativamente aos demais países.

Esta proeminência verifica-se também no domínio comercial e financeiro. O incremento


das vias férreas e da construção de canais fluviais e o crescimento da população e da
urbanização reforçaram a dimensão e a coesão do mercado interno.

As grandes companhias de navegação asseguravam as ligações regulares com todas as


partes do mundo: a Cunard com a América, a Peninsular e Oriental e a British India com a
Índia e o Extremo Oriente. Londres torna-se no principal centro comercial e financeiro do
maior império colonial do mundo. Este quadro de clara superioridade britânica seria ainda
? Questão
reforçado com a adoção do livre-cambismo que estimulou o comércio externo e o desen-
1. Explique a hegemonia volvimento da indústria, pois o livre-câmbio fez baixar o preço das matérias-primas.
económica inglesa no
século XIX.
– A afirmação de novas potências
A partir da revolução industrial inglesa, que constituiu simultaneamente o ponto de
partida e o modelo de referência, o processo de industrialização foi-se estendendo geo-
1780 1800 1820 1840 1860 1880 1900 1920 1940 1959
graficamente (Fig. 1) ao longo do século XIX em vagas sucessivas, ainda que com carac-
Gr‹-Bretanha terísticas e ritmos distintos, em conformidade com a capacidade de cada país de receber
Frana
EUA
e de adaptar as inovações.
Alemanha
SuŽcia Em França, a partir da década de 1830-1840, ultrapassados muitos dos constrangi-
Jap‹o
mentos naturais e humanos (dispersão e o isolamento dos mercados, fraco poder de
Rœssia
Canad‡ compra, escassez de capitais, concorrência britânica, instabilidade política e social, per-
Arranque industrial
das coloniais…), o take-off industrial pôde avançar. As vantagens proporcionadas pelo
Fig. 1. O arranque industrial.
caminho de ferro – maior facilidade e rapidez no acesso aos mercados, baixa dos custos
dos transportes e, portanto, dos preços de custo – foram rapidamente compreendidas
pelos homens do dinheiro e dos negócios atraídos pelas boas perspetivas de rendimento.
Os setores financeiro e industrial, em especial a siderurgia e a metalurgia, adquirem uma
nova dinâmica com a constituição de grandes grupos financeiros, como os Rothschild e
os Pereire.

Na Alemanha, a formação da Zollverein(2) (1834) representou um importante estímulo ao


arranque da industrialização, na medida em que permitiu criar um mercado alargado e uni-
ficado para a circulação de mercadorias.

(2)
Zollverein (1834-1870): união aduaneira entre a maioria dos estados alemães criada por iniciativa da Prússia e do
seu chanceler Bismark.
Unidade 1 - As transformações económicas na Europa e no Mundo 115

Paralelamente, recorrendo às técnicas inglesas, aos capitais franceses e ao apoio esta-


tal, os estados alemães intensificaram a exploração dos seus vastos recursos mineiros
(ferro, carvão) e construíram uma densa rede ferroviária que funcionou como motor não
só da unificação económica como também política. A unificação política, concretizada em
1871, com a proclamação do II Reich(3), e a aquisição das ricas e prósperas regiões da
Alsácia e da Lorena após a vitória nesse mesmo ano sobre a França fortaleceram a moral
e o nacionalismo alemães e impulsionaram este país para uma rápida industrialização
estimulada por uma política económica estatal autoritária e protecionista, pela concentra-
ção do investimento nas indústrias química, naval e elétrica e em estruturas empresa-
riais de grande dimensão, pela aposta na instrução e na estreita ligação da fábrica ao
laboratório. Um pouco antes de 1900, a Alemanha consegue ultrapassar a Inglaterra em
termos industriais.

No outro lado do Atlântico, os Estados Unidos da América (EUA) também avançam


para a industrialização nos anos 40. Cronologia
Nação jovem, com vontade em assumir-se como potência regional no continente ame-
1853
ricano, tirou partido de vários fatores favoráveis: Exposição Universal de
Nova Iorque.
– a vastidão do território, reforçado com importantes aquisições territoriais(4), e a
1861-1865
abundância de recursos naturais (ouro, petróleo, minérios...) proporcionaram-lhe um Guerra da Secessão.
grau elevado de autossuficiência de matérias-primas e energia; 1867
A Rússia vende o Alasca e
– a imigração de mão de obra europeia; as ilhas Aleutas aos EUA.
– a aquisição da tecnologia estrangeira, em especial inglesa, nomeadamente para a 1876
Exposição Universal de
construção das redes ferroviárias, fundamental na ligação dos vastos espaços pro- Filadélfia.
gressivamente alargados com a ocupação do Oeste(5) e na unificação do imenso 1887
mercado interno; Interstate Commerce Act
(EUA).
– a criação de fortes estruturas financeiras; a intervenção do governo federal em 1890
defesa da concorrência no mercado interno (Interstate Commerce Act, 1887, e Sher- Sherman Antitrust Law
(EUA).
man Antitrust Law, 1890), em paralelo com a adoção de uma política protecionista
relativamente ao exterior.

No final do século XIX, os EUA são já um sério concorrente à liderança económica


mundial.

O Japão foi o único país asiático que iniciou o processo de industrialização no século
XIX, fazendo-o através de um modelo de autodesenvolvimento industrial, imposto “de
cima para baixo”. O grande obreiro da transformação do Japão, um país agrícola e atra-
sado, pobre em recursos naturais e territorialmente exíguo, numa potência económica
moderna e competitiva foi o imperador Mutsu-Hito (1852-1912) que iniciou a chamada Era
Meiji ou Restauração Meiji(6) (1868-1912). A partir de 1854-1858, iniciou a abertura
Fig. 2. Um navio da frota
(controlada) do país ao exterior (Fig. 2) e introduziu reformas políticas, adotando um sis- americana no porto de
tema constitucional e o princípio da igualdade de todos perante a lei. Tóquio, em julho de 1853.

(3)
O primeiro tinha sido o Sacro-Império Romano.
(4)
A Luisiana foi comprada à França em 1803; a Florida, à Espanha em 1819; o Texas, anexado em 1845; Washington e
Oregon, tornaram-se americanos depois de um acordo com o Canadá em 1846; a Califórnia e o Novo México integra-
dos depois da guerra de 1846-1848 com o México. Os EUA têm a dimensão da Europa (9 363 000 km2) e só são exce-
didos pela Rússia, Canadá e China.
(5)
A ocupação do Oeste fez-se na base do homestead, a parcela de 65 hectares oferecida gratuitamente a qualquer
adulto que aí residisse durante 5 anos.
(6)
“Meiji” significa em japonês, “luzes” ou “progresso”.
116 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

No plano económico, os direitos senhoriais foram abolidos e o camponês foi incenti-


vado a melhorar a sua produtividade com a aplicação de novas técnicas ocidentais. O
Estado passou a apoiar as grandes empresas exportadoras (as Zaibatsu), adquiriu equi-
pamentos industriais e contratou técnicos no estrangeiro, ao mesmo tempo que impôs
um modelo de relações laborais à imagem e semelhança da sociedade civil, isto é, fun-
dado no respeito absoluto pela hierarquia e pela disciplina. Estes esforços reformistas
foram completados pelo estabelecimento de um sistema de instrução pública obrigatória
(1890) orientado para o desenvolvimento da sua capacidade de trabalho e do amor
nacionalista. Nas vésperas da I Grande Guerra e depois de ter derrotado a Rússia cza-
rista (1905) e anexado a Coreia (1910), o Japão era a grande potência industrial e militar
da Ásia.

– A permanência de formas de economia tradicional


Ao longo do século XIX assiste-se nos países onde o processo de industrialização está
em marcha a um fenómeno que constitui uma das principais características da evolução
do sistema capitalista: o triunfo da fábrica, uma nova forma de organização do trabalho
e da atividade industrial, sobre o sistema tradicional da produção artesanal.

Formas de organização do trabalho e da No entanto, as formas de organização da produção características


atividade industrial da era pré-industrial (artesanal e oficinal) mantiveram-se ativas. Mas

Produção artesanal Produção mecanizada – as pequenas unidades de produção de tipo familiar que empregam
tradicional grande indústria uma mão de obra muito pouco ou nada especializada e laboram com
• Dispersão das oficinas • Concentração da métodos de fabrico tradicionais e de fraca produtividade veem dimi-
e fraca divisão do produção e de mão de nuir seriamente as suas capacidades competitivas e muitas não sobre-
trabalho obra (cada vez mais)
especializada. vivem.
• Fontes de energia • Adoção de técnicas de O desenvolvimento da industrialização e do capitalismo não podia
pouco eficazes (força produção mecanizada.
muscular e hidráulica) deixar de se fazer sentir nos campos. O processo de transformação das
e manipulação de
estruturas agrárias – designado por “revolução agrícola” – induziu
instrumentos.
aumentos de produtividade e de rendimentos das culturas e da cria-
• Investimentos • Investimentos
reduzidos avultados. ção de gado. Mas, o ritmo e a profundidade dessas transformações
• Consequências: • Consequências: não foram iguais nem gerais na Europa, variando segundo os países e
produção limitada, produção cada vez
as regiões: no noroeste europeu, o mundo rural modernizou-se e pros-
fracos lucros, poucos maior, tornando
benefícios sociais. possível a realização perou; na Europa continental e mediterrânica, continuou limitado por
de grandes lucros e o
alargamento dos
estruturas arcaicas, feudalizantes.
benefícios sociais.
O desenvolvimento da industrialização revolucionou também o
comércio: o caminho de ferro aproximou os mercados, intensificou as trocas e permitiu
a venda por correspondência. Mas as formas tradicionais do comércio, nomeadamente
os vendedores ambulantes e as feiras, continuaram a ter um papel importante no abas-
tecimento das populações.
Unidade 1 - As transformações económicas na Europa e no Mundo 117

1.3. A agudização das diferenças


– A confiança nos mecanismos autorreguladores do mercado
Os economistas liberais ou “clássicos” – Adam Smith (1723-1790), Jean-Baptiste Say
(1767-1832) e David Ricardo (1772-1823) – acreditavam na existência de uma ordem
económica natural, pelo que o Estado deveria por isso dispensar-se de toda a interven-
ção, porque só a liberdade permitiria o funcionamento eficaz dos mecanismos autor-
reguladores do mercado, responsáveis pela manutenção do equilíbrio da economia:
– o interesse individual que assegura a produção dos bens necessários à satisfação
das necessidades humanas;
– o mecanismo dos preços que adapta a oferta à procura, evitando tanto a escassez –
a subida do preço de um bem raro atrai os investidores mobilizados pelo objetivo do
lucro pelo que a oferta desse bem aumenta – como também o excesso – a baixa do
preço de um bem abundante desincentiva a sua produção e a diminuição da sua oferta.

Estes princípios fundamentais do liberalismo económico, que se traduziram no laissez * Livre cambismo: princípio
faire, laissez passer, foram também aplicados nas relações económicas internacionais. do liberalismo económico
segundo o qual o comércio
Para obter um maior grau de vantagens cada um dos países deveria especializar-se na livre entre as nações, isto
produção dos bens em que tem vantagem, em cuja produção é mais eficiente, isto é, que é, liberto da interferência
do Estado e de barreiras
produz melhor ou mais barato (princípio da vantagem absoluta). É o ponto de partida de qualquer espécie,
para a defesa do livre cambismo*. As trocas comerciais – e a circulação dos meios de é a melhor política
comercial, aquela que
pagamento e os investimentos de capitais – devem ser livres, libertos de constrangimen- maior bem-estar
tos ou obstáculos, e realizar-se exclusivamente por iniciativa e ação de agentes privados. proporciona às sociedades.

– As crises do capitalismo
A história do capitalismo mostra-nos que o formidável crescimento económico que ele ? Questão
suscitou não se processa de uma forma linear mas numa sucessão de ciclos económicos 1. Identifique os mecanismos
de duração variável(7), constituídos por um período de expansão ou prosperidade que- autorreguladores num
mercado livre e explicite
brado por uma crise, responsável pelo período de recessão ou depressão que se lhe
o seu funcionamento.
segue. Finalmente, dá-se a recuperação que lança a economia numa nova fase de expan-
são e dá início a um novo ciclo económico(8).

As crises económicas constituem uma constante na história da evolução do capita-


lismo. No entanto, estas divergem relativamente às suas características e aos fatores que Cronologia
as explicam. Assim, até meados do século XIX, as crises são de subprodução, provoca-
Ciclos e fases ou
das quer pelo fator estrutural da incapacidade do homem em responder com o aumento conjunturas da economia
europeia (1790-1920):
da produção ao ritmo mais rápido de crescimento da população, quer devido à conjuga-
1790-1815 – Fase A
ção de fatores conjunturais, como a “sinistra trilogia” da fome, peste e guerra. Para além
1816-1847 – Fase B
de serem de subprodução, estas crises têm origem no setor agrícola, nas más colheitas 1848-1872 – Fase A
que geram num primeiro momento a escassez de cereais e a alta do seu preço e, num 1783-1795 – Fase B
segundo, a fome, as doenças, a peste e a falta de braços que prolonga e acentua a crise. 1896-1920 – Fase A

(7)
Na evolução do capitalismo distinguem-se ciclos curtos ou de Kitchin (de 3 a 5 anos), ciclos médios ou de Juglar
(de 6 a 10 anos) e ciclos longos ou de Kondratieff (de 40 a 50 anos). As tendências seculares de alta ou de baixa
denominam-se de trends.
(8)
O indicador utilizado pelos economistas para determinar as fases de um ciclo económico é o movimento dos preços.
Por isso, também se denomina o período de expansão por Fase A ou de alta de preços e o de recessão por Fase B ou
de baixa de preços.
118 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Na segunda metade do século XIX, numa altura em que a industrialização caminhava


para a maturidade e se estendia a novos países, a economia europeia confrontou-se com
* Crise cíclica: o mesmo que um fenómeno novo: o retorno periódico das crises, as crises cíclicas*. O fator decisivo
crise periódica, isto é, crise
aqui não é como no passado a escassez, mas a abundância, a superprodução: a produ-
que ocorre com
regularidade. ção industrial em alta não encontra no consumo um nível correspondente.

Para além deste fator conjuntural, as crises de superprodução decorrem de um fator


estruturante do espírito que anima o sistema capitalista: a procura incessante do aumento
da produtividade e do lucro.

– O mercado internacional e a divisão internacional do trabalho


A mundialização (parcial) das trocas (Fig. 3), favorecida pela expansão da industriali-
zação, pela revolução dos transportes e das comunicações, pelo incremento do comércio
* Divisão internacional do internacional, promoveu a divisão internacional do trabalho*, criando deste modo uma
trabalho: princípio que
relação de interdependência ou complementaridade internacional entre as economias dos
defende que cada país
deve especializar-se na países industrializados e as economias dos países e/ou regiões não industrializados ou
produção daquele (s) bem periféricos. Aqueles passaram a depender das importações ultramarinas de matérias-pri-
(ou bens) que produz
melhor ou mais barato, mas e bens alimentares; estes dos produtos manufaturados.
exportando os seus
excedentes em troca Mas desta relação fundada num sistema de trocas de valor desigual (os bens indus-
de produtos importados. triais tinham um valor relativo muito superior ao valor dos bens primários) aproveitou
sobretudo a Europa. Para os países/regiões não industrializados resultaram consequên-
cias, algumas positivas (imigração de pessoas e capitais…), outras negativas (dependên-
cia económica, política e até cultural), cujos efeitos ainda perduram.

? Questão BçLTICO
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1. Descreva o padrão
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COLîNIAS Alimentos êNDIAS Contrabando AMƒRICA


DO SUL OCIDENTAIS dinheiro LATINA

Manufaturas: especialmente txteis, n‹o necessariamente autoproduzidos ou consumidos


Alimentos: incluindo tabaco e peixe
Servios: especialmente marinha mercante
Dinheiro: em moeda, ouro em barras e letras de c‰mbio
MatŽrias-primas: especialmente madeira e outras provis›es navais e ferro (do B‡ltico)

Fig. 3. O comércio multilateral no século XIX.


Unidade 2 - A afirmação da sociedade industrial e urbana 119

Unidade 2 A afirmação da sociedade industrial e urbana


SUMÁRIO
2.1. A explosão populacional; a expansão urbana e o novo urbanismo; migrações internas e emi-
gração
2.2. Unidade e diversidade da sociedade oitocentista*

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Relacionar o papel da burguesia, como nova classe dirigente, com a expansão da indús-
tria, do comércio e da banca**.
– Identificar as oportunidades oferecidas pelo capitalismo oitocentista à formação de uma
nova classe média**.
– Reconhecer, nas formas que o movimento operário assumiu, a resposta à questão social
do capitalismo industrial**.

CONCEITOS/NOÇÕES
Explosão demográfica**; Profissões liberais; Consciência de classe; Sociedade de classes**; Proleta-
riado; Movimento operário**; Socialismo**; Marxismo**; Internacional operária

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes

2.1. A explosão populacional; a expansão urbana e o novo


urbanismo; migrações internas e emigração
O século XIX registou um extraordinário aumento demográfico em quase todo o
Mundo, sobretudo na Europa, cuja população cresceu a um ritmo de tal modo acelerado
que pode falar-se em “explosão demográfica”*. * Explosão demográfica:
designa o forte
Este crescimento rápido, que transformou o Velho Mundo num continente exportador crescimento da população
em consequência das
de homens, explica-se sobretudo pela diminuição da mortalidade em consequência da alterações verificadas
melhoria geral das condições de vida (higiene, alimentação, saúde…). na estrutura demográfica
das sociedades
A descida da taxa de mortalidade, em paralelo com o aumento da esperança média industrializadas do século
XIX (“revolução
de vida e o decréscimo das taxas de fecundidade e de natalidade, foram desenhando um
demográfica”): redução das
novo regime ou modelo demográfico, já liberto do poderoso entrave ao crescimento taxas de mortalidade,
manutenção das taxas
populacional constituído pelas crises demográficas do passado.
de natalidade elevadas
e o aumento da esperança
O impacto do aumento da população tornou-se notado sobretudo nas cidades que
média de vida.
conheceram um crescimento ainda mais espetacular do que o da população global.
As cidades já existentes tornaram-se grandes cidades, em particular aquelas que goza-
vam de uma situação geográfica privilegiada e as que constituíam grandes centros eco-
nómicos e administrativos. Ao mesmo tempo, surgiram novas cidades.

O fenómeno urbano é, essencialmente, um fenómeno demográfico e resulta de uma


convergência de fatores:
– o afluxo dos camponeses impelidos ao êxodo rural pelo superpovoamento dos cam-
pos, pelas expropriações e pela fuga à ruína e pelas oportunidades de emprego e
a miragem de uma vida melhor na cidade;
120 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

– a concentração da produção industrial nas zonas urbanas;


– o desenvolvimento do setor terciário (comércio e serviços) cujos progressos multi-
plicaram as ofertas de emprego e as oportunidades de negócios;
– a revolução dos transportes que veio facilitar a mobilidade das populações.

A concentração acelerada e caótica de enormes massas humanas em espaços urba-


nos limitados fez surgir uma série de novos e graves problemas: o abastecimento das
populações, a circulação de pessoas e de mercadorias, o saneamento e a saúde pública,
a habitação, a administração e a ordem pública. Para além disso, provocou alterações
? Questão radicais no modo de vida das pessoas e das coletividades.

1. Que problemas Para solucionar ou atenuar estes problemas, a intervenção dos poderes públicos tor-
urbanísticos colocou nou-se inevitável. Na segunda metade do século XIX, o urbanismo e as suas propostas
o fenómeno do crescimento
das cidades do século XIX? de remodelação das áreas urbanas vão transformando, a um ritmo dependente da con-
juntura económica, a fisionomia das grandes cidades(1).

Migrações internas e emigração


No século XIX, a conjugação de vários fatores favoreceu os movimentos migratórios
internos e os movimentos emigratórios internacionais.

Relativamente aos primeiros, para além das migrações sazonais, o movimento migra-
tório mais significativo foi o êxodo rural, estimulado por fatores de repulsa (superpovoa-
mento, pobreza) e de atração (apelo irresistível da vida urbana).

A emigração europeia intercontinental na primeira metade do século XIX é relativa-


mente modesta. O forte crescimento populacional, as crises económicas, sociais e políti-
cas que atingem a Europa do Noroeste entre 1845 e 1853 elevaram o número de emi-
grantes, na sua maioria anglo-saxónicos (ingleses, irlandeses), alemães e escandinavos.

Depois de um período estacionário, à entrada do último quartel do século XIX, período


em que em que se verifica um surto industrial nos países de emigração, o fluxo reinicia-se
e acentua-se: contrai-se a emigração do norte europeu e começam a elevar-se os contingen-
tes de emigrantes latinos da Europa mediterrânica e eslavos da Europa Central e do Leste.

Os Estados Unidos da América, um país abundante em terra e oportunidades e caren-


ciado de homens, é o destino da maior parte destes emigrantes. Também a América
Latina, em especial o Brasil, que também se debatia com falta de mão de obra (expan-
são da cultura do café e abolição da escravatura), e a Argentina recebem massas impor-
tantes de emigrantes portugueses, espanhóis e italianos.

Os continentes africano e asiático não atraíram um interesse significativo dos emigran-


tes europeus no século XIX. Apesar da escalada imperialista europeia em África depois da
Conferência de Berlim (1884-1885), apenas a África do Sul (descoberta de ouro e diaman-
tes) acolheu um número importante de emigrantes brancos. No caso da Ásia, à distância
física considerável acrescentava-se uma distância cultural de muito maior peso e ainda a
falta de abertura das autoridades e das hierarquias sociais aos contactos exteriores.

(1)
O plano de remodelação urbanística de Paris, executado pelo barão Haussmann entre 1850-70, constituiu o modelo
deste novo urbanismo assente em princípios estéticos e de racionalidade.
Unidade 2 - A afirmação da sociedade industrial e urbana 121

2.2. Unidade e diversidade da sociedade oitocentista

– Uma sociedade de classes


Nos estados onde triunfou o liberalismo, a abolição dos privilégios de nascimento e
a consagração constitucional da igualdade jurídica de todos os cidadãos perante a lei
deu um golpe mortal no predomínio social e político da aristocracia de casta ou linha-
gem, provocando uma profunda revolução social com a supressão da sociedade de
ordens e a criação de uma sociedade de classes*. * Sociedade de classes:
sociedade característica do
Esta nova sociedade é mais flexível e dinâmica, caracterizada por uma grande mobi- regime liberal e capitalista,
móvel e estruturada em
lidade social, tanto ascendente como descendente. O espírito de iniciativa e o esforço categorias sociais
individual tornam-se os novos critérios de valorização social, ao mesmo tempo que a (classes), tendo por base,
fundamentalmente,
riqueza, a cultura e o desempenho de cargos de prestígio na política ou no exército são critérios de natureza
os novos caminhos para a afirmação social em substituição do privilégio ou da herança económica (riqueza).

do Antigo Regime.

– A condição burguesa: proliferação do terciário e incremento das classes médias


Ao longo do século XIX, acompanhando o dinamismo económico global da Europa
capitalista vai-se desenvolvendo o setor terciário (comércio e serviços) e com ele dá-se
o incremento da pequena e média burguesias, as classes médias.

Integrando uma grande diversidade de categorias profissionais (profissões liberais,


pequenos empresários, quadros da administração e funcionários) e pessoas com instru-
ção e rendimentos muito desiguais, as classes médias constituem uma massa de pessoas
fundamentalmente urbana, heterogénea e sem uma verdadeira consciência de classe*, * Consciência de classe:
identificação
isto é, sem coesão nem identidade própria. Estas categorias sociais e profissionais só e solidarização de
têm em comum o facto de viverem, total ou parcialmente, de rendimentos obtidos em interesses comuns por
parte de uma dada
fontes diversas mas não no trabalho dos seus braços. categoria ou estrato social.

À medida que a organização e dimensão das empresas e o setor terciário se desen-


volviam, cresceu entre as classes médias, em número e influência, um grupo constituído
por uma mão de obra qualificada, os denominados “colarinhos brancos”. Com mais ambi-
ção do que rendimentos, os “colarinhos brancos” são o espelho da nova sociedade
industrial, individualista e aberta, que valoriza o mérito e o bem-estar.

– Valores e comportamentos
O prestígio dos nomes e o brilho do modo de vida da velha aristocracia cativaram
uma grande parte das elites burguesas que, sem uma verdadeira consciência de classe,
começaram por adotar o padrão de vida da velha aristocracia, copiando-lhe os gostos e
os hábitos requintados, incluindo as práticas filantrópicas (caridade) através das quais a
alta burguesia busca o reconhecimento social.

Todavia, à medida que vai adquirindo consciência da dimensão do seu sucesso e dos
meios necessários para o manter, a alta burguesia faz questão de proclamar a superiori-
dade de determinados valores que considera seus e que lhe abriram as portas do êxito:
122 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

a defesa intransigente da moral e da família, a valorização do trabalho, da poupança e do


mérito individual. Os exemplos de indivíduos que acumularam grandes fortunas e atingi-
ram o topo da hierarquia social, quando, à partida, dispunham de poucos ou nenhuns
recursos, deram mais força e credibilidade àqueles valores e ao mito do êxito individual,
o self-made man”(2). Por isso, na escala dos valores burgueses oitocentistas a instrução e
a cultura têm um lugar tão importante como o dinheiro, não sendo raros os exemplos de
indivíduos pobres ou de fracos recursos que alcançaram um grande sucesso social e até
político. No entanto, a situação mais comum era a conjugação do dinheiro e da instrução.

? Questões Acomodada ao sucesso e ao poder, a burguesia foi perdendo o caráter revolucioná-


rio, que a caracterizara inicialmente, para se transformar na guardiã da ordem estabele-
1. Como se explica
o incremento das classes cida, a ordem burguesa, adotando uma atitude mais conservadora. Para a burguesia, o
médias no século XIX? importante era defender a propriedade, fonte do rendimento que proporciona a segu-
2. Em que condições
rança, o prestígio social e a influência política. Este conservadorismo social e político não
o operariado vivia e
trabalhava no século XIX? se restringe à alta burguesia, caracteriza também as classes médias que viviam com os
3. Como se explica olhos postos na alta burguesia, estrato que sonhavam alcançar e cujos comportamentos
a extrema precariedade
procuravam copiar sem contudo disporem de recursos económicos para tal. Ao mesmo
das condições de vidas do
operariado oitocentista? tempo, a consciência da precariedade da sua situação económica e social e sobretudo o
medo de descer à condição do operariado industrial levaram as classes médias a adotar
uma relação de reverência e de aceitação para com a ordem estabelecida.

– A condição operária: salários e modos de vida


A industrialização induziu profundas alterações no trabalho humano, nas condições
de vida e de trabalho do homem. A mecanização da produção e a especialização das tare-
fas, o crescimento populacional e o êxodo rural concorreram para desvalorizar o traba-
lho dos operários e agravar as suas condições de vida e de trabalho (Fig. 1) colocando-
-os numa situação de dependência total face aos empresários industriais:
– salários baixos (inexistência de regulamentação, tabelas salariais e mão de
obra numerosa);
– horários muito longos (quinze ou dezasseis horas por dia e seis dias por
semana e sob uma dura disciplina);
– instalações precárias (locais de trabalho mal arejados, húmidos e acanha-
dos, propícios à propagação de doenças e aos acidentes de trabalho);
– ausência de proteção (quer no desemprego quer na doença ou na velhice);
Fig. 1. Os grandes problemas – trabalho infantil e feminino (salários de 1/3 dos que são pagos aos
do operariado no século XIX.
homens).

Estas penosas condições de trabalho foram agravadas pelas difíceis condições de


habitação e de alimentação (alojamento junto das fábricas, em bairros degradados, com
prédios de má construção e insalubres e onde proliferam o alcoolismo, a prostituição,
a vagabundagem e a mendicidade).

(2)
A imagem do self-made man, o homem de sucesso que se faz por si próprio, contando exclusivamente com o seu
esforço e talento, sem favores ou ajudas externas, serviu à burguesia sobretudo para justificar as desigualdades
sociais: a riqueza e o poder dependeriam do talento individual pelo que estariam ao alcance de todos.
Unidade 2 - A afirmação da sociedade industrial e urbana 123

– O movimento operário: associativismo e sindicalismo Cronologia

O crescimento das classes operárias e a extrema miséria social e moral em que viviam, 1834
agravada para além dos limites possíveis nas fases de depressão económica e pelo cres- Fundação da União
Nacional de Sindicatos
cimento demográfico, levou os operários a tomar gradualmente consciência da sua con- (Inglaterra).
dição operária e a encetar esforços de organização no sentido de lutar pela defesa do 1841
Fundação do Sindicato dos
que considerava serem os seus interesses, dando forma ao que a historiografia designa Mineiros, em Inglaterra.
por movimento operário*. 1848
Manifesto do Partido
As primeiras reações operárias até meados do século XIX inscrevem-se ainda no Comunista, por K. Marx e
F. Engels.
modelo de tumulto popular tradicional, revoltas localizadas, sem ideologia definida, sem
1864
organização formal, cujas formas mais generalizadas são a greve ou recusa ao trabalho Fundação da Associação
e a destruição da maquinaria industrial, tida como responsável pela desvalorização do Internacional dos
Trabalhadores
seu trabalho e consequente quebra dos seus salários e o desemprego. Em Inglaterra, (“I Internacional”).
onde estas reações são mais violentas e generalizadas, fez-se notar, na segunda década 1871
Proclamação da Comuna
do século XIX, o movimento dos ludds ou luddites(3).
de Paris.
Legalização das Trade
O fracasso destas reações espontâneas, anárquicas, vai convencer os operários da Unions, em Inglaterra.
necessidade de concentrar esforços na organização de um movimento operário forte e 1889
estruturado. As primeiras organizações operárias são ainda inspiradas nos princípios e Fundação em Paris da
II Internacional.
objetivos mutualistas das velhas corporações de ofícios do Antigo Regime. 1895
Fundação da Confederação
O movimento operário de caráter sindical ou de classe surge na Grã-Bretanha. Tendo Geral dos Trabalhadores
sido o primeiro país a industrializar-se, é também o primeiro a reconhecer a liberdade de (CGT), em França.

associação e de coligação (lei de 1824), na sequência da qual se organizarão os primei-


* Movimento operário:
ros sindicatos (trade-unions).
designação dada aos
esforços de organização
Em França, bolsas e federações uniram-se numa organização mais vasta que integra
do operariado no sentido
todos os sindicatos, a Confederação Geral do Trabalho (CGT) (1895), a primeira grande de reforçar a sua coesão
e orientar a sua luta
central sindical francesa.
reivindicativa na defesa do
que considerava serem os
– As propostas socialistas de transformação revolucionária da sociedade seus interesses. Podemos
distinguir neste movimento
duas grandes vertentes:
Os socialistas utópicos a sindical (sindicatos) e a
política (partidos políticos).
A partir do momento em que toma consciência do seu peso político e da necessidade
de modificar o quadro legislativo favorável à burguesia capitalista, o movimento operá-
* Socialismo: Doutrina de
rio passa a associar uma outra vertente, a política, com a formação dos partidos operá- reforma social que põe em
rios. Os objetivos destes partidos são mais vastos do que a satisfação das reivindicações causa os princípios do
modelo económico e social
sindicais: transformar a sociedade, criar as condições para uma nova ordem social mais do capitalismo liberal –
justa. Esta aspiração identifica-se claramente com o socialismo*. a iniciativa individual,
a concorrência,
As primeiras propostas ou ideias socialistas de reforma económica e social com vista a propriedade privada –
e defende que todos (ou
à concretização do ideal de uma sociedade mais justa e equitativa foram apresentadas, quase todos) os meios de
entre 1815 e 1848, por um conjunto diversificado de pensadores, doutrinários e até de produção devem ser
propriedade da
industriais. comunidade, promovendo,
deste modo, uma
repartição dos
rendimentos do capital
(3)
Movimento dos ludds ou luddites: grupos de artesãos organizados que, liderados por um real ou imaginário “Rei mais igualitária e a justiça
Ludd”, mascarados e a coberto da noite, assaltavam as fábricas para destruir as máquinas. social.
124 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Cronologia Em Inglaterra, Robert Owen (1771-1858) procurou fazer das suas empresas modelos
de harmonia e de justiça nas relações laborais: reduziu os horários de trabalho e promo-
1872
Fundação da Associação veu a educação e instrução dos trabalhadores; propôs a formação de cooperativas de
Fraternidade Operária produção e de consumo.
Portuguesa.
Primeiras greves em Lisboa. Em França, Saint-Simon, Charles Fourier, Louis Blanc e Proudhon (1802-1864), este o
1875
Fundação do Partido mais ousado, condenou o lucro obtido à custa dos esforços suplementares do trabalha-
Socialista Português. dor e o juro como contrários à justiça e considerou o Estado inútil, declarando-se, por
1884 isso, “anarquista”.
Partido Operário Belga.
1888
Partido Socialista Operário O socialismo revolucionário
Espanhol.
1889
Partindo do princípio de que o capitalismo é, essencialmente, um regime de explora-
Fundação da II Internacional. ção humana e que o capital e o trabalho são inconciliáveis, Karl Marx (1818-1883)(Fig. 2)
1890 incita o proletariado(4) à união e à insurreição com vista à tomada do poder. A este ato
As primeiras
comemorações do 1.o de revolucionário seguir-se-ia numa primeira fase a ditadura do proletariado que dirigiria o
maio. processo da supressão do sistema económico e social capitalista e instalaria as bases de
1892
Partido Socialista Italiano. um sociedade sem classes nem exploração. Numa segunda etapa, fase superior do comu-
nismo, o Estado dissolver-se-ia e surgiria uma sociedade nova, harmoniosa, assente no
princípio de “a cada um segundo as suas necessidades”.

As conceções marxistas não podiam deixar de repercutir-se no movimento operário.


O seu apelo à união do proletariado de todo o mundo (O Manifesto do Partido Comu-
nista de 1848, da sua autoria e de Friedrich Engels) esteve na origem da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT), em 1864.

Fig. 2. ”Proletários de todos os países, uni-vos!”. Estandarte sindical do fim


do século XIX, expressando o apelo de Marx e Engels no Manifesto do Partido
Comunista.

(4)
Proletariado: termo utilizado por Marx para caracterizar o trabalhador do século XIX livre, desprovido de propriedade
ou de qualquer outra fonte de rendimento, que não seja a sua força de trabalho que é obrigado a vender por um preço
(salário).
Unidade 3 - Evolução democrática, nacionalismo e imperialismo 125

Unidade 3 Evolução democrática, nacionalismo e imperialismo


SUMÁRIO
3.1. As transformações políticas
3.2. Os afrontamentos imperialistas: o domínio da Europa sobre o mundo

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Identificar os progressos do processo de democratização dos regimes liberais ao longo do
século XIX e princípios do século XX.
– Relacionar o movimento das nacionalidades com a ideologia liberal.
– Relacionar as rivalidades e a partilha imperiais com os interesses políticos e económicos
das grandes potências.

CONCEITOS/NOÇÕES
Demoliberalismo**; Imperialismo**; Colonialismo**; Nacionalismo

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes

3.1. As transformações políticas


– A evolução democrática do sistema representativo; os excluídos da democracia
representativa
A realidade dos regimes liberais oitocentistas mostra-nos que estes estavam longe de
constituírem modelos de coerência e de democracia, como o demonstram vários aspetos
comuns a estes regimes:
– a persistência da hereditariedade (monarquias hereditárias, câmaras não eletivas); Cronologia
– as limitações ao exercício de cargos políticos (instrução, rendimentos, não remune- Reconhecimento do direito
ração dos cargos políticos); de voto às mulheres
1920
– a restrição do corpo eleitoral à minoria dos cidadãos ativos através do sufrágio mas- EUA
culino, indireto e censitário. 1928
Grã-Bretanha
Nos finais do século XIX, estas situações discriminatórias e antidemocráticas provoca- 1933
ram compreensivelmente reações contrárias por parte dos excluídos do sistema – mulhe- Portugal
1944
res, operários, agricultores e uma grande parte da pequena burguesia, que constituíam França
a esmagadora maioria da população, e dos que defendiam a sua causa – que se mobili-
zaram no sentido de lutarem por aquilo que consideravam ser os seus direitos. As gre-
ves e as manifestações de rua multiplicaram-se e a imprensa tornou-se mais interessada
nestes problemas. Paralelamente, a difusão das ideias socialistas, republicanas e sindi-
calistas foram ganhando cada vez mais adeptos. * Sufrágio universal:
sistema de votação aberto
Ao longo do século XX, nos países mais industrializados da Europa Ocidental e nos a todos os cidadãos sem
EUA, ainda que de forma lenta e frequentemente violenta, os regimes liberais foram restrições de qualquer
ordem (sexo, riqueza, raça,
registando importantes progressos: a adoção progressiva do sufrágio universal*; a remu- escolaridade, estado
civil...), para além da idade
neração dos cargos políticos; a formação de partidos de massas; o alargamento da ins-
mínima (maioridade)
trução; a perda de influência ou o desaparecimento das câmaras não eletivas; o reforço exigida a todos.
126 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

dos poderes dos parlamentos; a admissão do voto direto e secreto e do referendo; a


separação entre o Estado e a Igreja (Estado laico); a implementação de reformas sociais
e laborais (a contratação coletiva, legalização do sindicalismo, do direito à greve, jorna-
das de trabalho de oito horas, apoio na doença, desemprego e reforma...).
* Demoliberalismo: ideologia O liberalismo vai evoluindo, desta forma, para o demoliberalismo*.
liberal e democrática que
defende não só os
princípios da democracia – As aspirações de liberdade nos estados autoritários e os movimentos de
liberal representativa
(soberania popular,
unificação nacional
separação dos poderes
A Europa industrializada, burguesa e liberal não representava, contudo, toda a
e direitos do
individualismo), mas Europa. Neste velho continente subsistiram, em alguns estados do sul e principalmente
pretende alargar
a democracia aos direitos
no leste da Europa, até ao fim da I Guerra Mundial, regimes políticos autoritários* e
sociais e económicos dos imperialistas, monarquias autocráticas apoiadas nas elites privilegiadas do Antigo Regime
cidadãos.
(oligarquias fundiárias e religiosas), no exército e nas forças policiais e cujo poder se
estendia sobre diferentes países e nações.
* Regimes autoritários:
estados despóticos que se
Os representantes desta velha Europa encontravam-se no Império Otomano, já em
fundamentam no poder decadência, no Império Austro-Húngaro, no extenso Império Russo e até no Império Ale-
e na autoridade de uma
minoria que governa de
mão, a despeito, neste último, do seu extraordinário desenvolvimento económico, demo-
modo arbitrário gráfico e cultural.
e repressivo, apoiada no
exército e nas forças Em todos estes estados foi dura e demorada a luta pela democratização levada a cabo
policiais.
quer pelas suas populações quer pelas minorias nacionais ou étnicas que se encontra-
vam no interior desses impérios, encorajadas pela oposição político-ideológica de raiz
* Nacionalismo: sentimento liberal e nacionalista. A associação entre o liberalismo e o nacionalismo* gerou dois tipos
de pertença a uma
de nacionalismos:
determinada comunidade
étnica e cultural (nação). – o nacionalismo democrático, anti-absolutista e anti-imperialista, que esteve na ori-
Levado ao extremo,
o nacionalismo tende gem das vagas revolucionárias na Europa, entre 1830 e 1848, e dos movimentos de
a desenvolver uma atitude emancipação nacional nos impérios Austríaco, Russo e Otomano;
de superioridade ou
desprezo pelas demais – o nacionalismo unitário, que gerou os movimentos de unificação da Itália (1870),
nações e a suscitar
e justificar ambições de e da Alemanha (proclamação do II Reich, em 1871).
expansão (imperialismo).
3.2. Os afrontamentos imperialistas: o domínio da Europa sobre
o mundo
No século XIX novos e importantes desenvolvimentos consagraram o domínio da
Europa sobre o mundo. Durante a primeira metade do século houve apenas um império
verdadeiramente grande, o Império Britânico(1). Para além dos britânicos, só a França no
norte de África e a Rússia e os EUA, avançando através das respetivas massas territo-
riais, mostravam ambições expansionistas.

A partir do último quartel do século XIX, as circunstâncias alteraram-se. Aprovei-


tando o declínio dos antigos impérios Chinês, Otomano e Persa e apoiadas na liderança
tecnológica e industrial, as principais potências europeias (e os EUA) intensificaram a

(1)
No final da época da rainha Vitória (1819-1901), os ingleses orgulhavam-se de que ela governava um império “no qual
o Sol nunca se punha”, o que era efetivamente verdade.
Unidade 3 - Evolução democrática, nacionalismo e imperialismo 127

concorrência pelo controlo de novos territórios e mercados (Fig. 1). No Oriente, depois Cronologia
da China (1842) e o Japão (1853) terem sido forçados a abrir os seus portos ao comér-
1840-1842
cio ocidental, os Franceses expandiram o seu domínio no sudeste asiático (Indochina). Guerra do Ópio: abertura da
Na Ásia Central, a Rússia estendeu o seu domínio à custa de novas anexações territoriais China ao comércio com o
Reino Unido.
e esforçou-se por realizar o seu velho sonho de abrir um acesso direto ao Mediterrâneo, 1853
objetivo que esteve na origem do conflito com a Turquia (Guerra da Crimeia, 1853- O americano Perry entra no
porto de Tóquio à frente de
-1854)(2). Em África, assistiu-se a uma escalada sem precedentes desenhada pela Confe- uma frota naval exigindo
rência de Berlim (1884-1885), à medida dos interesses das antigas (Grã-Bretanha e França) a abertura do Japão ao
comércio ocidental.
e das novas potências europeias (Itália e a Alemanha). 1853-1854
Guerra da Crimeia entre a
Na origem da intensificação de um colonialismo* imperialista europeu (e norte-ameri- Rússia e a Turquia.
cano) que nada parecia deixar escapar estão a aquisição e controlo das fontes de maté- 1862
França consolida o seu
rias-primas, de novos mercados consumidores, o investimento do capital excedente e domínio colonial em África
ambições neocoloniais. (Senegal e Argélia).
1867
No início do século XX, as relações internacionais estavam longe da estabilidade de Rússia vende o Alasca
e as ilhas Aleutas aos EUA.
algumas décadas atrás. As rivalidades políticas e económicas, as tensões nacionais e
1868
étnicas e a corrida armamentista tornavam a ordem internacional extremamente instável. Mutsu-Hito inicia a
O primeiro conflito mundial não tardaria. modernização/ocidentalização
do Japão.
1884-1885
Conferência de Berlim:
partilha da África entre as
potências europeias.
Fig. 1. Soldados das 1890
”Grandes Potências do Ultimato inglês a Portugal.
Mundo” (da esquerda para 1904-1905
a direita): Japão, EUA, Guerra russo-japonesa.
Alemanha, Grã-Bretanha,
França, Rússia, Itália e
Áustria-Hungria. * Colonialismo: designa
a expansão comercial e/ou
N territorial praticada por
Marrocos Mar Mediterr‰neo
çsia Em 1878 Em 1879-1890
Brit‰nico
companhias comerciais ou
ArgŽlia
Tun’sia Francs por estados, assim como o
Rio de Ouro Egito Portugus processo ou formas
Alem‹o de dominação política,
Belga
Senegal económica e cultural
Uadai Eritreia Som‡lia
Sokoto Bomu Italiano
G‰mbia Madl brit‰nica
Espanhol utilizadas.
Samori Abiss’nia
Serra Ashanti
Leoa Camar›es Som‡lia
Togo italiana Estados africanos
LibŽria Costa do
Ouro Lagos Estado Boer
Congo çfrica oriental ImpŽrio Otomano
Congo belga brit‰nica
francs çfrica oriental
alem‹
Angola
Mashona
Moambique
Sudoeste Matabele
africano
OCEANO alem‹o Botswana
ATLåNTICO Boers
OCEANO
êNDICO

Col—nia do Cabo ? Questões


0 1000 km
1. Justifique o reforço
Fig. 2. A escalada do colonialisno imperialista em África no último quartel do imperialismo na
do século XIX. segunda metade do século
XIX.
(2)
Esta guerra é um exemplo da rivalidade que então existia entre as grandes potências: a Grã-Bretanha e a França 2. Avalie as consequências
colocaram-se ao lado dos Turcos contra os Russos. desse facto.
128 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Cronologia Unidade 4 Portugal, uma sociedade capitalista dependente


1820
Revolução Liberal (1820). SUMÁRIO
1822
– A Regeneração entre o livre-cambismo e o protecionismo (1850-1880)*
1.a Constituição Portuguesa.
– Entre a depressão e a expansão (1880-1914)*
1822
Proclamação da – As transformações do regime político na viragem do século (1890-1916)*
Independência do Brasil.
1823-1824 APRENDIZAGENS RELEVANTES
Reação absolutista: – Integrar o processo de industrialização português no contexto geral, identificando os fato-
Vilafrancada (1823)
res que o limitaram**.
e Abrilada (1824).
1828-1834 – Compreender as condições em que ocorreu o esgotamento do liberalismo monárquico e o
Reinado de D. Miguel. fortalecimento do projeto republicano de transformação social e política**.
1832-1834
Guerra civil. CONCEITOS/NOÇÕES
1836-1842 Regeneração**; Fontismo
Setembrismo.
1846-1848 * Conteúdos de aprofundamento
Revoltas populares: Maria ** Aprendizagens e conceitos estruturantes
da Fonte e Patuleia.
1842-1851
Cabralismo.
1851
Regeneração. – A Regeneração entre o livre-cambismo e o protecionismo (1850-1880):
o desenvolvimento de infraestruturas: transportes e comunicações
O triunfo do golpe militar liderado pelo duque de Saldanha no norte do País, em abril-
-maio de 1851, designado de Regeneração*, põe fim a um longo período de três décadas
* Regeneração: período do (1820-1851) de intensos conflitos sociais e políticos, de lutas ideológicas e agitação, e ini-
liberalismo português
entre 1851 e os finais do cia uma fase de maturidade, de estabilidade, enfim das realizações necessárias para recu-
século XIX e que expressa perar o País do seu atraso económico e tecnológico e colocá-lo no caminho da moderni-
a vontade do golpe militar
de 1851 de regenerar a vida dade e do progresso.
nacional, fazendo entrar
o País no caminho da As alterações à Carta Constitucional (1826) introduzidas pelo Ato Adicional de 1852
ordem e do progresso.
(alargamento do sufrágio e eleições diretas para a Câmara dos Deputados) pacificaram a
vida política nacional e conduziram ao rotativismo*.
* Rotativismo: sistema de
alternância no poder de O primeiro governo regenerador teve em Fontes Pereira de Melo (1819-1887), minis-
dois partidos e que
representam as tendências tro do novo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, criado em 1852, a sua
conservadoras e as mais figura de referência. As suas ideias e a obra notável que executou definiram uma política
democráticas.
de desenvolvimento económico designada por fontismo.

As preocupações fontistas centraram-se no lançamento de infraestruturas de transpor-


tes e comunicações: estradas modernas, macadamizadas, pontes, portos e linhas férreas;
instalação do telégrafo (1857) e reestruturação dos correios.

Os esforços “fontistas” surtiram efeitos positivos, já que se assistiu a um notável


desenvolvimento, quer qualitativo quer quantitativo em diversos setores. Contudo, a
modernização foi realizada sobretudo pelo Estado, à custa da subida dos impostos, de
empréstimos e financiamentos estrangeiros. A adoção do livre-cambismo (moderado)
favoreceu a concorrência estrangeira e acentuou a nossa dependência do exterior.
Unidade 4 - Portugal, uma sociedade capitalista dependente 129

– A dinamização da atividade produtiva Cronologia

A política fontista não se limitou ao investimento em infraestruturas de transportes e 1851


comunicações, apesar de este ser o aspeto mais salientado. Com efeito, os governos da Regeneração.
1852
Regeneração promoveram ainda o fomento industrial através de várias reformas legisla- Ato Adicional à Carta
tivas e educativas visando diretamente o desenvolvimento da atividade industrial e a for- Constitucional; Criação
do Ministério das Obras
mação de recursos humanos para a indústria: regulamentação do ensino técnico e cria- Públicas, Comércio e
ção de escolas industriais e de desenho industrial (1852); fundação da Associação Indústria.
Industrial Portuguesa (1860); representação e organização de exposições industriais 1854
Primeiras linhas
internacionais, como a Exposição Internacional (1865) no Palácio de Cristal, no Porto, telegráficas.
construído precisamente para acolher esta exposição(1). 1856
Inauguração da primeira
Os investimentos realizados no domínio das infraestruturas de transportes e comuni- linha férrea portuguesa
(Lisboa-Carregado);
cações e os progressos (moderados) na indústria nas primeiras três décadas da Regene- inauguração da rede oficial
ração surtiram efeitos positivos, já que se assistiu a um notável desenvolvimento no setor do telégrafo elétrico.
1860
industrial. O inquérito industrial de 1881 mostrou que a indústria nacional tinha evoluído
Fundação da Associação
em alguns dos aspetos que tradicionalmente constituíam importantes obstáculos ao seu Industrial Portuguesa.
desenvolvimento, como a escassez de capital, a deficiente preparação técnica da mão de 1861
Exposição Industrial
obra e dos empresários, a reduzida dimensão do mercado interno, a fraca cotação da Portuguesa (Porto).
produção nacional e a forte concorrência da Inglaterra. 1863
Exposição Agrícola
e Industrial (Braga).
– A necessidade de capitais e os mecanismos de dependência 1864
Conclusão da linha férrea
A construção de infraestruturas de transportes e comunicações e o fomento industrial do norte até Gaia e do sul
exigiam investimentos elevados e um grande empenhamento dos dinheiros públicos e do até Beja.
1865
Estado. Os governos da Regeneração adotaram as respostas mais óbvias e porventura as
Fundação do Banco
mais viáveis: a subida dos impostos, a adoção de uma política comercial livre-cambista Nacional Ultramarino (BNU);
Criação da Companhia
(moderada) e o recurso a empréstimos e financiamentos estrangeiros. União Fabril; Exposição
Internacional no Palácio
O agravamento fiscal sobre os rendimentos pessoais piorou as já difíceis condições de Cristal (Porto).
de vida da população em geral e a abertura aos capitais estrangeiros aumentou natural-
mente a nossa dependência do exterior, tanto mais que o ritmo do desenvolvimento
industrial manteve-se extremamente lento devido à persistência das debilidades estrutu-
? Questões
rais tradicionais do setor produtivo – baixa produtividade do trabalho industrial e redu-
zida procura externa dos nossos produtos – agora mais evidenciadas com a abertura do 1. Que alterações foram
introduzidas pelo Ato
mercado interno à concorrência estrangeira. O crescimento das importações, motivado Adicional de 1852 no regime
sobretudo pelo aumento da procura de matérias-primas, se por um lado constitui um instituído pela Carta?
indicador positivo do desenvolvimento industrial, por outro contribuía para um maior 2. Que setores da atividade
económica do País
desequilíbrio da balança comercial. Esta situação de défice tinha como consequência ime- mereceram a maior atenção
diata o agravamento dos problemas financeiros do País e o crescimento da dívida da política fontista?
pública(2) e da dependência externa.

(1)
Nos inícios dos anos 50, este grande monumento industrial seria demolido.
(2)
Em 1890 atingia cerca de 600 000 contos, tendo aumentado à média de 11 000 contos por ano desde 1855. A dívida
pública por habitante (107 000 réis) era a segunda maior da Europa, depois da francesa (125 000 réis), e uma das
maiores do Mundo.
130 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

– Entre a depressão e a expansão (1880-1914): a crise financeira de 1880-


-1890 e o surto industrial de final do século
A economia portuguesa viveu nos anos de 1880-1890 uma situação de crise financeira
quase permanente, que culminou numa situação de quase bancarrota do Estado portu-
guês em 1891-1892.

Esta falta de dinheiro pode ser explicada pela conjugação de um conjunto de fatores:
uns de natureza interna, como a “política de endividamento” externo do fontismo, o
aumento das importações, o crescimento da dívida pública, os excessivos gastos da
governação, a crise vinícola, a desvalorização da moeda portuguesa face à libra; outros
tinham origem na conjuntura internacional de recessão económica (1873-1896), como a
concorrência externa, a quebra das remessas dos emigrantes no Brasil, as dificuldades
de obtenção de crédito nas praças estrangeiras...

Face às dificuldades, o livre-cambismo fontista deu lugar a uma política protecionista


alfandegária e fiscal(3). Pretendia-se apoiar o desenvolvimento das indústrias nacionais e
incentivar novas indústrias. Ao mesmo tempo, promoveu-se a exploração do mercado
colonial de África e a criação de grandes companhias (a Companhia dos Tabacos; a Com-
panhia União Fabril (CUF) (cimentos); Companhia das Águas de Lisboa e Companhia
Cronologia Reunida de Gás do Porto e as seguradoras Fidelidade, Bonança e Universal, no setor dos
serviços; Companhia de Caminhos de Ferro Portugueses e a Carris de Lisboa (transpor-
1871
Conferências Democráticas tes); a Companhia da Zambézia, Companhia do Niassa e Companhia do Caminho de Ferro
do Casino Lisbonense. de Benguela (investimentos coloniais).
1875
Fundação do Partido No entanto, no início do século XX, Portugal era ainda um país essencialmente rural
Socialista Português.
e com uma indústria ainda sem capacidade para competir nos mercados externos com os
1876
Criação do Centro Eleitoral países industrializados.
Republicano Democrático.
1878
Eleição do 1.o deputado – As transformações do regime político na viragem do século (1890-1926):
republicano (Rodrigues os problemas da sociedade portuguesa na viragem do século e a contestação
de Freitas, no Porto).
1880
da monarquia
Comemorações do
tricentenário da morte O longo período de estabilidade político-social e de fomento económico iniciado pela
de Camões. Regeneração (1851) deu lugar, nas duas últimas décadas do século XIX, a uma profunda
1890
Ultimato inglês.
crise, de caráter político, económico e financeiro. As contradições da monarquia consti-
1889 tucional e vários acontecimentos políticos constituíram desafios demasiado fortes para
Revolta republicana uma monarquia e um sistema político (o rotativismo) extremamente fragilizados e inca-
de 31 de janeiro (Porto).
1906
pazes de responder à força das novas ideias republicanas e socialistas emergentes.
Ditadura de João Franco.
A humilhação nacional provocada pelo Ultimato inglês (1890)(4) constituiu um golpe deci-
1908
Regicídio. sivo na monarquia. As novas forças políticas, o Partido Socialista e sobretudo o Partido
1910 Republicano aproveitaram esta oportunidade para promoverem intensas campanhas de pro-
Proclamação da República
(5 de outubro). paganda e de mobilização do descontentamento popular.

(3)
O regresso ao protecionismo era, de resto, uma política que vinha sendo adotada pela generalidade dos países
europeus (com exceção da Inglaterra) desde o início do último quartel do século XIX.
(4)
As pretensões coloniais de Portugal (“mapa cor-de-rosa”) colidiram com a ambição britânica e o objetivo do seu
então primeiro-ministro Cecil Rhodes de unir o Egito ao Cabo.
Unidade 4 - Portugal, uma sociedade capitalista dependente 131

O nacionalismo, a liberdade e a democracia, que constituíam as ideias-chave do ideário


republicano, encontraram nestes acontecimentos a rampa ideal para se projetarem e con-
quistarem a adesão popular.

Ao mesmo tempo, a situação de quase bancarrota (1891), associada aos escândalos


políticos (“a questão dos tabacos”, os adiantamentos à Casa Real(5) e a impopularidade
da ditadura de João Franco (1906-1908), agravaram o ódio à monarquia e precipitaram o
Regicídio de 1 de fevereiro de 1908: D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe foram
assassinados em Lisboa, por elementos republicanos, ficando ferido o outro infante, ? Questões
D. Manuel. Cerca de dois anos depois, uma revolução militar e civil, com amplo apoio
1. Que acontecimentos
popular e enquadrada pela Maçonaria e pela Carbonária, provocaria a queda da Monar- históricos favoreceram
quia e fazia triunfar a República, em 5 de outubro de 1910. a propaganda republicana
e ajudaram à queda da
monarquia?
– A solução republicana e parlamentar – a Primeira República 2. Explique a instabilidade
política e social da
O extraordinário apoio e entusiasmo popular que acompanhara a abolição da monar- 1.a República.
quia e a instauração da República esmoreceu rapidamente e os cerca de dezasseis anos
do novo regime (1910-1926) seriam marcados por uma constante instabilidade político-
-social. Múltiplas razões podem ser apresentadas: Cronologia
– a falta de coesão dos republicanos (cisão do Partido Republicano Português (PRP)
Chefes de Governo entre
em 3 fações – Partido Republicano Evolucionista (António José de Almeida), União 1910 e 1915
Republicana (Brito Camacho) e o Partido Democrático (Afonso Costa)); Teófilo Braga
(01.10.1910 a 01.09.1911)
– a natureza democrática e liberal (parlamentar) do regime estabelecido pela Consti- João Chagas
tuição de 1911 – consagrava os direitos e garantias individuais e a separação dos (03.09.1911 a 12.11.1911)
Augusto de Vasconcelos
poderes, sendo o mais importante o legislativo exercido por um parlamento (Con- (12.11.1911 a 16.06.1912)
gresso) com um peso excessivo na vida política da Nação (Governos e presidentes Duarte Leite
da República dependiam da sua confiança, isto é, das maiorias parlamentares, uma (16.01.1912 a 09.01.1913)
Afonso Costa
situação que não era fácil obter face às divisões verificadas no seio dos republica- (09.01.1913 a 09.02.1914)
nos e à indisciplina partidária. Por isso, nos cerca de dezasseis anos de vida do Bernardino Machado
regime sucederam-se 45 governos e oito presidentes da República); (09.02.1914 a 23.06.1914)
Bernardino Machado
– o clima de crise social provocado pelas reformas estruturais(6) (tímidas para uns, (23.06.1914 a 12.12.1914)
demasiado radicais para outros). Vitor Coutinho
(12.12.1914 a 25.01.1915)
Chefes de Estado entre 1910
Um quadro sociopolítico instável como este favorecia as conspirações, as revoltas, as e 1915
manifestações de rua, a agitação no Congresso, comprometia a eficácia da ação gover- Teófilo Braga
(1910-1911)
nativa. Em 28 de maio de 1926, o general Gomes da Costa, um dos mais prestigiados
Manuel de Arriaga
heróis da I Grande Guerra, revoltou-se em Braga e iniciou uma marcha sobre Lisboa. (1911-1915)
Estava aberto o caminho para a instauração do Estado Novo e do regime ditatorial que Teófilo de Braga
(1915)
marcaria um longo período da nossa história até 25 de abril de 1974.
Bernardino Machado
(1915-1917)

(5)
Adiantamentos à Casa Real: verbas adiantadas pelos governos à família real, a pretexto de ser insuficiente a dota-
ção oficialmente estabelecida.
(6)
Expulsão dos Jesuítas e encerramento dos conventos, reconhecimento do direito à greve, Lei do Inquilinato (1910);
reorganização da assistência pública (1911); obrigatoriedade do casamento civil e o estabelecimento do divórcio, cam-
panha contra o analfabetismo, criação do ensino infantil e reforma do ensino primário (1911); separação entre o Estado
e a Igreja Católica, regulação do horário de trabalho (1915).
132 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Unidade 5 Os caminhos da cultura


SUMÁRIO
– A confiança no progresso científico*
– O interesse pela realidade social na literatura e nas artes – as novas correntes estéticas na
viragem do século*
– Portugal: o dinamismo cultural do último terço do século*

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Caracterizar o movimento de renovação no pensamento e nas artes nos finais do século
XIX/princípio do século XX**.

CONCEITOS/NOÇÕES
Positivismo; Cientismo; Impressionismo; Realismo; Simbolismo; Arte Nova

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
* Cientismo: crença
ilimitada nas capacidades
da ciência para resolver os
problemas e promover – A confiança no progresso científico
o progresso das sociedades
humanas. Deste modo, No século XIX a ciência e a tecnologia evoluem a par e passo, levando muitos euro-
a utilização do método das
ciências da Natureza e das peus a acreditar que viviam numa época de progresso sem fim e antevendo uma nova
matemáticas seria Idade de Ouro cada vez mais próxima. É o tempo do Cientismo*. Um número cada vez
imprescindível para validar
qualquer teoria ou maior de intelectuais considerava a ciência como a maior realização do espírito humano
doutrina. e o seu método, o método científico, como o caminho certo e eficaz para enfrentar e
equacionar todos os problemas.

– Avanço das ciências exatas e emergência das ciências sociais


A segunda metade do século XIX e princípios do século XX constituiu um período de
progresso científico sem precedentes. Embora todas as ciências tenham conhecido avan-
ços importantes, foram as ciências ditas exatas que tiveram maior desenvolvimento,
concretamente a Física (descobertas revolucionárias sobre a luz, a eletricidade, ondas
magnéticas, descoberta do raio-X, do rádio…), a biologia (teoria da evolução de Darwin),
Fig. 1. Auguste Comte a medicina (a teoria microbiana de Pasteur e Koch, a descoberta dos bacilos da tubercu-
(Biblioteca Nacional, Paris)
lose e da cólera asiática (Koch), o isolamento dos germes de outras doenças graves,
foi o introdutor do
positivismo*, um sistema como a difteria, a peste bubónica, o tétano e a doença do sono…).
filosófico que preconizava
a observação direta dos A mentalidade cientista triunfante não poderia deixar de influenciar também a abor-
fenómenos e a descoberta
dagem das questões sociais. Auguste Comte (1798-1857)(Fig. 1) acreditava que as socie-
das leis que os explicam.
dades humanas eram regidas por leis. A procura dessas leis levou-o à criação de uma

* Positivismo: sistema
nova ciência a que se chamou Sociologia. O estudo da evolução física do homem, dos
filosófico criado por tipos humanos existentes, das culturas pré-históricas e das instituições e costumes pri-
Augusto Comte, de caráter
empirista e antimetafísico,
mitivos deu origem ao nascimento da Antropologia, fundada por J. Prichard (1786-1848)
que recusa qualquer tipo e E. Tylor (1832-1917). A Psicologia desligou-se da Filosofia e tornou-se uma ciência autó-
de juízo de valor não
expresso numa certeza noma, conhecendo então uma grande notoriedade e desenvolvimento graças aos contri-
científica. butos do russo Pavlov (1846-1924) e Freud (1856-1939).
Unidade 5 - Os caminhos da cultura 133

– A progressiva generalização do ensino público Cronologia

A consciência das sociedades europeias de que a instrução era uma condição indis- 1850
pensável ao funcionamento regular dos regimes democráticos trouxeram para o primeiro Verdi: Rigoletto.
Courbert: Enterro em
plano a questão do ensino público. Com efeito, a democratização política passava pela Ornans.
extensão do sufrágio às classes mais baixas da população, em regra sem instrução, pelo Charles Dickens: David
Copperfield.
que se tornava imprescindível a generalização da instrução pública de modo a formar
1857
cidadãos e decisores esclarecidos. Baudelaire: As Flores do
Mal.
Mas a universalidade do ensino implica a sua obrigatoriedade e também a gratuiti- Flaubert: Madame Bovary.
dade, já que se se pretende que todos tenham acesso ao ensino terá de ser o Estado 1866
Júlio Verne: Da Terra à Lua.
ou as coletividades públicas a assumir as respetivas despesas. Dostoievsky: Crime
e Castigo.
Em Portugal, a reforma do ensino em 1844 estabeleceu a obrigatoriedade de frequên-
1869
cia do ensino primário para as crianças dos 7 aos 15 anos. No entanto, esta medida aca- Tolstoi: Guerra e Paz.
bou por não ter grande eficácia por falta de escolas e de professores habilitados e a 1872
Monet: Impressão
questão da universalidade do ensino prolongar-se-ia no tempo. Sol-Nascente.
1874
Primeira exposição dos
– O interesse pela realidade social na literatura e nas artes – as novas impressionistas.
correntes estéticas na viragem do século 1883
Antoní Gaudí: início das
obras da Igreja da Sagrada
O Realismo* Família (Barcelona).
1888
Entre 1830 a 1870 a cultura na Europa Ocidental é atravessada por uma corrente dire- Van Gogh: Os Girassóis.
tamente relacionada quer com os acontecimentos sociais e políticos e avanços científi- 1889
cos quer com as exigências de uma moral renovada. É neste contexto que se afirma o Richard Strauss: Dom Juan
(poema sinfónico).
Realismo, uma tendência dominante na literatura e nas artes ocidentais de cerca de 1830
1893
ao início da I Grande Guerra (1914-1918). Tchaikovsky: Sinfonia n.o 6
em Si Menor.
O Realismo é acima de tudo um protesto contra o sentimentalismo e as fantasias dos
românticos. Os realistas olham e descrevem a vida não em função de um ideal emotivo
* Realismo: corrente
mas de acordo com a realidade tal como ela era analisada e descrita pela ciência e pela literária e artística
filosofia. Interessam-se em particular pelos problemas psicológicos e sociais, analisando caracterizada pela procura
da representação fiel da
minuciosamente o comportamento humano. Observar a realidade contemporânea e repro-
Natureza (realidade) de um
duzi-la com sinceridade é, para estes artistas, o único processo de dar forma a uma modo preciso e objetivo,
necessidade de regeneração e de progresso social. sem qualquer preocupação
de disfarçar o que possam
Em França, que foi o país onde este movimento cultural eclodiu e onde mais profun- ter de feio ou chocante.

damente se desenvolveu, destacaram-se:


– na literatura, três grandes romancistas, cuja influência se estendeu muito além das
fronteiras francesas: Balzac (1799-1850) que, em Comédia Humana, descreveu com
crueza os vícios, a imoralidade e a corrupção da burguesia; Flaubert (1821-1880),
que em Madame Bovary faz uma crítica violenta ao estado de degradação humana,
ao contraste dramático entre as fantasias românticas e a triste realidade da vida
quotidiana; Zola (1840-1902), também um analista da natureza humana, centra as
suas obras na abordagem de problemas sociais;
– na pintura, as duas grandes referências são Courbet (1819-1877) e Daumier (1808-
-1879) que apresentam os factos da vida social e política tal qual os viam, fazendo-o
muitas vezes de forma rude e satírica.
134 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Na Inglaterra, Thackery (1811-1863), que expôs os escândalos da aristocracia, e Char-


les Dickens (1812-1870), autor dos romances Olivier Twist e David Copperfield, deu espe-
cial atenção aos pobres e denunciou os horrores das “casas de trabalho” (workhouses)
e outras injustiças sociais.

* Impressionismo: O Impressionismo*
movimento estético que
procura traduzir as Privado de manifestos e de formulações teóricas, o Impressionismo não se apresenta
impressões imediatas dos
sentidos, as sensações do
nem como uma escola nem como um movimento homogéneo de artistas que se reco-
momento, o fugidio, o nhecem numa teoria. Na realidade, trata-se de um encontro entre personalidades artísti-
instante. Tecnicamente,
a pintura impressionista cas profundamente diferentes, unidas pelas mesmas formas de sentir e pelo idêntico
é caracterizada por anseio de se apresentarem fora dos meios da arte oficial dos salões, abertos apenas a
pinceladas pequenas
e rápidas, pela dissolução pintores académicos e bem aceites pela crítica. Trata-se de uma pintura que exprime um
das formas e do volume novo gosto, uma forma pessoal de reproduzir o visível em termos espontâneos, liberta
e pela utilização de cores
primárias. da literatura e dos símbolos, desvinculada dos cânones tradicionais da pintura comemo-
rativa. Nascida do naturalismo e continuadora do realismo, a pintura impressionista
modifica a estrutura artística tradicional porque revoluciona nos seus princípios o modo
de exprimir a realidade visível, desligando-a da representação fiel da natureza para repro-
duzir antes a sua verdade percetível e sensível.

A alteração fundamental levada a cabo pelos impressionistas consiste, efetivamente,


na alteração do modo de ver a natureza e o mundo exterior, reproduzindo-os na tela
sujeitos a um imediatismo temporal e sensível. A intenção do artista passa pela captura
do instante de uma realidade momento em permanente transformação que, a cada muta-
ção da luz, muda de aspeto e de verdade. Assim sendo, deixa de ser determinante o
tema que o artista escolhe para representar; o que na realidade importa é o modo como
o pintor capta a luz num dado e preciso momento, instante irrepetível da vida, da luz,
da atmosfera.

* Simbolismo: movimento O Simbolismo*


literário e artístico, datado
dos anos 70 a 90 do século Na década de 90 do século XIX surge no Ocidente um novo movimento, o Simbo-
XIX, de reação contra a
lismo. Trata-se de uma corrente que, não se limitando às artes plásticas, pretende acen-
sociedade industrial e as
correntes estéticas então tuar uma visão do mundo orientada para a perceção e valorização da realidade interior,
dominantes (o naturalismo
e o impressionismo) misteriosa, íntima e profunda que se presta mais à evocação do que à descrição. Os sim-
considerando a arte como bolistas criticavam a preocupação dos impressionistas com os aspetos ocasionais,
uma construção, produto
final de uma ordem momentâneos da Natureza e a sua indiferença pelas ideias. Na sua opinião, o mundo
própria, com harmonia visível não é senão a imagem das realidades espirituais.
técnica e estética.
Em finais do século XIX já não se pensa que a ciência seja capaz de explicar tudo,
uma vez que a confiança no positivismo se encontra comprometida: assim, os simbolis-
tas associam aos processos científicos métodos paracientíficos, de tal modo que, nas
suas obras, a psicologia pende muitas vezes para a metafísica, com incursões frequen-
tes nos mundos do espiritismo e do ocultismo. Apesar disso, a dimensão física não deixa
nunca de existir. Mas as imagens dos impressionistas, plenas de vida, movimento e luz
natural, tornam-se agora estáticas e misteriosas.
Unidade 5 - Os caminhos da cultura 135

A Arte Nova* * Arte Nova: corrente ou


estilo artístico
Na última década do século XIX, correspondendo a uma perceção que os estilos caracterizado pela rejeição
dos estilos académicos
conhecidos não se harmonizavam com as realidades da civilização moderna e a um
e históricos e revivalistas
desejo e vontade de evolução, assiste-se a um movimento de renovação das artes deco- da sua época (últimas
duas épocas do século XIX
rativas e da arquitetura. O homem moderno não acredita nos ideais gregos de harmonia
e as primeiras do século
e de equilíbrio, nem nas virtudes medievais da devoção e da cavalaria, mas sim no pro- XX), pelo recurso às novas
técnicas e aos novos
gresso científico e técnico, na eficiência económica e no conforto. São esses os ideais
materiais e por uma
que encontraram expressos na arte, na chamada Arte Nova que apresenta alguns traços extrema sensibilidade
estética.
distintivos:
– a rotura decisiva com o academismo e eclectismo do século XIX, em particular com
os estilos históricos e revivalistas (gótico e barroco);
– a exuberância e imaginação decorativa inspirada na Natureza – em particular no
reino vegetal – e com preferência pelas linhas sinuosas, estilizadas ou geometriza-
das que lhe emprestam movimento, ritmo e plasticidade;
– o recurso às novas técnicas criadas pelos progressos da engenharia e aos novos
materiais (ferro, aço, vidro, betão, ladrilho…), usados quer como elementos estrutu-
rais quer decorativos, tirando partido das suas características de resistência, flexibi-
lidade e valor estético.

Símbolo do novo modo de vida de uma sociedade urbana e industrial, de gostos refi-
nados, a Arte Nova é reconhecível nas grandes cidades nas entradas/saídas dos metro-
politanos, em edifícios de estruturas simples e de fachadas rasgadas e onduladas. Mas
a Arte Nova não se restringe à arquitetura. Os seus artistas foram defensores da unidade
das artes. Por isso, a Arte Nova tem realizações nos mais variados domínios, como a joa-
lharia, as artes gráficas e o mobiliário.

– Portugal: o dinamismo cultural do último terço do século

O papel da Geração de 70

No domínio das letras, as três últimas décadas do século XIX ficaram marcadas por
um importante movimento de renovação das ideias e dos modelos literários a que se
convencionou chamar Geração de 70. Este movimento, inspirado em correntes culturais
estrangeiras, iniciou-se em Coimbra, com a denominada “Questão Coimbrã” (1865), que
teve em Antero de Quental e Teófilo de Braga as suas principais figuras.

Em 1871, Antero e alguns dos seus companheiros de Coimbra a que se associaram, entre
outros, Oliveira Martins e José Fontana, constituíram um grupo mais alargado, o Cenáculo,
cuja realização mais importante foi a organização de um ciclo de conferências em Lisboa,
no Casino Lisbonense, com o propósito de “estudar as condições de transformação polí-
tica, económica e religiosa da sociedade portuguesa.” O Governo acabaria por proibi-las.

O movimento acabou como nasceu: um grupo de onze intelectuais que a si próprio


se designava por Vencidos da Vida e que passou a reunir-se semanalmente para jantar,
discorrendo com pessimismo sobre os problemas nacionais.
136 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Nas Artes Plásticas


As novas correntes artísticas europeias não eram desconhecidas em Portugal, mas os
nossos pintores (e a esmagadora maioria dos apreciadores e consumidores de arte) pre-
feriram manter-se ligados ao Naturalismo, emprestando-lhe um forte sentimentalismo e
tons românticos. Destacaram-se entre os demais: Silva Porto (1850-1894), Marques de
Oliveira (1853-1927), Henrique Pousão (1859-1884), José Malhoa (1855-1933) e Colum-
bano Bordalo Pinheiro (1857-1929), o maior retratista do seu tempo. O retrato encomen-
dado era a principal fonte de receita destes mestres. O caricaturista e ceramista Rafael
Bordalo Pinheiro (1846-1905) foi uma exceção a esta regra. Os seus trabalhos, reprodu-
zidos aos milhares por meio da litografia, foram muito apreciados pelos setores popula-
res e constituíram um meio eficaz de crítica da vida política e social.

Na Arquitetura
Na arquitetura assiste-se na segunda metade do século XIX ao revivalismo das formas
medievais, uma das formas encontradas pela burguesia liberal para expressar a rotura
face ao passado recente.

No caso português foi a própria monarquia que começou por dar o exemplo com o
grande projeto do Palácio da Pena (1840-1847), em Sintra, uma iniciativa de D. Fernando,
marido de D. Maria II. Do neogótico ao neomourisco, passando por sugestões indianas
e pelo manuelino, tudo se encontra ali presente.

O revivalismo histórico arquitetónico, expressão de um marcado nacionalismo e de


um gosto pelo exótico, está presente em numerosas construções quer de caráter público
quer privado, de que se destacam: a Estação do Rossio, em Lisboa (1887), obra de Luís
* Modernismo: designação Monteiro (1848-1942), e a Praça de Touros do Campo Pequeno (1892), de J. Dias da Silva
dada aos diversos (1848-1912), exemplos de edificações de estilo neoárabe, o Palácio do Buçaco (1888-1907)
movimentos da literatura,
das artes plásticas, da e o Palácio da Regaleira, exemplos do neomanuelino, a Capela dos Pestanas (1878-1788),
arquitetura e da música no Porto, obra de Albano Cascão, exemplo do revivalismo neogótico, e inúmeros palace-
que surgiram nos finais
do século XIX e se tes da elite aristocrática e burguesa um pouco por todo o País.
prolongaram até meados
do século XX. Apesar da Nos últimos anos do século XIX começou a fazer-se sentir o desejo de um estilo “ver-
sua extrema diversidade, dadeiramente português” inspirado numa visão romântica do mundo rural. Nasceu assim
tinham em comum:
a rotura com a tradição a ideia da “casa portuguesa”, cujo mentor foi Raul Lino (1879-1974), e com ela um modo
e o academismo e a defesa de construir dito “à antiga portuguesa” com beirais de telhados, alpendre, azulejos,
da liberdade de criação
e a procura incessante
pátios, cantaria. Entretanto, as tendências do Modernismo* internacional que na Europa
da inovação. e nos EUA estavam em pleno desenvolvimento, iam espreitando a sua oportunidade.
Questões para Exame 137

Questões para Exame


1

Documento 1 | Taxa de crescimento anual da produção industrial (1870-1913)

Reino Unido 2,2

Alemanha 2,9

Documento 2 | Os mecanismos autorreguladores do mercado

Desde que entre os homens se mantenha a concorrência; se, por acaso, havendo concorrência, um
desequilíbrio se torna ameaçador, imediatamente se produz um movimento de preços: as mercadorias pro-
duzidas em excesso baixam, o que desalenta a sua produção; aquelas que, pelo contrário, são mais pro-
curadas que oferecidas, veem o seu preço elevar-se, o que estimula a sua produção; desta forma o equi-
líbrio realiza-se por si mesmo (...).
Em suma, desde que se mantenha a concorrência, todo o indivíduo que busca o seu interesse pessoal
é levado, quer queira quer não, a servir o interesse geral, e a atividade de todos é de tal ordem, que a
ordem, a justiça e o progresso ficam assegurados.
Adam Smith (1776), A Riqueza das Nações.

Documento 3 | A intervenção do Estado

Penso, portanto, que uma socialização bastante ampla do investimento será o único meio de assegurar
uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e
fórmulas que permitam ao estado cooperar com a iniciativa privada (...).
Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. As indispensáveis medi-
das de socialização podem ser introduzidas por etapas, sem afetar as tradições gerais da sociedade.
J. M. Keynes (1977), Théorie Générale, Paris, Petite Bibliothèque, p. 132.

1.1. Tendo em conta os dados do documento 1, enuncie as especificidades do processo de industrializa-


ção na Alemanha.

1.2. Distinga as conceções económicas presentes nos documentos 2 e 3, nomeadamente em relação aos
seguintes aspetos:
– iniciativa individual;
– intervenção do Estado;
– equilíbrio da economia.
138 Módulo 6 - Economia e sociedade; nacionalismos e choques imperialistas

Documento 4 | As propostas dos primeiros socialistas (utópicos)

Homens de hábitos laboriosos, vós que sois a parte mais honesta, mais útil e mais preciosa da socie-
dade, que produzis toda a riqueza e toda a ciência, vós formastes e estabelecestes o Grande Sindicato
Nacional Unificado da Grã-Bretanha e Irlanda e que será a salvaguarda do mundo (...). Graças a este exem-
plo benéfico, a maior revolução alguma vez realizada na história da raça humana começará, efetuar-se-á
rapidamente e desabrochará no mundo inteiro sem efusão de sangue, sem violência, sem males de qual-
quer espécie, simplesmente sob o efeito de uma influência moral irresistível.
Robert Owen, “À população do mundo”, in História, Revolução e Civilização Urbanas, p. 150.

Documento 5 | O Manifesto Comunista de Marx de Engels

A história de toda a sociedade até aos nossos dias não é mais do que a história da luta de classes
(...). A sociedade burguesa moderna, gerada na ruína da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de
classes. (...) Cada vez mais a sociedade se divide em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e
o proletariado (...). O proletariado de cada país deverá, em primeiro lugar, conquistar o poder político, eri-
gir-se em classe dirigente da nação, constituir-se ela própria como nação. Os comunistas proclamam aber-
tamente que os seus fins só poderão ser atingidos pela transformação violenta de toda a ordem social (...).
Que as classes dirigentes tremam à ideia de uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a per-
der, senão as cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!
K. Marx e F. Engels (1848), Manifesto do Partido Comunista.

Documento 6 | O processo de industrialização em Portugal

Percentagem da população agrícola e população industrial


Unidades industriais na 2.ª metade do século XIX (em relação à população ativa)

Unidades industriais População População


Anos (com mais de 10 operários) Número de operários 1864 agrícola industrial

1852 362 12 500 1876-84 61,1 % 19,4 %


1881 1245 46 000 1887-92 57,1 % 21,1 %
Quadro 1 - Fonte: Cabral, Manuel Vilaverde, Quadro 2 - Fonte: Castro, Armando de (1978),
O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no século XIX, A Revolução Industrial em Portugal no século XIX,
Edições A Regra do Jogo, Lisboa, pp. 277-279. Porto, Editora Limiar.

2.1. Distinga as propostas dos documentos 4 e 5.

2.2. Integre os documentos 4 e 5 numa caracterização global da sociedade industrial europeia oitocentista.

2.3. Tendo em conta os dados dos quadros 1 e 2 (doc. 6), explique a evolução da indústria portuguesa na
segunda metade do século XIX.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 139

Módulo 7 12.° Ano


Crises, embates ideológicos e mutações culturais
na primeira metade do século XX
1. As transformações das primeiras décadas do século XX
2. O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30
3. A degradação do ambiente internacional

Contextualização
Após o grave confronto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) pareciam estar criadas as
condições para uma paz duradoura entre as nações, apesar das dificuldades de recuperação
económica que se anteviam. A vitória dos Aliados foi também a vitória da democracia. A cria-
ção da Sociedade das Nações expressava a vontade de se edificar uma nova ordem interna-
cional assente na superioridade do Direito sobre a força.
No entanto, tratava-se de uma situação precária e instável. A profunda crise económico-
-financeira de 1929 a que o Mundo teve de fazer frente nos anos 30, a crise das democracias
liberais, a emergência das ideologias fascistas e dos regimes totalitários e a agudização das
tensões internacionais precipitaram a Europa e o Mundo num novo conflito (1939-1945),
ainda mais devastador do que o anterior.

Unidade 1 As transformações das primeiras décadas do século XX


SUMÁRIO
1.1. Um novo equilíbrio global*
1.2. A implantação do marxismo-leninismo na Rússia: a construção do modelo soviético*
1.3. A regressão do demoliberalismo
1.4. Mutações nos comportamentos e na cultura*
1.5. Portugal no primeiro pós-guerra*

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Compreender o corte que se opera na mentalidade confiante e racionalista da sociedade
burguesa de início do século XX**.
– Reconhecer como principais vetores da mudança cultural, no limiar do século XX, a emer-
gência do relativismo científico, a influência da psicanálise e a rutura com os cânones
clássicos da arte europeia**.
– Compreender a expansão de regimes autoritários como reflexo do problema do enquadra-
mento das massas na vida política**.
– Compreender os condicionalismos que conduziram à falência do projeto político e social da
1.a República**.

CONCEITOS/NOÇÕES
Soviete; Ditadura do proletariado; Centralismo democrático; Comunismo; Marxismo-leninismo**;
Anomia social; Feminismo; Relativismo; Psicanálise; Modernismo**; Vanguarda cultural**; Expressio-
nismo; Fauvismo; Cubismo; Abstracionismo; Futurismo; Dadaísmo; Surrealismo

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
140 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Cronologia 1.1. Um novo equilíbrio global


Tratados do pós-Primeira
Guerra Mundial:
1.1.1. A nova geografia política após a Primeira Guerra Mundial
1919 Terminada a Primeira Guerra Mundial colocavam-se à Europa e ao Mundo dois pro-
Janeiro-Junho – Conferência blemas fundamentais para o restabelecimento da paz: a reorganização do mapa político
de Paris.
da Europa e o estabelecimento de uma nova ordem internacional, capaz de restaurar e
Junho – Tratado de
Versalhes. garantir a convivência pacífica entre as nações.

Setembro – Tratado de O primeiro foi resolvido através dos tratados de paz (que ignoraram e tomaram sem
Saint-Germain. efeito o tratado de Brest-Litovsk assinado pela Rússia e pela Alemanha em março de
Novembro – Tratado de 1918) negociados entre 1919 e 1920 pelos representantes das potências vencedoras, reu-
Neuilly. nidos de janeiro a junho de 1919 na Conferência de Paris(1), liderada pelo presidente dos
1920 EUA (Woodrow Wilson) e pelos primeiros-ministros do Reino Unido (Lloyd George) e da
Junho – Tratado de Trianon.
França (Georges Clemenceau).
Agosto – Tratado de
Sèvres. Para além do Tratado de Versalhes que, de um modo geral, se aplicava unicamente
à Alemanha, foram redigidos quatro outros tratados de paz com os vencidos: o Tratado
de Saint-Germain com a Áustria; o Tratado de Neuilly com a Bulgária; o Tratado de Trianon
com a Hungria e o Tratado de Sèvres com o Império Otomano. Fundados no princípio do
direito dos povos à autodeterminação, estes tratados desenharam um novo mapa polí-
tico da Europa (Fig. 1):
• na Europa Central e do Leste: o Império Áustro-Húngaro
desintegrou-se, dando origem a três novos estados – a
Áustria, a Hungria e a Checoslováquia; outras partes deste
Império formaram a Jugoslávia (à Sérvia e ao Montenegro,
independentes antes da guerra, juntam-se a Croácia, a
Eslovénia e a Bósnia-Herzegovina) e a nova Polónia; a
Roménia passou a integrar a Transilvânia, a Bessarábia e
Dodruja; a Itália recebeu o Tirol e a Ístria; a Alemanha
sofreu perdas territoriais importantes, sobretudo no leste
(Posnânia e Alta Silésia) e foi cortada em duas partes pela
formação do “corredor polaco”(2); a Rússia foi amputada
dos seus territórios ocidentais com a cedência de áreas à
Polónia e a emancipação das Repúblicas Bálticas (Letónia,
Fig. 1. A Europa após a Estónia e Lituânia), da Finlândia e dos territórios da Transcaucásia. O fim do Império
Primeira Guerra Mundial.
Otomano, surgindo em seu lugar novos estados: a Arábia Saudita, o Iraque, a Síria e o
Revista L’Histoire, n.º 232,
maio de 1999 (adaptado). Líbano (entregues a Mandato da França), a Palestina (tutelada pela Sociedade das
Nações), a Transjordânia e o Curdistão, embora a independência deste nunca se tenha
confirmado.
• a Oeste: a França recuperou à Alemanha a região fronteiriça da Alsácia-Lorena; a
Bélgica adquiriu também da Alemanha dois pequenos territórios: Eupen e Malmédy;
a Dinamarca adquiriu o Schleswig à Alemanha.

Desta forma, o anterior equilíbrio político e étnico foi profundamente modificado no


interior da Europa.

(1)
Os países vencidos – Alemanha, Áustria, Hungria, Bulgária e Turquia - não foram admitidos nas negociações.
(2)
O Tratado de Versalhes, atribuindo à Alemanha a responsabilidade do conflito, impôs-lhe ainda a perda de todas as
suas colónias, a desmilitarização e o pagamento de “reparações” pelos danos causados aos vencedores. O tratado
foi visto pelos alemães como um diktat e fomentou fortes ressentimentos.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 141

1.1.2. A Sociedade das Nações (SDN)


O cumprimento das deliberações adotadas nos tratados celebrados no após-guerra e
a necessidade de evitar novos conflitos tornaram necessária a criação de uma nova
ordem internacional capaz de garantir a paz e a direção da vida internacional.

Os princípios em que se devia basear a reorganização do Mundo depois da guerra


haviam sido definidos pelo Presidente Wilson, dos EUA, numa mensagem dirigida ao
Congresso em janeiro de 1918, conhecida como os Catorze Pontos. O último destes pro-
punha a constituição de uma organização mundial de estados com o objetivo de asse- * A SDN era composta por
cinco órgãos:
gurar a paz e a segurança internacionais.
Assembleia-Geral
(integrando todos os
A proposta do Presidente Wilson concretizou-se com a criação da Sociedade das Nações
estados-membros);
(SDN)*, com sede em Genebra, cujo Pacto organizador foi assinado pelos 27 participantes Secretariado; Conselho
na Conferência e posteriormente integrado no próprio texto do Tratado de Versalhes (1919). (nove estados-membros:
cinco permanentes e
Os objetivos fundamentais da Sociedade das Nações (Doc. 1) eram: quatro eleitos
rotativamente de três em
– submeter as relações entre os estados ao Direito Internacional; três anos); Tribunal
Internacional de Justiça e
– evitar o recurso à guerra pela promoção do desarmamento; punição dos infratores várias comissões
com sanções morais, económicas ou mesmo militares; consagração do princípio da especializadas, como a
Organização Internacional
segurança coletiva, pelo qual uma agressão a um dos membros da Sociedade obri-
do Trabalho (OIT) ou as
gava os outros a defenderem a vítima; resolução pacífica dos conflitos pelo recurso comissões para os
à arbitragem (mediação) e a um órgão judicial – o Tribunal Permanente de Justiça refugiados e para a
administração dos antigos
Internacional – com sede em Haia (Holanda); territórios coloniais dos
países vencidos.
– promover a cooperação económica e financeira entre os estados-membros.

Apesar das boas intenções que presidiram à sua criação, a Sociedade das Nações não
Documento 1
foi capaz de as cumprir. As razões desse fracasso deveram-se:
– à exclusão dos estados vencidos, pois a SDN passou a assemelhar-se mais a uma coli- Todos os membros da
Sociedade concordam em
gação de estados vencedores, com o objetivo de impor a sua vontade na direção da que, se entre eles surgir
vida internacional, do que a uma organização geral de estados, livremente consentida; um conflito suscetível de
produzir uma rutura,
– às condições humilhantes impostas aos vencidos, em especial à Alemanha; submeterão o caso seja a
um processo da
– ao descontentamento de alguns estados vencedores com os acordos de paz e com
arbitragem ou a uma
o incumprimento de promessas; solução judicial seja ao
exame do Conselho.
– à não adesão dos Estados Unidos e à ausência da URSS; Concordam também em
– à exigência da unanimidade nas deliberações; que não deverão, em caso
algum, recorrer à guerra
– ao facto de a arbitragem e as decisões do Tribunal Permanente de Justiça Interna- antes de expirado o prazo
de três meses após a
cional não terem um caráter de obrigatoriedade.
decisão arbitral ou
judiciária ou do relatório de
Embora tenha revelado alguma eficácia inicial na defesa da superioridade do Direito Conselho.
sobre a força nas relações internacionais(3), a verdade é que a SDN falhou no objetivo prin- Art. 12.º, Pacto da SDN.

cipal para que fora criada: a defesa da paz e da segurança internacionais. Não
conseguiu, por exemplo, impedir a ocupação do Ruhr pelas tropas franco-belgas (1923), ? Questão

1. Esclareça se o Pacto da
(3)
Entre 1924 e 1928 a SDN esteve ligada direta ou indiretamente a uma série de tratados que, embora na prática se SDN proibiu o recurso à
tenham revelado ineficazes, são expressão do ideal de Paz: Protocolo para a Resolução Pacífica dos Conflitos Inter- guerra nas relações
nacionais (1924); Pacto de Locarno (1925); Pacto Briand-Kellog ou Pacto de Renúncia Geral à Guerra (1928); Ato Geral internacionais.
de Arbitragem (1928).
142 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Cronologia o abandono do Japão da organização, a agressão da Itália contra a Etiópia (1935), país-membro
da SDN, a Guerra Civil de Espanha (1936-1939) ou a invasão da China pelo Japão (1937),
Os fracassos da SDN
dissolvendo-se em 19 de abril de 1939, ano em que irrompeu a Segunda Guerra Mundial.
1920
Não ratificação pelo
Senado americano do 1.1.3. A difícil recuperação económica da Europa
Tratado de Versalhes nem
do Pacto da SDN. A crise do pós-guerra
1923
Ocupação do Ruhr pelas
A Europa detinha, antes de 1914, a liderança económica, financeira e política no mundo,
forças franco-belgas. mas a guerra pôs fim a esta situação privilegiada. O interminável conflito mundial acarre-
1933 tou para uma boa parte dos países europeus consideráveis perdas humanas e materiais:
Saída do Japão da SDN.
– escassez de mão de obra ativa (milhões de mortos, feridos e mutilados);
1935
Ataque da Itália à Etiópia, – paralisação das atividades produtivas (campos devastados e destruição de fábricas
membro da SDN. e outras infraestruturas económicas) e contração das atividades comerciais e finan-
1936-1939 ceiras;
Guerra Civil de Espanha.
– défices orçamentais e dívidas públicas elevadíssimas;
1937
Invasão da China pelo – surtos inflacionistas* decorrentes do recurso a empréstimos e a emissões de
Japão. moeda-papel.
1939
Início da Segunda Guerra Vencedores e vencidos, ainda que atingidos de forma desigual, saíram da guerra,
Mundial.
senão arruinados, pelo menos consideravelmente empobrecidos. A este cenário devasta-
dor associava-se um quadro sociopolítico nada favorável. O fim da guerra foi acompa-
nhado por um surto de grande agitação social e política.
* Surtos inflacionistas:
movimentos de subida Os anos de 1919-1921, período do regresso à paz, constituem para a generalidade dos
generalizada dos preços
países europeus uma fase de reconversão das suas economias:
(inflação).
– os princípios do liberalismo económico são restringidos e adotam-se medidas para
estimular a criação de emprego e as importações de máquinas, de petróleo e de
produtos alimentares;
– são implementadas políticas de estabilização monetária (manipulação das taxas de
juro e controlo da inflação) e recorre-se à emissão massiva de moeda-papel (moeda
* Moeda fiduciária: tipo de fiduciária*) para aumentar a quantidade de dinheiro em circulação e fazer face à
moeda que circula com a escassez de meios de pagamento e estabelecer o crédito.
confiança nos bancos
emissores (palavra latina
fiducia = confiança), sendo Resultados destas medidas: desvalorizações monetárias, inflação, défices nas balan-
convertível em metal. ças de pagamentos e níveis elevados de endividamento externo. Estas dificuldades inter-
Este tipo de moeda inclui
cheques, ordens de nas são agravadas pela decisão das potências europeias de se desvincularem ao sistema
pagamentos, títulos de do padrão-ouro(4), desorganizando desta forma o sistema financeiro e monetário anterior
crédito, entre outros meios
à guerra, na medida em que deixou de haver uma forma clara para definir as cotações
de pagamento.
das moedas dos diferentes países.

Os anos de 1921-1925 constituem para a Europa um período de reajustamento. O apa-


relho produtivo reconstitui-se a bom ritmo. A descida dos preços provoca a diminuição das
importações e o aumento das exportações, o que melhora ao mesmo tempo a balança de
pagamentos e a situação orçamental.

(4)
Com o abandono do padrão-ouro, as instituições bancárias deixaram de ser obrigadas a converter em ouro a tota-
lidade da moeda fiduciária em circulação. A instabilidade monetária tem repercussões negativas sobretudo nas eco-
nomias exportadoras, porque ao incentivar o protecionismo e a depreciação das moedas prejudica as trocas comerciais
e a circulação internacional dos capitais.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 143

Persistem, no entanto, importantes problemas estruturais nas


economias europeias, como os níveis elevados de desemprego e
das dívidas públicas e a escassez de capitais (Fig. 2).

A partir de 1925-1926 os esforços para a estabilização mone-


tária e o controlo dos défices orçamentais e da inflação começam
a dar resultados. A Grã-Bretanha restabelece, em 1925, a pari-
dade-ouro e a libra recupera face ao dólar. Na Alemanha, a
Fig. 2. A circulação de
queda vertiginosa do marco é superada pela adoção do Reichsmark em 1924. Paralela-
moeda-papel na Alemanha.
mente, a estabilização social e política das principais potências europeias – a França, Ale- Histoire, Terminales, Paris,
manha e Grã-Bretanha – encorajam a poupança e os investimentos. Hachette, p. 50.

No plano das relações internacionais, a aceitação das disposições territoriais defini- Questões
?
das nos tratados do pós-guerra (Pacto de Locarno, 1925), a admissão da Alemanha na
Sociedade das Nações (1926) e os esforços desenvolvidos pela SDN na condenação do 1. Como evoluiu a circulação
de moeda-papel na
uso da força (Pacto Briand-Kellog, 1928(5)) e na promoção do desarmamento criam um Alemanha no período
clima de desanuviamento. considerado?
2. Como explica essa
Nos finais da década de vinte, a Europa parece ter recuperado das sequelas da guerra evolução?
e encara o futuro com confiança; mas não tardaria a verificar-se uma inversão brutal 3. Quais os efeitos dessa
dessa situação. evolução?

1.1.4. A ascensão dos EUA Cronologia

A guerra europeia fez dos Estados Unidos o principal fornecedor de alimentos, bens A recuperação económica da
Europa no pós-guerra
de equipamento e armamento aos beligerantes. Esta forte corrente de exportação teve
1919-1921
como consequências uma balança comercial largamente excedentária e um enorme afluxo
Reconversão.
de ouro àquele país. No início de 1919, os EUA dispunham aproximadamente de metade
1921-1925
do stock de ouro mundial. Reajustamento.

Ao mesmo tempo, a estabilidade monetária transformou os EUA num refúgio seguro 1925-1929
Estabilização e
para os capitais circulantes, uma boa parte dos quais era encaminhada para a Europa crescimento.
sob a forma de empréstimos e investimentos. Os países europeus tornaram-se seus
devedores. O crescimento
industrial nos EUA
Esta situação de dependência foi ainda acentuada pela adoção por parte dos EUA de (1922-1929)
um sistema aduaneiro fortemente protecionista relativamente aos produtos fabricados na Indústria
70%
Europa e de medidas para restringir a imigração europeia (leis de 1921 e 1924). siderúrgica

Os EUA (Quadro 1) conhecem, então, um período de franca prosperidade (1924-1929); Indústria


94%
química
são os denominados Loucos Anos Vinte e a afirmação do mito do American Way of Life.
Os progressos técnicos e o elevado poder de compra da sua população permitiram a Indústria
156%
petrolífera
estandardização e a racionalização da produção industrial. Nova Iorque substituiu Lon-
dres como o centro da economia internacional. Por deterem metade do stock de ouro Indústria
255%
automóvel
mundial, invertem o balanço das contas: de devedores, os EUA tornaram-se credores da
Quadro 1
Europa e na primeira potência mundial.
Eric Hobsbawm, A Era dos
Extremos, Lisboa,
Presença, 1994.
(5)
Este Pacto, conhecido pelos nomes dos seus promotores – Briand, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e
Kellog, Secretário de Estado dos EUA –, ilegaliza o recurso à guerra nas relações internacionais.
144 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

1.2. A implantação do marxismo-leninismo na Rússia:


a construção do modelo soviético
1.2.1. O contexto revolucionário de 1917
Os fatores longínquos da Revolução de outubro de 1917 que derrubou o Impé-
rio Russo governado pelo regime czarista e que deu origem ao primeiro Estado
socialista-comunista da História podem encontrar-se na incompetência da gestão
czarista (autocrática) que mantinha o país e o Império numa situação de atraso
económico-social: estruturas arcaicas, feudalizantes (Fig. 3). Nicolau II empreendera
Fig. 3. Cartaz russo algumas reformas que, ao invés de contribuírem para a resolução dos problemas,
caricaturando os inimigos acentuaram o descontentamento social e político. O massacre de operários que vinham
da revolução: militares,
capitalistas, sacerdotes, apresentar petições de reforma social ao Czar, no dia que ficou conhecido como o
latifundiários (1918). “Domingo Vermelho” (1905) é um bom exemplo deste clima de tensão social.

Os fatores próximos da revolução podem procurar-se nos acontecimentos de natureza


militar, socioeconómica e política que se sucederam desde a entrada da Rússia na Pri-
meira Guerra Mundial, em agosto de 1914, até ao início do ano de 1917, concretamente:
– as derrotas nos campos de batalha, os danos humanos, materiais e financeiros
decorrentes da sua participação na guerra;
– a má administração que estimula as desordens nos campos, manifestações e greves
nas cidades contra a alta de preços e a miséria de largas camadas da população;
– a exploração pelos oponentes ao regime – liberais-constitucionais e revolucionários –
dos erros do regime czarista.

1.2.2. A revolução de 1917


A Revolução de 1917 ocorre em dois tempos. O primeiro, despoletado em fevereiro
(março, no calendário russo), uniu em São Petersburgo (ou Petrogrado) operários, solda-
dos e políticos da oposição que, num clima de grande exaltação, executaram um golpe de
estado que derrubou o czar Nicolau II (abdicou do poder em 15 de março), transferindo o
* Soviete: conselho ou poder para o Soviete* de Petrogrado e para um Governo Provisório presidido pelo príncipe
comité formado por de Lvov do Partido Constitucional Democrata (KD)* e com Kerensky, líder do Partido Socia-
delegados dos operários e
soldados. Os Sovietes lista Revolucionário (SR)*, como Ministro da Justiça. A Rússia torna-se uma República.
surgiram em 1905 como
corpos ou órgãos da No entanto, as divergências ideológicas e políticas entre o Governo Provisório, de
insurreição revolucionária caráter burguês, liberal e reformista, e os sovietes, cujos membros eram crescentemente
das massas populares.
de maioria desafeta ao Governo Provisório (bolcheviques e socialistas revolucionários de
* Partido Constitucional
Democrata (KD): composto esquerda), criaram enormes dificuldades à realização do objetivo governamental de fun-
por burgueses que
dar uma democracia liberal, idêntica aos regimes democráticos dos países ocidentais.
defendiam um regime
liberal, parlamentar.
* Partido Socialista Num segundo momento, de fevereiro a outubro, o clima de insurreição popular agra-
Revolucionário (SR): fação vou-se e o Governo Provisório perdeu toda a autoridade. A recusa em retirar a Rússia da
política que integrava
operários e intelectuais guerra e em fazer as reformas reclamadas pela massa dos camponeses operários e solda-
socialistas. dos, viúvas, órfãos e mutilados cansados de uma guerra implacável aprofundaram o des-
contentamento social. Os camponeses recusaram-se a pagar as rendas aos proprietários e,
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 145

no verão desse ano, começaram a ocupar e a repartir as terras, apoiados pelos milhares
de soldados que desertavam da guerra.

Sob a liderança de Lenine (Fig. 4), os bolcheviques*, o mais ativo dos grupos revo-
lucionários, foram progressivamente estendendo a sua influência no país e nos sovietes,
sobrepondo-se aos mencheviques* e aos socialistas revolucionários.

Em 7 de outubro de 1917, em resposta ao apelo de Lenine, uma revolta popular lide-


rada pelos bolcheviques assaltou o Palácio de Inverno, em São Petersburgo, derrubou o
Governo Provisório, na altura presidido por Kerensky, proclamando a vitória do socia- Fig. 4. Lenine (Vladimir Ilich
lismo-comunismo na Rússia. Ulianov, 1870-1924) foi o
fundador do Estado
Soviético. Inimigo desde a
1.2.3. Do poder dos sovietes ao centralismo democrático sua juventude do regime
czarista, estudou Direito e
A) O período do “comunismo de guerra” (1918-1921) converteu-se ao marxismo.
Preso e deportado para a
Sibéria, exilou-se em 1900.
O novo governo dirigido por Lenine, acompanhado por duas outras grandes figuras – Viveu na Alemanha, Bélgica,
Trotsky (1879-1940), Comissário da Guerra, e Estaline (1879-1953), Comissário das Naciona- França, Inglaterra e Suíça.
Em 1905, regressou à
lidades –, proclamando a vitória da revolução socialista, consagrou o poder dos Sovietes. Rússia para participar na
fracassada revolução desse
Para cumprimento da promessa de retirar o país da guerra, o governo bolchevique ano e, por fim,
assina o Tratado de Brest-Litovsk (março de 1918) com a Alemanha para a sua retirada definitivamente em 1917,
para liderar a Revolução de
da Primeira Guerra Mundial, sujeito a custos territoriais e económicos muito elevados – Outubro (Bolchevique).
perda de 26% da população do antigo império, de 800 000 km2 da sua extensão territo-
rial, de 23% da indústria e de 75% do carvão e do ferro. * Bolcheviques (maioritários):
designação dos membros
Determinado a concretizar o princípio marxista da ditadura do proletariado*, Lenine da fação do Partido
Operário Social-Democrata
decretou um conjunto de medidas revolucionárias que pontuaram esta primeira fase do seu Russo liderada por Lenine.
governo (1917-1921) e que foi denominada pela historiografia de “comunismo de guerra”: * Mencheviques
(minoritários): membros da
– expropriação das grandes propriedades fundiárias e sua distribuição pelos camponeses; fação minoritária e
moderada do Partido
– requisição da produção agrícola; Operário Social-Democrata
– nacionalização das empresas industriais abandonadas pelos seus proprietários e a Russo criado em 1903,
depois da disputa entre
institucionalização do controlo operário nas demais; Vladimir Lenine e Julius
Martov, ambos membros
– nacionalização dos bancos e do comércio externo; do partido.
– imposição de uma política de partido único, o Partido Comunista (designação ado- * Ditadura do proletariado:
regime político teorizado
tada pelo Partido Bolchevique, em 1918), e proibição dos restantes partidos políticos;
por Marx e por Lenine como
– criação de uma polícia política, a Tcheka (1917), e instauração de um clima de terror um período de transição
até à abolição de todas as
através de depurações, julgamentos e execuções sumárias, fazendo da execução de classes e a instauração de
toda a família imperial (1918) uma demonstração exemplar da determinação do novo uma sociedade sem
classes, o comunismo, o
regime em eliminar todas as estruturas burguesas e capitalistas. estádio mais avançado do
socialismo. Segundo Marx,
em consequência da luta
Como facilmente se percebe pela sua natureza e alcance, as medidas adotadas tiveram de classes e da revolução
como principais impulsionadores e beneficiários os sovietes dos camponeses e operários, socialista, o proletariado
deveria assumir todo o
pelo que nesta fase da Revolução pode-se falar de um regime de poder dos sovietes. poder político, com o
objetivo de eliminar as
A implementação do programa económico e social bolchevique deparou-se com enor- estruturas da sociedade
burguesa e do sistema
mes obstáculos: capitalista.
146 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

* Marxismo-leninismo: termo – a resistência dos pequenos e médios proprietários rurais;


criado após a morte de
Lenine, mentor e líder do – a devastadora guerra civil (1918-1921) entre as forças revolucionárias, apoiadas no
marxismo na Rússia, para
Exército Vermelho organizado por Trotsky, e as contrarrevolucionárias, integradas
designar a adaptação feita
por ele da teoria marxista à no Exército Branco e apoiadas pela intervenção militar de um grande número de paí-
realidade russa, um país
ses, incluindo os impérios centrais e vários dos Aliados;
economicamente atrasado,
rural e com estruturas – a diminuição drástica da produção agrícola (caiu para metade relativamente a 1913)
feudalizantes.
e industrial;
Documento 2 – a generalização da miséria e do descontentamento social.
O Novo Estado Soviético
Art.º 1 - A Rússia receberá o O processo de destruição das estruturas capitalistas, a construção do marxismo-leni-
título de República dos nismo* na Rússia e a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em
Sovietes de trabalhadores,
soldados e camponeses. 1922, da qual resultou a constituição de um Estado federal e multinacional, levaram
Todo o poder central e local Lenine a considerar que a organização política da União Soviética teria de ser, ao mesmo
pertence a estes Sovietes.
tempo, disciplinada, centralizada e democrática.
Art.º 2 – A República
Soviética Russa funda-se A fórmula política adotada para a sua realização foi a aplicação do princípio do cen-
no princípio da união
voluntária das nações tralismo democrático à organização política do Estado Soviético (Doc. 2). Ou seja, o cará-
livres e constituirá uma ter democrático estaria salvaguardado pelo reconhecimento do princípio da soberania do
Federação de Repúblicas
nacionais de Sovietes (...). povo e do direito de representação das diferentes repúblicas e nacionalidades, bem como
Declaração de Direitos do Povo na organização hierarquizada dos poderes orientados a partir da base.
Trabalhador e Explorado, 1918.
Mais concretamente: os sovietes locais e regionais eleitos por sufrágio universal esta-
? Questão
vam representados no Congresso dos Sovietes, que designava o Comité Executivo Central,
1. Qual o modelo de composto de duas câmaras – o Conselho da União e o Conselho das Nacionalidades –
organização política do
Estado Soviético adotado
que, por sua vez, elegiam o Conselho dos Comissários do Povo e o Presidium, órgãos
por Lenine? executivos.

Em paralelo com esta organização de matriz democrática, o modelo do centralismo


Documento 3
democrático integrava ainda uma outra estrutura, cujas diretrizes eram impostas a partir
A guerra civil foi do topo e rigorosamente seguidas: o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), com
acompanhada por um
um aparelho dirigente com tanto poder e influência na organização política soviética que
pavoroso colapso
económico. Em 1920, a se confundia e sobrepunha ao próprio Estado. Teoricamente, o órgão mais importante do
produção total não passou
PCUS era o Congresso que elegia o Comité Central, que, por sua vez, designava o Polit-
de 13 por cento do que
tinha sido em 1913. (...) Em buro, composto por cinco membros, tendo a seu cargo a gestão corrente do partido.
1921 foi adotada a Nova
Política Económica (NEP),
que Lenine definiu como B) A Nova Política Económica (NEP) – 1921-1928
“um passo atrás para poder
dar dois passos à frente”. Os graves problemas económicos e o fim da Guerra Civil, com a vitória bolchevique,
(...) levaram Lenine a um recuo estratégico na orientação seguida, através da Nova Política
McNall Burns, História da
Civilização Ocidental, Lisboa, Económica (NEP) (Doc. 3), com o objetivo de recuperar a economia e, no quadro de um
Círculo de Leitores, 1981, p. 267. pragmatismo ideológico controlado, dar um pouco de bem-estar a um povo a viver numa
? Questões
situação de enormes carências:
1. Explique o colapso da – restabelecimento da pequena livre iniciativa e da pequena propriedade privada;
economia russa em 1920.
2. Explicite o significado e
– substituição das requisições das produções por impostos em géneros;
o alcance da afirmação de – possibilidade de os camponeses venderem no mercado os excedentes das produ-
Lenine destacada no
documento. ções agrícolas;
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 147

– permissão da importação de capitais, técnicos, maquinaria e matérias-primas;


– privatização das empresas com menos de 20 operários;
– criação de prémios de produtividade;
– criação, em 1922, pelo agrupamento das diversas repúblicas que compunham o ter-
ritório russo, de um Estado Federal, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS).
– reforma monetária e criação de uma nova moeda, o rublo (1924).

Quais os resultados da NEP?

O recuo controlado e limitado de Lenine na construção do modelo socialista soviético


através da NEP obteve resultados positivos na economia:
– permitiu relançar a produção e reanimar as trocas de bens agrícolas;
– estimulou a produção industrial; atenuou a fome e a escassez e o descontenta-
mento social.

No domínio social, a execução da NEP acarretou sérios riscos à realização do objetivo


marxista da construção de uma sociedade sem classes, ao fazer emergir uma nova classe
média de proprietários rurais abastados, os kulaks, e de pequenos comerciantes, os nep-
men (literalmente, homens da NEP).

Esta categoria de burgueses afortunados será, de resto, um alvo a abater após a


tomada do poder por Estaline, em 1928.

* Demoliberalismo: sistema
1.3. A regressão do demoliberalismo* político de democracia
representativa ou
parlamentar, fundado nos
1.3.1. O impacto do socialismo revolucionário. Dificuldades económicas e princípios liberais
radicalização dos movimentos sociais enunciados nos séculos
XVIII e XIX, no qual a
soberania é delegada pelo
Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, a Europa, perturbada e em gran-
povo a órgãos
des dificuldades económicas, questionou o liberalismo político e a democracia parlamentar. representativos, regendo-
-se pelo princípio da
As massas populares, afetadas pelo desemprego e estimuladas pelo exemplo da revo- maioria e pelo respeito da
vontade popular expressa
lução soviética e pela ação da III Internacional ou Komintern*, mostraram a sua insatis- em eleições.
fação exigindo a intervenção do Estado, ocupando terras e fábricas e promovendo gre- * III Internacional
ves e manifestações. (Comunista) ou Komintern:
fundada em Moscovo, no
Os regimes demoliberais europeus, mesmo as democracias mais consolidadas, mos- ano de 1919, após a vitória
dos comunistas na
tram-se aparentemente incapazes de encontar respostas eficazes para travar o clima de Revolução Russa, tinha
contestação generalizada e as forças sociais e políticas tendem a radicalizar-se. como principais objetivos
dirigir o movimento
Na Alemanha (República de Weimar), os espartaquistas (fação radical do Partido operário internacional e
universalizar o modelo
Social-Democrata alemão, liderada por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo) protagoni- comunista soviético. Foi
zam, em 1919, uma insurreição em Berlim com o objetivo de instaurar um regime comu- dissolvida em 1943, em
plena Segunda Guerra
nista idêntico ao soviético. Mundial.
148 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Documento 4 Esta onda revolucionária de inspiração marxista alastrou a outros países: o Reino
Unido e a França tiveram de enfrentar, nos anos de 1919-1920, duros surtos grevistas; a
A crise das democracias
encontra a sua razão de Itália, a Áustria e a Hungria confrontaram-se também com violentas insurreições revolu-
ser na conjunção dos cionárias. Na Hungria, como na Baviera ou na Finlândia, proclamam-se “Repúblicas dos
ataques que lhe são
dirigidos do exterior pelo Conselhos” (ou seja, de modelo soviético), que vigoram durante alguns meses.
fascismo e pelo
comunismo e das Em consequência destas lutas, os trabalhadores conseguem algumas conquistas sociais
imperfeições de ordem e laborais, mas, rapidamente, o poder político apoiado nas forças militares e na alta bur-
interna. (...) A crise da
democracia está no guesia, receando o caos e a expansão do bolchevismo no continente europeu, reprime
sentimento, exato ou com violência a contestação revolucionária.
errado, da inadequação dos
princípios e das
instituições da democracia
clássica, isto é,
1.3.2. A emergência dos autoritarismos
parlamentar e liberal, às
circunstâncias, aos As classes médias, alicerce do demoliberalismo e grandes vítimas da queda do poder
problemas e às de compra que quase as reduziu ao nível dos proletários, sentiram-se traídas pelas con-
disposições do espírito
público. (...) cessões sociais aos revolucionários e perderam toda a confiança no Estado liberal. Tor-
René Rémond, Introdução à naram-se, pois, presa fácil da propaganda e da capacidade de mobilização das massas
História do Nosso Tempo,
Lisboa, Gradiva, 1994, p. 319. da direita conservadora e fascista que defendia soluções autoritárias, um poder forte
capaz de garantir a estabilidade e a propriedade contra o caos e a ameaça do comunismo
? Questão (Doc. 4).

1. Comente as afirmações
do autor relativamente à Nos países de tradição liberal e democrática (Reino Unido, França, países escandina-
crise da democracia no vos...), os acordos entre forças de diferentes quadrantes ideológicos e a aplicação de
pós-Primeira Guerra
Mundial. medidas de intervenção social e económica permitiram aos regimes democráticos sobre-
viver à agudização da instabilidade sociopolítica.

Entretanto, difundiam-se os nacionalismos, tanto mais exaltados e agressivos


quanto os respetivos povos se sentiam vítimas da humilhação internacional, como era
o caso particular dos derrotados da Primeira Guerra Mundial, como a Alemanha, onde
Hitler (Fig. 5), líder do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães
(NSDAP), prometia a superação das humilhações da derrota e agitava a ameaça do

Fig. 5. Hitler em tribunal,


comunismo: apoiado nas SA (Secções de Assalto) e nas SS (Secções de Segurança),
após a tentativa falhada de alcançou o poder em 1933, depois de o seu partido ter sido o mais votado nas eleições
golpe de estado (putsh de
de 1932.
8 de novembro de 1923).
Também entre os vencedores da guerra havia países com um forte sentimento de frus-
Cronologia
tração com os tratados de paz, como a Itália, onde Mussolini, apoiado na milícia nacio-
A emergência dos nalista dos camisas negras, comandou a Marcha sobre Roma (1922) e obrigou o rei Vítor
autoritarismos na Europa:
Manuel III a nomeá-lo chefe do Executivo. Em 1924, já no poder, os fascistas manipulam
1922
Itália. os resultados e o próprio sistema eleitoral e impõem a ditadura fascista.
1923
Espanha, Turquia e Em Espanha, em 1923, Primo de Rivera instaurou uma ditadura. Pilsudski fez o mesmo
Bulgária. na Polónia, em 1926. Na Grécia, o general Metaxas impõe um regime autoritário (1936).
1925
Na Jugoslávia, é o próprio rei Alexandre I que impõe uma ditadura com o objetivo de
Grécia.
1926 garantir a unidade nacional posta em causa pelos conflitos étnicos. Também em Portu-
Polónia, Lituânia e Portugal. gal, o golpe de estado do General Gomes da Costa, em 28 de maio de 1926, pôs fim à
1928
I República e conduziu o país para a ditadura.
Jugoslávia.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 149

1.4. Mutações nos comportamentos e na cultura


1.4.1. As transformações da vida urbana
Estimulada pelo crescimento populacional, por surtos migratórios, pelo progresso dos
transportes e pela concentração das indústrias, do comércio e dos serviços nos seus
espaços, as cidades conheceram um forte impulso ao longo da segunda metade do
século XIX e na primeira metade do século XX.

O crescimento das cidades operou-se a um ritmo caótico, agravando, por isso, os pro-
blemas urbanos relativos aos abastecimentos, à circulação (Fig. 6), ao saneamento e à
saúde pública.

A formação de grandes aglomerados urbanos – “metrópoles” (grandes cidades) e


“megalópoles” (extensas áreas urbanas constituídas por uma sucessão de cidades) –
veio romper o tradicional equilíbrio entre a cidade e o campo e, dentro da cidade, entre
os seus moradores, perturbando as relações interpessoais, familiares e sociais, origi-
nando profundas modificações nas formas de viver e novas sociabilidades.

A forte pressão social que se exerce sobre o indivíduo nestes extensos espaços cita-
Fig. 6. Elétrico e
dinos conduz à uniformização, à estandardização dos gostos, hábitos de consumo, valores carruagens. Lisboa nos
e comportamentos, ou seja, à massificação da vida urbana. A desagregação das solida- princípios do século XX.

riedades tradicionais, o desenraizamento individual e a desumanização do trabalho, colo-


cam o indivíduo numa situação de extrema vulnerabilidade face a uma civilização urbana
marcada por hábitos consumistas e por um profundo individualismo. A sociedade urbana
torna-se uma sociedade de massas onde o particular, o diferente e o individual consti-
tuem exceções de difícil compreensão e aceitação. O afastamento para a periferia das
cidades de grupos sociais de fracos recursos económicos e com grandes dificuldades de
integração no modo de vida da civilização urbana favoreceu o desenvolvimento dos fenó-
menos da marginalidade e da anomia social*. * Anomia social: designa um
estado de falta ou falha no
respeito às normas sociais.
A) Uma nova sociabilidade O termo também é usado
para explicar
comportamentos
Os imigrantes urbanos que encheram as cidades nos séculos XIX-XX tiveram de dei-
desviantes de certos
xar para trás as práticas e os vínculos sociais anteriores. Desenraizados e sem referên- grupos.
cias culturais, a construção de novas solidariedades, sobretudo num mundo estranho,
competitivo e, não raras vezes, hostil como o urbano, era para eles uma tarefa funda-
mental.

Mas, para isso, eram necessários tempo e espaço. A primeira necessidade foi resol-
vida pelo aumento da produtividade e pelas reivindicações dos trabalhadores, que per-
mitiram reduzir o tempo de trabalho e criar os tempos livres e os ócios.

A segunda, pelo reordenamento urbanístico das grandes cidades e pelo desenvolvi-


mento do comércio e dos serviços. Ao reservar cada vez mais espaços para atividades de
lazer – jardins, alamedas e espaços verdes – e lugares públicos de convívio – clubes
noturnos, bares, cafés, esplanadas, cinemas… –, as sociedades urbanas criaram também
outros tantos novos espaços e meios de socialização.
150 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

B) A crise dos valores tradicionais

O período entre as duas guerras mundiais assinala uma crise de confiança nos prin-
cípios e valores universalmente aceites pelas sociedades europeias demoliberais.

Com efeito, a crença nas virtualidades da democracia liberal, nos valores societais
dominantes, como o trabalho, a austeridade, a educação, a família e a moral cristã, e nas
capacidades, que se supunham ilimitadas, da Ciência foi dando o lugar ao ceticismo e à
rebeldia, ao frenesim consumista e à ânsia de viver.

Duas ordens de razões podem ajudar a compreender este fenómeno de rutura do


padrão de valores e comportamentos sociais:

– por um lado, a massificação da vida urbana, acompanhada pela queda de influên-


cia da Igreja e da família como agentes reguladores dos valores e comportamentos
sociais, e a difusão de novas conceções culturais e científicas;
– por outro, as imagens traumáticas da Primeira Guerra Mundial perduravam na
memória das sociedades que sofreram direta ou indiretamente os seus horrores,
lançando uma sombra sobre o otimismo do século XIX, fundado na convicção plena
Documento 5 nas capacidades dos indivíduos e das sociedades para construir um futuro de pro-
gresso e de bem-estar contínuos para a Humanidade.
Apesar das reticências da
opinião média, não é
possível deixar de acentuar Acresce que os enormes sacrifícios suportados pelo esforço de guerra terão provo-
o formidável anseio de ar
cado nas pessoas uma reação de compensação, um desejo incontido de recuperar os
puro suscitado pelos
roaring twenties. A radical anos perdidos e de libertar as frustrações acumuladas. Esta atitude vinha, de resto, ao
modificação da moda
feminina, ou a voz do jazz,
encontro das investigações e teorias revolucionárias de Sigmund Freud (1856-1939), um
dos bares noturnos e dos médico austríaco que acreditava que a maioria dos casos de doenças mentais e nervo-
cocktails correspondem a
uma nova arte de viver, à sas resultavam de conflitos violentos entre os instintos naturais e as restrições impostas
instalação de uma por uma falsa moral.
sociedade de consumo.
(...) para os estudantes de
Oxford ou do Quarter Latin, Como sempre acontece, foram as elites urbanas e esclarecidas as primeiras a captar
a flapper não é apenas o
e exteriorizar estes sinais de mudança, a dar o exemplo, atitude nem sempre compreen-
tipo ideal de jovem
excêntrica, liberta de dida pelos seus contemporâneos. O modelo de vida americano (american way of life) dos
convenções sociais e
tabus; a sua maquilhagem,
denominados loucos anos vinte (roaring twenties), caracterizado pela incessante procura
o vestuário masculino ou do prazer e da evasão – e que outras sociedades se esforçaram por imitar –, protago-
as saias acima do joelho, o
seu gosto pelo cigarro e niza, de forma exemplar, os novos tempos de mudança.
pelos night-clubs,
representam cortes com
as regras do século XIX. C) A emancipação da mulher
Bernard Droz, História do
Século XX, vol. I, Lisboa, A partir das primeiras décadas do século XX ocorreram significativas mudanças nos
D. Quixote, 1988, pp. 131-132.
papéis desempenhados pelas mulheres nas sociedades ocidentais (Doc. 5), no sentido
de uma, cada vez maior, igualdade de direitos com os homens. As alterações acentua-
? Questão
ram-se decisivamente a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Com efeito, a
1. Como explica a crise dos guerra proporcionou a intervenção das mulheres em quase todos os setores da atividade
valores sociais tradicionais económica, desde os trabalhos pesados das fábricas até à direção das empresas, subs-
nas primeiras décadas do
século XX? tituindo os homens ausentes nas frentes de combate.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 151

As capacidades intelectuais e o dinamismo revelados pelas mulheres – uma reve-


lação surpreendente para as sociedades ocidentais onde tradicionalmente o seu
papel era subalternizado – levaram-nas a tomar consciência da sua força e a orga-
nizar-se para reivindicar a sua emancipação (Fig. 7).

Aos fenómenos da industrialização e da Primeira Guerra Mundial, que possibili-


taram uma maior participação da mulher no mundo do trabalho, devemos adicionar
outros fatores que ocorreram em paralelo: Fig. 7. Manifestação
feminina em Nova Iorque
– a aceleração da vida urbana e alteração do código de valores; (1912). No pano, ao alto:
“Para impostos iguais,
– a crescente laicização (descristianização) das sociedades ocidentais; representação igual”. Nas
faixas das manifestantes:
– a alteração do conceito de família com a generalização da família nuclear (restrita a
“Voto para as mulheres”.
pais e filhos) e dos comportamentos sexuais, em particular o controlo da natalidade.

As primeiras formas da luta das mulheres pela sua emancipação traduziram-se nos
movimentos sufragistas(6) que reivindicavam o reconhecimento da igualdade de direitos
relativamente aos homens no trabalho, na estrutura familiar e na vida pública e o sufrá-
gio universal. Para atrair a atenção de uma sociedade preconceituosa e mobilizar apoios
para a sua causa, as militantes sufragistas mais radicais criaram associações femininas e
* Feminismo: conceção
levaram a cabo corajosas campanhas na imprensa e manifestações de protesto(7).
social, política, ética que
Mas o feminismo* encontrou outras formas – porventura menos espetaculares, mas efi- defende a igualdade
absoluta dos direitos e
cazes – de afirmação pública através do vestuário e da moda. Os tecidos, mais leves, reve- deveres de ambos os
lam discretamente as linhas do corpo. As saias sobem do tornozelo até ao joelho e as sexos, pela melhoria legal
e real das condições em
meias realçam os contornos das pernas. O espartilho foi dando lugar ao soutien. A moda que vive a mulher.
dos cabelos compridos, muito do agrado de gostos românticos, passou a ter um concor- * Relativismo: doutrina
rente muito popular entre as feministas: o cabelo curto e o penteado à garçonne, mais ade- segundo a qual todo o
conhecimento é relativo,
quado à imagem de independência e à vida ativa. dependendo de fatores
contextuais, variando de
acordo com as
D) A descrença no pensamento positivista e as novas conceções científicas
circunstâncias, negando,
por isso, a possibilidade do
Nos inícios do século XX predominava ainda a mentalidade confiante, positivista e conhecimento absoluto e
racionalista que caracterizara o mundo do conhecimento na segunda metade do século XIX. de certezas definitivas.

Mas, de uma forma algo surpreendente, processa-se uma reação antipositivista e antirra-
cionalista. Na origem desta rutura estão, em primeiro lugar, as novas e revolucionárias
conceções e descobertas científicas que têm o seu ponto de partida no relativismo* que
veio pôr em causa o paradigma positivista da objetividade e universalidade do conheci-
mento científico.

Um dos grandes obreiros desta revolução intelectual e científica dos princípios do século
XX foi Einstein (Fig. 8). A doutrina que lhe deu maior fama foi a sua Teoria da Relatividade,
Fig. 8. Albert Einstein
apresentada sob a forma estrita em 1905 e ampliada dez anos depois. Einstein punha em (1879-1955), físico e
causa não só as antigas conceções sobre a matéria, mas também toda a Física tradicional matemático de origem
alemã. A sua Teoria da
construída sobre as conceções da geometria euclidiana e da mecânica newtoniana. Relatividade, expressa pela
fórmula E=mc2, ou seja, a
(6)
O termo “sufragistas”, inicialmente usado com sentido pejorativo, apareceu pela primeira vez no jornal inglês Daily energia (E) é igual à massa
Mail Newspaper em 1906. (m) multiplicada pelo
(7)
Destacou-se nesta luta a Women’s Social and Political Union (WSPU), fundado por Emmeline Pankhurst em 1903.
quadrado da luz (c2),
Fiéis ao seu lema “Atos e não palavras”, interrompiam reuniões políticas, assediavam os deputados do Parlamento, revolucionou a Física e a
partiam janelas, cortavam cabos telefónicos e telegráficos e chegaram a invadir a Câmara dos Comuns. Ciência contemporânea.
152 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Sustentou que o espaço e o movimento não eram absolutos, mas relativos. Os obje-
tos não tinham apenas três dimensões, mas quatro. Ao comprimento, largura e espessura,
acrescentou Einstein, a nova dimensão do tempo e representou todas as quatro dimen-
sões como fundidas numa síntese a que deu o nome de “contínuo espaço-tempo”. Pro-
curava dessa forma explicar a ideia segundo a qual a massa depende do movimento.

Uma série de descobertas – de Röentgen, Becquerel, Pierre e Marie Curie e Max Planck –
desacreditaram a conceção racionalista que defendera a continuidade e indestrutibilidade
da matéria. O físico nuclear de origem germânica Heisenberg (1901-1976) enunciou o prin-
cípio da indeterminação, que desferiu um rude golpe no determinismo e na previsibili-
dade dos fenómenos.

Estas novas conceções e descobertas relançam a crítica à Ciência, o seu alcance e os


seus limites. Henri Poincaré (1854-1952), ao defender que a Ciência não conhece e jamais
pode conhecer algo da natureza das coisas, pois ela só consegue determinar as relações
das coisas entre si, desvalorizou o papel da experiência, considerada até então como ins-
trumento de toda a certeza ou verdade científica. Bergson (1859-1941) considerava que
a realidade não era cognoscível através da experiência ou da evidência racional, mas por
uma espécie de “intuição” (intuicionismo). Na década de 30, num quadro de crise moral
e material generalizada, esta corrente irracional encontra no existencialismo do filósofo
alemão Heidegger (1889-1976) um impulso decisivo.
* Psicanálise: criada e
desenvolvida por Sigmund No domínio do comportamento humano, a Psicanálise* de Freud (Fig. 9), abre novos
Freud numa tentativa de
caminhos à compreensão do subconsciente ou inconsciente através da interpretação de
compreender a
personalidade e o sinais exteriorizados e torna-se um método terapêutico(8). Freud admitia a existência da
comportamento humano
mente consciente, mas considerava o subconsciente muito mais importante na determi-
em toda a sua
complexidade. Constitui nação dos atos do indivíduo. Acreditava que a maioria dos casos de doenças mentais ou
uma das grandes correntes
nervosas resultavam de conflitos violentos entre os impulsos ou instintos naturais e as
da Psicologia. É, ao mesmo
tempo, uma teoria geral do restrições impostas pela moral social.
psiquismo, uma
psicoterapia e um método As conceções freudianas, em particular sobre sexualidade e o castigo, adquirem popu-
de investigação.
laridade muito rapidamente não só no domínio da Psicologia, como também nos meios
literários e artísticos, influenciando ainda certos comportamentos ao incentivar uma maior
libertação dos constrangimentos sociais.

Outras ciências humanas são também levadas a reconsiderar as suas conceções e


métodos. A Sociologia, a Antropologia, a Filosofia e a Psicologia, influenciadas pelos pro-
gressos da Ciência, conhecem importantes desenvolvimentos. A História, a partir do final
da década de 30, com Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), fundadores
Fig. 9. Sigmund Freud da revista Annales d´Histoire Économique et Sociale, questionam a obsessão positivista
(1856-1939), médico
austríaco, fundador da da objetividade e imparcialidade absolutas do historiador, alarga o seu objeto e assume
Psicanálise, revolucionou o sem complexos a natureza relativa, subjetiva do conhecimento histórico.
modo de encarar a mente
e o comportamento
humano.

(8)
Na investigação do inconsciente, Freud começou por utilizar a hipnose, mas depressa a abandonou em favor de
outras técnicas, em especial, a associação livre de ideias e a interpretação de sonhos.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 153

E) As vanguardas: ruturas com os cânones das artes e da literatura

A crise do pensamento e da Ciência e as novas conceções e descobertas científicas


dos princípios do século XX não poderiam deixar de se refletir nos restantes domínios da
Cultura.

De facto, também nos domínios das artes e da literatura se verificou o aparecimento de


* Vanguarda cultural:
uma vanguarda cultural*, uma geração de intelectuais e artistas inovadores, e de certa forma
movimento inovador no
visionários, que tinham como ponto de partida a ideia de que lhes estava destinada a nobre campo artístico, literário
ou em qualquer área da
missão de romper com a tradição, com as suas imagens e símbolos, e de acelerar, anteci- cultura que rejeita os
par o futuro, através da procura incessante de novas ideias e formas de expressão. cânones estabelecidos e
antecipa tendências
posteriores.
Foi esta nova atmosfera intelectual e artística simultaneamente de rutura e de inova-
ção criadora que deu origem ao Modernismo*. * Modernismo: designação
dada ao conjunto dos
movimentos, grupos ou
tendências que, a partir
1.4.2. As novas tendências da pintura dos inícios do século XX,
rompem com os cânones ou
regras tradicionais nas
A) Fauvismo
artes e na literatura e que
procuram novas expressões
Apesar de não ter formado propriamente uma escola e de ter durado apenas alguns técnicas, formais e estéticas
anos (1905-1907), o Fauvismo* ou movimento fauve tem uma intenção comum bem defi- baseadas em conceções
autónomas e
nida: a pintura deve transmitir sensações profundas ao espetador, e não apenas passa- revolucionárias suscetíveis
de melhor traduzirem o
geiras, como acontecia no Impressionismo. progresso e os novos
gostos desenvolvidos nas
Levando ao extremo o anticonvencionalismo e o gosto ou o prazer pela inovação, o sociedades ocidentais.
Fauvismo apresenta como principais características:
* Fauvismo (de fauves,
– o abandono das regras tradicionais da pintura académica, como o pormenor descri- feras, termo utilizado pelo
crítico de arte francês
tivo e as técnicas da perspetiva e do claro-escuro; Louis Vauxcelles, a
propósito da exposição
– a assunção da bidimensionalidade da tela (redução da perspetiva) e com ela a afir- Salão de Outono de 1905):
mação da autonomia do espaço pictórico relativamente ao espaço natural, ao objeto constituiu a primeira
grande revolução artística
real; do século, liderada por
Henri Matisse.
– a exploração da expressividade da cor, recorrendo a cores fortes e puras ou primá-
rias, a tonalidades arbitrárias e violentamente contrastantes, aplicadas com
pinceladas intuitivas, vigorosas e grossos empastes (de modo “selvagem”);

– o “primitivismo” das formas e a simplicidade do traço emprestando ao qua-


dro emotividade, rudeza e agressividade envolvendo ao mesmo tempo o
observador na comunhão das emoções (Fig. 10);

– a desvalorização da temática, sem qualquer conotação social, política ou


outra; é apenas pretexto para a realização plástica.

Os representantes fauves mais destacados: Henri Matisse (1869-1954), fun-


dador do movimento, Maurice Vlaminck (1876-1958), Georges Rouault (1871-
Fig. 10. A Cigana (1906), de
-1958) e André Derain (1880-1954). Henri Matisse (Museu da
Annonciade, Saint-Tropez).
154 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

B) Cubismo

* Cubismo: corrente ou Entre 1906 e 1908, as experiências de um jovem e talentoso artista espanhol chamado
escola pictórica iniciada
por Picasso e Braque, Pablo Picasso (1881-1974) e do seu amigo Georges Braque (1882-1963) estão na origem
cerca de 1907, que
representa um dos de uma nova conceção de pintura, o Cubismo*.
movimentos estéticos
mais importantes da arte
A primeira fase deste estilo (1909-1912) denomina-se Cubismo Analítico. Os objetos
contemporânea.
Caracteriza-se pela são decompostos em linhas e planos monocromáticos, derivados do cubo e da esfera,
simplificação e
geometrização das formas muitas vezes transparentes, inclinados, justapostos ou imbricados. Fragmentando os pla-
e pela decomposição dos
objetos sem nenhum nos, o artista dá uma perspetiva simultânea e multifacetada do objeto em todos os seus
compromisso de fidelidade
com a sua aparência real, o contornos ou ângulos. Desta forma, o ponto de vista do observador já não é único e fixo,
Cubismo procura novas
mas móvel e múltiplo, apesar de traduzido por uma única imagem. Simultaneamente, a
formas de representação
dos volumes no espaço perspetiva perde importância (Fig. 11).
bidimensional do quadro,
sem o recurso à perspetiva
tradicional e à representação Os temas mais comuns são pessoas, paisagens e naturezas-mortas compostas por
naturalista. Pode-se
distinguir duas fases: objetos comuns, como garrafas, copos e instrumentos musicais. Nesta fase, as referên-
1909-1912, período do
“cubismo analítico”; cias ao mundo visual são ainda bastante precisas, evoluindo gradualmente para imagens
1913-1914, período do
“cubismo sintético”.
mentais ou concetuais do real.

Cerca de 1911, Braque e Picasso começam a introduzir nos seus quadros letras e
números para que pareçam menos abstratos. Depois, colam nas telas fragmentos de
papel, cartão e vidro, areia… É o início das “colagens” com a utilização de elementos até
então inéditos na pintura. Não tendo valor estético próprio, estes materiais de uso quo-
tidiano associados a uma obra de arte estimulam visualmente o observador e afastam o
artista da cópia ou reprodução.

Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o Cubismo evolui numa outra direção: é a
fase do Cubismo Sintético que tem no pintor espanhol Juan Gris (1887-1927) o seu ini-
ciador e o maior representante. As representações geométricas já não se inspiram dire-
tamente na imagem dos objetos, mas são inventados ou criados para formar uma com-
posição em que os diferentes elementos não conservam nada das aparências naturais.

O objetivo não é a decomposição dos objetos, mas a expressão das suas formas
Fig. 11. Les Demoiselles
d´Avignon (1907), de essenciais e da sua matéria, eliminando todo o pormenor acidental (por inútil), redu-
Picasso (Museu de Arte
Moderna, Paris). zindo-os a formas geométricas simples – o quadrado, o retângulo e o triângulo. O Cubis-
Correntemente
apresentada como o seu
mo tornou-se assim uma arte mais intelectualizada, mais racionalizada e, por consequên-
marco inicial, esta obra cia, mais abstrata.
revela as duas grandes
influências do Cubismo:
Cézanne (geometrização
das formas) e a arte Representantes mais importantes do movimento cubista: Picasso, Braque, Juan Gris
africana (simplificação e e Jean Metzinger (1883-1956).
rudeza das formas).
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 155

C) Expressionismo

A Ponte (Die Brücke)

No início do Expressionismo* estão os artistas alemães Kirchner (1888-1938), Heckel


(1883-1970), Fritz Bleyl (1880-1966) e Schmidt-Rottluff (1884-1976), aos quais se juntaram
* Expressionismo:
depois Nolde (1867-1956), Pechstein (1881-1955) e Müller (1874-1930) que, em 1905, na
movimento de vanguarda
cidade de Dresden, formaram o denominado grupo Die Brücke (A Ponte)(9). artística que se opõe ao
Impressionismo e defende
Inspirado nas ideias filosóficas do Existencialismo e na obra de Van Gogh (1853-1890), não a representação da
realidade objetiva, mas a
Gauguin (1848-1903) e Munch (1863-1944), o Die Brücke fundamenta as suas conceções
emoção que esta suscitava
estéticas e artísticas no entendimento da arte como uma forma de expressão subjetiva, ao artista. Iniciado no fim
do século XIX por artistas
um meio de revelação das emoções humanas no que estas têm de confuso e irracional. plásticos alemães, atinge o
seu apogeu entre 1910 e
As formas de expressão encontradas pelos membros do grupo para traduzir as emo- 1920 e estende-se aos
países do Norte da Europa
ções, os dramas e as angústias humanas, tais como o medo, a solidão ou o ciúme, foram: e à literatura, à música, ao
teatro e ao cinema.
– a deformação intencional e patética do real através da acentuação excessiva das
suas formas e contornos, pela utilização das cores puras e pela disposição dinâmica
e ritmada dos pormenores (uma desfiguração quase caricatural) (Fig. 12);
– a ligação afetiva entre as formas humanas e as dos cenários naturais ou urbanos
envolventes;
– a substituição da perspetiva por uma organização do espaço baseada em tonalida-
des fortemente contrastantes que sugerem a profundidade e o modelado;
– o recurso às pinceladas expressivas e dramáticas, a tons vivos para exprimir melhor
Fig. 12. Bailarinas, de
a violência das emoções e produzir reações idênticas no observador. Ludwig Kirchner (coleção
particular, Turim).
A deformação das figuras,
O Cavaleiro Azul (Der Blaue Reiter) as formas simplificadas e
angulosas, a acentuação
Entre 1911 e 1914, surgiu um outro movimento expressionista, com origem na cidade dos traços e as
de Munique, fundado por Vassili Kandinsky (1866-1944), que, com Franz Marc (1880-1916), tonalidades contrastantes
concorrem para expressar
fundou o grupo O Cavaleiro Azul (Der Blaue Reiter). a espontaneidade e o vigor
da paixões humanas.
Apesar das diferenças de sensibilidades e de formas de expressão artística dos seus
membros, este grupo deu ao Expressionismo, sobretudo através de Kandinsky, pintor
russo que vivia na Alemanha e era o seu líder, uma feição marcadamente não figurativa,
abstrata. Kandinsky considerava que a arte é uma “atividade do espírito” que permite,
tal como a música, transcender o mundo material, objetivo. As cores, as linhas e as for-
mas já não têm nenhuma relação com a Natureza. A pintura pode dispensar o objeto já
que a arte pictórica tem uma fundamentação teórica e formas de expressão próprias. A
obra de arte vale pelas vibrações que suscita, pela espiritualidade e energia que reflete;
não pela conotação ou dependência do mundo que nos cerca.

Representantes: Munch, Kirchner, Nolde, Paul Klee e Kandinsky.

(9)
O nome define metaforicamente o objetivo do grupo: procurar a ponte que leva do visível ao invisível ou uma porta
entre o passado e o presente/futuro. Há uma clara atração pelo primitivismo e pela recuperação de técnicas tradi-
cionais/medievais.
156 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

D) Abstracionismo

* Abstracionismo: O Abstracionismo* teve o seu ponto de partida numa experiência isolada de Vassili
movimento caracterizado
pela ausência de
Kandinsky, em 1910, ainda durante a fase do Cavaleiro Azul, e o seu grande desenvolvi-
referências figurativas, mento entre 1918 e 1933.
pela afirmação da
autonomia da obra de arte
da realidade visível e pela O Abstracionismo constitui o termo de um percurso de rutura com a arte figurativa e
utilização de uma
linguagem plástica com as composições em perspetiva, de norma renascentista, no sentido da afirmação da
abstrata, matemática e
racional. autonomia da obra de arte face ao real. O artista propõe-se não traduzir a realidade sen-
sível, objetiva ou a sua ilusão, mas sim abstrair dessa realidade uma outra produzida pelo
espírito: o objeto desaparece (ausência de referências figurativas); a obra de arte torna-
se um objeto autónomo, independente da realidade visível.

Esta libertação da arte em relação ao real é acompanhada pela utilização de uma lin-
guagem plástica abstrata, fria, matemática, racional expressa na exploração da assime-
tria, no jogo cromático (tons contrastantes, utilização das cores primárias e das duas “não
cores” – o branco e o negro) e na articulação entre as linhas conjugadas numa unidade
capaz de traduzir uma realidade oculta e mais profunda que as aparências.

O Abstracionismo pode subdividir-se em duas grandes tendências: Abstracionismo


Lírico (ou Expressivo) e Abstracionismo Geométrico.

O primeiro, criado por Kandinsky, derivado diretamente do Expressionismo, inspira-se


no instinto e no inconsciente e apresenta as seguintes características: jogo das formas
orgânicas e cores vibrantes; recurso a meios expressivos onde sobressaem as linhas, as
formas e as cores e os seus respetivos significados; procura de relações com outras artes,
nomeadamente com a música, a arte não figurativa por excelência.

O segundo, diretamente influenciado pelo Cubismo e pelo Futurismo, corresponde a


uma fase de radicalização do Abstracionismo. Caracteriza-se pela criação de uma lingua-
gem puramente plástica capaz de refletir através de formas geométricas simples, pinta-
das com cores primárias e neutras, a racionalidade da ordem e da harmonia universais.

O Abstracionismo Geométrico subdivide-se em várias correntes, sendo as mais repre-


sentativas e fecundas: o Suprematismo, um movimento criado pelo artista russo Male-
vitch (1878-1935), cerca de 1915-1916, que se distinguiu pelo dinamismo das formas puras
Fig. 13. Composição (1921),
de Piet Mondrian e geométricas e pela intensidade e vibração cromáticas das suas obras; e no Neoplasti-
(Gemeentemuseum, Haia).
Planos, linhas e ângulos
cismo, ou seja, uma nova plástica que recusa qualquer noção de subjetividade e, por-
ordenam-se numa tanto, de dinamismo, de movimento e de profundidade. Piet Mondrian (1872-1944) foi o
composição racional. As
três cores primárias puras seu mais destacado representante na pintura (Fig. 13).
(amarelo, azul e vermelho)
opõem-se e equilibram-se
com as não-cores (branco, Representantes: Kandinsky, Paul Klee, Malevitch e Piet Mondrian.
cinzento e preto).
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 157

E) Futurismo

O Futurismo* teve origem em Itália a partir da publicação, em 1909, no jornal Le Fígaro, * Futurismo: movimento
artístico e literário de
do Manifesto Futurista do poeta italiano Marinetti. Polémico e profético, o texto propõe a índole revolucionária;
aniquilação definitiva de toda e qualquer forma de tradição, preconizando uma literatura inspirado no progresso
científico e tecnológico dos
e artes mais condizentes com o presente, com a era das máquinas e da velocidade.
inícios do século XX,
Em 1910, o Manifesto dos Pintores Futuristas, assinado por Umberto Boccioni, Giacomo combatia qualquer forma
de tradição, bem como o
Balla (Fig. 14), Carlo Carrà, Gino Severini e Luigi Russolo, enunciavam as grandes linhas geometrismo intelectual dos
de orientação do movimento: cubistas e o sensualismo
cromático dos
– o repúdio da estética tradicional, bem como do geometrismo intelectual e estático expressionistas.
dos cubistas e do sensualismo cromático dos expressionistas;
– a exaltação da originalidade, da força, da velocidade, do maquinismo e do progresso
científico e tecnológico.

O Futurismo constituiu-se, portanto, como uma vanguarda de rebeldia contra a tradi-


ção e de afirmação da energia, vitalidade e dinamismo da vida moderna e dos valores
da civilização industrial. Baseando-se na descoberta da Física, de que a energia é a rea-
lidade fundamental da Natureza, os futuristas insistiam que o movimento deveria consti-
tuir o tema principal da arte. Ousaram mesmo considerar o automóvel de corrida “mais
belo do que a Vitória de Samotrácia”. Fig. 14. Mercúrio Passa
Diante do Sol (1914), de
Para criar plasticamente a ilusão de movimento e dinamismo, os artistas futuristas Giacomo Balla (coleção
recorreram a diversas técnicas inspiradas na fotografia e no cinema, como a decomposi- particular, Milão).
ção das formas e das cores, a alternância de planos, a sobreposição de imagens e as
variações cromáticas. Concorrem ainda para reforçar aquela ilusão, a utilização de linhas
circulares e contorcidas, de espirais e elipses e de planos geométricos em ângulo agudo.

Representantes: Giacomo Balla (1871-1958), Carlo Carrà (1881-1966), Umberto


Boccioni (1882-1916), Gino Severini (1883-1950).

F) Dadaísmo

O movimento artístico niilista que surgiu entre os horrores da Primeira Guerra Mun-
dial, chamado Dadaísmo*, teve origem em Zurique em 1916. Precursor do Surrealismo, * Dadaísmo: (de dada, um
sobre o qual exerceu uma influência determinante, o Dadaísmo nasceu, em parte, do termo de origem obscura) –
movimento literário e
desencanto amargo de uma geração educada na crença da bondade dos valores da civi- artístico iniciado pelo
lização industrial com a brutalidade da Primeira Guerra Mundial. poeta romeno Tristan
Tzara, que preconizava
O contexto histórico do seu nascimento ajuda a compreender a sua natureza irreve- uma libertação absoluta da
arte de tudo o que lhe
rente e crítica. Os seus princípios teóricos explicitados em sucessivos manifestos procla- fosse exterior, a supressão
mam a espontaneidade (em francês, dada significa “cavalinho de brinquedo”), a liber- total da lógica, o absurdo,
ridicularizando os valores
dade e a anarquia absoluta do artista: a autêntica arte seria a anti-arte. Esta atitude
estéticos, morais e
revela o seu propósito principal: chocar a sociedade burguesa em geral e as concepções religiosos vigentes.
artísticas instaladas em particular, pelo absurdo, pela ironia e pelo sarcasmo.
Os processos destrutivos, provocatórios do Dadaísmo tiveram, contudo, a vantagem
de agitar um certo número de ideias e práticas preconcebidas, induzindo algumas modi-
ficações estéticas e artísticas radicais.
158 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Pretendendo demonstrar que o valor estético de algo não depende dos procedimen-
tos técnicos, mas da atitude mental, os artistas dadaístas desenvolveram técnicas plás-
ticas novas, como as colagens na tela de objetos com relevo e a transformação de obje-
tos vulgares em obras de arte (Fig. 15), só pela simples circunstância da mudança do seu
contexto de uso para um outro puramente estético, como uma galeria de arte, por exem-
plo. Esta última é uma técnica muito característica de Marcel Duchamp (1887-1968), que,
Fig. 15. Com Ruído Secreto com Francis Picabia (1878-1953) e Tzara (1896-1963), foi o precursor do movimento Dada.
(1916), de Marcel Duchamp
(Museu de Arte Moderna,
Estocolmo). Uma ilustração Representantes: Marcel Duchamp, Picabia, Man Ray (1890-1976) e Tzara.
do espírito anti-arte dada:
um novelo de cordel preso
entre duas placas de metal, G) Surrealismo
gravadas com palavras e
letras desconexas
Nascido em França cerca de 1919, o Surrealismo*, um movimento inicialmente literá-
interrompidas por pontos,
como na linguagem morse, rio, constituiu, na linha do movimento Dada, uma reação aos valores culturais e artísti-
ridiculariza a ideia de
cos das sociedades ocidentais, em particular o racionalismo e o convencionalismo.
secretismo.
Diretamente influenciado pela psicanálise e pelo bergsonismo(10), o movimento surrea-
* Surrealismo: movimento lista abriu um mundo novo à criação artística: o subconsciente humano.
artístico e literário de
origem francesa, Em 1924, no primeiro Manifesto do Surrealismo, André Breton (1896-1966), um poeta
caracterizado pela procura francês atraído pela psicanálise, defende a substituição da visão racional do mundo por
de processos de expressão
do pensamento uma interpretação orientada pelo inconsciente, estabelecendo associações livres seme-
subconsciente de maneira lhantes às dos sonhos ou alucinações. No entanto, o objetivo não é traduzir os sonhos,
espontânea e automática.
mas, através deles, atingir uma realidade mais autêntica, a realidade interior, e desta
forma “achar a solução dos problemas fundamentais da vida”.
A partir desta conceção teórica o Surrealismo evoluiu em duas direções:
uma, a das experiências criadoras automáticas; outra, a da fantasia pura e a
da reconstrução poética de um mundo imaginário (Fig. 16). O automatismo
tinha como objetivo assegurar a total liberdade criadora, eliminando qualquer
controlo da razão ou da consciência, libertando assim os impulsos criadores
que residem no subconsciente. Para isso utilizaram várias técnicas, entre as
quais o recurso ao álcool ou à droga, para provocar estados alucinatórios, e à
hipnose.
Fig. 16. A Persistência da
Memória (1931), de Para além da técnica do desenho e pintura automáticos, o Surrealismo socorreu-se de
Salvador Dalí, Museu de técnicas clássicas de desenho e da gradação cromática e de outras tipicamente vanguar-
Arte Moderna, Nova Iorque.
O sonho e o imaginário distas, como a colagem, o dripping(11) e a grattage(12).
abriram um novo e atrativo
campo temático à
exploração artística. Representantes: Salvador Dalí (1904-1989), Max Ernst (1891-1976), Joan Miró (1893-
-1983), René Magritte (1898-1967), André Masson (1896-1987), Giorgio de Chirico (1888-
-1978) e Yves Tanguy (1900-1955).

(10)
Sistema filosófico de Bergson. Valorizou a intuição contra o intelecto, defendendo que este não é capaz de apreen-
der a realidade no seu sentido mais profundo.
(11)
Técnica pictórica que consiste no gotejar da tinta através de um movimento pendular mecânico.
(12)
Técnica que consiste em colocar uma tela pintada sobre uma superfície em relevo para, através de pressão e ras-
pagem, fazer surgir as marcas dessa superfície.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 159

1.4.3. A arquitetura
A utilização de novos materiais de construção (aço, betão armado, placas de vidro, plás-
ticos, contraplacados) e a necessidade de construir novos tipos de edifícios (gares, aero-
portos, pavilhões de exposições, bairros sociais), conciliando a tecnologia industrial com a
estética quer na relação do edifício com o espaço exterior quer na relação do espaço inte-
rior com o indivíduo, aliados à adoção de novos métodos de construção, influenciaram as
experiências inovadoras realizadas por arquitetos americanos e europeus (Fig. 17), na pri-
meira metade do século XX.

Fig. 17. A Fábrica Fagus, em


A tendência dominante na arquitetura deste período é o que se chama Movimento
Alfeld an der Leine (1911-
Moderno gerado pela confluência de, entre outros, o Neoplasticismo, Construtivismo -1914), obra de Walter
Futurismo e Purismo, e que foi designado na época por Funcionalismo, Racionalismo e Gropius e Adolf Meyer.
A arquitetura funcionalista
por Estilo Internacional. concede prioridade
à adequação do edifício,
à sua finalidade ou função.
1.4.4. A escultura
A escultura do início do século XX continuou marcada pelo génio de Rodin (1840-1917)
e permaneceu presa à estética, aos suportes e aos meios tradicionais, sendo a sua evo-
lução mais lenta e menos afirmativa que a da pintura.

Aristide Maillol (1861-1944), discípulo de Rodin, exaltou a beleza feminina, em atitu-


des e movimentos plasmados, de formas naturalistas desligadas de qualquer relação his-
tórica ou mitológica.

Serão as vanguardas pictóricas a libertá-la das “formas antigas” e a iniciar uma nova
e ousada linguagem escultórica, assente no rompimento com a tradição figurativa, na sim-
plificação plástica e na valorização do objeto, dos seus materiais, formas e significados
(Boccioni, Fig. 18). Brancusi (1876-1957), pioneiro da escultura abstrata, libertou-se das
aparências de superfície para revelar a beleza intrínseca dos próprios materiais utilizados.

1.4.5. As novas correntes na literatura


Na viragem para o século XX assiste-se no universo literário ocidental, por um lado,
ao desenvolvimento ainda vigoroso do Realismo e, por outro, à emergência de novas
Fig. 18. Formas Únicas de
tendências, refletindo as influências dos progressos revolucionários da Ciência e do Continuidade no Espaço
desenvolvimento das Ciências Sociais, em particular da Psicologia. (1913), de Umberto Boccioni
(1882-1916), Palácio Real,
A partir de 1920, o Realismo Social perdeu importância, salvo na URSS, onde a lite- Milão. Obra futurista, onde
é evidente a rutura com a
ratura acompanhou o processo revolucionário. Nos EUA transforma-se numa espécie de
tradição figurativa e a
realismo baseado no indivíduo e onde os problemas da chamada Lost Generation (“Gera- expressão do movimento
dinâmico de um corpo
ção Perdida”) inspiraram os primeiros romances de Ernest Hemingway (1898-1961), a poe-
humano no espaço, através
sia de Thomas Elliot (1888-1965), as obras dramáticas de Eugene O´Neill (1988-1953) e do alongamento dos
de John Steinbeck (1902-1960). volumes.

A tendência dominante desta década é o introspetivismo ou psicologismo*, direta ou


* Psicologismo: Doutrina
indiretamente ligada às correntes filosóficas, científicas e artísticas, em particular à Psi- filosófica que subordina a
canálise e ao bergsonismo. O britânico Aldous Huxley (1894-1963), o alemão Thomas lógica e o conhecimento à
Psicologia; todos os atos
Mann (1875-1933), o irlandês James Joyce (1883-1941) e o francês Marcel Proust (1871-1922) humanos têm explicação
foram os seus principais intérpretes. psicológica.
160 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

1.5. Portugal no primeiro pós-guerra


1.5.1. As dificuldades económicas e a instabilidade política e social;
a falência da 1.a República

Os principais problemas económicos e políticos com que a sociedade portuguesa se


debateu no primeiro pós-guerra eram sobretudo de natureza estrutural e com profundas
raízes nos tempos da Monarquia. A participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial
e as suas consequências, quer humanas quer económicas e também financeiras, aliadas
à instabilidade governativa(13), agravaram muitos desses problemas.

No domínio económico-financeiro:

– arcaísmos das estruturas de transportes e comunicações;


– excessivo parcelamento da propriedade agrícola;
– baixos índices de produtividade dos setores agrícola e industrial;
– escassez de capitais e de mão de obra fabril qualificada;
– número e dimensão relativamente reduzidos das unidades fabris e incipiente
mecanização;
– défices orçamentais crónicos e balanças comercial e de pagamentos defici-
tárias (Fig. 19);
– elevada dívida pública;
– surtos inflacionistas decorrentes dos desequilíbrios entre a oferta e a pro-
cura, da especulação e das desvalorizações da moeda;

Fig. 19. A evolução – desemprego, carestia de vida, racionamentos...


orçamental: receitas e
despesas públicas
(1910-1926).
A. Oliveira Marques, História
de Portugal, Vol. 2, Lisboa,
No domínio político:
Palas Editores, 1978, p. 203.

– divisões no Partido Republicano Português (PRP): – logo em 1911, os republicanos


dividiram-se pelo Partido Democrático, de Afonso Costa, o Partido Evolucionista, de
António José de Almeida e o Partido Unionista, de Brito Camacho;
– natureza parlamentar e democrática do regime (subordinação do poder executivo
ao legislativo);
– a insatisfação e descontentamento generalizado decorrentes das reformas legislati-
vas no domínio social, laboral e religioso consideradas tímidas por uns (operariado,
intelectuais de esquerda...) e radicais por outros (clero, alta burguesia...);

(13)
Nos 16 anos do regime republicano (1910-1926) houve em Portugal 45 governos, sete Presidentes da República, oito
eleições presidenciais e nove legislativas.
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 161

* Reformas legislativas
– oposição conservadora – Igreja, monárquicos (organizados no movimento desig- da I República:
nado por Integralismo Lusitano), nobres e alta burguesia – está desagradada com – Abolição dos títulos,
distinções e direitos de
o caráter popular e social das reformas legislativas*; nobreza.
– temor das classes médias do caos social, do bolchevismo e da proletarização que – Lei do Inquilinato.
– Lei da Greve.
as leva a desejar um governo forte, capaz de impor a ordem e a disciplina sociais. – Lei reguladora do horário
de trabalho.
Estes factos provocaram a erosão do regime republicano e precipitaram o Golpe Mili- – Obrigatoriedade do Seguro
Social para acidentes de
tar de 28 de Maio de 1926, liderado pelo General Gomes da Costa, que pôs fim à 1.a Repú- trabalho, doença e velhice.
blica (1910-1926), um regime demoliberal, pluripartidário e parlamentar, e que abriu cami- – Lei da Separação entre o
Estado e a Igreja.
nho à Ditadura Militar (1926-1933) e ao Estado Novo (1933-1974). – Obrigatoriedade do
casamento civil e do seu
1.5.2. O movimento modernista em Portugal registo civil.
– Lei do divórcio.
– Regulação do direito dos
O clima de crise social e política que se vivia no País nos inícios do século XX – crise
filhos.
da Monarquia, instauração da República, Primeira Guerra Mundial – não era de todo favo- – Reforma do ensino e
rável ao acompanhamento das novas correntes culturais e artísticas em desenvolvimento incremento da educação
popular.
na Europa (Doc. 6).
Mas a difusão das correntes modernistas europeias em Portugal debateu-se com
outros importantes obstáculos, designadamente:
– o limitado acesso à informação sobre as polémicas filosóficas e estéticas da moder-
nidade internacional; Documento 6

– a escassez de públicos consumidores de bens culturais, devido aos baixos poder A “primeira geração”
de compra e de alfabetização da população; modernista portuguesa
Os artistas desta primeira
– a predominância do gosto naturalista nas artes; geração desejaram então
– a ausência de uma linha programática dominante (sincretismo de tendências). dar a arte moderna a
Portugal, (…) um país que,
de modo algum estava
A) O primeiro grupo modernista português preparado para tais
aventuras (…) tinha-se
O sentimento de crise e de inconformismo que contesta o conservadorismo da socie- posto à margem da
dade portuguesa e pretende contribuir para a sua transformação, manifestou-se através geografia cultural do
Ocidente, e, preso numa
de um primeiro grupo modernista constituído à volta da revista Orpheu (1915) – o prin- crise social e moral que se
cipal veículo de difusão do Modernismo (literário e artístico) em Portugal – de que se prolongava, agarrava-se a
valores do século XIX. (…)
destacaram Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), Almada Negreiros (1893-1970) e, sobre-
A sua ação foi uma espécie
tudo, Fernando Pessoa (1888-1935), que se distinguiu também na revista Portugal Futu- de fogo de palha,
rista (1917), fundada por Almada Negreiros. rapidamente consumido…
José Augusto França, A Arte e
Os artistas desta “primeira geração” pretenderam difundir as tendências das vanguardas a Sociedade Portuguesa no
século XX (1910-1990), 3.a ed.,
europeias, através de manifestos, revistas e exposições, em Portugal, um país que, de 1991, pp. 30-31.
modo algum estava preparado para as adotar. O próprio Fernando Pessoa deu conta des-
tas dificuldades numa das suas cartas: “Somos o assunto do dia em Lisboa (…). O escân-
dalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente – mesmo a extra-literária – fala
no Orpheu”.
? Questões
B) O segundo grupo modernista (anos 20 e 30)
1. Comente a afirmação de
A geração do segundo grupo modernista organizou-se à volta da revista coimbrã Pre- que Portugal “de modo
algum estava preparado
sença (1927-1940) fundada por José Régio (1901-1969), Gaspar Simões (1903-1987) e
para tais aventuras…”.
Branquinho da Fonseca (1905-1974), entre outros, que revelou alguns poetas notáveis: 2. Explicite a afirmação
José Régio, Casais Monteiro (1908-1972) e Miguel Torga (1907-1995). destacada no documento.
162 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Na prosa, destacaram-se Aquilino Ribeiro (1885-1963) e Ferreira de Castro (1898-1974),


cujos romances trouxeram efetivamente para o mundo da literatura as classes trabalha-
doras.

O grupo da Presença reflete a atmosfera de um certo ceticismo relativamente aos


ideais liberais e republicanos após a falência da 1.a República (1926). Por isso, os seus
Documento 7 membros defendem, em geral, uma literatura e uma arte descomprometidas com quais-
quer princípios doutrinários ou dogmas (Doc. 7).
O segundo grupo modernista
A revista coimbrã Presença Nas décadas de 1930 e 1940, os artistas modernistas e o modernismo foram utiliza-
(54 números, de 1927-1940),
dos pelo Estado Novo na construção de uma imagem de “modernidade” (Novo), que este
fundada por José Régio,
Gaspar Simões, Branquinho último pretendia inculcar, uma vez que a “arte viva se presta mais à divulgação das coisas”
da Fonseca (…),
corresponde a um certo
e porque “a arte, a literatura e a ciência constituem a grande fachada de uma nacionali-
ambiente de ceticismo dade”, como afirmou António Ferro, do Secretariado da Propaganda Nacional.
quanto aos ideais
oitocentistas e republicanos A dinâmica do espírito de mudança da corrente modernista e a diversidade das expe-
de progresso que se
relaciona com o colapso do riências iniciais de vanguarda diluíram-se progressivamente na doutrina conservadora,
liberalismo em 1926, e por racionalista e tradicionalista do regime.
isso os presencistas
aspiram, em geral, a uma
literatura e uma arte
C) A evolução das artes plásticas
desarticuladas, se não
mesmo alheadas, de
qualquer doutrina Pintura
diretamente interventora.
A. José Saraiva e Óscar Lopes,
Apesar de o Naturalismo oitocentista, sentimental e romântico, na linha de Columbano
História da Literatura e José Malhoa, figurar como tendência dominante, o movimento modernista começou a
Portuguesa, Porto Editora,
Porto, 1975, pp. 1090-1091 manifestar-se a partir de 1911 (I República), ano em que regressaram de Paris alguns pin-
(adaptado).
tores portugueses, como Dórdio Gomes (1890-1976) e Santa-Rita Pintor (1889-1918), apos-
tados na rutura com o academismo das artes plásticas e com uma feição eclética.
? Questão
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, regressaram outros, como Amadeo de
1. Relacione, a partir do Souza-Cardoso (1887-1918), cujas pesquisas plásticas atravessam todos os movimentos
documento, a intervenção
do grupo da Presença com das vanguardas, e Eduardo Viana. De entre outros grandes vultos da pintura portuguesa
o contexto político- desta época, contam-se Almada Negreiros (1883-1970), Abel Manta (1888-1982) e Maria
-ideológico da sua época.
Helena Vieira da Silva (1908-1992).

Escultura

A escultura, tal como se verificava na pintura, era dominada pelo gosto naturalista
oitocentista e pelo génio de Soares dos Reis (1847-1889) e de Teixeira Lopes (1837-1918).

Porém, as ideias modernistas oriundas de Paris (influências de Rodin, Bourdelle) aca-


bariam por encontrar eco em Diogo de Macedo (1889-1959) e Francisco Franco (1885-1955),
este último o orientador do gosto nacional até aos anos 60.

Arquitetura

Também na arquitetura o primeiro decénio do século XX prolonga o século anterior.


Uma boa parte dos nossos principais arquitetos continua a utilizar os esquemas ecléticos
oitocentistas na construção e decoração dos palácios, palacetes e solares para a aristo-
cracia e a alta burguesia. Paralelamente, faz-se notar a influência, timidamente renovadora,
Unidade 1 - As transformações das primeiras décadas do século XX 163

da Arte Nova* que evoluiu associada à arquitetura tradicional, apesar de inovadora nos * A Arte Nova (finais do
século XIX – Primeira
materiais e técnicas. O principal elemento de identificação da Arte Nova está na decora- Guerra Mundial): é um estilo
ção e ornamentação: portões, varandas e escadarias são trabalhados minuciosamente por inovador, distanciando-se
tanto dos estilos históricos
artesãos com motivos ornamentais vegetalistas, naturalistas e curvilíneos. como do racionalismo
mecânico da arquitetura
No final dos anos 30 e década de 40, apesar da tentativa de aportuguesamento da dos engenheiros, abrindo
arquitetura, através do que foi designado como a “casa portuguesa”, de que Raul Lino caminho para o
Modernismo. A Arte Nova
(1879-1974) foi o principal mentor, e dos constrangimentos que as próprias encomendas rejeita o historicismo e o
(uma boa parte delas feitas pelo Estado Novo) impunham, a arquitetura moderna dá os academismo, ao procurar
na Natureza uma nova
primeiros passos em Portugal. Um grupo de arquitetos, mais ousados e sensíveis às ten- linguagem sem
dências internacionais, procuram, através da utilização dos novos materiais (ferro, vidro compromissos
historicistas, acreditando
e betão) e da adequação (simplificação e geometrização) das formas ao objetivo da fun- na utilização
cionalidade, ajustar a nova mentalidade arquitetural à realidade portuguesa. simultaneamente artística
e moderna quer das
Entre os nomes e realizações de cunho modernista mais importantes estão Cristino técnicas artesanais quer
industriais.
da Silva (1896-1976), autor do projeto modernista do cinema Capitólio (Fig. 20), de Lis-
boa, Pardal Monteiro (1897-1957), que projetou a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em
Lisboa, e que trabalhou com Duarte Pacheco no Instituto Superior Técnico, Carlos
Ramos (1897-1969), autor do Pavilhão do Rádio no Instituto de Oncologia em Lis-
boa, e Rogério de Azevedo (1898-1983), que projetou a Garagem do Comércio do
Porto.

A partir sensivelmente de meados da década de 40, tal como acontecia no


panorama internacional, em particular nos regimes totalitários, verifica-se um
recuo conservador e nacionalista, que levará ao chamado “Português Suave”,
designação dada a um conjunto de realizações dos anos 40 caracterizado pela
recuperação de elementos da tradição arquitetónica nacional, numa perspetiva
revivalista procurando lançar as bases de um estilo português.

No final dos anos 40 e na década seguinte, na conjuntura internacional do


segundo pós-guerra e ecoando a reafirmação do Movimento Moderno que dela
advém, emerge uma nova geração de arquitetos – Viana de Lima (1913-1991),
Fig. 20. O cineteatro
Celestino de Castro (1920-2007) e Arménio Losa (1908-1988), entre outros –, maioritaria- Capitólio, no Parque Mayer,
mente influenciados pelos princípios defendidos por Le Corbusier, teorizador e principal em Lisboa (1925-1931), de
Cristino da Silva.
figura da arquitetura funcionalista e, no plano urbanístico, pela Carta de Atenas, um
manifesto saído do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, apresentado
em Atenas (1933), que reflete, na sua maioria, as opiniões de Le Corbusier sobre a cha-
mada cidade funcional, organizada e coerente com a vida individual e social dos seus
habitantes.
164 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Em Síntese

• A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) custou muito caro à Europa ou, melhor dizendo, à
Europa ocidental. Mas não a empobreceu apenas. Pôs fim ao seu papel de fábrica e de
banco dos outros continentes, afetou profundamente o comércio mundial e os sistemas
monetários e favoreceu a ascensão económica e política dos EUA que emergem como a
grande potência mundial.
• O novo mapa político da Europa desenhado na Conferência de Paris (1919) pelas potências
aliadas vencedoras e as intenções pacifistas que presidiram à criação da Sociedade das
Nações (SDN) não resultaram na instauração de uma paz efetiva nas relações internacionais.
Ao invés, fizeram emergir novos fatores de instabilidade.
• A crise revolucionária de fevereiro de 1917 na Rússia provocou a abdicação do czar Nicolau II
e o fim do regime imperial. A Revolução de Outubro instigada por Lenine, líder dos bolchevi-
ques, derrubou o “governo burguês” de Kerensky que sucedera a Lvov e abriu o caminho
do poder aos Sovietes. De 1918 a 1921, Lenine impôs a socialização da economia e alterações
revolucionárias na estrutura social, tendo por base a ideologia marxista e o objetivo da edifi-
cação de uma sociedade sem classes. É a fase do “comunismo de guerra”, marcada ainda por
uma violenta guerra civil que opôs os vermelhos, revolucionários, aos brancos, contrarre-
volucionários.
A NEP, lançada em 1921, pretendeu recuperar a economia e sanar a onda de descontenta-
mento social. Em 1922, constituiu-se a URSS. A morte de Lenine, em 1924, abriu um período
de luta pelo poder, cujo desfecho deu a vitória a Estaline que, a partir de 1928, passou a
controlar o governo da URSS.
• O choque da Primeira Guerra Mundial, as crises económicas e sociais e a massificação da
vida urbana provocaram a crise dos valores e comportamentos tradicionais. Os “loucos anos
vinte” revolucionaram o modo de viver, em particular das gerações jovens. A guerra, as
alterações demográficas e a industrialização levaram as mulheres a tomar consciência do
seu papel na sociedade e a reivindicar a igualdade de direitos sociais e políticos.
• Na segunda metade dos anos 20 e sobretudo nos anos 30 a radicalização ideológica, social e
política, associada às crises económicas, tensões sociais e ao medo do caos e do bolchevismo
provocaram, na Europa, a regressão do demoliberalismo e a emergência dos autoritarismos.
• Os revolucionários progressos nos domínios da ciência e da técnica minaram a confiança no
racionalismo e nos postulados científicos positivistas oitocentistas e induziram ao ceticismo
e à rutura com as conceções filosóficas, científicas e artísticas até então dominantes.
• As vanguardas artísticas refletindo o espírito de mudança na literatura e nas artes das pri-
meiras décadas do século XX fizeram da pintura um objeto autónomo em relação ao motivo
que lhe deu origem, promovendo a construção de um novo universo plástico caracterizado
pela exaltação da cor, o desmantelamento da perspetiva e a visão intelectualista do espaço
pictórico. Apesar dos diferentes caminhos trilhados pelas vanguardas, em todas está pre-
sente o sentido de rutura, de libertação e o gosto ou prazer pela inovação.
• Apesar de os primeiros anos do século XX não serem propícios, em Portugal, há uma reno-
vação artística idêntica à que ocorria na Europa – instabilidade política e social (implantação
da República e Primeira Guerra Mundial) e predominância do realismo-naturalismo na pro-
dução e consumo culturais –, figuras como Almada Negreiros e Fernando Pessoa, entre outras,
(“primeiro modernismo”) reunidas à volta das revistas Orpheu e Portugal Futurista e, poste-
riormente, o segundo grupo modernista (anos 20 e 30) associado à revista Presença, projeta-
ram no País as propostas revolucionárias das vanguardas europeias.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 165

Unidade 2 O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos


anos 30

SUMÁRIO

2.1. A Grande Depressão e o seu impacto social


2.2. As opções totalitárias*
2.3. A resistência das democracias liberais*
2.4. A dimensão social e política da cultura
2.5. Portugal e o Estado Novo*

APRENDIZAGENS RELEVANTES

– Relacionar os períodos de crise gerados pelo capitalismo liberal com a expansão de novas
ideologias e com o reforço do intervencionismo dos estados democráticos**.

– Caracterizar a ideologia fascista, distinguindo particularismos e influências mútuas**.

– Compreender os condicionalismos internos e externos que, em Portugal, favoreceram a


ascensão de forças conservadoras e a implantação de um regime autoritário**.

– Reconhecer que, no Estado Novo, a defesa da estabilidade e da autarcia se apoiou na ado-


ção de mecanismos repressivos e impediu a modernização económica e social do país**.

– Distinguir cultura de elites e cultura de massas, avaliando o peso das massas nas trans-
formações socioculturais e identificando formas de controlo do comportamento das mesmas.

CONCEITOS/NOÇÕES ESSENCIAIS

Crash bolsista; Deflação; Inflação; Totalitarismo**; Fascismo**; Nazismo**, Corporativismo**; Antisse-


mitismo; Genocídio; Propaganda; Intervencionismo**; New Deal; Cultura de massas; Estandardiza- Documento 1
ção de comportamentos; Media; Funcionalismo; Realismo socialista
Causas da Grande Depressão
Num sentido amplo,
a causa primeira da Grande
Depressão foi a guerra de
* Conteúdos de aprofundamento 1914-1918. Sem a guerra,
** Aprendizagens e conceitos estruturantes não teria ocorrido uma
depressão de tais
dimensões. Teria ocorrido
uma recessão cíclica
normal (…) e não se teria
transformado na Grande
2.1. A Grande Depressão e o seu impacto social Depressão.
Herbert Hoover, Memórias,
A crise de 1929, que desencadeou a designada “Grande Depressão dos anos 30” não Nova Iorque, 1951.
foi a primeira crise do sistema capitalista. Mas este ainda não havia conhecido uma crise
tão geral e tão durável como aquela que se verificou naquele ano (Doc. 1).
? Questão
Tendo no seu ponto de partida os EUA, a crise atingiu também a Europa e todos os
restantes continentes; um só país lhe escapou: a URSS. Foi uma crise verdadeiramente 1. Explicite o papel da
Primeira Guerra Mundial na
mundial e deixou marcas profundas em todos os domínios: do económico, ao social, polí- Grande Depressão dos
tico e cultural. anos 30.
166 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

A) Da prosperidade à crise de 1929

O estado de euforia económica em que viveu globalmente a sociedade norte-


-americana nos anos 20 (1924-1929) não era, na realidade, tão sólido nem tão
duradouro quanto se supunha(1):
– a produção industrial americana, ultrapassada a fase de reconversão (crise
de 1920-1921), impulsionada pela racionalização do trabalho (taylorismo e
estandardização) e pela formação de monopólios (trusts e cartéis), entra
numa fase de forte expansão, em particular as indústrias química, elétrica e
mecânica (Fig. 1);
– indústrias, como as do carvão e dos têxteis, jamais voltaram a atingir os
níveis de prosperidade do período da guerra, uma vez que a procura nos
mercados europeus decresceu substancialmente;
– os agricultores, afetados pela superprodução, pela concorrência externa e
Fig. 1. A produção industrial pela consequente queda dos preços de mercado e pelos custos de produção
dos EUA (1913-1929). relativamente altos, viram os seus rendimentos diminuir significativamente.
G. A. Chevallaz, Histoire
Générale de 1789 à nos jours,
Lausanne, Payot, 1982, p. 294.
Por outro lado, a necessidade de manter a produção industrial e o consumo em níveis
elevados motivaram o recurso a mecanismos económico-financeiros de risco:
– a abertura, pelos bancos, de linhas de crédito ao consumo e à aquisição de títulos
aumentou os níveis de endividamento das famílias e a pressão especulativa na bolsa;
– o investimento na publicidade, cujos custos eram refletidos nos preços, contribuí-
ram para criar dificuldades adicionais à procura.

Estas fragilidades, até então mascaradas pelo mito da prosperidade económica con-
tínua, apareceram a partir de 1927:
– o progresso técnico afrouxou e com ele diminuíram os ganhos de produtividade;
– os preços estabilizaram;
– a produção de aço e a indústria automóvel foram fortemente afetadas;
– a construção civil conheceu uma quebra acentuada;
– o crescimento dos salários foi interrompido e o poder de compra diminuiu.

A estas limitações económicas internas acrescentaram-se opções incoerentes da polí-


tica externa americana. A adoção de uma política rigorosamente isolacionista pelos
governos republicanos entre 1920 e 1929, traduzida em atos como a ausência dos Esta-
dos Unidos da Conferência Monetária de Génova, reunida em 1922, as restrições à imi-
gração (National Origins Act, 1924) e o reforço do protecionismo aduaneiro (pauta Fordney-
-McCumber de 1922) comprometeram os esforços de estabilização das relações económicas
internacionais e as possibilidades dos países endividados de pagarem as suas dívidas e
de continuarem a abastecer-se no mercado norte-americano.

(1)
No final da Primeira Guerra Mundial, os EUA eram credores da Europa e possuíam cerca de metade das reservas
mundiais de ouro e os seus bancos controlavam os fluxos financeiros mundiais.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 167

B) A extensão da crise

O detonador da crise, nos EUA, seria o crash bolsista* de 24 de outubro de 1929 * Crash bolsista (ou craque,
na terminologia
(a célebre “Quinta-Feira Negra”) na Bolsa de Nova Iorque (Fig. 2). De uma forma ainda portuguesa): queda brutal
hoje não totalmente explicada, foram dadas ordens de venda de milhões de ações. Os pre- da cotação das ações no
mercado bolsista.
ços desceram vertiginosamente. Instalou-se o pânico entre os corretores. No final do dia,
13 milhões de ações tinham mudado de mãos. A terça-feira seguinte, dia 29, foi
ainda mais “negra”: 16 milhões de ações foram vendidas a preços irrisórios. A
descida prosseguiu pelo mês de novembro, arrastando para a ruína tanto gran-
des como pequenos investidores.

O colapso da Bolsa de Wall Street arrastou a desarticulação dos sistemas de


crédito sobre o qual vivia a economia americana. Os bancos, cujo capital consis-
tia sobretudo em ações e o qual havia diminuído fortemente, fecharam as linhas
de crédito. Sem isto, os consumidores deixaram de poder continuar a consumir
e os industriais de poder investir. Fig. 2. A especulação e o
crash da Bolsa de Wall
Esta tendência acentuou-se nos anos seguintes, atingindo o seu ponto crítico em Street (Nova Iorque).
1932-1933: a produção industrial caiu para cerca de metade; milhões de agricultores 1789-1970 l’Époque
Contemporaine, Paris,
viram-se impossibilitados de escoarem as suas produções; os preços caíram para níveis Hachette, p. 305.
até aí impensáveis.

A depressão alastrou dos EUA para os países industrializados espalhados pelo mundo
através dos elos económico-financeiros internacionais construídos pelo capitalismo (Fig. 3).
A Grã-Bretanha e a Alemanha são os primeiros a serem atingidos. A retirada dos crédi-
tos americanos a curto prazo provocou o colapso financeiro de alguns dos principais ban-
cos europeus – o Credit Anstalt na Áustria e o Danatbank na Alemanha. A França foi afe-
tada mais tarde, não antes de 1931-1932.

A destruição dos mecanismos financeiros, a queda dos preços e o protecionismo gene-


Fig. 3. A dimensão mundial
ralizado fizeram desabar o comércio mundial que se viu reduzido a um terço do seu valor
da crise de 1929,
entre 1929 e 1933 (Fig. 4). Os índices da produção industrial caíram sensivelmente para caricaturada pelo alemão
metade. Th. Heine, 1941.

Os países menos desenvolvidos foram também duramente atingidos pela


depressão. Tradicionais exportadores de matérias-primas e de produtos alimenta-
res veem-se a braços com enormes excedentes de produção que não encontram
compradores. Com economias muito pouco diversificadas e dependentes e sem
meios de pagamento, a situação destes países tornou-se insustentável.

C) As implicações sociais

Os efeitos da crise e a depressão não se esgotam, evidentemente, na ver-


tente económica. De facto, é no domínio social, em particular no setor do
Fig. 4. Valor total do
emprego, que adquirem maior significado para um número esmagador de indivíduos e comércio mundial
famílias. É aqui que a verdadeira dimensão dos problemas criados pela depressão e (1929-1933).
J. A. Lesourd et al, Nouvelle
pelos erros de política económica cometidos pelos governos na tentativa desesperada Histoire Économique,
para a combater se fazem sentir com toda a força. le XX.ème Siècle, t. 2, Paris,
A. Colin, 1980, p. 83.
168 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

* Deflação: tendência para A primeira reação geral dos governos para enfrentar a depressão e tentar restabele-
baixa do nível geral dos
preços. Inspiradas no cer o equilíbrio da economia foi a deflação*. Terá sido uma reação instintiva, tanto mais
liberalismo económico e com
que estava ainda fresco na memória as crises de inflação acompanhadas de depreciações
o objetivo de facilitar a
retoma económica, as monetárias que caracterizaram os anos subsequentes à guerra. Assim, tendo como obje-
políticas restritivas adotadas
no princípio dos anos 30 tivo central o equilíbrio orçamental, os dirigentes políticos como, por exemplo, Hoover
pelos estados (redução da nos EUA, Laval, em França, e Brüning, na Alemanha, recorreram a medidas económicas
despesa pública, tabelamento
dos preços e dos salários, deflacionistas.
subida das taxas de juros…)
geraram deflação com efeitos No entanto, estas acabariam por ter, sobretudo no início, efeitos contrários aos espe-
sociais brutais.
rados. Com efeito, o equilíbrio orçamental exigia não só a restrição das despesas públi-
cas como também o aumento das receitas fiscais. Se considerarmos que se vivia numa
época de crise, facilmente se percebe que estas medidas deflacionistas, para além de
gerarem maior conflitualidade social, agravavam a própria crise, reduzindo o poder de
compra, e por conseguinte, a procura.

Outra reação foi o recurso ao nacionalismo económico: desvalorizações monetárias e


Fig. 5. “Preciso de emprego”
(Nova Iorque, 1930). protecionismo. O fracasso da Conferência de Londres(2), em 1933, e o abandono do livre-
Os Grandes Acontecimentos -câmbio pela Inglaterra e adoção da preferência comercial no quadro da Commonwealth,
do século XX, Lisboa, Reader’s
Digest, 1978, p. 225. são exemplos claros do egoísmo dos estados, da falta de cooperação internacional.

* Totalitarismo: ideologia que, As consequências destas políticas foram desastrosas para todos. Nos EUA, em 1932-
dispondo ou não do controlo -1933, o desemprego afetava mais de 12 milhões de trabalhadores, quase 25% da sua
de um aparelho de Estado ou
de um partido, está presente força de trabalho (Fig. 5). Na Alemanha, onde a recessão veio adicionar-se aos proble-
em todas as dimensões da mas financeiros ditados pelo pagamento das indemnizações de guerra, mais de 40% da
vida coletiva e em várias das
da vida individual, suprimindo força de trabalho não tinha emprego. O resultado foi um aumento da pressão social
quer as identidades
individuais, quer as de classe sobre a estrutura política cada vez mais frágil da República de Weimar e a abertura do
e de grupo, exercendo o caminho do poder para Adolf Hitler.
domínio absoluto através do
terror, da vigilância Face ao fracasso dos métodos deflacionistas clássicos e à ausência de uma política
permanente, da censura e da
propaganda. de cooperação internacional, os governos, seguindo as conceções do economista inglês
* Fascismo: ideologia e Keynes (1883-1946), irão adotar, a partir da 2.a metade da década de 30, políticas anti-
sistema político de natureza
racista que impõe a ditadura deflacionistas e no intervencionismo do Estado na economia para a superação da crise.
de um partido que governa
pelo terror e que suprime
todas as liberdades
individuais e coletivas, 2.2. As opções totalitárias
exaltando os valores do
nacionalismo, da autoridade A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e as suas consequências – crises económicas e
do Estado e do culto do chefe.
convulsões sociais, nomeadamente a Grande Depressão, exacerbação dos nacionalismos –
Assume diferentes
designações, como a de e o socialismo revolucionário desgastaram a organização social e ideológica das democra-
Nacional-socialismo na
Alemanha de Hitler. cias liberais e fizeram emergir o totalitarismo*. O fascismo* italiano, o nacional-socialismo
* Estalinismo: fenómeno alemão e o estalinismo* soviético pese embora as diferenças de natureza e origem (os
político-social que, durante
cerca de três décadas, teve dois primeiros constituem uma hiper-reação ao medo da expansão dos movimentos revo-
em José Estaline o seu lucionários de tipo socialista e o terceiro resulta da degeneração totalitária da Revolução
principal símbolo. Era
caracterizado pela Soviética), constituem os principais modelos da vaga totalitária que irrompeu na Europa
hipercentralização e no período entre as duas Grandes Guerras.
burocratização do Estado e
pelo controlo férreo da
economia e sociedade
soviéticas, uma repressão
paranoica e culto da (2)
Organizada sob os auspícios da SDN, a Conferência reuniu peritos e ministros das finanças dos principais países
personalidade. industrializados, para tentar tomar medidas comuns contra a depressão, mas não conseguiu suscitar consensos.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 169

2.2.1. Os fascismos: teorias e práticas


Os princípios e as práticas dos regimes fascista e nazi tiveram muito em comum.

A) O totalitarismo

O fascismo e o nazismo eram regimes de partido único: o Partido Nacional Fascista,


na Itália, e o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), na Alema-
nha. Anti-individualistas, subordinaram os direitos individuais e coletivos ao que o Estado
considerava ser o interesse nacional. A sociedade, a economia, a educação e a cultura
estavam submetidos à supremacia absoluta do Estado – Tudo no Estado, nada contra o * Pangermanismo: doutrina
Estado, nada fora do Estado, proclamou Mussolini. política que defende a
união de todas as
populações de origem
B) O nacionalismo (político e económico) germânica num só Estado,
cuja hegemonia se deveria
Fundados na ideia da superioridade dos respetivos povos, os regimes totalitaristas exal- alargar a todo o mundo.
taram até ao limite o nacionalismo, suporte de um orgulho nacional agressivo e sectarista
* Nacional-Socialismo
e das suas ambições imperialistas. Para o nacional-socialismo* alemão, o wolk (povo) era (ou Nazismo): ideologia
a realidade fundamental da qual emanava o Estado, a quem competia o papel de unificar e sistema político
estabelecido na Alemanha
e expandir a comunidade racial ariana. Este princípio alimentava o pangermanismo* e o pelo Partido Nacional-
racismo alemães que proclamavam a necessidade do espaço vital para a expansão do aria- -Socialista dos
Trabalhadores Alemães
nismo e para a união de todos os povos de raça ariana. O regime fascista italiano exaltava (NSDAP), liderado por
a grandeza de Roma e reclamava um império à dimensão do seu passado histórico. Hitler, o seu Führer,
desde 1921.
A exacerbação do nacionalismo estendia-se também ao domínio da economia. Em Itália,
o sistema corporativo facilitou a planificação e o controlo pelo Estado fascista da economia,
Documento 2
no intuito de promover o crescimento económico através do protecionismo e dirigismo esta-
tais, com vista à realização do ideal de autossuficiência ou autarcia. Na Alemanha, Hitler A educação da juventude
adota uma política económica idêntica: mobiliza vastos recursos financeiros e humanos alemã
(...) Faremos crescer uma
para a realização de obras públicas, designadamente infraestruturas de transportes e de juventude diante da qual o
produção industrial, um enorme investimento direcionado para a redução do desemprego, mundo tremerá. Uma
juventude violenta,
o incremento da indústria pesada (metalurgia, siderurgia, aeronáutica...) e o rearmamento.
imperiosa, intrépida, cruel.
Saberá suportar a dor. Nela
C) O culto do Chefe não quero fraqueza ou
ternura. (...) Antes de mais
Considerado como a encarnação da Nação, o chefe – o Duce (Mussolini), em Itália, e que ela seja atlética. (...)
Não quero uma educação
o Führer (Hitler), na Alemanha – era considerado o guia ou o farol dos destinos do povo, intelectual. O saber
a quem todos deviam uma obediência cega. corrompe as minhas
juventudes (...). A única
ciência que exigirei a estes
D) O militarismo jovens é a do domínio
deles próprios. Eles
Para impor a ordem, a disciplina e o controlo dos indivíduos e das instituições, estes aprenderão a dominar o
regimes estruturaram um férreo aparelho repressivo fundado em mecanismos como a mundo.
H. Rauschning, Hitler m´a dit,
censura e a polícia política – em Itália, a denominada OVRA (Organização de Vigilância e
Paris, Cooperation, 1939.
Repressão do Antifascismo), e na Alemanha, a Gestapo (Geheime Staatspolizei).

Paralelamente, promoveram o culto da agressividade e da violência, quer no campo ? Questão


ideológico-político quer no campo social, através da realização de aparatosos desfiles ou
1. Interprete as conceções
paradas militares e do treino militar ministrado às organizações de enquadramento da de Hitler sobre a educação
juventude e dos adultos (Doc. 2). da juventude alemã.
170 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

* Corporativismo: sistema E) A inculcação doutrinária


económico e social
fundado em instituições A endoutrinação dos respetivos povos nos valores e ideais fascistas era uma preocu-
profissionais corporativas.
Integram patrões e
pação permanente destes regimes. Para isso, eram promovidas sistematicamente campa-
operários, com a finalidade nhas de propaganda e de mobilização da população, apoiadas por organizações parami-
de evitar a luta de classes
e de subordinar os
litares, para o enquadramento da juventude – a Organizzazione Nazionale Balilla
interesses profissionais (juventude fascista italiana) e a Juventude Hitleriana alemã – e dos adultos – sindicatos
aos do Estado.
fascistas, corporações e milícias (os Fascii di Combattimento e Camisas Negras, em Itá-
lia; as Secções de Assalto “SA” e Secções de Segurança “SS”, na Alemanha).
Documento 3
Estas campanhas eram dirigidas a todos os setores da vida social e envolviam áreas
Carta del Lavoro como a educação, o desporto, a arte e a comunicação social (imprensa, rádio, cinema).
1. A nação italiana é um
organismo com fins, vida,
meios de ação superiores Antiparlamentares, antiliberais, antimarxistas, militaristas e racistas, no regime fas-
pela autoridade e está
acima dos indivíduos ou cista italiano e no nacional-socialista ou nazi alemão é comum salientar, no primeiro, o
grupo que a compõem. (...) seu modelo económico-social, o Corporativismo* (Doc. 3) e, no segundo, o seu compor-
2. O trabalho, em todas as tamento profundamente racista.
suas formas (...), é um
dever social. A este título, Com efeito, o nazismo foi particularmente violento para com os judeus, alvos dos pre-
(...) é tutelado pelo Estado
(…) Os seus objetivos são conceitos e das práticas violentas do antissemitismo* e do eugenismo*, sempre funda-
unitários e resumem-se no mentadas pela necessidade de preservar e apurar físicamente a raça ariana, a “raça pura,
bem-estar dos indivíduos e
no desenvolvimento do superior”. Os judeus, bem como os ciganos, foram excluídos da cidadania, impedidos de
poderio nacional. (...) praticar qualquer profissão, isolados em guetos, proibidos de casarem com arianos, e,
6. As corporações
constituem a organização
durante a guerra, deportados para campos de concentração, onde foram vítimas de
unitária das forças de autênticos atos de genocídio*.
produção e representam
integralmente os seus
interesses. 2.2.2. O Estalinismo
Carta do Trabalho, 1927
(Itália).
A morte de Lenine, em 1924, abriu o caminho a uma disputada luta pelo poder na

Questão União Soviética entre Estaline (Secretário Geral do PCUS) e Trotsky (o principal organiza-
?
dor e comandante do Exército Vermelho).
1. Identifique três
princípios do fascismo Estaline sai vitorioso e, a partir de 1928, torna-se o líder da URSS e toma um con-
italiano enunciados no junto de medidas radicais com vista a retomar o caminho para o que considerava ser
documento.
uma sociedade socialista.
* Antissemitismo: forma de
racismo dirigida contra os
judeus, povo de origem – abandonou a Nova Política Económica (NEP) (1921-1928) e impôs a nacionalização e
semita (Semita deriva de
Sem, um dos filhos de Noé). coletivização dos meios de produção, acompanhadas por uma feroz perseguição aos
* Eugenismo: conceito kulaks (proprietários fundiários) sujeitando-os ao trabalho assalariado ou coletivo;
(racista) fundado no
objetivo de melhoria – organizou a exploração agrícola em kolkhozes (cooperativas de produção, trabalha-
(seleção) da “qualidade” de das coletivamente por camponeses e administradas por técnicos do Estado) e sovk-
uma população.
* Genocídio (ou “limpeza”
hozes (herdades equipadas e reguladas pelo Estado e cultivadas por trabalhadores
étnica): ação deliberada assalariados, pagos à tarefa);
cujo objetivo seja a
eliminação física de um – organizou o comércio em cooperativas de consumo e armazéns estatais;
grupo humano.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 171

– determinou uma rigorosa planificação da indústria, através dos denominados Pla-


nos Quinquenais (Doc. 4), elaborados por um organismo central, o Gosplan, que Documento 4
fixava as prioridades nacionais, com destaque para a indústria pesada (minas, side-
Os planos quinquenais
rurgia, eletricidade e química), encarada como fulcro do desenvolvimento, as metas (...) A tarefa principal do
ou objetivos a atingir e os recursos a empenhar para um período de 5 anos; plano quinquenal é
transformar a URSS de um
– promoveu depurações ou purgas periódicas no interior do aparelho de Estado e no país agrário e fraco, que
PCUS encaminhando, desta forma, para a prisão e trabalhos forçados, para a morte depende dos caprichos dos
países capitalistas, num
ou o exílio nos campos ou colónias de trabalho (geridos por um organismo conhe- país industrial e forte, livre
cido por Gulag) milhões de comunistas e de outros cidadãos que não simpatiza- e independente (...).
A tarefa principal do plano
vam com a sua ideologia; quinquenal é transformar a
URSS num país industrial,
– endureceu o totalitarismo de um estado cada vez mais centralizado e comandado eliminar completamente os
pela tirania do partido único, o PCUS, e por um forte aparelho burocrático (Nomenk- elementos capitalistas,
ampliar as formas
latura) escudado numa poderosa polícia política (a NKVD, posteriormente KGB, um socialistas da economia e
autêntico Estado dentro do Estado), aproximando o regime soviético cada vez mais criar uma base económica
para suprimir as classes
de uma verdadeira autocracia dominada pelo culto da personalidade do chefe,
sociais na URSS, com vista
Estaline. a construir uma sociedade
socialista (...) liquidando a
possibilidade de
restauração do capitalismo
Resultados: em poucos anos, o país agrário, atrasado e inculto que era a Rússia antes na URSS (...).
José Estaline, Doutrina na
da Revolução tinha realizado uma notável modernização: fizera-se uma industrialização URSS, Paris, 1938, p. 183.
em massa; promovera-se o desenvolvimento técnico dos processos produtivos, tanto na
indústria como na agricultura; crescera a produtividade geral; estabeleceram-se infraes- ? Questões
truturas ao nível da habitação, da higiene, da saúde e do ensino, área que conheceu uma
1. Explicite os objetivos de
profunda reforma. Estaline ao estabelecer a
planificação da indústria
soviética.
2. Avalie o grau de
realização desses
2.3. A resistência das democracias liberais objetivos.

2.3.1. O intervencionismo do Estado

As dificuldades económicas e sociais dos anos vinte e trinta colocaram sérios proble-
mas de sobrevivência às democracias parlamentares europeias e norte-americana.

No campo económico e social, os estados democráticos abandonaram o liberalismo


económico e decidiram-se pelo intervencionismo* estatal, para assegurar o emprego e * Intervencionismo: princípio
inspirado nas conceções de
uma distribuição mais justa dos rendimentos. O intervencionismo inspira-se nas ideias do Keynes que, ao contrário
economista inglês Keynes (1883-1946), que atribuía ao Estado um papel de regulador da do liberalismo económico,
defende a intervenção do
vida económica e que defendia uma política económica “expansiva” (não deflacionista) Estado na economia. A
que estimulasse a produção e o consumo, o emprego e o bem-estar (keynesianismo). Na política liberal do “laissez
faire” é, assim,
perspetiva keynesiana, a causa da depressão económica e do desemprego era a diminui- considerada inadequada
como solução para os
ção da procura. As empresas não produzem mais porque não têm procura para os seus
problemas económicos e
bens, e não há procura porque o rendimento é baixo, e este é baixo porque a produção sociais dos países.

é reduzida e não gera rendimentos.


172 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

* New Deal: medidas de Consequentemente, as empresas não contratam trabalhadores porque a procura dos
política económica e social
tomadas por Roosevelt bens é fraca, e os trabalhadores não procuram os bens porque estão desempregados.
para enfrentar a Grande
Depressão dos anos 30. As propostas de Keynes encontraram uma primeira aplicação nos EUA, com o New
Deal * (Doc. 5), um ambicioso programa de realizações proposto pelo presidente Franklin
Roosevelt (Fig. 6) nas eleições de 1932 para combater a crise económica e social.

Numa primeira fase, a prioridade foi relançar a economia e lutar contra o desemprego
através de:
– lançamento de grandes obras públicas;
– redução dos stocks industriais e agrícolas;

Fig. 6. Franklin Delano – travagem da descida dos preços através do controlo da produção industrial e da
Roosevelt (1882-1945). redução das áreas cultivadas;
Candidato pelo Partido
Democrata, foi eleito – manutenção dos rendimentos dos agricultores, compensando-os com créditos e
Presidente dos EUA em
1932 e reeleito três vezes indemnizações;
consecutivas.
– aumento dos salários, fixação de preços mínimos e máximos;

Documento 5 – criação de empresas públicas.

O New Deal
Numa segunda fase, o New Deal teve um caráter eminentemente social, lançando as
Pode-se observar (no New
Deal) três linhas de força: bases do estado-providência (Welfare State):
– A reorganização e o – o Social Security Act lançou as bases do sistema de Segurança Social, instituindo
relançamento de setores
fundamentais de subsídios na doença, na invalidez, no desemprego e na velhice;
atividades. A banca em
primeiro lugar (...), a – redução do horário de trabalho e fixação do salário mínimo;
indústria (...), a agricultura
(..) a energia elétrica (..), – fomento da habitação social e concessão de férias pagas;
os transportes (...);
– reforço do papel dos sindicatos (National Labor Relations Act).
– Uma política visando
repor os EUA numa posição
favorável no mercado O Welfare State estendeu-se posteriormente a outros países (Grã-Bretanha e França).
mundial: abandono do
padrão-ouro (1933), O bem-estar e a melhoria económica da vida dos seus cidadãos passaram a ser conside-
desvalorização do dólar (...);
rados como a base indispensável para assegurar a estabilidade da economia e das ins-
- Enfim, e é isto o
essencial do New Deal, a tituições políticas democráticas, ameaçadas pela gravidade da crise económica e social
procura de um novo dos anos 30 e pela expansão das forças fascizantes e também para evitar novas crises
compromisso social (...).
Não se trata por certo de sociais.
derrubar o capitalismo: “Foi
a minha administração (...)
que salvou o sistema de
lucro privado e da livre 2.3.2. Os governos de Frente Popular e a mobilização dos cidadãos
empresa.” (Roosevelt).
Michel Beaud, História do
Capitalismo, Lisboa Editorial A nível interno, a resistência das democracias à escalada do totalitarismo fascista exi-
Teorema, 1992.
giu, no plano político, a procura de consensos políticos, um diálogo nem sempre fácil
entre as forças de Esquerda e de Direita que, no caso das “velhas” democracias da
? Questões
França e da Grã-Bretanha, se alternaram no poder ou convergiram em governos de uni-
1. Explicite as principais
dade nacional.
linhas de ação do New Deal.
2. Comente a afirmação de Na Grã-Bretanha, o Partido Trabalhista de McDonald estabeleceu uma coligação com
Roosevelt destacada no
documento. os conservadores e liberais e constituiu um governo de União Nacional (1931-1935).
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 173

Contudo a resistência das democracias passou também pela união dos partidos de
Esquerda, englobando comunistas, socialistas e radicais. O objetivo prioritário era deter
o avanço do fascismo.

Em França, o socialista Léon Blum (1872-1950), líder da Frente Popular que coligou no
governo socialistas e radicais, com o apoio parlamentar dos comunistas, implementou,
entre 1936-1938, uma série de medidas destinadas a estimular a produção nacional,
designadamente a desvalorização do franco e a nacionalização do Banco de França. Para-
lelamente, negociou com a oposição um conjunto de reformas sociais, os Acordos de
Matignon (1937), reconhecendo aos operários o direito de celebração de contratos cole-
tivos de trabalho e à greve, o aumento dos salários, a redução do horário de trabalho
semanal para 40 horas, duas semanas de férias pagas.

Em Espanha, a II República, instituída em 1931 sob o lema “República


democrática dos trabalhadores de todas as classes”, provocou a reação
dos grandes proprietários, militares e católicos descontentes com as me-
didas radicais adotadas: institucionalização do parlamentarismo; sufrágio
universal alargado às mulheres; reforma agrária; direito à greve; sepa-
ração da Igreja do Estado; ensino laico; lei do divórcio. A vitória da Frente
Popular, composta por socialistas, comunistas e sindicalistas, em 1936,
provocou a união entre a direita burguesa e católica e os adversários da
democracia – militares e fascistas – congregados na Frente Nacional, que
promoveu um levantamento militar (1936), comandado pelo general
Francisco Franco (1892-1975), que lançou a Espanha numa violenta Guerra
Civil (1936-39) (Fig. 7). A intervenção estrangeira nesta guerra deu-lhe um
Fig. 7. Premonição da
caráter de confrontação político-ideológica internacional, transformando-a num trágico Guerra Civil Espanhola
(1936), de Salvador Dalí.
laboratório militar da Segunda Guerra Mundial.

2.4. A dimensão social e política da cultura


2.4.1. A cultura de massas e o desejo de evasão

Nos países industrializados aparece, nas primeiras décadas do século XX, uma cultura * Cultura de massas: oposta
à tradicional noção de
dirigida não só às elites, mas a públicos cada vez mais vastos, que aderem progressiva-
cultura, concebida como
mente a formas de lazer facilitadoras da libertação de tensões e da agressividade da vida um fenómeno de elites,
a cultura de massas
quotidiana e que realiza o desejo natural de evasão. Intensidade e escape estão, pois, afirma-se, pelo contrário,
intimamente ligados. como uma cultura dirigida
para o grande público, para
Desta forma, os novos prazeres do consumo característicos das sociedades industria- a ação, a perceção e a
transmissão do imediato,
lizadas estenderam-se também à cultura, originando o fenómeno que vulgarmente é deno- da novidade; heterogénea
minado por cultura de massas*. Pensada e elaborada para ser transmitida às grandes nos seus conteúdos e
formas e de duração
massas humanas na forma de bens de consumo culturais, transformou-se rapidamente efémera, caracteriza-a
numa verdadeira “indústria cultural”, adotando, na sua produção, os mecanismos e obje- uma abordagem, em regra,
superficial e com escasso
tivos de qualquer outra indústria: a divisão do trabalho, a especialização e o lucro. rigor científico.
174 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Na origem do êxito da cultura de massas está, para além do facto de as suas


características se ajustarem bem aos gostos e práticas sociais da vida moderna, um
oportuno e eficaz aproveitamento de um conjunto de condições favoráveis:

– progressivo alargamento da instrução (Fig. 8);

– generalização de hábitos de consumo de produtos culturais proporcionados


pela melhoria geral do nível de vida nas sociedades industrializadas;

– melhorias técnicas e canalização de investimentos para os meios de comunica-


ção de ampla circulação – imprensa: livros, jornais, revistas (Fig. 9), rádio (no
Fig. 8. Evolução do número
de estudantes no ensino início dos anos 20) e cinema (sobretudo o cinema sonoro, a partir dos finais
superior nos EUA. dos anos 20) – tornaram estes produtos mais acessíveis e atrativos para um
História do Século XX, vol. 3,
Londres, Hamlyn, 1993, p. 156.
número crescente de pessoas;

– perceção pelo poder político das enormes potencialidades dos novos meios
de comunicação, nos domínios da informação e propaganda políticas.

A cultura de massas apresenta as seguintes características:

– produzida para a população em geral, para as massas;

– dirigida para a ação, a perceção e a transmissão do imediato, do instante presente,


e para o culto da novidade;

– heterogénea nos seus conteúdos e formas, de duração efémera e caracterizada por


Fig, 9. Com o objetivo de
conquistar novos leitores, uma abordagem superficial e multifacetada;
aparece uma imprensa
destinada a públicos e – difundida através dos meios de comunicação de amplo alcance, apoiando-se funda-
áreas específicas. A Time mentalmente na aplicação das grandes conquistas tecnológicas do século XX (rádio,
era uma revista
especializada no ramo dos cinema, televisão, discos...) e na publicidade;
negócios.
– tendente a modelar (padronizar) um tipo de pessoa média que, pela sua mentali-
Primeiro número da revista
Times (março 1923). dade, atitude e comportamentos, se integre progressivamente no sistema econó-
mico, social e cultural dominante.

2.4.2. Os grandes entretenimentos coletivos


A subida dos salários e a criação de tempos livres proporcionadas pelos progressos
da industrialização e pelas conquistas do operariado (redução do horário de trabalho,
férias) e a rotina e intensidade da vida quotidiana das sociedades modernas estimula-
ram o desejo de entretenimento e evasão, cada vez mais justificados como uma forma
de terapia para a vida moderna. A valorização cada vez mais generalizada do corpo e do
exercício físico e o interesse crescente das massas e dos meios de comunicação pelos
espetáculos desportivos, a par do caráter de negócio que estes foram adquirindo, popu-
larizaram o desporto. A adesão massiva das populações ao desporto, em particular os
não praticantes, exige a construção de amplos espaços desportivos capazes de acomo-
darem multidões. Criam-se estruturas associativas. Organizam-se grandes competições
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 175

nacionais e internacionais. Os Jogos Olímpicos adquirem uma dimensão mundial(3). O ideal


olímpico é visto como forma de sublimar rivalidades nacionais. Os melhores atletas trans-
formaram-se em vedetas e estrelas.

Entre as modalidades desportivas que, nas primeiras décadas do século XX, mobili-
zam maiores públicos e paixões destacam-se:
– o futebol, o desporto-rei em Portugal e noutros países europeus e da Amé-
rica Latina; a realização do primeiro Campeonato do Mundo em 1930, no
Uruguai, consagra este desporto como um fenómeno de popularidade à
escala universal;
– o automobilismo, que adquire espetacularidade com os extraordinários pro-
gressos técnicos do automóvel (Fig. 10);
– o boxe, que atrai o entusiasmo de multidões e movimenta enormes somas Fig. 10. 1.o Grande Prémio de
(4)
de dinheiro ; França, em Le Mans (1906).
In www. lemansportugal.com,
– o ciclismo, que se torna muito popular graças às emoções que as grandes provas inter-
nacionais suscitam, tais como o Tour de France(5);
– o esqui na neve, originário da Noruega, conquista cada vez mais adeptos na Europa.

O cinema, a chamada Sétima Arte, constitui outro importante meio de entretenimento


e de evasão, capaz de atrair grandes plateias, sobretudo a partir dos finais dos anos 20,
altura em que o cinema sonoro começa a impor-se. A adesão entusiástica do público ao
cinema faz desta indústria um negócio próspero, apesar das preocupações que começa-
ram a surgir em certos setores de opinião quanto às influências negativas que poderia
ter na educação das crianças. Nos EUA e na Europa constituem-se companhias de produ-
ção, edificam-se grandes estúdios e luxuosas salas, autênticos palácios de imagens.

Transformada numa autêntica “fábrica de sonhos”, Hollywood produz filmes para todos
os públicos: musicais, westerns, romances, comédias, desenhos animados(6), histórias de
gangsters e de terror e cria os grandes mitos ou estrelas que marcam a história do
cinema dos anos 20 e 30: Charles Chaplin, Rudolfo Valentino, Shirley Temple, Greta
Garbo, Fred Astaire, Ginger Rogers e Marlene Dietrich.

O cinema suscita também em Portugal um grande entusiasmo. Em 1921, há já 4 salas


em Lisboa. Na província, o seu número é também já significativo na década de 20. As
fitas são sobretudo estrangeiras, particularmente francesas e americanas. A Severa (1931),
de Leitão de Barros, foi o primeiro fonofilme português, embora o respetivo registo tenha
sido processado em estúdios franceses. A primeira longa-metragem sonora inteiramente
rodada em Portugal seria Canção de Lisboa, de José Cottinelli Telmo, estreada em 1933.

(3)
Reinstaurados pelo barão Pierre de Coubertin, participaram nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna reali-
zados em abril de 1896, na cidade de Atenas, 241 atletas (masculinos) de 13 países que competiram em nove moda-
lidades. Nos Jogos de Amesterdão de 1928, participaram 2883 atletas de 46 países. Em 1924, realizaram-se em Cha-
monix os primeiros Jogos Olímpicos de Inverno.
(4)
O combate entre Jack Dempsey e Genne Tunney, em 1926, registou uma receita recorde de 2,6 milhões de dólares.
(5)
O 1.o Tour de France realizou-se em 1903, tornando-se na maior prova do ciclismo mundial.
(6)
Em 1926, Walt Disney, autor de filmes de desenhos animados, criou a figura do Rato Mickey. O primeiro filme de
longa-metragem de desenhos animados com cor e som foi Branca de Neve e os Sete Anões (1937).
176 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

As touradas e o teatro, sobretudo o teatro de revista, tornam-se muito populares e


beneficiam da edificação de novos e amplos palcos: o Campo Pequeno para os espetá-
culos taurinos; o Maria Vitória e o Variedades, no Parque Mayer, para as realizações tea-
trais, todos em Lisboa.

2.4.3. Os media, veículo de modelos socioculturais

A criação e a expansão da cultura de massas estão estreitamente ligadas aos media:

– a imprensa escrita conheceu um forte impulso com os novos géneros literários


(romances cor-de-rosa e policiais, banda desenhada…) e a difusão do gosto pela lei-
tura (livros, jornais e revistas) que o lazer, o poder de compra, a instrução e os pro-
gressos técnicos na sua produção e transporte favoreceram;

– a rádio transformou-se rapidamente num instrumento privilegiado de comunicação,


fazendo chegar aos ouvintes notícias, folhetins, música, anúncios, etc.

Mas os finais da década de 20 viram ainda nascer um dos inventos mais importantes
de todos os tempos no domínio da comunicação: a televisão. Embora por razões técni-
cas e económicas, só nos anos 40 se tenha imposto, o poder da imagem adquiriria nas
décadas seguintes uma projeção à partida inimaginável.

A perceção das potencialidades dos media para transformar significativamente as ati-


tudes e os comportamentos dos indivíduos enquanto eleitores ou consumidores fez recair
rapidamente sobre eles a atenção tanto do poder político como do económico. Mas este
interesse, se por um lado favoreceu os seus progressos técnicos, por outro colocou os
media sob uma forte pressão política e social.

Os seu efeitos foram múltiplos:

– favoreceram a homogeneização e estandardização dos comportamentos e padrões


culturais pela inculcação de valores e comportamentos sociais comuns (arquétipos),
habilmente explorados pelos estados totalitários para informar e/ou propagandear
as virtudes dos seus regimes e pelos interesses económicos (sociedade de consumo);

– proporcionaram convívio, divertimento, alívio de tensões e conflitos do quotidiano


favorecendo a evasão e o estabelecimento de novas solidariedades.

– os media ajudaram a formar o “homem-massa”, ou seja, o indivíduo que se sub-


mete sem consciência crítica aos valores dominantes, com todos os riscos de mani-
pulação que isso comporta.

* Problemáticas sociais: o
seu ponto de partida é a 2.4.4. As preocupações sociais na literatura e na arte
teoria de que os intelectuais
e artistas deviam denunciar
os males sociais e apontar Durante a década de 1930, período marcado pela Grande Depressão e pelas graves
os caminhos para uma tensões e crises sociais e políticas que se lhe seguiram, a literatura e a arte ocidentais
sociedade mais justa e mais
pacífica. centram-se de novo na abordagem das problemáticas sociais*.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 177

Em termos literários e plásticos esta corrente orientada para a intervenção social e


político-ideológica expressou-se sob diversas formas, determinadas quer por convicções
pessoais quer pelos respetivos contextos sociais e políticos. Esta característica transpa-
rece, de resto, nas expressões utilizadas para denominar esta nova orientação do Rea-
lismo: Realismo Social, Realismo Crítico e Neo-Realismo ou, ainda, na sua vertente comu-
nista, Realismo Socialista*. * Realismo Socialista:
corrente inspirada na
Os escritores americanos progressistas que viveram sob o ambiente do New Deal roo- ideologia comunista, que
seveltiano – John Steinbeck (1902-1968), Ernest Hemingway (1899-1961), John dos Passos concebia a atividade
intelectual e artística como
(1896-1970) e Erskine Caldwell (1903-1987) –, o russo Máximo Gorki (1868-1936), os bra- uma atividade socialmente
sileiros Jorge Amado (1912-2001), Graciliano Ramos e Erico Veríssimo e o francês André comprometida com o povo
e a revolução proletária
Malraux (1901-1976) contam-se entre os autores mais destacados do Novo Realismo. (Socialista). Dirigida às
classes trabalhadoras,
Em Portugal, Abel Salazar (1889-1946), escritor e artista plástico, e Soeiro Pereira defendia uma linguagem
Gomes (1909-1949), autor da primeira grande obra desta corrente, Esteiros (1941), que artística clara e direta no
seu conteúdo e expressão,
aborda as agruras dos adolescentes assalariados nos telhais do Ribatejo, são dois dos
acessível ao povo
nomes mais representativos. (massas) e apelativa, ou
seja, uma linguagem
concreta, figurativa e
2.4.5. O funcionalismo e o urbanismo propagandística.

As novas tendências registadas na arquitetura na primeira metade do século XX refle-


tem o sentido da evolução económica e social que acompanhou a expansão da industria-
lização e da urbanização no mundo capitalista.
Com efeito, os novos materiais (aço, betão armado, placas de vidro…) e as novas cons-
truções (gares, espaços de exposições e de lazer, bairros sociais…) exigiam respostas
arquitetónicas capazes de conciliar a tecnologia industrial com a estética, quer na rela-
ção do edifício com o espaço exterior quer na relação do espaço interior com o indivíduo.
Ao mesmo tempo, a degradação das condições da vida urbana decorrente do cresci-
mento caótico das cidades exigia um novo urbanismo capaz de assegurar a satisfação,
em quantidade e qualidade, das necessidades fundamentais dos homens: “habitar, tra-
balhar, recrear-se, circular”.
As experiências nestes domínios estiveram na origem das duas grandes correntes da
arquitetura moderna: o funcionalismo e o movimento orgânico ou organicismo.

A) O funcionalismo

Constituindo um amplo movimento de modernização da arquitetura, em rutura com as


regras da “arquitetura burguesa”, o funcionalismo assenta em três princípios intimamente
ligados ao sentido pragmático das sociedades urbanas dos princípios do século XX:
– a articulação racional da forma e da função, ou seja, a adequação da construção ao
seu objetivo prático: “A forma segue a função”(7);
– a componente estética deve resultar de opções estruturais e não de aplicações orna-
mentais;
– a arte deve abrir-se à inovação tecnológica, em particular aos novos materiais e às
novas técnicas de construção.

(7)
Form follows function, a máxima do arquiteto norte-americano Louis Sullivan (1856-1924).
178 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

A expressão destes princípios traduziu-se na estandardização e industrialização da


construção e na sua verticalização (construção em altura).
O funcionalismo arquitetónico dava desta forma uma resposta a um problema crucial
das populações urbanas – o alojamento – e criava as condições para a realização do pos-
tulado estabelecido no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), reu-
nido em 1933 e apresentado em Atenas, de que “o sol, a verdura e os espaços são os
três primeiros materiais do urbanismo”.
O funcionalismo surge na América, na Escola de Chicago, de 1880-1890,
mas encontra a sua formulação na Europa e expressão própria no arquiteto
suíço-francês Le Corbusier (1887-1965), cuja obra-prima, a Villa Savoie (Fig. 11),
exprime os princípios compositivos geométrico-racionais que caracterizam a
“nova arquitetura”:
– planta livre (as divisões não são estáticas, mas formadas por finas pare-
des móveis);
Fig. 11. A Villa Savoie (1928-
-1930), em Poissy, de Le – elevação do edifício sobre pilares ou estacas permitindo a circulação pedonal;
Corbusier, uma obra – janela corrida contínua (constituindo uma parede de vidro que se abre totalmente
exemplar do funcionalismo
arquitetónico. e através da qual o espaço interior e exterior coincidem);
– cobertura em terraço (até ao qual se sobe através de uma ampla rampa, estabele-
cendo uma continuidade entre os diferentes andares);
– fachada não ornamentada;
– utilização de formas geométricas puras e da cor branca.

A ação da Bauhaus (1919-1933)

A divulgação internacional do funcionalismo arquitetónico deve muito à


Bauhaus (Fig. 12), uma escola alemã fundada em Weimar, em 1919, e dirigida
por Walter Gropius, a sua figura de referência. Esta escola foi, durante o
período da sua existência (em 1933, foi obrigada a encerrar as portas pelo
nazismo), um centro de teorização e de experiências inovadoras nos domínios
da arquitetura e do design (desenho industrial), defendendo:
– a aliança entre a arte e a técnica, a forma (estética) e a função, o artista
e o artesão, com o objetivo de reunir na produção do objeto o fabrico
mecânico (produção-em-série), a utilidade e a criatividade artística, ou
seja, promover a unidade de todas as artes numa perspetiva da sua
Fig. 12. Bauhaus: escola de
arquitetura e design, “democratização”, ou seja, uma arte funcional e para as massas, um objetivo fortemente
fundada em 1919 por Walter comprometido com as exigências da civilização industrial;
Gropius, em Weimar
(Alemanha). – novos processos de ensino da arte (aliança entre a teoria e a prática): o objetivo
era pôr cobro às especulações intelectuais dos artistas e iniciá-los num novo
“aprender fazendo”; valorização de processos de trabalho em equipa, de atitudes
de pesquisa e de interligação entre várias disciplinas artísticas e entre estas e as
atividades artesanais(8);
– o recurso a novos materiais, ou exploração das potencialidades de materiais usuais
com tradução na descida dos custos.

(8)
As aulas na Bauhaus eram dadas por dois elementos: um professor-artista (como P. Klee ou Kandinsky) e um téc-
nico ou artesão. Por outro lado, os alunos intervinham diretamente na direção da escola.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 179

O verdadeiro legado da Bauhaus reside não só naquilo que produziu, mas sobretudo
nas perspetivas que abriu aos processos de construção e ao ensino das artes e ofícios.
Lançando os princípios de uma união totalmente nova entre a arte e a máquina, propôs
uma abordagem global, essencial para o design, cujo principal propósito era “civilizar a
tecnologia”.

B) O movimento orgânico ou organicismo

Se a luta dos arquitetos funcionalistas se centrou, como vimos, na resolução de pro-


blemas da construção de natureza quantitativa, a arquitetura orgânica reconhecendo que
o homem tem uma dignidade, uma individualidade e um espírito, considera que os pro-
blemas da arquitetura são também de natureza qualitativa.

O organicismo tem como ponto de partida o princípio da individualidade e humani-


dade de cada solução arquitetónica, ou seja, para cada necessidade, um espaço ade-
quado quer aos problemas funcionais de ordem material quer a outros mais complexos,
de ordem psicológica e espiritual. A sua mensagem pode resumir-se na defesa da huma-
nização da arquitetura. Assim, o edifício deve respeitar a liberdade espacial e decorativa
e a continuidade espacial entre interior e exterior.

O movimento orgânico ou organicismo tem como seu maior expoente o americano


Frank Lloyd Wright (1867-1959) que apresentou em Berlim, em 1910, a sua “teoria orgânica”
assente nos seguintes princípios:

– individualidade e humanidade de cada solução arquitetónica (para cada necessi-


dade, um espaço, quer atendendo aos problemas funcionais de ordem material quer
a outros mais complexos, de ordem psicológica e espiritual – a casa como espaço
de refúgio, liberdade espacial e decorativa, ambiência decorativa e mobiliário inte-
grado);
– continuidade espacial entre interior e exterior;
– originalidade de implantação – integração na Natureza e na
paisagem (natural ou urbana);

O seu edifício mais emblemático é a famosa Casa da Cas-


cata (Fig. 13) onde a integração na Natureza se realiza atra-
vés da exploração estética da articulação da rocha natural
com grandes lajes de betão, da harmonização de diferentes
materiais (betão, vidro, tijolo, pedra, madeira), da acentuação
da linha horizontal e da assimetria de planos.

Fig. 13. A Casa da Cascata,


obra de Frank Lloyd
Wright. Lugar de refúgio, a
casa devia ser um espaço
cuidadosamente recortado
no meio ambiente.
180 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Documento 6 2.4.6. A cultura e o desporto ao serviço do Estado


A cumplicidade entre a O século XX assiste, como se viu, à massificação da cultura apoiada na explosão da
cultura e o poder político
comunicação e das suas técnicas. Este fenómeno da “democratização” da cultura e da
O século XX caracteriza-se
pela explosão da
comunicação não passou despercebido aos políticos que descobriram o poder que os
comunicação e das suas media e a cultura têm na informação das multidões, na sua formação e, sobretudo, na
técnicas no domínio do
sua manipulação (Doc. 6).
político. A grande
descoberta que irão fazer
Vários fatores explicam esta cumplicidade entre política, cultura e comunicação:
os políticos é a
omnipotência da – a importância que a argumentação e a propaganda tiveram na Primeira Guerra Mun-
argumentação política na
informação das multidões, dial, tanto na mobilização do apoio dos cidadãos às opções políticas e militares dos
mas também, e sobretudo, respetivos governos, como também no combate ao inimigo;
na sua manipulação. (...)
– a evolução democrática das sociedades que, ao dar ao cidadão um papel cada vez
Philippe Breton e Serge Proulx,
A Explosão da Comunicação, mais importante nas decisões políticas, transformou-o num alvo do poder político
Lisboa, Editorial Bizâncio,
1997, pp. 351-353. para obter a sua adesão a determinadas ideias ou causas;
– as características mentais e psíquicas do homem “moderno”, um homem voltado
para o exterior, mais sensível à forma do que ao conteúdo e, por conseguinte, rece-
tivo à propaganda e aos media.

? Questão O cinema foi uma das áreas propícias à intervenção (manipulação) dos estados: a faci-
lidade de compreensão e o fascínio da linguagem fílmica fizeram dele um veículo privi-
1. Como se explica a
cumplicidade entre a legiado para a inculcação de valores, para a propaganda política e a formação (e homo-
cultura e o poder político geneização) de comportamentos sociais.
no século XX?
São exemplos, entre muitos outros, o filme O Nascimento de uma Nação (1915), uma
epopeia romantizada do realizador norte-americano David Griffith, ou O Couraçado
Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, e A Mãe (1926) de Pudovkin, filmes que
exaltam a Revolução Bolchevique. Ainda na URSS, na década de 30, o regime
impôs o denominado Realismo Socialista para promover junto das massas a
ideologia comunista e o culto à personalidade de Estaline através das letras e
das artes.

A história do desporto, em particular a dos Jogos Olímpicos, assinala muitos


exemplos de instrumentalização política. Ficaram célebres por esta razão, os
Jogos de Berlim (Fig. 14), em 1936, organizados pelos nacionalistas-socialistas
(nazis) para constituírem um meio de propaganda da sua ideologia racista. No
entanto, esta teve um duro revés quando o atleta americano, Jesse Owens, con-
quistou quatro medalhas de ouro; Hitler não resistiu ao “choque” da sua vitó-
ria na prova dos 100 metros e retirou-se para evitar saudar um atleta negro.

Fig. 14. Cartaz alusivo aos


Jogos Olímpicos de Berlim
(1936).
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 181

2.5. Portugal e o Estado Novo


2.5.1. O triunfo das forças conservadoras * Integralismo Lusitano:
movimento político e social
de orientação monárquica
A instabilidade política e social da I República (1910-1926), explicada pelos fatores já e nacionalista, antiliberal e
estudados(9) e o contexto internacional de afirmação do autoritarismo, em particular os antiparlamentar.
regimes de Primo de Rivera, em Espanha, e de Mussolini, na Itália, deram força à oposi-
Documento 7
ção conservadora (Igreja, monárquicos – organizados no movimento designado por Inte-
gralismo Lusitano* – nobreza e alta burguesia). Por outro lado, os militares ansiavam res- O Estado Novo
taurar a ordem e a autoridade postas em causa pelos constantes confrontos entre as A nossa ditadura
aproxima-se,
fações republicanas e pelas reivindicações operárias. evidentemente, da ditadura
fascista no reforço da
Em 28 de maio de 1926, o golpe militar desencadeado a partir de Braga e chefiado autoridade, na guerra
pelo general Gomes da Costa, apoiado por Mendes Cabeçadas, chefe militar da revolta declarada a certos
princípios da democracia,
em Lisboa, toma o poder e instaura uma Ditadura Militar (1926-1933). no seu caráter
acentuadamente
O novo governo decreta a censura prévia à imprensa e a dissolução do Congresso da nacionalista, nas suas
República e substitui as vereações das câmara municipais por comissões administrativas. preocupações de ordem
social. (…) O Estado
São ainda extintas a Carbonária e a central sindical Confederação Geral do Trabalho. Português não pode fugir,
Oliveira Salazar (1889-1970), ex-deputado do Centro Católico e professor de Finanças e nem pensa fugir, a certas
limitações de ordem moral
Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra é nomeado Minis- que julga indispensável
tro das Finanças, em junho de 1926. Depois de se ter demitido, é de novo chamado para manter, como balizas, à
sua ação reformadora.
o governo em 1928. Salazar aplicou medidas de saneamento económico e financeiro
Salazar em entrevista a
(equilibrou o orçamento e estabilizou o escudo) e estruturou um Estado autoritário ins- António Ferro.
pirado nos modelos da época, em particular no fascismo italiano (Doc. 7).
? Questão
2.5.2. A progressiva adoção do modelo fascista italiano nas instituições e 1. Explicite as
no imaginário político características da ditadura
de Salazar enunciadas por
O regime do autodenominado Estado Novo (1933-1974), tendo como alicerces a União ele próprio.

Nacional (1930), o Ato Colonial de 1930, a Constituição de 1933 (cuja aprovação por ple-
biscito legitimou o regime) e o Estatuto do Trabalho Nacional (1933), definiu-se a si pró- Documento 8
prio do ponto de vista ideológico como:
Os valores do Estado Novo
– antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar: o exercício do poder político tinha Não discutimos Deus e a
como base o princípio do partido único, ou melhor, a recusa dos partidos políticos, virtude; não discutimos a
Pátria e a sua História; não
já que o único autorizado não se designava de partido mas de movimento unitário, discutimos a autoridade e
a União Nacional, um movimento que congregava as forças da direita, antimarxista o seu prestígio; não
discutimos a família e a
e conservadora, defensora dos valores tradicionais (Deus, Pátria, Família (Doc. 8), sua moral; não discutimos
autoridade, austeridade, moralidade); a glória do trabalho e o seu
dever.
– autoritário e dirigista: consagrou a supremacia do poder executivo e subalterniza- Salazar, discurso de 28 de
ção do legislativo; criou organizações milicianas para a defesa e propagação dos maio de 1936.

seus ideais (a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa, mecanismos de enqua-


? Questão
dramento ideológico); controlou o ensino e a cultura, através da Fundação Nacional
1. Enuncie, com recurso ao
documento, os valores
(9)
Recorde: as cisões no Partido Republicano, o descontentamento generalizado decorrente das reformas legislativas sociais e culturais
nos domínios social, laboral e religioso, da persistência da crise económico-financeira e da entrada do País na Pri- defendidos pelo Estado
meira Guerra Mundial. Novo.
182 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

para a Alegria no Trabalho (FNAT) e do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN);


promoveu o culto do poder pessoal do chefe carismático, providencial – “Salazar,
Salvador da Pátria” (Fig. 15) – apoiado no partido único; amordaçou a oposição
através da censura e da polícia política – PVDE/PIDE)(10); proibiu os sindicatos; criou
prisões especiais para os opositores políticos, em Caxias e Peniche, entre outras,
e campos de concentração, o Tarrafal, em Cabo Verde, e S. Nicolau, em Angola,
entre outros;
– nacionalista e corporativo(11): promoveu a exaltação nacionalista e patriótica,
enquadrou os indivíduos nas organizações consideradas como representativas
da Nação – famílias, freguesias, municípios, corporações morais, culturais e eco-
nómicas –, tendo como objetivo impor a supremacia do Estado, justificado com
a defesa do “interesse nacional” e do “bem comum”, evitando a indisciplina e
a luta de classes e adotando uma política económica fortemente protecionista e
autárcica;
Fig. 15. Cartaz de – colonialista: fundamentou a política ultramarina do Estado Novo na reafirmação da
propaganda do Estado
Novo: Salazar, Salvador da missão histórica civilizadora de Portugal(12).
Pátria.

2.5.3. Uma economia submetida aos imperativos políticos

A) Prioridade à estabilidade financeira

Desde o seu início, a base de sustentação da política económica do Estado Novo foi
a estabilidade financeira, sendo esta utilizada como uma referência de um governo aus-
tero e promotor do desenvolvimento económico do País.
O rigor orçamental das contas públicas trazia algumas vantagens à economia do Estado
Novo:
– a estabilização monetária, uma condição favorável ao investimento privado e à repa-
triação de capitais;
– taxas de juro mais baixas em consequência da diminuição dos riscos cambiais e do
aumento da oferta de capitais.

B) Defesa da ruralidade

O Estado Novo defendeu o valor da ruralidade, exaltando as virtudes da vida no


campo e a importância da agricultura. A “campanha do trigo”, em 1929, foi a primeira de
muitas outras lançadas com o intuito de, à semelhança de Mussolini em Itália, estimular
a produção agrícola e assegurar o maior grau possível de autossuficiência alimentar.
Na propaganda do regime, o mundo rural era apresentado como um espaço virtuoso,
uma espécie de refúgio ou paraíso terreno. Mas a realidade era bem diferente: a esma-
gadora maioria do campesinato debatia-se com condições de vida (pobreza, analfabe-
tismo) e de trabalho extremamente precárias.

(10)
A PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) foi criada em 1933, sendo substituída, em 1945, pela PIDE (Polí-
cia Internacional de Defesa do Estado). A GNR (Guarda Nacional Republicana) e a PSP (Polícia de Segurança Pública)
colaboravam com a polícia nas ações de repressão.
(11)
Segundo a Constituição de 1933, as corporações dividiam-se em: económicas e administrativas (Casas do Povo,
Casas dos Pescadores, Grémios…); morais e assistenciais (misericórdias…) e culturais (universidades, academias, …).
(12)
Para reforçar a ideia de Unidade Nacional e desarmar a condenação internacional do colonialismo a revisão cons-
titucional de 1951, alterou o termo “colónias” para “províncias”.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 183

C) Obras públicas e condicionamento industrial

O Estado Novo, à semelhança dos regimes ditatoriais italiano e alemão, promoveu um


vasto programa de obras públicas (Fig. 16), dando seguimento à Lei de Reconstituição
Económica (1930). Com o objetivo declarado da promoção do fomento económico do País
foi implementada uma política de edificação de infraestruturas com expressão em dife-
rentes setores de atividade:
– nos transportes: alargamento e recuperação da rede viária, sob a iniciativa da Junta
Autónoma de Estradas (1927); expansão e beneficiação das condições de funciona-
mento dos portos (Viana do Castelo, Leixões, Aveiro, Lisboa, Setúbal, Funchal ...) e
aeroportos;
– nas telecomunicações: modernização e expansão da rede de telégrafo e telefones; Fig. 16. Cartaz alusivo à
exposição comemorativa
– nos equipamentos sociais: investimentos em edifícios escolares (sobretudo escolas dos 15 anos de obras
primárias e liceus), em unidades de saúde e assistência (Hospital Júlio de Matos, públicas (1932-1947).

Instituto Português de Oncologia), no desporto (Estádio Nacional), na justiça (tribu-


nais e prisões);

A indústria era um setor com sérios atrasos estruturais, designadamente a fraca


dimensão das unidades fabris e os baixos níveis de produtividade (escassa mecanização,
baixíssimos níveis de qualificação da mão de obra...), a que se acrescia uma política cen-
tralista e dirigista, que acabava por condicionar o seu desenvolvimento. Este condicio-
namento industrial traduzia-se concretamente no seguinte: qualquer indústria com um
mínimo de importância económica, para se instalar ou reabrir, ampliar as suas instala-
ções, adquirir novas máquinas, mudar de localização ou ser vendida, carecia de uma
licença prévia por parte do Estado, cuja obtenção resultava de um complexo e moroso
processo burocrático.

Desta forma, a atividade industrial de iniciativa privada ficava submetida ao


controlo superior do Estado, cuja política privilegiava os interesses das empre-
sas monopolistas no mercado metropolitano e colonial (ex.: CUF), em particular
nos setores das indústrias química, cimentos, cerveja, tabaco e fósforos. Instru-
mento poderoso do dirigismo económico do Estado Novo, o condicionamento
industrial (tal como a organização corporativa) constituía, pois, um verdadeiro
obstáculo à modernização deste setor. Fig. 17. Cartaz de
propaganda, exaltando os
benefícios sociais do
2.5.4. A corporativização dos sindicatos Estado Corporativo.
Desta forma, o Estado
O Estado Novo era, como já estudámos, um Estado Corporativo, cuja organização pretendia controlar o
trabalho nacional (salários,
estava definida no Estatuto do Trabalho Nacional (1933), inspirado na Carta del Lavoro ita- preços, concorrência,
liana, que integrava as diferentes atividades profissionais (indústria, comércio e serviços) direitos individuais...),
impedir a luta de classes e
em sindicatos nacionais – e o patronato em grémios. Por sua vez, estes organismos eram as suas manifestações
(greves, lock-out), enfim,
enquadrados em Federações e Uniões. No topo da pirâmide corporativa viriam a consti-
preservar a estabilidade
tuir-se, já nos anos 50, os órgãos de cúpula: as Corporações e a Câmara Corporativa com social e o seu poder e
autoridade sobre o mundo
funções consultivas, integrada por representantes daquelas. laboral.
184 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Para além daquelas organizações profissionais, havia ainda as Casas do Povo, que
reuniam camponeses e os proprietários das terras, e as Casas dos Pescadores, que asso-
ciavam trabalhadores e empresários ligados à pesca.

2.5.5. A política colonial


A política colonial do Estado Novo integra-se no conceito e práticas do nacionalismo
agressivo, fundado em raízes históricas e associado ao imperialismo dos regimes fascis-
tas europeus. Como Mussolini ou Hitler, também Salazar exaltou o passado histórico
nacional (Época dos Descobrimentos), como fundamento e legitimação da manutenção
do Império Colonial Português.

Documento 9 O Ato Colonial de 1930 (Doc. 9) – uma espécie de constituição para as colónias, pos-
teriormente integrado na Constituição de 1933 –, a Carta Orgânica do Império Colonial Por-
TÍTULO I – Das garantias
gerais
tuguês e a Reforma Administrativa Ultramarina (1933) reforçaram a subordinação das coló-
Art. 2.o – É da essência nias aos interesses metropolitanos:
orgânica da Nação
Portuguesa desempenhar a – no âmbito político, a defesa do direito e da integridade do património colonial era
função histórica de possuir apresentada como condição essencial da salvaguarda da independência nacional e
e colonizar domínios
ultramarinos e de civilizar da afirmação do País no contexto internacional;
as populações indígenas (...)
– sob o ponto de vista económico, as colónias eram vistas essencialmente como mer-
Art. 3.o – Os domínios
ultramarinos de Portugal cados abastecedores de matérias-primas e consumidores dos produtos da metró-
denominam-se colónias e pole, bem como uma fonte de receitas alfandegárias para o Estado e de acumula-
constituem o Império
Colonial Português. (...) ção de capitais para grandes empresas nacionais;
TÍTULO II – Dos indígenas – relativamente às populações autóctones das colónias, recuperando o argumento
Art. 22.o - Nas colónias oitocentista para justificar o colonialismo europeu (o mito do “fardo do homem
atender-se-á ao estado de
evolução dos povos nativos branco”), competiria a Portugal a “missão histórica de colonizar e civilizar” as popu-
havendo estatutos lações, sendo-lhes atribuídos diferentes estatutos conforme o grau de “civilização”:
especiais dos indígenas
que estabeleçam para aos europeizados e cristianizados era atribuído o estatuto de assimilados, o que
estes (...) regimes jurídicos lhes garantia direitos de cidadania portuguesa; os africanos e timorenses, que não
de contemporização com
os seus usos e costumes entravam nesta categoria, eram catalogados como indígenas.
(...).
TÍTULO IV – Das garantias Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), num contexto internacional de forte
económicas e financeiras oposição ao colonialismo, a política colonial portuguesa e os seus efeitos, designada-
Art. 47.o - A autonomia
mente a situação de servidão da maioria dos Africanos e de estagnação económica das
financeira das colónias fica
sujeita às restrições (...) colónias, foi objeto de duras críticas por parte de potências e organizações internacio-
que sejam indispensáveis
nais. Para aliviar a pressão internacional, o Estado Novo introduziria algumas alterações –
(...) pelos perigos que
estas possam envolver mais formais do que substanciais – à sua política colonial, no início dos anos 50, como
para a metrópole. oportunamente se verá.
Ato Colonial, 1930.

2.5.6. O projeto cultural do regime


? Questão Consciente da importância da cultura enquanto veículo privilegiado para conquistar a
1. Explicite o fundamento adesão das massas a determinados valores e padrões de vida e mantê-las permanentemente
histórico referido no mobilizadas para o apoio às suas causas, o Estado Novo apostou largamente na orientação
documento para justificar a
colonização portuguesa. ideológica do ensino e no enquadramento ideológico da cultura.
Unidade 2 - O agudizar das tensões políticas e sociais a partir dos anos 30 185

Estas podem ser consideradas as linhas-mestras de um projeto cultural, que,


tal como nos demais domínios, tinha de se subordinar à orientação ideológica do
regime. A criação do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), em 1933, cuja
direção foi entregue ao jornalista e escritor António Ferro (1895-1956), insere-se
dentro deste projeto. O SPN apoiou e controlou as artes, os espetáculos e todas
as formas de expressão através da instituição de prémios, concessão de patrocí-
nios, realização de exposições, criação do Fundo do Cinema Nacional, organiza-
ção de bibliotecas ambulantes e promoção de eventos comemorativos, como a
Exposição do Mundo Português (1940), em Lisboa.
Fig. 18. Escolas primárias
Em relação ao ensino, o Estado Novo nunca reconheceu como prioritária uma política oficiais, 1926-1954/1955.
A. Oliveira Marques,
de educação de massas, apesar das afirmações em sentido contrário da propaganda polí- ob. cit., p. 332.
tica. A taxa de analfabetismo manteve-se muito elevada (67% em 1930 e 45% em 1950)
e evoluiu muito lentamente. É verdade que se verificou um aumento da construção de
escolas primárias (Fig. 18). No entanto, este facto não foi acompanhado de uma evolução
na qualidade da formação dos professores e dos métodos pedagógicos. E nem as “cam- Cronologia
panhas de educação de adultos” levadas a cabo na década de 1950 e os esforços para
1926
aplicar a escolaridade obrigatória, conseguiram retirar Portugal da cauda da Europa em Golpe militar do general
matéria de alfabetização. Gomes da Costa:
instauração da Ditadura
O ensino secundário e técnico mereceu uma maior atenção do regime. Criaram-se Militar (1926-33).
liceus e escolas técnicas um pouco por todo o País, elevando deste modo a população 1928
Óscar Carmona eleito
escolar. Melhoraram as estatísticas, mas não melhorou a qualidade de ensino, submetido Presidente da República.
a uma pedagogia de inculcação ideológica, ao mesmo tempo formativa e repressiva. Os Salazar é chamado de novo
para Ministro das Finanças.
manuais eram “livros únicos”, oficialmente aprovados pelo Ministério da Educação Nacio-
1930
nal e impostos a todas as escolas do País. Fundação da União
Nacional.
Ao nível do ensino superior, o controlo do Estado era ainda mais apertado. A aplica-
1932
ção de critérios políticos na seleção dos professores e o centralismo aplicado na direção Salazar é nomeado
e gestão das universidades condicionaram fortemente a qualidade do ensino. Ao mesmo Presidente do Conselho.
1933
tempo, as organizações estudantis foram objeto de uma vigilância apertada ou mesmo
Aprovação de uma nova
extintas. Algo de semelhante se passou com algumas instituições académicas que foram Constituição e início do
encerradas, como a Faculdade de Letras do Porto e a Escola de Farmácia de Coimbra, em Estado Novo.
Reeleição de Óscar
1928, e a Faculdade Técnica do Porto, em 1933. Carmona.
Promulgação do Estatuto
No domínio da ciência, o Estado Novo criou vários laboratórios e centros de investi-
do Trabalho Nacional e
gação nos campos da Medicina e da Engenharia. O Laboratório Nacional de Engenharia criação da Câmara
Corporativa.
Civil, por exemplo, criado em 1946, adquiriu rapidamente projeção internacional. Mas, em
Criação do Secretariado de
termos globais, o desenvolvimento geral da cultura e da investigação científica foi seria- Propaganda Nacional e da
mente prejudicado pelo controlo sistemático exercido pelos organismos oficiais (Secreta- PVDE.

riado de Propaganda Nacional e censura) e pela profunda desconfiança do regime relati- 1936
Criação da Legião
vamente aos meios intelectuais e académicos. Portuguesa e da Mocidade
Portuguesa.
Como resultado, a elite cultural foi-se restringindo-se e afastando progressivamente 1940
da massa da população e da realidade do País. Exposição do Mundo
Português.
186 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Em Síntese

• Quando a reconversão e a “prosperidade" pareciam asseguradas, o crash bolsista de Wall


Street em outubro de 1929 faz mergulhar a economia norte-americana e mundial na maior
crise da história do capitalismo. No centro das decisões económicas, os EUA arrastam para
a depressão os países produtores de matérias-primas e os dependentes dos créditos ameri-
canos.

• Perturbada e decadente, a velha Europa questionou o liberalismo político e a democracia par-


lamentar. As massas populares, afetadas pelo desemprego e seduzidas pelo exemplo da
revolução soviética exigiram a intervenção do Estado. As classes médias, alicerce do libera-
lismo, sentiram-se traídas pelas concessões sociais aos revolucionários e perderam toda
a confiança no Estado liberal. Tornaram-se, pois, presa fácil da direita conservadora e fascista
que defendia a ordem e a autoridade contra a desordem social e a ameaça bolchevista.

• Nos países de tradição liberal e democrática (Inglaterra, França…), os acordos entre forças de
diferentes quadrantes ideológicos – governos de Frente Popular – e a aplicação de refor-
mas sociais e económicas permitiram aos regimes democráticos sobreviver à violenta ins-
tabilidade sociopolítica.

• Nos países onde não existia essa tradição, os regimes demoliberais tornaram-se mais vul-
neráveis à radicalização política, ideológica e nacionalista e não sobreviveram. Na Itália,
Mussolini impôs a ditadura fascista (1925). Na Alemanha, Hitler, líder do Partido Nacional-
-Socialista (NSDAP), apelou ao orgulho alemão ferido e agitou a ameaça do comunismo
para conquistar o poder e impor a ditadura nazi (1933).

• Oposta à tradicional noção de cultura, concebida como um fenómeno necessariamente eli-


tista, baseada na escrita como meio de expressão e difusão e confinada aos estratos
sociais superiores, a cultura de massas afirma-se, pelo contrário, como uma cultura pen-
sada e elaborada para as grandes massas humanas, heterogénea, efémera e superficial
nos seus conteúdos e formas. Estas características e o facto de ser difundida pelos media
(imprensa escrita, rádio, cinema e televisão) favoreceram a homogeneização e estandardi-
zação dos comportamentos e padrões culturais pela inculcação de valores e hábitos sociais
comuns habilmente explorados pelos estados totalitários para informar e/ou propagandear
as virtudes dos respetivos regimes e proporcionaram divertimento, evasão do quotidiano e
novas solidariedades.

• Em Portugal, a I República (1910-1926), democrática e laica, não sobreviveu às dificuldades


económicas e à prolongada instabilidade política e social; a queda do regime republicano, em
28 de maio de 1926, abriu o caminho à Ditadura Militar (1926-1933) e à Ditadura Salazarista
(1933-1974).

• A queda da I República e a emergência do Estado Novo, um regime autoritário e conserva-


dor alicerçado na União Nacional (partido único), no Ato Colonial de 1930, na Constituição de
1933 e no Estatuto do Trabalho Nacional (1933), que estruturam um regime antiliberal, anti-
democrático e antiparlamentar, corporativo, nacionalista e colonialista.
Unidade 3 - A degradação do ambiente internacional 187

Unidade 3 A degradação do ambiente internacional


SUMÁRIO

3.1. A irradiação do fascismo no mundo


3.2. Reações aos totalitarismos fascistas

APRENDIZAGENS RELEVANTES

– Explicar a expansão do fascismo no mundo entre as duas guerras mundiais.


– Compreender a eclosão da Segunda Guerra Mundial como uma resposta das democracias
às agressões do imperialismo do eixo nazi-fascista.

3.1. A irradiação do fascismo no mundo


A emergência e afirmação dos fascismos no período entre as duas guerras evoluiu em
paralelo, como já foi estudado, com a crise dos regimes demoliberais e o aproveitamento
político pelas forças conservadoras do descontentamento social decorrente de uma con-
juntura caracterizada por:
– crises económicas e sociais (inflação, carestia de vida, desemprego, miséria...) do
pós-guerra e a Grande Depressão dos anos 30;
– frustrações provocadas pela derrota na guerra ou por reivindicações não satisfeitas;
– tradição política autoritária e nacionalista com profundas raízes históricas em alguns
países;
– temor por parte das classes burguesas da anarquia social e do socialismo-revolu-
cionário.

Na Europa e fora dela, a partir dos anos 20, a ideologia fascista foi conquistando
adeptos e tomou o poder em múltiplos estados:
– em Itália, a crise do pós-guerra abriu o caminho do poder às “legiões” fascistas lide-
radas por Mussolini (Marcha sobre Roma, em outubro de 1922);
– em Portugal, o levantamento militar de 28 de maio de 1926 comandado pelo Gene-
ral Gomes da Costa levou ao regime de Ditadura Militar (1926-1933), que antecedeu
o Estado Novo (1933-1974);
– na Alemanha, a República de Weimar cedeu o lugar, em 1933, à ditadura de Hitler;
– nas Repúblicas Bálticas, Polónia, Hungria, Bulgária, Roménia, Jugoslávia,
Albânia, Grécia e Turquia também triunfaram regimes ditatoriais;
– na Áustria, o partido nazi reclamou a integração do país na Alemanha, o velho
sonho do Anschluss, a reunificação, concretizado por Hitler, em 1938. (Fig. 1).
– em Espanha, o general, Franco, depois da vitória na Guerra Civil (1936-1939)
das forças nacionalistas e conservadoras, instaurou uma ditadura fascista.

Fig. 1. Hitler ovacionado em


Na América Latina – Brasil, Argentina e Chile – triunfaram regimes políticos que tinham
Viena de Áustria (1938).
em comum o autoritarismo e a hostilidade às instituições políticas liberais.

Na Ásia, o imperador Hirohito (1901-1989) põe fim ao processo de liberalização e oci-


dentalização do Japão da Era Meiji e impõe um regime ditatorial, militarista e imperialista.
188 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Cronologia
3.2. Reações aos totalitarismos fascistas
1931
Invasão da Manchúria pelo
Japão.
3.2.1. As hesitações face ao imperialismo e à Guerra Civil de Espanha
1933
Aos fatores explicativos da expansão do fascismo no mundo deve-se acrescentar um
Abandono do Japão da SDN.
1934 outro igualmente determinante: as debilidades e hesitações demonstradas pela SDN e
Pacto germano-polaco; pelo regimes democráticos face aos avanços imperialistas dos regimes fascistas.
primeira tentativa alemã
de anexar a Áustria. A inoperância da SDN, a incapacidade e a passividade das democracias europeias face
1935
às agressões imperialistas dos regimes fascistas tiveram na Guerra Civil de Espanha uma
Reintegração do Sarre na
Alemanha. Invasão da demonstração exemplar.
Etiópia pela Itália.
1936 Em 1936, as forças conservadoras, compostas pelos grandes proprietários rurais, cató-
Início da Guerra Civil de licos, monárquicos e forças armadas comandadas pelo general Francisco Franco (1892-
Espanha.
-1975), sublevaram-se contra o governo democrático saído das eleições que deram a vitó-
1938
Anexação pela Alemanha ria às forças de esquerda coligadas na Frente Popular. A Guerra Civil (1936-1939) que se
da Áustria (Anschluss). lhe seguiu opôs os nacionalistas (ou franquistas) aos republicanos.
Acordos de Munique:
França e Inglaterra Mas este conflito não se circunscreveu a Espanha. Razões de natureza ideológica e
consentem à Alemanha
a ocupação dos Sudetas estratégica levaram Hitler e Mussolini a apoiar económica e militarmente os franquistas,
(Checoslováquia). enquanto o lado republicano tinha o apoio limitado da URSS e das Brigadas Internacio-
1939
nais, constituídas por voluntários simpatizantes da esquerda europeia mas sem experiên-
Ocupação pela Alemanha
da Boémia e da Morávia cia militar.
(Checoslováquia). Anexação
pela Itália da Albânia. Itália Enquanto os fascismos se uniam, as democracias francesa e britânica mantiveram-se
e Alemanha assinam o
numa posição de não-intervenção, de neutralidade passiva a qualquer preço. Alemães e
Pacto de Aço. Pacto de não
agressão germano- italianos puderam, assim, não só testar armas e estratégias num teatro de guerra real
-soviético. Invasão da como pôr à prova, mais uma vez, a passividade e a falta de solidariedade entre os regi-
Polónia. Início da Segunda
Guerra Mundial. mes democráticos e reforçar a sua confiança para desencadear a Segunda Guerra Mundial.

3.2.2. A mundialização do conflito


A Segunda Guerra Mundial ocorreu no contexto histórico já descrito, no qual assumem
uma responsabilidade as repetidas agressões de Hitler nos anos de 1938 e 1939.

Entre setembro de 1939 e dezembro de 1941, o domínio


das forças do Eixo Berlim-Roma-Tóquio estende-se a uma
boa parte do Mundo. A estratégia da guerra-relâmpago
(blitzkrieg) e o poderio dos recursos militares mobilizados
– as divisões de blindados (Panzers) e os esquadrões da
força aérea alemã (Luftwaffe) permitiram a Hitler ocupar
com rapidez e eficácia uma grande parte da Europa. Depois
da Polónia (1939), seguiu-se a Noruega, a Holanda, a Bél-
gica e a França (Fig. 2) – dividida numa zona efetivamente
ocupada e numa outra zona do governo de Vichy sob a
Fig. 2 Tropas alemães
desfilam nos Campos direção do General Pétain – e as batalhas aéreas contra Inglaterra e a invasão da Jugos-
Elísios (Paris), em agosto lávia e da Grécia (1940-1941). Em junho de 1941, Hitler ordenou a invasão da vastíssima
de 1940.
URSS. A Alemanha passou a combater em inúmeras frentes: dos céus ingleses aos ári-
dos desertos líbios (Norte de África), das profundezas submarinas no frio Atlântico aos
Unidade 3 - A degradação do ambiente internacional 189

gelados bosques russos. No Pacífico, o seu aliado japonês controlava vastas áreas terri-
toriais e marítimas.

O ataque à URSS por Hitler havia já alargado em grande escala o teatro da guerra, a
entrada em cena, no final de 1941, dos EUA, na sequência do ataque japonês à frota ame-
ricana em Pearl Harbor, sem prévia declaração de guerra, dá ao conflito um caráter mun-
dial. A partir de então, combate-se na Europa, em África, na Ásia e na Oceânia; no oceano
Atlântico como nos oceanos Índico e Pacífico.

A partir do Verão de 1942, o contra-ataque vitorioso das forças aliadas invertem a ten-
dência da guerra: no Pacífico, a vitória nas batalhas de Midway e de Guadalcanal (1942)
dá aos norte-americanos o controlo desta importante área estratégica; no Norte de África,
o domínio dos alemães começa a retroceder após a vitória do exército britânico coman-
dado por Montgomery em El Alamein (1942); na Europa, o sucesso na batalha de Estali-
negrado (1943) permite aos soviéticos iniciar o seu avanço para ocidente; no final do
verão de 1943, forças britânicas e americanas desembarcam na Sicília.

Os dois últimos anos da guerra, 1943-1945, acentuaram a viragem anteriormente ope-


rada no teatro de guerra a favor dos Aliados. O grande desembarque aliado na Norman-
dia (junho de 1944) e a marcha irresistível dos soviéticos até Berlim põem fim ao III Reich
(a Alemanha capitula sem condições a 8 de maio de 1945) e à ameaça nazi-fascista. No Pací-
fico, a guerra só termina depois do bombardeamento atómico das cidades de Hiroxima e
Fig. 3. Bomba atómica
Nagasáqui (Fig. 3) e da capitulação do Japão a 2 de setembro de 1945.
sobre Hiroxima a 5 de
agosto de 1945: “Meu Deus,
Terminava assim o conflito mais devastador da história da humanidade. Cerca de 60
que fizemos nós?”,
milhões de mortos; migrações massivas de populações provocadas pela guerra e pelas interrogação de R. Lewis,
copiloto do Enola Gay,
alterações de fronteiras; queda brutal da produção industrial europeia; destruição de
depois do lançamento da
infraestruturas e equipamentos (vias e meios de comunicação, indústrias, terrenos agrí- bomba que levou o Japão à
colas…). capitulação sem condições.

No plano político, as alterações mais significativas são: a queda dos regimes totalitá-
rios, a divisão da Alemanha em quatro zonas sob o controlo das potências vencedoras
(EUA, URSS, Reino Unido e França); a anexação pela URSS de territórios da Polónia, Fin-
lândia e Roménia e os Estados Bálticos; a perda pelo Japão das suas conquistas na Ásia
e Pacífico; afirmação da preponderância dos EUA e da URSS nas relações internacionais.
Separadas por irredutíveis diferenças ideológicas e políticas, estas duas superpotências
que na Segunda Guerra Mundial lutaram lado a lado contra o inimigo comum – o nazi-
fascismo – irão, nas décadas seguintes, envolver-se num conflito de características dife-
rentes pela disputa da hegemonia à escala mundial.
190 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Questões Para Exame


1

Documento 1 | O novo mapa político da Europa em 1920

NORUEGA FINLåNDIA

SUƒCIA
ESTîNIA

LETîNIA
Mar DINAMARCA
IRLANDA REINO do LITUåNIA
Norte RòSSIA
UNIDO
Danzig
Londres
HOLANDA Berlim Vars—via
BƒLGICA ALEMANHA POLîNIA

LUX. SARRE Praga


Paris
CHECOSLOVçQUIA
Estrasburgo Viena
FRAN‚A Budapeste
SUê‚A çUSTRIA
HUNGRIA
ROMƒNIA
Belgrado Bucareste

JUGOSLçVIA
ESPANHA ITçLIA BULGçRIA
C—rsega S—fia
Roma
ALBåNIA
Sardenha TURQUIA
Mar Mediterr‰neo GRƒCIA
Esmirna

Sic’lia Atenas

0 400 km

1789-1970, l’Époque Contemporaine, Paris, Hachette, p. 295.

Documento 2 | Excerto de “Teses de Abril” de Lenine

(...)

2. O que a Revolução Russa tem de particular na atualidade é a transição da primeira etapa da revo-
lução, que deu o poder à burguesia devido ao nível insuficiente de consciência e organização do proleta-
riado, à segunda etapa, que deve transferir o poder para as mãos do proletariado e do campesinato. (…)

Lenine, “Teses de Abril”, Pravda, 7 de abril de 1917.

Documento 3 | Piet Mondrian, Composição com Vermelho, Amarelo e Azul (1939-1942)


Questões Para Exame 191

1.1. Identifique, com recurso ao documento 1, as principais alterações no mapa político da Europa no
primeiro pós-guerra.

1.2. Explicite o significado da afirmação de Lenine (documento 2).

1.3. Esclareça, com recurso ao documento 3, o sentido inovador do Abstracionismo no âmbito dos movi-
mentos de vanguarda da primeira metade do século XX.

Documento 4 | O regime republicano (1912)

Uma das grandes virtudes da República, exercida já antes da sua proclamação pelos que a defendiam
e propagavam, foi o regresso do país à vida política, no bom sentido da palavra. [...]
Como? Pela vida democrática, isto é, pela organização das forças republicanas por toda a parte. A nossa
função é agora mais grave e difícil do que nunca. Só nós podemos servir de garantia ao povo, que fez a
República sobre a base de um programa [...]. Só nós podemos defender dos múltiplos ataques da reação –
a de dentro e a de fora de fronteiras – o esforço já realizado e as conquistas já feitas: a República como
forma política definitiva do governo do Povo e não como disfarce de governo de uma classe ou de uma
casta, ainda que seja a dos políticos e as leis republicanas que lhe deram a feição própria no campo das
ideias essenciais ao progresso humano.
Falta, porém, realizar uma parte muito importante do programa partidário: resolver os grandes problemas
sociais por meio de fórmulas práticas e de rápida aplicação, em harmonia com as exigências e recursos do
país. [...] dois anos de República – triste é dizê-lo! – nós não realizámos ainda todo esse programa. [...]
Urge, pois, restabelecer as nossas finanças, criando receitas e fazendo economias, acabando com orga-
nismos parasitários que estão vivendo uma vida rica dentro do Estado pobre.
Ao mesmo tempo, é preciso cuidar da defesa nacional, marítima e terrestre, com os olhos postos no
que vai sucedendo pela casa alheia, e sempre lembrados da má vontade que despertou na Europa monár-
quica a nossa ousadia de termos proclamado e realizado uma República anticlerical e avançada! Cuidemos
também, e desde já, da instrução e da educação do povo. [...]
Urge também sanear a administração pública, modificar os processos de administração local. Não é ape-
nas com homens honrados que se governa: é preciso preparar as instituições locais para a vida nova e
orientar num sentido progressivo a administração superior, tanto continental como ultramarina [...].
É preciso também não fazer política partidária na administração local e encontrar em severas penalida-
des da lei eleitoral um modo prático, à inglesa, de acabar por completo com o cacique.
Tal é o quadro das nossas responsabilidades. Elas são graves, mas são também honrosas.

Afonso Costa,
“Discurso proferido em Santarém a 10 de novembro de 1912”, in O Mundo, de 13 de novembro de 1912.

2.1. Analise a ação governativa no período da Primeira República Portuguesa (1910-1926).

A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:

– a amplitude das reformas realizadas;

– os problemas económico-financeiros e político-sociais.

Deve integrar na resposta, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis no documento.
192 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Documento 5 | O papel do Estado na vida económica (1936)

Penso, portanto, que uma socialização bastante ampla do investimento será o único meio de assegu-
rar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajus-
tes e fórmulas que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada (...).
Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. As indispensáveis medi-
das de socialização podem, aliás, ser introduzidas por etapas, sem afetar as tradições gerais da sociedade.

J. Keynes, Théorie Générale, Paris, Bibliothèque Payot, 1977.

Documento 6 | Economia e sociedade na URSS (1928-1940)

A. Reis (dir.), História do século XX, Lisboa, Publicações Alfa,


1995 (adaptado).

Documento 7 | Imagem do filme Tempos Modernos (1936), de Charlie Chaplin


Questões Para Exame 193

3.1. Explicite o contexto socioeconómico e político em que se enquadram as soluções defendidas pelo autor
do documento 5.

3.2. Explique, com base nos dados do documento 6, a estratégia do regime soviético, nos anos 30 do
século XX.

3.3. Refira, com recurso à interpretação do documento 7, as transformações socioculturais decorrentes da


emergência dos movimentos de massas, ocorridas na primeira metade do século XX.

Documento 8 | Discurso de Salazar aos corpos diretivos da União Nacional (1932)

A Ditadura surgiu contra a desordem nacional. Era um dos expoentes dela o parlamentarismo e a des-
regrada vida partidária: a nossa realização da democracia foi, sem contestação, lamentável. A culpa era ou
do regime parlamentar ou dos seus servidores: quanto mais absolvermos estes, mais culpas encontrare-
mos naquele [...].
O processo da democracia parlamentarista está feito; a sua crise é universal; supõem ainda alguns que
esta é passageira e provocada pelas dificuldades igualmente transitórias do presente momento; os res-
tantes creem que findou para sempre a sua época. A Ditadura Nacional, precursora em mais de um ponto
de um largo movimento de renovação política, declarou dissolvidos os partidos; estavam porém neles,
pode-se dizer, as maiores forças políticas da Nação. Alguns homens públicos tiveram a intuição do
momento e vieram colaborar com a Ditadura; muitos alhearam-se, [...] muitos seguiram clara ou encapo-
tadamente o caminho das conspirações e das revoltas e têm sido sucessivamente reduzidos pelo Exército
à impotência. [...]
Nós temos uma doutrina e somos uma força. Como força, compete-nos governar: temos o mandato de
uma revolução triunfante, sem oposições e com a consagração do País; como adeptos de uma doutrina,
importa-nos ser intransigentes na defesa e na realização dos princípios que a constituem. [...]
Alguns homens dos antigos partidos supõem-se ligados por uma disciplina que, no estado atual da polí-
tica portuguesa, devo dizer, já nada significa. Independentemente disso, eles não sabem se devem traba-
lhar com a Ditadura e ingressar na União Nacional: este problema, porém, não pode ser resolvido por nós.
A União Nacional vai ser uma espécie de padrão por onde se hajam de aferir a inteligência e o patriotismo
dos homens.

Oliveira Salazar, Discursos (1928-34), vol. 1, Coimbra, Coimbra Editora, s.d.

4.1. Analise as afirmações de Salazar no quadro da oposição do novo regime à República parlamentar.

A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:

– identificação das críticas de Salazar ao regime republicano;

– as características do Estado Novo.

Deve integrar na resposta, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis no documento.
194 Módulo 7 - Crises, embates ideológicos e mutações culturais na primeira metade do século XX

Documento 9 | Cartaz denunciando a ideologia franquista (1937)

Documento 10 | Pacto germano-soviético

O governo do Reich alemão e o governo da URSS, guiados pelo desejo de fortalecer a causa da paz
entre a Alemanha e a URSS, e partindo das disposições de base do tratado de neutralidade entre a Ale-
manha e a URSS em abril de 1926, chegaram ao seguinte acordo:

Art.o 1.o – As partes contratantes obrigam-se a abster-se de qualquer ato de violência e de qualquer
manobra agressiva e de qualquer ataque de uma contra a outra, tanto isoladamente como em coligação
com outras potências.

Art.o 2.o – No caso de uma das partes contratantes ser objeto de agressões militares por parte de uma
terceira potência, a outra compromete-se a não prestar apoio de nenhum tipo a esta terceira potência. (...)

Moscovo, 23 de agosto de 1939.

J. Lupianez e outro, Historia del Mundo Contemporáneo, Granada, Port-Royal Ediciones, 2000, p. 257.

5.1. Explicite a mensagem do cartaz presente no documento 9.

5.2. Refira os interesses da Alemanha e da URSS na celebração do Pacto germano-soviético (documento 10).
Questões Para Exame 195

Documento 11 | A Europa em 1939

março março
1936 1939

13 março 1938

abril
1939

março
Franco-Inglesa 1939

M. Nouschi, Breve Atlas Histórico do século XX, Instituto Piaget, 1997.

6.1. Desenvolva o seguinte tema: agravamento das tensões na Europa no final da década de 30 do século
XX.

A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:

– a emergência e irradiação do fascismo;

– as respostas dos Aliados contra o eixo nazi-fascista.

Deve integrar na resposta, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis no documento.
196 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

12.° Ano Módulo 8


Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da
década de 80 – opções internas e contexto internacional
1. Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico
2. Portugal: do autoritarismo à democracia
3. As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX

Contextualização
A Segunda Guerra Mundial determinou a vitória dos Aliados sobre os totalitarismos nazi-fas-
cistas, um novo mapa político europeu, o estabelecimento de dois sistemas ideológica e
politicamente antagónicos que, durante mais de quatro décadas, bipolarizaram o Mundo e
alimentaram um clima de “Guerra Fria” nas relações internacionais.
Em Portugal, apesar da pressão interna e externa, o regime autoritário do Estado Novo reprime
as aspirações de liberdade e de democracia pluralista do povo português e a vontade de
emancipação dos territórios coloniais. A resistência interna e a Guerra Colonial desgastaram
o regime, derrubado pela Revolução de 25 de Abril de 1974.
No período subsequente à Segunda Guerra Mundial a aceleração do progresso científico e
técnico traz respostas cada vez mais eficazes aos grandes problemas relativos ao Universo,
à Vida e ao Homem, induzindo profundas transformações nos comportamentos e na cultura.

Unidade 1 Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico


SUMÁRIO
1.1. A reconstrução do pós-guerra
1.2. O tempo da Guerra Fria – a consolidação de um mundo bipolar*
1.3. A afirmação de novas potências
1.4. O termo da prosperidade económica: origens e efeitos

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Compreender que, após a Segunda Guerra Mundial, a vida internacional foi determinada
pelo confronto entre as duas superpotências defensoras de ideologias e de modelos polí-
tico-económicos antagónicos**.
– Caracterizar as políticas económico-sociais das democracias ocidentais, no segundo pós-
-guerra**.
– Relacionar a aceleração dos movimentos independentistas com o direito internacional
estabelecido após a Segunda Guerra Mundial e com a luta das superpotências no contexto
da Guerra Fria.
- Identificar os condicionalismos que concorreram para o enfraquecimento do bipolarismo
na década de 70.

CONCEITOS/NOÇÕES
Descolonização**; Guerra Fria**; Social-democracia**; Democracia cristã**; Sociedade de consumo;
Democracia popular; Maoísmo; Movimento nacionalista; Terceiro Mundo; Neocolonialismo
* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 197

1.1. A reconstrução do pós-guerra

A) A definição de áreas de influência

O conflito mundial não tinha ainda terminado e os dirigentes políticos dos Aliados – Cronologia
ou mais precisamente, das três grandes potências vencedoras, EUA, URSS e Reino Unido –
1943
reuniram-se em várias conferências para concertar a nova ordem internacional do pós-guerra.
Janeiro – Conferência de
Casablanca.
A primeira destas reuniões interaliadas ocorreu em Casablanca (Marrocos), em 1943.
Outubro – Conferência de
Seguiu-se-lhe a Conferência de Moscovo ainda nesse ano, onde começou a ser discutida Moscovo.
a partilha de interesses na Europa do pós-guerra. Novembro – Conferência de
Teerão.
A Conferência de Teerão(1) em novembro-dezembro de 1943, que juntou pela primeira
1945
vez os três grandes líderes – Roosevelt, Estaline e Churchill –, mostrou a superioridade Fevereiro – Conferência de
de soviéticos e norte-americanos relativamente às potências europeias, já que a França Ialta.
Julho – Conferência de
foi esquecida e o Reino Unido subalternizado, apesar da presença de Churchill.
Potsdam.
A conferência mais importante para o reordenamento do mundo do pós-guerra reali-
zou-se em Ialta (Fig. 1), na península da Crimeia (URSS), em fevereiro de 1945, quando
a vitória dos Aliados era já tida como certa.

Na origem da sua convocação estiveram os seguintes objetivos:

– a concertação sobre o reordenamento do mundo do pós-guerra: configuração da


nova ordem mundial após a derrota do fascismo de Mussolini e do nacional-socia-
lismo de Hitler; Fig. 1. Churchill, Roosevelt e
– a procura de consensos sobre os novos problemas, concretamente o desenho do Estaline, reunidos na
histórica conferência
novo mapa político da Europa, o desmantelamento do nazismo, a tensão crescente realizada em Ialta
e latente entre EUA e URSS. (Crimeia), em fevereiro de
1945.

Os principais problemas debatidos em Itália:


– a redefinição das fronteiras da Polónia (Fig. 2): americanos e britânicos aceitam a
deslocação da fronteira leste para oeste, tal como era exigido por Estaline;
– a ocupação da Alemanha e da sua capital, Berlim, com o objetivo de desmantelar
o nazismo, e a sua administração conjunta pelos comandantes militares das três
potências ali representadas (EUA, Reino Unido e URSS), a que se juntaria a França,
por sugestão de Churchill, para não ficar só frente a Estaline, após a retirada ame-
ricana da Europa;
Fig. 2. A nova Polónia.
– a aplicação dos princípios da Carta do Atlântico (1941) e da Declaração das Nações A Polónia era vital para a
Unidas (1942). URSS por ser o caminho
tradicional das invasões e,
em sentido inverso,
Ialta representou, pois, um passo importante na configuração da nova ordem interna- o caminho de comunicação
com a Alemanha ocupada.
cional. E, de facto, Ialta teria duas consequências fundamentais concretizadas ainda P. Alonso et al., Historia del
nesse ano: a criação da ONU e a reunião de Potsdam. Mundo Contemporaneo,
Barcelona, 2004, p. 11.

(1)
Em Teerão (Irão) começou a ser preparado o desembarque aliado na Normandia (Dia D), a partilha da Alemanha e
a redefinição das fronteiras da Polónia.
198 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

A ONU foi criada em abril de 1945 (Conferência de São Francisco, na Califórnia) e em


julho-agosto, já depois da capitulação da Alemanha, realizou-se uma nova conferência, a
Conferência de Potsdam (perto de Berlim), onde foram ratificadas as decisões de Ialta e
tomadas outras medidas relativas à Alemanha vencida:

* Desnazificação:
– desnazificação*, desmilitarização e desarmamento;
desmantelamento das
estruturas e saneamento – julgamento dos criminosos de guerra por um tribunal formado pelas quatro potên-
dos quadros do nazismo.
cias aliadas;
– pagamento de indemnizações;
– definição do estatuto político da Alemanha durante o período de controlo militar
aliado: demarcação das zonas de ocupação pelas forças armadas americanas, sovié-
ticas, britânicas e francesas e definição de um estatuto especial para a cidade de
Berlim.

As conferências de Ialta e de Potsdam foram assim determinantes na definição do


novo mapa político europeu, bem como do novo ordenamento geopolítico internacional
que se manteve até finais dos anos 89/90 do século XX marcado pela emergência de duas
novas grandes potências, os EUA e a URSS. Os norte-americanos abandonam o isolacio-
nismo do período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e afirmam-se como potência
universal; os soviéticos conseguem importantes ganhos territoriais no continente euro-
peu e pretendem expandir o seu modelo de organização de sociedade, o socialismo, a
outros países.

Mas a Segunda Guerra Mundial não fez apenas emergir duas potências face a uma
Europa arruinada e remetida a um papel secundário no novo sistema internacional; fez
nascer também duas zonas ou áreas de influência:

– a área de influência norte-americana que compreendia os regimes de democracia


liberal e as economias de mercado, capitalistas, do Ocidente (Europa Ocidental,
Grécia e Turquia, Médio Oriente, Pacífico e Japão);
– a área de influência soviética que integrava as democracias populares do “Leste”
(Europa Central e Oriental).
Cronologia

1941 A primeira tinha os EUA como parceiro; a segunda estava associada à URSS. A socie-
Agosto – Carta do
Atlântico. dade internacional bipolariza-se.
1942
Janeiro – Declaração das B) A Organização das Nações Unidas (ONU)
Nações Unidas.
Apesar do fracasso da Sociedade das Nações (SDN) que não foi capaz de intervir nos
1945
Abril – Conferência de São principais conflitos do período entre as duas guerras (Guerra Civil de Espanha, invasão
Francisco (Califórnia):
elaboração da Carta das
da Abissínia pela Itália fascista, conflito sino-japonês, etc.) nem de evitar a Segunda
Nações Unidas. Guerra Mundial, a ideia de criar uma organização de nações de caráter universal foi reto-
Junho – Assinatura da
mada ainda em plena guerra na Carta do Atlântico (1941), subscrita pelo Primeiro-Ministro
Carta das Nações Unidas:
criação da ONU. britânico Churchill e pelo Presidente dos EUA Roosevelt.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 199

Algum tempo depois, em 1 de janeiro de 1942, era publicada a Declaração das Nações Documento 1
Unidas, onde vinte e seis estados proclamavam a sua adesão aos princípios da Carta do
Art.º 1.º - Os fins das Nações
Atlântico, transformada deste modo no texto inspirador do novo ordenamento da vida Unidas são:
internacional. 1. Manter a paz e a
segurança internacionais
Depois de discutido o seu projeto na Conferência de Dumbarton Oaks (EUA), em 1944, (…);
2. Desenvolver relações
os representantes de 51 países assinaram em São Francisco, a 26 de junho de 1945, a amistosas entre as nações
Carta das Nações Unidas (Doc. 1) que instituiu a Organização das Nações Unidas (ONU), baseadas no respeito do
princípio da igualdade de
com sede em Nova Iorque. direitos e da
autodeterminação dos
povos (…);
Os objetivos da ONU estão definidos na sua Carta: 3. Conseguir uma
cooperação internacional
1. Manter a paz e segurança internacionais; para resolver os problemas
internacionais de caráter
2. Desenvolver relações de amizade entre as nações baseadas no respeito dos prin- económico, social, cultural
cípios da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos; ou humanitário, e para
promover e estimular o
3. Promover a cooperação internacional de caráter económico, social, cultural ou respeito pelos direitos
humanos e pelas
humanitário, e para promover e estimular o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais
liberdades fundamentais de todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; para todos sem distinção
de raça, sexo, língua ou
4. Ser um centro (forum) destinado a harmonizar os esforços das nações para con- religião;
4. Ser um centro destinado
cretizar estes objetivos. a harmonizar a ação das
nações para a consecução
desses objetivos comuns.
Carta das Nações Unidas,
Ação da ONU 1945.

A ação da ONU (Fig. 3), no exercício do papel que lhe é atribuído na manutenção da
paz e na arbitragem dos conflitos internacionais, tem sido objeto de críticas mas também ? Questão

do reconhecimento de muitos. 1. Avalie o grau de


realização dos objetivos
consignados na Carta das
Critica-se-lhe:
Nações Unidas.
– o facto de acentuar o predomínio das gran-
Conselho de Segurana
(5 membros permanentes com direito de veto)
des potências ao distinguir entre os Gran- Capacetes
azuis (EUA, Reino Unido, Frana, URSS, China)
(mais 6 membros n‹o permanentes eleitos por 2 anos)
des com assento permanente no Conselho
Secretariado-Geral
de Segurança e com direito a veto, tidos (eleito por 5 anos)
Conselho
de Tutela
elege Assembleia Geral (15 membros)
como os detentores das responsabilidades elege
(51 membros fundadores)
mundiais, e os outros; elege cada Estado =1 voz elege

– a incapacidade para evitar a explosão de Conselho Econ—mico e Social Tribunal Internacional de Justia
(18 membros eleitos por 3 anos) (15 ju’zes eleitos por 9 anos)
conflitos armados em múltiplas partes do
Institui›es e servios especializados:
globo, explicada em grande parte pelo UNICEF: Fundo de Ajuda Internacional e AIEA: Agncia Internacional
das Na›es Unidas para a Criana. da Energia At—mica.
facto de que qualquer intervenção das Na- Nova Iorque
Washington FMI: Fundo Monet‡rio Paris
Internacional.
Viena
ções Unidas ter de passar pelo Conselho de BIRD: Banco Internacional para a
Reconstru‹o e o Desenvolvimento.
Berna

Segurança, onde funciona com demasiada UNESCO: Organiza‹o Genebra UPU: Uni‹o Postal
das Na›es Unidas para Universal.
a Educa‹o, a Cincia e Cultura. Roma
frequência o veto das grandes potências. OIT: Organiza‹o
Internacional do Trabalho.
OMS: Organiza‹o FAO: Organiza‹o para a
Mundial da Saœde. Alimenta‹o e a Agricultura.
OMC: Organiza‹o Mundial
do ComŽrcio.

Fig. 3. Estrutura e ação da


ONU nos anos 50.
200 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Reconhece-se-lhe um papel meritório:

– no domínio da cooperação económica e sociocultural internacional, em particular


através das suas instituições especializadas, onde tem tomado iniciativas no com-
bate à pobreza e exclusão e na ajuda humanitária;
– na mediação de conflitos internacionais, nomeadamente através do apoio a nego-
ciações de paz e da mobilização de tropas de intermediação, os chamados “capa-
cetes azuis”, ainda que muitas vezes marginalizada pelas grandes potências;
– na defesa do Direito Internacional, através do reconhecimento de que todos os povos
têm direito à liberdade, e graças ao qual numerosos povos alcançaram a sua inde-
pendência. Foi neste domínio que se formulou a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, aprovada solenemente pela Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1948(2).

C) As novas regras da economia internacional

Ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial, os principais estados preocupam-se


com o restabelecimento da ordem económica internacional.

Três grandes questões teriam de ser resolvidas para evitar problemas idênticos aos
criados à economia mundial no primeiro pós-guerra:
– a questão das taxas de câmbio: como fixar as paridades(3) das moedas?
– a questão da reconstrução das infraestruturas económicas parcial ou totalmente
destruídas pela guerra: como financiá-las?
– a questão da organização das trocas internacionais de mercadorias: como evitar as
restrições protecionistas do período entre as duas guerras?

Para responder a estas questões os delegados de 44 países reuniram-se em


Ouro D—lar
julho de 1944 numa conferência em Bretton Woods (Fig. 4), uma pequena estân-
1 ona de ouro = 35 d—lares
cia balnear a norte de Boston, em New Hampshire (EUA), para definir as novas
Convertibilidade assegurada
pelos EUA
regras da economia internacional.
Moedas (divisas)

Taxa de
c‰mbio As medidas aí tomadas passaram a constituir o que ficou conhecido
Libra Franco Lira ajust‡vel

Outras...
( ou 1%) como os Acordos de Bretton Woods que estabeleceram:
FMI Ð assegura/gere as reservas monet‡rias internacionais
Ð D—lar, moeda-chave do sistema – um novo Sistema Monetário Internacional (SMI) baseado na fixação das
Ð Preponder‰ncia da economia norte-americana
paridades das divisas e na cooperação dos estados; na prática, isto
Fig. 4. O sistema de implicava, ao contrário do que se passou nos anos 30, que os estados não podiam
Bretton Woods (1944-1971).
manipular livremente o valor da sua moeda, em particular, que recorressem a des-
valorizações competitivas, através das quais um Estado procura obter vantagem
sobre os seus parceiros;
– as paridades oficiais das moedas que foram definidas em peso ouro ou em dóla-
res, o que resultava no mesmo, uma vez que o dólar era associado ao ouro a uma
paridade oficial constante de 35 dólares por onça (28,350 gramas);

(2)
Apesar de todos os estados-membros da ONU terem subscrito a Declaração, a verdade é que esse facto não implica
o seu cumprimento: apenas os países que assinaram os Pactos dos Direitos do Homem se obrigam a incorporá-los
na sua legislação e a aplicá-los; e o número de países aderentes a estes Pactos representa uma minoria.
(3)
Paridade: o valor de uma moeda expresso pelo seu peso em ouro noutra moeda.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 201

– a garantia assumida pelos EUA de assegurar a total convertibilidade do dólar em


ouro(4);
– a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), com sede em Washington, com
os objetivos de defender a estabilidade dos câmbios monetários e prestar assistên-
cia financeira, em determinados casos, aos países membros;
– a criação do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)(5),
tendo como objetivos ajudar a reconstrução das economias devastadas pela guerra
(papel que acabaria por ser desempenhado pelos EUA através do Plano Marshall
de 1947) e financiar o desenvolvimento.

Para completar os acordos de Bretton Woods, os EUA defenderam a necessidade da


criação de uma organização económica que tivesse como objetivo reduzir os obstáculos
às trocas internacionais de mercadorias. O estabelecimento de um sistema de comércio
multilateral livre era considerado fundamental para o reforço da estabilidade política e o
incremento do bem-estar mundial.

Foi com este propósito que se reuniu, em 1947, em Havana, a Conferência das Nações
Unidas para o Comércio e o Emprego. Desta conferência saiu a elaboração de um texto
conhecido como Carta de Havana que instituía uma Organização Internacional de Comércio
(OIC), destinada a regular a desejada liberalização das trocas comerciais. No entanto, a
Carta não vingaria devido à oposição dos EUA, curiosamente, o principal promotor da ideia.

Na sequência de uma negociação


Os ciclos de negociações do GATT (1947-1967)
entre 23 estados que ocorreu entre
abril e outubro de 1947, em Genebra, Ciclos de Número de
negociações Ano países Resultados
foi possível chegar a um Acordo (rounds) envolvidos
Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Genebra 1947 23 45 000 reduções tarifárias.
Comércio (GATT – General Agreement
Annecy 1949 33 Novas reduções dos direitos aduaneiros.
on Tarifs and Trade)(6), cujo grande
Torquay 1951 34 55 000 reduções tarifárias.
objetivo era a liberalização progres-
Dillon Round (EUA) 1960-1961 45 Revisão dos direitos aduaneiros; novas reduções.
siva do comércio mundial. Através da
sua criação conseguiu-se estabelecer Kennedy Round 1964-1967 48
Redução em média dos direitos aduaneiros de 35% sobre os
produtos industriais e de 20% sobre os produtos agrícolas.
um sistema multilateral de comércio
dinâmico, cada vez mais liberal, atra- Muitos acordos (dumping, subvenções…); nova redução dos
Tokyo Round 1973-1979 99
direitos aduaneiros sobre os produtos industriais.
vés de rondas de negociações comer-
Quadro 1
ciais (rounds) (Quadro 1), com vista ao desmantelamento progressivo dos obstáculos
pautais e não pautais e ao estabelecimento de uma concorrência leal entre as nações.

(4)
Com esta decisão, o dólar substituiu a libra como moeda de referência para o comércio internacional e para os
movimentos de capitais. Este compromisso seria abandonado por Nixon, em 1971, ato que provocaria a falência do
sistema.
(5)
Posteriormente constituiria com a Sociedade Financeira Internacional (criada em 1956), o Banco Mundial.
(6)
O GATT, criado para regular provisoriamente as relações comerciais internacionais, acabaria, de facto, por desem-
penhar o seu papel durante mais de quatro décadas. Em 1994, o GATT daria lugar à criação da Organização Mundial do
Comércio (OMC).
202 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

* Descolonização: processo D) A primeira vaga de descolonizações


através do qual os povos
submetidos ao domínio das Os primórdios do processo de descolonização* remontam à segunda década do século
potências coloniais
alcançaram a sua XIX, com a independência das colónias do Império Espanhol na América, à exceção de
independência política. Por Cuba e Porto Rico que se tornaram independentes no final desse mesmo século.
outras palavras, é o
processo de “desconstrução” Depois da Primeira Guerra Mundial vários territórios no Próximo e Médio Oriente con-
dos impérios coloniais que
assumiu formas pacíficas ou seguiram emancipar-se: Egito (1922), Iraque (1932), Arábia Saudita (1926-1932), Líbano e
violentas segundo os
Síria (1945).
momentos e as regiões.

A marcha para a independncia


O fim da Segunda Guerra Mundial assinala
As modalidades da independncia
Metr—poles coloniais Incidentes ou contendas graves o início da etapa decisiva do processo de
Pa’ses independentes antes de 1945 Guerra de descoloniza‹o
Pa’ses tornados independentes descolonização impulsionado por vários fato-
durante a dŽcada de 1950 Antagonismo entre pa’ses do Terceiro Mundo
Pa’ses tornados independentes Focos da Guerra Fria
durante a dŽcada de 1960 res que estimularam a vontade dos povos de
Principais conflitos p—s-coloniais
Zona descolonizada ap—s 1975
Jap‹o emancipação da dominação colonial:

– a debilidade das potências coloniais


europeias devastadas pela guerra;
Vietname
– a consagração na Carta das Nações Unidas
do direito à autodeterminação dos povos
ArgŽlia e a afirmação do princípio da igualdade
4

de direitos na Declaração Universal dos


95
-1

Chade
45
19
NigŽria
QuŽnia Direitos Humanos (1948);
Zaire
Angola – o apoio das duas superpotências, os EUA
195 Nam’bia Moambique
7-1
9 65 e URSS, fundado na defesa do direito
0 2 500 km
Os motores da independncia dos povos à autodeterminação, na conde-
Apoio da China aos Iniciadores do n‹o-alinhamento Solidariedade entre Òirm‹os nação do colonialismo e no interesse em
movimentos independentistas muulmanosÓ
asi‡ticos
alargar as respetivas áreas de influência;
Fig. 5. As fases ou vagas dos
– o prestígio internacional de alguns dos
processos de descolonização
(1945-1975). líderes nacionalistas.
M. Nouschi, ob. cit., p. 189.

A primeira vaga de descolonizações (Fig. 5) afeta o Sul (Índia) e o Sudeste da Ásia e


estende-se desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até à Conferência Afro-
-asiática de Bandung realizada na Ilha de Java (Indonésia) em 1955.

A Índia, que começara a manifestar-se contra a dominação britânica ainda antes de


1914, afirmou no período entre as duas guerras a sua vontade de independência. Gandhi
(Fig. 6), um líder nacionalista com uma personalidade ímpar, defensor da não-violência,
mobilizou multidões para campanhas de protesto e de resistência passiva. A Segunda
Guerra Mundial, no decurso da qual ajudaram os ingleses na luta contra a ameaça japo-
nesa, reforçou a determinação dos indianos. O governo britânico acedeu no reconheci-
Fig. 6. Gandhi (1869-1948):
filósofo e político hindu mento da independência da Índia em 1947, mas tendo em conta a existência de duas
cognominado Mahatma comunidades religiosas distintas procedeu à divisão do país em dois estados: a Índia pro-
(alma grande). Liderou a
partir de 1920 a luta pela priamente dita, cuja maioria dos habitantes é hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana.
emancipação da Índia da
dominação colonial No Sueste asiático, a Birmânia inglesa e as Filipinas americanas foram descolonizadas
britânica. Morreu sem convulsões em 1948.
assassinado por um
fanático hindu em Nova Deli.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 203

Sorte diferente tiveram os povos da Insulíndia e da Indochina, submetidos ao domí-


Cronologia
nio holandês e francês, respetivamente, e que tiveram de recorrer à guerra para alcançar
os seus desejos de emancipação. 1945
Independência da
A guerra que os primeiros mantiveram contra os holandeses foi relativamente breve Indonésia.

e resultou na independência da Indonésia em 1949. Mas a guerra travada pela França 1946-1954
Guerra da Indochina.
com a guerrilha Viet Minh(7) na Indochina durou oito anos (1946-1954) e teve episódios
1947
dramáticos, como a batalha de Dien Bien Phu (1954) ganha pelos vietnamitas. Independência da Índia e
do Paquistão.
Depois de oito anos de guerra, a França acabaria por reconhecer finalmente a inde-
1948
pendência dos diversos países da Indochina: Laos, Camboja e Vietname.
Independência da Birmânia
e das Filipinas.
Na sequência dos acordos de Genebra (1954) o Vietname foi dividido em dois esta-
Assassinato de Gandhi.
dos: o Vietname do Norte e o Vietname do Sul. O primeiro era governado por um regime
1951
comunista, enquanto que no segundo era um regime militar que controlava o poder. A his- Independência da Líbia.
tória das duas décadas seguintes da vida destes dois países ficaria marcada por uma nova 1954
guerra, que mobilizou a Frente Nacional de Libertação (vietcong) do Vietname do Sul, Vitória vietnamita de Dien
Bien Phu sobre o exército
apoiada pelo Vietname do Norte, contra a presença norte-americana e a ditadura militar colonial francês.
do Vietname do Sul. Esta guerra (1963-75) terminaria com a derrota norte-americana e a uni- 1955
ficação nacional do Vietname. Conferência Afro-asiática
de Bandung.
1963-1975
Guerra do Vietname.
1.2. O tempo da Guerra Fria – a consolidação de um mundo bipolar
1.2.1. O mundo capitalista
Documento 2
A) A política de alianças liderada pelos EUA
Doutrina Truman
O fim da Segunda Guerra Mundial não trouxe uma efetiva pacificação das relações As sementes dos regimes
internacionais. Com efeito, vencido o fascismo pela aliança conjuntural dos países de demo- totalitários são
alimentadas pela miséria e
cracia liberal juntamente com a União Soviética comunista, e uma vez terminado o con- a fome. Crescem e
flito mundial, renasceram de imediato as divergências políticas e ideológicas entre os multiplicam-se no solo
árido da pobreza e da
vencedores. desordem e atingem o seu
desenvolvimento máximo
O clima de tensão entre os Aliados vencedores da guerra é já bem percetível nas logo que a esperança de
negociações dos diversos tratados de paz. A rutura declara-se abertamente quando em um povo numa vida melhor
morre. É preciso que
12 de março de 1947 o presidente Truman apresentou ao Congresso dos EUA a chamada mantenhamos esta
doutrina Truman (Doc. 2). esperança viva. Os povos
livres do mundo esperam
Na sua comunicação, Truman assume claramente o fim do tradicional isolacionismo que nós os ajudemos a
defender as suas
norte-americano e proclama que a prioridade da política externa norte-americana é “con- liberdades. (…)
ter” o comunismo soviético dentro dos limites acordados nos tratados do pós-guerra. Tru- Harry Truman,
12 de março de 1947.
man defende que a melhor forma de o fazer é através do apoio económico e militar aos
países “amigos” para que possam viver livres da ameaça de regimes totalitários.
? Questões
A estratégia de Truman (containment politics) concretizou-se no Plano Marshall (1947)
1. Explicite a associação de
e na organização de um sistema de alianças militares liderado pelos EUA. Truman entre regimes
totalitários e a pobreza e
desordem.
Viet Minh: Frente de Independência do Vietname. Força de guerrilha criada em 1941, agrupava comunistas e nacio-
(7) 2. Relacione a doutrina
nalistas. A partir de 1949, passou a ter o apoio da China comunista (maoísta). Truman com a Guerra Fria.
204 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

B) O Plano Marshall e o início da Guerra Fria

O Plano da Reconstrução Europeia (European Recovery Program), mais


conhecido por Plano Marshall(8) (Fig. 7), constitui basicamente uma res-
posta ao objetivo de contenção do comunismo defendido pela doutrina Tru-
man. O que se pretendia era auxiliar a reconstrução das economias capita-
listas europeias devastadas pela guerra e fortalecer os regimes de
democracia liberal a partir de uma importante ajuda financeira dos EUA.

Apesar de o Plano não excluir à partida os países europeus do bloco


comunista, as condições requeridas para o acesso à sua ajuda tornavam-no
Fig. 7. À esquerda, Harry
Truman (1884-1972) e à
de muito difícil aceitação por parte destes países(9). Dezasseis países ocidentais aceitaram
direita, George Marshall o Plano.
(1880-1959).
A URSS, que vê neste plano uma manobra dos Estados Unidos para imporem a sua
hegemonia, rejeita-o e impõe aos países do Leste europeu a mesma atitude com o argu-

+ Para saber mais mento de que a “marshallização” significa a colonização da Europa pelos Estados Uni-
dos. Como contrapartida, os delegados dos partidos comunistas de França, Itália, URSS,
Elabore uma resenha
biográfica das Bulgária, Checoslováquia, Roménia, Polónia, Jugoslávia e Hungria à Conferência dos Par-
personalidades tidos Comunistas realizada em setembro de 1947, na Polónia, aprovam o relatório de Jda-
apresentadas na fig. 7.
nov (1896-1948), conhecido por “doutrina Jdanov”. Neste relatório, afirma-se que o
mundo está dividido em dois campos opostos:
– um campo “imperialista”, dirigido pelos EUA;
– e um campo “democrático e anti-imperialista”, liderado pela URSS.

A aplicação desta doutrina resultou na criação do Kominform, um organismo criado


no decurso daquela conferência com o objetivo de coordenar a ação destes partidos
comunistas na luta contra o “imperialismo e capitalismo”.

A assunção da rutura política e ideológica pelos dois campos constituiu o ponto de


* Guerra Fria: clima de partida do que veio a denominar-se “Guerra Fria”*. Em março de 1946, Winston Churchill
tensão e confrontação
político-ideológica, militar
denunciara esta situação ao afirmar no seu célebre discurso pronunciado em Fulton
e geostratégica entre os (Missouri, EUA) que uma “cortina de ferro” se abatia sobre a Europa e a dividia em dois:
dois blocos – o leste,
comunista, e o oeste,
à Europa Ocidental, que se reerguia sob a assistência americana, opunha-se uma outra
capitalista. O termo aplica- Europa, a de Leste, submetida à orientação soviética, estalinista.
-se sobretudo ao período
de 1947-1962, mas a
Guerra Fria dura C) A organização do bloco ocidental
efetivamente até finais da
década de 80 e inícios da A partir de 1947, o campo ocidental organizou-se. No plano económico, realizando
de 90 do século XX. uma das condições previstas no Plano Marshall, foi criada em 1948 a Organização Euro-
Inicialmente, o
antagonismo ideológico e a peia de Cooperação Económica (OECE)(10), com sede em Paris, para gerir a importante
competição pela ajuda financeira concedida aos países europeus e coordenar as políticas económicas do
hegemonia centraram-se
em torno do problema
alemão, adquirindo
posteriormente uma (8)
Anunciado em Harvard por George Marshall a 5 de junho de 1947, o Plano vigorou de 1948 a 1952, e durante este
dimensão mundial, tempo dezasseis países da Europa Ocidental receberam cerca de 13 000 milhões de dólares no total, sendo os maio-
oscilando entre períodos res beneficiários o Reino Unido, a França, a Itália e a Alemanha.
(9)
de tensão aguda com Entre outras, impunha como condições: ser solicitada pelos países; a criação de um organismo de cooperação para
outros de distensão ou de coordenar a ajuda; a comunicação de informações estatísticas sobre as capacidades produtivas dos países.
relativo apaziguamento. (10)
Em 1961 seria substituída pela OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico).
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 205

conjunto dos dezasseis estados membros. Em 1948, vinte e três países, que controlavam
80% do comércio mundial, assinaram os acordos do GATT. Igualmente significativo foi o
impulso que o Plano deu às tendências de unidade europeia, concretizadas em 1951 na
criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) e, alguns anos depois, na
Comunidade Económica Europeia (CEE), fundada pelo Tratado de Roma (1957).

As alianças militares
Cronologia
A estratégia dos Estados Unidos de conter ou limitar a influência soviética incluiu tam-
1947
bém a vertente militar. Preocupados com os comportamentos de Estaline, os governos
Pacto de Dunquerque.
europeus ocidentais acolheram bem as propostas americanas de uma aliança militar.
1948
Em 1947, a França e o Reino Unido firmaram o Pacto de Dunquerque, alargado no ano Pacto de Bruxelas: União
de Bruxelas.
seguinte ao Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo) através da assinatura de uma nova
1949
aliança, o Pacto de Bruxelas, que dá origem à União de Bruxelas. Este processo prosse- Tratado do Atlântico:
guiu com a criação da UEO (União da Europa Ocidental), em 1954. criação da OTAN (NATO).
1951
Conscientes da sua inferioridade militar, os estados europeus ocidentais começam a
Criação do ANZUS.
ver a URSS como uma verdadeira ameaça à sua segurança e solicitam ao governo dos
1954
Estados Unidos um compromisso de assistência em caso de crise grave e o estabeleci- Fundação da UEO.
mento de uma aliança defensiva. Em 4 de abril de 1949, os países europeus signatários Criação do SEATO.

do Pacto de Bruxelas, mais a Islândia, a Noruega, a Dinamarca, a Itália e Portugal, assi- 1955
Criação da CENTO.
naram com os Estados Unidos e o Canadá, em Washington, o Tratado do Atlântico, que
esteve na origem da criação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte)(11).

Os objetivos gerais da OTAN são:


– a defesa da paz;
– o respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas.

No seu articulado estabelece o princípio da segu-


rança coletiva, segundo o qual um ataque dirigido con-
tra um dos seus membros será considerado como um
ataque contra todos. Depois do reforço da interdepen-
dência económica pelo Plano Marshall, a OTAN consagra
formalmente o acoplamento geopolítico e militar entre
as duas costas do Atlântico, ou seja, o atlantismo(12).

O sistema de alianças (Fig. 8) preconizado e liderado


pelos Estados Unidos com o objetivo de isolar a URSS
num “cordão sanitário” mundial completa-se com a cria-
ção de outras alianças regionais, concretamente:
Fig. 8. O sistema mundial
– na Oceânia, o Pacto do Pacífico ou ANZUS (Austrália e Nova Zelândia e EUA) em
de alianças.
1951; M. Nouschi, ob. cit., p. 193.

(11)
Ou NATO, na expressão anglo-saxónica. A OTAN, como se afirma numa expressão consagrada servia para “manter
os EUA na Europa, os russos fora e os alemães controlados”. A Grécia e a Turquia tornaram-se seus membros em
1952 e a Alemanha em 1955.
(12)
O atlantismo é a aceitação deliberada da dependência da Europa em relação aos EUA, a partir da dupla convicção
da identidade de interesses entre as duas regiões e da superioridade norte-americana.
206 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

– no Sudeste Asiático, a OTASE (Organização do Tratado da Ásia do Sudeste), composta


pelos membros do ANZUS, França, Paquistão, Filipinas, Tailândia e Grã-Bretanha, em
1954;
– no Médio Oriente, a CENTO (Organização do Tratado Central), integrando a Grã-Bre-
tanha, Turquia, Paquistão, Irão e Iraque, em 1955.

Paralelamente, os EUA celebram acordos bilaterais com múltiplos países (Filipinas,


Coreia do Sul, Taiwan, Japão e Espanha) para a instalação de bases militares em redor
do mundo comunista.

No total, o “cordão” que define o perímetro americano de segurança assenta em cerca


de cinquenta países e numa força de ataque nuclear estratégico confiada ao Strategic Air
Command e à US Navy.

D) A prosperidade económica

Numa Europa livre mas destruída, e a que falta quase tudo, a retoma da atividade eco-
nómica normal só se verifica após um período de reconstrução de cerca de cinco anos.
Mas, a partir do início da década de 50 e até meados da década de 70, os “Trinta Anos
Gloriosos”, as economias industriais ocidentais entram num período de acele-
%
12,6
10 rado crescimento económico(13). Ainda que o ritmo deste crescimento não seja
igual em todos os países, pois este depende das circunstâncias próprias de
5 5,5 5,4 4,9
2,9 cada um, a verdade é que globalmente o mundo capitalista conhece uma
0
Frana Alemanha Reino Jap‹o EUA época de prosperidade económica excecional (Fig. 9).
Unido Fonte: INSEE

Fig. 9. Taxa de crescimento


anual médio da produção Que fatores a explicam?
industrial entre 1958 e
1974. No plano das relações económicas internacionais, ao contrário do sucedido no
período posterior à Primeira Guerra Mundial – com hiperinflações, com revoluções e com
a Grande Depressão – o sistema político internacional foi capaz de responder com visão
e bom senso aos problemas provocados pela Segunda Guerra Mundial.
N’vel mŽdio dos
direitos aduaneiros Com o Plano Marshall, com o sistema de taxas de câmbio
êndice 100 em 1950
50 1700
de Bretton Woods, com o Fundo Monetário Internacional (FMI)
40 1300
e com a política de liberalização do comércio internacional
30
900
20 promovida pelo GATT (Fig. 10) foi possível aumentar extraor-
500
10 dinariamente a produção e o volume do comércio mundial: no
0 100
1947 1962 1972 1987 1994 decurso dos 25 anos que se seguiram à guerra, o valor das
Criac‹o do Antes Depois Depois Depois
GATT do ciclo do ciclo do ciclo do ciclo exportações mundiais progrediu 7% ao ano e a produção
Kennedy Kennedy de T—quio do Uruguai

Trocas PIB real Fonte: Banco Mundial, OMC, CEPII, 2000


mundial cresceu em média 5%.
Fig. 10. A redução das
Por outro lado, as destruições da guerra e a reconstrução das infraestruturas permiti-
tarifas aduaneiras e os
seus efeitos no comércio ram às economias nacionais o rejuvenescimento e modernização dos seus equipamentos
internacional e no industriais e redes rodoviárias e ferroviárias. As inovações técnicas aplicadas à indústria
crescimento económico.

(13)
Crescimento económico: aumento da produção e do rendimento. Calcula-se a partir da variação do produto nacional
bruto (PNB) ou do produto interno bruto (PIB) no período de um ano.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 207

e à agricultura e o aumento da concorrência externa permitiram elevar os níveis de pro-


dutividade(14), quebrar as inércias e gerar um forte impulso da produção e do consumo.

Ao mesmo tempo, a mais ampla e mais direta intervenção dos poderes públicos, par-
ticularmente evidente no Reino Unido e na França, traduziu-se numa maior estabilidade
das economias nacionais. O crescimento tão ardentemente desejado fora alcançado.

E) A sociedade de consumo

Depois de 1945, a economia mundial conheceu durante cerca de três décadas um cres-
cimento económico impressionante e conseguiu ganhos revolucionários no bem-estar
para grande parte da Humanidade.

A elevação dos padrões de vida em grande número de países da Europa, nos EUA e
no Japão atingiu todas as classes. O pleno emprego é assegurado, o poder de compra
cresce regularmente e as famílias equipam-se com frigoríficos, televisores, automóveis,
etc. A explosão demográfica do pós-guerra (baby boom), a expansão do crédito, a publi-
cidade, as novas formas de distribuição estimulam a procura. A oferta cresce paralela-
mente graças aos ganhos de produtividade, decorrentes da expansão do taylorismo, às
inovações técnicas e aos baixos custos da energia (petróleo) e das matérias-primas pro-
venientes dos países não industrializados.

À medida que as necessidades básicas da vida iam sendo progressivamente satisfei-


tas, a produção nas sociedades industrializadas orientou-se para a venda de bens e ser-
viços não essenciais. Ao mesmo tempo, a procura do luxo, o desejo de consumir, de
exceder o vizinho transformaram-se em virtudes moralmente aceitáveis. É a sociedade da
abundância, a sociedade de consumo*. Ninguém se lembrava já da depressão dos anos * Sociedade de consumo (ou
trinta nem mesmo da possibilidade de uma nova crise. sociedade da abundância):
população com elevado
poder (e vontade) de
F) A afirmação do estado-providência aquisição/consumo de
bens, em consequência do
Terminada a Segunda Guerra Mundial, a dimensão dos problemas económicos e forte crescimento
económico, da produção
sociais e a difusão do socialismo pressionam o Estado no sentido de assumir um papel em massa e do pleno
mais interventivo na vida económica e social, de forma a criar as condições para uma emprego que caracterizou
as sociedades capitalistas
sociedade mais justa, mais conforme ao interesse de todos. ocidentais na segunda
metade do século XX.
O fim da guerra e a ideia de que a intervenção governamental na economia atenua-
ria os riscos de uma eventual recessão deram aos estados a oportunidade para procede-
rem a um grande número de nacionalizações, que resultaram num reforço considerável
do setor público, sobretudo em atividades fundamentais.

Entre o final da guerra e o início da década de 50, na Europa, mesmo em países de forte
tradição liberal como a França e a Grã-Bretanha, assistiu-se a um controlo total ou parcial
de setores vitais como a energia, os transportes terrestres e aéreos, os bancos e seguros, a
rádio e as indústrias automóvel e siderúrgica.

(14)
Produtividade: relação entre a quantidade de bens ou de serviços produzidos e a quantidade de trabalho necessá-
rio para essa produção. É, portanto, a quantidade de bens ou serviços produzidos por um trabalhador.
208 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

15 Mas a intervenção do Estado estende-se muito para além do seu papel


Em % do PNB
empresarial (Fig. 11). Inspirado nas conceções de Keynes(15), o Estado torna-se o
principal investidor, quer pelo aumento das despesas públicas quer por toma-
das de participação, financiadas pelos grandes organismos financeiros que con-
10
trola e pelos impostos que cobra. Em França, por exemplo, os investimentos
públicos sobem, em 1949, para 50% dos recursos orçamentais.

Ao mesmo tempo, os governos intervêm através de medidas legislativas regu-


5
lamentando e sujeitando os diferentes setores de atividade às suas orientações.

Outro nível de intervenção governamental verifica-se no planeamento econó-


mico. O Plano Monnet (1946-1950/1952), em França, é o exemplo mais significa-
0
1965 1970 1980
tivo.
Despesas
sociais Defesa Outras
Resultam daqui várias consequências:
Fonte: Congressional Budget Office, Fevereiro 1983 – o Estado adquire a capacidade para determinar, no interesse público, as
Fig. 11. A evolução do orientações da política económica nacional;
estado-providência
nos EUA. – através dessas orientações e das políticas fiscal e orçamental, passa a dispor dos
meios para uma redistribuição mais equitativa dos rendimentos e para compensar
as desigualdades mais extremas, mediante um aumento dos serviços sociais: o cida-
dão passa a ter direito ao apoio do Estado na educação, saúde, salário mínimo, pen-
sões, no desemprego e na pobreza.

O Estado assumia assim um papel ativo e decisivo na atividade económica e na vida


social dos cidadãos mesmo num sistema capitalista. A afirmação do estado-providência,
* Democracia-cristã: ou Estado de bem-estar (Welfare State), cujo perfil começou a ser definido a partir dos
sistema democrático anos 30, mostrava desta forma que era possível conjugar a lógica de funcionamento do
fundado nos princípios da
moral cristã e na doutrina sistema económico capitalista com a ideia do Estado redistributivo que assegura à cole-
social da Igreja. tividade, no seu conjunto, a fruição adequada, justa, dos benefícios da prosperidade eco-
* Social-democracia: nómica. Na conjuntura do segundo pós-guerra a democracia cristã* adere a esta ideia,
ideologia do movimento
operário marxista até à há muito defendida pela social-democracia*.
cisão entre socialistas e
comunistas do pós- Apesar de cada vez mais reclamado pelas populações, a afirmação do Estado-provi-
-Revolução Soviética. dência teve de enfrentar resistências e recuos. As forças liberais mais conservadoras con-
Nos finais do século XIX,
surgiu no seu seio um tinuavam a defender as virtudes da liberdade da iniciativa privada, da economia de mer-
conflito entre uma corrente cado, e a rejeitar a intervenção reguladora do Estado na economia. A partir da segunda
reformista (representada
por Bernstein) com metade dos anos 60 acentua-se o conflito ou contradição entre a lógica económica libe-
propostas políticas de ral e as exigências sociais que tinham legitimado o Estado-providência.
natureza democrática
(sufrágio universal,
reformas sociais…) e 1.2.2. O mundo comunista
questionando a luta
revolucionária defendida
pelo Socialismo A) O expansionismo soviético
Revolucionário, que se
distingue do anterior a O ponto de partida da formação do mundo comunista é a Revolução de Outubro de
partir de 1917, adotada na 1917, que dá origem à URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
maioria dos casos por
movimentos que passaram (15)
Recorde: John Maynard Keynes (1883-1946), economista inglês. Defendeu que as políticas económicas deveriam dar
a usar a designação de primazia ao emprego e à redução das grandes desigualdades sociais, como forma de aumentar o consumo e promo-
comunistas. ver o crescimento económico e o bem-estar social.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 209

Até ao final da guerra, a URSS mantém-se fiel ao projeto de Estaline (Fig. 12) de cons-
truir o socialismo num só país. Mas, imediatamente após a vitória sobre o nazismo,
emerge o caráter universalista do comunismo, tal como já defendera Trotsky, partidário
da revolução universal imediata.

A sovietização da Europa de Leste

O Plano Marshall e o receio do cerco capitalista forneceram a Estaline a razão e o estí-


Fig. 12. José Estaline (1878-
mulo para concretizar o princípio aceite em Ialta e Potsdam de que a URSS tinha o direito
-1953): sucedeu a Lenine
a dispor de uma zona de influência fora do seu próprio território. Assim, em setembro de no governo da URSS, em
1947, a União Soviética, agrupando à sua volta os partidos comunistas da Europa Cen- 1928, iniciando então um
programa de coletivização
tral e Oriental, cria o Serviço de Informações Comunista, o Kominform, destinado a coor- da agricultura e de
denar e disciplinar as atividades de diversos partidos comunistas. É a resposta da URSS industrialização intensiva
da URSS, transformando-a
à doutrina Truman e ao Plano Marshall. na potência liderante do
mundo comunista.
A reação soviética prosseguiria até à completa sovietização e satelização política e
militar da Europa de Leste. Os procedimentos adotados para a tomada do poder dos par-
tidos comunistas nacionais foram idênticos em quase todos os países da Europa Central
e Oriental libertados pelo Exército Vermelho: subversão, domínio da administração e do * Democracias populares:
em oposição aos regimes
aparelho de Estado, aproveitamento das divergências político-partidárias internas. As ocidentais de democracia
exceções são a Albânia e a Jugoslávia, países onde os comunistas tomaram o poder por liberal, estes regimes
fundamentam-se na
si próprios depois de expulsarem os invasores nazis e fascistas. ideologia do marxismo-
-leninismo e em governos
Assim, entre 1946 e 1949, Polónia, Roménia, Checoslováquia, Hungria e República Demo- pluripartidários, mas
crática Alemã converteram-se em democracias populares* tuteladas pela URSS. dirigidos por um partido
comunista, descrito como
Considerando as ações americanas na Europa e na Ásia como uma ameaça à sua inte- o único legítimo
representante do
gridade e tendo ao mesmo tempo consciência da sua fraqueza relativa, a URSS reforça a proletariado (“povo”) com
sua estratégia de integração e coesão do bloco comunista, respondendo deste modo ao vista à construção de uma
sociedade sem classes.
movimento idêntico seguido pela Europa capitalista.

No plano económico, em 1949, a URSS forma com os países satélites o Conselho de


Ajuda Económica Mútua (CAEM ou COMECON(16)). O objetivo era integrar as economias
das democracias populares num sistema unificado tendo em vista assegurar uma coope-
ração mais extensa entre a URSS e os países de democracia popular.

No domínio das alianças militares a reação da URSS foi um pouco mais tardia: a resposta
soviética à formação da OTAN surgiu só em 1955 com a criação do Pacto de Varsóvia.

(16)
COMECON (acrónimo da expressão inglesa COuncil for Mutual ECONomic Assistence): integrava a URSS, Bulgária,
Hungria, Polónia, Roménia, Checoslováquia, juntando-se-lhe posteriormente a Albânia (1949-61), a RDA (1950), Mon-
gólia (1962), Cuba (1971) e o Vietname (1978). Os seus estatutos só foram tornados públicos dez anos depois (14 de
novembro de 1959) do anúncio da sua criação. Foi dissolvido em 1991.
210 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Cronologia A extensão do comunismo à Ásia e à África

O mundo comunista
A partir do leste europeu, o comunismo expande-se para a Ásia com a tomada do
1947 poder por Mao Tsé-Tung e a proclamação da República Popular da China (1949) que
Criação do Kominform passa a constituir um segundo polo do bloco de Leste, com o triunfo comunista no Viet-
(1947-56).
name, no Camboja e no Laos, acrescentando-se à Coreia do Norte e à Mongólia.
1948
Golpe de Estado comunista O comunismo estende-se também ao continente americano com o triunfo da revolu-
na Checoslováquia.
ção cubana de Fidel Castro (1959) que, por sua vez, torna-se um exemplo para os movi-
1949
Criação do COMECON;
mentos revolucionários da América Central e Meridional – Bolívia, Colômbia, Peru e
Proclamação da República sobretudo na Nicarágua, onde os sandinistas conquistaram o poder nos anos 70.
Popular da China.
Aproveitando o momentâneo apagamento dos EUA depois do fracasso do Vietname,
1955
Fundação do Pacto de a URSS reforça o seu envolvimento em África apoiando os movimentos revolucionários
Varsóvia. em Angola, na Etiópia, em Moçambique e noutros lugares. Na Ásia, intervém diretamente
1959 no Afeganistão, em 1979.
Revolução cubana (Fidel
Castro). A Guerra Fria atinge desta forma os outros continentes, mundializa-se, e paralisa o
funcionamento da ONU, onde a URSS (tal como os restantes membros permanentes do
Conselho de Segurança) usa sistematicamente o direito de veto.

B) Opções e realizações da economia de direção central

Terminada a guerra, o sistema estalinista de planificação(17) administrativa da produ-


ção assente nos planos quinquenais, com prioridade à indústria pesada, manteve as
características burocráticas e centralizadoras dos anos trinta:
– controlo permanente da produção;
– sistema rígido e hierarquizado de gestão;
– imposição obrigatória dos objetivos económicos às empresas;
– mobilização constante da população através de vigorosas campanhas
em torno dos planos impostos e controlados pelo Gosplan, órgão de
planificação.

O fracasso dos planos quinquenais estalinistas

Os tradicionais problemas de abastecimento da população soviética


agravaram-se naturalmente com os elevados custos humanos e materiais da
guerra. Por isso, o IV Plano Quinquenal (1946-1950) definiu como objetivos
prioritários a reparação desses danos (habitações, comunicações, fontes de
energia) e a reconstrução das zonas industriais destruídas, a exploração da
Sibéria, a mecanização da agricultura e o alargamento das áreas de cul-
tivo(18).
Fig. 13. “Dois mundos, dois No entanto, os grandes investimentos na indústria pesada e nas infraestruturas per-
balanços” no início dos
anos 1950. Cartaz de mitiram a Estaline transformar a URSS na segunda potência militar e industrial do mundo
propaganda estalinista que (Fig. 13), mas esgotaram uma população cuja vida quotidiana permanecia precária.
pretende mostrar a
superioridade da (17)
Planificação: organização da economia segundo planos previamente estabelecidos e não em função do mercado.
capacidade produtiva
(18)
comunista relativamente à Em 1950, segundo as previsões do plano, não concretizadas, o rendimento nacional deveria ultrapassar em 38% o
nível de 1940, a produção industrial 48%, a produção agrícola 27% e os transportes de mercadorias por caminhos de
capitalista.
ferro 28%.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 211

As novas prioridades

A morte de Estaline (março de 1953) traz uma nova orientação não só na vida polí-
tica interna e nas relações com o exterior, mas também, relativamente às opções econó-
micas. Malenkov, primeiro-ministro entre 1953 e 1955, anuncia novas prioridades para a
economia soviética: o aumento da produção de bens de consumo, desvalorizando a prio-
ridade estalinista à indústria pesada(19).

O processo de desestalinização iniciado por Krutchov (1894-1971) por ocasião do XX


Congresso do PCUS (fevereiro de 1956) abriu o caminho a reformas administrativas e eco-
nómicas:
– na agricultura, autorizou os kolkhozes e sovkhozes a planearem diretamente as
áreas semeadas e as vendas nos mercados; criou conselhos económicos regionais,
os sovnarkozes; suprimiu os parques de máquinas e tratores (MTS), autorizando os Cronologia
camponeses a comprarem os tratores necessários; promoveu a exploração das ter-
ras virgens da Sibéria intensificando o cultivo de cereais e a criação de gado; A escalada armamentista
1945
– na indústria, contestou a rigidez e a centralização excessiva dos planos quinque- Bomba atómica sobre
nais, propondo um “planeamento contínuo”, ajustável anualmente. Hiroxima e Nagasáqui
(Japão).
1948
No XXII Congresso, em outubro de 1961, apostado em acelerar a “marcha para o Bombardeiro
comunismo” e em demonstrar a superioridade deste sistema, Krutchov traçou um ambi- intercontinental (EUA).
1949
cioso programa económico destinado a transformar, num prazo de dez anos, a URSS na
URSS dispõe da bomba
primeira potência industrial do mundo, ultrapassando dessa maneira os EUA. atómica.
1952
No entanto, a competição com o Ocidente e os elevados gastos com o reforço do pode- Bomba de hidrogénio
rio militar (sobretudo no final da década de 1970 e na de 1980, período de Brejnev, em (EUA).
que os EUA regressam a uma lógica de Guerra Fria), obrigaram à transferência de impor- 1953
URSS dispõe da bomba H.
tantes recursos humanos e materiais para outros setores como o armamento e o programa 1954
espacial, comprometendo a luta pela produtividade e pelo crescimento económico. 1.º submarino nuclear –
Nautilus (EUA).
1955
1.2.3. A escalada armamentista e o início da corrida espacial Bombardeiro
intercontinental (URSS).
A divisão do Mundo em dois blocos e o subsequente clima de tensão e rivalidade que 1956
caracteriza as relações internacionais no pós-Segunda Guerra Mundial favorecem a esca- Criação da Agência
Internacional da Energia
lada armamentista. O Ocidente tem a convicção que o “campo socialista” e os seus par- Atómica (AIEA).
tidários – os partidos comunistas – não têm outro objetivo senão conquistar, por todos 1958
os meios, o mundo para o socialismo. É neste sentido que se fala de “imperialismo sovié- URSS constrói submarino
nuclear.
tico”, enquanto a propaganda ocidental insiste na ameaça de invasão soviética e na 1959
necessidade da criação de uma estrutura político-militar defensiva. Tratado de Washington:
desnuclearização do
Por sua vez, o campo socialista está convencido que o Ocidente, não só quer impedir Antártico.
o triunfo do socialismo, mas desejaria, se pudesse, destruir o campo socialista e impor 1968
Tratado de Não
o seu modelo de democracia liberal e o capitalismo. É por isso que se fala de “imperia- Proliferação Nuclear.
lismo americano ou ocidental” e na necessidade de reforçar o poder e a coesão político- 1972
Acordos SALT I (EUA e
-ideológica e militar do bloco.
URSS).
1979
(19)
O plano trienal de 1953-1956 previa aumentos de 25% para os tecidos de algodão, de 60% para os tecidos de lã, de Acordos SALT II (nunca
47% para o calçado, de 54% para o açúcar e de 59% para a carne. chegou a ser ratificado).
212 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

A) A era do nuclear

A Segunda Guerra Mundial constituiu um autêntico laboratório de experiências e de


descobertas de novas armas. Logo no início da guerra, alguns físicos, como Albert Eins-
tein (1879-1955), indicaram ao presidente norte-americano Roosevelt a possibilidade de
fabricar uma bomba atómica, uma arma de destruição maciça. Em 1943 trabalhavam já
no programa atómico dos EUA mais de 150 000 cientistas e técnicos.

Com a colaboração de cientistas alemães refugiados, os EUA dispõem, em 1944, de


foguetes teleguiados e, nos anos de 1950, desenvolvem mísseis intercontinentais (ICBM(20))
e bombardeiros de largo alcance com capacidade para transportarem bombas atómicas
e atingir qualquer parte do globo.

A utilização já no final da guerra pelos EUA da bomba atómica em Hiroxima e Naga-


sáqui (1945) serviu para demonstrar à URSS especialmente e ao resto do
mundo a superioridade militar e tecnológica norte-americana. A res-
posta soviética tardaria apenas alguns anos: em 1949 a URSS
deflagra a sua primeira bomba atómica. Os americanos perdem
Out.1982 o monopólio nuclear. Estava aberto o caminho para a esca-
lada armamentista (Fig. 14).
VIETNAME
PERU
BOLêVIA
Em 1952, os EUA adiantam-se novamente com o fabrico
INDONƒSIA
CHILE
da bomba de hidrogénio (bomba H), cuja potência destrutiva
excede 750 vezes a bomba de Hiroxima. No ano seguinte, o
ARGƒLIA primeiro-ministro soviético Malenkov anuncia que a URSS
PALESTINA

GUINƒ-BISSAU
ETIîPIA dispunha também da bomba H.
ZAIRE
TANZåNIA
ANGOLA O Mundo passa a viver sob a ameaça real da sua destruição
RODƒSIA
MO‚AMBIQUE total. A consciência deste facto leva diversos organismos
Ogivas nucleares em 1967: internacionais a alertar para os perigos de uma guerra
Ð EUA 25 800
1958-74 M’sseis intercontinentais Ð URSS 6 350 nuclear. Nos anos 50 e 60, a ONU patrocina várias iniciati-
Movimentos armados de liberta‹o nacional M’sseis intercontinentais
M’sseis de alcance intermŽdio vas com o objetivo de travar a escalada armamentista. O
Revolu›es comunistas
M’sseis ÒPolarisÓ disparados de
Repress›es ocidentais submarinos nucleares Conselho Mundial das Igrejas e a comunidade científica
Regimes militares progressistas Zonas de tiro
Neutralistas advertem para os danos das radiações. A opinião pública

Fig. 14. A escalada internacional mobiliza-se organizando marchas de protesto. A criação no


armamentista. quadro da ONU da Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA), em 1956, e a assina-
Vidal-Naquet et al, Atlas tura do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) são, em parte, resultado desta reação.
Histórico. Da Pré-História aos
nossos dias, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1990, p. 331. Não obstante, a proliferação nuclear(21) prossegue. Os ensaios nucleares multiplicam-se
e alarga-se o número de países com capacidade nuclear. A Grã-Bretanha possui, desde
1952, a arma atómica graças à sua colaboração militar com os EUA. Em 1960, a França
faz explodir a sua primeira bomba atómica. A China faz o mesmo em 1964. Armam-se
submarinos e aviões com armas nucleares, constroem-se silos subterrâneos para os mís-
seis balísticos de largo alcance.

(20)
ICBM: InterContinental Ballistic Missile (míssil terra-terra). O primeiro míssil deste tipo foi lançado em 1957 pela
URSS e logo a seguir pelos EUA.
(21)
A proliferação nuclear é a difusão de materiais, tecnologias e conhecimentos que permitem o fabrico de armas
nucleares.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 213

Nos anos 70, a certeza de que um conflito nuclear não teria vencedores nem venci- Cronologia
dos e poderia aniquilar toda a humanidade, leva as duas superpotências a iniciarem
A conquista do espaço
negociações diretas para travar a corrida nuclear. O primeiro passo é dado em Moscovo,
1957
em 1972, com a assinatura pela URSS e EUA dos SALT I (Strategic Arms Limitation Talks). URSS lança o Sputnik I.
Em 1979, foram negociados, mas não ratificados, novos acordos: SALT II. 1958
Fundação da NASA
(National Aeronautics and
B) A era espacial Space Administration).
EUA lançam o Explorer I.
A competição bipolar americano-soviética estende-se a uma nova frente: a conquista 1961
do espaço. A era espacial começa oficialmente a 4 de outubro de 1957 quando a URSS Iuri Gagarine (URSS) é o
1.º homem no espaço.
coloca em órbita o Sputnik, o primeiro satélite artificial. Os soviéticos realizavam assim 1962
o que parecia então um milagre da tecnologia e suplantavam clamorosamente a pode- John Glenn, 1.º americano
em órbita.
rosa nação americana. Um mês depois, o Sputnik 2, transporta a bordo a primeira cria-
1965
tura viva a girar em órbita, uma cadela chamada Laika. Leonov (URSS) faz o
1.º passeio no espaço
O êxito espacial soviético é visto por uma grande parte do Mundo como uma demons- (10 minutos).
tração inequívoca da superioridade da tecnologia soviética sobre a norte-americana. O 1969
lançamento do Sputnik provava que a URSS era capaz de produzir foguetões – e por- A Apollo 11 (EUA) coloca os
1.os homens na Lua.
tanto mísseis armados de longo alcance – muito mais poderosos do que aqueles que as 1973
forças armadas americanas dispunham. O programa de mísseis balísticos foi acelerado. Lançamento da nave
espacial tripulada Skylab
E tanto na URSS como nos EUA, as duas competições – a corrida espacial e a corrida aos
(EUA).
armamentos – transformaram-se essencialmente numa só: a tecnologia de foguetões 1975
necessária para enviar satélites e homens para o espaço era a mesma necessária para Acoplagem no espaço da
Apollo (EUA) e da Soyuz
lançar bombas. (URSS).

As potencialidades militares da exploração espacial foram rapidamente compreendi-


das. Muitos dos foguetões utilizados para o lançamento no espaço são variantes dos mís-
seis balísticos intercontinentais (ICBM). E todos os serviços militares das superpotências,
especialmente as suas forças aéreas, estão intimamente ligados aos programas de inves-
tigação e desenvolvimento da exploração espacial e incluem nas suas missões objetivos
de natureza militar.

Em 31 de janeiro de 1958, quatro meses depois do lançamento do Sputnik, os norte-


-americanos põem a girar sobre a órbita da Terra o seu primeiro satélite, o Explorer 1.

Mas, em 1961, a URSS obtém um novo e retumbante sucesso


com a colocação em órbita do primeiro homem, Iuri Gagarine.
Alguns anos depois, em 1965, são ainda os soviéticos os primei-
ros a realizar um passeio espacial, um feito realizado pelo seu
cosmonauta Leonov.

No final dos anos 60, os EUA conseguem um êxito espetacu-


lar com a colocação dos primeiros seres humanos na Lua através
do Apollo 11. De facto, como anunciou Neil Armstrong (Fig. 15)
(o outro cosmonauta que o acompanhava era Edwin Aldrin) ao abandonar o módulo lunar, Fig. 15. Os primeiros passos
do homem na Lua: o norte-
É um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a Humanidade. -americano Neil Armstrong
(1969).
214 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Documento 3 1.3. A afirmação de novas potências


Os novos exércitos…
Confidência de Saburo 1.3.1. O rápido crescimento do Japão
Okita, antigo ministro
japonês dos Negócios O ressurgimento do Japão após a derrota na Segunda Guerra Mundial (Doc. 3) e sobre-
Estrangeiros, em 1943,
quando já era visível a tudo a rapidez como recuperou de uma economia completamente em ruínas, em 1945,
derrota militar:
para terceira potência económica mundial, logo em 1960, constitui um feito verdadeira-
Não existem só exércitos
de uniforme. O nosso mente notável. Esta recuperação torna-se ainda mais impressionante se considerarmos:
exército secreto será
constituído por homens de – os limitados recursos naturais, pelo que foi forçado a exportar para pagar as impor-
fato completo que
tações necessárias de matérias-primas e produtos alimentares;
possuirão uma tecnologia
eficaz e um espírito – o superpovoamento;
combativo. A guerra
americano-japonesa – uma área cultivável muito reduzida;
poderá prosseguir sob esta
forma. – o ressentimento dos países vizinhos contra o expansionismo japonês anterior a
International Herald Tribune,
de julho de 1989. 1945 e a desconfiança relativamente à qualidade dos seus produtos.

? Questão A ponderação destes factos levou alguns analistas a classificar o crescimento econó-

1. Explicite o tipo de mico do Japão na década de 60 com taxas de crescimento económico muito superiores
exércitos e de guerra a que às dos restantes países industrializados, incluindo os EUA, de “milagre japonês”.
se refere Saburo Okita.

3 As razões de um “milagre”
EUA

2,5 Importa desde já referir que a reconstrução e modernização da economia japonesa


não ocorreu por “milagre”, mas resultou do aproveitamento competente de um conjunto
RFA

2
D—lares americanos

de fatores e de oportunidades, concretamente:


1,5
Jap‹o

– o programa de ajuda financeira e de reformas estruturais norte-americano, o deno-


1

minado Plano Dodge, aplicado sob a direção do general norte-americano MacArthur,


Coreia do Sul

0,5 promoveu a modernização das suas estruturas económicas e a democratização política;


Taiwan

0
– a reforma agrária imposta pelo programa de recuperação e as mudanças estruturais
operadas em setores industriais de baixa produtividade, como os têxteis e a indús-
Fig. 16. Salários médios/hora
comparados, 1972. tria alimentar, melhoraram os índices de produtividade agrícola e industrial;
Histoire, Terminales,
ob. cit., p. 58.
– a abundância de mão de obra e a fraca pressão dos sindicatos mantiveram os salá-
rios a um nível excecionalmente baixo (Fig. 16) e os horários de trabalho mais lon-
gos do que nos outros países industrializados; os reduzidos custos da mão de obra
permitiram às empresas japonesas obter elevados lucros, aumentar os investimen-
tos em equipamento produtivo e manter elevadas as exportações;

– promoção de um forte investimento na educação e na inovação tecnológica (Fig. 17);

– a intervenção estatal: concessão de apoios financeiros e administrativos às indús-


trias de exportação e à sua cartelização, como a Mitsubishi, Fuji, Mitsui, entre
Fig. 17. A iniciação das
crianças no estudo das
outras; subsídios; elevação das tarifas alfandegárias e imposição de outras medi-
ciências, uma prioridade das restritivas às importações (protecionismo);
educativa do Japão.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 215

– exploração hábil das vantagens geostratégicas do Japão no contexto da Guerra Fria,


sobretudo durante a Guerra da Coreia (1950-1953), para se tornar num aliado pre-
ferencial dos EUA;
– a exploração de algumas características específicas do sistema tradicional de valo-
res do povo japonês, como o espírito de lealdade e de disciplina, a capacidade de
trabalho e um forte nacionalismo, constituindo este um obstáculo adicional à con-
corrência estrangeira no mercado japonês.

Fig. 18. Mao Tsé-Tung,


(1893-1976). Em 1949,
1.3.2. O afastamento da China do bloco soviético depois de uma longa luta
contra as forças
nacionalistas de Chang
A proclamação da República Popular da China em 1949 após a revolução vitoriosa
Kai-Chek, fundou a
liderada por Mao Tsé-Tung (Fig. 18) reforçou, como vimos, o bloco comunista sob a lide- República Popular da China.
Em 1966, lançou o
rança da União Soviética. A China seguiu então o modelo comunista soviético, contando
movimento de
para o efeito com a ajuda económica e técnica do “grande irmão” soviético. Em 1950, os radicalização ideológica e
política denominado
dois países estreitaram as suas ligações doutrinárias e políticas com a assinatura de um
Revolução Cultural (1966-
pacto de amizade, aliança e ajuda mútua. -1969), que mobilizou o
entusiasmo dos jovens e
Mas depois da morte de Estaline, em 1953, as relações entre as duas grandes potên- ativistas do partido, bem
cias do bloco socialista alteraram-se substancialmente. Mao opôs-se aos processos de como o culto de
personalidade de Mao, o
desestalinização abertos por Krutchov em 1956 e à sua política de “coexistência pacífica” “grande timoneiro”. Cerca
com o capitalismo, mantendo-se fiel à teoria estalinista do bipolarismo. de 20 milhões de jovens
recrutados para a Guarda
Os dirigentes chineses convictos da sua fidelidade aos princípios do comunismo clas- Vermelha, fanáticos do
maoísmo, espalharam-se
sificaram os soviéticos de “revisionistas”, considerando que a URSS pós-estalinista se pelas regiões rurais,
afastou do “dogma” marxista-leninista. massacrando comunistas,
intelectuais “burgueses” e
As divergências políticas e doutrinárias do maoísmo* acentuaram-se em 1958, quando “capitalistas”.

Mao defendeu o salto para o comunismo, o “Grande Salto em Frente”, contra a transi-
* Maoísmo: termo utilizado
ção para o comunismo preconizada pelos soviéticos. para designar o
pensamento e a linha de
A rutura das relações sino-soviéticas ocorre no início dos anos 60 numa altura em que ação do líder revolucionário
as desavenças entre Moscovo e Pequim se tornaram críticas. A União Soviética recusou chinês Mao Tsé-Tung. A
principal característica do
partilhar os seus segredos nucleares com a China e manda regressar a Moscovo os seus maoísmo foi a importância
conselheiros. Na crise dos mísseis de Cuba (1962), a China acusa publicamente a União reconhecida às massas
camponesas e a crença de
Soviética de imprudência. No mesmo ano, a URSS responde com uma posição de neu- que estes poderiam
tralidade face ao conflito fronteiriço que a China trava com a Índia. O júbilo que a morte cumprir a função histórica
de construir a sociedade
de Krutchov em 1971 provocou em Pequim é significativo do estado das relações entre socialista que, segundo os
as duas grandes potências do campo socialista. teóricos marxistas
europeus, caberia ao
proletariado industrial.
Em 1964 a China torna-se uma potência nuclear. A “Grande Revolução Cultural do Pro-
letariado” (1966-1969), mostra que a China pretende construir a sua própria via para o
comunismo. Os incidentes fronteiriços no rio Ussuri em 1969 com a URSS, a sua aproxi-
mação aos países do Terceiro Mundo, a sua admissão na ONU (1971) e a visita do pre-
sidente norte-americano Richard Nixon a Pequim no ano seguinte revelam as suas pre-
tensões de disputar à União Soviética a liderança do mundo comunista.
216 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Cronologia 1.3.3. A ascensão da Europa


1947 A) A ideia da Europa
Criação da OECE; Congresso
de Haia. No pós-guerra, a consciência nos países da Europa Ocidental das vantagens comuns
1949
em se associarem, para gerirem a ajuda financeira norte-americana para a reconstrução da
Conselho da Europa.
1950 Europa (Plano Marshall), a dependência dos EUA e o receio da ameaça soviética fizeram
Plano Schuman. despertar o velho sonho da unidade da Europa. Ressaltava aos olhos dos mais lúcidos
1951
que o caminho da paz e do progresso dos povos e estados europeus passava pela cons-
Fundação da CECA.
1957 trução de uma “Europa unida”, livre e com identidade própria.
Tratados de Roma: CEE e
A Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), criada sob influência ame-
EURATOM.
1960 ricana em 1947, constituiu o primeiro passo nessa direção. Nesse mesmo ano, entre 7 e
Criação da EFTA. 10 de maio, reuniu-se o Congresso de Haia, convocado pelo Comité Internacional de Coor-
Criação da OCDE.
denação dos Movimentos pela Unidade Europeia, integrando uma série de movimentos
1965
Tratado de fusão: pan-europeístas(22). Em Haia foi recomendada a criação urgente de uma assembleia euro-
unificação da CECA, CEE e peia de caráter deliberativo, formada por deputados democraticamente eleitos que, entre
EURATOM – criação da
Comunidade Europeia. outras coisas, deveria redigir uma Carta dos Direitos do Homem, acompanhada da cria-
1973 ção de um Tribunal de Justiça para a fazer respeitar, e estabelecer os mecanismos neces-
1.º alargamento: Europa dos
sários para a união económica da Europa.
Nove (Grã-Bretanha,
Irlanda e Dinamarca).
1978 B) As realizações
Criação do Sistema
Monetário Europeu. Depois de ultrapassadas as divergências entre unionistas e federalistas(23) sobre o
1979 modelo de construção europeia a seguir, em janeiro de 1949 foi criado o Conselho da
1.as eleições para o
Parlamento Europeu por Europa. A tarefa do Conselho seria procurar os mecanismos adequados para a futura
sufrágio universal direto. união política da Europa. Mas, ao manter intacta a soberania dos estados-membros, não
obteve os resultados desejados e foi necessário procurar outras formas para fazer avan-
çar a integração europeia.

Documento 4 Foi o francês Jean Monnet (Doc. 4), reconhecido como o pai da Europa, que propôs
um novo caminho: criar uma infraestrutura económica comum entre os estados europeus
A ideia de Europa
e, a partir daí, progredir passo a passo na direção da união política.
Para haver paz no futuro, é
indispensável a criação de Os resultados do método proposto por Monnet não tardaram. Em 1951, foi criada a
uma Europa dinâmica. Uma
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) pelo Tratado de Paris, subscrito pela
associação de povos
“livres” (...). Esta França, Alemanha, Itália e o Benelux(24). O seu objetivo era estabelecer um mercado
associação será fundada
comum para ambos os produtos, gerido por uma Alta Autoridade, controlada por um Par-
sobre a liberdade, portanto
sobre a diversidade. lamento Europeu, enquanto um Tribunal de Justiça ficaria com a função de mediar os
A Europa (...) irá surgir
eventuais conflitos.
como uma força de
equilíbrio. (…).
A Europa nunca existiu. Não O êxito da CECA encorajou a sua extensão a toda a atividade económica. Em 25 de
é a simples adição de
soberanias reunidas em março de 1957 foram assinados os Tratados de Roma, que criaram a Comunidade da
conselhos que cria uma Energia Atómica Europeia (EURATOM) e a Comunidade Económica Europeia (CEE).
entidade. É preciso criar
verdadeiramente a Europa
que se revele a si própria (22)
Entre outros: a União Europeia de Federalistas, a Liga Europeia de Cooperação Económica e o Movimento Socia-
(…) e que tenha confiança lista para os Estados Unidos da Europa.
no seu próprio futuro. (23)
Os unionistas eram partidários de uma Europa supranacional, com poderes alargados, e de uma integração total e
Jean Monnet, Memorando, rápida; os federalistas opunham-se à limitação da soberania dos estados e defendiam uma integração limitada e lenta.
de 3 de maio de 1950. (24)
Benelux: união aduaneira instituída por tratado celebrado entre Bélgica, Holanda e Luxemburgo, em 1958.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 217

O objetivo da CEE era estabelecer um mercado comum, ou seja, um espaço de livre ? Questões
circulação de mercadorias, pessoas, capitais e serviços, e a longo prazo “uma união cada
1. Quais os objetivos
vez mais estreita” dos povos europeus. subjacentes à proposta de
Monnet?
Paralelamente, em 1960, o Reino Unido constituiu com a Irlanda, Suíça, Áustria, paí- 2. Explicite o sentido da
afirmação destacada.
ses nórdicos e Portugal a EFTA (European Free Trade Association). Era uma resposta
3. Em que difere o projeto
alternativa ao projeto da CEE, mas muito menos ambicioso, já que os seus objetivos eco- de Monnet de outras
nómicos estavam limitados à criação de uma área de comércio livre. Por outro lado, dife- tentativas anteriores de
unificação europeia?
rentemente da CEE, não tinha quaisquer objetivos de natureza social ou política. O desen-
volvimento da CEE acabaria por fazer desvanecer o papel da EFTA, acabando esta por
desaparecer com a adesão dos seus estados-membros à primeira. Documento 5
O processo de integração conheceu períodos de aceleração e estagnação, enfrentou A Conferência de Bandung
resistências e obstáculos de diversos tipos, mas prosseguiu trilhando duas vias funda- (1955)
mentais: o alargamento e o aprofundamento. (…) A Conferência Afro-
-Asiática discutiu os
problemas dos povos
Relativamente à primeira via, em 1973, operou-se o primeiro alargamento com a ade- dependentes e do
colonialismo, e os prejuízos
são da Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca: a Europa dos Seis passava para a Europa dos provocados pela submissão
Nove. Alguns anos depois, o segundo alargamento: com a entrada da Grécia, em 1981, a dos povos ao estrangeiro,
ao seu domínio e
Europa passou a contar com dez estados-membros. exploração. A Conferência
está de acordo:
Os sucessivos alargamentos da, então, CEE provocaram um crescimento significativo 1. Em declarar que o
colonialismo, em todas as
do seu peso demográfico e da sua dimensão geográfica, mas as adesões da Irlanda, da suas manifestações, é um
Grécia, de Portugal e de Espanha acentuaram o dualismo económico e social, caracteri- mal ao qual se deve pôr
fim rapidamente.
zado pela existência de um centro economicamente muito desenvolvido, ladeado a oeste
2. Em declarar que a
e a sul por uma periferia com um considerável atraso estrutural. Compreende-se, assim, questão dos povos
que, em 1986, o Ato Único Europeu tenha introduzido um título relativo à “Coesão Eco- submetidos a um jugo
estrangeiro (…) constitui
nómica e Social”, e que, a partir do Conselho Europeu de Maastricht, em dezembro de uma negação dos direitos
1991, a coesão económica e social tenha passado a fazer parte dos princípios fundamen- fundamentais do homem, é
contrária à Carta das
tais da União. Nações Unidas e impede o
desenvolvimento da paz e
da cooperação mundiais.
Paralelamente, o projeto europeu evoluiu também no sentido do aprofundamento da
3. Em apoiar a causa da
integração: em 1978, foi criado um Sistema Monetário Europeu (SME) próprio, elegendo liberdade e independência
o ECU como unidade monetária de referência. No ano seguinte, realizam-se as primeiras destes povos.
eleições diretas para o Parlamento Europeu (PE). Os cidadãos europeus eram, assim, cha- 4. Em pedir às Potências
interessadas que
mados a participar ativamente na construção do seu futuro. concedam a liberdade e
independência a estes
povos. (…)
1.3.4. A segunda vaga de descolonizações Excertos do comunicado final
da Conferência Afro-Asiática
Com a descolonização da Ásia praticamente concluída, reuniram-se, sob a presidência de Bandung, 14-24 de abril
de 1955.
do líder indonésio Sukarno, em abril de 1955 em Bandung (Indonésia), os representan-
tes de vinte e nove países asiáticos e africanos. A Conferência de Bandung (Doc. 5) cons-
? Questões
titui uma referência no processo de descolonização. Com efeito, ao expressar a sua soli-
dariedade com os povos colonizados, ainda dependentes, em particular em África, deu 1. Quais os assuntos
abordados na conferência?
um estímulo decisivo para a emancipação do continente africano.
2. Que deliberações foram
tomadas?
218 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Em dezembro de 1958, o líder pan-africanista do Gana(25), Nkrumah, organiza em Acra


a Conferência dos Povos de Toda a África. Tendo como bandeira o conceito de Negri-
* Pan-africanismo: tude(26) e como elemento agregador o pan-africanismo*, os movimentos nacionalistas*
movimento de unidade dos (neste caso designados por Movimentos de Libertação Nacional) africanos mobilizam-se
povos africanos. A OUA
(Organização para a para a luta pela emancipação do domínio colonial.
Unidade Africana), criada
Após intensas pressões das forças políticas indígenas e da ONU, os protetorados fran-
em 1963, foi uma
concretização deste ideal. ceses de Marrocos e da Tunísia obtêm o reconhecimento da sua independência pela
* Movimentos nacionalistas França em 1956. Na Argélia, a conquista da independência só foi alcançada em 1962
(ou Movimentos de depois de uma guerra longa e violenta entre as forças independentistas da Frente de
Libertação Nacional):
movimentos ou correntes Libertação Nacional (FLN) e os exércitos franceses.
de exaltação da própria
Na África Negra, a descolonização das colónias britânicas foi mais pacífica e rápida,
nação e de tudo o que a
ela pertence. Os objetivos pois a Inglaterra mostrou-se mais flexível do que a França. O Gana tornou-se indepen-
dos movimentos dente em 1957. A Nigéria obtém a independência em 1960. Na Rodésia do Sul a maioria
nacionalistas passam
sobretudo pela procura branca proclama unilateralmente a independência em 1965 e instaura um regime de
e/ou manutenção da segregação racial idêntico ao modelo sul-africano do apartheid(27).
soberania política e pela
defesa da identidade Os vários países da África Ocidental e da África Equatorial francesa, que dispunham de
cultural. alguma autonomia desde 1956, viram o país colonizador reconhecer-lhes, após negocia-
ções, a independência total em 1960. No mesmo ano, e depois de alguns incidentes vio-
lentos, a Bélgica acaba por reconhecer a independência do Congo belga. Contudo, a inde-
pendência não trouxe a paz a este país que logo se viu mergulhado numa terrível guerra
civil que motivou a intervenção das forças da ONU e que só terminou em 1965 com o
golpe de estado de Mobutu. O Ruanda e o Burundi, também colónias belgas, tornam-se
independentes em 1962.
Em meados da década de 60, quase toda a África tinha-se tornado independente. As
colónias portuguesas, Angola, Guiné, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde,
seriam as últimas a aceder à independência. Depois de uma longa luta de guerrilha ini-
ciada em 1961, o fim da ditadura em Portugal em 25 de abril de 1974 representou para
estas colónias o reconhecimento do seu direito à autodeterminação e à independência.

1.3.5. A política de não-alinhamento


Os novos estados emancipados da dominação colonial saíram dos processos de des-
colonização, muitos deles longos e violentos, extremamente fragilizados económica e
socialmente. A independência não lhes resolveu, naturalmente, todos os seus problemas.
Os séculos de colonização tinham subordinado as suas economias aos interesses das
respetivas metrópoles orientando-as para as culturas de plantação (algodão, café, cacau)
e para a exploração de produtos primários do solo e do subsolo destinados à exporta-
ção, pelo que se viam obrigados a importar alimentos e equipamentos dos países indus-
trializados a preços determinados por estes, acentuando deste modo a sua situação de
dependência económica.

(25)
Gana, antiga Costa do Ouro, independente em 1957.
(26)
Negritude: valorização da cultura negro-africana e defesa da sua emancipação face à cultura dos colonizadores
brancos.
(27)
Apartheid: regime de segregação racial imposto na África do Sul pelo Partido Nacional, de ideologia racista segre-
gacionista, em 1948. Traduz-se, concretamente, na negação do direito de voto aos negros, no acantonamento des-
tes em áreas residenciais próprias, na proibição de frequentar certos lugares públicos, etc.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 219

A estas fraquezas económicas adicionavam-se dificuldades demográficas decorrentes * Neocolonialismo: domínio


económico do antigo
de elevadas taxas de natalidade e de mortalidade, a baixa escolaridade e o analfabe- colonizador ou de uma
tismo. Muitos destes novos estados debatiam-se também com graves problemas étnicos nova potência sobre o
antigo país/território.
devido à diversidade de etnias que integravam e com a manutenção das mesmas fron-
* Não-alinhamento:
teiras do tempo colonial, traçadas sem ter em conta as realidades humanas locais.
movimento ou associação
de países criado na
A alternativa para muitos destes novos estados é, pois, voltar-se quer para as anti-
Conferência de Belgrado
gas metrópoles quer para as superpotências, EUA e URSS, olhadas com simpatia pelo seu em 1961, com o objetivo de
manter uma posição
apoio à descolonização. Uma opção deste tipo induz uma nova dependência, o neocolo-
neutral face à bipolarização
nialismo*. (Blocos Leste/Oeste) e ao
clima de Guerra Fria.

Conscientes desta situação, alguns dirigentes dos novos estados avançam com a dou-
trina do não-alinhamento*. A sua origem remonta à Conferência de Bandung (Indonésia) Documento 6
em 1955 que marcou a emergência do mundo afro-asiático na cena internacional e que
Os objetivos do Movimento
foi institucionalizada na Conferência de Belgrado (Jugoslávia), em 1961 (Doc. 6). dos Países Não-Alinhados
A declaração final desta Conferência estabeleceu as linhas de orientação do designado Os Países Não-Alinhados
representados na presente
Movimento dos Países Não-Alinhados: Conferência não pretendem
criar um novo bloco (…).
Consideram que a
– condenação do bipolarismo e da Guerra Fria;
extensão da esfera do
– recusa em alinhar pelas posições políticas de qualquer dos blocos, quer o capita- não-alinhamento
representa apenas a
lista, liderado pelos EUA, quer o socialista pela URSS; possibilidade e a escolha
indispensável face à
– não pretensão de constituir um novo bloco, mas de afirmação da presença do Ter-
tendência para a divisão
ceiro Mundo(28) na cena política internacional. total do mundo em blocos
e o agravamento da
política da Guerra Fria.
Nos anos 60 e 70 (Quadro 2), o Movimento adiciona aos objetivos de descolonização Excerto da Declaração dos
e do não-alinhamento o do (sub)desenvolvimento. Considerando que a economia inter- Chefes de Estado ou de
Governo dos Países
nacional funciona a favor dos países ricos e contra os países pobres, 77 estados do Ter- Não-Alinhados, Belgrado,
setembro de 1961.
ceiro Mundo (o “Grupo dos 77”) constituem no seio da ONU, em 1964, a Conferência das
Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), uma organização destinada
? Questão
a defender os seus interesses económicos específicos.
1. Que objetivos ou
Na Conferência de Lusaca (1970) e sobretudo na de Argel (1973), os países não-alinha- motivações estiveram na
dos reivindicam a criação de uma Nova Ordem Económica Internacional (NOEI). Pretendiam origem deste movimento?

estes países que esta Nova Ordem funcionasse com regras diferentes da ordem económica
internacional capitalista estabelecida no pós-guerra, ou seja,
N.o de países
que fosse dado um tratamento preferencial – discriminação Anos Cidade País
participantes
positiva – às economias dos países do Terceiro Mundo, de
1961 Belgrado Jugoslávia 25
forma a permitir-lhes superar o seu atraso e assegurar-lhes
1964 Cairo Egito 46
uma independência efetiva. 1970 Lusaca Zâmbia 54
1973 Argel Argélia 75
1976 Colombo Sri Lanka 85
1979 Havana Cuba 90
1983 Nova Deli União Indiana 97
1986 Harare Zimbabué 101

Quadro 2 – Conferências
(28)
Terceiro Mundo: expressão criada pelo economista francês Alfred Sauvy em 1952 para designar, por analogia com dos Países Não-Alinhados.
a situação do terceiro estado em França antes da Revolução (1789-1815), o conjunto de países menos desenvolvidos
ou em desenvolvimento.
220 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Apesar das suas intenções e compromissos, a verdade é que o Movimento dos Paí-
ses Não-Alinhados teve muitas dificuldades em manter a coesão e o neutralismo face às
pressões bipolares, entre outras, pelas seguintes razões:
– diferenças ideológicas e divisões internas, nomeadamente
após a morte dos seus fundadores históricos, Nehru, Tito e
Nasser (Fig. 19), decorrentes da diversidade étnica e da
heterogeneidade político-ideológica do Movimento que
incluía estados árabes e africanos, estados extremistas,
como Cuba e Líbia, e outros mais moderados, como Índia e
Argentina;
– debilidade económica e política da maior parte dos países
terceiro-mundistas;
Fig. 19. Da esquerda para a
direita: Nasser, Tito e – heterogeneidade de recursos e níveis de desenvolvimento acentuada na década de 80,
Nehru, três dos principais uma vez que alguns países enriqueceram com a alta dos preços do petróleo (os países
líderes do Movimento dos
Países Não-Alinhados. da OPEP), outros industrializaram-se (os Novos Países Industrializados, como a Coreia
do Sul, Malásia, Singapura, etc.), enquanto outros mantiveram ou agravaram o seu
atraso económico.

1.4. O termo da prosperidade económica: origens e efeitos


O forte crescimento da economia internacional verificado nos anos do pós-guerra deu
lugar, nos anos de 1970, a uma crise e a uma depressão tão imprevistas como violentas.

Em 1973, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de


Petróleo(29)), como retaliação ao apoio ocidental a Israel na cha-
2 litros URSS
Consumo do mada guerra do Yom Kippur(30), decidiu utilizar o petróleo como
petr—leo
êndice 1 = 1968 arma política (Fig. 20), reduzindo em 5% as exportações do
Jap‹o
1,4 petróleo e embargando a sua exportação para os EUA e outros
Frana
1,2 Europa países ocidentais.
Ocidental
1 litro EUA
em 1968 Como consequência, os preços do petróleo tiveram um
Gr‹-Bretanha
0,9
aumento brutal: o custo do barril passou de cerca de 3 dólares
0,8
1968 1974 1981 1984 para mais de 11 dólares. Esta subida espetacular do petróleo
ficou conhecida como o “primeiro choque petrolífero”.
Fig. 20. A evolução do
consumo de petróleo.
A) Os fatores da crise
Histoire, Terminales,
ob. cit., p. 35.
A quadruplicação do preço do petróleo entre outubro de 1973 e janeiro de 1974 foi o
primeiro choque global sofrido pelas economias industrializadas depois do fim da Segunda
Guerra Mundial. Pela primeira vez, a evolução da economia mundial era perturbada por
uma decisão tomada à revelia dos grandes centros de poder económico. Pela primeira vez
todos os países industrializados eram afetados de forma simultânea e quase idêntica por
um fator externo, mostrando uma vulnerabilidade até então desconhecida.

(29)
OPEP: cartel criado em 1960 em Bagdade, integrando 13 países produtores e exportadores de petróleo.
(30)
Yom Kippur (6 de outubro, o dia do Grande Perdão, festa sagrada judaica): as forças egípcias e sírias atacaram
Israel de surpresa. Soviéticos, americanos e ONU intervêm exigindo um cessar-fogo que foi aceite a 25 de outubro.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 221

A “crise do petróleo” teve naturalmente responsabilidades na depressão que a eco-


nomia internacional conheceu ao longo dos anos 70. Mas não foi seguramente o único
fator. O brutal aumento dos preços do petróleo em 1973 foi apenas o golpe final para
um sistema económico que dava já sinais claros de esgotamento, concretamente:

– o abrandamento do crescimento económico começara já a fazer-se notar durante a


década de 60, sobretudo porque o estímulo da reconstrução da Europa e do Japão
se esvanecera;
– as dificuldades de escoamento da produção nos mercados internos, em particular
de bens duráveis (automóveis, eletrodomésticos, etc.);
– a concorrência dos novos países industrializados (NPI) da Ásia e da América do Sul
nos mercados externos;
– o grande dimensão e os métodos de organização do trabalho das grandes empre-
sas começaram a tornar-se ineficientes, afetando negativamente a produtividade e
a rentabilidade, o grande motor do extraordinário crescimento económico nas déca-
das anteriores;
– a subida significativa dos preços das matérias-primas, em consequência do aumento
da procura das potências industriais e dos novos países industrializados (NPI).

A estas dificuldades das empresas acrescentara-se uma crise monetária. A 15 de


Cronologia
agosto de 1971, a decisão do Presidente Nixon de suspender o vínculo entre o dólar e o
ouro e abandonar formalmente o compromisso dos EUA em assegurar a convertibilidade 1960
Criação da OPEP
do dólar em ouro(31) desmantelaram o Sistema Monetário Internacional (SMI) definido em (Arábia Saudita, Irão,
Bretton Woods (1944). A partir daqui, a moeda americana (as restantes moedas segui- Iraque, Koweit, Venezuela).

ram-lhe o exemplo) passou a flutuar livremente no mercado de câmbios e instalou-se 1971


Nixon decide pôr fim à
uma situação de desordem monetária nas relações económicas internacionais. paridade fixada em Bretton
Woods (1944) – dólar-ouro –
e à convertibilidade do
B) Os efeitos da crise: a depressão generalizada dólar em ouro: fim do SMI.
O facto de a alta dos preços da energia ocorrer numa conjuntura em que o cresci- 1973
“1.º choque petrolífero.”
mento económico estava já em franca desaceleração tornou os seus efeitos mais gravo-
1979
sos tanto para as economias dos países industrializados como também para os próprios “2.º choque petrolífero.”
países produtores de petróleo e para os países do Terceiro Mundo.

Relativamente aos primeiros, a alta do petróleo fez subir os preços dos carburantes,
da eletricidade e de todos os bens cuja produção consumia energia, criando deste modo
dificuldades adicionais às empresas e ao consumo.

Mas o 1.o choque petrolífero de 1973-1974 como o que se lhe seguiu em 1979-1980
não constituíram apenas um desafio à hegemonia económica das grandes potências, que
se empenharam em enfrentá-lo com programas de economia energética e o desenvolvi-
mento de energias alternativas.

(31)
Entre as razões desta decisão apontam-se: a expansão do défice da balança de pagamentos americana, a fuga
dos capitais e as avultadas despesas com a Guerra do Vietname.
222 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Além disso, colocava-se um problema inesperado e de difícil resolução à política eco-


nómica, repentinamente confrontada com a subida simultânea da inflação e do desem-
prego. A política económica então muito influenciada pelo keynesianismo, descobriu que
* Estagflação: situação
económica caracterizada o desemprego pode, afinal, coexistir com a inflação. Tratou-se de uma situação para o
por uma estagnação qual se usou o termo estagflação*.
recessiva da atividade
económica e por um No entanto, o crescimento económico dos países desenvolvidos não ficou totalmente
aumento do desemprego,
ao mesmo tempo que a comprometido, tendo prosseguido ainda que a um ritmo mais lento.
inflação se mantém em
níveis elevados. Os países do Terceiro Mundo muito dependentes da importação do petróleo e de pro-
60
dutos manufaturados dos países industrializados veem as suas
1960 1965 1970 1975
dívidas externas e os índices de pobreza crescerem significativa-
Bol’via

50
mente (Fig. 21). Ao mesmo tempo, debatem-se com dificuldades
Paquist‹o

Z‰mbia

40
acrescidas de acesso aos mercados dos países industrializados.
Nicar‡gua
PNB (%)

ArgŽlia

30
O comércio internacional contraiu-se. A depressão instalou-se.
QuŽnia

Depois de 1975 verificou-se uma ligeira retoma. Mas o segundo


Gana

20

choque petrolífero de 1979-1980, na sequência da guerra entre o


10
Irão e o Iraque, que triplicou os preços do barril, fez subir a infla-
0 ção e o desemprego.
Fig. 21. Evolução da dívida
pública nos países do C) As soluções procuradas
Terceiro Mundo.
Histoire, Terminales, Para fazer face à recessão, os estados tendem a reforçar as políticas económicas ins-
ob. cit., p. 74.
piradas no keynesianismo, já adotadas na Grande Depressão dos anos 30, como resposta
aos problemas económicos e sociais que acompanham:
– o reforço do investimento público;
– a promoção do emprego;
– a elevação dos salários;
– o embaratecimento do crédito (taxas de juro baixas).

O objetivo é estimular o consumo e o dinamismo das empresas e combater o desem-


prego. Mas a sua realização à custa dos orçamentos dos estados (aumento da despesa
pública/défices orçamentais) implica um agravamento dos impostos, uma medida que tem
* Neoliberalismo: doutrina sempre elevados custos sociais e políticos. Acresce que as políticas keynesianas revela-
que preconiza o regresso ram-se impotentes para suster o desemprego e a inflação.
às conceções e práticas do
liberalismo económico dos Esta situação incentivou os críticos do keynesianismo e do estado-providência a
séculos XVIII e XIX –
redução da intervenção do defender outro tipo de soluções de natureza liberal, rebatizadas por alguns de neolibe-
estado ao mínimo possível, ralismo* ou ainda de monetarismo*.
livre iniciativa e economia
de mercado. Nos anos 80, Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990,
* Monetarismo: escola de e Ronald Reagan, presidente dos EUA entre 1981 e 1989, entre outros, foram dois dos
pensamento económico
que defende que as defensores entusiastas deste tipo de opções.
modificações na oferta
monetária são a principal
causa das flutuações
macroeconómicas, pelo
que preconiza o controlo
da oferta monetária.
Unidade 1 - Nascimento e afirmação de um novo quadro geopolítico 223

Em Síntese

• As conferências dos líderes das principais potências vitoriosas realizadas em Teerão, Ialta e
Potsdam, para deliberar sobre a nova ordem mundial do pós-Segunda Guerra Mundial, con-
sagraram uma nova partilha territorial da Europa e das áreas de influência entre as duas
superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética, defensoras de ideologias e de mode-
los político-económicos antagónicos.

• Para cumprir e fazer cumprir esse novo ordenamento, foi criada a Organização das Nações
Unidas (ONU), uma organização internacional de vocação universal, em cujo Conselho de
Segurança, o principal órgão da organização, têm assento em permanência e com direito de
veto cinco potências vencedoras da guerra – EUA, URSS, França, Grã-Bretanha e China – cons-
tituindo uma espécie de Diretório ou “polícias” do mundo.

• A rutura ideológica entre os Aliados está na origem do bipolarismo e do clima de tensão e riva-
lidade político-ideológica, militar e geostratégica, uma paz tensa – ou Guerra Fria – entre o
Leste (comunista) e o Oeste (capitalista), permanentemente pontuada por conflitos arma-
dos sustentados por cada um dos blocos em zonas estratégicas vitais.

• No plano das relações económicas internacionais, os fundamentos da nova ordem foram


estabelecidos pelos Acordos de Bretton Woods (1944): criação de um Sistema Monetário
Internacional (SMI), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD). Estes acordos foram completados pelo GATT
(General Agreement on Tariffs and Trade) com o propósito de liberalizar e de regular o
comércio internacional.

• A debilidade das potências coloniais europeias afetadas pela guerra, o Direito Internacional
depois da Segunda Guerra Mundial (Carta das Nações Unidas, Declaração Universal dos
Direitos Humanos) e o interesse das superpotências em alargar as suas áreas de influên-
cia, aliados ao prestígio internacional de alguns líderes nacionalistas, estimularam as aspi-
rações de emancipação dos povos. A primeira vaga de descolonizações ocorreu ainda na
década de 1940 na Ásia (Índia, Paquistão, Birmânia e Indonésia). A partir da Conferência de
Bandung (1955) a descolonização estendeu-se ao continente africano e à África Negra. Foi
ainda nesta Conferência que nasceu a doutrina do “não-alinhamento” ou neutralismo, insti-
tucionalizada na Conferência de Belgrado (1961), e segundo a qual os países do Terceiro
Mundo se recusavam a alinhar pelas posições políticas de qualquer um dos blocos.

• Entre 1945 e 1964, quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da
ONU e a República Popular da China adquirem capacidade nuclear. Face ao “equilíbrio do
terror”, a ONU e os países possuidores da arma atómica procuram controlar a proliferação
nuclear e a escalada armamentista.

• Depois dos “Trinta Anos Gloriosos” (1945-1975) de forte crescimento económico, as econo-
mias ocidentais em fase de desaceleração motivada pela diminuição da procura, pela
concorrência dos novos países industrializados (NPI), pela subida dos preços das matérias-
-primas e fortemente abaladas pelo “primeiro choque petrolífero” (1973) entram em reces-
são: o keynesianismo é questionado e afirma-se o neoliberalismo.
224 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Unidade 2 Portugal: do autoritarismo à democracia


SUMÁRIO
* Oposição democrática:
movimento alargado de 2.1. Imobilismo político e crescimento económico do pós-guerra a 1974*
oposição ao regime de 2.2. Da revolução à estabilização da democracia*
Salazar que congregava 2.3. O significado internacional da revolução portuguesa
várias forças políticas
contrárias à ditadura,
incluindo monárquicos, APRENDIZAGENS RELEVANTES
republicanos, socialistas e – Analisar a manutenção do regime do Estado Novo nos anos do pós-guerra no quadro inter-
comunistas, para além de
grupos como a “Seara nacional da Guerra Fria.
Nova”, a Maçonaria e – Relacionar a fragilidade da tentativa liberalizadora e de modernização económica do mar-
muitos independentes.
Até ao início dos anos 60, celismo com o anacronismo da sua solução para o problema colonial**.
a oposição tinha um – Perspetivar o sucesso da Revolução de 1974 no contexto da evolução do país e no quadro
caráter episódico,
manifestando-se apenas
internacional**.
nos períodos eleitorais ou – Reconhecer a modernização da sociedade portuguesa nas décadas de 60 e 70, nos com-
em datas comemorativas,
portamentos demográficos, na modificação da população ativa e na relativa aproximação
como o 1.o de Maio e o 5 de
Outubro. dos portugueses a padrões de comportamentos europeus**.
O PCP foi a única
– Identificar na Constituição de 1976 e na Revisão Constitucional de 1982, a evolução do pro-
organização que
sobreviveu à repressão jeto de sociedade para Portugal, emergente da Revolução de Abril**.
salazarista e esteve ativo
durante a vigência de toda CONCEITOS/NOÇÕES
a ditadura.
Oposição democrática**; Poder popular**; Nacionalização**; Reforma agrária**

* Conteúdos de aprofundamento
Cronologia
** Aprendizagens e conceitos estruturantes

1945
Criação do MUD.
Alteração da designação 2.1. Imobilismo político e crescimento económico do pós-guerra a 1974
PVDE pela PIDE.
Convocação de eleições
legislativas.
2.1.1. Imobilismo político
1948 Antes mesmo do final da Segunda Guerra Mundial, numa altura em que se acreditava
Ilegalização do MUD.
na derrota das ditaduras, formou-se, em 1943, o MUNAF (Movimento Nacional de Unidade
1949
Eleição de Óscar Carmona Antifascista), reunindo, por iniciativa do PCP, a generalidade das forças de oposição demo-
(Presidente da República). crática* a Salazar. Terminada a guerra, as expetativas de democratização do regime redobra-
1951 ram e, nas manifestações realizadas em Lisboa e no Porto, a 5 de outubro de 1945, durante
Eleição de Craveiro Lopes
as comemorações da implantação da Primeira República, foi exigido o fim do Estado Novo.
(Presidente da República).
1958 Temendo o recrudescimento da agitação social, Salazar procurou aliviar a pressão
Campanha eleitoral de sobre o regime, procedendo a um recuo tático através da adoção de algumas medidas
Humberto Delgado.
de caráter liberalizante:
Eleição de Américo Tomás
(Presidente da República).
1959 – decretou uma amnistia parcial para alguns presos políticos;
Revisão constitucional que
– alterou a denominação da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) para PIDE
determina que a eleição do
Presidente da República (Polícia Internacional de Defesa do Estado);
passa a ser por sufrágio
– dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições legislativas antecipadas;
indireto.
1961 – introduziu alterações no sistema eleitoral, subdividindo o círculo eleitoral e alargando
Assalto ao paquete “Santa o número de deputados.
Maria”.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 225

Na realidade, apesar de ter havido listas de candidatos alternativas à da União Nacio-


nal, as restrições à participação ativa da oposição ao regime, concretamente as ameaças
e as ações de intimidação e a reduzida percentagem de eleitores recenseados (cerca de
15% da população), não davam garantias de um ato eleitoral isento e livre.
Por esta razão, o MUD (Movimento de Unidade Democrática) criado em 1945, por ini-
ciativa dos setores republicanos e liberais, ao qual se juntou o PCP, numa lógica de
frente antifascista, reclamou o adiamento das eleições, de forma a permitir a realização
de um novo recenseamento eleitoral, uma melhor organização da oposição e o debate
alargado das ideias políticas. À recusa destas propostas, o MUD respondeu com um apelo
à abstenção que atingiu os 40%, apesar das irregularidades imputadas ao ato eleitoral.
A vitória da União Nacional, o partido do Governo, veio defraudar as expetativas da opo-
sição de democratização do regime.

Em 1949, a candidatura do general Norton de Matos (Fig. 1), um militar e político pres-
tigiado e Grão-Mestre da Maçonaria entre 1930 e 1935, deu um novo alento à oposição. Não
conseguindo garantias de isenção, Norton de Matos desistiu da sua candidatura, deixando
só na corrida à Presidência do Estado o marechal Óscar Carmona, o candidato do regime.
A morte de Carmona, em 1951, obrigou à realização de eleições. Desta vez, num con-
texto internacional de Guerra Fria, a oposição dividiu-se no apoio a dois candidatos: Quin-
tão Meireles, apoiado por republicanos e liberais, e o Professor Ruy Luís Gomes, o can-
didato dos comunistas. Este último foi considerado pelo Conselho de Estado inelegível
e, por isso, foi excluído do processo eleitoral. Fortemente pressionado, Quintão Meireles
retirou a sua candidatura e a oposição apelou, mais uma vez, à abstenção. O candidato Fig. 1. Cartaz da campanha
da União Nacional, o general Craveiro Lopes, apresentava-se sozinho a escrutínio. eleitoral de Norton de
Matos (eleições
Seguiu-se um período de alguma desmobilização da oposição, como ficou patente nas presidenciais de 1949).
eleições legislativas de 1953 e 1957.

Nas eleições de 1958, apresentaram-se dois candidatos dos mesmos dois setores oposi-
cionistas: Humberto Delgado, apoiado por republicanos e liberais, e Arlindo Vicente, apoiado
pelo PCP. Mas as duas candidaturas fundiram-se na de Delgado “o general sem medo”. Foi
a única vez que um candidato da oposição não desistiu antes do dia das eleições.
Apesar da onda de entusiasmo e do amplo apoio popular que reuniu à sua volta,
Humberto Delgado foi vítima de fraude eleitoral que beneficiou, mais uma vez, o candi-
dato do regime, o contra-almirante Américo Tomás.
O verdadeiro “terramoto político” provocado por Humberto Delgado fez com que a Assem-
bleia Nacional alterasse o sistema de eleição do Presidente da República, passando este a ser
eleito por sufrágio indireto, e levou o regime a endurecer a repressão policial e a censura.

Os primeiros anos da década de 1960 foram marcados por várias ações espetacula-
res da oposição:

– assalto ao paquete “Santa Maria” executado por um comando liderado por Henrique
Galvão, exilado na Venezuela, com o objetivo de chamar a atenção da opinião
pública internacional para a natureza autoritária do Estado Novo;
– o desvio de um avião da TAP para Tânger por um grupo de oposicionistas liderado
por Palma Inácio;
226 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

– manifestações de estudantes em Lisboa e em Coimbra, que decretaram o “luto aca-


démico” na sequência da proibição das comemorações do “Dia do Estudante”;
– abertura da Rádio Portugal Livre, em Argel, com o objetivo de contornar a censura
interna imposta sobre a circulação da informação.

2.1.2. Crescimento económico do pós-guerra (1945-1974)

A) Estagnação do mundo rural

Nos anos 50, Portugal era ainda um país predominantemente agrícola, ruralizado. O
setor agropecuário, em conjunto com o piscatório e o da silvicultura, empregava cerca de
40% da mão de obra ativa, tinha um índice de produtividade que correspondia sensivel-
mente a metade da média europeia (Quadro 1) e produzia um pouco
Rendimento cerealífero comparado (kg/ha)
menos de 24% da riqueza nacional. Ou seja, a atividade agrícola consti-
Trigo tuía um setor fortemente empregador, mas de baixa produtividade.
Países
1952-56 1964-66
Os diversos projetos de reforma das estruturas agrárias foram suces-
Holanda 37,7 44,0 sivamente entravadas quer pelos organismos oficiais quer pelo impor-

França 21,5 30,8


tante lobby dos grandes proprietários fundiários do sul do país.

Itália 17,7 21,4 Os objetivos de diversificação e modernização da produção agrícola e


de alteração dos regimes de propriedade afetavam os interesses daquele
Espanha 9,5 10,8
lobby, forte sustentáculo do governo e profundamente contrário a qual-
Portugal 8,1 7,6
quer proposta de reforma agrária.
Quadro 1
Com a elaboração do II Plano de Fomento* (1959-1964), pese embora algumas medidas
Fonte: C. Almeida e A. Barreto,
Capitalismo e Emigração em propostas – incentivos ao emparcelamento de terras no norte e ao parcelamento dos lati-
Portugal, Lisboa, Prelo, 1970
fúndios no sul, à diversificação da produção agrícola (promoção da exploração de produ-
* Planos de Fomento: tos florestais, hortícolas, frutícolas e pecuários), ao investimento no setor (concessão de
programações das políticas crédito bonificado) –, é definitivamente afastada a hipótese da modernização da agricul-
de desenvolvimento por
períodos quinquenais. tura portuguesa com base numa reforma da estrutura fundiária.
O I Plano de Fomento foi
elaborado para os anos de Secundarizada no processo de desenvolvimento, a agricultura não só não se moder-
1953-1958. nizou como se tornaria um travão à evolução da economia, com taxas de crescimento de
7,8% e 3,9%, nas décadas de 50 e 60, respetivamente.

O período de tempo que vai do final dos anos 60 até ao processo de integração comu-
nitário no pós-Revolução de Abril (1974) significou para o setor agrícola, subalternizado
pelo modelo de crescimento seguido e penalizado pela política de preços baixos que
tinha sido adotada até meados dos anos 60 pelas estruturas agrárias arcaicas, pelo
atraso tecnológico e pelo envelhecimento populacional decorrente do forte êxodo rural e
da emigração, foi confrontado com um duro desafio.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 227

B) A emigração

A emigração foi um fenómeno constante durante o Estado Novo e durante a sua


vigência saíram de Portugal, à procura de trabalho ou de melhores condições de vida,
mais de dois milhões de portugueses (Fig. 2). Desse número,
130 000
mais de 40% das partidas ocorreram nos anos 60.

Na década de 50, a expansão económica europeia provo- 110 000

cou uma alteração no destino dos fluxos emigratórios, legais


e ilegais, tendo os países industrializados da Europa, em par- 90 000

ticular a França, substituído a América. No ano de 1950, as saí-


70 000
das atingiram o número de 20 mil e foram subindo em flecha
até atingirem as 183 mil saídas em 1970.
50 000

Em 1960, a emigração aumentou extraordinariamente e,


em 1962, a emigração clandestina ultrapassou os 61%, ele- 30 000

vando-se a mais de 500 000 o número de clandestinos portu-


10 000
gueses em França. Portugal passou então por um fenómeno
1900 1931 1941 1951 1961 1969
de emigração crescente, em que famílias inteiras, de todas as a a a a a a
1930 1940 1950 1960 1968 1973
regiões do país, e portugueses de diferentes categorias pro- (a) (a)
(a) Inclui a emigra‹o clandestina prov‡vel que, nestes per’odos,
atingiu grande express‹o quantitativa, chegando a exceder largamente
fissionais abandonaram o país. Para além da França, também a emigra‹o legal.

a Alemanha, a Bélgica, a Suíça, a Holanda, a Inglaterra, o Fig. 2. Número anual médio


Luxemburgo e os países nórdicos se tornaram nas segundas pátrias dos Portugueses. de emigrantes (1900-1973).
A partir dos anos 60, uma
Nos arquipélagos da Madeira e Açores, a emigração continuou a eleger os Estados Unidos,
parte significativa da
o Canadá e a África do Sul como os destinos mais procurados. emigração é clandestina,
ilegal: fuga de opositores
Na origem deste fenómeno estavam: ao regime e de jovens que
procuram escapar à guerra
– os salários baixos e uma vida de miséria; colonial.
C. Almeida e A. Barreto, ob. cit.
– a mobilização para a guerra colonial de jovens em idade de integração militar;

– a repressão político-ideológica do regime.

A crise económica ocorrida na Europa nos anos 70 travou a emigração. A subida do


desemprego conduziu os países recetores a adotarem medidas por forma a impedir a
entrada de mais imigrantes, criando até incentivos para o regresso destes aos seus paí-
ses de origem. Neste período ficou também bem patente a dispersão e fixação dos por-
tugueses e dos seus descendentes por todos os continentes, daí a formação de numero-
sas comunidades espalhadas por todo o mundo.

Apesar de durante o Estado Novo os emigrantes serem referidos como sendo “portu-
gueses espalhados pelo mundo e por todas as comunidades portuguesas”, pretendendo
retirar, desta forma, qualquer carga política e ideológica, a verdade é que a emigração
foi uma questão incómoda para o Estado Novo, sobretudo porque os emigrantes deixa-
vam o país por razões nada abonatórias para a imagem externa do regime. Não obstante,
as remessas monetárias dos emigrantes contribuíam para dinamizar o mercado interno e
para o objetivo do equilíbrio da balança de pagamentos.
228 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

C) Surto industrial

No pós-Segunda Guerra Mundial, a indústria portuguesa conheceu um relativo desen-


volvimento. Mas, se a guerra favoreceu as indústrias de exportação nacionais que apro-
veitaram o aumento da procura e dos preços, e o envolvimento dos produtores europeus
no esforço de guerra, pôs também a nu o seu atraso estrutural relativamente aos países
industrializados e a necessidade de reformas.

A Lei de Fomento e Reorganização Industrial de 1945 expressa o reconhecimento da


importância do incremento da produção industrial para a redução das importações e da
dependência externa e a realização do objetivo do equilíbrio da balança comercial.

No entanto, o conservadorismo dos interesses fundiários e a política de condiciona-


mento industrial constituíram sérios obstáculos à modernização tecnológica e à diversifi-
cação da produção industrial. Por isso, a evolução verificada no período do pós-guerra
não foi suficiente para elevar a produtividade e a competitividade da indústria portu-
guesa que continuou muito dependente da importação de equipamentos e capitais e a
empregar uma mão de obra muito pouco qualificada e barata. Acresce que, terminada a
guerra, diminuiu a procura e aumentou a concorrência externa, pelo que a redução das
exportações conjugada com o crescimento das importações de bens alimentares, maté-
rias-primas e equipamentos industriais tiveram efeitos negativos na balança comercial.
Não obstante, o setor industrial foi adquirindo maior peso na economia nacional.

Nos anos 50, as dificuldades económicas e a integração de Portugal no plano de aju-


das da OECE fizeram o Estado Novo enveredar por uma política de planeamento indus-
trial fundada numa orientação autárcica e numa lógica de integração dos mercados
metropolitano e colonial concretizada através dos planos de fomento.

O I Plano de Fomento (1953-1958), que pretendia ser a alavanca do desenvolvimento


da indústria nacional, acabaria por privilegiar o investimento em obras públicas de ele-
trificação, transportes e comunicações, infraestruturas sem dúvida importantes para os
objetivos pretendidos, mas que não foram suficientes para colmatar as conhecidas fra-
quezas estruturais do setor nem para convencer a oposição dos interesses fundiários.

O II Plano de Fomento (1959-1964) reconheceu prioridade ao desenvolvimento indus-


trial e a importância da abertura da economia nacional ao exterior. O apoio às indústrias
siderúrgica, química e de refinação do petróleo e à marinha mercante e a adesão do País
à EFTA (1960), uma associação de comércio livre constituída por países europeus não
aderentes à então CEE, concretizaram estas opções estratégicas.

No entanto, a manutenção do condicionamento industrial que restringia ou eliminava a


concorrência interna das empresas já existentes em cada ramo e que favorecia a estagna-
ção tecnológica e a criação de monopólios, a ideia da criação do “mercado único português”,
ou seja, a integração dos mercados metropolitano e colonial, e os custos da guerra colo-
nial (1961-1974) inviabilizaram um crescimento efetivo e sustentado da indústria nacional.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 229

O III Plano de Fomento (1968-1973), fundamentalmente aplicado pelo governo de Mar-


cello Caetano (1968-1974), que sucedeu a Salazar à frente do regime, em setembro de
1968, apresenta uma orientação liberalizante (Doc. 1), em contraponto com a orientação Documento 1
económica autárcica tradicionalmente seguida pelo regime. Esta nova opção da política
As novas estratégias de
económica traduziu-se: industrialização
(anos 60/70)
– no aumento da concorrência no mercado nacional; Temos, e rapidamente, que
– na concentração empresarial; mudar de via para nos
industrializarmos a fundo
– num apoio mais eficaz à modernização industrial e às exportações; (…) É necessário uma nova
política industrial que,
– numa estratégia de aproximação à Europa concretizada na assinatura de um acordo rejeitando a autarcia,
procura estimular o
com a CEE, em 1972.
equilíbrio da balança
comercial na base do
D) Surto urbano desenvolvimento da
exportação de produtos
O desenvolvimento industrial induziu importantes efeitos sociais: estimulou o êxodo rural que possamos produzir em
condições de custo
e o crescimento global da população portuguesa e das cidades, em particular no litoral internacionalmente
concorrenciais e que
oeste, entre Braga e Setúbal (litoralização). Na década de 60, pode mesmo falar-se numa
favoreçam, ao mesmo
explosão urbana, uma vez que, em 1970, uma boa parte da população vivia em cidades e tempo, o rápido
crescimento do valor
perto de metade concentrava-se em centros urbanos com 10 000 ou mais habitantes. As acrescentado pelos fatores
cidades de Lisboa e Porto mantiveram a sua macrocefalia. No entanto, conheceram altera- produtivos nacionais.
Rogério Martins, Secretário de
ções significativas: Estado da Indústria, entre
1969 e 1972.

– o despovoamento dos respetivos centros históricos, em virtude do incremento do


fenómeno da terciarização e dos processos de reordenamento urbano;
– a fuga de uma parte importante dos seus habitantes para as periferias, transfor-
mando os núcleos populacionais próximos em verdadeiros “dormitórios” para os
? Questão
trabalhadores citadinos;
– a criação de redes de transportes ligando esses núcleos ao centro citadino para o 1. Que novas orientações de
política económica são
transporte diário das pessoas entre os seus locais de residência e de trabalho propostas no documento?
(movimento pendular);
– a degradação da qualidade de vida das populações de menores recursos, acanto-
nadas em bairros degradados, construções clandestinas e barracas paupérrimas.

E) O fomento económico das colónias

Nos anos 40, a colonialismo português no continente africano seguia o padrão tradi-
cional das relações económicas entre as metrópoles e as colónias, ou seja, o sistema de
troca desigual que funcionava em favor das primeiras: as colónias forneciam às metró-
poles matérias-primas a baixo preço, exploradas por uma mão de obra negra barata e
submissa, e adquiriam os produtos transformados por estas a preços bastante mais ele-
vados. As colónias existiam para promover o desenvolvimento económico dos países
colonizadores e não o contrário.
230 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Com o objetivo de reforçar a presença portuguesa em África e promover a exploração


dos territórios coloniais, Salazar implementou uma política de apoio à fixação de colonos
portugueses cujos resultados nas duas principais colónias africanas se constatam nos
seguintes quadros estatísticos:

Angola – Evolução da População Branca Moçambique – Evolução da População Branca

Anos Negros Mestiços Brancos % Anos Negros Mestiços Brancos %

1930 3 020 626 18 957 56 698 1,83 1930 3 820 000 12 000 20 000 0,51
1940 3 665 829 28 035 44 083 1,17 1940 5 031 955 26 237 27 438 0,53
1950 4 036 687 29 648 78 826 1,90 1950 5 646 957 44 000 48 213 0,84
1960 4 604 362 53 392 172 529 3,57 1960 6 430 000 50 800 97 300 1,47

Quadro 2
Fonte: Anuários estatísticos Entre os anos de 1940 e 1960, em Angola, por exemplo – a colónia mais importante sob
(adaptado).
o ponto de vista económico –, a população branca imigrante, praticamente só portuguesa,
mais do que triplicou (passou de 44 mil para cerca de 173 mil, de 1,17% para 3,57%). Não
obstante, não deixou de representar uma percentagem ínfima da população residente.

Em paralelo com a evolução do povoamento, aumentaram os investimentos quer


nacionais (públicos e privados) quer estrangeiros. Em 1944, no Congresso da União
Nacional foi reconhecida a necessidade de promover a industrialização nas colónias como
fator de desenvolvimento da Metrópole e de atração de colonos bran-
cos. Nesse mesmo ano, foram criadas as primeiras fábricas de algodão
em Angola e Moçambique e propôs-se a intensificação da exploração
mineira e a construção de linhas-férreas.

Nas décadas de 50 e 60, em Angola e Moçambique (Fig. 3), foram


feitos grandes investimentos em infraestruturas de transportes e comu-
nicações (estradas, portos, pontes, caminhos de ferro, aeroportos) e nos
setores da energia (centrais hidroelétricas(1)), na exploração de maté-
Fig. 3. Lourenço Marques rias-primas (minas, algodão, oleaginosas, café, petróleo, tabaco, sisal, diamantes), na
(Moçambique), na década
de 1960. indústria (cimentos, cerveja, conservas, celulose) e nos serviços (bancos, seguros), ativi-
dades estas dominadas por um grupo restrito de famílias e grupos económicos da Metró-
pole, como se pode verificar no quadro a seguir apresentado:

Principais grupos financeiros portugueses com interesses no Ultramar (conjunto das colónias)

Grupos financeiros Tipo de interesses

CUF Bancos, comércio, cobre, oleaginosas, pesca, tabacos, fósforo, transportes marítimos, etc.

Espírito Santo Açúcar, café, petróleo, construção civil, seguros, bancos.

Champalimaud Bancos, seguros, cimentos, química, metalurgia.

Banco Português do Atlântico Bancos, cerveja, algodão, pesca, celulose.

Borges & Irmão Bancos, petróleo, cervejas, pneus.

Banco Nacional Ultramarino Bancos, seguros, agricultura, algodão, açúcar, celulose, caju, exploração mineira.

Fonsecas & Burnay Bancos, diamantes, tabaco.

Quadro 3 Fernando Rosas, “O Estado Novo (1936-1974)”,


in J. Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. VII, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 497.

(1)
A principal obra neste domínio foi a barragem de Cahora Bassa, em Moçambique, cuja construção foi iniciada em 1969.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 231

Durante o período da guerra colonial (1961-1974) foram intensificados os investimen- * EEP (Espaço Económico
Português): criado em 1961,
tos nas colónias africanas com os seguintes propósitos: foi a solução encontrada
pelo regime para
– reforçar a colonização branca; transformar o Império
(metrópole e colónias) em
– promover a exploração das riquezas dos solos e subsolos para compensar o esforço zona de comércio livre.
da guerra colonial e reduzir o défice da balança comercial (a reexportação de pro- O objetivo era promover a
“integração económica
dutos coloniais representava 50% do valor total do comércio nacional); nacional”, considerada
– reforçar a integração das colónias no espaço económico português (EEP)*; mais corrente com a
defesa da “integridade
– construir infraestruturas (aeródromos, portos, estradas…) para o esforço da guerra; nacional”, da continuação
da guerra, que começara,
– passar para o exterior a imagem declarada pelo regime de um interesse real na pro- meses antes, em Angola.
moção do desenvolvimento dos territórios coloniais (Fig. 4).

No entanto, os investimentos estatais e privados, em particular em Angola e Moçam-


bique, “acabaram por gerar o desenvolvimento de uma economia dualista. A par do setor
tradicional, emergiu uma economia de mercado, com uma indústria nascente, enquadrada
por um setor de exportação de produtos agrícolas (café, sisal, algodão), derivados da
pesca e minerais (diamantes, petróleo e minério de ferro), agravando as diferenças eco-
nómicas entre as regiões industriais e aquelas onde persistem as atividades tradicionais
(geralmente as regiões interiores). Finalmente, o fomento económico das colónias foi irre-
gular, porque dependeu sempre da conjuntura internacional e favoreceu essencialmente Fig. 4. Cartaz de
a comunidade branca. propaganda do regime em
defesa da guerra colonial.

2.1.3. A questão colonial


O fim da Segunda Guerra Mundial, a vitória dos regimes democráticos, o princípio do
direito à autodeterminação consagrado na Carta das Nações Unidas e a vaga de desco-
lonizações no período imediato do pós-guerra fizeram aumentar a pressão (e o isola-
mento) internacional sobre o colonialismo português.

Procurando retirar força à pressão internacional, o regime português revogou da Revi-


são Constitucional de 1951 o Ato Colonial (1930)(2) e adotou alterações nas relações com
as colónias que passaram a ser designadas de “Províncias Ultra-
marinas” de forma a acentuar o princípio muito caro a Salazar de
uma Nação una, multicontinental e plurirracial, integrando os ter-
ritórios do “Minho a Timor”.

Na perspetiva do regime, Portugal não disporia de “colónias”,


mas de “províncias”, cuja única diferença relativamente às restantes
províncias portuguesas do continente era estarem geograficamente
dispersas. Esta ideia do “Estado unitário” (Fig. 5) serviria a Salazar
para não acatar o cumprimento do art.o 73.o da Carta das Nações
Unidas que estipulava a obrigatoriedade dos países colonialistas
Fig. 5. “Portugal não é um
país pequeno”. Cartaz de
propaganda justificativo da
(2)
O Ato Colonial (1930) estabelecia o regime político, administrativo e económico que deviam regular as relações entre política colonial do regime.
a Metrópole e as colónias. Foi incorporado na Constituição de 1933 e revogado na revisão de 1951.
232 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

fornecerem informações à ONU sobre as suas “colónias” e, mais tarde, a Resolução 1514
(1960) que preconizava o fim incondicional de toda a dominação colonial.

A questão colonial, que no plano interno era relativamente consensual, mas que exter-

Cronologia namente era criticada (não obstando, no entanto, que Portugal fosse admitido como
membro da ONU em 1955), alterou-se significativamente com a insurreição armada con-
1956 tra o domínio português iniciada no norte de Angola, em 1961. Rejeitada a proposta de
Fundação, na
clandestinidade, do PAIGC uma solução negociada feita por um setor das Forças Armadas, com o Ministro da Defesa,
(Amílcar Cabral, Guiné) e do Botelho Moniz à frente, Salazar, em defesa do princípio da unidade nacional e do prin-
MPLA (Agostinho Neto,
Angola). cípio do “orgulhosamente sós”, respondeu com o envio de soldados – Para Angola, rapi-
1961 damente e em força!.
Início da guerra em Angola;
Anexação de Goa, Damão e
Diu pela União Indiana. Esta posição radical do governo lançou o país numa guerra aberta contra os movi-
1962 mentos já criados para a libertação das colónias do domínio português:
Fundação da FRELIMO
(Eduardo Mondlane, – em Angola, fora criada em 1955 a UPA (União das Populações de Angola), liderada
Moçambique). por Holden Roberto, movimento que no ano seguinte deu lugar à FNLA (Frente de
1963
Libertação de Angola); em 1956, constituíra-se o MPLA (Movimento Popular para a
Início da guerra na Guiné.
1964 Libertação de Angola), chefiado por Agostinho Neto (1922-1979); em 1966, surgiria
Início da guerra em mais um movimento, a UNITA (União para a Independência Total de Angola), lide-
Moçambique.
rada por Jonas Savimbi (1934-2002);
– em Moçambique, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), foi criada em
1962, por Eduardo Mondlane (1920-1969), substituído depois na chefia do movi-
mento por Samora Machel (1933-1986);
– Na Guiné e Cabo Verde, o PAIGC (Partido para a Independência da Guiné e Cabo
Verde) foi fundado por Amílcar Cabral, em 1959.

Entretanto, em dezembro de 1961, ocorreu o primeiro golpe no “Império Colonial Por-


tuguês” com a anexação pela União Indiana do denominado “Estado Português da Índia”
constituído pelos territórios de Goa, Damão e Diu. Aquele país, independente da Grã-Bre-
tanha desde 1947, tentara desde 1950 negociar com Portugal a integração destes territó-
rios no novo Estado independente, o que foi sempre recusado pelo governo de Salazar.

Em 1963, a guerra colonial estendeu-se à Guiné e, no ano seguinte, a Moçambique.

Cada vez mais pressionado internamente pela oposição política e pelo descontenta-
mento social e, nas relações externas, designadamente pela ONU, OUA e pelas superpo-
tências, EUA e URSS, o governo investiu em campanhas de propaganda e de contra-infor-
mação, procurou apoios nas populações locais e promoveu uma política, como já foi
estudado, de fomento económico, através do reforço dos investimentos e da intensifica-
ção dos estímulos ao povoamento de colonos.

Pretendia-se, desta forma, manter o apoio da população portuguesa à causa colonial,


evitar a generalização da adesão da população colonial aos movimentos nacionalistas e
limitar as pressões externas. Mas a atitude de tolerância relativamente ao colonialismo,
cada vez mais anacrónico, estava a esgotar-se.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 233

2.1.4. A “Primavera Marcelista”: reformismo não sustentado


Marcello Caetano (Fig. 6) foi o escolhido para suceder a Salazar após o acidente vascu-
lar de que este foi vítima, em 1968. A sua designação representou uma solução de compro-
misso entre as alas conservadora e modernizadora do regime. Teve ainda o apoio dos gru-
pos económicos mais influentes, já que se apresentava como um defensor da modernização
e liberalização da economia, bem como das fações de políticos e militares moderados, desa-
linhados da radicalização conservadora relativamente às questões europeia e colonial.

As medidas anunciadas pelo novo chefe de governo para cumprimento do que desig-
nou de uma política de “renovação na continuidade” geraram boas expetativas em alguns
setores da oposição democrática, mas também alguma desconfiança no seio das forças
Fig. 6. Marcello Caetano
mais conservadoras do regime: (1906-1980), sucedeu a
Salazar na Presidência do
– autorização para o regresso de Mário Soares e do bispo do Porto, D. António Fer- Conselho do Estado Novo
reira Gomes; em 1968. Foi deposto na
sequência da Revolução de
– consentimento para a realização do II Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro; 25 de Abril de 1974.
– a substituição das designações de PIDE por DGS (Direção Geral de Segurança), de
União Nacional por Ação Nacional Popular e de Censura por Exame Prévio;
– extensão da assistência social aos funcionários públicos (criação da ADSE) e da Pre-
vidência Social aos trabalhadores rurais;
– implementação da Reforma da Educação elaborada pelo ministro Veiga Simão, alar-
gando e diversificando a oferta de ensino e formação;
– promoção de uma política económica mais aberta à Europa (assinatura de um acordo
com a CEE, em 1972), ao investimento estrangeiro e à modernização das infraestru-
turas (projetos da refinaria de Sines e da construção da barragem do Alqueva);
– algumas inovações na argumentação sobre o colonialismo e na organização admi-
nistrativa e judicial das colónias (Lei Orgânica do Ultramar, 1971); contudo, não
introduziu alterações de fundo na questão colonial, em particular no desenvolvi-
mento da guerra.

Mas depressa as expetativas de mudança, a denominada “Primavera Marcelista”,


foram goradas e as forças de “continuidade” impuseram-se às da
“mudança” (alterações de fachada) como ficou bem patente em
fenómenos, como:
– a repressão da greve académica de Coimbra de 1969 (Fig. 7),
através do recurso aos meios policiais e às detenções;
– a prática já habitual de irregularidades nas eleições legislati-
vas desse mesmo ano que deram a vitória exclusiva às listas
da União Nacional, não obstante terem sido nelas integrados
candidatos da chamada “ala liberal”, como Sá Carneiro,
Pinto Balsemão, Magalhães Mota, Miller Guerra e Pinto Leite.
Fig. 7. Manifestação
estudantil, durante a crise
académica de 1969, em
Coimbra.
234 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Documento 2 A exasperação pela inconsequência das reformas liberalizantes e a prossecução da


guerra colonial traduziu-se numa onda de revolta e agitação (greves operárias, manifes-
As dificuldades do
Marcelismo tações estudantis, críticas na imprensa). Em resposta, o regime endureceu as suas posi-
Pode dizer-se que, a partir ções, aproximando-se da direita mais conservadora: restringiu as atividades sindicais,
de 1970-71, as coisas encerrou as associações de estudantes, mandou policiar as universidades (denominados
começaram a correr
francamente mal para os vigilantes/“gorilas”) e aumentou o número de prisões.
marcelistas. (..)
A frustração de 1969 e a A partir de 1970-1971, a contestação ao marcelismo intensificou-se com a radicaliza-
evolução posterior
ção do regime e das forças da oposição (Doc. 2).
originam um fenómeno de
esquerdização geral na a) Internamente, este clima manifestou-se em vários acontecimentos significativos:
luta contra o regime (...).
A partir de 1970, surgem – multiplicação dos movimentos da extrema-esquerda (maoístas e marxistas-leninistas);
vários grupos maoístas e
marxistas-leninistas.
– demissão dos deputados da ala liberal da Assembleia Nacional, descontentes com
Dotados, alguns deles, de o imobilismo do regime;
grande militância, exercem
uma ação intensa e ousada – mobilização dos católicos progressistas em ações políticas (ex.: a vigília pela Paz e
agitação (...), não só nas contra a guerra colonial na capela do Rato, em Lisboa, em 1973, violentamente
universidades, mas mesmo
interrompida pela DGS, com a prisão dos participantes);
em certas franjas do
ativismo operário nos – realização do III Congresso da Oposição Democrática (Aveiro, 1973), apesar da
grandes centros.
repressão policial;
Fernando Rosas, “O Estado
Novo (1936-1974)”, – a multiplicação das greves e dinamização da atividade sindical;
in José Mattoso (dir.), História
de Portugal, vol. VII, Lisboa, – o aparecimento de formas de luta armada por parte de alguns grupos de oposição
Círculo de Leitores, 1994.
(Ação Revolucionária Armada, Liga da Unidade e Ação Revolucionária, Brigadas
Revolucionárias).
? Questão
b) Externamente, acentuaram-se as críticas e o isolamento internacional do regime, tal
1. Explicite as dificuldades
internas enfrentadas pelo como o demonstram, entre outros, os seguintes atos:
governo de Marcello – as condenações sucessivas na Assembleia Geral das Nações Unidas;
Caetano.
– o apoio da Santa Sé aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, cla-
ramente expresso na receção do Papa Paulo VI aos representantes desses movimen-
tos, e da OUA (Organização da Unidade Africana);
– as denúncias nos meios de comunicação estrangeiros;
– o reconhecimento pela ONU da independência da Guiné-Bissau, proclamada unila-
teralmente em 1973.

Incapaz de se reformar de forma sustentada, decadente e pressionado interna e externa-


mente nos seus fundamentos e práticas e pelo contexto internacional adverso de crise eco-
nómica (fim do SMI – Sistema Monetário Internacional –, em 1971, e o 1.o choque petrolífero,
em 1973), o regime autoritário do Estado Novo não resistiria durante muito mais tempo.

2.2. Da revolução à estabilização da democracia


2.2.1. O Movimento das Forças Armadas e a eclosão da revolução
A contestação internacional à intransigente política colonial seguida pelo Estado Novo
e o crescente descontentamento na sociedade portuguesa face ao prolongamento da
guerra nas colónias africanas levaram os militares a tomar consciência de que a guerra
não tinha uma solução militar.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 235

A guerra colonial, aliada às tensões de natureza corporativa no seio do exército gera- Cronologia
das por questões relacionadas com a integração dos oficiais-milicianos nos quadros de
1974
efetivos em condições de igualdade com os oficiais de carreira, estive na origem da for- 24 de abril (22.55 h) –
mação de um movimento de capitães que, rapidamente, se transformou no Movimento Transmissão da canção
E Depois do Adeus, de
das Forças Armadas (MFA), uma organização mais ampla e com objetivos políticos con- Paulo de Carvalho.
cretos. 25 de abril (0.20 h) –
Transmissão da canção
Grândola Vila Morena, de
A publicação do livro Portugal e o Futuro (1974), da autoria do general António de José Afonso.
Rendição de Marcello
Spínola (Fig. 8), no qual a política colonial do governo de Marcello Caetano era posta em
Caetano;
causa, aumentou a tensão nos meios políticos e militares. Proclamação da Junta de
Salvação Nacional ao País.
A 16 de março de 1974, a partir do Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha, 26 de abril – Libertação dos
alguns militares que integravam o recém-criado Movimento das Forças Armadas (MFA) presos políticos.
28 de abril – Regresso do
sublevaram-se. O golpe executado sem o conhecimento do MFA falhou por precipitação exílio de Mário Soares.
e descoordenação dos responsáveis, tendo sido presos vários oficiais. 30 de abril – Regresso do
exílio de Álvaro Cunhal.
De 24 para 25 de abril desse mesmo ano, as canções (senhas) E Depois do Adeus,
de Paulo de Carvalho, e Grândola Vila Morena, de José Afonso, assinalaram o início de
um novo golpe, desta vez vitorioso, desencadeado pelo MFA e coordenado pelo major
Otelo Saraiva de Carvalho (Fig. 9).

As primeiras ações tiveram como objetivo a ocupação dos pontos considerados estra-
tégicos para a evolução das operações (RTP, Emissora Nacional, Rádio Clube Português,
Aeroporto de Lisboa, Quartel-General, Estado-Maior do Exército, Ministério do Exército, Fig. 8. António de Spínola
(1910-1996): Governador e
Banco de Portugal e Marconi). Comandante-Chefe das
Forças Armadas da Guiné
Ainda nesse dia, o capitão Salgueiro Maia (1944-1992) e os seus comandados neutra- (1968-73); Vice-Chefe do
lizaram a resistência das forças militares fiéis ao regime, no Terreiro do Paço, e negocia- Estado Maior das Forças
Armadas (janeiro a março
ram a capitulação de Marcello Caetano, refugiado no quartel do Carmo. O chefe do Governo de 1974); Autor de Portugal
e dois ministros (Rui Patrício e Moreira Baptista) que o acompanhavam renderam-se ao e o Futuro (fevereiro 1974);
Presidente da República
general Spínola, um militar de alta patente, para “que o poder não caísse na rua”. após o 25 de Abril (maio a
setembro de 1974).
Um fator determinante para o sucesso do golpe foi o apoio espontâneo e emotivo da
população que saiu para a rua em massa em todo o país vitoriando o derrube da dita-
dura e proclamando a vitória da liberdade e da democracia.

2.2.2. A construção da democracia

A) Desmantelamento das estruturas de suporte do Estado Novo

Consumado o golpe executado pelo MFA, a segunda tarefa era proceder rapidamente
ao desmantelamento das estruturas do regime. Fig. 9. Otelo Saraiva de
Carvalho, um dos principais
Logo na madrugada do dia 26 de abril, a Junta de Salvação Nacional composta por estrategas do MFA. Integrou
o Conselho da Revolução.
sete oficiais de alta patente e presidida pelo general Spínola, apresentou na RTP uma Foi comandante do COPCON
proclamação que sintetizava os objetivos imediatos do Programa do MFA: Democratizar, (Comando Operacional do
Continente) e da Região
Descolonizar e Desenvolver (“3Ds”). Militar de Lisboa.
236 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Foi ainda empossado um Governo Provisório, presidido por Adelino da Palma Carlos,
que tomou, de imediato, um conjunto de medidas com o objetivo de lançar os funda-
mentos da democratização do País:
– destituição do Presidente da República, do Governo, da Assembleia Nacio-
nal e do Conselho de Estado;
– extinção da PIDE/DGS, da Legião e da Mocidade Portuguesa, do Exame
Prévio, da censura e da Ação Nacional Popular;
– amnistia para todos os presos políticos encarcerados nas prisões de
Caxias (Fig. 10) e Peniche e abolição do Tribunal Plenário Criminal da Boa-
-Hora que tinha como função julgar os opositores do regime;
– garantia da defesa dos direitos e liberdades políticas e cívicas dos cidadãos;
– reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar era política e
não militar;
– compromisso de realizar eleições por sufrágio universal, direto e secreto,
no prazo de um ano, para a Assembleia Constituinte.
Fig. 10. Libertação dos
presos políticos da prisão O 1.o de maio de 1974, primeira comemoração em liberdade do Dia do Trabalhador
de Caxias (27 de abril de
1974). depois do derrube da ditadura, representou uma gigantesca manifestação de apoio às ins-
tituições democráticas, um anseio de décadas concretizado pela Revolução dos Cravos.

B) Tensões político-ideológicas na sociedade e no interior do movimento revolucionário

Os primeiros governos provisórios


Cronologia
Não obstante o entusiasmo popular e o consenso gerado em todos os quadrantes
1974
democráticos sobre os méritos da Revolução, a verdade é que em breve surgiriam tensões
6 de maio – Fundação do
PPD. de natureza político-ideológica na sociedade portuguesa e no interior do próprio MFA.
16 de maio – I Governo
Provisório, liderado por
Palma Carlos. No centro dessas tensões estiveram as divergências sobre o modelo de organização
8 de julho – Criação do política e social a seguir e sobre a resolução da questão colonial:
COPCON.
18 de julho – II Governo – uma fação, progressista, radical, composta pelos “capitães” que planearam e exe-
Provisório (Vasco cutaram o golpe, apoiados por setores de esquerda, defendia a adoção de um
Gonçalves).
modelo de democracia direta e participada, a construção de uma sociedade socia-
19 de julho – Fundação do
CDS. lista e um cessar-fogo imediato nas frentes de combate e a abertura de negociações
28 de setembro – O MFA conducentes à concretização do direito à autodeterminação dos povos coloniais;
proíbe a manifestação da
“maioria silenciosa”. – outra fação, conservadora, formada pelas altas patentes militares, liderada pelo
30 de setembro – Demissão general Spínola e setores do centro-direita, defendiam um modelo de democracia
do general Spínola
(Presidente da República). liberal, a manutenção do capitalismo e uma solução federalista para o ultramar.
1 de outubro – III Governo
Provisório (Vasco
Gonçalves). Estas tensões estiveram na origem da demissão do Primeiro-Ministro, Adelino da Palma
Carlos, um político liberal, e do I Governo Provisório, e da radicalização dos dirigentes polí-
ticos do II Governo Provisório liderado pelo brigadeiro Vasco Gonçalves, integrando elemen-
tos do MFA e do PS, PCP, PPD e MDP/CDE. Este facto acentuou a clivagem do governo com
o Presidente da República, António de Spínola, que estava a perder apoio entre os militares.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 237

A “maioria silenciosa” (28 de setembro de 1974)

Entretanto, circularam pelo país cartazes apelando a uma manifestação, em Lisboa, de


apoio a Spínola (Fig. 11), marcada para o dia 28 de setembro de 1974. Esta manifesta-
ção, autodenominada de maioria silenciosa (tratava-se efetivamente de uma conspiração
militar dirigida pelo então Presidente Spínola), foi proibida pelo MFA e provocou uma
forte movimentação de populares que, enquadrados pelas forças partidárias de esquerda
(PS, PCP, MDP/CDE), organizaram barricadas para impedirem o acesso dos manifestantes
à capital. Spínola ainda tentou decretar o estado de sítio, mas viu a sua proposta rejei-
tada pelo Conselho de Estado.

O fracasso do 28 de Setembro teve importantes consequências:


– António de Spínola renunciou ao cargo de Presidente da República (30 de setembro), Fig. 11. Cartaz alusivo à
sendo substituído pelo general Costa Gomes; manifestação da maioria
silenciosa (28 de setembro
– Vasco Gonçalves (Fig. 12) manteve o cargo de Primeiro-Ministro no III Governo Pro- de 1974).
visório;
– o MFA, substituído Spínola por Costa Gomes, retomou o controlo da situação polí-
tica e assumiu posições mais próximas do PCP e do PS;
– o País entrou num clima de confrontação político-ideológico e social.

O PREC (Processo Revolucionário em Curso)


O fracasso do 28 de Setembro abriu o caminho à radicalização político-ideológica, ao
PREC (Processo Revolucionário em Curso), um período marcado por momentos de extrema
tensão e conflitualidade, tanto política como social.

a) A questão sindical – unicidade ou liberdade sindical? Fig. 12. General Vasco


Ao declarar, em janeiro de 1975, o princípio da unicidade sindical – o que significava Gonçalves (1921- 2005):
Primeiro-Ministro do II, III e
reconhecer a confederação Intersindical, criada em 1970, ainda sob a ditadura e onde os IV Governos Provisórios.
comunistas detinham hegemonia, como a única estrutura sindical –, o Conselho Superior Considerado como
do MFA provocou um debate fraturante sobre o modelo de sociedade e de Estado a pertencente ao grupo dos
militares do MFA próximos
implementar no País: do PCP, perdeu toda a sua
influência na sequência dos
acontecimentos de 25 de
– um modelo de natureza socialista revolucionária, que postulava a construção de uma novembro de 1975 e foi
sociedade socialista a partir da socialização da propriedade e do Poder Popular, que compulsivamente passado
reunia atrás de si dois grupos que se antagonizavam: o PCP, o MDP/CDE e uma parte à reserva, por decisão do
Conselho da Revolução, em
dos católicos progressistas e um grupo muito diversificado de movimentos da es- dezembro desse ano. Ficou
querda revolucionária que tinha Otelo Saraiva de Carvalho como referência, de que célebre uma das frases de
faziam parte grupos maoístas (autodesignados como marxistas-leninistas); exem- ordem usadas para
expressar o apoio popular
plos: MRPP, PCP (ML), UDP e os setores guevaristas, que se reviam na figura de Che ao general: Força, força
Guevara; exemplo: PRP (BR); companheiro Vasco, nós
seremos a muralha de aço!
– um modelo de natureza socialista mais moderado, apoiado pelo PS e por outros par-
tidos/personalidades mais moderados.

b) O 11 de Março de 1975
A esquerdização da vida política portuguesa provocou a reação das forças contrarre-
volucionárias da direita e ultradireita, expressa no recurso a ações de violência desenca-
deadas pelo grupo organizado a partir de Espanha, autoproclamado ELP (Exército de
Libertação de Portugal) e no apoio à tentativa de golpe de estado, a 11 de março de
1975, executado por militares afetos ao general António de Spínola.
238 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Cronologia A derrota de Spínola, que se refugiou em Espanha, favoreceu os objetivos da


esquerda revolucionária, que passou a dispor de melhores condições políticas para enca-
1975
minhar o País para um modelo socialista de sociedade e de Estado. É nesta perspetiva
11 de março – Tentativa de
golpe de Estado. que é decretada:
12 de março – O MFA cria o
Conselho da Revolução e a
Assembleia do MFA e – a extinção da Junta de Salvação Nacional e do Conselho de Estado;
extingue a Junta de – a criação do Conselho da Revolução (órgão executivo) e da Assembleia do MFA
Salvação Nacional e o
Conselho de Estado. (órgão legislativo);
26 de março – IV Governo – a aceleração do programa político de nacionalizações aos grandes grupos econó-
Provisório (Vasco
Gonçalves). micos (7 Magníficos) que detinham cerca de 75% do capital financeiro (banca e segu-
13 de abril – Assinatura do ros), através do qual controlavam parte considerável da indústria e dos serviços e
pacto MFA-Partidos. que, a partir do 11 de Março, passou a ter amplo apoio político.
25 de abril – Eleições para
a Assembleia Constituinte.
1 de maio – Manifestações No entanto, as eleições para a Assembleia Constituinte realizadas em abril desse ano
e confrontos,
nomeadamente em Lisboa
constituíram um revés para a esquerda revolucionária, uma vez que o PS (37,9%) e o PPD
e Porto. (26,4%) foram os partidos mais votados. Não obstante a vontade popular de estabiliza-
22 de maio – Ocupação da ção expressa nas urnas, o clima de agitação social e política não abrandou: o PS e o PPD
Rádio Renascença.
abandonaram o IV Governo Provisório de Vasco Gonçalves e congregaram esforços em
17 de julho – Queda do IV
Governo Provisório. manifestações pela defesa da democracia pluralista e contra o radicalismo revolucionário.
8 de agosto – Tomada de
posse do V Governo c) O “Verão quente” de 1975
Provisório (Vasco
Gonçalves). As posições extremaram-se e o verão de 1975, o chamado “Verão quente”, ficou mar-
2 de setembro – cado por ações violentas de radicalização política e social:
Afastamento de Vasco
Gonçalves.
19 de setembro – Tomada – ocupações de latifúndios no Alentejo por camponeses, reivindicando o “direito à
de posse do VI Governo terra de quem a trabalha”, de fábricas pelos operários e de habitações devolutas;
Provisório (Pinheiro de
Azevedo), o último dos – “saneamentos” (despedimentos compulsivos) nas instituições públicas de todas as
governos provisórios. pessoas conotadas como “reacionárias”;
– assaltos a sedes de partidos: no norte e no centro foram atacados sedes do PCP,
do MDP/CDE, da UDP e do MES, tal como alguns sindicatos da Intersindical.

Com o país a viver uma situação de quase guerra civil, um grupo de 9 membros do
Conselho da Revolução, críticos do rumo que o país estava a tomar, redigiu o denomi-
nado “Documento dos Nove”, no qual se afirmava que “um projeto nacional de transi-
ção para o socialismo é inseparável da democracia política pluralista, das liberdades,
direitos e garantias fundamentais”.

Na sequência deste documento, a posição de Vasco Gonçalves ficou mais fragilizada,


tendo sido substituído no lugar de Primeiro-Ministro pelo almirante Pinheiro de Azevedo.
Esta mudança foi acompanhada por uma remodelação da composição do Conselho da
Revolução e da Assembleia do MFA, com a entrada de elementos politicamente mais
moderados, e por uma outra medida controversa: a substituição de Otelo Saraiva de Car-
valho no comando da Região Militar de Lisboa pelo capitão Vasco Lourenço.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 239

d) O 25 de Novembro de 1975 Cronologia


As alterações adotadas na sequência do Documento dos Nove não fizeram baixar o
1975
clima de tensão social e política que se vivia na sociedade portuguesa e os incidentes 7 de agosto – Documento
graves multiplicaram-se: dos Nove.
– a norte, atentados bombistas de grupos da extrema-direita (entre maio de 1975 e 12 de novembro – cerco do
Palácio de São Bento
dezembro de 1976, ocorreram mais de meio milhar);
(Lisboa) por operários.
– movimentações separatistas nas Ilhas; 25 de novembro –
– cerco imposto por operários, ao Palácio de São Bento, onde se encontrava reunida neutralização da fação
militar da esquerda
a Assembleia Constituinte e o VI Governo Provisório; populista no seio do MFA.
– autossuspensão do Governo e exigência de garantias para governar.

Também no seio das Forças Armadas, onde a substituição de Otelo foi muito contes-
tada pelos setores do MFA que lhe eram afetos, se vivia um verdadeiro clima insurrecio-
nal decorrente da disputa pelo poder entre forças revolucionárias e forças moderadas,
civis e militares. Os militares partidários do designado “Poder Popular*” ocupam então * Poder Popular (no caso
várias bases militares, bem como meios de comunicação social. português): demonstração
da força e da consciência
Face a esta situação, em 25 de novembro, o Presidente da República decretou o de classe dos
trabalhadores apoiadas
estado de sítio(3). O contragolpe levado a cabo pelos militares da ala moderada, na qual
pelo MFA em atos como o
se enquadravam Vasco Lourenço, Jaime Neves e Ramalho Eanes, neutralizaram as forças controlo e autogestão de
de esquerda no interior do MFA. Chegava ao fim o PREC. A partir daqui, o país foi recu- fábricas, ocupação de
terras, habitações,
perando a estabilidade decorrente da aprovação da Constituição e da institucionalização organização de comissões
dos novos órgãos de soberania (AR e PR), eleitos na primavera e verão de 1976. de moradores e comissões
de trabalhadores.
C) Política económica antimonopolista e intervenção do Estado nos domínios económico
e financeiro

O desenvolvimento económico constava entre os grandes objetivos do Programa do


MFA. Para a sua realização e em conformidade com as conceções ideológicas de matriz
socialista era necessário, também neste domínio, desmantelar as estruturas corporativis-
tas do Estado Novo e substituí-las “por um aparelho administrativo adaptado às novas
realidades políticas, económicas e sociais” (I Governo Provisório).

Assim, nos inícios de 1975, uma equipa liderada por Melo Antunes, ministro sem
pasta e membro da Comissão Coordenadora do MFA, elaborou um Programa para o
Desenvolvimento Económico que previa:

– o controlo do Estado sobre os grupos económicos monopolistas;


– nacionalização* dos setores estratégicos da economia (banca, seguros, transportes, * Nacionalização: decisão/
energia). ato político que conduz à
apropriação, negociada ou
compulsiva, de empresas
ou bens privados por parte
A radicalização à esquerda da vida política nacional na sequência dos acontecimen-
do Estado.
tos de 11 de março de 1975 favoreceu o aprofundamento das medidas de socialização
da economia. O Governo decretou a nacionalização de empresas consideradas essenciais
nos setores da banca e dos seguros, nos transportes e nas indústrias cimenteira e side-
rúrgica, e um novo regime de arrendamento rural.
(3)
Estado de sítio: estado de exceção decretada pelas autoridades em situação de emergência nacional como agres-
são estrangeira, grave ameaça à ordem constitucional ou calamidade pública. O estado de sítio caracteriza-se na res-
trição ou suspensão temporária dos direitos e garantias constitucionais.
240 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Paralelamente, sob o lema “a terra a quem a trabalha”, camponeses, em particular no


Alentejo, procederam à ocupação de latifúndios.

* Reforma Agrária: conjunto Estas demonstrações do “poder popular” anteciparam a Reforma Agrária* legislada
de alterações das durante os IV, V e VI Governos Provisórios, que estabeleceu:
normas/regras que regem
o mundo rural. Aqui – a expropriação e redistribuição de terras, muitas delas numa situação de abandono
pretendia-se,
concretamente, eliminar os ou subaproveitamento;
latifúndios no Alentejo e
promover uma
– a alteração do regime de propriedade;
redistribuição de terras a – a legalização das ocupações efetuadas;
famílias de agricultores ou,
preferencialmente, a – a organização de cooperativas para a exploração da terra e dos meios de produção,
agricultores organizados
em Unidades Coletivas de em regime de autogestão, as denominadas UCP (Unidades Coletivas de Produção).
Produção (UCP).
O 25 de Novembro de 1975 viria a constituir-se um fator de contenção no processo
de socialização acelerada da economia e de afirmação do “poder popular”.

Qual o balanço desta fase?

1. As medidas adotadas deram um golpe profundo no poder económico dos grandes grupos
económicos monopolistas e dos proprietários latifundiários.
2. Os resultados económicos não foram animadores:
– fuga de capitais para o estrangeiro, redução da atividade produtiva e do produto interno;
– aumento do desemprego, embora as causas devam ser imputadas, sobretudo, à crise
económica internacional, ao regresso das colónias de centenas de milhares de portu-
gueses (“retornados”) e de milhares de emigrantes e à desmobilização dos militares
com o fim da guerra colonial.
3. Em contrapartida, foi possível aos trabalhadores adquirir um nível de vida mais elevado:
– a liberdade sindical e o direito à greve permitiram aos operários negociar contratos de tra-
balho mais favoráveis (salários, horário de trabalho, férias pagas e pensões sociais);
– foi instituído um salário mínimo nacional e um novo regime de arrendamento rural.

D) A opção constitucional: a Constituição de 1976 e a revisão constitucional de 1982

A Assembleia Constituinte
Cronologia
A instauração da democracia com a Revolução de 25 de Abril de 1974 consagrou a
1976
participação efetiva dos cidadãos nas decisões dos órgãos detentores do poder.
2 de abril – Aprovação da
Constituição de 1976. Para concretizar esta condição essencial para o funcionamento de um regime demo-
15 de abril – Entrada em crático, o projeto eleitoral do I Governo Provisório determinou o sufrágio universal, direto
vigor da Constituição de
1976. e secreto, e o recenseamento eleitoral com caráter obrigatório, para os maiores de 18
23 de julho – Tomada de anos de idade, incluindo os analfabetos, que representavam cerca de 30% da população,
posse do I Governo
e os emigrantes sob certas condições. Para acompanhar os atos eleitorais foi criada a
Constitucional (Mário
Soares). Comissão Nacional das Eleições, órgão de acompanhamento e de arbitragem, e instituído
27 de julho – Eleição do o direito a um tempo de antena gratuito, na rádio e televisão, para a campanha eleito-
Presidente da República
Portuguesa (Ramalho
ral, com o objetivo de garantir a todos os partidos concorrentes a igualdade de acesso
Eanes). aos meios de comunicação.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 241

Estes critérios foram aplicados nas eleições para a Assembleia Constituinte que decor-
reram, em 1975, num clima de normalidade e participação cívica exemplar, tendo partici-
pado no ato 91,2% dos eleitores. O escrutínio ao qual concorreram 14 organizações polí-
ticas, deu a vitória ao PS, liderado por Mário Soares, com 38% dos votos.

Os trabalhos da Constituinte iniciaram-se a 2 de junho de 1975, com Costa Gomes a


dar o mote na sessão de abertura afirmando que a Revolução deveria avançar “para um
socialismo pluripartidário, em simbiose fecunda entre as vias revolucionária e eleitoral”.

A Constituição de 1976

A 2 de abril de 1976, a Constituição foi aprovada em plenário


da Assembleia Constituinte e entrou em vigor a 25 de abril desse
ano, precisamente dois anos depois da Revolução dos Cravos.
A Constituição de 1976 (Fig. 13) consagrou:
– os direitos fundamentais dos cidadãos, assegurando a todos
a igualdade de tratamento;
– um Estado de direito democrático, unitário, pluripartidário e
descentralizado (reconhecimento da autonomia política às
regiões insulares da Madeira e dos Açores e dos poderes
locais);
– um modelo de sociedade e economia em transição para o
socialismo (defesa das nacionalizações e da reforma agrária);
– no domínio da política externa, as orientações dominantes do
pensamento e das instâncias internacionais da época – direi-
tos do Homem, direito dos povos à autodeterminação, recurso
à mediação nos conflitos e à cooperação internacional.

Fig. 13. Cartaz da


Constituição de 1976:
O texto constitucional incluiu ainda algumas medidas transitórias, visando o desman-
“A República Portuguesa é
telamento definitivo das estruturas do Estado Novo, através de saneamentos na função um Estado democrático,
baseado na soberania
pública e da restrição de direitos políticos aos responsáveis do anterior regime.
popular, no respeito e na
garantia dos direitos e
Consumado este passo, seguiram-se-lhe outros ainda em 1976, e que foram igualmente liberdades fundamentais e
no pluralismo de
determinantes para a normalização e consolidação do processo democrático em Portugal:
expressão e organização
– as primeiras eleições legislativas (vitória eleitoral do PS); política democráticas, que
tem por objetivo assegurar
– a eleição do Presidente da República (Ramalho Eanes); a transição para o
socialismo mediante a
– tomada de posse do I Governo Constitucional (Primeiro-Ministro Mário Soares); criação de condições para
o exercício democrático do
– primeiras eleições autárquicas (igualdade em número de câmaras municipais entre poder pelas classes
o PS e PSD mas o primeiro obtém maior número de votos – 33,47%). trabalhadoras”.

Desta forma, o MFA cumpriu um dos seus grandes objetivos: institucionalizar a demo-
cracia política, devolvendo o poder aos órgãos de soberania legitimados pelo voto popular.
242 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

A revisão constitucional de 1982

A revisão constitucional de 1982 decorreu após um período de transição de 6 anos e


serviu para o entendimento entre os poderes militar e políticos, estabelecido pelo Pacto
MFA/Partidos, e só foi possível devido a um acordo entre o PS, PSD e CDS, que consi-
deravam que a Constituição tinha uma carga ideológica de matriz excessivamente mar-
xista e um défice democrático.

Em setembro de 1982, foi aprovada a revisão do texto constitucional com as seguintes


alterações principais:
– extinção do Conselho da Revolução, distribuindo as suas funções por outros órgãos;
– criação do Conselho de Estado e do Tribunal Constitucional;
– redução dos poderes institucionais do Presidente da República.

A governação do País passava definitivamente para as mãos dos partidos e da socie-


dade civil, assumindo-se como uma democracia representativa, parlamentar, pluripartidá-
ria e descentralizada, assente nos seguintes órgãos: Presidente da República, Assembleia
da República, Governo, tribunais, regiões autónomas e poder local.

2.2.3. O reconhecimento dos movimentos nacionalistas e o processo de


descolonização
A questão colonial tornou-se, no pós-guerra e, em particular com o início da guerra
colonial, um problema central do Estado Novo. Foi também, como se viu, um fator deter-
minante para a Revolução de 25 de Abril de 1974.

O Programa do MFA apresentava uma “nova política ultramarina” fundada em três


premissas:
a) Reconhecimento de que “a solução das guerras do Ultramar é política e não militar”;
b) “Criação de condições para um debate franco e aberto a nível nacional do pro-
blema ultramarino”;
c) “Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz”.

Se no domínio dos princípios e da consciência da urgência na resolução do problema


colonial o consenso era geral, o mesmo já não acontecia no debate acerca do tempo e
do modo do processo de descolonização. Concretamente, defrontavam-se duas posições:
– uma que defendia um cessar-fogo imediato nas frentes de combate e a abertura de
negociações conducentes à concretização do direito à autodeterminação dos povos
das colónias (Nem mais um soldado para as colónias!). Conforme o defendido pela
ONU e pela OUA, o PAIGC, a FRELIMO, o MPLA, a FNLA e a UNITA foram reconhecidos
como movimentos legitimamente representativos dos povos dos respetivos países;
– uma outra, conservadora, que advogava uma solução negociada e federalista(4).

As manifestações populares e dos partidos de esquerda, associadas às pressões exter-


nas, designadamente da ONU e da OUA resultaram, em agosto de 1974, num comunicado

(4)
Spínola defendia uma solução federalista e uma autodeterminação legitimada por consultas populares, posição que
foi rejeitada pelo MFA e pelos líderes dos movimentos de libertação.
Unidade 2 - Portugal: do autoritarismo à democracia 243

final de Kurt Waldheim, secretário-geral das Nações Unidas, onde foi reafirmada a aceita- Cronologia
ção das resoluções da ONU para as colónias portuguesas, concretamente:
1974
– garantia-se a unidade e integridade territorial de cada uma das colónias; 10 de setembro – Portugal
– reconhecia-se a independência da Guiné-Bissau e o prosseguimento das negociações reconhece a independência
da República da Guiné-
com a FRELIMO, em Moçambique, e com os movimentos de libertação em Angola. -Bissau.
1975
Guiné-Bissau – O reconhecimento da independência ocorreu em 10 de setembro de 15 de janeiro – Acordos de
1974, no Acordo de Argel. Alvor entre Portugal e os
movimentos
Moçambique – As conversações com a FRELIMO foram concluídas no Acordo de independentistas de
Lusaca, a 7 de setembro de 1974, sendo marcada a proclamação da independência de Angola – MPLA; FNLA,
UNITA.
Moçambique para 25 de junho de 1975.
31 de março – criação do
Angola – As negociações com o MPLA, FNLA e a UNITA decorreram no Alvor (Algarve), IARN (Instituto de Apoio
aos Retornados Nacionais).
tendo sido assinados os Acordos de Alvor que estabeleciam o dia 11 de novembro de
25 de junho – independência
1975 para a proclamação de independência de Angola. Contudo, os Acordos não foram de Moçambique.
cumpridos, uma vez que o desentendimento entre os movimentos de libertação aliado à 5 de julho – independência
questão de Cabinda que não foi contemplada pelos negociadores precipitaram Angola de Cabo Verde.
12 de julho – independência
numa longa e sangrenta guerra civil (1975-2002).
da S. Tomé e Príncipe.
As independências de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe foram concretizadas em 21 de agosto – início da
5 de julho e em 12 julho de 1975, respetivamente. guerra civil em Timor-
-Leste.
Num breve balanço final pode afirmar-se que a descolonização das colónias portugue- 11 de novembro – o MPLA
sas foi um processo tardio, conheceu uma evolução rápida, mas criou situações dramá- proclama, em Luanda, a
independência de Angola.
ticas aos colonos (apelidados de “retornados”) e aos militares portugueses que não
7 de dezembro – invasão de
puderam retirar de forma controlada e faseada. Para os novos países, trouxe o desman- Timor-Leste pelas forças
telamento dos aparelhos produtivo, comercial e administrativo e a privação de quadros da Indonésia.
técnicos europeus e, para alguns (Angola e Moçambique), o drama da guerra civil e da 1976
22 de fevereiro – Portugal
intervenção estrangeira: invasão de Angola pela África do Sul, facto que leva o governo
reconhece oficialmente a
de Luanda a solicitar a intervenção de tropas cubanas; interferência dos regimes de República Popular de
Apartheid da África do Sul e da Rodésia na política moçambicana, apoiando um movi- Angola e o Governo do
MPLA.
mento de guerrilha, a RENAMO, provocando uma guerra civil (1980-1992).

2.3. O significado internacional da revolução portuguesa


A Revolução dos Cravos não passou naturalmente
despercebida no contexto internacional. Ao invés, foi
atentamente acompanhada por observadores interna-
cionais (Fig. 14). A primeira notícia da agência ANI foi
emitida às 05h55 do dia 25 de abril, tendo apenas
como destinatário direto a sua congénere espanhola
EFE. Mas, muito rapidamente, a revolução portuguesa,
captou a atenção da comunicação social internacional,
dos governos, organizações e pessoas singulares dos
mais variados quadrantes ideológicos, políticos e geo-
gráficos.
Fig. 14. A Revolução dos
Pelo momento em que ocorreu e pelas suas especificidades, foi vista como uma espé-
Cravos nas capas de
cie de laboratório de análise de fenómenos sociais e políticos, que sociólogos, filósofos, revistas estrangeiras.
244 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Documento 3 escritores e jornalistas estrangeiros quiseram observar de perto (Doc. 3). A título de exem-
plo, refira-se a afirmação do professor norte-americano de Ciência Política, Philippe
O significado internacional
da Revolução de 25 de Abril Schmitter, que considerou ter Portugal iniciado, em 1974, “a quarta vaga democratizante”.
A experiência portuguesa Num contexto internacional de Guerra Fria, a esquerdização política e as experiências
agiu como um revelador
do poder popular que se verificaram no período entre o 11 de Março e o 25 de Novem-
poderoso no conjunto das
correntes e das forças bro de 1975 preocuparam seriamente, por razões políticas e estratégicas óbvias, os EUA
políticas, em Portugal e no e os restantes parceiros europeus na OTAN.
mundo. (...) porque, desta
vez, a questão do poder é A instauração da democracia em Portugal e que permitiu ao nosso País abrir-se à
posta em causa, porque as
Europa e ao Mundo teve repercussões no derrube do governo dos coronéis na Grécia, em
consequências são
importantes, para a Europa 1974, que pôs fim a uma ditadura militar. O exemplo de Portugal esteve também bem pre-
e para a África, porque, um sente em Espanha no processo de transição da ditadura (1939-1975) para a democracia,
ano depois, ocorreu o
desmoronamento que se iniciou após a morte de Francisco Franco, em 1975, e no qual o rei Juan Carlos I
inevitável da dinâmica de teve um papel preponderante.
luta de classes em
Portugal. (...) Mas os reflexos da Revolução fizeram-se sentir também noutros continentes, particular-
Daniel Bensaid et al, Portugal: mente em África. A independência das colónias portuguesas provocou uma alteração do
La Révolution em Marche,
Paris, 1975.
equilíbrio estratégico existente, influenciando de forma determinante a evolução política e
social na África Austral: na Rodésia do Sul (atual Zimbabué), o governo de minoria branca
de Ian Smith deu lugar, a partir de 1980, a um governo de maioria negra liderado pelo diri-
? Questão
gente negro Robert Mugabe; na África do Sul, o sistema de apartheid (termo que em african-
1. Qual o significado der significa separação) viria a ser eliminado em 1991, depois de uma longa luta liderada pelo
internacional da revolução ANC – Congresso Nacional Africano – liderado pelo carismático líder Nelson Mandela.
portuguesa?

Em Síntese

• A derrota dos regimes totalitários na Segunda Guerra Mundial fez aumentar a pressão inter-
nacional sobre o regime do Estado Novo e deu novo alento à oposição democrática interna,
onde se destacou o papel do PCP (a única organização sobrevivente da repressão salaza-
rista e ativa durante todo o período da ditadura), dos setores republicanos, socialistas e libe-
rais que, pese embora as divergências entre si, convergiram em organizações unitárias de
caráter antifascista – MUNAF (1943), MUD (1945), candidaturas de Norton de Matos (1949)
e Humberto Delgado (1958), Frente de Ação Patriótica (1964) e diversos Congressos Repu-
blicanos, entre outras ações, algumas delas com impacto internacional (assalto ao paquete
Santa Maria, desvio do avião da TAP para Tânger, manifestações estudantis, criação da
Rádio Portugal Livre, em Argel…).
• Depois do fracasso da tentativa liberalizadora e de modernização económica do marcelismo e
da resolução do problema colonial, a Revolução de 25 de Abril de 1974, desencadeada pelo
MFA, pôs fim ao regime autoritário do Estado Novo com mais de quatro décadas, instau-
rando um novo regime democrático e pluralista fundado nos princípios consagrados na Cons-
tituição de 1976, que garantiu o exercício efetivo da liberdade política dos cidadãos e devol-
veu o poder político à sociedade civil. Ao mesmo tempo, criou as condições para a
integração do país no concerto das nações democráticas europeias e para a independência
das colónias portuguesas, reconhecendo o seu direito à autodeterminação e independência.
• A revolução portuguesa, teve fortes repercussões no estrangeiro. O professor norte-
-americano de Ciência Política Samuel P. Huntington, considerou-a o início da “terceira vaga
democratizante”, que foi prosseguida pelo derrube das ditaduras no Sul da Europa, na Amé-
rica Latina, na Ásia e em África. Por outro lado, a independência das colónias portuguesas
em África acentuou o isolamento dos regimes autoritários da África Austral, em particular
o regime de apartheid sul-africano.
Unidade 3 - As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX 245

Unidade 3 As transformações sociais e culturais do terceiro quartel


do século XX
SUMÁRIO

3.1. A importância dos polos culturais anglo-americanos. A reflexão sobre a condição humana nas
artes e nas letras. O progresso científico e a inovação tecnológica
3.2. A evolução dos media
3.3. Alterações na estrutura social e nos comportamentos

APRENDIZAGENS RELEVANTES

– Caracterizar as transformações culturais e da mentalidade ocorridas no período em estudo,


reconhecendo o impacto no quotidiano da inovação científica e tecnológica e da pressão
dos media.
– Valorizar o empenhamento cívico e político, reconhecendo a importância do oposicionismo
da sociedade civil na desagregação de regimes autoritários.

CONCEITOS/NOÇÕES ESSENCIAIS Documento 1


Expressionismo abstrato; Pop art; Arte conceptual; Existencialismo; Ecumenismo; Ecologia; Movi- A afirmação dos EUA como
mento pacifista; Contracultura polo cultural
Os artistas do imediato do
pós-guerra, sobretudo na
Europa, sentiram-se (...)
3.1. A importância dos polos culturais anglo-americanos. A reflexão desnorteados. Como
continuar? (…) A destruição
sobre a condição humana nas artes e nas letras. O progresso de quadros levada a cabo
científico e a inovação tecnológica pelos nacional-socialistas
tinha conduzido a um
empobrecimento artístico.
3.1.1. A importância dos polos culturais anglo-americanos Uma série de destacados
artistas de vanguarda
O fim da Segunda Guerra Mundial consumou o declínio do papel da Europa nas rela- como Chagall, (…)
Mondrian, Duchamp, Groz,
ções internacionais e consagrou, como se viu, os EUA na liderança do mundo ocidental.
Ernst ou Dalí tinham
Acompanhando e reforçando a sua afirmação política e económico-financeira no mundo, emigrado para os Estados
Unidos (…) para escapar à
a cultura anglo-saxónica torna-se dominante. Nos anos 40 e 50, Nova Iorque, já então a perseguição dos nacional-
grande metrópole económica e financeira, torna-se no maior centro de produção artística -socialistas e aos efeitos
da guerra.
internacional (Doc. 1), retirando a Paris esse estatuto. Londres, beneficiando de ligações histó- A situação económica
rico-culturais e políticas privilegiadas com os EUA, partilha, em menor grau, desse papel. relativamente favorável
dos EUA também permitia
um generoso mecenato
Vários fatores se conjugam na explicação da hegemonia cultural e artística norte- privado, que teria sido
-americana: impensável nestes termos
na Europa.
– a fuga para os EUA, e em particular para a cidade nova-iorquina, de artistas e inte-
Anna-Carola Kraube, História
lectuais europeus refugiados dos regimes totalitários e da guerra(1); da Pintura, Do Renascimento
aos Nossos Dias, Colónia,
– a situação económica favorável dos EUA permitia um generoso mecenato privado, que Könemann, 2001, pp. 106-107.

viu na arte e na cultura uma oportunidade de reconhecimento social e de negócio;


– a divulgação da produção artística americana, até então praticamente ignorada a ? Questão
nível internacional, em consequência dos extraordinários progressos das tecnologias
1. Como se explica a
da informação e comunicação, a par da presença dos artistas emigrados europeus. importância adquirida
pelos polos culturais
(1)
Artistas de vanguarda como Chagall, Mondrian, Duchamp, Groz, Ernst, Dalí, Gropius e Breuer, entre outros, emigra- anglo-americanos no pós-
ram para os EUA para escapar à perseguição dos nacional-socialistas e aos efeitos da guerra. -guerra?
246 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

3.1.2. A reflexão sobre a condição humana nas artes e nas letras


Os efeitos devastadores do fascismo, da Segunda Guerra Mundial e da bomba nuclear
lançaram o ceticismo sobre os fundamentos morais e éticos das sociedades. Os artistas
do pós-guerra questionam-se sobre a condição humana, procurando novos e revolucio-
nários caminhos para a arte e a cultura. Retomou-se o clima de rutura do início do século.
Irromperam movimentos diversificados e multifacetados, verdadeiras “segundas vanguar-
das” artísticas.

A) O Expressionismo Abstrato

* Expressionismo Abstrato: O Expressionismo Abstrato* foi o primeiro movimento de arte abstrata americana. Ini-
de abstract expressionism,
ciado na década de 40, num contexto político e social muito particular, os artistas expres-
expressão utilizada pelo
crítico americano Robert sionistas abstratos já não acreditavam na possibilidade de transformar o mundo com a
Coates para designar o arte. Não pretendiam utilizá-la para procurar novos valores ou utopias. Interessavam-se
primeiro movimento de
arte abstrata americano pelos problemas da sociedade do seu tempo, ainda que esteticamente sob formas diver-
iniciado pelo pintor Arshile sas. Alguns exprimiam a sua perceção desses problemas através de traços ainda residual-
Gorky. Trata-se de um
termo genérico que mente figurativos, outros eliminavam-nos totalmente.
engloba diferentes
tendências da pintura dos A característica mais interessante dos trabalhos dos artistas do Expressionismo Abs-
anos 40, 50 e 60 do século trato americano, de que se salientam Jackson Pollock (1912-1956), a sua figura mais
XX, em que a cor, a forma
e a técnica pictórica são os importante, Arshile Gorky (1904-1948) (Fig. 1), o primeiro representante do movimento,
únicos veículos da e Willem de Kooning (1904-1997), é sobretudo não representarem nada que pudesse ser
expressão e de significado.
reconhecido à primeira vista. A sua observação requeria novas maneiras de ver. O mais
importante não era a mensagem que o quadro transmitia, mas o que ele des-
pertava no observador.

Apelava-se, por isso, à fantasia, à reflexão, aos sentidos e à capacidade de


questionamento do público. A aparente falta de conteúdo desafiava o observa-
dor a refletir sobre si próprio e o mundo. Nesta medida, as obras enquadra-
vam-se perfeitamente na sua época.
Sob o ponto de vista estético, o Expressionismo Abstrato caracteriza-se:
– pelo sentido da frontalidade do espaço pictórico, regra geral de grande for-
mato;
– pela ausência de hierarquização do espaço da tela, que cobrem total-
mente de tinta;
– pelo gestualismo (action painting)(2) expresso na aplicação da cor em
manchas uniformes mais ou menos extensas, de forma rápida e intuitiva.
Fig. 1. O Noivado (1947), de
Arshile Gorky, Museu
Witney de Arte Americana, Na década de 60, o Expressionismo Abstrato difundiu-se na Europa através dos artis-
Nova Iorque. tas expressionistas abstratos americanos de segunda geração. Entre estes destacaram-se
Joan Mitchell (1926-1992) a artista mais representativa, Robert Motherwell (1915-1991) e
Mark Rothko (1903-1970).

(2)
Para os pintores expressionistas abstratos, pintar era uma ação espontânea, um ritual de desfecho imprevisível.
Por isso se chama a este procedimento action painting (pintura de ação ou pintura gestual).
Unidade 3 - As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX 247

B) A Pop Art

Inspirada na cultura popular, a Pop Art*, forma abreviada de popular art (arte popular), * Pop Art: forma abreviada
de Popular Art (arte
teve a sua origem nas metrópoles urbanas de Londres em meados da década de 50 e popular). Designa a
depois em Nova Iorque nos anos 60. produção artística britânica
e norte-americana
Depois de um período, que durou quase duas décadas, de domínio absoluto por parte inspirada na cultura de
massas, ou seja popular,
do abstracionismo, os artistas pop voltaram a aproximar a arte da realidade, com toda a entre 1955 e 1970.
força e de uma forma direta, transformando os objetos banais – latas, garrafas de conhe- Caracteriza-se pela
utilização de temas do
cidos refrigerantes e embalagens dos mais diversos produtos –, símbolos e personagens quotidiano, refletindo de
(vedetas) do quotidiano da sociedade urbana em obras de arte. modo criativo e crítico a
sociedade de consumo.
Mas a Pop At não se limitou a reproduzir imagens dos produtos
industriais utilizados pelas massas, pela publicidade, pelo cinema e
pela imprensa, enfim imagens conhecidas e reconhecidas por toda a
gente. Produzia as obras em série como se fossem produtos industriais.
A serigrafia, um método de reprodução fácil e ao mesmo tempo variá-
vel, tornou-se no seu instrumento favorito.

A sua linguagem figurativa e de perceção imediata para as massas


explica a ampla aceitação da Pop Art pelas diferentes classes das socie-
dades britânica e norte-americana. Pode dizer-se até que constituiu um
verdadeiro fenómeno social. Esta corrente, cujo lema era all is pretty
(tudo é bonito), é interpretada como uma forma de participação e glo-
rificação da sociedade de consumo e, ao mesmo tempo, como uma
abordagem crítica, hábil e irónica, desse modelo de sociedade. Fig. 2. M-Maybe (Retrato
de Rapariga). 1965, de Roy
Lichtenstein (1923-1997)
Artistas representativos: Roy Lichtenstein (Fig. 2), Andy Warhol (1928-1987) e Robert (Museu Ludwig, Colónia).

Rauschenberg (1925-1997).

C) A Arte Conceptual

A partir de meados dos anos 60, apareceu uma série de novas formas artísticas, cuja
característica comum era a sua tentativa de integrar o mais possível o observador na pro-
dução artística, mediante a sua colaboração mental, intelectual.

Nasceu assim a denominada Arte Conceptual*, um movimento nova-iorquino que des- * Arte Conceptual:
movimento artístico
valoriza o objeto face à ideia, invertendo a hierarquia tradicional. As ideias podiam ser
internacional iniciado em
obras de arte e para sê-lo não tinham necessariamente que ser materializadas. Os con- Nova Iorque a partir de
meados dos anos 60 e nos
ceitos, as ideias, apresentam-se sob a forma de declamações faladas ou cantadas, de
anos 70, do século XX,
colóquios, de reflexões ou de citações. Ou ainda, através de textos ilustrados, fotogra- que, livre da representação
pictórica, declara o
fias, filmes, palavras escritas, telas animadas por fórmulas matemáticas destinadas a
processo mental como
exprimir uma ideia, exposições, etc. obra de arte,
interessando-se acima de
tudo pela ideia ou conceito.
248 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

A obra de arte perde o seu caráter tradicional de objeto artesanal (ou, pelo menos,
isso torna-se secundário) mas, muitas vezes, permanece objetivada de forma em que a
perceção sensível é relevante.

Artistas representativos: Joseph Kosuth (n. 1945); Hans Haacke (n. 1936); Dennis Oppenheim
(n. 1938); Daniel Buren (n. 1938); Terry Atkinson (n. 1939) e Joseph Beuys (1921-1986).

D) Na Literatura

As experiências traumáticas das guerras mundiais vividas direta ou indiretamente pela


geração de escritores nascidos por volta de 1900 e o clima de tensão do apogeu da
Guerra Fria nos anos 40 e 50 refletiram-se naturalmente nas suas obras.

Assim, a Literatura europeia e norte-americana deste período são caracterizadas sobre-


tudo pela sua abertura às conceções filosóficas do Existencialismo* e ao seu comprome-
* Existencialismo: timento político, muitas vezes sinónimo de adesão ao marxismo. A angústia existencial,
movimento filosófico expressa nos sentimentos de culpa, no absurdo, na morte, no vazio, estava, de resto, em
contemporâneo segundo o
qual a existência precede a consonância com a crise de valores e o sentimento de desencanto reinante em particular
essência. O Homem, desde entre uma juventude inquieta e irreverente que punha tudo em causa.
o seu nascimento, foi
lançado e abandonado no
Em França, a par da literatura de inspiração existencialista que teve em Jean-Paul Sartre
mundo, sem apoio e sem
referência a valores. É o (1905-1980), Albert Camus (1913-1960) e Simone de Beauvoir (1908-1986) os principais
Homem que se constrói a
protagonistas, apareceu nos anos 50 um outro tipo de ficção que se afastava da crítica
si próprio. Sendo
plenamente livre para social, o nouveau roman (romance novo).
procurar o sentido da sua
existência, é também Na Inglaterra, como noutros países, a ficção do pós-guerra evoluiu entre um tipo de
responsável por si mesmo
e por aquilo que o cerca. literatura progressista, com preocupações de natureza social, e uma linha mais apostada
no êxito editorial, no consumo. Graham Greene (1904-1991), John Le Carré (n. 1931) e
George Orwell (1903-1950) são três dos mais populares ficionistas.

Em Portugal, nas décadas de 50 e 60, autores consagrados como Alves Redol (1911-
-1969), Fernando Namora (1919-1989) e Mário Dionísio (1916-1993), entre outros, confe-
rem às suas obras uma dimensão de intervenção social (Neorrealismo), enquanto outros
como Augusto Abelaira (1926-2003), Eduardo Lourenço (n. 1923) e Urbano Tavares Rodri-
gues (n. 1923), aderem à nova linha existencialista, e Cardoso Pires (1925-1998), por
exemplo, tem uma obra que é uma espécie de ponte entre o Neorrealismo e os autores
influenciados pelo Existencialismo.

Graças à revolução do “livro de bolso”, o livro torna-se um produto cultural de massa,


apesar da concorrência cada vez maior dos meios audiovisuais.

3.1.3. O progresso científico e a inovação tecnológica

A) A recuperação da confiança na Ciência

A Segunda Guerra Mundial e o horror da bomba atómica pareciam ter terminado com
o período de confiança geral das sociedades nos progressos da Ciência.
Unidade 3 - As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX 249

No entanto, nos anos 40 e 50, uma vaga de invenções nos domínios da eletricidade Cronologia
e da eletrónica iriam originar uma autêntica revolução tecnológica, recuperando a con-
1946
fiança na Ciência e na sua importância para a vida quotidiana das sociedades. ENIAC, o 1.º computador
digital totalmente
No centro dessa revolução encontram-se os progressos científicos nas áreas da Física, eletrónico.
Química e Biologia e as inovações tecnológicas nos domínios da informação e da comu- 1947
nicação, que estão na origem do que muitos designam por “terceira revolução industrial”: Invenção do transístor por
Brattain, Bardeen e
– utilização da energia atómica para fins pacíficos: produção de eletricidade, aplica- Shockley (EUA).
ção em meios de transporte (submarinos, aviões), na medicina (TAC – Tomografia 1954
Patente de um braço de
Axial Computorizada);
robô programável de
– a criação do primeiro computador inteiramente eletrónico, o ENIAC(3); George Devol (EUA).
1.º computador a
– invenção do transístor (1947); transístores, o TRADIC
(EUA).
– distribuição por cabo dos sinais de televisão (anos 50);
1956
– implantação das redes de satélites de telecomunicações (anos 60); 1.º cabo telefónico
transatlântico, o Tat I,
– microprocessador; entre a Escócia e a Terra
– desenvolvimento da cibernética (ligação entre informática e eletrónica) permitiu a Nova (Canadá).

construção de robôs e a automatização da produção e abriu novas perspetivas à 1958


1.º circuito integrado, de
exploração do espaço (anos 70). Jack Kilby (EUA).
1962
A explosão das novas tecnologias da informação (software, educação e formação, O TELSTAR, lançado pelos
EUA, inaugura uma nova
marketing, design) e da comunicação induziu substanciais alterações na vida das socie- era das comunicações
dades contemporâneas: transatlânticas via satélite.
1969-1971
Os EUA constroem uma
– a superação das fronteiras pelas telecomunicações por satélite encaminhou o
Rede de Computadores,
mundo muito rapidamente para a “aldeia global” (expressão utilizada pelo soció- precursora da Internet.
logo canadiano McLuhan, em 1960); Ted Hoff, Faggin, Mazor e
Shima inventam o
– a criação de uma “sociedade de comunicação” vulnerável aos riscos da homogenei- microprocessador.
zação e da hegemonia dos modelos culturais das sociedades tecnológica e econo- 1973
1.as máquinas de fax.
micamente mais poderosas.

3.2. A evolução dos media


O forte crescimento económico nas sociedades ocidentais ao longo das três décadas
que se seguiram ao termo da Segunda Guerra Mundial, o aumento dos rendimentos, a
redução das horas de trabalho e o consequente aumento dos tempos livres criaram as
condições para que as pessoas encarassem a vida de outra forma: já não trabalhavam
apenas para “ganhar o pão”, mas para desfrutar da vida.

Esta nova atitude face ao quotidiano, acompanhada dos progressos técnicos nos
domínios do som e da imagem, favoreceu o desenvolvimento dos meios de comunicação
de massa, os chamados media.

(3)
O ENIAC (Electronic Numeral Integrator And Calculator) foi criado, em 1946, na Universidade da Pensilvânia. Utilizava
mais de 18 000 válvulas, pesava 30 toneladas e ocupava uma área de 140 m2. A “segunda geração” de computadores
surgiu em 1960 utilizando transístores em vez de válvulas, mas fiáveis e pequenos.
250 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

3.2.1. Os novos centros de produção cinematográfica


Durante os anos 50 e 60, o mercado mundial é dominado pelos filmes de Hollywood
(Fig. 3) e pelas grandes empresas cinematográficas como a Twentieth Century-Fox, a MGM
e a Paramount, contribuindo para a afirmação da hegemonia dos padrões culturais
americanos no mundo ocidental. Mais de metade das receitas de Hollywood provi-
nha do estrangeiro, com o mercado europeu a contribuir com uma parte muito subs-
tancial nesse total.

Mas a Europa reagiu, ainda nos anos 50, através do Cinema Neorrealista ita-
liano, onde se destacam os consagrados Rosselini e Vittorio De Sica, entre outros.
Nos anos 60, a Nova Vaga francesa revelou notáveis realizadores, como François
Truffaut, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard, cujos filmes obtiveram grande sucesso
sobretudo entre os jovens, as classes médias e os críticos. Também o Cinema Novo
português deu a conhecer nomes importantes, como Paulo Rocha e Alberto Seixas
Santos. Na Europa de Leste, atingiram notoriedade o húngaro Miklós Jancsó e os
filmes da Nova Vaga checoslovaca.

Fora do continente europeu, emergem:


– o cinema japonês, centrado em temas históricos e contemporâneos associa-
Fig. 3. Filme Música no
Coração (1965), de Robert dos ao milenar nacionalismo e espírito guerreiro nipónicos, sendo de desta-
Wise (EUA).
car as obras dos realizadores Akira Kurosawa e Nagisa Oshima;
– o Cinema Novo brasileiro, com abordagens críticas dos problemas sociais, de que
Glauber Rocha foi figura destacada;
– o cinema indiano tem em Satyajit Ray (1921-1992), um importante realizador.

* Hegemonia norte-americana: No entanto, o desenvolvimento destes novos centros de produção fílmica não põe em
apesar de alguns fracassos
causa a hegemonia norte-americana*.
financeiros retumbantes e
das quebras de frequência
das salas de cinema nos
anos 60, o cinema 3.2.2. O impacto da TV e da música no quotidiano
americano renasce no início
dos anos 70, produzindo
A) A TV
filmes baratos, de sucesso
comercial garantido e
direcionados para o gosto Durante os anos de 50 a televisão conhece na América do Norte e na Europa Ociden-
das plateias jovens cada tal uma expansão espetacular. Inicialmente olhada com ceticismo, a televisão conquista
vez mais consumidoras de
cinema. rapidamente um espaço importante no quotidiano quer do cidadão mais vulgar quer do
mais notável.

Os progressos técnicos, em particular o aparecimento da TV a cores em 1953, nos EUA,


e a sua produção em massa fizeram baixar o preço dos aparelhos, tornando a sua aquisi-
ção acessível para um número crescente de famílias, ao mesmo tempo que eram alargadas
as horas de emissão. Estas novas condições permitiram à televisão ganhar novos públicos
e, consequentemente, mais importância no dia a dia das pessoas. As tarefas domésticas e
as agendas dos políticos passam a estar condicionados pelo “pequeno écran”.
Unidade 3 - As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX 251

Para um número cada vez maior de pessoas é a fonte principal de notícias, de entre-
tenimento e de negócios (publicidade, marketing).

O presidente dos EUA, John Kennedy, foi um dos primeiros políticos a


explorar as vantagens das câmaras: realizou conferências de imprensa em
direto e fez um ultimato a Krutchov através da televisão durante a crise dos
mísseis de Cuba. A empatia que criou com a nação americana deve-a em
grande parte ao hábil uso que fez da televisão.

A presença da televisão tornou-se indissociável dos grandes aconteci-


mentos. Em 1969, 350 milhões de telespetadores puderam seguir entusias-
mados os primeiros passos do homem na superfície lunar. Mas também
seguiram horrorizados a extrema violência da guerra do Vietname, a primeira guerra com Fig. 4. Os horrores da
guerra em direto pela TV: o
imagens em direto (Fig. 4). general Loan, chefe
nacional da polícia do
Vietname do Sul executa
B) A música um vietcong em frente às
câmaras de televisão.
Na segunda metade do século XX a música é, de todas as manifestações culturais, a
mais difundida. Também neste domínio a influência anglo-saxónica é determinante.

O nascimento do rock and roll, em meados da década de 50, constitui uma verdadeira
revolução musical e do estilo de vida (Fig. 5). O ritmo e a irreverência do rock atraem
massivamente os jovens. Tocar, ouvir e dançar o rock torna-se uma forma de expressão
da “revolta da juventude” contra as convenções sociais repressivas dos mais velhos. Elvis
Presley, a superestrela do rock americano, e as bandas rock britânicas The Beatles e The
Rolling Stones adquirem projeção mundial.

Mas nos anos de 1970 e 1980 o rock torna-se mais artificial e comercial. Acomoda-se
aos objetivos da sociedade de consumo. Como reação, alguns músicos norte-americanos Fig. 5. O rock and roll
constituiu uma forma de
começam a procurar algo mais “autêntico”, menos “comercial” a partir da tradição do expressão da rebeldia
folk rural (branco e negro). juvenil contra o padrão de
valores e as convenções
Deste renascimento do folk nascem novas correntes musicais inspiradas no jazz e nos sociais dominantes.

blues, onde as letras ganham maior importância. O caráter radical e libertário destas com-
posições musicais, que têm em Bob Dylan e Joan Baez dois dos seus maio-
res intérpretes, ligam-nas aos movimentos juvenis de contestação social e
política que irrompem nos anos 60 nos Estados Unidos e na Europa.

Paralelamente ao renascimento da cultura popular americana, ocorre na


Grã-Bretanha, no início da década de 60, algo semelhante. A atração pelos
sons e ritmos do rock and roll americano esgota-se e o interesse dos jovens
pela música popular britânica é cada vez maior.

O aparecimento e a ascensão meteórica dos Beatles em 1962-1963 tra-


zem para o primeiro plano a música pop. A nova música provocou entre os
Fig. 6. “Beatlemania”,
jovens uma torrente incontida de entusiasmo, uma autêntica “beatlemania” (Fig. 6), palavra que exprime as
sobretudo entre as adolescentes que encontraram aqui uma oportunidade de afirmação reações da histeria juvenil
nos concertos da banda
e de liberdade. britânica The Beatles (Nova
Iorque, 1964).
252 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

3.2.3. A hegemonia dos hábitos socioculturais norte-americanos


No pós-guerra, os EUA afirmaram a sua liderança política, militar e económica do
mundo ocidental, capitalista e democrático. A partir do início dos anos 60, essa hegemo-
nia estendeu-se também aos domínios da cultura. Os extraordinários progressos científi-
cos e tecnológicos nas áreas da informação e da comunicação nos anos 50 e 60 acelera-
ram o processo de aculturação(4) à escala mundial, processo esse que funcionou em favor
da cultura anglo-saxónica.

A “aldeia planetária” que aqueles progressos potenciaram é uma aldeia claramente


dominada pelo modelo civilizacional norte-americano. É ele que fornece o canal de comu-
nicação internacional, a língua inglesa; impõe as suas músicas, os programas de televi-
são, os seus filmes e estrelas, os seus hábitos alimentares (fast-food, refrigerantes, etc.)
e de vestuário (jeans). Esta situação de homogeneização cultural e civilizacional de
matriz anglo-saxónica suscitaria movimentos de rejeição tanto na própria sociedade
norte-americana como também na Europa e noutras partes do mundo.

3.3. Alterações na estrutura social e nos comportamentos


A) A terciarização das sociedades

No período que se seguiu ao termo da Segunda Guerra Mundial e até 1973, o mundo
desfrutou, como já estudámos, de um forte crescimento económico, ainda que não intei-
ramente uniforme, a um nível nunca antes atingido.

Este boom económico a nível mundial, acompanhado pelo aumento dos rendimentos
22%
42% das pessoas, induziu naturalmente mudanças no tecido socioeconómico (Fig. 7), algumas
36% das quais já vinham a verificar-se e continuaram ou aceleraram durante este período:
1960
– redução do peso da agricultura no rendimento das economias nacionais, decorrente
dos progressos da mecanização do trabalho agrícola e da biotecnologia;
12%

52% – incremento da urbanização em consequência do aumento do número e dimensão


36%
das cidades, cada vez mais o destino procurado pelas populações (crescimento
1973 demográfico e êxodo rural);
Agricultura
Indœstria – terciarização da economia em consequência do forte desenvolvimento das ativida-
ComŽrcio e Servios
des do setor do comércio e serviços (saúde, educação, justiça, turismo, transportes,
Fig. 7. Evolução do distribuição e venda, desporto e lazer, etc.).
emprego da mão de obra
ativa nos países da OCDE
em 1960 e 1973.
Histoire, Terminales,
ob. cit., p. 48.

(4)
Aculturação: processo pelo qual um grupo humano assimila total ou parcialmente valores culturais de um outro
grupo humano.
Unidade 3 - As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX 253

A progressiva terciarização da economia nas décadas de 40 a 70 do século XX teve


naturalmente repercussões na estrutura social e nos comportamentos:

– favoreceu o crescimento em número e importância das classes médias;


– o pleno emprego e o aumento da produtividade permitiram aos assalariados obter
melhores salários e elevar o seu poder de compra;
– a elevação dos rendimentos das classes médias e dos trabalhadores em geral pro-
vocou, por sua vez, alterações nos níveis e padrões de consumo estimulados pela
publicidade e pelo marketing;
– a abundância da sociedade de consumo criou e modelou um novo estilo de vida,
expresso nos padrões da moda, que passou a estar ao alcance de um número cres-
cente de pessoas, incluindo os jovens, no design do mobiliário, no gosto pela
música, cinema, viagens e desporto, na confiança na tecnologia, enfim, na intole- * Contracultura: valores e
comportamentos
rância com a tradição e o conservadorismo.
marginais aos modelos ou
padrões validados e
aceites como corretos pela
maioria da sociedade.
3.3.1. Os anos 60 e a gestação de uma nova mentalidade

A) Procura de novos referentes ideológicos

A ânsia de modernidade encontrou eco sobretudo na juventude dos anos 60. Um


pouco por todo o Mundo, mas especialmente na Europa e nos EUA, irromperam movi-
mentos de contestação, sobretudo de jovens estudantes universitários que recusavam os
referentes ideológicos impostos pelas duas superpotências e o clima de Guerra Fria, a socie-
dade de consumo e a moral convencional.

B) Contestação juvenil
Fig. 8. Representação de
Mas os anos 60 trouxeram, para além da vaga de contestação social e política, uma um feiticeiro primitivo. As
revolução de costumes e uma contracultura* que se traduziram numa revolta incontida fantasias dos hippies
pretendem constituir-se
contra quase todos os padrões tradicionais de autoridade e de comportamento. em manifestações de
contracultura.
Os problemas sociais e psicológicos decorrentes das contradições entre o stress com-
petitivo de uma sociedade de consumo e o desejo de autorrealização e a guerra no Viet- * Ecologia: área de
name abalaram a confiança da juventude nas instituições políticas. A América descobre conhecimento da Biologia
que tem por objeto o estudo
com espanto e inquietação, primeiro, os beatniks(5), depois, os hippies(6) (Fig. 8). Rejei- das relações dos seres
tam todas as convenções. Desafiam os hábitos sociais estabelecidos deixando crescer os vivos com o seu meio
natural e da sua adaptação
cabelos, vestindo roupas de estilo oriental, apresentando um aspeto desleixado, refu- ao ambiente físico ou moral.
giando-se no consumo de álcool e de drogas (LSD e marijuana), proclamando os méritos A degradação do meio
ambiente, provocada pelo
da Natureza e da Ecologia*. progresso técnico, foi outra
das áreas da contestação
A contestação alastrou-se à Europa, onde a massificação do ensino e os problemas juvenil e da comunidade
daí decorrentes também não encontravam na política a resposta adequada. científica. A defesa da
qualidade do meio ambiente
esteve na origem da criação
(5)
Beatniks (do inglês beat, batimento, música ritmada – rock and roll): nome dado aos jovens que amavam a música de várias organizações
ritmada e que desafiavam as convenções sociais com comportamentos e modos de vida marginais. internacionais, casos de
(6)
Hippies: pessoas que rejeitam os valores sociais e culturais da sociedade de consumo, pacifistas, antirracistas; Amigos da Terra e
defendem o regresso a um modo de vida natural, em total liberdade. Greenpeace (1971).
254 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Em Portugal, apesar da natureza fascista do regime, os movimentos estudantis encon-


traram também espaço para se expressarem. Os estudantes universitários em Lisboa rea-
giram à proibição de Salazar das comemorações do Dia do Estudante (1962) e, sobre-
tudo, na chamada “crise académica” de 1969, que aliou a luta “por uma Universidade
nova, livre e democrática, num Portugal Novo” à oposição à guerra colonial.

Os Movimentos hippies e o “Maio de 68” em França

Os movimentos hippies têm origem em São Francisco (EUA) no início da década de 60.
* Pacifismo: movimento de Trata-se de um movimento que proclama o pacifismo* e o antirracismo com um caráter
defesa da paz; “fazer
declaradamente idealista, caracterizando-se pela rejeição de tudo o que é convencional,
guerra à guerra”.
Nos anos 60 e 70, este dos valores da sociedade de consumo e pela apologia da Natureza, da vida comunitária
movimento, que teve nos e primitiva regida pelo amor e liberdade, objetivos expressos no slogan make love, not
jovens e intelectuais os
seus militantes mais war!
ativos, elegeu como alvos
principais a discriminação Em França, a agitação começa na Universidade de Nanterre, em março de 1968, atra-
das minorias étnicas e vés de pequenos grupos de extrema-esquerda que contestam a sociedade capitalista, sob
raciais, a luta contra a
corrida aos armamentos, o a liderança de um estudante de Sociologia, Daniel Cohn-Bendit. No mês de maio de 1968,
colonialismo e a guerra do o surto de contestação mobiliza dezenas de milhar de estudantes que transformam as uni-
Vietname.
versidades paralisadas pela greve em parlamentos e as ruas num campo de contestação.
A noite de 10 para 11 de maio, a primeira “noite das barricadas”, fica marcada por con-
frontos violentos entre os estudantes e as forças policiais no Quartier Latin, em Paris.
A repressão policial e o descontentamento com o regime gaulista(7) (Fig. 9) mobilizam os
sindicatos operários e os trabalhadores para uma greve geral a 13 de maio. Em
poucos dias, as greves generalizam-se e muitas das fábricas são ocupadas pelos
operários. A crise torna-se também social. Face à dimensão da crise, De Gaulle
viu-se obrigado a dissolver a Assembleia Nacional e a convocar eleições anteci-
padas. As eleições reforçam o poder dos gaulistas. O movimento estudantil
esgota-se. Os operários regressam ao trabalho nas suas empresas.

Que pretendiam os jovens?

A sua vontade de mudar o mundo era evidente. O problema era que o seu
programa esgotava-se em alguns slogans, sugestivos é certo, mas desprovidos
de conteúdo como: “a imaginação ao poder!”, “sê realista, exige o impossí-
vel!”. A dimensão da crise política e social que o “Maio de 68” adquiriu dever-
Fig. 9. Cartaz de maio de -se-á ao facto de ao eixo conflitual juventude e liberdade contra adultos e autoridade se
1968. A silhueta projetada
a negro é do presidente ter associado, por circunstâncias diversas, a oposição tradicional entre governantes e
francês De Gaulle governados e o novo conflito entre revolução e conservadorismo.
(1890-1970).
O que fica deste movimento?

Apesar do seu impacto, “Maio de 68” não se transformou numa força de mudança
social efetiva, tendo-se esgotado rapidamente. É nos domínios social e cultural que teve
maior repercussão, pondo em causa o poder autoritário, a rigidez das relações familiares,
o poder machista, a inadequação da escola à vida real, o caráter desumano do taylorismo.
Paradoxalmente, é no meio académico que os seus efeitos são menores.

(7)
Gaulista: termo criado a partir do nome do general De Gaulle, presidente da França entre 1958 e 1969 e um dos heróis
da resistência contra a ocupação nazi (1940-1944)
Unidade 3 - As transformações sociais e culturais do terceiro quartel do século XX 255

C) Contestação à religião

No clima de contestação dos anos 60 interveio ainda um fenómeno que a Segunda


Guerra Mundial acelerou: o declínio da crença religiosa e da influência da Igreja e do clero.

O comunismo e os regimes socialistas ganham terreno e a prosperidade económica


reforça a fé no progresso material, mas é discutível afirmar-se que as pessoas se terão
tornado então menos religiosas. O que as estatísticas demonstram é que nas sociedades
industrializadas o número de praticantes, os membros ativos das igrejas, diminuem, com
exceção dos EUA. Em consequência, o papel de regulação moral da religião e das igrejas
enfraquece.

Indiferente à perda de influência, a Igreja Católica Romana continuava agarrada à orto-


doxia dos seus princípios morais e religiosos, uma atitude conservadora que contrastava
claramente com os novos tempos de mudança. Interpretando os sinais dos novos tem-
pos, o Papa João XXIII convoca o Concílio Ecuménico Vaticano II (1962-1965).

Uma boa parte da doutrina social da Igreja é reformada, tal como a sua liturgia, dando
* Ecumenismo: movimento
passos decisivos em direção ao ecumenismo*. A Igreja torna-se mais aberta e tolerante de aproximação/integração
face a outros credos. Todavia, continua resistente a questões como o controlo da natali- das doutrinas e igrejas
universais.
dade, o aborto e a homossexualidade.

D) Afirmação dos direitos da mulher

As imagens tradicionais da mulher limitada ao seu papel de esposa e mãe eram ainda
muito comuns nos finais dos anos 60 nas sociedades ocidentais. Esse facto não obstou,
porém, que as mulheres, estimuladas pelas campanhas em favor dos direitos cívicos das
minorias étnicas e raciais e pela atmosfera de crítica social reinante, tomassem maior
consciência do seu papel na vida social e familiar e reivindicassem a igualdade de direi-
tos relativamente aos homens.
Para as feministas radicais, a questão central era a rebelião contra a
repressão sexual masculina. Neste domínio, as mulheres passavam a ter
um aliado na “pílula” contracetiva que começara a ser comercializada no
início da década de 50.
A “segunda vaga feminista” dos anos 60 (Fig. 10) reivindicou também
a igualdade e a independência em matérias de trabalho e da família. As
mulheres já não viam o trabalho como uma fonte de rendimento comple-
mentar da família, mas como forma de realização pessoal e profissional, Fig. 10. A luta pelos direitos
queriam ter, tal como os homens, as suas próprias carreiras profissionais. A questão da civis levada a cabo pelas
minorias étnicas e raciais
igualdade feminina incluía ainda a luta pelo direito a um salário igual ao dos homens e
nos EUA, nos anos 60,
pelo controlo da natalidade (contraceção e aborto). favoreceram o despertar da
“segunda vaga feminista”,
Desta alteração de comportamentos resultaram consequências significativas para a reivindicando para as
estrutura e funcionamento da vida familiar: mulheres a igualdade de
direitos e a independência
– o número de divórcios e separações cresceu vertiginosamente; económica, social e afetiva.
– a taxa de natalidade dentro do casamento baixou;
– o número de gravidezes de adolescentes, decorrente da utilização da pílula anticon-
cecional reduziu-se substancialmente.
256 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Em Síntese

• Depois da Segunda Guerra Mundial, as sociedades e as culturas que elas veiculam sofrem
profundas transformações. O crescimento económico de 1945 até cerca de meados da década
de 70, os “trinta anos gloriosos”, suscitam novos padrões de vida e novas práticas culturais.
• Explorando as vantagens de superpotência liderante do mundo ocidental e dos progressos
tecnológicos revolucionários ocorridos no domínio dos meios de comunicação de massa, os
EUA impõem a sua hegemonia também no domínio artístico e cultural.
• Os polos da cultura anglo-saxónica tornam-se dominantes: o rock and roll revoluciona a
música e o estilo de vida dos jovens a partir de meados da década de 50; nos anos 60, as
novas correntes musicais (soul, reggae), largamente difundidas através do disco e dos
concertos.
• Na arte, as “segundas vanguardas” vão ainda mais longe do que as primeiras vanguardas
do início do século, na rutura com os cânones tradicionais e na procura de caminhos alter-
nativos, originais e revolucionários, que vão da abstração (Expressionismo Abstrato) à ele-
vação ao nível artístico dos objetos do quotidiano, símbolos da sociedade de consumo (Pop
Art).
• Os novos comportamentos (beatnicks, hippies) são manifestações de uma contracultura que
rejeita o modelo de sociedade instituído e os padrões de comportamentos, procura novos
referentes e alimenta os movimentos de contestação juvenil, que têm no “Maio de 68”, em
França, o seu ponto mais alto, e os movimentos feministas e pacifistas nos agitados anos 60.
• Os movimentos feministas dos anos 60 (“segunda vaga feminista”) reivindicam a igualdade
e a independência das mulheres em matérias de trabalho (carreiras e salários) e da família
(contraceção e legalização do aborto).
Questões Para Exame 257

Questões Para Exame


1

Documento 1 | Os Acordos de Ialta

O Primeiro-Ministro da URSS, o Primeiro-Ministro do Reino Unido e o Presidente dos Estados Unidos


consultaram-se mutuamente, tendo em conta os interesses comuns aos povos dos seus países e aos da
Europa libertada (…).
A Carta do Atlântico consagra o princípio do direito de todos os povos a escolher a forma de governo
sob o qual querem viver, a restauração dos direitos soberanos e de autogoverno àqueles povos que foram
despojados deles à força pelas nações agressoras.
Para criar as condições sob as quais os povos libertados possam exercer estes direitos, os três gover-
nos ajudarão conjuntamente os povos de qualquer Estado europeu libertado ou dos antigos estados saté-
lites na Europa onde, no seu entendimento, as condições o exijam:
a) a estabelecer as condições para um paz interna;
b) a tomar medidas de emergência para ajudar os povos necessitados;
c) a constituir autoridades governamentais internas, amplamente representativas de todos os setores
democráticos da população, que se comprometam através de eleições livres e no mais curto espaço
de tempo possível a formarem governos que correspondam à vontade do povo. (…)
d) a apoiar no que for possível a realização de tais eleições.

Através desta declaração reafirmamos a nossa fé nos princípios da Carta do Atlântico, a nossa confiança
na Declaração das Nações Unidas e a nossa determinação em construir, em cooperação com as demais
nações amantes da paz, um mundo no qual impere o direito, a paz, a segurança, a liberdade e o bem-
-estar geral de todo o género humano.

Declaração conjunta da Conferência de Ialta, 11 de fevereiro de 1945.

Documento 2 | O Terceiro Mundo e a política do não-alinhamento

M. Nouschi, ob. cit., p. 233.


258 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Documento 3 | A doutrina Jdanov

O objetivo do novo expansionismo dos Estados Unidos é o estabelecimento à escala mundial do impe-
rialismo americano. Este novo expansionismo visa a consolidação da situação de monopólio dos Estados
Unidos (…) estabelecido após o desaparecimento dos seus concorrentes principais – a Alemanha e o Japão –
e pelo enfraquecimento dos seus parceiros capitalistas: o Reino Unido e a França.
Este novo expansionismo assenta sobre um vasto programa de medidas de ordem militar, económica
e política, pelo que a sua realização estabelecerá em todos os países visados pelo expansionismo dos Esta-
dos Unidos a dominação política e económica destes últimos, reduzirá estes países à situação de satélites
dos Estados Unidos. (…)
É aos partidos comunistas que cabe o papel histórico de liderarem a resistência ao plano americano de
subordinar a Europa. (…) Os comunistas devem ser a força dirigente que congrega todos os elementos anti-
fascistas defensores da liberdade para a luta contra os novos planos expansionistas americanos de domi-
nar a Europa.
A. Jdanov, representante da URSS à Conferência dos Partidos Comunistas europeus, 1947.

1.1. Explicite, com recurso ao documento 1, os objetivos da realização da Conferência de Ialta.

1.2. Explique o papel do Movimento dos Países Não-Alinhados nas relações internacionais (documento 2).

1.3. Integre os documentos 1 a 3 na caracterização geopolítica das relações internacionais pós-Segunda


Guerra Mundial.

Documento 4 | A recessão económica internacional nos anos 70

A incidência da alta do preço do petróleo sobre a conjuntura foi dupla. Por um lado, ao acentuar a ten-
dência inflacionista geral (pela alta dos custos), (…) precipitou o momento em que a inflação teve um efeito
perverso sobre a conjuntura e em que os governos foram obrigados a tomar medidas para a travar. Por
outro, ao afetar a taxa média de rendimento do capital industrial, ela acentuou o seu movimento de baixa,
que é a causa fundamental da recessão. Mas, nestes dois casos, trata-se de uma ampliação de um movi-
mento já em curso. A recessão generalizada é o desenvolvimento do ciclo que começa com a recessão
ainda parcial de 1970-1971 (…).
As capacidades de produção cada vez mais excedentárias e a inflação camuflada precedem a quadru-
plicação dos preços do petróleo pelos países da OPEP na altura da guerra do Kippur. Esta alta do preço
do petróleo não é, pois, a causa nem mesmo o detonador imediato da recessão. Ela é sobretudo um fator
adicional que amplia a gravidade da crise.

Ernest Mandel, La Crise 1974-1978, col. «Champs », Flammarion, 1978.

2.1. Analise a conjuntura de depressão da economia internacional na década de 70.


A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:
– a problemática dos fatores;
– os efeitos.

A sua resposta deve integrar, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis no documento.
Questões Para Exame 259

Documento 5 | Campanha eleitoral de Humberto Delgado (1958)

(...) Toda essa gente constituía o grosso das multidões que,


mesmo em risco de serem espancados ou mortos, me aplaudiram.
Todos somos portugueses. Todos temos direitos – um deles o não ser
preso, indefinidamente, sem causa palpável.
Humberto Delgado, Lisboa, a 22 de agosto de 1958.

Documento 6 | Estratégias económicas do Estado Novo nas décadas de 60 e 70

Portugal chegara tarde à “segunda revolução industrial” e não conseguira reunir as condições políticas
e económicas para aproveitar o seu tempo autárcico. (...)
A abertura ao exterior – abertura ao comércio e à importação de capitais (cada vez mais necessários
para suprir o défice dos fundos públicos desviados para as despesas militares) – é um processo preferen-
cialmente direcionado para os mercados da Europa Ocidental, que claramente se impõem como parceiros
comerciais ao mercado colonial. Na realidade, ao iniciar o seu movimento de aproximação à Europa atra-
vés da adesão à EFTA e, mais tarde, do acordo com a CEE –, Portugal começava a optar contra dois tipos
de escolhas estratégicas, até aí predominantes no regime e, de algum modo, ligadas entre si: a do desen-
volvimento industrial autárcico e a do “mercado único português” (integração dos mercados metropolitano
e coloniais, por contraposição ao Mercado Comum europeu). (...)

José Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, pp. 499-500.

Documento 7 | Cartaz da Intersindical Nacional, em defesa da Reforma Agrária

3.1. Interprete, com recurso ao documento 5, a reação da população portuguesa à candidatura de Humberto
Delgado.

3.2. Enuncie, com recurso ao documento 6, três consequências da abertura da economia portuguesa ao exte-
rior nas décadas de 60 e 70.

3.3. Explicite o contexto político-ideológico do apelo inscrito no cartaz (documento 7).


260 Módulo 8 - Portugal e o mundo da Segunda Guerra Mundial ao início da década de 80

Documento 8 | Constituição de 1976

Preâmbulo

A 25 de abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo portu-
guês e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista. (...)
A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de abril de 1976, aprova e decreta a
seguinte Constituição da República Portuguesa: (...)

Artigo 9.o
Tarefas fundamentais do Estado

São tarefas fundamentais do Estado:


a) Garantir a independência nacional (...);
b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito
democrático;
c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos (...);
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem
como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transforma-
ção e modernização das estruturas económicas e sociais; (...)

4.1. Integre a Constituição de 1976 no processo de construção da democracia em Portugal.

A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:

– os objetivos do Movimento das Forças Armadas (MFA);


– o confronto entre os modelos de organização social e política defendidos pelas diferentes forças políticas;
– o significado da Constituição de 1976.

A sua resposta deve integrar, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis no documento 8.

4.2. Associe cada um dos elementos da coluna A, identificados por letras, relativos à ação de diferentes
personalidades entre os anos de 1974 e 1976, ao respetivo nome, identificado por um número, que
consta da coluna B.

Coluna A Coluna B

a) Estratega do MFA, integrou o Conselho da Revolução, foi comandante do COPCON.


b) Autor de Portugal e o Futuro, presidiu à Junta de Salvação Nacional, foi presidente 1) Mário Soares
da República depois do 25 de abril de 1974. 2) Álvaro Cunhal
c) Teve papel relevante na neutralização do golpe de 25 de novembro de 1975, foi o 1.o 3) Ramalho Eanes
presidente da República portuguesa do pós-25 de abril de 1974.
4) Otelo Saraiva de Carvalho
d) Liderou o Partido Socialista na vitória para a formação da Assembleia Constituinte de
1975. Primeiro-ministro de Portugal no I Governo Constitucional (1976-1977) e 5) António de Spínola
presidente da República entre 1986 e 1996.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 261

Módulo 9 12.° Ano


Alterações geostratégicas, tensões políticas
e transformações socioculturais no mundo atual
1. O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul
2. A viragem para uma outra era
3. Portugal no novo quadro internacional

Contextualização
Os finais da década de 80 e inícios dos anos 90 assinalam uma sucessão de acontecimentos
extraordinários que aceleraram o curso da História. O mundo assistiu então com alívio e
exaltação ao fim do sistema internacional da Guerra Fria que durava há quatro décadas.
Mas, o que se lhe segue? Uma nova ordem mundial… ou uma desordem mundial? Para já, a
única certeza que é que a velha ordem mundial morreu…
Na viragem para uma outra era, a Europa e mundo enfrentam novos problemas e novos
desafios: a crise do Estado-Nação, as questões das migrações, da segurança, do ambiente,
da ciência e da ética, os movimentos socioculturais e religiosos reativos face às pressões
massificadoras da cultura urbana e ao rolo compressor da globalização…
E Portugal: que papel quer (e pode) desempenhar no novo quadro internacional? Como arti-
cular a racionalidade da opção europeia com a afetividade das históricas relações atlânticas
e lusófonas?

Unidade 1 O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência


da dicotomia norte-sul
SUMÁRIO
1.1. O colapso do bloco soviético e a reorganização do mapa político da Europa de Leste. Os pro-
blemas da transição para a economia de mercado
1.2. Os polos do desenvolvimento económico
1.3. Permanência de focos de tensão em regiões periféricas

APRENDIZAGENS RELEVANTES
- Compreender o impacto da desagregação do bloco soviético na evolução geopolítica inter-
nacional.
– Caracterizar polos de desenvolvimento económico uniformizados pela economia de mer-
cado e diferenciados pelas áreas culturais de pertença**.
– Analisar as dinâmicas de transformação da Europa, identificando a sua importância no
sistema mundial**.

CONCEITOS/NOÇÕES

Perestroika; Cidadania europeia; Tribalismo; Sionismo; Fundamentalismo

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes
262 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

1.1. O colapso do bloco soviético e a reorganização do mapa


político da Europa de Leste. Os problemas da transição para a
economia de mercado
Cronologia
A) A implosão da URSS
1989
9 de novembro – queda do Nos últimos anos do governo de Leónidas Brejnev (1964-1982), a URSS começou a
Muro de Berlim.
mostrar sinais claros de declínio:
1990
Reunificação da Alemanha.
– problemas económicos(1) provocados pela longa e onerosa competição armamentista
1991
Dissolução do COMECON e com os EUA e a intervenção militar no Afeganistão contra o regime fundamentalista
do Pacto de Varsóvia. islâmico dos mujahidin (1979-1989), um conflito que resultaria num fracasso absoluto;
Implosão da URSS.
– a manutenção da corrida aos armamentos com os EUA, que, durante décadas, empe-
Guerra civil na Jugoslávia
entre Sérvios, Croatas e nhara todas as energias da sociedade soviética, devido ao programa do Presidente
Bósnios. Reagan (EUA) denominado Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), também conhecido
1993 por “guerra das estrelas”, por prever a militarização do espaço;
Divisão da Checoslováquia
em dois novos estados: – a campanha de Jimmy Carter, prosseguida por Ronald Reagan (EUA) em defesa dos
República Checa e Direitos Humanos;
Eslováquia.
– o fracasso da reconversão gradual da produção industrial de bens de equipamento
para bens de consumo, os quais não satisfaziam as necessidades da população.

Cronologia
A eleição para secretário-geral do PCUS de Mikail Gorbatchov (Fig. 1), em 1985, abriu
Lideranças soviéticas a caminho a um movimento de reformas caracterizado por uma certa abertura à privatiza-
partir dos anos 80 ção e ao individualismo com o objetivo de modernizar e reestruturar o Estado soviético
1964-1982 e o comunismo. Este movimento foi significativamente designado por perestroika (ou
Leónidas Brejnev.
reestruturação económica) e glasnost (ou transparência). Se o primeiro trazia consigo
1982-1984
Iuri Andropov. novas propostas para superar o marasmo económico, o segundo significava a abertura
1984-1985 política e o fim da burocratização.
Constantin Chernenko. Perestroika e glasnost foram dois grandes pilares da revolução interna processada na
1985-1991
URSS, desempenhando um papel crucial ao criar um clima favorável para o despertar das
Mikail Gorbatchov.
aspirações democráticas, mais concretamente:

– o abrandamento do controlo dos media permitiu aos cidadãos soviéticos o acesso


à informação interna e externa sobre determinados assuntos até então inacessíveis;
– a atenuação das perseguições à intelligentsia até então amordaçada pela nomenkla-
tura, como o físico Andrei Sakharov (1921-1989), um ilustre físico nuclear e um impor-
tante ativista dos Direitos Humanos, Prémio Nobel da Paz em 1975, que regressa do
exílio em 1986 e Soljenitsine (1918-2008), Prémio Nobel da Literatura em 1970(2);
– a revisão da Constituição, pondo fim ao monopólio do poder pelo PCUS;
Fig. 1. Mikail Gorbatchov
(n. 1931). Secretário-Geral – o combate à corrupção em nome da transparência e o estímulo à participação cívica
do Comité Central do PCUS com a promessa de eleições livres e pluralistas.
de 1985 a 1991 e Presidente
da URSS entre 1990-1991,
fez as reformas que
conduziram ao final da (1)
Por exemplo, o crescimento da produção industrial passou de 7,5% em 1971 para 2,7% em 1982, ao mesmo tempo
Guerra Fria e à dissolução que se agravavam as crises agrícolas e o absentismo laboral atingia os 50%.
da URSS. (2)
Soljenitsine notabilizou-se por ter revelado ao mundo a realidade do sistema soviético em livros como Arquipélago
Gulag e Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch. Galardoado com o Nobel da Literatura em 1970, foi privado da cidadania
russa em 1974 e expulso do país. Viveu depois na Alemanha, Suíça e EUA, até poder regressar à Rússia em 1994, após
a implosão da União Soviética.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 263

Pressionado por uma ativa fação de reformadores, na qual se destacaram Boris Ieltsin
(Fig. 2), Presidente do Soviete Supremo da Federação Russa, e Eduard Chevarnadze,
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Gorbatchov teve de enfrentar a resistência dos seto-
res mais conservadores da sociedade soviética, em particular do aparelho do PCUS.
A sua aura reformista e a abertura demonstrada na política externa (assinatura do Tra-
tado sobre Forças Nucleares de Médio Alcance com os EUA, em 1987, a retirada do Afe-
ganistão, em 1989, Prémio Nobel da Paz em 1990...) tornaram Gorbatchov muito popular
no Ocidente. Curiosamente, no plano interno, começou a ser alvo de críticas oriundas de
vários setores, inclusive dos reformadores que o acusaram de falta de coragem e de deci- Fig. 2. Boris Ieltsin
são para avançar mais profunda e rapidamente no caminho das reformas. Não obstante, (1931-2007). Eleito
a sua ação teve como consequência involuntária estimular os sentimentos nacionalistas presidente do Congresso
dos Deputados da Rússia
em várias repúblicas soviéticas. em 1990, impulsionou a
Perestroika. Em agosto de
As Repúblicas Bálticas – Lituânia, Estónia e Letónia – foram as primeiras a proclama- 1991, opôs-se ao golpe
rem-se independentes de Moscovo (dezembro de 1989) e, depois da tentativa de golpe contra Gorbatchov,
assumiu a missão de
de estado contra Gorbatchov (agosto de 1991) por comunistas reacionários, consumou-se
acabar com o PCUS e
a dissolução da URSS, no momento em que 14 das 15 repúblicas federadas proclamam esteve ligado à formação
a sua independência. da Comunidade de Estados
Independentes (CEI),
Nos finais de 1991, a vertigem das mudanças arrastou consigo o fim do PCUS e a queda processo ligado à queda de
Gorbatchov e à dissolução
de Gorbatchov. Gorbatchov demitiu-se (25 de dezembro) porque, como afirmou, “a via do da União Soviética
desmembramento do país e da separação do Estado ganhou, o que não posso aceitar”. (dezembro de 1991).

B) O colapso do Bloco de Leste

Entre 1989 e 1991, o movimento reformista na URSS converte-se num processo ver-
dadeiramente revolucionário alastrando muito rapidamente a todo o bloco do leste euro-
peu, satélite da URSS:

Em 1989:
– queda do Muro de Berlim (9 de novembro), símbolo da divisão bipolar e da Guerra
Fria (Fig. 3); Fig. 3. Queda do Muro de
Berlim (1989). Este evento
– proclamação da independência (dezembro) das Repúblicas Bálticas (Lituânia, Estó- provocou uma onda de
choque que derrubou os
nia e Letónia);
regimes comunistas nos
– vitória eleitoral do Solidariedade de Lech Valesa na Polónia e a “revolução de outros países do leste
europeu.
veludo” de Vaclav Havel (Fig. 4) na Checoslováquia;

Em 1990:
– proclamação da reunificação alemã;
– derrube dos regimes comunistas na RDA, Hungria e Roménia.

Em 1991:
Fig. 4. Vaclav Havel (1936-2011).
– proclamação da independência da Geórgia, Ucrânia e Bielorrússia e formação da
Escritor e político checo. Em
Comunidade de Estados Independentes (CEI), uma organização supranacional à 1988, criou o Forum Cívico
qual aderiram 11 Repúblicas que pertenciam à União Soviética; e, em dezembro de 1989, foi
eleito Presidente da
– proclamação da independência da Croácia e da Eslovénia; Checoslováquia, depois de
ter participado ativamente
– dissolução do COMECON e do Pacto de Varsóvia. na denominada “Revolução
de Veludo”.
264 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

C) Os problemas da transição para a economia de mercado

O colapso do comunismo soviético e a evolução política verificada nos países da


extinta URSS arrastaram consigo, naturalmente, o fim do modelo de economia centrali-
zada (socialista), fundado na estatização, coletivização e pla-
nificação.

O principal objetivo destes países é a adesão ao capita-


lismo, o que exige:
– a desestatização da economia;
– a dinamização dos mercados, a privatização da proprie-
dade e dos meios de produção.

Na Rússia, nos novos estados da Europa Central, no Báltico e


noutros territórios da ex-URSS (Fig. 5), o desmantelamento do
modelo económico de planificação centralizada que os regeu
durante décadas e a implementação de um outro estruturalmente
diferente, o modelo de economia de mercado, trouxeram sérios
problemas e desafios:
Fig. 5. O fim das
autodenominadas – o fim do pleno emprego, da gratuitidade ou preços subsidiados dos bens e serviços
democracias populares do
leste europeu. sociais básicos (transportes, educação, saúde, cultura) fornecidos pelo Estado;
M. Nouschi, ob. cit., p. 240.
– a ausência ou arcaísmo das infraestruturas de produção e de distribuição e de um
sistema bancário competitivo e aberto às instituições financeiras estrangeiras;
– o enfraquecimento do controlo do Estado e a desregulação social favoreceram a
? Questões acumulação de fortunas fabulosas por uma elite, com ligações privilegiadas às
novas estruturas políticas;
1. Que fatores estiveram na
origem do facto histórico – proliferação da economia paralela e da corrupção (formação de “mercados negros”
documentado na figura?
e de organizações mafiosas), expatriação de capitais e de tecnologias militares de
2. Como evoluiu a situação
política, social e económica ponta;
nestes países?
– o agravamento das clivagens sociais, da pobreza e da indigência, em consequência
da ineficiência e insuficiência produtivas, da liberalização dos preços, do surto infla-
cionista e do desemprego.

Desprovidos dos apoios da URSS e da tutela das organizações que integravam, o


COMECON e o Pacto de Varsóvia, e do poder omnipresente do Estado, os países do leste
europeu entraram num processo de desestruturação política acelerado, de conflitualidade
social e de recessão económica.

As clivagens sociais e a pobreza atingiram níveis alarmantes, logo aproveitados pelos


nostálgicos do comunismo para se manifestarem contra as mudanças e a favor do
regresso ao passado. Mas, como seria de esperar, este quadro não foi vivido da mesma
forma e em igual grau por todos os países.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 265

Desemprego, corrupção e criminalidade fazem ainda parte do dia a dia de grande parte
destes “países em transição”. E, em alguns deles, o nacionalismo descontrolado e a xeno-
fobia, fenómenos controlados no passado, pelo comunismo, agravam ainda mais os pro-
blemas económicos e sociais que os afetam.

Na década de 90, o sentimento de desencanto e frustação de setores alargados da


população teve expressão eleitoral em alguns países, como na Lituânia, Hungria e Poló-
nia, onde os partidos “descendentes” dos antigos comunistas obtiveram êxitos eleitorais.
Noutros países, casos da Moldávia, Azerbeijão, Geórgia e, sobretudo, na ex-Jugoslávia,
ocorreram violentas guerras civis. Na ex-RDA, que recebeu importantes ajudas da RFA
com vista à sua integração na Alemanha reunificada, o processo de transição fez-se de
forma controlada e planeada.

A República Checa, Polónia e Hungria, países que apresentavam à partida um nível


de desenvolvimento económico superior a outros, como a Roménia ou a Bulgária, pude-
ram beneficiar de investimentos externos e de fluxos turísticos importantes, com reflexos
positivos nas taxas de crescimento económico.

Assim, a nova ordem política e económica ainda continua frágil em alguns países que
adotaram o modelo ocidental de economia de mercado, apesar de as reformas conducen-
tes a este novo modelo estarem a ser implementadas, em maior ou menor grau, em
todos os países em transição.

1.2. Os polos do desenvolvimento económico

1.2.1. A hegemonia dos EUA


Com o colapso da URSS e do Bloco de Leste chegou ao fim a Guerra Fria e os EUA
passaram a ser a única verdadeira superpotência global num mundo que, no plano eco-
nómico, foi adquirindo uma configuração tripolar, constituindo as áreas EUA/NAFTA(3),
Japão/APEC(4) e Alemanha/UE os principais polos do desenvolvimento económico.

A) A supremacia económica
* PIB (Produto Interno
A expansão da economia mundial ocorrida no pós-guerra (“os trinta gloriosos anos”) Bruto): soma (em valores
teve como principal motor a força da economia dos EUA. Foi esta força económica, e não monetários) de todos os
bens e serviços finais
apenas a sua vitória militar na Segunda Guerra Mundial, que permitiu aos EUA construir
produzidos num
as estruturas que alicerçaram um período de expansão capitalista sem precedentes, determinado país/região
expresso num conjunto de indicadores que a atestam como a maior economia do mundo: durante um determinado
período (em regra, um
ano), por todas as
– um extenso e rico território com uma área de 9 363 520 km2 (o 4.o maior país do empresas públicas ou
privadas, nacionais ou
mundo) e uma população que ultrapassa os 308 milhões de habitantes (o 3.o mais estrangeiras.
populoso); O PIB é um dos indicadores
mais utilizados na
– mais de 23% da riqueza mundial e o PIB* mais elevado; avaliação da atividade
económica.
(PIB dos EUA em 2007:
(3)
NAFTA (North American Free Trade Agreement), área de comércio livre constituída pelos EUA, Canadá e México 13 776 472 dólares, o mais
(1994). elevado de todos os
(4)
APEC (Asia-Pacific Economic Cooperation), criada em 1989. países).
266 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

– o maior utilizador e exportador de serviços (20% do total mundial), o setor predo-


minante na sua economia, e de produtos alimentares (cerca de 15% do total mun-
dial);
– responsáveis por um quarto da produção industrial mundial;
– o valor do dólar, apesar do seu estatuto como divisa-chave mundial, tem vindo a des-
valorizar desde 1970, de forma irregular e com algumas recuperações temporárias, no
entanto mantém-se como moeda de referência nas relações económicas internacionais.

Documento 1 Entre os anos de 1981 e 1989, sob a administração Reagan, a economia dos EUA cres-
ceu de forma ininterrupta. O Presidente Reagan adotou uma política económica neoliberal
As desigualdades sociais
A fiscalidade (nos EUA) assente essencialmente na redução de impostos e na desregulamentação (liberalização),
aumentou as injustiças alcançando resultados económicos significativos:
relativas ao património
(...). Do mesmo modo, as – duplicação do crescimento da produtividade industrial;
diferenças entre ricos e
pobres aumentaram – redução da inflação e do desemprego;
extraordinariamente à
escala familiar; em 1979,
– incremento do investimento produtivo.
os 5% de famílias mais
ricas ganhava 10 vezes No entanto, o aumento da despesa pública, devido sobretudo ao enorme investi-
mais do que os 20% das
mais pobres. Esta mento no domínio militar, tornou os EUA no maior devedor mundial (de 1982 a 2000, a
proporção aumentou para
dívida externa subiu para mais de 2 biliões de dólares, representando 22,6% do seu PIB),
16 vezes em 1989 e atingiu
as 19 vezes em 1999. financiando o seu crescimento graças ao fluxo de capitais externos.
Alain Gresh et al, “Atlas da
Globalização”, Le Monde
Diplomatique, Lisboa, 2003, No campo social, esta política teve efeitos perversos (Doc. 1):
pp. 100-101.
– a redução das comparticipações sociais do Estado (Estado-providência) deixou os
mais pobres sem proteção social;
? Questão
– a precaridade dos empregos e a contração do nível geral dos salários e a redução
1. Como explica o fenómeno
do imposto sobre os rendimentos (em 1981 baixou 25%) agravaram as diferenças
referido no documento?
sociais já de si muito acentuadas.

A mudança histórica verificada no cenário económico do pós-Guerra Fria – o colapso


da União Soviética e dos regimes comunistas do leste europeu e a abertura das econo-
mias chinesa e indiana – favoreceu o novo surto de crescimento económico norte-ameri-
cano na segunda metade da década de 90, ao disponibilizar vastos recursos de mão de
obra barata duplicando, de acordo com algumas estimativas, a força de trabalho e trans-
formando a estrutura do capitalismo americano, uma transformação que está na origem
da atual crise financeira.

B) A hegemonia científico-tecnológica

A supremacia científica e tecnológica dos EUA, alcançada após a Segunda Guerra Mun-
dial, continua a não ter paralelo em nenhum outro país.

Os EUA são pioneiros em múltiplos campos da ciência e tecnologia, como o da infor-


mação, que lideram, conjuntamente com o Japão. Nas últimas duas décadas, a articulação
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 267

entre as universidades, as empresas e os mercados produziu os revolucionários progres-


sos da Internet, dos telemóveis e dos canais por cabo:

– o computador e a Internet tornaram-se ferramentas indispensáveis ao funciona-


mento do mundo atual, áreas onde a norte-americana Microsoft detém uma posição
dominante;
– o DVD (Digital Video Disc ou Digital Versatile Disc), criado em 1995 por um consór-
cio de empresas norte-americanas e japonesas, expandiu-se de forma exponencial;
– o programa espacial dos EUA adquiriu novo impulso com o voo inaugural do vai-
vém Columbia, em 1981, e do Challenger, em 1983;
– o projeto conjunto da agência espacial norte-americana NASA e da europeia ESA
permitiu lançar no Espaço, em 1990, o telescópio Hubble, que constituiu um grande
progresso para o conhecimento do cosmos.

Após um continuado crescimento do investimento em Investigação e Desenvolvimento


(I&D) nos anos da administração Clinton (1993-2001), atingiu os 2,78% do PIB em 2001.
Os anos subsequentes testemunharam uma queda neste investimento: 2,68% do PIB em
2004. A verdade é que este valor é ainda muito superior ao da grande maioria dos países
e os EUA continuam a arrebatar a maioria dos Prémios Nobel. Em 1970, por exemplo, as
universidades norte-americanas produziam metade de todos os doutoramentos à escala
mundial em engenharia e ciência.

O decréscimo do investimento norte-americano em I&D pode explicar-se pelas seguin-


tes razões:

– com o fim da Guerra Fria, os EUA ficaram sem um competidor direto na corrida às
tecnologias de ponta; foi, aliás, devido à Guerra Fria que instituições científicas
importantes como a NASA surgiram; sem isso, talvez não tivesse havido vontade
política e recursos financeiros para levar o Homem à Lua;
– muitas universidades recebem fundos de companhias privadas, mas cada vez mais
essas companhias tendem a concentrar-se na ciência aplicada com a finalidade do
lucro e não na investigação científica pura;
– a globalização económica estimula a deslocalização das empresas ligadas à inves-
tigação e inovação tecnológicas para países, como a China e a Índia, com baixos
custos de produção e sistemas de educação em evolução.

C) A hegemonia político-militar

A pressão exercida pela administração Reagan sobre a URSS acelerou o seu colapso,
um desfecho que o reformismo de Gorbatchov não foi capaz de travar.
268 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Nos finais dos anos 80, quando George Bush, Vice-Presidente de Reagan, assumiu a pre-
sidência dos EUA, a rutura do bloco comunista, simbolizada na queda do Muro de Berlim
em novembro de 1989 – o símbolo mais evidente da Guerra Fria –, surgiu como irreversível.

A partir de então, o domínio planetário dos EUA tornou-se indiscutível e a ideia de edi-
ficar uma “nova ordem internacional” pós-Guerra Fria, uma verdadeira pax americana,
adquiriu contornos reais com a operação Tempestade no Deserto ou Guerra do Golfo (1991).

A Guerra do Golfo tornou claro quem dominava a ordem internacional e onde estava
a supremacia político-militar: a sofisticada tecnologia militar (Fig. 6) norte-
-americana alcançou uma contundente vitória sobre o exército de Saddam
Hussein, uma vitória que teve efeitos moralizadores para os EUA e cicatri-
zou algumas das feridas ainda vivas da memória da guerra do Vietname.

À URSS, que enfrentava graves problemas internos e se debatia com o


fracasso no Afeganistão (1989), não restou outra solução senão observar de
fora o triunfo político e militar norte-americano. Paradoxalmente, Moscovo
enviou dois navios de guerra para o Golfo, mas não como força dissuasora
Fig. 6. Míssil de longo mas como aliada de Washington, integrada na coligação internacional que respondeu ao
alcance Tomahawk. Apesar apelo do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
do fim da Guerra Fria,
verificou-se nos EUA um
aumento das despesas Sob a administração Clinton (1993-2001), pese embora esta ter seguido um novo estilo
militares desde 1999, e
de política externa baseada numa maior abertura à cooperação internacional e numa visão
ainda mais acentuado após
o 11 de setembro de 2001. mais progressista dos grandes problemas do planeta, os EUA continuaram a fazer demons-
Continua assim a alargar-se
trações da sua liderança nas relações internacionais, de que são exemplos concretos:
o fosso quantitativo e
tecnológico que separa
Washington do resto do
– o papel de mediação desempenhado pelos EUA na Europa, principalmente na
mundo no domínio militar.
Guerra da Bósnia (1992-1995) que foi desencadeada na sequência da proclamação
de independência da Bósnia e que opôs bósnios muçulmanos, croata-bósnios e sér-
vio-bósnios num sangrento conflito e que terminou com os Acordos de Dayton
(1995) patrocinados por Clinton;
– a guerra contra a Sérvia (1999), executada sob a égide da OTAN, para a obrigar a
abandonar o Kosovo;
– em 1993, uma intervenção de natureza político-diplomática idêntica no conflito do
Médio Oriente, fez novamente de Washington o anfitrião dos encontros entre Israel
e a Palestina promovidos para concluir a aproximação iniciada na Conferência de
Madrid de 1991 e que tornou possível a assinatura dos primeiros acordos entre
Rabin (Israel) e Arafat (Palestina);
– os bombardeamentos sobre o Afeganistão, o Sudão e especialmente o Iraque leva-
dos a cabo entre as duas guerras do Golfo (1990-1991 e 2003);
– a intervenção fracassada na Somália (1993);
– um conjunto de iniciativas para a paz, como a suspensão unilateral dos ensaios
nucleares norte-americanos, a ratificação da Convenção sobre Armas Químicas e as
Armas Biológicas, a negociação de um Memorando com a Rússia sobre o Controlo
de Tecnologia de Mísseis, o acordo com os presidentes da Rússia e da Ucrânia,
Ieltsin e Kravchuk para a desnuclearização deste país, etc.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 269

Os ataques terroristas contra os EUA a 11 de setembro de 2001 (Fig. 7) se, por um lado,
puseram bruscamente fim às esperanças de que uma ordem de paz e de
justiça poderia estar ao alcance dos homens, por outro geraram uma vaga
internacional de solidariedade jamais vista para com os norte-americanos.

No entanto, este capital de solidariedade seria desbaratado pelas


opções belicistas da política externa de George W. Bush, em particular a
guerra desencadeada contra o Iraque (2003) sem mandado da ONU e a
intervenção militar e ocupação do Afeganistão por forças da OTAN sob a
liderança norte-americana. Ao mesmo tempo, Bin Laden e a ameaça do ter-
rorismo global deram aos EUA razões para o reforço do investimento no
desenvolvimento do maior arsenal de alta tecnologia militar mundial(5) e,
eventualmente, para novas demonstrações de hegemonia político-militar.
Fig. 7. Ataque às ”Torres
Gémeas” de Nova Iorque,
1.2.2. A consolidação da União Europeia 11 de setembro de 2001.

A realização do projeto da criação da União Europeia foi evoluindo desde os tratados


iniciais através de um processo de integração progressiva em duas vertentes fundamen-
tais: o alargamento e o aprofundamento.

A) Alargamento
Cronologia
Depois da instituição da Europa dos Seis em 1957, o alargamento a Norte – Reino
Os alargamentos da UE
Unido, Irlanda e Dinamarca – criou a Europa dos Nove em 1973.
1973
Em 1981 e 1986, o alargamento ao Sul mediterrânico (a Grécia, em 1981, e Portugal e 1.o alargamento – Europa
dos Nove.
Espanha, em 1986) constituiu a Europa dos Doze. Em 1995, com a adesão da Áustria,
1981
Suécia e Finlândia, formou-se a Europa dos Quinze. 2.o alargamento –Europa
dos Dez.
A partir de 2004, com a entrada de um grupo de oito Países da Europa Central e 1986
Oriental (PECO) – Países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), Eslováquia, República 3.o alargamento – adesão
de Portugal e Espanha –
Checa, Hungria e Polónia – e dois países mediterrânicos, Malta e Chipre, a União Europeia
Europa dos Doze.
passou a contar 25 países, aos quais se juntaram, em 2007, a Bulgária e a Roménia e em 1995
2013, a Croácia, elevando para 28 o número de estados-membros da União. 4.o alargamento - Europa
dos Quinze.
Entretanto, outros países – Islândia, Macedónia, Montenegro, Sérvia, Turquia – estão 2004
a caminho da adesão à UE. 5.o alargamento - Europa
dos Vinte e Cinco.
2007
Apesar dos problemas e desafios que se colocam ao conjunto dos estados-membros, 6.o alargamento - Europa
dos Vinte e Sete.
o alargamento teve efeitos positivos:
2013
– pôs fim à divisão da Europa; as divisões políticas entre a Europa Ocidental e a Adesão da Croácia - Europa
dos Vinte e Oito.
Europa Oriental são finalmente ultrapassadas quando dez novos países aderem à
União Europeia em 2004;
– ajudou a consolidar a democracia nos países aderentes;

(5)
Integram este arsenal as sofisticadíssimas bomba T (parede de fogo), a bomba E (capaz de derreter circuitos elé-
tricos), as bombas Daisy Cutter, os mísseis Tomahawk, o avião AC-130, etc. Não obstante o cenário internacional tra-
çado, a eleição de Barack Obama (2008) poderá, pelas expetativas positivas criadas em todo o mundo, modificar-se
substancialmente.
270 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

– proporcionou vantagens económicas a toda a União Europeia e a todos os seus


membros, designadamente:
• o aumento do rendimento médio por habitante;
Cronologia • a diminuição do desemprego nos novos estados-membros (apesar dos receios,

O aprofundamento da desde 2004, apenas três milhões e 600 mil trabalhadores do leste imigraram para
integração europeia os antigos Quinze, ou seja um por cento da população ativa, muitos dos quais,
1974 com a mais recente crise financeira, devem mesmo regressar aos países de ori-
Criação do FEDER (Fundo
Europeu de gem);
Desenvolvimento
• as regiões mais pobres da União beneficiam dos fundos estruturais(6) e de coesão
Regional).
1979 e de empréstimos do Banco Europeu de Investimento.
Eleição para o PE por
sufrágio universal direto.
1985 Em suma, é consensual a convicção de que uma Europa alargada (e coesa) está mais
Acordos de Schengen. bem preparada para fazer face às crises.
1986
Ato Único Europeu.
1987 B) Aprofundamento
Programa Erasmus.
1990 Em paralelo com o progressivo alargamento da União Europeia, desenvolveu-se o pro-
Criação da União cesso de aprofundamento da integração:
Económica e Monetária
(UEM).
1992 Anos 70
Tratado da UE (Maastricht).
1993 Num cenário internacional de graves dificuldades económicas (crise do dólar, crise
Criação do Mercado Único. do petróleo), que chegaram a pôr em causa a solidariedade comunitária (veja-se a pre-
1997
tensão do Reino Unido de renegociar as condições de adesão com ameaça de retirada),
Tratado de Amesterdão.
2000 a Comunidade resiste, estimulada pela chegada ao poder de dois políticos para quem
Tratado de Nice – Carta os graves problemas económicos não poderiam ser resolvidos num quadro estritamente
dos Direitos Fundamentais
da UE. nacional, o Chanceler Helmut Schmidt (Alemanha) e o Presidente Giscard d´Estaing
2002 (França).
Entrada em circulação das
notas e moedas em euros. No final da década, em 1979, entrou em vigor o Sistema Monetário Europeu (SME),
2003 com o objetivo de estabilizar as taxas de câmbio entre as moedas europeias e foi insti-
Projeto do Tratado que
estabelece uma
tuída uma divisa (unidade monetária) de referência europeia, o ECU (European Currency
Constituição para a Europa Unit), em substituição da UCE (Unidade de Conta Europeia). Ainda nesse ano, os depu-
(não ratificado).
tados do Parlamento Europeu (PE) foram pela primeira vez eleitos por sufrágio universal
2007
Tratado de Lisboa. direto, respondendo, desta forma, aos que criticavam a então CEE de défice democrático.

Anos 80

A publicação do Livro Branco (1985) mostrou a vontade da Comunidade de concluir o


Mercado Interno. O conjunto de cerca de 300 medidas propostas para serem implemen-
tadas até 1992 visava a abolição das fronteiras físicas (formalidades e controlos nas fron-
Fig. 8. A bandeira da UE,
teiras), técnicas (embalagens, certificações...) e fiscais (impostos) ainda existentes, cuja
símbolo de soberania,
adotada em 1986, mostra a remoção era essencial para a realização de um verdadeiro mercado interno (Fig. 8).
vontade dos estados-
-membros em caminhar
também no sentido da (6)
Em 1974 foi criado o Fundo Europeu de Desenvolvimento Económico e Regional (FEDER) para apoiar a reconversão
integração política. e modernização das zonas mais desfavorecidas.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 271

Depois do “europessimismo” da década de 70 e da consequente desaceleração, o


processo de integração europeia recebeu do Ato Único Europeu (AUE)(7), em 1986, um
novo e importante impulso:

– definiu como o objetivo a realização, até ao final de 1992, do Mercado Interno * Acordos de Schengen:
designação dada aos
entendido como um espaço sem fronteiras internas;
acordos subscritos por um
– simplificou o processo de tomada de decisões numa série de questões como a har- conjunto de estados-
-membros da UE com o
monização das legislações nacionais, essenciais para a realização do mercado único; objetivo de realizar a livre
– reforçou a convergência das políticas económicas e monetárias, tendo em vista a circulação de pessoas,
independentemente da sua
criação da UEM. nacionalidade, no território
desses estados, através da
abolição dos controlos nas
Ainda nesta década, foram lançados programas de educação, formação, emprego e cul- respetivas fronteiras
internas (terrestres,
tura para os jovens (1987): Erasmus (educação e mobilidade); Comett (cooperação esco- aéreas e marítimas).
las-empresas); Petra (formação profissional); em 1989, o Conselho Europeu, em Estras- * Princípio da
burgo, aprovou a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores. subsidiariedade: nos
domínios que não sejam
das suas atribuições
Anos 90 exclusivas, a Comunidade
intervém apenas, de
Os Acordos de Schengen* (1985), relativos à liberdade de circulação dos cidadãos, e, acordo com este princípio,
“se e na medida em que os
sobretudo, a assinatura do Tratado da União Europeia (TUE) na cidade holandesa de objetivos de uma ação não
Maastricht (1992) deram um forte impulso ao aprofundamento da integração europeia: possam ser
suficientemente realizados
pelos estados-membros e
– foram calendarizadas e definidas as condições para a entrada em vigor da 3.a e possam, pois, devido à
última fase da UEM (instituição da moeda única e de um Banco Central Europeu dimensão ou aos efeitos
da ação prevista, ser
independente); melhor alcançados ao nível
– a ação comunitária foi alargada a novos campos (política industrial, redes transeuro- comunitário” (art.o 3B,
Tratado da União
peias, proteção aos consumidores, educação, formação profissional, saúde e cultura) Europeia). Este princípio
e foi estendida a cooperação às matérias de justiça e assuntos internos (política de insere-se dentro da lógica
do reforço da eficácia e da
asilo, abertura das fronteiras externas, política de emigração, cooperação policial, etc.); democraticidade das ações
– foi reforçada a legitimidade democrática (extensão do papel legislativo do PE, con- comunitárias.

sagração do princípio da subsidiariedade*, definição da cidadania europeia*); * Cidadania europeia: criada


pelo Tratado da UE,
– foi decidida a adoção de uma Política Externa e de Segurança Comuns (PESC) reconhece aos cidadãos
incluindo, a prazo, uma política de defesa comum; dos países da UE
residentes num outro
– foi adotada a nova denominação de União Europeia (UE). Estado-membro um
conjunto de direitos:
– direito de circulação e
permanência;
A UE passou, pois, a dispor de dois novos pilares que se vieram adicionar à Comuni-
– direito de voto e
dade Europeia (com competências alargadas, mas devendo conciliar as exigências de efi- elegibilidade nas eleições
cácia com os princípios da subsidiariedade e da solidariedade): a PESC (Política Externa autárquicas e europeias;
– direito de petição perante
e de Segurança Comum) e a Justiça e Assuntos Internos. A coerência global da ação pas-
o PE.
sou a ser assegurada por um corpo de instituições comum, constituído pelo Conselho,
Comissão, Parlamento e Tribunais, cabendo ao Conselho Europeu a orientação das polí-
ticas globais.

(7)
É chamado Único porque no mesmo Ato se procedeu à revisão dos Tratados da CEE, da CECA e da CEEA (ou Euratom).
272 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

O Tratado de Amesterdão (1997), que teve como objetivo modificar certas disposições
e atos dos tratados constitutivos das Comunidades Europeias (Paris e Roma) e do Tra-
tado da União Europeia, adotou medidas nos domínios da cidadania e do ambiente para
fomentar a intervenção comunitária na luta contra o desemprego, o respeito pelo meio
ambiente e a proteção dos consumidores.

Anos 2000

– O Tratado de Nice (2001), cujo objetivo era proceder à reforma das instituições para
melhorar a eficácia do funcionamento da UE com 25 países;

– Entrada em circulação das moedas e notas em euros (2002) em doze dos estados-
-membros (e em mais 4 até 2009);

– Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (2004) – foi assinado mas
não chegou a ser ratificado;

– Assinatura do Tratado de Lisboa (2007) que alterou, sem os substituir, os tratados


da União Europeia e da Comunidade Europeia em vigor e cujos grandes objetivos
eram:

a) criar uma Europa mais democrática e transparente pelo reforço dos poderes do
Parlamento Europeu (recurso mais frequente à codecisão no processo de decisão
política, colocando o Parlamento Europeu em pé de igualdade com o Conselho e
à aplicação do princípio da subsidiariedade); pela introdução de uma relação direta
entre a eleição do Presidente da Comissão e os resultados das eleições europeias;
* Iniciativa da cidadania: introdução da iniciativa da cidadania*;
possibilita a participação
direta de um milhão de b) aumentar a eficácia do funcionamento da UE (definição de um quadro institucional
cidadãos da UE na mais estável e simplificado, com regras de votação e métodos de trabalho mais
definição de políticas desta,
permitindo-lhes convidar ajustados a uma União então com 27 estados-membros);
a Comissão Europeia a
apresentar uma proposta
c) preservar uma Europa de direitos e valores (consagra os direitos civis, políticos,
legislativa. económicos e sociais; garante as liberdades e os princípios estabelecidos na Carta
dos Direitos Fundamentais;
d) reforçar a capacidade da UE para enfrentar desafios globais (as alterações climáticas,
a segurança e o desenvolvimento sustentável, através do aprofundamento dos
mecanismos de solidariedade e cooperação entre os estados-membros).

C) A estrutura institucional da UE

A União Europeia, uma criação em contínua construção, escapa a todas as classifica-


ções tradicionais. É uma organização singular e as suas instituições não o são menos. De
facto, tanto a estrutura institucional comunitária como o seu processo de decisão com-
binam simultaneamente elementos supranacionais e intergovernamentais.

Assim, conforme a perspetiva de análise, uns relevam a sua tendência federal, outros,
pelo contrário, a sua natureza confederal, enquanto, na realidade, essas duas facetas
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 273

coexistem, quando não se confundem, tanto nas suas instituições como no seu processo
de decisão.

Não obstante as modificações introduzidas ao longo dos tempos na sua estrutura,


esta é fundamentalmente idêntica à criada pelos seus tratados institutivos. Assim, a
Comunidade continua a assentar nas suas quatro instituições essenciais originárias: a
Comissão Europeia, o Conselho de Ministros, o Parlamento Europeu (PE) e o Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias (TJCE).

As outras são: o Conselho Europeu, o Comité Económico e Social (CES), o Banco Euro-
peu de Investimentos (BEI) e o Tribunal de Contas.

O poder ativo está sobretudo confiado a duas delas: uma comunitária, a Comissão, e
a outra, intergovernamental, o Conselho de Ministros. Por regra, a Comissão propõe e o
Conselho decide (órgãos de direção). Mas estas atividades são exercidas em consulta,
sob o controlo democrático do Parlamento Europeu e sob o controlo jurídico do Tribunal
de Justiça (órgãos de controlo).

É este conjunto institucional – ainda em evolução – que constitui o embrião e a base


de sustentação do poder comunitário.

D) A UE e as dificuldades na constituição de uma Europa política

É inegável que mais de meio século de integração económica abriu a via de integração
política. A partilha de recursos, a gestão aduaneira, as instituições e as políticas comuns,
o alcance das decisões económicas tanto no âmbito interno como externo, não poderiam
deixar de conferir uma dimensão política à União Europeia.

Sem desembocar automaticamente na união política, estes fatores foram construindo


progressivamente os seus alicerces, ao mesmo tempo que criavam hábitos de vivência
comum. O Mercado Interno, consagrado pelo Ato Único, acabou por receber o seu com-
plemento natural, a União Económica e Monetária.

Do mesmo modo, a instauração de um espaço sem fronteiras criou a necessidade de


cooperação dos estados-membros em novos domínios de natureza marcadamente política,
como o da Justiça e dos Assuntos Internos e o da Política Externa e de Segurança Comum
(PESC), para fazer face a problemas comuns e para os quais se exigem ações comuns.

O Tratado da União Europeia (TUE), ao integrar estes dois novos pilares na organiza-
ção da UE e ao adotar decisões em matérias de integração comunitária tão relevantes,
como as relativas à moeda única e à cidadania europeia, projetou claramente a Comuni-
dade para lá do limiar da integração política.

No Conselho Europeu de Laeken (2001) foi decidido convocar uma Convenção para
delinear um projeto de Constituição para a Europa, procurando-se, desta forma, dar mais
um passo no caminho da coesão política.
274 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

No entanto, continua por alcançar o acordo quanto à configuração política da Europa


no longo prazo:
– para o Reino Unido, é sabido, a Europa deve ser apenas um grande mercado,
enquanto que os outros países querem reservar para si uma margem de ação abso-
luta em matéria de defesa e de política externa;
– a França vê na Europa um multiplicador do seu próprio poder – uma extensão e
uma alavanca para uma potência em declínio –, mas, em qualquer caso, uma Europa
dotada de ação militar e diplomática;
– a Alemanha encara a Europa como uma potência antes de mais civil, mesmo que o
instrumento militar não possa ser desprezado, uma vez que dá aos que o possuem
a faculdade de ter peso negocial internacional.

A Europa é, por enquanto, sobretudo um importante polo económico e uma potência


civil. No Médio Oriente, como na Europa Central, Oriental ou Balcânica, o papel da UE
tem-se caracterizado fundamentalmente pela prestação de ajuda humanitária, financeira
e técnica às novas democracias europeias devastadas pela guerra e pelo domínio comu-
nista. Trata-se de uma ação meritória sem dúvida. Mas, para alguns setores políticos, a
sua eficácia, no longo prazo, exige um poder dissuasor com suficiente credibilidade e
capacidade para fazer respeitar o cumprimento da ordem e das regras do Direito.
Para alguns observadores, esta situação explica a gritante incapacidade demonstrada
pela Europa para resolver o problema da guerra na ex-Jugoslávia, teve de ser Washington
a patrocinar as negociações entre as partes beligerantes e a forjar os acordos de paz
assinados em Dayton em dezembro de 1995 (EUA).
No estado atual da construção europeia, pese embora a “nova arquitetura de segu-
rança europeia” acordada em Maastricht com a inclusão da PESC como um novo pilar da
UE e o reforço do papel da União Europeia Ocidental (UEO), simultaneamente compo-
nente de defesa da UE e pilar europeu da OTAN, a adoção de medidas comuns nestas
matérias pertence ao domínio intergovernamental.
Por outro lado, para além das medidas que vão sendo timidamente implementadas
serem em geral aceites à la carte por um número restrito de países, a criação de um
Estado federal europeu investido de soberania nos domínios da política externa e da
segurança parece estar para além do que a opinião pública, em muitos países, está dis-
posta a aceitar: a resistência dos nacionalismos agressivos, das fronteiras físicas e psi-
cológicas e da herança de uma longa e violenta história de tensões e guerras continuam
ainda presentes na memória dos povos europeus.

1.2.3. A afirmação do espaço económico Ásia-Pacífico

A) Crescimento e integração económica

O fim do conflito Leste-Oeste permitiu à Ásia, mais concretamente ao Sudeste Asiá-


tico, cujo modelo de crescimento económico explorou de forma eficaz as suas potencia-
lidades – importância geostratégica na Guerra Fria, enormes recursos demográficos e tec-
nológicos, políticas económicas agressivas (intervenção seletiva do Estado,
protecionismo ofensivo, promoção das exportações...) – transformar-se numa das áreas
economicamente mais dinâmicas do Planeta.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 275

Nesta região, o movimento de integração económica regional liderado pelo poderoso


Japão avança ainda que de forma quase tácita, sem acordos ou tratados oficiais à ame-
ricana, nem instituições ou organismos à europeia. A maioria dos acordos de cooperação
são tanto de natureza bilateral como multilateral e reportam-se, fundamentalmente, a
permutas de tecnologia e investimentos, à liberalização da produção e à divisão regional
do trabalho.

A partir de 1985, a forte revalorização do iene provocada pela administração Reagan


para combater a concorrência industrial japonesa teve efeitos inesperados:
– a deslocalização para o Sudeste Asiático de empresas japonesas e das suas ativi-
dades de exportação de baixo valor;
– uma divisão de trabalho regional na Ásia Oriental tendo o Japão como centro;
– a aceleração da integração económica regional no bloco Ásia-Pacífico.

Depois da bem sucedida experiência da ASEAN* (Association of Southeast Asian * ASEAN: nasceu com a
Declaração de Bancoque
Nations), fundada em 1967 e com sede em Jacarta (Indonésia), seguiu-se a celebração de
(8 de agosto de 1967),
um acordo, em 1989, entre este bloco do Sudeste Asiático e os EUA, a China, a Austrália, assinada pela Indonésia,
Malásia, Filipinas,
Hong-Kong, o Japão, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia dando origem à poderosa APEC
Singapura e Tailândia,
(Asia and Pacific Economic Cooperation) com objetivos de promoção da cooperação eco- aliados dos EUA no quadro
da Guerra Fria e da guerra
nómica na vasta área transpacífica.
do Vietname (o Brunei,
Posteriormente, em 1992, estes países anunciaram a criação, prevista para entrar em Vietname, Birmânia, Laos e
Cambodja aderiram
funcionamento no ano 2008, de uma alargada Zona de Comércio Livre, a AFTA (Asian Free posteriormente). Trata-se
Trade Association). da maior organização de
cooperação do Sudeste
Asiático e pretende
Como sugestiva e metaforicamente referiu o economista Isamu Miyazaki, a Ásia de constituir-se no motor do
desenvolvimento
hoje lembra a “formação em triângulo de um voo de gansos selvagens”, com o Japão à económico, social e
cabeça do conjunto logo seguido pelos quatro Novos Países Industrializados (NPI) (fre- cultural pela promoção da
assistência em assuntos
quentemente apelidados de “dragões asiáticos”) – Singapura, Taiwan (Formosa), Coreia de interesse comum, pela
do Sul e Hong-Kong –, depois pelos países da ASEAN e, finalmente, a fechar o voo, a defesa da estabilidade
política na região e pelo
China(8), o Vietname, a Coreia do Norte e o Camboja. aprofundamento de
relações com outras
Desta forma, a Ásia está em vias de se constituir num bloco económico regional de
organizações regionais e
mais de 510 milhões de habitantes e de 3700 mil milhões de dólares de PNB* que, ape- internacionais. Esta área
vem sendo considerada
sar das diferenças estruturais e dos níveis desiguais de desenvolvimento económico exis-
pela UE como “um objetivo
tentes, se poderia designar, tendo como imagem o modelo europeu de Mercado Comum, estratégico" para as suas
relações comerciais.
de “fábrica comum” ou “produção comum” cujas características comuns se podem resu-
mir da seguinte forma: * PNB (Produto Nacional
– empenhamento na educação, com relevo para a formação técnica; Bruto): riqueza produzida
pelo conjunto de empresas
– um elevado nível de poupanças; de um determinado
país/região, no interior e
– o apoio (seletivo) Estatal; exterior do seu território,
durante um determinado
– aposta na promoção das exportações de manufaturas. período de tempo
(normalmente, um ano),
traduzida num valor
(8)
O lugar da China nesta metáfora está, hoje, claramente subavaliado, uma vez que se afirma cada vez mais como o monetário.
epicentro da integração económica regional asiática.
276 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Não obstante a sua posição de polo económico muito dinâmico, as economias do


bloco Ásia-Pacífico apresentam algumas vulnerabilidades, que se tornam mais evidentes
em conjunturas de recessão económica internacional:
– a extrema diversidade dos modelos de sociedade desta região (nos domínios polí-
tico, social, cultural e religioso);
– desconfiança mútua e choque de interesses (Japão e China, Coreia do Norte e Coreia
do Sul, Japão-EUA-China, China-Taiwan...) fundado num passado histórico pontuado
por expansionismos imperialistas e guerras;
– acentuadas assimetrias sociais;
– excessiva dependência da procura externa (exportações), em particular dos merca-
dos norte-americano e europeu, e dos fornecimentos de energia (petróleo);
– economias mais competitivas entre si do que complementares, um obstáculo impor-
tante ao aprofundamento dos processos de integração económica.

B) A questão de Timor

Após a “Revolução dos Cravos” (1974), em Portugal, a prioridade concedida aos pro-
cessos de descolonização das colónias portuguesas em África e a ausência de movimen-
tos de libertação deixaram para segundo plano a longínqua Timor-Leste.

Mas os sentimentos independentistas não deixaram de se manifestar, tendo-se for-


mado três partidos com propostas divergentes sobre o futuro de Timor-Leste:
– a UDT (União Democrática Timorense) cujos dirigentes haviam sido membros do par-
tido único português (ANP) do período marcelista, que defendia a união com Por-
tugal, num quadro de reconhecimento da autonomia timorense;
– a APODETI (Associação Popular Democrática Timorense), favorável à integração do
território na vizinha Indonésia;
– a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), defensora da inde-
pendência.

Em novembro de 1975, num contexto de conflitualidade aberta entre os partidos,


a FRETILIN declarou a independência de Timor-Leste. Dias depois, uma coligação de par-
tidos (UDT e APODETI) proclamou a integração do território timorense na Indonésia e, em
dezembro desse mesmo ano, forças invasoras indonésias ocuparam-no. No contexto da
Guerra Fria, Timor-Leste adquirira uma importância geostratégica acrescida para os EUA,
que não objetaram à invasão pelo seu aliado indonésio.

Durante 23 anos, os timorenses lutaram contra o domínio da Indonésia e resistiram


às tentativas de aculturação impostas por Jacarta. As FALINTIL (Forças Armadas de Liber-
tação de Timor-Leste), comandadas por Xanana Gusmão (Fig. 9), refugiaram-se nas mon-
tanhas, base das suas ações de guerrilha.
Fig. 9. Xanana Gusmão,
Durante estes longos anos, os problemas de Timor-Leste foram relegados para a
líder carismático da
resistência timorense. Foi penumbra da agenda política internacional. Foram as impressionantes imagens do mas-
o primeiro Presidente da sacre no cemitério de Santa Cruz, em Díli (12 de novembro de 1991), divulgadas em todo
República de Timor-Leste
(2002-2007) e é o atual o mundo pelas televisões, que trouxeram para a opinião pública internacional a questão
Primeiro-Ministro. de Timor-Leste. A escolha do bispo D. Ximenes Belo e de José Ramos-Horta para Prémio
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 277

Nobel da Paz em 1996, a determinação de Kofi Annan, eleito Secretário-Geral da ONU em Cronologia
1997, bem como as manifestações contra as forças de ocupação e o autêntico genocídio
1975
praticado pelos Indonésios durante a ocupação, reforçaram a visibilidade internacional A FRETILIN declara a
da causa timorense. independência de Timor-
-Leste.
A ONU decidiu então intervir, destacando forças para o território timorense, enquanto A Indonésia invade o
território.
os ministros dos Negócios Estrangeiros da Indonésia (Ali Alatas) e de Portugal (Jaime
1991
Gama) assinaram um acordo que definiu as condições para uma consulta popular sobre Massacre no cemitério de
o futuro do território. Santa Cruz (Díli).
1992
Em 1999, a ONU enviou uma missão de observadores, a UNAMET, para organizar o Captura de Xanana
referendo, realizado em 30 de agosto desse ano. O escrutínio, que teve uma enorme ade- Gusmão.
1996
são popular, deu a vitória aos defensores da independência. No entanto, não trouxe a
Atribuição do Prémio Nobel
paz ao território, uma vez que os militares de Jacarta e as milícias pró-Indonésia provo- da Paz a D. Ximenes Belo e
caram uma situação de caos e de violência extrema. Em consequência, a UNAMET foi a Ramos-Horta.
1999
substituída pela INTERFET, uma força multinacional incumbida da missão de restaurar a Referendo sobre a
ordem e a segurança. A administração do território foi entregue à UNTAET, com funções independência (vitória do
“sim”).
legislativas e executivas no período de transição até à independência (1999-2002).
2001
Em julho de 2000, foi empossado o Governo de transição, composto, entre outros, Xanana Gusmão eleito
Presidente da República
por Xanana Gusmão, João Carrascalão e Sérgio Vieira de Mello, este um diplomata bra- Democrática de Timor-
sileiro em representação das Nações Unidas. As eleições presidenciais de 2001 deram a -Leste.
vitória ao líder carismático da resistência timorense Xanana Gusmão. A 20 de maio de 2002
Reconhecimento formal da
2002, Timor-Leste foi proclamado e reconhecido como um Estado soberano. independência de Timor-
-Leste.
A situação económica de Timor-Leste contrasta duramente com o quadro evolutivo e
dinâmico da generalidade das economias do Sudeste Asiático:

– num território exíguo e onde coexistem mais de trinta línguas e dialetos(9) que difi-
cultam a coesão social, política e cultural, a agricultura de subsistência é a ativi-
dade predominante;
– ausência de infraestruturas materiais (vias e meios de transporte e de comunicação,
empresas, circuitos de distribuição...) e humanas (quadros profissionalmente quali-
ficados, serviços públicos de ensino e assistência...);
– baixa esperança média de vida (57 anos);
– elevado nível de pobreza (em 2007, o PIB foi de 459 dólares per capita, situando-se
no 170.o lugar numa lista de 179 países).

Não obstante o quadro traçado, o Relatório do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD, 2002) deixou uma mensagem de esperança aos timorenses ao
reconhecer que o potencial económico imediato é limitado, mas o potencial humano é
forte. Contudo, este potencial não se poderá materializar sem uma adequada cooperação
internacional, em particular nos domínios prioritários da luta contra a pobreza e pelo
desenvolvimento sustentado.

(9)
A Constituição timorense reconhece o tetum, língua tradicional timorense, e o português como línguas oficiais;
o inglês e o bahasa indonésio como línguas para uso administrativo durante o período de transição.
278 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

1.2.4. Modernização e abertura da China à economia de mercado


Iniciada em 1978 através das reformas económicas e políticas de Deng Xiaoping (Fig. 10),
sucessor de Mao Tsé-Tung (1893-1976), e consolidada em 1982, a rutura com o maoísmo
transformou profundamente a economia e a sociedade.

As reformas adotadas para a modernização da agricultura, indústria, ciência e técnica


e defesa resultaram num vertiginoso crescimento da economia (Fig. 11) chinesa, assente
nas seguintes estratégias:

a) modernização industrial com base nas exportações, seguindo de perto os modelos


capitalistas do Japão e da Coreia do Sul;
Fig. 10. Deng Xiaoping,
liderou a China de 1976 a b) uma nova política externa, traduzida:
1997; as suas reformas
fundadas no princípio “um – na rutura com o maoísmo e com o seu modelo de desenvolvimento autárcico;
país, dois sistemas”,
tornaram o seu país numa – na sua integração em organismos internacionais;
potência económica – na criação das Zonas Económicas Especiais (ZEE), áreas dotadas de um estatuto
mundial.
especial, localizadas na zona litoral e que funcionam como:
• portas de entrada de matérias-primas e de tecnologia e de saída dos pro-
dutos transformados;
• espaços privilegiados para o investimento estrangeiro(10) (construção,
turismo e jogo e nas indústrias de exportação de trabalho intensivo, como
brinquedos, produtos eletrónicos e têxteis);
• laboratórios de análise do princípio um país, dois sistemas (fundado na
premissa de uma China reunificada onde o socialismo aplicado na China
continental e o capitalismo aplicado em Taiwan coexistem);
• locomotivas do crescimento económico chinês.

Nos anos 90, paradoxalmente, depois da repressão do movimento democrá-


tico e social da Praça Tiananmen (Paz Celestial), em 1989, esta evolução conhe-
ceu uma significativa aceleração no sentido de uma economia de mercado em
moldes capitalistas.
Fig. 11. A evolução das
A integração de Hong-Kong (1997) e de Macau (1999), mantendo o sistema económico
relações económicas da
China com o exterior. que vigorava nesses territórios e concedendo-lhes uma autonomia relativa, garantiu à
Alain Gresh, et al., China a entrada de capitais estrangeiros num volume sem precedentes na história do país
ob. cit., p. 156.
e do continente asiático, atraídos pela mão de obra numerosa e barata e por um enorme
potencial de mercado consumidor de bens e serviços.

Mantendo-se essencialmente rural, o interior do país – também ele objeto de refor-


? Questões
mas de natureza capitalista, de que resultou um aumento substancial da produção e da
1. Como evoluiu a produtividade agrícolas – desempenha um papel importante de mercado abastecedor de
balança comercial e os
matérias-primas à indústria transformadora, pese embora os rendimentos muito inferio-
investimentos estrangeiros
na China? res aos das zonas urbanas do litoral e o êxodo em massa das populações camponesas.
2. Como explica a evolução
documentada?

(10)
Em meados da década de 1990, a China tornou-se o principal destino dos investimentos diretos estrangeiros (IDE)
nos países de economias emergentes.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 279

No plano das relações económicas internacionais, a China apresenta uma outra evo- Cronologia
lução que importa assinalar:
Modernização e abertura da
China
– a sua integração nas estruturas reguladoras da economa mundial: no FMI (Fundo
1976
Monetário Internacional) e no Banco Mundial (1980) e na OMC (Organização Mundial Morte de Mao Tsé-Tung.
do Comércio), em 2001, após 15 anos de negociações. 1977
Primavera de Pequim.
1978
No plano político, o Estado comunista chinês resistiu à desagregação da ex-URSS e Reformas económicas e
políticas (Deng Xiaoping).
do Bloco de Leste. Os dirigentes comunistas chineses mantiveram a China politicamente
1980
fechada e governam o país com base na ditadura do partido único. Uma questão que Criação de Zonas
Económicas Especiais (ZEE).
surge com frequência no debate político e nos círculos académicos ocidentais é saber até
1989
quando a China se manterá politicamente fechada e resistirá às pressões externas e inter- Protesto na Praça
nas para realizar reformas políticas liberalizantes e democráticas. Tianamen.
1997
Hong Kong é integrada na
Mas se o sentido da evolução política interna da China suscita interrogações, o mesmo China.
já não se aplica ao domínio económico onde está praticamente generalizada entre os 1999
Transferência da soberania
especialistas a convicção de que, por volta do ano de 2030, a China transformar-se-á na de Macau.
maior economia do mundo. 2001
Adesão à OMC.
2008
Jogos Olímpicos de Verão.

1.3. Permanência de focos de tensão em regiões periféricas

1.3.1 A degradação das condições de existência na África Subsariana

Apesar dos seus enormes recursos naturais e da grande juventude dos seus habitan-
tes, a África Subsariana (território a sul do Deserto do Sara) é, porventura, a zona mais
torturada do planeta. Chega mesmo a parecer que se instalou nesta parte do continente
uma espécie de fatalismo quando deixou de ser uma área prioritária para o investimento
por parte de países industrializados que eram os seus antigos colonizadores e por parte
das superpotências (EUA e URSS), apostadas durante o período da Guerra Fria em alargar
as respetivas áreas de influência.

Uma boa parte dos problemas africanos tem profundas raízes históricas na ocupação
colonial, concretamente:

– as reivindicações territoriais que estão na origem de vários conflitos entre países


africanos e que têm origem na arbitrariedade do traçado das fronteiras definido na
longínqua Conferência de Berlim (1884-1885) e que juntou etnias diferentes num
mesmo Estado e dividiu outras etnias por vários estados, tendo estas fronteiras sido
preservadas após os processos de descolonização;

– o esgotamento dos solos, responsável, entre outros fatores, pela baixa produtivi-
dade agrícola, decorre da prática secular de uma agricultura extensiva de culturas
para exportação;
280 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

– a escassez de infraestruturas físicas e humanas tem também uma relação estreita


com a subordinação das colónias aos interesses das respetivas metrópoles, uma
situação agravada pela guerras que acompanharam ou se seguiram aos processos
de descolonização.

Mas, uma outra parte dos problemas deve ser imputada aos próprios países, em par-
ticular às suas elites dirigentes:

– a adoção de políticas económicas e de modelos de desenvolvimento inadequados


às necessidades e interesses das populações, que agravam as já muito elevadas
dívidas públicas e a excessiva dependência externa;

– o parasitismo e a corrupção que põem em causa a legitimidade dos governos e a


eficácia das ajudas internacionais públicas (Estados, agências especializadas da
ONU) e privadas (ONG – Organizações Não-Governamentais);

– a instabilidade política e social (golpes de estado, regimes ditatoriais, guerras civis,


tensões étnicas e massacres).

Se juntarmos a estas razões:

– a queda dos preços das matérias-primas nos mercados internacionais e que era a
grande fonte de receita destes países;

– o forte crescimento demográfico, a subnutrição crónica, a fome e outros flagelos


(SIDA, cólera, varíola...), compreender-se-á facilmente o porquê de esta zona do
continente africano se situar nas estatísticas das organizações internacionais nos
lugares inferiores das tabelas de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e do PIB
per capita e nos lugares de topo dos indicadores sobre os refugiados, a mortalidade
infantil, o analfabetismo, enfim a pobreza.
* Tribalismo: sistema de
organização social fundado
num forte sentimento de O aprofundamento da integração económica regional, uma opção que vem sendo
pertença a um
determinando grupo étnico seguida em todos os continentes, poderá ser um caminho para a minimização ou supe-
(neste caso designado ração de alguns dos problemas decorrentes das situações já descritas, em particular dos
como tribo), potenciador de
conflito intertribal. A África flagelos da guerra, do tribalismo* e da pobreza, e para a (re)integração das economias
pré-colonial desconhecia da África Subsariana no contexto da economia mundial.
os conceitos europeus de
Estado e de Nação; a Na realidade subsistem no continente africano diversas tentativas e realizações de inte-
organização tribal era a gração económica, ainda que na sua maioria não tenham produzido em termos de desen-
estrutura mais enraizada,
um espaço de identidade e volvimento económico os resultados esperados. Não obstante, têm contribuído para a
solidariedade, de tradições resolução de problemas como o Apartheid e a contenção de conflitos.
e vivências comuns,
fechado ao estranho Na região austral, onde a África do Sul, agora democratizada, poderá desempenhar o
(estrangeiro).
Trata-se como se importante papel de locomotiva do desenvolvimento, foi criada em 1992 a organização
depreende, de um conceito económica de maior sucesso do Continente, a SADC (Southern Africa Development Coo-
que resulta da perspetiva
europeia de análise das
peration)(11).
organizações sociais
coletivas que não se
inscrevem nos conceitos (11)
A SADC sucedeu à SADCC (Southern Africa Development Coordination Conference) que havia sido criada por iniciativa
europeus de Estado e de dos chamados "países da linha da frente", em 1979, englobando Angola, Botsuana, Lesotho, Malavi, Moçambique,
Nação. Namíbia, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué, sediada em Gaborone (Botsuana).
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 281

1.3.2. A América Latina Cronologia

A) Descolagem contida e endividamento externo 1979


Guerra civil na Nicarágua:
vitória dos sandinistas
A América Latina constitui outro espaço periférico onde persistem problemas de dife- (esquerda) e derrube do
rente natureza que constituem importantes obstáculos ao desenvolvimento: ditador Somoza.
1983
– económicos: hiperinflação e sobreendividamento; Restabelecimento da
democracia na Argentina.
– demográficos: taxas de crescimento populacional e urbano exponenciais. Golpe em Granada: invasão
norte-americana.
– sociopolíticos: elevados índices de miséria, fome, analfabetismo, desemprego, vio-
1985
lência e instabilidade política e, em alguns deles, mais concretamente na Colómbia, Fim da ditadura militar no
Brasil.
o narcotráfico.
1989
Invasão norte-americana
do Panamá.
Na perspetiva de muitos analistas, o principal responsável por estes problemas é o
1990
sobreendividamento público externo e interno. Alternando ciclos de oferta e escassez de Violeta Chamorro derrota
os sandinistas na
capitais externos, e de reciclagem da dívida pública, o processo de endividamento é o
Nicarágua.
pano de fundo dos principais problemas da América Latina, durante vários séculos tam- Fim da ditadura do general
Pinochet (Chile).
bém sob domínio colonial europeu.
Queda do presidente Jean-
-Bertrand Aristide, no Haiti:
ditadura militar.
Nas décadas de 60 e 70, os países latino-americanos procuraram reduzir a dependência
económica do exterior e promover a descolagem industrial através da opção pelo modelo
de industrialização por substituição de importações*, com o objetivo de estimular a produ- * Substituição de
importações: consiste em
ção interna e restringir as importações. produzir internamente os
produtos importados
recorrendo ao
No entanto, esta opção não se traduziu globalmente numa efetiva diminuição do grau protecionismo (taxas
de dependência externa, uma vez que este esforço fez-se à custa de empréstimos no alfandegárias, quotas de
importação,
estrangeiro fazendo disparar a dívida pública. desvalorizações
monetárias, concessão de
subsídios e isenções
Nos anos 80, a diminuição das exportações e dos preços das matérias-primas no mer- fiscais aos produtores
nacionais...).
cado internacional e a subida das taxas de juro agravaram a situação de dependência
externa, tendo alguns países, como o México (1982), declarado a sua insolvência (falência)
e outros viram-se obrigados a solicitar a renegociação das dívidas aos estados e orga-
nismos internacionais (ex.: credores FMI).

No anos 90, o volume do endividamento continuou a crescer de forma assustadora.


A injustiça social e ambiental, a concentração da riqueza e o desemprego acentuaram-se,
como subprodutos das reformas de cunho neoliberal: a redução do papel social do
Estado, as privatizações e a liberalização comercial e financeira.

O modelo agro-mínero-exportador – para os países obterem as divisas necessárias


para o pagamento da dívida externa – impediu as necessárias reformas estruturais, em
particular no setor agrícola, enquanto o parque produtivo foi sendo privatizado e a força
e autoridade dos Estados cada vez mais posta em causa pelas forças da oposição.
282 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Entretanto, em consequência de um clima de maior liberdade política e abertura econó-


mica (emergência das democracias e abandono das políticas de industrialização por substi-
tuição de importações), a integração económica regional conheceu novos desenvolvimentos:
– em 1991, pelo Tratado de Assunção, foi criado o Mercosul(12) (Mercado Comum do
Sul), entre o Paraguai (país-sede), Brasil, Argentina e Uruguai (uma integração regio-
nal ainda incompleta pela não inclusão da Bolívia e do Chile);
– nesse mesmo ano, estabeleceu-se o Pacto Andino (ou Acordo de Cartagena), com
sede em Lima, englobando o Peru, a Bolívia, a Colômbia, Equador e Venezuela.

B) Evolução política – ditaduras e movimentos de guerrilha

Os séculos de colonização europeia, a pressão norte-americana numa zona conside-


rada de interesse estratégico essencial e os problemas associados à pobreza e ao sub-
desenvolvimento explicam a instabilidade política endémica na América Latina e o seu
longo (e dramático) historial de convulsões políticas (golpes de estado, regimes ditato-
riais, guerrilhas, ...).
Nos anos 60 e primeira metade da década de 70, proliferaram os regimes ditatoriais
fundados na defesa contra a “ameaça” da revolução cubana (1959), no apoio, tácito ou
expresso, norte-americano e no populismo das promessas de “ordem” e “prosperidade”:
– no Brasil, em 1964, um golpe de Estado impôs uma ditadura militar que se apre-
sentou como um movimento restaurador da economia, abalada pelas constantes
greves, e favorável à definição de um padrão de desenvolvimento baseado na livre
empresa e associado ao capital estrangeiro;
Fig. 12. Augusto Pinochet – no Chile, em 1973, um golpe de Estado derrubou o presidente Salvador Allende,
(1915-2006), general do
democraticamente eleito, e levou ao poder o general Augusto Pinochet (Fig. 12) que
exército, presidente do
Chile através de um golpe instaurou uma violenta ditadura durante 17 anos;
militar (1973) que derrubou
o então presidente eleito, o – na Argentina, o regime de democracia populista e nacionalista de Juan Péron (mor-
socialista Salvador Allende, reu em 1974) e de Estela Martinez (Isabelita Péron) que lhe sucedeu, deu lugar a
sujeitando o Chile a uma
violenta ditadura entre
uma ditadura militar, em 1976;
1973 e 1990. – no Peru, os golpes de estado interromperam vários governos constitucionais e ins-
talaram governos militares ditatoriais, como aconteceu no período de 1968-1980,
quando Juan Velasco depôs o presidente eleito Fernando Belaúnde Terry.

Em meados da década de 70, só a Venezuela, Costa Rica e Colômbia tinham governos


legitimados por consulta eleitoral. A implantação das ditaduras nos países da América Latina
seguiu um processo idêntico em todos eles e que pode ser esquematizado da seguinte
forma:

golpe de Estado militar -> declaração de estado de sítio -> suspensão da Constituição
-> restrição das liberdades -> proibição das atividades políticas e sindicais -> controlo
dos meios de comunicação -> concentração de poderes (ditadura).

(12)
O Mercosul é já chamado o quarto bloco económico mundial, a seguir aos EUA, Japão e U.E. Representa um mercado
de 200 milhões de consumidores e o crescimento económico para os próximos anos está estimado entre os 4 e os
6 % ano.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 283

A partir de meados dos anos 70, o agravamento dos problemas económicos e sociais
e a manifesta incapacidade dos regimes de ditadura militar para os ultrapassar, vão for-
talecer as oposições de esquerda e provocar a sua regressão, uma tendência global que
se acentuou nos anos 90, dentro do novo contexto das relações internacionais do fim da
Guerra Fria:
– no Brasil, iniciou-se uma nova fase de democratização política, pondo fim a duas
décadas de ditadura militar (1964-1985);
– na Nicarágua, em 1979, a guerrilha sandinista derrubou a ditadura de Somoza e o
novo governo, composto por sandinistas e elementos dos setores liberais, adotou
medidas de caráter socialista (nacionalizações nos setores bancário e dos seguros e
controlo estatal das atividades económicas). A reação dos EUA não se fez esperar:
suspendem a ajuda à Nicarágua (1981), financiam os denominados “Contras”, guer-
rilheiros antissandinistas formados por elementos da extinta Guarda Nacional, e ado-
tam sanções económicas contra o país. As eleições de 1984 deram a vitória ao líder
sandinista Daniel Ortega e, em 1988, foi assinada uma trégua entre os contendores.
As eleições de 1990 deram a vitória à lider da oposição Violeta Chamorro;
– na Guatemala, depois da guerra civil entre a extrema-esquerda e os grupos paramili-
tares da extrema-direita, ligados ao poder instituído, e das negociações de paz patro-
cinadas pela ONU, a oposição democrática alcançou a vitória nas eleições de 1995;
– no Chile, em 1989, o general Augusto Pinochet que derrubara o governo de Salvador
Allende, em 1973, foi derrotado num plebiscito e viu-se obrigado a convocar eleições
sob a supervisão da ONU que deram a vitória à oposição democrática, pondo fim a
um período de 17 anos de ditadura marcado pela violência e pelo terror.

1.3.3. O Médio Oriente e os Balcãs


A) Nacionalismos e confrontos políticos e religiosos no Médio Oriente
* Movimento sionista:
O conflito israelo-árabe
movimento político-
-religioso de tipo
O Médio Oriente foi durante o período da Guerra Fria uma das áreas de interesse
nacionalista lançado em
geostratégico mais disputadas pelas superpotências devido, em grande parte, ao facto 1897 em Basileia, na Suíça,
de ser uma das regiões mais ricas do mundo em combustíveis fósseis, por onde passa com o objetivo de
promover o regresso dos
uma via tão estrutural como o Canal do Suez. Hoje continua a ser uma das zonas mais judeus errantes pelo
instáveis do planeta, onde se acumulam tensões e conflitos de natureza étnica, política, mundo a Sião, a terra
social, cultural e religiosa. bíblica de Israel (a “Terra
Prometida” aos judeus por
Na base desta conflitualidade está o conflito israelo-árabe, que tem origem nas ten- Moisés).
Em 1917, a Declaração
sões decorrentes da imigração de judeus para a Palestina e que culminou na criação do Balfour – ministro britânico
Estado de Israel (1948), depois de ter sido votado na ONU, o plano de partição da Pales- dos Assuntos Exteriores –
tina em dois estados (novembro de 1947). subscreveu a exigência de
Theodor Herzl – pai do
A oposição das populações árabes, em geral, e palestinianas, em particular, à insta- sionismo moderno – para
criar um Estado judeu. O
lação dos judeus na Palestina desencadeou ações terroristas e uma sucessão de guerras, holocausto judeu
empreendidas pelas duas partes. (Alemanha nazi) e a
pressão sionista
Os estados árabes vizinhos, que não aceitaram a criação de um Estado judeu tal como pre- internacional aceleraram a
visto no plano de partição, atacaram Israel. Os judeus venceram a guerra (1948-1949). No fim criação do Estado de Israel,
votada nas Nações Unidas
desta 1.a guerra israelo-árabe o Estado de Israel alargou o seu território. 150 000 palesti-
em 29 de novembro de
nianos permaneceram em Israel; os outros refugiaram-se na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. 1947.
284 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Israel ficaria, porém, com dois grandes problemas para o futuro, problemas esses que se man-
têm na atualidade:
– a difícil convivência com os Palestinianos no interior do Estado judaico;
– e a hostilidade dos países árabes vizinhos, especialmente a Síria e o Egito e com o
mundo árabe, em geral.

Em 1964 foi criada a OLP (Organização de Libertação da Palestina), liderada por Yasser
Arafat (1929-2004), com o objetivo de recuperar o território palestiniano ocupado pelo
Estado de Israel e nele estabelecer um Estado independente.
Em 1967, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução n.o 242 que deter-
minou a retirada de Israel dos territórios ocupados na sequência da Guerra dos Seis Dias
(5 a 10 de junho de 1967): Sinai, Cisjordânia, Montes Golã e Jerusalém Oriental.
Em 1974, a OLP foi reconhecida pela ONU como legítima representante do povo pales-
tiniano e atribuiu a Arafat o estatuto de observador na Assembeia Geral da ONU, reco-
nhecendo o direito dos palestianianos à autodeterminação.
Em 1978, nos Acordos de Paz de Camp David (Fig. 13), patrocinados pelo
Presidente Jimmy Carter, foi dado um importante passo no caminho da paci-
ficação na região: o Presidente egípcio Sadat e o Primeiro-Ministro de Israel,
Begin, mostraram ao mundo que era possível um entendimento entre árabes
e judeus. Esta ousadia acabaria por ter custos muito elevados para o Egito,
expulso da Liga Árabe, e para o seu Presidente, acusado de traição pelas
fações radicais à causa palestiniana e posteriormente assassinado (1981).

Fig. 13. Da esquerda para a


Nos anos 80, a tensão agravou-se, com a intervenção de Israel na guerra civil do
direita: Sadat, Carter e
Begin em setembro de Líbano e com o início da Intifada* (1987), uma revolta juvenil que trouxe a causa pales-
1978, na assinatura dos tiniana para a opinião pública internacional.
Acordos de Paz de Camp
David. Em 1993, a diplomacia norte-americana juntou de novo israelitas e palestinianos na
Cimeira de Oslo, cujos Acordos seriam assinados em Washington (depois de negocia-
* Intifada (árabe para dos na Noruega) por Arafat (OLP) e Rabin (Israel): Israel assinou com a OLP uma
revolta): designação dada à “Declaração de Princípios” sobre o início da autonomia nos territórios ocupados. Num
insurreição protagonizada período de cinco anos, deviam ser adotados “medidas de confiança”, entre os quais
por jovens palestinianos
armados com fundas e as primeiras retiradas israelitas dos territórios ocupados. Esta aproximação faria, agora
pedras, usadas nas ruas no lado israelita, mais uma vítima com o assassinato de Rabin (1995) por um judeu da
contra o exército israelita.
extrema-direita. Os acordos seriam suspensos por Benjamin Netanyahu (1996), líder do
A “primeira intifada”
começou em 1987; a Likud, partido da direita nacionalista de Israel. Mas a morte de Rabin não seria em vão,
segunda em 2000. uma vez que foi criada a Autoridade Palestiniana para administrar os territórios pales-
tinianos e acordado um calendário para novas negociações.
Em 2000, o Presidente Clinton juntou à mesa das negociações Arafat e o Primeiro-
-Ministro israelita, Ehud Barak, e de novo em Camp David. Os resultados saldaram-se num
insucesso e a violência reacendeu-se nos territórios ocupados (2.a Intifada).
Em 2005, o Primeiro-Ministro israelita Ariel Sharon tomou a decisão histórica de retirar
dos territórios ocupados na Faixa de Gaza, mas a nova ordem mundial anunciada por
George Bush depois da Guerra do Golfo (1991) continua por cumprir nesta martirizada
região do Médio Oriente, como se pode verificar pela recente invasão israelita do Líbano
(2006), as repetidas intervenções militares israelitas em Gaza e a continuação dos ata-
ques terroristas sobre as populações israelitas.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 285

O fundamentalismo islâmico * Fundamentalismo


religioso: movimento
Os problemas do Médio Oriente não se esgotam no conflito israelo-árabe. Nas duas religioso que preconiza a
obediência rigorosa e
últimas décadas do século XX, o complexo mosaico de clivagens politicas, étnicas e reli- integral dos princípios de
giosas acentuou-se com a emergência dos fundamentalismos religiosos*, quer judaico uma doutrina.
quer islâmico. Costuma ser usado para
classificar uma crença
O fundamentalismo islâmico adquire projeção nas relações internacionais contemporâ- irracional e exagerada,
neas a partir da revolução islâmica xiita no Irão (1979) que depôs o Xá Reza Pahlevi. Uma uma posição dogmática ou
até como sinónimo de
vez instalado no poder, o seu líder ayatollah Khomeini (Fig. 14) utilizou a ideia de “guerra fanatismo.
santa” (jihad) para apelar à mobilização do Islão contra o Ocidente, em particular os EUA
e Israel, que apelidou de satânicos.
Mas o fundamentalismo islâmico não veio exacerbar apenas as relações
com o mundo ocidental e Israel, mas também no seio do próprio Islão entre
as fações sunita e xiita, tal como ficou demonstrado na guerra Irão-Iraque
(1980-1988) desencadeada por Saddam Hussein (maioria sunita) ao invadir o
Irão (maioria xiita).

Em 1990, ocorreu mais uma guerra na região e mais uma vez iniciada por
Saddam Hussein (Iraque) ao invadir outro Estado muçulmano vizinho, o Koweit.
A intervenção das forças de uma coligação multinacional alargada (59 países)
Fig. 14. Khomeini (1902-
originou a denominada Guerra do Golfo, cujo desfecho resultou na derrota das ambições -1989), o líder da revolução
expansionistas de Saddam e na libertação do Koweit. islâmica no Irão que
acabou com o regime do
Em 2003, o pretexto da destruição do arsenal militar de “armas de destruição mas- Xá (apoiado pelos EUA) e
impôs uma teocracia.
siva” supostamente na posse do ditador iraquiano – nunca chegou a ser comprovado – A radicalização do regime
e o direito de retaliação contra o terrorismo islâmico, que mostrara uma capacidade sur- iraniano elevou a tensão
na região do Médio Oriente,
preendente nos ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA, levaram George W. Bush
sobretudo após a eleição
a ordenar, apesar da oposição do Conselho de Segurança da ONU, a invasão do Iraque. do ultraconservador
Mahmoud Ahmadinejad.
Saddam e o seu regime, que a Administração norte-americana acusava de estar por
detrás daquele terrorismo, foram depostos, mas a desejada estabilização do Iraque e da
região, que sofreu danos humanos (1 milhão de iraquianos mortos até
2008) e materiais irreparáveis, continua, na atualidade, ainda longe de
ser uma realidade.

B) A questão dos Balcãs: confrontação política e étnico-religiosa

A região dos Balcãs(13) – área que se estende do Adriático ao Mar


Negro, a sul do Danúbio – foi e ainda é um palco de violentos con-
flitos políticos e étnico-religiosos.

Na República Federativa da Jugoslávia, proclamada no final da


Segunda Guerra Mundial, o Marechal Tito controlou até à sua morte Limite oeste das sociedades marcadas
pela ortodoxia
(maio de 1980), quaisquer aspirações de secessão ou independência
no território sob jurisdição jugoslava apesar do complexo mosaico de:
– pluralidade de nacionalidades (Fig. 15): a ex-Jugoslávia consti-
tuía um Estado Federal composto por seis Repúblicas (Sérvia,
Croácia, Eslovénia, Macedónia, Bósnia-Herzegovina e Montenegro) e duas províncias Fig. 15. A diversidade étnica
e religiosa da ex-Jugoslávia.
autónomas (Vojvodina e Kosovo);
Atlas das Relações
Internacionais, Lisboa,
(13)
O termo “Balcãs” é uma extrapolação feita a partir da montanha Balcã na Bulgária, aplicada depois a toda a península. Plátano Editora, 1999, p. 103.
286 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

– fragmentação étnica: sérvios, croatas, eslovenos, macedónios, montenegrinos e bós-


nios muçulmanos, aos quais se juntam ainda várias minorias (húngaros, ciganos e
turcos);
– diversidade cultural e religiosa: três línguas oficiais (servo-croata, macedónio e eslo-
veno), dois alfabetos (o latino e o cirílico) e três religiões (católica, ortodoxa e
muçulmana).

A morte de Tito, um líder interna e externamente respeitado e que, por isso, consti-
tuíra um fator de contenção das tensões internas, o colapso da URSS e do Bloco de Leste
(1989-1991) e a pressão ocidental a favor de uma “abertura económica” fizeram desagre-
gar todas as solidariedades e despertar as tensões e conflitos nacionalistas:

– a Croácia e a Eslovénia declararam a independência (1991);


– a Bósnia-Herzegovina pretendeu também tornar-se independente, mas as forças sér-
vio-bósnias reagiram recorrendo à guerra, que se generalizou ao território bósnio; as
três comunidades bósnias (muçulmanos, sérvios e croatas) guerrearam-se, entre si,
sendo responsáveis pela expulsão e massacre de populações, pelas quais foram par-
ticularmente responsáveis militares sérvio-bósnios; em 1995, pelos Acordos de Day-
ton (EUA) e após três anos de guerra e sob a proteção da OTAN, a Bósnia-Herzego-
vina conquista finalmente a sua independência;
– a proclamação da independência da Bósnia-Herzegovina, reconhecida pela comuni-
dade internacional, levou as Repúblicas da Sérvia e do Montenegro a formarem
uma nova República Federal da Jugoslávia;
– o Kosovo, com uma população de maioria albanesa (90%), revela-se contra a auto-
ridade sérvia no seu território, tendo a Sérvia executado novos massacres, agora
contra os albaneses do Kosovo, para proteger a minoria sérvia.

Em 1999, face à manifesta incapacidade da UE para resolver o conflito, as forças da


OTAN, compostas maioritariamente por americanos, intervêm na guerra do Kosovo. Depois
dos bombardeamentos da OTAN a Belgrado, os líderes ocidentais e Slobodan Milosevic
chegaram a acordo para colocar fim aos conflitos. As tropas sérvias retiraram-se e foi des-
tacada uma força internacional de paz no Kosovo, que com o apoio dos EUA, França e
Reino Unido e a oposição da China e Rússia no Conselho de Segurança da ONU procla-
mou a sua independência (2008). A proclamação da independência do território Kosovar
relegou para segundo plano um outro acontecimento significativo: o fim da união estatal
entre o Montenegro e a Sérvia, estabelecida em 2003, terminou com o último vestígio
da antiga Jugoslávia.
Unidade 1 - O fim do sistema internacional da Guerra Fria e a persistência da dicotomia norte-sul 287

Em Síntese

• Nos finais da década de 80 e princípios dos anos 90, a história mundial conhece um período
de forte aceleração. O processo de reformas iniciado na URSS por Gorbatchov foi o prenún-
cio de uma série de extraordinários acontecimentos: a queda do muro de Berlim e a reunifi-
cação da Alemanha, a fragmentação dos estados plurinacionais e multiétnicos do bloco comu-
nista – a Jugoslávia e a URSS – e o fim da Guerra Fria, que durante 45 anos manteve o
Mundo sob a ameaça real do holocausto nuclear modificaram de forma substancial o mapa
europeu e a configuração da ordem mundial herdados da Segunda Guerra Mundial.

• No Leste Europeu, apesar das enormes dificuldades e desafios que o processo de transição
económica de um regime baseado na planificação centralizada e nos subsídios para um
novo sistema, baseado no risco, na disciplina financeira e na procura do lucro implica,
alguns destes têm registado êxito na abertura das suas economias e na reorientação das
exportações para os mercados internacionais. As exportações e os serviços têm sido os
motores do crescimento das economias em transição.

• Os EUA, superpotência liderante do bloco ocidental, capitalista, é o grande vencedor da


competição travada durante 45 anos com o campo comunista comandado pela outra
superpotência, a URSS. Sobre os escombros da velha ordem mundial bipolar emerge a
hegemonia norte-americana apoiada numa supremacia militar incontestável e num forte
dinamismo económico, científico e tecnológico.

• O unilateralismo norte-americano, manifestado sobretudo nos primeiros anos deste novo


século, dá sinais de que pode dar progressivamente lugar a um multipolarismo de configu-
ração triádica tendo como polos, os EUA, a UE e o espaço económico da Ásia-Pacífico. A UE
prossegue o reforço da integração na dupla dimensão do alargamento e aprofundamento. No
espaço da Ásia-Pacífico, Timor-Leste conquista a soberania; a China integra Hong-Kong e
Macau, perfilando-se no papel de contraponto à hegemonia dos EUA. A adesão da China à
Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, consolidou a sua integração na economia
mundial; a industrialização assente nas exportações, estabelecida por Deng Xiaoping
transformou a vida económica e social do país.

• Mas, se a ordem mundial do pós-Segunda Guerra Mundial entrou em colapso, a verdade é que
o mundo não se tornou mais pacífico nem mais seguro. Na periferia do desenvolvimento,
a dicotomia entre ricos e pobres agravou-se e persistem focos de tensão e confrontos polí-
ticos e religiosos, particularmente graves na África Subsariana, na América Latina e no Médio
Oriente. Entretanto o terrorismo globalizou-se.

• A implosão da URSS e a independência das repúblicas federadas fizeram ressurgir as querelas


territoriais e estimulou as minorias étnicas a reivindicarem direitos de autonomia, desenca-
deando deste modo diversos conflitos na Europa, particularmente violentos nos Balcãs e
no Leste Europeu, onde o mosaico étnico e religioso gerou tensões, guerras e massacres
sangrentos.
288 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Unidade 2 A viragem para uma outra era


SUMÁRIO
2.1. Mutações sociopolíticas e novo modelo económico
2.2. Dimensões da ciência e da cultura no contexto da globalização

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Analisar elementos definidores do tempo presente – fenómeno da massificação; hegemo-
nia da cultura urbana; triunfo da eletrónica; ideologia dos direitos humanos; consciência
ecológica*.
– Valorizar uma nova cidadania de envolvimento em causas universais de dimensão ética*.

CONCEITOS/NOÇÕES
Interculturalidade; Ambientalismo; Globalização; Neoliberalismo; Biotecnologia; Pós-modernismo

Documento 1

O futuro do Estado-Nação * Conteúdos de aprofundamento


O Estado-Nação e a sua
segurança estão
potencialmente ameaçados
pela nova divisão
internacional da produção
e do trabalho. A lógica do 2.1. Mutações sociopolíticas e novo modelo económico
mercado global não presta
atenção ao local “onde” um
produto é feito (…). 2.1.1. O debate do Estado-Nação
O mundo sem fronteiras
implica uma certa perda do Com o fim da Guerra Fria (1947-1989/1991), período durante o qual dominou nas rela-
controlo nacional sobre a
sua própria moeda e as ções internacionais uma verdadeira cultura de guerra, pensou-se que tinha chegado o
suas políticas fiscais.
tempo de uma Nova Ordem Mundial, fundada nos valores universais da tolerância, da
Uma consequência ainda
mais vasta destas cooperação e da paz.
mudanças globais é que
muitas delas põem em No entanto, e de uma forma algo inesperada irromperam em diversos pontos do
causa a utilidade do
próprio Estado-Nação. (…)
mundo conflitos violentos, pondo em causa as expetativas otimistas então criadas: a
Para certos problemas, é desintegração da URSS, as rebeliões no seio da Federação Russa, a nova crise balcânica,
demasiado grande para
operar eficazmente; para a questão palestiniana, os genocídios em África, etc. Todos estes conflitos têm em
outros, é demasiado comum o facto de os fatores étnicos ou nacionalistas serem determinantes. Esta verifica-
pequena.
Paul Kennedy, Desafios para o
ção relançou o debate em torno do Estado-Nação (Doc. 1).
Século XXI, vol. I, Mem
Martins, Pub. Europa-América,
1993, pp. 154-160. Estado-Nação: o modelo de Estado ideal?

Comecemos por clarificar o conceito dos seus elementos constituintes. Uma noção
? Questões muito antiga e extremamente acessível na sua singular simplicidade, define o Estado

1. Que forças ameaçam, como uma “sociedade politicamente organizada". Esta definição associando sociedade e
segundo o autor, o futuro organização política, ajuda-nos a compreender a noção do senso comum para quem o
do Estado-Nação?
Estado não é mais do que o aparelho burocrático de funcionários cuja cabeça é o
2. Comente a afirmação
destacada no documento. governo, especialmente consagrado à manutenção da ordem e gestão do bem comum.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 289

Juridicamente, surge um novo Estado quando se reúnem os seus três elementos


constitutivos: território, população e um poder político organizado e relativamente estável.
O principal atributo de um Estado é a soberania, que se traduz internamente no exercício
da autoridade suprema (nenhum poder lhe é superior) e na independência e igualdade
de direitos (e obrigações) nas relações com os outros estados (mesmo com os mais
poderosos).

O termo Nação (do latim, natio, da mesma família de nascere, nascer) pode ser defi-
nida como a reunião de homens habitando um mesmo território, submetidos ou não a
um mesmo governo, tendo adquirido ao fim de uma longa vivência em comum uma cons-
ciência identitária.

A expressão Estado-Nação resultou do aparecimento do princípio das nacionalidades,


cuja semente havia sido lançada pela Revolução Francesa e pelo Império Napoleónico: a
cada Nação devia corresponder um Estado.

Nesta perspetiva, o nacionalismo é, essencialmente, um princípio político fundado na


ideia de que a unidade nacional e a unidade política devem corresponder uma à outra.

O sentimento nacionalista inflama-se e transforma-se em movimento quando este


princípio é violado. E pode sê-lo de múltiplas formas:
– quando a fronteira política de um Estado não inclui todos os membros da Nação;
– quando os seus membros se encontram distribuídos por vários estados, de forma
que nenhum deles se possa proclamar como o Estado nacional;
– quando, sobretudo, os detentores do poder político pertencem a uma nação estra-
nha à maioria dos governados.

Deste modo, Nações e Estados não são inseparáveis, podem existir um sem o outro.
É o nacionalismo que, partindo da convicção de que um sem o outro estão incompletos,
constitui a grande força aglutinadora do Estado-Nação.

O Estado-Nação: que futuro?

No pós-Guerra Fria, defendeu-se que a Nova Ordem Internacional fundada em conce-


ções planetárias, universalistas esvaziaria o Estado-Nação do seu conteúdo nacionalista,
torná-lo-ia anacrónico ou ultrapassado.

É verdade que pode perguntar-se se os Estados-Nações edificados sobre bases pro-


* Direito de ingerência:
tecionistas e particularistas, continuam a justificar-se num mundo cada vez mais inte- direito que legitima a
grado à escala planetária e onde outros atores transnacionais (empresas multinacionais, intervenção de forças
externas (da ONU ou uma
migrações, terrorismo, religiões, etc.) suplantam em poder o Estado. Pode ainda convo- grande potência) nos
car-se dois outros argumentos: o afastamento da principal ameaça à estabilidade do sis- assuntos internos de um
Estado, desde que se
tema internacional – o confronto direto Leste/Oeste – e o uso (e abuso?) do direito de considere que os direitos
ingerência* que constitui uma severa restrição a uma tradicional prerrogativa dos Esta- humanos ou a situação
humanitária da população
dos – a soberania. estão ameaçados. Este
direito veio alterar
substancialmente a
conceção tradicional da
soberania do Estado.
290 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Mas o papel do Estado-Nação não parece estar esgotado. Em certa medida, poderá
mesmo ter uma importância acrescida porque:

– a reclamada Nova Ordem está longe de ser uma realidade;


– o Estado-Nação ainda é a instituição fundamental através da qual os indivíduos e
as sociedades encontram a segurança e a solidariedade de que necessitam para
enfrentar as crises do presente e as incertezas do futuro;
– a corrente de homogeneização cultural atual, que tudo igualiza, estimula a reação
das comunidades nacionais.

Cronologia

1991 Por isso, a unidade político-cultural constituída pelo Estado-Nação tem ainda um
Independências da campo de ação e justificação evidentes. O futuro do Estado-Nação pode estar a ser posto
Eslovénia, Croácia.
em causa tanto pelas tendências transnacionais e supranacionais como também pelas
1992
divisões regionais, mas, paradoxalmente, a sua existência ainda é exigida para dar algu-
Início do conflito entre
bósnios e sérvios. mas respostas a essas mesmas tendências. E continua a ser reclamado com custos huma-
Proclamação da nos altíssimos em muitas regiões do planeta, como a seguir se verá.
independência da Bósnia-
-Herzegovina.
República Federal da
Jugoslávia (Sérvia e 2.1.2. A explosão das realidades étnicas
Montenegro).
O fim da Guerra Fria e o desmoronamento do “condomínio” soviético ocasiona uma
1995
Acordos de Dayton: a erução violenta de conflitos étnicos e nacionalistas em diversas partes do globo. Estes
Sérvia reconhece a
conflitos são particularmente violentos nos Balcãs, na Europa de Leste, na África Central
independência da Bósnia.
e no Sueste Asiático.
1999
Intervenção das forças da
OTAN no Kosovo (guerra do A) A nova crise nos Balcãs: a desintegração da Jugoslávia
Kosovo).
O Tribunal Internacional Como já foi referido, nos Balcãs o Marechal Tito, herói da resistência contra os nazis,
indicia o presidente
jugoslavo Slobodan conseguira aglutinar um complexo mosaico étnico e religioso na República Socialista
Milosevic por crimes contra Federativa da Jugoslávia e manter uma difícil estabilidade interna num Estado com uma
a Humanidade.
maioria sérvia (36,3%), cerca de 19,7% de croatas, 7,8% de eslovenos, 6% de macedó-
2001
Milosevic é preso e depois nios, segundo os censos jugoslavos de 1981 e percentagens inferiores de outras etnias e
extraditado para Haia, diferentes comunidades religiosas (41% de ortodoxos, 32% de católicos e 12% de muçul-
onde foi julgado por crimes
contra a Humanidade até à manos).
sua morte, em março de
2006. No início dos anos 90, o fim da Guerra Fria e o exemplo do desmembramento da URSS
despertam nos grupos étnicos a aspiração à independência. Em 1991, Eslovénia, Mace-
dónia e Croácia recusam a autoridade sérvia e reclamam a separação e a autodetermina-
ção. A Bósnia-Herzegovina segue o mesmo caminho. Depois de violentas confrontações,
a Sérvia acaba por reconhecer a secessão bósnia e a presença de forças multinacionais
* Limpeza étnica:
eliminação violenta das de interposição nos Acordos de Dayton (EUA), em 1995, promovidos pelo presidente
diversidades étnicas norte-americano Clinton e subscritos por bósnios muçulmanos e a nova Jugoslávia, cons-
(através de deportações,
massacres….) com o tituída pela Sérvia e Montenegro. A abertura de uma nova frente do conflito em 1999 no
objetivo de tornar um Kosovo, território autónomo da Jugoslávia, obrigaria à intervenção da OTAN para travar
território homogéneo sob o
ponto de vista étnico e/ou as ações sérvias de limpeza étnica* e pôr fim ao primeiro conflito militar na Europa depois
linguístico e/ou religioso. de 1945.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 291

B) A emancipação das “democracias populares” da Europa de Leste

O movimento de liberalização do sistema soviético iniciado por Gorbatchov em 1985


conduziu ao fortalecimento dos movimentos nacionalistas no leste europeu, condiciona-
dos durante décadas pela presença dissuasora do Exército Vermelho e pela hegemonia
do comunismo soviético. A partir de 1989, as aspirações nacionalistas e separatistas tor-
naram-se imparáveis e conduziram à fragmentação do mundo comunista. Com ele desa-
baram todos os regimes comunistas do leste europeu.

A Polónia e a Hungria abriram o caminho com as primeiras eleições livres. As restan-


tes “democracias populares” (regimes comunistas) do leste europeu não tardaram a cair.

Em 1991, os Estados Bálticos – Lituânia, Estónia e Letónia – separam-se do bloco


soviético. Em dezembro desse ano, os presidentes russo, ucraniano e bielorrusso assu-
miram o colapso da URSS e anunciaram a criação de uma Comunidade de Estados Inde-
pendentes (CEI).

Na Checoslováquia, os conflitos entre checos e eslovacos conduziram à formação da


República Checa e Eslováquia (1993).

Essas aspirações alastraram-se ao interior da própria Federação russa. A Tchetchénia


é o caso mais conhecido. A intervenção do exército russo não foi suficiente para travar
os seus intentos independentistas e as tropas enviadas por Moscovo sofreram uma
pesada derrota. Em 1997, foram realizadas eleições, mas o seu estatuto político de repú-
blica autónoma integrada na Federação Russa não foi alterado.

C) Os conflitos étnicos e tribais nas regiões periféricas

A queda do comunismo no leste e o descomprometimento rápido da URSS e dos seus Cronologia


aliados privaram muitos dos regimes políticos das periferias asiática e africana dos seus
apoios externos. 1990-1996
Genocídio no Ruanda
Ao mesmo tempo, os ocidentais não mostraram interesse em ocupar os lugares dei- (África).

xados vagos pelos seus antigos inimigos, agora desprovidos de qualquer interesse estra- 1992
Os mujahidin tomam o
tégico. Os estados e os governos, sem apoios políticos e militares externos, ficaram fra- poder no Afeganistão
gilizados e tornaram-se, em muitos casos, mais violentos. (Ásia) – guerra civil.
1996-1997
Comprimidas durante muitos anos no interior de fronteiras coloniais traçadas sem res- Conflitos étnicos e políticos
peito pelas suas diferenças ou submetidos ao domínio de outros grupos, as tribos e no Zaire (África).

nações têm agora a oportunidade de realizar as suas aspirações de independência e de 1998


Motim armado na Guiné-
democracia. -Bissau.

Em África, onde o processo de descolonização deixou inalteradas as fronteiras colo-


niais artificiais e a pobreza e as catástrofes naturais e humanas têm um caráter endé-
mico, os Governos não são o centro das lealdades, o que leva ao desplotar de violentas
tensões étnicas durante a década de 90.

Na região dos Grandes Lagos, uma zona de conflitos crónicos, ocorreram verdadeiros
genocídios no Ruanda e no Burundi entre as principais etnias – os Hutus e os Tutsis. Os
custos humanos destes confrontos foram catastróficos: centenas de milhares de mortos
e êxodos massivos de refugiados que perturbaram toda a região da África Central.
292 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Documento 2 A República Democrática do Congo (ex-Zaire), país governado durante décadas pelo
regime ditatorial de Mobutu, muito apoiado pelo Ocidente durante a Guerra Fria pelo seu
Geopolítica do caos unipolar
anticomunismo, viu-se envolvido em sangrentos conflitos étnicos e tribais. Em 1997, o
O mapa posterior à Guerra
Fria está pontilhado de rebelde Kabila, torna-se o novo presidente da República Democrática do Congo.
conflitos não resolvidos,
ativos ou “suspensos”, Na Ásia, os timorenses, depois de séculos de colonização e de luta contra a ocupa-
mas sempre prontos a
ção indonésia obtêm o estatuto de Estado soberano. No Sri Lanka, os Tigres de Liberta-
oscilar, sem anúncio
prévio, entre guerra e paz. ção do Eelam Tamil (TLET) levam a cabo uma luta armada pela independência da comu-
Em 2001 foram 59 os
nidade tamil hindu, que se opõe à maioria cingalesa e budista da ilha. Na Ásia Central,
conflitos importantes
recenseados no mundo – o separatismo de Caxemira recusado pela Índia e estimulado pelo Paquistão mantém sob
violências separatistas, perigosa tensão todo o subcontinente indiano.
étnicas, religiosas,
políticas, etc.; em 2000, Mas as aspirações independentistas não se esgotam nos exemplos citados (Doc. 2).
foram 68. Sempre muitos
mais do que a média dos O mundo parece ter um potencial imenso de Estados-Nações ainda por cumprir. Certa-
35 conflitos anuais mente não haverá nem oportunidade nem espaço para a realização de todos eles. Entre-
ocorridos durante a Guerra
Fria. tanto, estes conflitos continuam a gerar atos de violência extrema traduzidos em massa-
Alain Gresh et al., cres, limpezas étnicas e milhões de refugiados*.
ob. cit., p. 84.

2.1.3. As questões transnacionais


? Questão

1. Como explica o aumento A) Migrações internacionais


da conflitualidade regional
após a Guerra Fria? As migrações internacionais* não constituem uma novidade radical do século XX. De
facto, os fluxos migratórios entre estados são um fenómeno constante nas relações inter-
nacionais. O que é verdadeiramente novo na atualidade é a amplitude e intensidade dos
* Refugiados: pessoas fora
dos seus países de origem
fluxos migratórios. Aos tradicionais movimentos Sul-Norte adicionam-se com o colapso
“devido a um fundado da União Soviética as vagas de emigrantes dos países do leste europeu(1). Em 1990 os
receio de perseguições
migrantes legais internacionais totalizaram cerca de 100 milhões, os refugiados, aproxi-
relacionadas com a sua
raça, religião, a sua madamente, 19 milhões e os migrantes ilegais, provavelmente, 10 milhões, no mínimo.
nacionalidade, a sua
pertença a um grupo social Os impactos económicos, socioculturais e políticos deste fenómeno têm levado os
ou as suas convicções
estados de acolhimento, em particular os mais pressionados pelas correntes migratórias,
políticas, e que não pode
ou não quer, devido a esse como os países da Europa Ocidental, os EUA e a Austrália, a gerir estes fluxos, ora esti-
receio, reclamar a proteção
mulando-os (como aconteceu em geral até aos anos 70) ou restringindo-os através de
desse país.” (Convenção de
Genebra, 1951). legislação específica. O objetivo é encontrar o ponto de equilíbrio entre a entrada de imi-
grantes e as capacidades de absorção dos estados de acolhimento, uma vez que a sua
* Migrações internacionais: instalação sem restrições pode potenciar graves desequilíbrios nos sistemas de mercado
deslocações de indivíduos
de um Estado para outro, de trabalho, habitação e segurança social e geraria tensões sociais e culturais muito difí-
com mudança do lugar de ceis de controlar. Não obstante, a imigração proporciona efeitos muito positivos no reju-
residência e de estatuto
jurídico. As migrações venescimento populacional, no enriquecimento cultural, económico e social, na melhoria
temporárias (turismo ou das condições económicas e financeiras dos serviços de Segurança Social, ao aumentar
relacionadas com um
trabalho sazonal) não significativamente as contribuições para estes serviços.
estão portanto
consideradas.
(1)
O conflito jugoslavo provocou o êxodo de 3 milhões de pessoas, na sua maioria bósnios. Os conflitos ligados à
desintegração da URSS foram também responsáveis por um enorme número de refugiados. O maior número de refu-
giados provém de África, da Ásia e da América Latina.
(2)
Veja-se o significativo apoio a Le Pen nas eleições de 2002 ou a vitória eleitoral de Jörg Haider (1950-2008), na
Áustria; ou ainda os incidentes de natureza racista e xenófoba na Alemanha contra os imigrantes turcos.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 293

É de esperar que, a longo prazo, o fenómeno da interculturalidade* atenue 0s medos * Interculturalidade: troca
de relações culturais. A
e os preconceitos relativos a questões identitárias de diversa natureza (religiosa, cultu- interculturalidade tende a
ral, racial…) potenciadores de tensões sociais, possibilitando então uma combinação eliminar os preconceitos
etnocêntricos
equilibrada de direitos humanos, proteção social e democracia pluralista. (preconceitos de raça,
sexo, classe, profissão,
religião e civilização
A problemática dos fatores existentes na relação entre
“nós” e os “outros”) e
A razão mais comum da emigração é o fator económico. Mas não basta dizer que é a promove a tolerância e a
paz entre os grupos,
fuga à miséria que está na origem dos fluxos migratórios internacionais, cuja parte mais classes, etnias, nações.
significativa tem origem nos países pobres, menos desenvolvidos. Importa identificar as
causas que estão na origem da situação de penúria:

– a internacionalização das economias que estimula o desenvolvimento dos setores


exportadores e a polarização das atividades nas aglomerações urbanas;
– os programas de reajustamento estrutural das economias negociados pelos orga-
nismos internacionais (FMI, OMC) com os países em situação de grave crise finan-
ceira, obrigados à adoção de políticas económicas restritivas com elevados custos
sociais, particularmente para a sua massa trabalhadora;
– as elevadas taxas de crescimento demográfico;
– a guerra, as perseguições políticas, a insegurança;
– os conflitos raciais ou tribais, intolerância, discriminação;
– decomposição ou reagrupamento familiar, etc.

B) Segurança

É comum dizer-se que o fim da Guerra Fria, ao contrário das perspetivas iniciais, não
transformou o mundo num lugar mais seguro. Ao invés, paradoxalmente, tornou-o mais
inseguro e incerto.

Como explicar este fenómeno?

– A desintegração da União Soviética deu origem a uma preocupante partilha da


capacidade nuclear até então controlada por esta superpotência;
– a crescente liberalização e intensificação dos fluxos de todo o tipo (económicos,
financeiros, humanos e culturais) esbateram ou suprimiram as fronteiras políticas
nacionais e fizeram emergir os atores transnacionais (empresas multinacionais,
organizações internacionais públicas e privadas), retirando aos estados muito da
sua capacidade de controlo e vigilância da vida internacional;
– os re-enraizamentos étnicos;
– o recrudescimento dos fundamentalismos (religioso, cultural e político-religioso),
sendo que o islâmico é o mais mediatizado, mas não o único;
– o aumento da criminalidade organizada (narcotráfico, tráfico de armas e pessoas);
294 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

* Terrorismo: todas as
práticas violentas, da – a proliferação das armas de destruição maciça (nucleares, químicas e bacteriológicas);
responsabilidade de
estados ou de organizações – a escalada do terrorismo*;
armadas ilegais, que – a frequência e dimensão dos crimes ambientais.
procuram obter benefícios
políticos, económicos ou
militares através do
exercício do terror sobre
O terrorismo internacional
determinados setores da
população. De entre os problemas e desafios identificados, um dos mais preocupantes para a
segurança dos indivíduos e das sociedades atuais é o do terrorismo internacional (Fig. 1).

11 março 2004 7 julho 2005


8 outubro 2002

11 abril 2002
22 janeiro 2002

Karachi, 23 janeiro 2002

Islamabad, 17 março 2002

Karachi, 8 maio 2002


20 março 2002 6 outubro 2002 26 a 29 de Novembro 2008
12 outubro 2002 Karachi, 14 junho 2002

Murree, 5 agosto 2002

Fig. 1. Os principais
atentados depois de 11 de
setembro de 2001. Protagonizando diferentes tipos de causas ou motivações (ideologias políticas, reli-
giões, aspirações nacionalistas), o terrorismo internacional atual pelas suas característi-
Documento 3 cas e métodos de ação é um problema e um desafio de muito difícil controlo pelos esta-

O terrorismo
dos ou organizações internacionais, por mais poderosos que sejam (Doc. 3).
O terrorismo (...) ataca
brutalmente as populações Quais as suas características?
inocentes para quebrar o
pilar de confiança que as
liga ao poder legítimo, – O terrorismo não tem um território concreto, nem pátria determinada, está globalizado;
explora os meios de – pretende provocar os maiores danos possíveis aos seus supostos inimigos,
comunicação social do
adversário para potenciar demonstrando que é possível golpear sem grandes exércitos o coração dos países
os efeitos dos atentados, mais desenvolvidos e poderosos; é um terrorismo de terror dirigido prioritariamente
tendo por alvo também os
tempos que permitam a contra os cidadãos indefesos, para uma destruição indiscriminada, recorrendo a
transmissão em direto, assassínios, atentados, chantagens, captura de reféns, etc.;
como aconteceu com os
atentados de 11 de – sustenta-se no ódio apoiado num fanatismo religioso justificado por uma interpre-
setembro e de 11 de março.
tação incorreta de textos tidos como sagrados, num nacionalismo xenófobo ou
Adriano Moreira,
“A Ambivalência”, in mesmo em conflitos reais que utiliza como bandeiras das suas ações violentas (o
Terrorismo, 2.a edição, Lisboa,
Almedina, 2004 (adaptado). problema da Palestina, o conflito no Iraque, a política externa americana, a pre-
sença sérvia no Kosovo, a intervenção ocidental no Afeganistão, o problema basco,
? Questões tchetcheno…), com o objetivo de obter apoios de natureza social e política;
1. Quais as características – finalmente, socorre-se não só dos “homens-bomba”, mas também dos meios de
do terrorismo na
comunicação de massa – imprensa, televisão, Internet – para potenciar os efeitos
atualidade?
2. Que respostas das suas “mensagens”.
possíveis?
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 295

Que respostas? Cronologia


O combate ao terrorismo é uma tarefa dificílima, a começar pela dificuldade em esta- Alguns dos atentados
belecer um conceito sobre ele. A definição mais simples é também a mais cínica: “a terroristas mais importantes:

guerra dos outros”. O terrorista sanguinário e o guerrilheiro heroico podem ser, muitas 2001
Ataque ao World Trade
vezes, a mesma pessoa – a diferença está nos olhos de quem vê, ou sofre, a violência. Center e ao Pentágono
(EUA). Estima-se um total
A história das relações internacionais mostra-nos que as decisões para manter ou superior a três mil mortos.
repor a segurança acabam muitas vezes por ter efeitos contrários e consequências desas- 2002
Atentado terrorista em Bali
trosas. Por isso, a abordagem ao terrorismo internacional, um problema muito complexo,
(Indonésia), com mais de
exige uma solução: 180 mortos.

– elaborada com inteligência, subtileza e coordenação à escala mundial; 2004


Explosão num comboio
– multilateral, global; não pode ser unilateral, mas deve reunir o mais amplo con- mata mais de 200 pessoas
e fere mais de dois mil em
senso possível das nações para demonstrar força e coesão unindo a comunidade Madrid.
internacional na luta contra o fanatismo; Atentado terrorista numa
escola em Beslan, na
– adequada e proporcional – se combate o terrorismo em nome dos direitos humanos, Ossétia do Norte, matando
da democracia, da tolerância e da paz – valores essenciais da Civilização Ocidental –, 339 pessoas, na maioria
crianças.
não se pode utilizar o mesmo tipo de ações violentas, sob pena de identificação com
2005
os terroristas que se pretende combater, gerando novos ódios, mais vítimas civis ino- Londres foi vítima de uma
centes, mais “mártires”. série de explosões de
bombas que atingiram o
sistema de transportes
públicos, deixando mais de
Como se disse, o terrorismo está territorialmente globalizado. Dezenas de países
50 mortos e 700 feridos.
foram palco de atentados nos últimos anos – da Argentina à Espanha, da França à Ingla- Novo atentado terrorista
terra, dos Estados Unidos ao Japão, nenhum país pode considerar-se a salvo deste ter- gera pânico em Bali,
levando à morte de pelo
rorismo moderno que recorre à violência indiscriminada de forma deliberada e organizada menos 32 pessoas e
de forma a provocar os maiores danos possíveis, tanto materiais como humanos. ferindo outras 100.
2006
Atentado terrorista matou
C) Ambiente mais de 180 pessoas e
deixou outras 400 feridas
O diagnóstico sombrio da situação ambiental em Mumbai, na Índia.
2007
O desenvolvimento económico tornou-se no nosso tempo o objetivo central das polí-
Dois atentados à bomba
ticas dos governos e das sociedades. Mas, pela sua própria natureza, o desenvolvimento em Argel, capital da
Argélia, deixaram 67
económico aumenta a pressão das atividades humanas sobre o solo, as águas, as flores-
mortos, sendo 11 delas
tas e outros recursos naturais do planeta. No mundo tudo está sobre-explorado e o equi- inspetores da ONU, e quase
180 feridos.
líbrio ambiental gravemente ameaçado.
2008
Os violentos acidentes naturais que têm chocado a opinião pública, de forma pontual, Ataques terroristas matam
quase 30 pessoas no
mas espetacular, e os indicadores de degradação ambiental trazidos a público pelos Paquistão e deixam outras
investigadores e organizações que trabalham nesta área revelam um quadro sombrio: 100 feridas.
Quase 80 pessoas foram
mortas em Mumbai numa
– a diminuição da área florestal continua a um ritmo inaceitável (um total de 13,7 série de ataques,
milhões de hetares de floresta são cortados ou queimados anualmente); principalmente contra os
grandes hotéis da cidade.
– um terço da população mundial vive em países que enfrentam graves problemas de
escassez de água potável (um quinto da humanidade não tem acesso a água em
condições aceitáveis e metade não tem saneamento básico adequado);
296 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

– a poluição marinha ameaça a saúde e o ambiente de dois terços da humanidade, que


vive nas zonas costeiras (cerca de 80% é causada pelas atividades terrestres; quase
Cronologia
60% dos bancos de pesca estão sobre-explorados ou completamente esgotados);
1978 – a concentração de dióxido de carbono e de outros gases nocivos na atmosfera,
Maré negra nas costas
bretãs causada pelo navio gerados pelas diversas fontes de poluição, reduziram a camada de ozono(3) e são
Amoco Cadiz. responsáveis por fenómenos preocupantes como o efeito de estufa(4) (cuja dimen-
1979 são e impacto ecológico continuam a ser avaliados) e as chuvas ácidas(5).
Acidente na central nuclear
Three Miles Island (EUA).
1984
Nuvem tóxica de indústria O uso de combustíveis fósseis nos países industrializados está, lentamente, a estabi-
química em Bopal (Índia):
2500 mortos. lizar, mas as emissões poluentes estão a aumentar. O crescimento rápido da utilização
1986 destes combustíveis nos países em vias de desenvolvimento está a conduzir a elevados
Explosão na central
níveis de poluição, no entanto, mais de dois mil milhões de pessoas, a maior parte resi-
nuclear de Chernobyl
(Ucrânia, ex-URSS). dente em zonas rurais dos países menos desenvolvidos, não têm acesso a serviços de
1989 distribuição de energia.
Maré negra no Alasca
causada pelo navio Exxon A produção alimentar mundial continua a aumentar, mas mais de 800 milhões de pes-
Valdez.
soas ainda sofrem de fome e subnutrição. O uso de certos produtos químicos pouco bio-
2002
Maré Negra provocada pelo degradáveis, a pecuária intensiva e as más práticas agrícolas têm custado um preço ele-
Prestige nas costas
vado. Os especialistas estimam que entre 36% e 60% das terras aráveis se encontram
galegas, espanhola e
francesa, do Cantábrico e deterioradas, ou seja, empobrecidas do ponto de vista da sua riqueza biológica, da sua
do Golfo da Biscaia.
capacidade de filtrar a água ou devastadas pela erosão, perdendo assim a sua fertilidade

4%
(Fig. 2). A desertificação afeta um quarto da área terrestre do planeta,
Demasiado
22% hœmidos 5% enquanto os diversos tipos de poluição se acumulam nos solos, nos lençóis
Solos potencialmente Demasiado
fŽrteis (dos quais 50% pobres freáticos e na atmosfera.
est‹o inutilizados) 9%
Demasiado
finos Os químicos tóxicos e os resíduos radioativos continuam a ser importan-

10%
tes ameaças para a saúde pública e os ecossistemas(6). Cerca de três milhões
Gelados
toneladas de resíduos tóxicos e perigosos atravessam as fronteiras dos paí-
ses cada ano. Os governos concordaram em desenvolver substitutos segu-
18% 15%
Demasiado Demasiado
inclinados frios
ros para os tóxicos e em transferir esta tecnologia para os países mais
17%
pobres, mas ainda não concordaram com a obrigação de cada país nuclear
Demasiado
secos armazenar os seus resíduos radioativos e de limpar os locais contaminados
por atividades militares que tenham utilizado materiais radioativos.

Fig. 2. O estado da Terra A taxa atual de extinção de espécies e de habitats é elevadíssima. Anualmente, cerca
(2007).
de 50 mil espécies de animais e plantas podem desaparecer nas próximas décadas. A Con-
venção da Diversidade Biológica, ratificada por 161 países desde a Conferência Mundial
Eco-92, realizada no Rio de Janeiro, obriga os governos a protegerem as espécies através

(3)
Gás que protege a superfície terrestre dos raios solares mais agressivos (especialmente responsáveis pelo cancro
da pele e pelo abrandamento da fotossíntese nos vegetais).
(4)
Aumento da temperatura da atmosfera da Terra provocado pela radiação solar, absorvida e reemitida pela super-
fície do planeta, que os vários gases presentes no ar impedem que se escape.
(5)
Precipitação (neve, granizo, nevoeiro e chuva) com pH inferior a 5.0. As chuvas ácidas causam danos irreparáveis
às espécies vegetais e animais e afetam a solubilidade dos minerais dos solos, lagos e rios, aumentando a sua toxi-
cidade.
(6)
Unidade ecológica integrada que inclui os organismos vivos e o ambiente físico. Globalmente considerado com-
preende todos os organismos vivos da Terra, o próprio planeta (mar e terra) e a atmosfera.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 297

da preservação dos habitats, mas as ações nacionais são insuficientes para conter a
devastação causada por um desenvolvimento desregrado e pela poluição.

A consciência ecológica

Só a partir dos anos 70, a comunidade internacional foi despertando para a necessi- Cronologia

dade de proteger o meio ambiente contra as agressões humanas. A primeira Conferência 1972
das Nações Unidas sobre o ambiente ocorreu em Estocolmo em 1972. Pela primeira vez Conferência de Estocolmo
(1.a conferência das Nações
ouviu-se falar em poluição e em recursos não renováveis. Ainda pouco incisivos, os primei- Unidas sobre o Ambiente).
ros ecologistas começaram a chamar a atenção para os riscos de catástrofes ambientais. 1982
Carta Mundial da Natureza
Em 1982, a Assembleia-Geral das Nações Unidas adota a Carta Mundial da Natureza. (ONU).
As cimeiras da Terra do Rio de Janeiro (1992) e de Nova Iorque (1997) consagraram uma 1987
Protocolo de Montreal:
tomada de consciência a nível mundial. proibição da produção de
CFC e derivados.
Progressivamente, foram sendo criadas Organizações Não-Governamentais (ONG) cujas
1988
investigações e campanhas de sensibilização contribuem para um melhor conhecimento Conferência de Toronto
e divulgação dos danos provocados por certas atividades humanas sobre a água, a fauna, (Canadá).
1992
a flora e a espécie humana. O ambientalismo* adquiriu força política com a formação de Cimeira da Terra (Rio de
movimentos e partidos políticos ecologistas. Os “verdes” começam a entrar nos parla- Janeiro).
mentos e até nos governos e as preocupações ambientais constam dos programas de 1997
Protocolo de Quioto
todos os partidos políticos. (Japão).
2002
A maior parte dos países desenvolvidos adotaram legislações para limitar os diferentes
Cimeira do
tipos de poluição. Regulamentações visando “produzir com limpeza” e com maior segu- Desenvolvimento
Sustentável (Joanesburgo).
rança. No entanto, os resultados continuam longe do necessário e até das metas definidas
nos compromissos assumidos nas diferentes cimeiras e conferências internacionais realiza-
das depois dos anos 70. Os casos dos EUA e da Europa são esclarecedores: os oito anos * Ambientalismo:
movimento de
da presidência de George W. Bush saldaram-se por uma gritante ausência de empenho, consciencialização dos
fazendo mesmo marcha-atrás na assinatura pelo presidente Clinton do Protocolo de Quioto; indivíduos e das
sociedades para o modo
ao invés, os países europeus mostraram uma maior sensibilização para este problema. como a (sobre)exploração
humana da Terra está a
afetar os seus sistemas
As razões para o fracasso dos resultados alcançados são conhecidas: naturais (ecossistemas) e
a necessidade de encontrar
soluções urgentes para
– a globalização económica e a intensificação da concorrência à escala mundial têm
travar a degradação
sido usadas como justificação para a recusa dos países industrializados, os princi- ambiental e equilibrar o
progresso continuado da
pais responsáveis pela poluição, concretizarem efetivamente os compromissos
civilização humana com a
assumidos quer relativamente ao combate à degradação ambiental nos seus terri- sobrevivência do planeta.
Os estudos ambientais
tórios quer ainda na concessão de ajuda aos países pobres; na Cimeira da Terra
interpenetram-se com a
realizada no Rio de Janeiro em 1992, aqueles comprometeram-se a conceder uma biologia por um lado, a
geologia por outro e a
ajuda financeira de 0,7% do seu PNB aos países menos desenvolvidos, um com-
genética em muitos
promisso que não seria cumprido; aspetos. Contribuem
também para a clarificação
– por seu lado, os países menos desenvolvidos têm dificuldades em conciliar, tanto de questões da economia
por razões de natureza financeira como cultural, os objetivos de crescimento eco- moderna e de outras
ciências sociais.
nómico e as preocupações ecológicas; acresce que o (mau) exemplo dos países
mais ricos, e simultaneamente os maiores poluidores, dá-lhes um argumento extra
para não respeitarem as decisões tomadas nas cimeiras internacionais.
298 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Torna-se, assim, muito difícil estabelecer consensos capazes de compatibilizar cresci-


* Desenvolvimento mento económico e ecologia e avançar para um desenvolvimento sustentável* capaz de
sustentável: garantir às gerações futuras um ambiente minimamente saudável que não comprometa
desenvolvimento que
permite alcançar as as suas legítimas aspirações de desenvolvimento. Por isso, a mais urgente de todas as
necessidades do presente
tarefas de hoje é talvez a de persuadir as sociedades de que é preciso assumir o
sem comprometer a
capacidade das gerações ambiente – que é o lugar onde vivemos – como um problema e um desafio global crucial
futuras de alcançarem as
suas próprias porque está em causa a sobrevivência da vida no planeta.
necessidades.

2.1.4. Afirmação do neoliberalismo e globalização da economia

A) A crise do Estado de bem-estar e o triunfo da economia de mercado

A partir da Grande Depressão dos anos 30 e sobretudo desde o fim da Segunda


Guerra Mundial, numa altura em que as economias nacionais apresentavam grandes difi-
culdades, impôs-se a doutrina e as políticas económicas preconizadas pelo keynesia-
nismo. Pretendia-se através da intervenção dos governos criar emprego e promover o
crescimento económico. Ao mesmo tempo, criou-se o Estado de bem-estar (Welfare State)
que garantia aos trabalhadores proteção no desemprego, na doença e na reforma e aos
empresários oportunidades de negócios no setor público à custa dos défices orçamentais
e do aumento das quotizações sociais.

A crise fiscal do Estado e a inflação que acompanhou as três décadas do pós-Segunda


Fig. 3. Ronald Reagan (1911-
-2004). Presidente dos Guerra Mundial, de forte crescimento económico, comprometeram o êxito dessa política.
EUA de 1981 a 1989. No
plano interno adotou uma
Quando nos anos 70 começaram a subir os preços e as medidas keynesianas não deram
política liberal, a resposta adequada, altera-se radicalmente a atitude dos cidadãos no que respeita ao
conservadora: reduziu o
papel do Estado na setor público. O Estado, que tinha sido considerado imprescindível para o bem-estar
economia e suprimiu social, começa a ser olhado com desconfiança e como um modelo de ineficácia.
programas de apoio social.
Promoveu o crescimento Este ceticismo relativamente à eficácia do Estado de bem-estar coincidiu com a
económico e o emprego,
mas agravou as clivagens tomada do poder pelos conservadores na Grã-Bretanha e nos EUA liderados por Margaret
sociais e a pobreza. Thatcher e Ronald Reagan (Fig. 3), respetivamente. Um dos slogans-chave da primeira
Na Europa, a corrente
conservadora neoliberal foi campanha eleitoral de Reagan (novembro de 1980) – America come back – é esclarecedor
protagonizada por Margaret relativamente aos objetivos do “reaganismo”. Regressar a casa é o mesmo que dizer, ao
Thatcher, Primeira-Ministra
da Grã-Bretanha de 1979 a discurso original do capitalismo, dirigido ao indivíduo, à liberdade, à propriedade pri-
1990 (“thatcherismo”). vada, à economia de mercado, à eficácia... Na Europa, foi o “thatcherismo” a protagoni-
zar a corrente conservadora neoliberal.
* Neoliberalismo: corrente
económica que se impôs Assim, os anos 80 assinalam a recuperação da doutrina económica clássica, liberal
no mundo capitalista nos sob o nome de neoliberalismo*: privatizar, liberalizar, desregulamentar, flexibilizar, cres-
anos 80 do século XX
preconizando o regresso à cimento económico e produtividade, são os “novos” dogmas da “nova” onda liberal que
doutrina do liberalismo varreu tanto o mundo desenvolvido como o subdesenvolvido.
económico dos séculos
XVIII e XIX: o Estado deve Em alta nas décadas anteriores, a ideologia socialista e os modelos económicos autár-
intervir o menos possível,
privatizar o mais possível e cicos (nacionalismos desenvolvimentistas que restringiam o investimento estrangeiro e
deixar funcionar os
pressupunham forte investimento público eram agora confrontadas com o fracasso do
mecanismos da economia
de mercado. seu objetivo da promoção do crescimento económico. A queda do comunismo no início
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 299

dos anos 90, amplificou esse fracasso e os próprios ex-países socialistas são tentados a
trilhar a via do liberalismo, enveredando pelo caminho das privatizações em massa, da
economia de mercado.

A emergência da economia global

No início dos anos 90, o colapso da URSS significou também a aparente derrota do
modelo de economia socialista e o triunfo da economia de mercado capitalista (a crise
global do capitalismo aberta em 2008 permite questionar o “triunfo” do capitalismo e
traz de novo para o centro do debate político a intervenção estatal). As três superpotên-
cias económicas – Estados Unidos, Japão e União Europeia – lutam pela supremacia. Há
um mundo tripolarizado que abrange todo o globo.

As fronteiras económicas são suprimidas. O conceito de soberania económica é ultra-


* Globalização: processo
passado. As novas tecnologias nos domínios do tratamento da informação e da comuni- pelo qual acontecimentos,
cação aceleram a mundialização da economia e promovem a globalização*: “o mundo decisões e atividades
levadas a cabo numa parte
converteu-se num vasto casino, onde as mesas de jogo estão repartidas em todas as lon- do mundo acarretam
gitudes e latitudes” (Maurice Allais). consequências
significativas para os
A globalização está, pois, muito relacionada com o desenvolvimento das tecnologias de indivíduos e comunidades
em zonas distantes do
informação e comunicação. Não há economia globalizada sem telecomunicações, sem com- globo.
putadores, sem satélites e sem transportes aéreos de massa. O novo mundo global está a A globalização pode
expressar-se através de
desenvolver-se muito rapidamente ultrapassando as fronteiras, o nacional e o conceito clás- múltiplas formas e envolve
sico de soberania. O mercado nacional está a ser substituído por um megamercado global fenómenos muito
diferenciados. Alguns
alicerçado nos princípios da liberalização, privatização, desregulamentação e concorrência. definem-na em termos
exclusivamente
Mas, poder-se-á perguntar: a globalização liberal estará a transformar o mundo num económicos
espaço realmente mais homogéneo e interdependente? Será o princípio do fim do nacio- (homogeneização e
internacionalização dos
nal e das solidariedades tradicionais? Será a consagração do made in the world? padrões de produção e de
consumo), financeiros
É ainda cedo para avaliar todas as implicações do fenómeno. Mas, a sua responsabi- (interdependência e
lidade na crise do Estado-providência, na competição sem limites, na degradação ambien- liberalização dos
movimentos de capitais) e
tal, na hegemonia das empresas transnacionais, no desemprego estrutural e no alarga- comerciais (liberalização
mento do fosso entre os ricos e os pobres é já evidente. Na realidade, a globalização das trocas). Outros
acentuam as dimensões
atual é, tão só, uma “globalização truncada". É por isso e contra isso que lutam os movi- política, institucional e
mentos antiglobalização. cultural (difusão à escala
planetária da democracia
liberal, dos direitos
A rarefação da classe operária humanos, do conhecimento,
comportamento…).
O neoliberalismo não se impôs apenas aos seus competidores externos, o comunismo * Automação (do inglês
e os modelos económicos autárcicos; impôs a sua lei também no interior do sistema capi- automation): aplicação de
técnicas computadorizadas
talista. E em vários setores e de diferentes formas. ou mecânicas que reduzem
ou dispensam o uso de
O trabalho foi um desses setores. Num mundo cada vez mais liberalizado e globali- mão de obra em qualquer
zado, ou seja, mais competitivo, a produtividade tornou-se o objetivo estratégico funda- processo produtivo ou
setor de atividade com
mental. A modernização da economia através da inovação tecnológica, em particular a vista a elevar a
automação*, e o incremento da terciarização reforçam a ligação entre o individualismo e produtividade, a qualidade
e a segurança. O setor
o produtivismo pondo em causa a organização tradicional do trabalho e o seu papel de
mais visível da automação
socialização. é a robótica.
300 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

As consequências desta evolução no seio das economias capitalistas são:

– a marginalização do trabalho humano, em particular do trabalho não qualificado;

– a rarefação dos empregos no setor da produção, uma evolução de sentido contrário


ao que se verifica no setor dos serviços;

– o crescimento do trabalho precário e o desemprego para um grande número de ope-


rários e a frustração para um número crescente de “candidatos a emprego”.

A diminuição do número de operários no mundo capitalista nos anos 90 é significa-


tiva. Em França, em 1974, os operários representavam 40% do total da sua população
ativa; em 1990, apenas 25%.

Declínio do sindicalismo e da militância política

Paralelamente ao declínio da rarefação da classe operária, os sindicatos perde-


14 ram poder negocial e influência política (Fig. 4)
12
As explicações são várias e encadeiam-se umas nas outras:
10

8
– a homogeneização dos modos de vida, a difusão de uma cultura de massas
Milh›es

e o desenvolvimento do trabalho setorizado nas empresas condicionam o


6
desenvolvimento da consciência de classe dos operários, fator de coesão e
4
alavanca das lutas operárias de outros tempos;
2
– o trabalho qualificado gera novas tensões e divisões no mundo laboral: os
0
1961 1971 1975 1981 1989 empregos de melhor qualidade possibilitam maiores rendimentos e uma
maior mobilidade e promoção social individual;
Fig. 4. A evolução dos
sindicalizados no Reino
– o desenvolvimento da formação contínua no interior das empresas induz uma maior
Unido (1951-89).
Alain Gresh et al., integração nos sistemas organizativos empresariais e canaliza os esforços e a aten-
ob. cit., p. 72.
ção das reivindicações laborais coletivas para o objetivo da qualificação individual;

– a mobilidade das empresas transnacionais, a precaridade do trabalho e o aumento


dos fluxos migratórios e os altos níveis de desemprego acentuam a competitividade
e o individualismo e enfraquecem o poder negocial dos sindicatos;

– a questão da exploração do trabalho que tradicionalmente estava no centro das


lutas operárias vai dando lugar à luta pela inclusão: o problema maior do operário
já não é a exploração do seu trabalho mas a ameaça de exclusão.

Assim, os sindicatos muito poderosos até à década de 70, vão perdendo força e
influência. A onda política conservadora acentua essa tendência. Na Grã-Bretanha, Margaret
Thatcher reduz drasticamente a sua influência sobre a sociedade. Em dez anos, um terço
dos sindicatos filiados na TUC – Trade Union Congress – desapareceram e o número de
aderentes caiu em 3 milhões. Em França, apesar da esquerda ocupar o poder verificou-se
uma tendência idêntica.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 301

O declínio do sindicalismo reflete e induz consequências também no domínio da mili-


tância política:
– os cidadãos tornam-se mais individualistas, passivos e resignados, menos disponí-
veis para se empenhar na defesa da coisa pública;
– os partidos políticos, elementos fundamentais dos regimes democráticos pluriparti-
dários, perdem militantes e capacidade de mobilização dos cidadãos;
– diminui a qualidade das democracias, uma vez que o debate político tende a cris-
talizar-se e a vida política a funcionalizar-se, enquanto os eleitores se distanciam
cada vez mais dos eleitos.

2.2. Dimensões da ciência e da cultura no contexto da globalização


2.2.1. Primado da ciência e da inovação tecnológica
Nunca a ciência e a inovação tecnológica foram tão valorizados e tão disputados como
nas sociedades contemporâneas mais avançadas. Ao levar ao extremo a lógica da racio-
nalidade e eficácia económicas, a globalização liberal transformou as van-
Nœmero de aparelhos de televis‹o por 1000 hab.
tagens competitivas da tecnociência no novo mito da civilização industrial.
A afirmação de que “conhecimento é poder” jamais foi utilizada com maior 548 1970

propriedade. 1997

É por isso que o trabalho mental e as competências singulares são 263


157
cada vez mais disputadas nos mercados globais do trabalho e da produ- 9,9 23
0,5
ção. É também por essa razão que os estados e as empresas transnacio- Pa’ses Pa’ses em Pa’ses
desenvolvidos desenvolvimento subdesenvolvidos
nais consagram recursos financeiros crescentes à investigação científica e
à inovação tecnológica: quem possui os melhores conhecimentos tem
Nœmero de jornais por 1000 hab.
vantagem sobre quem não os possui.
292 estimativa
No entanto, a posse do conhecimento não garante, por si só, uma vida
226
melhor para as sociedades que os detêm e para a humanidade em geral.
O desenvolvimento acelerado e cego da tecnociência pode conduzir ao
subdesenvolvimento mental e moral e comprometer o bem-estar do pre- 29 60
4,5 8
sente e do futuro. O bom ou mau uso que se faz do conhecimento con-
Pa’ses Pa’ses em Pa’ses
tinua a ser um critério determinante. desenvolvidos desenvolvimento subdesenvolvidos

A) A revolução da informação Nœmero de aparelhos de r‡dio por 1000 hab.

O desenvolvimento do processo da globalização que invadiu pratica- 1061

mente todos os campos da nossa vida coletiva está estreitamente asso-


643
ciado aos revolucionários progressos científicos e tecnológicos das duas
últimas décadas sobretudo nos domínios da comunicação e do tratamento 90 245 142
56
da informação (Fig. 5).
Pa’ses Pa’ses em Pa’ses
desenvolvidos desenvolvimento subdesenvolvidos
Depois do aparecimento das telecomunicações por satélite nos anos
Fonte: Instituto de estat’stica da Unesco
70, que permitem ultrapassar distâncias e fronteiras, o mundo da comu-
Fig. 5. O desenvolvimento
nicação conhece na década seguinte uma outra revolução tecnológica: o dos media (1970-1997) no
nascimento do multimédia. mundo.
302 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Graças à passagem ao numérico(7) torna-se possível reunir vários sistemas de informa-


ção – textos, imagens e sons – até então tratados separadamente, e armazenar uma
quantidade fantástica e até então inimaginável de dados num pequeno objeto, um sim-
ples disco, o CD-Rom (Compact Disc Read Only memory).

O sistema de comunicação Internet que se torna acessível ao grande público nos anos
90, permite a esta revolução adquirir toda a sua amplitude. A Internet revoluciona o uni-
verso das comunicações e torna-se um poderoso instrumento da globalização.

Paralela e complementarmente, a televisão acompanha esta evolução tecnológica.


A sua difusão por cabo ou por satélite permite a um número cada vez maior de pessoas
dos diferentes locais do globo aceder aos mesmos programas televisivos e acompanhar
em direto momentos marcantes da nossa história recente, como a euforia popular pela
queda do Muro de Berlim ou o horror da repressão na praça Tiananmen em Pequim (1989).

Esta estonteante evolução do mundo da tecnologia, que é em si mesma um facto


positivo, levanta questões novas: Será que, por exemplo, a diversidade cultural, a capa-
cidade de pensar e agir livre e criticamente poderão sobreviver a uma circulação de infor-
mação fortemente mercantilizada e dominada pelos poderosos meios produtores de notí-
cias à escala global (CNN, ITN, WTN, France Press, Reuters) e à padronização de valores
e comportamentos imposta pelos grandes grupos de multimédia que controlam o setor,
desde a produção de imagens e informações à sua difusão no mundo? Que consequên-
cias psicossociais advirão da ligação por controlo remoto do indivíduo ao mundo real?
* Sociedade da Informação:
resultado de um processo É verdade que esta revolução tecnológica responsável pela aldeia planetária em que
social evolutivo de
desenvolvimento científico o mundo se transformou e a que se convencionou chamar de Sociedade da Informação*,
e tecnológico, com representa também novas e estimulantes oportunidades para a sociedade dos homens.
implicações técnicas,
sociais, políticas e
económicas, e onde a
B) Ciência e desafios éticos: a biotecnologia
informação, como meio de
produção/aquisição de
conhecimento se afirma Os extraordinários progressos da ciência colocam novos problemas e desafios às
como fator determinante
sociedades atuais. O facto de ser possível intervir em campos considerados até hoje
para a produção de riqueza
e do bem-estar e como obra da Natureza suscita a questão de se saber até onde poderá ir a ciência nas
qualidade de vida dos
cidadãos. questões relacionadas com a consciência. Ou seja, se há ou não e, em caso afirmativo
quais são, os limites éticos do progresso científico.

O entendimento mais comum é que há limites éticos para toda e qualquer ação
* Ética: parte da Filosofia
que estuda os problemas humana. Mas as pessoas podem fazer o bem e o mal, aquilo que é ou nos parece útil e
fundamentais da moral – a
agradável nem sempre é o que está certo, o bem-estar não premeia necessariamente o
natureza do bem e do mal,
o valor da consciência bem, por isso, a ética* é indispensável. O progresso não deve ser prosseguido a qualquer
moral, os fundamentos da
obrigação e do dever, a preço.
finalidade e o sentido da
vida humana, etc. A questão das relações entre ciência e ética tem estado presente nas abordagens das
problemáticas das relações do homem com a Natureza, em particular nas preocupações

(7)
Representação de dados de informações por meio de carateres, normalmente números.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 303

ecológicas, e dos homens entre si – as guerras, os direitos humanos, as desigualdades


sociais, os modelos de desenvolvimento, etc.

Mas, foi a engenharia genética* que ao tocar no plano da própria vida humana sus- * Engenharia genética:
citou publicamente a controvérsia dos limites éticos da ciência. Há certamente vantagens manipulação do material
genético por técnicas
que podem ser retiradas da manipulação do material genético: bioquímicas, tais como a
introdução numa célula ou
– novas estirpes de plantas podem ser desenvolvidas para aumentar a produção de num organismo de novo
ADN. O organismo a que se
alimentos;
adicionou um gene
estranho chama-se
– animais de elevado rendimento permitem a obtenção de mais carne ou de mais leite
transgénico.
a partir da mesma quantidade de forragem.

Mas há também muitos riscos potenciais para o homem e para a Natureza em geral.
O nascimento do primeiro mamífero clonado(8), a famosa ovelha Dolly, anunciado em
1997(9), um feito espetacular da Biologia Reprodutiva, e a eventualidade da extensão da
experiência a seres humanos provocaram um debate apaixonado sobre a questão dos
limites éticos do conhecimento científico.

No entanto, se o nível de conhecimentos atual não permite uma previsão segura dos
riscos potenciais da intervenção da ciência em áreas tão sensíveis como a vida humana,
também é certo que o progresso científico em geral não é intrinsecamente perigoso nem
imoral: são as aplicações que os seres humanos fazem dele que determinam a sua utili-
dade ou perigosidade para a espécie humana e para o planeta(10).

2.2.2. Declínio das vanguardas e pós-modernismo


Nos anos 70 e 80, o panorama artístico internacional liberta-se dos laços e compro-
missos que as vanguardas estabeleceram com os problemas sociais e políticos e afasta-se
das suas conceções e experiências artísticas. Da crise do racionalismo modernista, emerge
uma nova realidade artística multifacetada e de cunho individualista, o Pós-Modernismo*.
* Pós-Modernismo:
designação de um conjunto
A) A Arquitetura pós-modernista diversificado e heterogéneo
de experiências artísticas
Na arquitetura, a designação Pós-Modernismo integra um conjunto diversificado de realizadas a partir dos anos
80 que têm em comum a
propostas arquitetónicas que contrapõem ao funcionalismo o ecletismo, a monumentali- rejeição das conceções e
dade, o historicismo e a exuberância e fantasia das formas e cores: correntes modernistas e o
objetivo de aproximar a
– numa 1.a fase de Pós-Modernismo propriamente dito, integrando várias sensibilida- Arte da Vida.
des: um Pós-Modernismo “Pop”, à volta de Venturi; um Pós-Modernismo reviva-
lista, exemplificável, por exemplo, pelos irmãos Krier, e um Pós-Modernismo Racio-
nalista, liderado pelo Aldo Rossi do movimento La Tendenza;

(8)
O termo clonagem é um neologismo adaptado da palavra grega “klôn”, que designa “rebento”, “gomo”, “alporque”,
significando o processo de criação e desenvolvimento de seres vivos geneticamente iguais.
(9)
Apesar de ter nascido em 1996.
(10)
Recuperada a serenidade, é importante promover uma reflexão fria e fundamentada, sem radicalismos suscetíveis
de comprometer as potencialidades criativas da ciência nem aventureirismos que tudo sacrificam em nome de um
progresso a qualquer preço.
304 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

– uma segunda vaga de correntes de índole Pós-Moderna, mas trabalhando


já a herança do Movimento Moderno – o Hi-Tech (que recupera a esté-
tica da máquina e o fascínio pela técnica) (fig. 6), o Minimalismo (que
revisita a reformulação e depuração do modo de vida) e o Desconstruti-
vismo(11) (que explora até ao absurdo a abstração e complexidade da lin-
guagem Purista).

Fig. 6. Centro Georges


Pompidou (1971-1977), Paris, B) O Pós-Modernismo na pintura
de Renzo Piano e Richard
Rogers, uma demonstração Também na pintura, nenhuma tendência se impôs como predominante, nenhuma teo-
da arquitetura high-tech.
Atente-se no caráter de ria ou grupo estabeleceu padrões a seguir, nem sequer se pode falar de uma personali-
“máquina”, “fábrica”, dade artística dominante comparável à de um Picasso ou até de um Pollock dos meados
“engenho futurista” do
edifício e para a colocação do século XX. Há de tudo na pintura: desde uma pintura rigorosamente conceptual ou
exterior de elementos e até “radical” até à elementar pintura pela pintura. O debate entre abstração e figuração
infraestruturas
normalmente escondidos. foi ultrapassado.

A transvanguarda

Em 1979, o crítico de arte Bonito Oliva apelidou de “transvanguarda” um grupo de


jovens artistas italianos – Sandro Chia, Enzo Cucchi, Francesco Clemente, Nicola De Maria
e Mimmo Paladino – que recuperam a pintura figurativa, rompendo com as experiências
de natureza “conceptual” dos artistas da anterior geração de vanguardas e inspirando-se
livremente nas mais variadas correntes artísticas anteriores.

O movimento obtém grande sucesso, difundindo-se rapidamente para fora da Itália.


Encontra uma boa aceitação sobretudo na Alemanha, onde o interesse pelo figurativismo
e pela herança do expressionismo tinha já atraído alguns artistas – Kiefer, Richter, Polke,
Baselitz e Penck – empenhados na reflexão sobre o passado e identidade alemãs, nomea-
damente na herança do nazismo e da guerra.

A restauração da arte figurativa revela-se em manifestações explícitas de regresso à


pintura do passado, com especial predileção pelos requintes da arte maneirista ou pela
austeridade compositiva do neoclassicismo. Carlo Maria Mariani, Alberto Abate e Stefano
Di Stasio protagonizam esta tendência anacrónica na pintura que teve seguidores não só
em Itália como também em França. Nos EUA, outro espaço de importante expansão do
movimento, destacaram-se Schnabel, Longo e Borofsky.

O grafitismo

Na América, impõe-se a moda do grafitismo, um movimento nascido nos corredores do


metropolitano e nas paredes dos bairros degradados de Nova Iorque durante os anos 70.

Os grafitos – expressão de um mundo suburbano simultaneamente espontâneo e ardi-


loso –, atraem rapidamente a atenção do público e do mundo artístico pela sua criativi-
dade e irreverência. Os grafitistas sabiam que rir do sistema é uma forma de subvertê-lo.
Curiosamente, as portas das galerias de arte não tardariam a abrir-se-lhes.

(11)
Os edifícios desconstrutivistas caracterizam-se pela impressão desconcertante de inacabado, fragilidade, ruína
(fraturas, simulação de ameaças de desmoronamento) com propósitos evidentes de provocação e desdramatização
de certos pressupostos do racionalismo funcionalista.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 305

O grafitismo perde então algo do seu espírito original, tornando-se mais consciente e
elaborado. Jean-Michel Basquiat (1960-1988) faz-se notar pela agressividade das imagens
e pela ausência de qualquer preocupação cromática e formal, e Keith Haring
(1958-1990) evidencia-se pelas imagens sintéticas e luminosas.

C) A Arte Vídeo e a Web Art

Se há artistas que regressam à pintura tradicional, há outros que se interes-


sam pela exploração das potencialidades artísticas dos progressos tecnológicos
revolucionários nos domínios da imagem, da informação e do seu tratamento,
em particular a câmara de vídeo, a televisão e o computador.
Fig. 7. Arte Vídeo, de Nam
June Paik (Bienal de
A arte vídeo inspira-se, portanto, nas artes cinematográfica e televisiva e na música, Veneza – 1993): uma
manipulando-as eletronicamente com liberdade e criatividade. A arte envereda assim parede revestida de ecrãs
de televisão transmitindo,
pelos caminhos da virtualidade, que tem no sul-coreano Nam June Paik (1932-2006), o em simultâneo, sons e
seu pioneiro (Fig. 7). imagens diferentes que
produzem uma espécie de
O recurso aos meios de produção e difusão nos domínios do multimédia (CD-Rom) e desvario sensorial.
da informática (software) e sobretudo a utilização da Internet (Web Art) proporcionam à
Documento 4
arte a possibilidade de explorar caminhos até há pouco tempo inimagináveis, tanto no
domínio da produção como da difusão artísticas. O ressurgimento das
religiões na segunda metade
do século XX
2.2.3. Dinamismos socioculturais A modernização económica
e social tornou-se global,
verificando-se
A) As religiões no contexto da globalização simultaneamente o
renascimento universal da
É comum ouvir dizer-se que o século XXI será marcado pelo triunfo do religioso. Esta religião. (…) Em meados da
década de 70, (…) a
convicção é surpreendente se considerarmos que na 1.a metade do século XX admitia-se tendência para a
em geral que a modernização económica e o desenvolvimento do secularismo – racional secularização e para a
acomodação da religião
e laico – tenderiam a desvalorizar a influência das crenças e das instituições religiosas com o secularismo “era no
na vida social. sentido inverso”. (…)
(…) O cristianismo, o
Nos finais do século XX, o processo de modernização económica e social globaliza-se islamismo, o judaísmo, o
hinduísmo, o budismo e a
e, no entanto, não só não se confirmam os receios dos que estavam seriamente preocu- ortodoxia, todos
pados com as consequências do declínio dos credos e moral religiosos, como se verifica experimentaram novas
vagas de empenhamento,
um movimento geral de revitalização do religioso, particularmente notado no mundo islâ- de convicção e de prática
mico, nos EUA e em Israel (Doc. 4). por crentes outrora
ocasionais. Em todos se
ergueram movimentos
Como se explica este renascimento do fervor religioso, das religiões? fundamentalistas (…)
(…) Como explicar este
ressurgimento religioso
– Ao contrário do que se poderia pensar, a globalização económica não retira vitali- global?
dade às religiões; parece reforçá-la até. Por um lado, porque permite às religiões Samuel P. Huntington,
O Choque das Civilizações e a
tomar consciência dos reais problemas da humanidade e da natureza universal da Mudança na Ordem Mundial,
Lisboa, Gradiva, 1999, p. 112.
sua mensagem e missão;

– por outro, a globalização incita as religiões a fecharem-se sobre si mesmas, a endu- ? Questão
recerem as suas convicções e práticas como resposta à hegemonia e uniformização
1. Aceite o repto do autor e
económica e cultural do Ocidente. responda à questão
sublinhada.
306 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Esta reação é tanto mais determinada quanto os povos considerem a religião como
um elemento essencial de identificação nacionalista ou étnica. Os conflitos nos Balcãs e
no Sudeste Asiático e a emergência das diferentes formas de integrismo e fundamenta-
lismo – e não é apenas o islâmico, mas também o protestante, hindu, ortodoxo… –, que
têm no fanatismo terrorista a sua exteriorização extrema, são uma dramática demonstra-
ção da recusa das religiões em submeter-se a uma posição hegemónica do Ocidente e
da sua cultura secular, relativista e “decadente”.

Outros estímulos para a revitalização religiosa têm origem numa ideia muito evocada
em certos meios intelectuais no final do último milénio: a crise das ideologias. O esgo-
tamento das duas grandes ideologias que dominaram o século XX – o liberalismo e o
socialismo – e as incertezas do futuro criaram um vazio ideológico, emocional e social na
humanidade. A religião, o fervor religioso, toma o lugar da ideologia, preenche esse
vazio. O homem não vive, definitivamente, só pela Razão.

B) A perda de autoridade das Igrejas

O contexto espiritual e religioso atrás descrito parece ser favorável ao reforço da


influência e autoridade das Igrejas(12) sobre os indivíduos e as sociedades. No entanto,
apesar do revigoramento do fervor religioso a que assistimos na atualidade, a tendência
global aponta para uma perda de autoridade das Igrejas dominantes, em particular no
Ocidente tradicionalmente de maioria católica.

Na origem deste fenómeno parecem estar duas ordens de fatores:


– um é global e escapa ao controlo das Igrejas: o desenvolvimento da autonomização
do pensamento de tipo laico, do individualismo, do pragmatismo materialista e do
relativismo ético, associados ao processo de modernização económica e social, ten-
dem a desvalorizar o papel do religioso e em particular das Igrejas;
– outro, diz-lhes diretamente respeito: as Igrejas tradicionalmente dominantes, como
a católica no Ocidente e a religião budista no Sudeste Asiático, perderam uma boa
parte da sua capacidade de mobilização dos fiéis. Em contrapartida, as Igrejas mino-
* Seitas: grupos mais ritárias e as seitas* conquistam cada vez mais adeptos porque não sendo tão buro-
pequenos de crentes e cratizadas nem comprometidas com os poderes instituídos conseguem responder
menos hierarquizados,
tendo, em geral, origem melhor às necessidades emocionais e sociais das sociedades urbanas(13).
em movimentos de reação
criados no seio das igrejas.
C) Individualismo moral e novas formas de associativismo

O desenvolvimento do processo de modernização económica e social provocou muta-


ções psicológicas profundas nos indivíduos e alterações significativas nos valores e nos
modos de vida das sociedades.

Conhecemos bem essa realidade que, de forma direta ou indireta, afeta o nosso quoti-
diano: a mobilidade e aceleração dos ritmos da vida, a incessante procura da eficiência, a

(12)
Igrejas: organizações religiosas estruturadas e hierarquizadas.
(13)
Na Coreia do Sul, historicamente um país maioritariamente budista, os cristãos representam já, pelo menos, 30%
da sua população total. Na América Latina, o n.o de protestantes aumentou de, aproximadamente 7 milhões em 1960,
para cerca de 50 milhões em 1990.
Unidade 2 - A viragem para uma outra era 307

ânsia pelo novo, o individualismo, a marginalização e a exclusão, a ligação permanente ao


mundo através da intercomunicação permanente (os media, telecomunicações), a relativi-
zação dos valores, enfim a massificação e uniformização de gostos e comportamentos.

Quem dita as novas regras desta sociedade é o mercado, um mercado impessoal,


autorregulado que rejeita qualquer controlo, seja de natureza política ou ética. A globa-
lização liberal deixa cada vez menos espaço para a humanização e a solidariedade das
relações interpessoais e intersocietais.

A polarização da vida urbana e os fluxos migratórios desenraízam os indivíduos, pri-


vando-os das suas solidariedades e referências morais tradicionais (família, vizinhos, ami-
gos, comunidade religiosa, classe social…). Os indivíduos, em particular os jovens, ficam
desta forma numa posição extremamente fragilizada, insegura. Perdem a sua identidade,
desestruturam-se. Ficam incapacitados para encontrar respostas satisfatórias às questões
existenciais fundamentais de qualquer ser humano: Quem sou eu? De onde venho e para
onde vou?

A procura das respostas leva-os a procurarem novas solidariedades, novas formas de


associativismo. O fenómeno do renascimento do religioso, que já foi analisado, tem
muito a ver com esta necessidade do homem em (re)encontrar um sentido para a sua
vida, para o seu futuro. A homogeneização e estandardização das formas de vida urbana
não promovem a integração, a socialização do indivíduo. Os centros comerciais, os hiper-
mercados e outros lugares de consumo e de lazer são espaços de convivência ocasional,
de solidariedades efémeras nos quais o indivíduo se afirma enquanto ser consumidor
(“consumo, logo existo”). Ao mesmo tempo, a competição individual e tecnoló-
Mil milh›es
gica favorecem os fenómenos da tribalização, segregação e exclusão social, ante- 2
Pa’ses em desenvolvimento
câmaras da marginalidade e criminalidade. Pa’ses desenvolvidos
Popula‹o urbana

1,5

D) Hegemonia da cultura urbana


1

A polarização das atividades económicas da indústria, comércio e serviços nas


0,5
cidades, o desenvolvimento dos transportes e o crescimento demográfico encami-
nham um número cada vez maior de pessoas para o espaço citadino (Fig. 8). Este 0
1960 1980 2000
fenómeno ocorre tanto em países industrializados, como nos não-industrializa-
dos. O dinamismo funcional e demográfico dos centros urbanos conduz à sua expansão, Fig. 8. Evolução da
população urbana no
originando o aparecimento de áreas suburbanas*. Da expansão das áreas urbanas e mundo (1960-2000).
suburbanas surgem as grandes aglomerações urbanas originando a formação de conur- Histoire, Terminales,
ob cit., p. 242.
bações* e de megalópoles. A população urbana representa mais de 40% da população
mundial e tornar-se-á rapidamente maioritária. * Áreas suburbanas (ou
subúrbios): áreas
A concentração de pessoas e das atividades económicas determinam novas formas de periféricas das cidades,
mais ou menos
organização da vida social e cultural urbanas. A massificação promovida pela sociedade urbanizadas, e
de consumo submerge a tradição e a diferença, uniformiza e impõe os seus padrões de dependentes destas.
* Conurbações: extensas
valores e comportamentos “civilizados”. O desenvolvimento dos meios de comunicação
áreas urbanas (podem
e a difusão das tecnologias de informação criou a “aldeia global” e ao fazê-lo propiciou estender-se por centenas
a hegemonia da cultura urbana à escala planetária. de quilómetros)
constituídas por várias
aglomerações vizinhas que
acabam por se juntar.
308 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Em Síntese

• Questionado no exterior pelas forças regionais supranacionais e internamente pela explo-


são das realidades étnicas, o Estado-Nação entra em crise; a sua autoridade e soberania
são postas em causa pela mundialização económica e globalização estimuladas pelos revo-
lucionários progressos tecnológicos nos domínios da informação e comunicação. A organi-
zação do mundo em estados passa por uma evolução caótica: ao mesmo tempo que novos
estados foram criados, outros atravessaram crises frequentemente violentas.

• A crescente globalização da economia mundial e a adoção de modelos de desenvolvimento ina-


dequados acabaram por criar novos problemas e novos desafios globais – conflitos prolonga-
dos em vários pontos do globo, migrações, segurança, ambiente, existência de armas de
destruição maciça, genocídio e crimes contra a Humanidade – para os quais só haverá uma
resposta eficaz se houver estratégias também globais.

• Na segunda metade da década de 1970, o keynesianismo é criticado e as suas propostas


são tidas como desajustadas às novas realidades de uma economia em recessão (primeiro
choque petrolífero de 1973). Assiste-se então ao renascimento das teses liberais, ao neo-
liberalismo: desregulamentar, privatizar, liberalizar são então as prioridades das políticas
económicas. A concretização mais espetacular deste tornado liberal é a onda mundial de
privatizações.

• A afirmação do neoliberalismo e a aceleração da globalização económica, a partir da década


de 80, estão diretamente associados à rarefação da mão de obra/emprego e ao declínio do
sindicalismo e da militância política que caracterizam o nosso tempo.

• O tempo presente é marcado por fenómenos aparentemente divergentes como a massifi-


cação, a hegemonia da cultura urbana, o triunfo da eletrónica e o despertar da consciência
ecológica, o lançamento do debate sobre os limites éticos da ciência e o revigoramento do
sentimento religioso. Ao mesmo tempo, também paradoxalmente as religiões tradicionais
declinam face à afirmação das religiões minoritárias e aos progressos do individualismo
moral e de novas formas de associativismo.

• Destruídos os laços que pretendiam unir a pesquisa artística a objetivos de natureza polí-
tica e social, as artes visuais libertam-se das conquistas das vanguardas. Caracterizado
por uma multiplicidade de temáticas e de vocabulários expressivos, sem um estilo ou per-
sonalidade dominantes, o pós-modernismo procura através de experiências individuais
aproximar a arte da vida e afirmar a subjetividade e liberdade do ato criativo.
Unidade 3 - Portugal no novo quadro internacional 309

Unidade 3 Portugal no novo quadro internacional


SUMÁRIO
3.1. A integração europeia e as suas implicações*
3.2. As relações com os países lusófonos e com a área ibero-americana*

APRENDIZAGENS RELEVANTES
– Perspetivar a situação de Portugal nas dinâmicas de transformação da Europa**.
- Reconhecer na aproximação de Portugal aos países lusófonos os objetivos de cooperação
e solidariedade entre todos os povos que têm a Língua Portuguesa como um dos funda-
mentos da sua identidade.

CONCEITOS/NOÇÕES

PALOP

* Conteúdos de aprofundamento
** Aprendizagens e conceitos estruturantes

3.1. A integração europeia e as suas implicações

A) A opção europeia de Portugal

A situação geográfica de um país influencia, em larga medida, a sua evolução histórica


e as suas opções em matéria de relações externas. Portugal, um país indiscutivelmente
europeu por razões geográficas e histórico-culturais, manteve ao longo da sua história
uma relação ao mesmo tempo de oposição e de complementaridade entre a sua condição
de Estado continental, europeu, e de Estado marítimo, atlântico.

A Revolução de 25 de abril de 1974 ao pôr fim ao isolamento internacional do País


e ao promover o seu regresso a casa, ou seja, ao seu espaço continental original, fez
emergir velhas contradições e indecisões sobre as opções europeia e atlântica.
Mais concretamente, a questão era saber se Portugal deveria assumir a sua condi-
ção de país europeu aderindo à comunidade europeia ou assumir a sua herança
atlântica e privilegiar as relações com a comunidade lusófona, recém-emancipada
do domínio colonial português.

As duas posições foram largamente debatidas. Em geral partiam do pressu-


posto que as opções eram conflituais, inconciliáveis, e mobilizaram argumentos de
diversa natureza na defesa das suas teses.
Fig. 1. Cerimónia da
Caberia ao I Governo Constitucional, presidido por Mário Soares, tomar a decisão em
assinatura do Tratado de
1977 de solicitar a adesão de Portugal à então CEE (Comunidade Económica Europeia). Adesão de Portugal à então
CEE, no claustro do
Em 12 de junho de 1985, o Mosteiro dos Jerónimos tornava-se o palco da assinatura do
Mosteiro dos Jerónimos (12
vínculo formal ao projeto europeu (Fig. 1). de junho de 1985).
310 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

B) As implicações da opção europeia

A entrada de Portugal em janeiro de 1986 nas Comunidades Europeias – uma decisão


que, sendo maioritária, teve, então, a oposição, e por motivos diferentes, do PCP, da
extrema-esquerda e da extrema-direita – não deve ser entendida como um mero ato
voluntarista ou uma escolha oportunista tendo como objetivo obter apoios financeiros
para o seu desenvolvimento.

Na realidade, a adesão era uma resposta a uma dupla necessidade. Por um lado, uma
necessidade política imediata – a consolidação do novo regime democrático. Por outro,
era preciso encontrar uma alternativa à falência do modelo económico fechado do Estado
Novo, preencher o vazio deixado pela descolonização e pelo esgotamento da EFTA e
modernizar o País.

Mas a abertura da economia portuguesa ao exterior aumentou naturalmente a concor-


rência externa no espaço nacional e restringiu a liberdade de ação dos governos nacio-
nais em múltiplas matérias que constituem áreas de intervenção das políticas da União
Europeia, como a agricultura, a indústria, a concorrência, a fiscalidade, transportes, ener-
gia, telecomunicações, etc.

A supressão das fronteiras económicas potencia o fenómeno da deslocalização das


empresas e o agravamento das assimetrias regionais. A liberdade de circulação no
espaço comunitário torna naturalmente mais difícil o controlo dos fluxos migratórios e o
combate à criminalidade.

Em contrapartida, a participação na Europa Comunitária disponibiliza um conjunto de


instrumentos que minimizam significativamente os impactos negativos da integração,
nomeadamente um importante volume de mecanismos de financiamento e gestão que
viabilizam o reequipamento e a formação e qualificação dos recursos humanos, meios
absolutamente indispensáveis à modernização do país. Ao mesmo tempo, dá às empre-
sas a possibilidade de exploração de um mercado vastíssimo.

A um outro nível, a presença na UE confere a Portugal maior peso político na cena


internacional e aos portugueses o usufruto da cidadania europeia.

C) Os desafios do alargamento

A adesão à União Europeia no dia 1 de maio de 2004 de 8 países da Europa Central


e Oriental (PECO) – Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Eslovénia, Eslo-
váquia, Hungria – e de Chipre e Malta, da Bulgária e da Roménia em janeiro de 2007, teve
impactos tanto para os novos membros como também para o processo de integração.

Em termos económicos globais, o alargamento para o centro e leste da Europa repre-


senta:
– significativas alterações quantitativas e qualitativas do espaço económico e social
da UE;
– as diferenças apreciáveis de nível de vida (o PIB por habitante médio destes novos
países situa-se abaixo dos 40% da média dos Quinze) e das condições de produ-
ção, remuneração e repartição da riqueza não deixarão de levantar dificuldades adi-
cionais ao objetivo da coesão económica e social no seio da UE;
Unidade 3 - Portugal no novo quadro internacional 311

– em contrapartida, a elevação do mercado europeu mais de 500 milhões de potenciais


consumidores – a terceira maior população do mundo, depois da China e da Índia –
abre novas oportunidades económicas para o conjunto dos países da UE quer no
espaço europeu quer na economia mundial polarizada pelos gigantes norte-ameri-
cano e nipónico.

Em termos políticos a UE pode traduzir-se:


– num reforço da sua influência nos centros de decisão mundial;
– numa oportunidade única para derrubar definitivamente o “muro” e o clima de
Guerra Fria que durante décadas dividiu política e ideologicamente o continente e
consolida a democracia política e o modelo económico e social europeu.

As vantagens do alargamento da UE são, em teoria, as mesmas para qualquer Estado-


-membro. Na realidade, a situação portuguesa poderá ser diferente pois:
– Portugal é um país periférico e o novo alargamento ao promover a transferência
para leste do centro do espaço comunitário, representa, de certo modo, a consoli-
dação do modelo “continental” da construção europeia em detrimento do modelo
“atlântico”, que durante muito tempo foi considerado como sendo o mais conforme
aos interesses geostratégicos e histórico-culturais do País.
– a economia portuguesa tem uma dimensão relativamente pequena e um grau de
dependência externa elevada (energética, alimentar, tecnológica, etc.), pelo que está
mais exposta do que outras aos impactos do alargamento;
– a competitividade da economia portuguesa continua a ser baixa, pese embora o
investimento na formação e qualificação profissional e na modernização das infra-
estruturas e equipamentos. Esta situação associada ao facto destes novos países
possuírem níveis de qualificações elevados e baixos salários reforça os riscos de
deslocalização dos investimentos;
– em contrapartida, o reforço do peso da União na cena internacional refletir-se-á
positivamente nas nossas relações comerciais e políticas com países terceiros;
– a perspetiva de revisão dos fundos estruturais, em termos de continuidade e
volume, pois é de esperar uma menor disponibilidade dos países mais prósperos
para continuarem a financiar os países menos desenvolvidos, como Portugal, que
deles têm beneficiado.

Em todo o caso, o êxito ou o fracasso da presença de Portugal nesta UE alargada


depende essencialmente da sua vontade e capacidade de (re)aprender a conviver com o
desafio e a mudança.

3.2. As relações com os países lusófonos e com a área ibero-


-americana
Pelas circunstâncias em que se processaram a descolonização e a independência das
colónias portuguesas muitos temiam que o fim do Império Colonial Português significava
também o corte dos laços históricos entre Portugal e os novos estados soberanos.
312 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Esta convicção seria reforçada pelo alinhamento ideológico e político dos seus regi-
mes ao bloco socialista e pela instabilidade que caracterizou o período subsequente à
conquista da independência, particularmente em Angola onde as duas fações rivais, o
MPLA e a UNITA, se envolveram numa sangrenta e interminável guerra civil (1975-2002).

Mas os extraordinários acontecimentos que assinalaram o fim da Guerra Fria e o


colapso da União Soviética provocaram mudanças sensíveis também na vida das ex-coló-
nias portuguesas: os seus regimes políticos adquiriram maior estabilidade e aproxima-
ram-se do modelo de organização política e económica ocidental.

Por seu lado, Portugal, comprometido política e militarmente com o bloco euro-ame-
Documento 1
ricano, despertou então para as novas realidades do mundo multipolar e multicultural
A Lusofonia emergente. A opção euro-atlântica era afinal compatível com a opção Europa. Mais, o
O conceito de Lusofonia diz renascimento dos laços históricos com os povos das antigas colónias não só não cons-
respeito a uma matriz
tituiria qualquer fator de dispersão ou de limitação dos interesses nacionais, como pelo
essencialmente cultural
que cobre um espaço contrário, parecia reforçar a posição de Portugal na Europa e no Mundo.
diverso e disperso e onde
foi influente, de modo Faltava apenas estabelecer uma plataforma comum e institucionalizá-la. O primeiro
persistente, a cultura objetivo encontrou resposta na Lusofonia. O segundo, no projeto político designado por
portuguesa. Dessa
presença resultou uma CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
nova multicultura, uma
“realidade híbrida e
A) A Lusofonia
composta” (…), onde se
cruzam, se interinfluenciam
e se entrosam valores, Por Lusofonia entende-se o espaço essencialmente cultural e onde se entrecruzam influên-
símbolos, expressões e cias multiculturais (Doc. 1). O espaço lusófono não é de pertença exclusiva de Portugal já que
padrões de
comportamento. (…).
constitui uma nova identidade coletiva autónoma e com vida própria, onde as relações dos
Lemos Pires “Lusofonia e povos emancipados do domínio colonial se processam em paridade e solidariedade com o
CPLP”, in Jornal de Notícias, antigo Estado colonizador, Portugal.
29 de abril de 1997.
A Lusofonia é um espaço vasto e disperso. Engloba:
– os povos cujos estados adotaram oficialmente a língua portuguesa;
? Questão
– os povos dos oito estados da CPLP – os PALOP* (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
1. Explicite o conceito de Moçambique e São Tomé e Príncipe), Brasil, Timor-Leste e Portugal;
Lusofonia enunciado no
documento. – os emigrantes destes países e outras manchas de presença cultural portuguesa dis-
persas pelo Mundo.

* PALOP (Países Africanos


de Língua Oficial O espaço lusófono estende-se, portanto, praticamente a todos os continentes, sendo
Portuguesa): grupo de por razões geográficas mas sobretudo históricas mais intenso o sentimento de pertença
cinco estados africanos –
Angola, Cabo Verde, Guiné-
lusófona nos dois lados do Atlântico: nos continentes africano e americano.
-Bissau, Moçambique e São
Tomé e Príncipe – B) A cooperação portuguesa
emancipados do domínio
colonial português e que
adotaram a Língua
A análise dos indicadores económicos e sociais nos cinco PALOP revela que a coope-
Portuguesa como língua ração de Portugal com estes países é tão necessária quanto urgente. Inseridos numa
oficial. área, a África subsariana, onde metade da população vive ainda com menos de um dólar
por dia, e com índices de crescimento económico que permaneceram baixíssimos durante
muito tempo, taxas de analfabetismo e de mortalidade elevadas e carências básicas nos
domínios da educação e saúde pública, a batalha pelo desenvolvimento nos PALOP tor-
nou-se numa prioridade inadiável.
Unidade 3 - Portugal no novo quadro internacional 313

No plano económico (Quadro 1), a cooperação tem-se desenvol- Indicadores de desenvolvimento nos PALOP
vido fundamentalmente através de iniciativas empresariais, carecendo,
Taxas de
até ao momento, de um maior enquadramento político e institucio- PIB/per capita crescimento
Países
(em dólares) médio anual
nal. Angola, que só em 2002 saiu de uma longa e devastadora (1990-2002)
guerra civil, mas que possui uma economia com grandes potenciali-
Angola 670 – 5,4%
dades, é o país que mais atrai os empresários portugueses(1). O mer- Cabo verde 1250 3%
Guiné-Bissau 150 – 2,2%
cado moçambicano tem também um enorme potencial por desenvol- Moçambique 210 4,2%
ver em domínios como o hidroelétrico, o gás natural, o turismo e a São Tomé e Príncipe 290 – 0,3%

construção. Cabo Verde tem manifestado interesse na cooperação Quadro 1 – Anuário Notícias,
janeiro de 2005, p. 62.
portuguesa sobretudo no setor têxtil.

A pequena e pouco diversificada economia da Guiné-Bissau tem-se revelado pouco atra-


tiva para o investimento, apesar de estar inserida no Golfo da Guiné, uma região promis-
sora em recursos petrolíferos. Em São Tomé e Príncipe, a recente descoberta de jazidas
petrolíferas na sua zona marítima exclusiva está já a transformar radicalmente a vida
neste território.

Na educação e saúde, setores cruciais na luta contra a pobreza, a cooperação Portu-


gal-PALOP tem incidido na área da formação dos recursos humanos, através do intercâm-
bio de quadros técnicos, concessão de bolsas de estudo a estudantes e parcerias insti-
tucionais.

C) A Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CPLP)

A dimensão e a presença pluricontinental da lusofonia conferem-lhe um grande poten-


cial político, económico e estratégico. A compreensão destas potencialidades resultou na
sua institucionalização sob a forma de organização internacional da CPLP (1996), com
sede em Lisboa, integrando 7 membros – os 5 PALOP, Brasil e Portugal. Timor-Leste jun-
tou-se-lhe posteriormente, elevando a sua composição para 8 estados.

Os objetivos gerais da CPLP são basicamente:

– consolidar a lusofonia através da solidariedade e da cooperação entre todos os


estados-membros;
– reforçar o poder e influência do espaço lusófono no mundo;
– promover e difundir a Língua Portuguesa.

Até ao momento, os esforços da CPLP têm-se centrado no domínio da cooperação e


reforço da coesão interna nos domínios linguístico (criação do Instituto Internacional da
Língua Portuguesa), político-diplomático (acompanhamento da insurreição militar em
outubro de 2004 na Guiné-Bissau), económico e social (incremento das trocas comerciais,

(1)
Angola já produz mais de 1 milhão de barris de petróleo por dia e as suas reservas de “ouro negro” estão calculadas
em 10 mil milhões de barris. A economia angolana cresceu a um ritmo anual entre 17% e 26% nos anos 2005-2007 e
continua a crescer acima dos 10%, caso praticamente único à escala internacional.
314 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

harmonização de procedimentos sobre imigração), sanitário (Acordos sobre Malária,


2004) e educação (Declaração de Fortaleza sobre as relações entre universidades). No
entanto, há ainda um longo caminho a percorrer.

A CPLP está ainda numa fase de estruturação das suas competências e práticas. Por
outro lado, subsistem problemas básicos de diversa natureza ainda por resolver no seu
seio, como a instabilidade política, a pobreza, a falta de cuidados de saúde, o analfabe-
tismo, a dívida externa.

Mas a CPLP é só por si uma demonstração da força aglutinadora do património his-


tórico e do sentimento de pertença comuns e um ato de confiança na capacidade de
superação dos desencontros da História.

D) Portugal e a área ibero-americana

ESPANHA
Portugal e a Lusofonia não podem ficar estritamente
OCEANO PORTUGAL
ATLåNTICO
Lisboa Madrid confinados nem ao interior da CPLP nem ao espaço euro-
peu. O sucesso da inserção de Portugal e do espaço lusófono
MƒXICO
Havana
REP.
DOMINICANA
no processo de globalização em curso exige a sua integração
CUBA Santo Domingo
Cidade
Guatemala
BELIZE S‹o Juan
JAMAICA PORTO RICO
em espaços mais vastos, privilegiando estrategicamente
GUATEMALA
S‹o Salvador HONDURAS GRANADA
EL SALVADOR Man‡gua Caracas
Porto Espanha
aqueles com quem têm mais afinidades históricas e culturais.
NICARçGUA VENEZUELA
COSTA RICA S‹o JosŽ
PANAMç Cidade do Georgetown
Panam‡ Bogot‡
COLïMBIA Paramaribo Caiena A área ibero-americana é um desses espaços (Fig. 2). A
Quito
EQUADOR aproximação com Espanha, nosso parceiro na UE, o estrei-
Lima
BRASIL tamento das relações luso-brasileiras e a presença de Por-
PERU Bras’lia
La Paz OCEANO
BOLêVIA
ATLåNTICO tugal na Organização dos Estados Ibero-americanos para a
OCEANO
PACêFICO
PARAGUAI
Assun‹o
Educação, a Ciência e a Cultura (OEI)(2) é um caminho estra-

ARGENTINA
tégico para a realização do objetivo de estender a influên-
URUGUAI
Santiago
Montevideu
cia da lusofonia no mundo.
CHILE
Buenos Aires
Com efeito, a intensificação das relações económicas e
culturais ibero-americanas contribuirá para o aprofunda-
0 2500 km
mento dos processos de integração económica regional em
Fig. 2. A área ibero-
que os países desta área estão inseridos, nomeadamente a UE (Portugal e Espanha) e o
-americana, um espaço
estratégico para os Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai)(3) e para o incremento das correntes de
interesses de Portugal e comércio e investimentos entre a América Latina e a União Europeia, ocupando Portugal
da lusofonia.
Os seus instrumentos mais (e a Espanha) um papel privilegiado no enlace entre os dois continentes. A Europa é, de
importantes são as resto, o segundo parceiro comercial da América Latina e esta, por sua vez, o primeiro
cimeiras Ibero-americanas,
iniciadas em 1991, e mercado para os investimentos da União Europeia.
realizadas anualmente e a
Secretaria-Geral Ibero- A cooperação entre os países ibero-americanos estende-se a também aos setores da Edu-
-americana, fundada na cação, Cultura, Ciência, Saúde e Meio Ambiente, englobando estratégias de organização e
Cimeira de La Paz (2003) e
com sede em Madrid. financiamento das atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico e a articulação da

(2)
Criada em 1949 sob a denominação de Escritório de Educação Ibero-americana e com o caráter de agência inter-
nacional, passou a denominar-se OEI em 1954, tendo como objetivos gerais: fortalecer o conhecimento, a compreen-
são mútua, a integração, a solidariedade e a paz entre os povos ibero-americanos, quer dizer, os povos da língua
espanhola e portuguesa da América Latina e da Europa, através da educação, da ciência, da tecnologia e da cultura.
(3)
Outras unidades económicas regionais: Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), composta pelos países
do Mercosul e pela Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela (1980); Mercado Comum Centro Americano (MCCA),
integrando a Costa Rica, Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua (1985).
Unidade 3 - Portugal no novo quadro internacional 315

comunidade científica ibero-americana na formação e mobilidade dos recursos humanos.


Numa altura em que a existência dos recursos naturais é cada vez menos determinante para
o desenvolvimento, estes domínios adquirem uma maior importância para a competitividade
das economias, o índice de emprego e o bem-estar das sociedades. Portugal tem cooperado
com a OEI em programas de formação, inovação na educação, educação para os valores,
interculturalismo, administração da educação, gestão e avaliação de projetos.

O presente e o futuro da cooperação no seio da comunidade ibero-americana passa


por dois desafios essenciais:
– reforçar a sua coesão interna, constituindo os setores da educação e da ciência a
chave do seu êxito;
– adquirir maior presença no contexto das relações internacionais, com capacidade
para influenciar as decisões dos organismos internacionais, com influência determi-
nante nos problemas da pobreza e da dependência externa que afetam, em espe-
cial, os seus membros latino-americanos, concretamente o FMI, o Banco Mundial e
a OMC (Organização Mundial do Comércio).

Em Síntese

• Para a Europa, o novo alargamento da União Europeia é um passo em frente no caminho da


unidade e coesão; para Portugal, acarreta uma intensificação dos desafios da competitivi-
dade e produtividade, mas abre também novas oportunidades.

• Num contexto de cada vez maior interdependência planetária, as opções europeia e atlân-
tica não só são compatíveis como a sua articulação é do interesse de Portugal e dos seus
parceiros europeus e lusófonos.

• A CPLP institucionalizou a Lusofonia, um espaço linguístico e geocultural profundamente


enraizado na história, irmanando os antigos descolonizador e colonizados numa relação de
parceria e de solidariedade políticas na defesa, partilha e projeção de um património
comum.

• A cooperação ibero-americana constitui um instrumento crucial de solidariedade e coesão


política, económica, social e cultural com vista à consecução dos objetivos do desenvolvi-
mento sustentável, à proteção do ambiente, à superação da pobreza, à promoção e ao res-
peito pelos direitos humanos e os valores democráticos num vasto espaço geográfico e
cultural estratégico para Portugal e para a Lusofonia.
316 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Questões Para Exame

Documento 1 | Manifestação de solidariedade para com Timor-Leste em Lisboa (1999)

Documento 2 | Discurso de Richard Nixon (1991)

Na realidade encontramo-nos no Golfo Pérsico por duas únicas razões.


Em primeiro lugar, as ambições ilimitadas de Saddam Hussein em exercer o seu domínio sobre uma
das regiões estratégicas mais importantes do mundo. (...) Sem a nossa intervenção, um fora-da-lei inter-
nacional ficará a controlar 40% dos recursos petrolíferos mundiais. (...) Se não o detivermos agora, teremos
de o fazer mais tarde, e as nossas perdas em homens serão maiores.
Mas há outra razão, muito mais importante, a longo prazo, que nos obriga a travar a invasão por parte
do Iraque: que nós acreditamos, ao contrário de alguns, que estamos a entrar numa nova era de pós-guerra
fria, na qual a agressão militar não terá mais justificação enquanto instrumento de política nacional. Ao
contrário, nós temos a certeza de que, se Hussein puder retirar alguma vantagem da sua ação no Koweit,
outros potenciais invasores serão tentados, como ele, a entrar em guerra contra os seus vizinhos.(...) Por
outro lado, se nos sentimos obrigados a entrar numa guerra, ela não se pode justificar pelo petróleo. Nem
pela democracia. É uma guerra pela paz (...). A nossa intervenção no Golfo é uma ação moral.

Richard Nixon, antigo presidente dos EUA, discurso reproduzido pelo jornal Libération, 14/01/1991.
Questões Para Exame 317

Documento 3 | O Fundamentalismo

A radicalização do fundamentalismo islâmico atingiu graus extremos de obscurantismo (talibãs afegãos)


e de violência (Grupo Islâmico Armado argelino, GIA; rede Al-Qaeda), particularmente intolerantes para com
as outras religiões. O fundamentalismo judaico prega em prol de um Grande Israel, prosseguindo a colo-
nização dos territórios palestinianos ocupados em 1967. O fundamentalismo hindu chegou ao poder na
Índia (…), explorando uma hostilidade homicida para com os indianos muçulmanos. Nos Estados Unidos,
o fundamentalismo protestante ameaça as tradições de tolerância e de igualdade religiosa.

Alain Gresh (dir.) et al., “Atlas da Globalização”, Le Monde Diplomatique, Lisboa, Campo da Comunicação, 2003, p. 86.

1.1. Interprete o fenómeno ilustrado pelo documento 1.

1.2. Explicite as razões referidas pelo autor do documento 2 para justificar a intervenção militar contra Saddam
Hussein na denominada “Guerra do Golfo” (1991).

1.3. Justifique o fenómeno referido no documento 3.

2
Documento 4 | A presença militar americana no mundo (2001)

2.1. Explique a hegemonia dos EUA no mundo pós-Guerra Fria.


A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:
– o contexto internacional da afirmação da hegemonia norte-americana;
– as bases dessa hegemonia.

Deve integrar na resposta, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis nos documentos.
318 Módulo 9 - Alterações geostratégicas, tensões políticas e transformações socioculturais do mundo atual

Documento 5 | Conflitos na África dos Grandes Documento 6 | Manifestantes antiglobalização


Lagos nos finais do século XX durante a Cimeira do G20 reali-
zada em Londres, em abril de
2009

Tensões interestados
Conflitos intraestatais

Refugiados por país


de acolhimento em
31 de dezembro de 1995
(em milhares)

3.1. Justifique o agravamento dos conflitos em áreas periféricas no pós-Guerra Fria (documento 5).

3.2. Explique a reação dos movimentos antiglobalização (documento 6).

4
Documento 7 | Tratado de Lisboa (2007)

PREÂMBULO

(...) RESOLVIDOS a assinalar uma nova fase no processo de integração europeia (…),
INSPIRANDO-SE no património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanaram os valores
universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana (…).
RECORDANDO a importância histórica do fim da divisão do continente europeu e a necessidade da cria-
ção de bases sólidas para a construção da futura Europa (…)
RESOLVIDOS a conseguir o reforço e a convergência das suas economias e a instituir uma União Eco-
nómica e Monetária, incluindo (…) uma moeda única e estável, DETERMINADOS a promover o progresso
económico e social dos seus povos, tomando em consideração o princípio do desenvolvimento sustentável
e no contexto da realização do mercado interno e do reforço da coesão e da proteção do ambiente (…)
DECIDIRAM instituir uma União Europeia (…)

Versão Consolidada do Tratado de Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros,


Direção Geral dos Assuntos Europeus.

4.1. Analise o enquadramento de Portugal na União Europeia alargada (vantagens e desafios).


Provas/
Questões
Para
Exame
320 Provas/Questões Para Exame

PROVA A (11.°/12.° Anos)


GRUPO I

A FILOSOFIA DAS LUZES. PORTUGAL O PROJETO POMBALINO DE INSPIRAÇÃO ILUMINISTA:


ORDENAÇÃO DO ESPAÇO URBANO

Este grupo baseia-se na análise dos seguintes documentos:


Doc. 1 – O Contrato Social, segundo John Locke
Doc. 2 – A organização dos poderes, segundo Montesquieu
Doc. 3 – Panorâmica da baixa de Lisboa após a intervenção urbanística de Pombal

Documento 1 | O Contrato Social, segundo John Locke


(…) Resta sempre ao povo o poder supremo de afastar ou mudar os legisladores, se considerar que estes
atuam de maneira oposta à missão que lhes foi confiada. Com efeito, todo o poder delegado que tem uma
missão determinada e uma finalidade fica limitado por estas; se os detentores desse poder se afastam delas
abertamente (…), será forçoso que se ponha fim a essa missão que se lhes confiou. Nesse caso o poder vol-
tará por força a quem antes lho entregou; então este pode confiá-lo de novo às pessoas que julgue capa-
zes de assegurar a sua própria salvaguarda. Deste modo, a comunidade conserva perpetuamente o poder
supremo de subtrair-se às tentativas e maquinações de qualquer pessoa (…).

Documento 2 | A organização dos poderes, segundo Montesquieu


Em cada Estado há três tipos de poderes: o legislativo, o executivo (…) e o judicial (…).
(…). Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido
ao poder executivo, não há liberdade (…). Também não há liberdade se o poder de julgar não estiver sepa-
rado do poder legislativo e executivo.

Documento 3 | Panorâmica da baixa de Lisboa após a intervenção urbanística de Pombal

1. Explicite o caráter revolucionário das propostas dos iluministas (séc. XVIII).


A sua resposta deve abordar, pela ordem que entender, os seguintes tópicos de desenvolvimento:
– princípios fundamentais;
– propostas de organização social e política;
– a influência iluminista no projeto pombalino de ordenação do espaço urbano.
Deve integrar na resposta, para além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis nos documentos.

Identificação das fontes:


Doc. 1 – John Locke (1690), Do Governo Civil, cap. XIII.
Doc. 2 – Montesquieu, O Espírito das Leis, 1748.
Doc. 3 – A atual baixa pombalina.
Provas/Questões Para Exame 321

GRUPO II

PORTUGAL NO NOVO QUADRO INTERNACIONAL: A INTEGRAÇÃO EUROPEIA E AS SUAS IMPLICAÇÕES

Voz europeia mais forte

O ano de 2004 foi decisivo para a União Europeia, marcado por acontecimentos significativos que de-
terminarão, em larga medida, a sua configuração futura. De entre eles destacam-se a entrada de dez novos
estados-membros na União Europeia, a conclusão das negociações de adesão com a Bulgária e a Roménia,
a decisão de dar início às negociações com a Turquia e a Croácia em 2005 e a assinatura do Tratado que
estabelece uma constituição para a Europa.
A entrada na União Europeia em 1 de maio de 2004 de oito países da Europa central e oriental, junta-
mente com Chipre e Malta, constitui um evento histórico, pondo termo a séculos de divisão. Uma Europa
reunificada representa um continente democrático mais forte e mais estável, com um mercado único que pro-
porciona benefícios económicos a todos os seus 450 milhões de cidadãos. (…)
O desafio imediato será completar o processo de integração. (…) A chegada dos novos estados-membros
injeta uma nova energia e um novo potencial no projeto europeu. Contribuirão de forma importante para
(…) a criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça. (…)
A União alargada terá uma maior “presença” na cena internacional, o que se refletirá nas suas relações
com países vizinhos (…), nas relações comerciais e políticas com países terceiros, na solidariedade com as
regiões mais pobres do mundo e no contributo para a resolução de desafios globais, como as alterações
climáticas. (…)
A questão fundamental com que nos confrontamos agora é refletir sobre o projeto político e sobre as
respetivas implicações financeiras para a União alargada. (…) As principais prioridades serão incentivar a com-
petitividade e a coesão da Europa, proteger os nossos recursos naturais, dar um significado real à cidada-
nia da União e projetar uma voz forte em todo o mundo.

1. Explicite três das prioridades elencadas por Durão Barroso para a União Europeia após os “acontecimen-
tos significativos” de 2004.

2. Analise, com recurso aos dados do documento, as consequências para Portugal do alargamento da União
Europeia aos países do centro e leste da Europa.

3. Ordene cronologicamente os seguintes acontecimentos relativos à história da União Europeia. Escreva a


sequência correta com as letras que os identificam.
A. Celebração dos Acordos de Schengen.
B. Entrada de Portugal na CEE.
C. Primeira eleição dos deputados ao Parlamento Europeu por sufrágio universal direto.
D. Assinatura do Tratatdo da União Europeia (Maastricht).

Identificação da fonte:
J. M. Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, in Anuário Notícias, Madrid, Global Notícias, janeiro 2005, p. 69.
322 Provas/Questões Para Exame

GRUPO III

A VIRAGEM PARA UMA OUTRA ERA

Geopolítica do caos unipolar

O despertar identitário, quer seja étnico, religioso ou de clã, provoca choques sangrentos. Em África, iden-
tidades étnicas que nenhum sistema político herdado da descolonização conseguiu absorver constituem a
base de movimentos independentistas (…) ou de guerras civis, como no Ruanda ou no Burundi entre tutsis
e hutus. (…) Nos Balcãs, populações da mesma língua opõem-se com base na religião ou no território (croa-
tas, sérvios e muçulmanos bósnios). Nestas guerras “étnicas”, com meios diversos voltaram a ocorrer ex-
termínios de massas: genocídio (…) no Ruanda, fomes no sul do Sudão (…), campos de “filtragem” na
ex-Jugoslávia.
A transição democrática dos estados multinacionais ex-comunistas transformou antigos súbditos de um
império em cidadãos de pleno direito, permitindo assim às reivindicações identitárias voltar ao de cima. Nos
confins de impérios complicados entrelaçados étnicos (Balcãs, Cáucaso, Ásia Central), esta transição suscita
revoltas de base nacionalista. (…) As democracias ocidentais também não estão livres de violentas revoltas
regionalistas (…).
As grandes potências intervêm de maneira muito seletiva. Descuram certas crises (África, Cáucaso), dei-
xando-as entregues a organizações internacionais ou regionais que não dispõem de meios efetivos de in-
terposição ou de controlo; tais conflitos de “baixa intensidade” são peões em complexos jogos de influência.
Mas as potências ocidentais podem decidir empregar a força onde tiverem interesses estratégicos, com o
aval da ONU (contra o Iraque em 1990-91 e no Afeganistão em 2001-02), ou sem mandato internacional (como
no Kosovo em 1999 ou no Iraque em 2003).
O 11 de Setembro de 2001 confirmou o surgimento do “terrorismo de massas” como método de ação de
grupos não estatais (rede Al-Qaeda, seita japonesa Aum Shinrikyo), cujos objetivos são mais místico-faná-
ticos do que políticos. A guerra levada a cabo pelos EUA no Afeganistão para derrubar o regime dos tali-
bãs, acusado de proteger a Al-Qaeda, foi a primeira etapa desta era da “guerra contra o terrorismo”, que
sucede à era da “guerra humanitária”.

1. Relacione o quadro de tensões e conflitos descrito no documento com o fim da Guerra Fria.

2. Comente a opinião do autor sobre a atuação das grandes potências no contexto internacional atual.

3. Caracterize o “terrorismo de massas”.

Identificação da fonte:
Atlas da globalização, Le Monde diplomatique, Lisboa, Campo da Comunicação, 2003, p. 84 (adaptado).
Provas/Questões Para Exame 323

PROVA B
(10.°/11.°/12.° Anos)

GRUPO I

A DEMOCRACIA ANTIGA: OS DIREITOS DO CIDADÃO E O EXERCÍCIO DOS PODERES.


A UNIDADE DO MUNDO IMPERIAL: A PROGRESSIVA EXTENSÃO DO DIREITO DE CIDADANIA

Este grupo baseia-se na análise dos seguintes documentos:


Doc. 1 – A cidadania em Atenas (séc. V a. C.)
Doc. 2 – Édito de Caracala (212)
Doc. 3 – O sufrágio na Carta Constitucional de 1826 (Portugal)

Documento 1 | A cidadania em Atenas (séc. V a. C.)


Não é a habitação que constitui o cidadão: os estrangeiros [metecos] e os escravos não são “cidadãos”,
mas “habitantes”. (...) Há ainda muitos lugares em que os estrangeiros não são admitidos nos tribunais
senão apresentando uma caução. Não participam, portanto, senão duma maneira imperfeita nos direitos de
cidadania. Quase a mesma coisa acontece com as crianças (…) e os velhos (…). Não se pode dizer que sejam
cidadãos; não são mais do que supranumerários (…)
O que constitui propriamente o cidadão, a sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de
sufrágio nas Assembleias e de participação no exercício do poder público na sua pátria.

Documento 2 | Édito de Caracala (212)


Todos os que habitam o mundo romano são considerados cidadãos romanos por determinação do im-
perador.

Documento 3 | O sufrágio na Carta Constitucional de 1826 (Portugal)


Art.° 63.° – As nomeações dos deputados para as Cortes Gerais serão feitas por eleições indiretas, ele-
gendo a massa dos cidadãos ativos, em assembleias paroquiais, os eleitores de província, e estes os repre-
sen¬tantes da Nação.
Art.° 65.° – São excluídos de votar nas assembleias paroquiais:
§ 1.° – Os menores de 25 anos, nos quais se não compreendem os casados e oficiais militares, que forem
maiores de 21 anos, os bacharéis formados e os clérigos de ordens sacras. (…).
§ 3.° – Os criados de servir, (…).
§ 5.° – Os que não tiverem de renda líquida anual cem mil réis, (…).

1. Distinga a conceção de cidadania expressa nos documentos 1 e 2.

2. Caracterize o sistema de sufrágio instituído pela Carta Constitucional Portuguesa de 1826 (doc. 3), rela-
cionando-o com o respetivo contexto político.

Identificação das fontes:


Doc. 1 – Aristóteles, Tratado da Política, II, Cap. IV (adaptado).
Doc. 2 – Édito de Caracala (212), Digesto, V, 17.
Doc. 3 – Carta Constitucional de 1826 (Portugal).
324 Provas/Questões Para Exame

GRUPO II

A HEGEMONIA ECONÓMICA BRITÂNICA: CONDIÇÕES DE SUCESSO E ARRANQUE INDUSTRIAL

Este grupo baseia-se na análise dos seguintes documentos:


Doc. 4 – As condições de arranque da Revolução Industrial em Inglaterra
Doc. 5 – As enclosures
Doc. 6 – As relações económicas anglo-lusas no século XVIII

Documento 4 | As condições de arranque Documento 5 | As enclosures


da Revolução Industrial em Inglaterra
N Indœstrias tradicionais
Regi›es de indœstria txtil
Independentemente da vantagem das terras
Dundee
Pequena metalurgia cercadas sobre os campos abertos, fornecendo
de madeira
Stirling Altos fornos de coque abrigo aos rebanhos que têm no campo, impe-
Glasgow Edimburgo
existentes em 1800
Bacia hulh’fera dindo as sementes de se perderem e defen-
Ayro Indœstrias novas
Carliste Indœstrias metalœrgicas dendo-as das irrupções dos gados, dos
Port Patrick ou mec‰nicas
Whitehaven
Newcastle
Indœstrias txteis transeuntes e dos caçadores, estas terras estão
Darlington Stockton (predomin‰ncia da l‹)
LancasterBradford
York
Indœstrias txteis ainda menos sujeitas às devastações provoca-
Preston
Leeds (predomin‰ncia do algod‹o)
Halifax Hull
Holyhead
Liverpool
Manchester
Indœstrias diversas das pelas trovoadas de verão. (...) Mas o que os
Sheffield Transportes
Chester Nottingham
Shrewsbury
Derby
Boston
Principais canais constru’dos ingleses consideram uma vantagem que ultra-
Severn Leicester entre 1760 e 1830
Norwich
Birmingham
Merthyr Warvick Coventry
Lynn Caminhos-de-ferro
constru’dos de 1825 a 1836
passa as outras, é que cada particular, pela
Cambridge Great
Yarmouth
BristolOxford Colohester Porto reunião de todas as terras que lhe pertencem,
Milford Cardiff
Haven Londres Expans‹o urbana
Swansea Harwich
OCEANO
ATLåNTICO
Bath
Salisbury Cidades com mais de
tem a liberdade de seguir a agricultura que lhe
Exeter 100 000 h. em 1850
Plymouth
Weymouth
Southampton Dover
Cidades em expans‹o convém.
Falmouth Brighton0 60 km

Documento 6 | As relações económicas anglo-lusas no século XVIII

Nacionalidade dos navios entrados O ouro e o comŽrcio externo


Toneladas
no porto de Lisboa 100

700

50
600

500 0

10 Milh›es de cruzados
400

Italianos 300 5
Escandinavos
Alem‹es
Espanh—is
200
Franceses 0
Holandeses 1701-05 1721-25 1741-45 1761-65 1781-85
Ingleses Anos
0 Importa›es Importa›es Remessas de ouro
1721 1729 1735 de Inglaterra de Frana

1. Tendo em conta os dados dos documentos 4 a 6, explique a prioridade inglesa no arranque da Revolu-
ção Industrial.
Na sua resposta deve abordar os seguintes tópicos de desenvolvimento:
– a importância dos progressos na agricultura (Revolução Agrícola);
– o impulso do mercado interno;
– o papel da apropriação do ouro brasileiro pelo mercado britânico.
Na resposta deve integrar, além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis nos documentos 4 a 6.

Identificação das fontes:


Doc. 4 – Atlas Historique (1978), Paris, Larousse, p. 131.
Doc. 5 – Éon de Beaumont (1775), in DENIS, M. e BLAYAN, N. (1970), Le XVIIIe siècle, Paris, A. Colin, p. 84.
Doc. 6 – RIBEIRO, A. e CUNHA, M. (2004), Caminhos da História 11.°, ASA Editores, p. 89.
Provas/Questões Para Exame 325

GRUPO III

A EMERGÊNCIA DOS TOTALITARISMOS, DECLÍNIO E QUEDA DO AUTORITARISMO EM PORTUGAL


E AS QUESTÕES TRANSNACIONAIS NO MUNDO ATUAL

Este grupo baseia-se na análise dos seguintes documentos:


Doc. 4 – Excerto do Programa publicado em Popolo d'Italia, 27 de dezembro de 1921
Doc. 5 – Visita de Marcelo Caetano à Guiné – abril de 1969
Doc. 6 – O 25 de Abril e a descolonização

Documento 4 | O Fascismo
A Nação não é a simples soma dos indivíduos vivos nem o instrumento dos objetivos dos partidos, mas
um organismo formado pelas sucessivas gerações, em que os indivíduos são elementos passageiros.
Fascismo reconhece a função social da propriedade privada que é ao mesmo tempo um direito e um
dever. (…) O Fascismo atuará para disciplinar as lutas de interesses desorganizados, entre as categorias e
as classes.

Documento 5 | Visita de Marcelo Caetano à Guiné – abril de 1969

Documento 6 | O 25 de Abril e a descolonização


É costume dizer-se que o fim das guerras coloniais foi uma das razões profundas do 25 de Abril. Esta-
mos certos de que, mais do que isso, foi a sua motivação fundamental. (…) Se o ano de 1974 foi o ano do
fim das guerras coloniais, ainda durante esse ano se começou a pressentir que 1975 seria o ano da desco-
lonização e também, por via disso, da consolidação da Revolução Portuguesa. (…)

1. Enuncie, com o recurso ao documento 4, três princípios e práticas do fascismo.

2. Identifique o cenário político em que a imagem do documento 5 se insere.

3. Esclareça, com o recurso ao documento 6, as relações entre a Revolução de 25 de Abril e a descoloni-


zação portuguesa.

Identificação das fontes:


Doc. 4 – Programa publicado em Popolo d'Italia, 27 de dezembro de 1921, in Y. Lequm e J. MaiIIard, L´Europe Occidentale au XXème siècle, Pans, Masson
et Cie, 1975.
Doc. 5 – Visita de Marcelo Caetano à Guiné – abril de 1969, fotografia publicada num jornal da época.
Doc. 6 – Vítor Crespo, in João Medina (dir.), História Contemporânea de Portugal, Lisboa, Ed. Multilar, 1990, p. 272.
326 Provas/Questões Para Exame

PROVA C
(10.°/11.°/12.° Anos)

GRUPO I

O ALARGAMENTO DO CONHECIMENTO DO MUNDO

Este grupo baseia-se na análise dos seguintes documentos:


Doc. 1 – Planisfério de Cantino (1502)
Doc. 2 – A matematização do real
Doc. 3 – Lisboa no século XVI

Documento 1 | Planisfério de Cantino (1502)

Documento 2 | A matematização do real


Há dez anos que vós, Rei mui liberal (D. João III), me mandastes ensinar lhe [ao infante D. Henrique, fu-
turo cardeal D. Henrique] as ciências matemáticas (…). Nos últimos dias teve a curiosidade de saber a ex-
tensão dos crepúsculos nos diferentes climas. Houve logo quem tentasse resolver o caso (…).
Vendo eu, entretanto, que apenas se respondia com coisas muito sabidas e gastas e por ninguém, que
eu saiba, até agora demonstradas, seduziu me o intento de explicar claramente este assunto mediante os
princípios certíssimos e evidentíssimos da Matemática. Nesta ordem de ideias, meditando e investigando,
descobri coisas que em parte alguma li e não mereceriam crédito, se não fossem demonstradas.

Documento 3 | Lisboa no século XVI


Foi no século XVI que Lisboa viveu o seu período de maior glória, com uma permanente expansão do
espaço urbano, o aumento da sua população e um forte incremento do volume de mercadorias em trânsito
pelo seu porto. A generalidade das panorâmicas de Lisboa deste período mostra o Tejo repleto de embar-
cações dos mais diversos tipos, dimensões e proveniências.

1. Explicite o contributo português para o progresso técnico e científico no século XVI (doc. 1).
2. Explique a importância atribuída, por Pedro Nunes, ao estudo da Matemática (doc. 2).
3. A partir do documento 3, justifique a importância de Lisboa na economia europeia do séc. XVI.

Identificação das fontes:


Doc. 1 – Planisfério de Cantino (1502), Módena, Biblioteca Estense.
Doc. 2 – Pedro Nunes, De Crepusculis, 1542.
Doc. 3 – Rodrigo da Silva e P. Guinote (1998), O Quotidiano na Lisboa dos Descobrimentos, Lisboa, M.E.
Provas/Questões Para Exame 327

GRUPO II

AS TRANSFORMAÇÕES DO REGIME POLÍTICO (EM PORTUGAL) NA VIRAGEM DO SÉCULO (1890-1926)

Este grupo baseia-se na análise dos seguintes documentos:


Doc. 4 – Manifesto do Partido Republicano Português (1890)
Doc. 5 – A Proclamação da República
Doc. 6 – Porque vamos para a guerra?

Documento 4 | Manifesto do Partido Republicano Português (1890)


(…). Na expetativa de uma tremenda catástrofe nacional (…), importa que a Nação tenha um partido seu,
que pugne pela sua dignidade e independência, tirando da civilização moderna as bases de uma nova reor-
ganização política (…).
O facto brutal do Ultimato de 11 de janeiro (…) veio evidenciar à mais sinistra luz:
Que a monarquia é incapaz de manter a integridade do território português e a dignidade da sua auto-
nomia (…)
Que a Nação tome conta dos seus destinos (…)
No estado atual da crise portuguesa só existe uma solução nacional, prática e salvadora – a proclama-
ção da República (…)
Uma só vontade nos una, para procedermos como herdeiros das nobres gerações de 1384, de 1820 e de
1834, fazendo a obra gloriosa da reorganização de Portugal.

Documento 5 | A Proclamação da República Documento 6 | Porque vamos para a guerra?

1. Explicite as acusações que o Partido Republicano Português faz ao regime monárquico (doc. 4).
2. Explique a queda da I República, em 28 de maio de 1926.
Na sua resposta deve abordar os seguintes tópicos de desenvolvimento:
– as características do regime estabelecido pela Constituição de 1911;
– os fatores da instabilidade política e social que caracterizou o período republicano (1910-1926).
Na resposta deve integrar, além dos seus conhecimentos, os dados disponíveis nos documentos.

Identificação das fontes:


Doc. 4 – Excerto do Manifesto do Partido Republicano Português, 1890.
Doc. 5 – Jornal O Século, de 06.09.1910.
Doc. 6 – Jornal O Século Cómico, 1917.
328 Provas/Questões Para Exame

GRUPO III

MUTAÇÕES SOCIOPOLÍTICAS E NOVO MODELO ECONÓMICO

O neoliberalismo nos anos 80 do século XX

O grande impacto do “reaganismo” foi sobretudo ideológico, não se sabendo, porém, se esteve na ori-
gem da revolução liberal ou se foi trazido por ela. A eterna história do ovo e da galinha. (…) O liberalismo
torna-se moda. Não se fala de outra coisa que não seja a redução do papel do Estado, a desregulamenta-
ção, a privatização. (…)
A concretização mais espetacular deste tornado liberal é (…) a onda mundial de privatizações. (…) A Grã-
Bretanha da Sr.ª Thatcher deu o exemplo, privatizando fábricas de automóveis, empresas de telecomunica-
ções e centrais elétricas. (…) Seguiu-se o Japão, que privatizou algumas das suas raras empresas nacionais:
NTT, caminhos de ferro, Jal. Aparece depois a Alemanha. E entre 1986 e 1988 a França: o governo Chirac-
Balladur levou a melhor com a privatização da Saint-Gobain, da CGE, que se tornou Alcatel-Alsthom, da So-
ciété Générale, da Compagnie de Suez, Paribas, num total de rendimento para o tesouro público de 82 mil
milhões de francos (…). Como é evidente, a motivação é essencialmente orçamental: trata-se de encontrar
dinheiro (…), mas tal constitui, pelo menos, uma prova de que as nacionalizações perderam todo e qual-
quer caráter ideológico para os socialistas franceses. (…) O movimento não é apenas ocidental, “capita-
lista”. O Terceiro Mundo, durante muito tempo tentado pelas sirenes socialistas, acompanha-o em força. A
enumeração dos programas de privatizações seria fastidiosa, sobretudo se lhe acrescentarmos os ex-países
socialistas onde tudo está à venda (…)
(…) Na América do Sul, o Chile abriu a via sob a ditadura de Pinochet (…). O México (…) põe em prática
um programa liberal que o coloca em posição de negociar com os Estados Unidos um acordo de livre-câm-
bio (…). Na Argentina, onde o presidente Carlos Menem desencadeou, no início de 1992, uma verdadeira re-
volução liberal. “A partir de hoje”, afirmou com veemência, “pomos fim a décadas de um estatismo
parasitário, asfixiante e arbitrário, que entravava a produtividade”.

1. Enuncie, a partir do documento, três razões que explicam a emergência mundial do neoliberalismo na
década de 80 do século XX.

2. Responda ao item 2.1., selecionando a opção correta e identificando-a pela respetiva letra.

2.1. O neoliberalismo defende


A. o reforço do papel do Estado e as nacionalizações.
B. a redução do papel do Estado e o aumento dos impostos.
C. o reforço do papel do Estado e as privatizações.
D. a redução do papel do Estado e a economia de mercado.

Identificação da fonte:
Georges Valance, Os donos do mundo, Lisboa, Terramar, 1994, pp. 31-37.
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