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Sobre a estrutura da personalidade como

“princípios sobre a vida e vivências emocionais”

Achilles Delari Junior (2020)*

{64:} O aspecto “dramático” da dinâmica da personalidade é repleto


de sentimentos e de produção de significados - uma “construção
semântica”. Nesse momento, proponho articularmos tal possibilidade
de interpretação com algumas breves e densas elaborações
apresentadas por Vigotski em 1932, em conferência que conhecemos
pelo título: “Emoções e seu desenvolvimento na idade infantil”
(1932/1982; 1932/1998). O contexto é o da contraposição a tendências
filosóficas e psicológicas que tomam as emoções humanas como
resquícios de nossa herança animal. De tal modo que um ser humano
“mais evoluído” seria aquele que menos se emociona. Nessa lógica, as
emoções são uma “tribo agonizante” em nosso psiquismo. Dentre os
argumentos contra tal visão, está o de que pesquisas de Adler e sua
escola mostraram que “a emoção se relaciona não só com a situação
instintiva em que se manifesta, [...] mas também é um dos momentos
que formam o caráter”(Vigotski, 1932/1982, p. 429; 1932/1998, p. 97). O
caráter, por sua vez, é assumido pelo {65:} psicólogo soviético como
“estrutura psicológica fundamental da personalidade” (idem).
Concordando com o pesquisador austríaco, quanto a que “princípios
[vzgliadi] gerais da pessoa sobre a vida, a estrutura de seu caráter, por
um lado têm reflexo em determinada esfera da vida emocional e, por
outro, são determinados por essas vivências emocionais [emotsional’nie
perejivaniia]”(idem).
Notamos que o próprio “caráter” tanto é definido como estrutura -
da personalidade - quanto possui sua própria estrutura: um sistema de
princípios gerais sobre a vida. Tais dimensões da estruturação do
psiquismo humano, por sua vez, não são autocontidas nem estáticas.

* Excerto de: Delari Jr., A (2020). Gênese social da personalidade na visão de Vigotski:
aproximação indireta à “educação estética”. In: Abreu, F. S.; Gonçalves, A. C.; Pederiva, P. L.
(orgs.) Educação estética: a arte como atividade educativa. São Carlos: Pedro & João. p. 53-74.

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Nossos princípios sobre a vida organizam nossos posicionamentos
pessoais diante dela e em seu interior. Mas, ao posicionarmo-nos de tal
ou qual modo, tais princípios também podem se refazer, até porque
para virem a existir foi preciso que se desenvolvessem. Uma que vez
tenhamos certas posições sobre a vida, como ela é agora, como deveria
ser um dia... ao tomarmos posição frente a outras pessoas quanto a isso,
podemos nos deparar com princípios convergentes e/ou divergentes
dos nossos. O que tanto pode contribuir para ampliar nossa visão, para
mantê-la como tal, ou para torná-la mais restrita do que era... Embate
que se passa em todas as esferas da comunicação humana, vista como
processo contraditório, não como a mecânica relação “emissor-
mensagem-receptor” – que Bakhtin entende não passar de “ficção
científica” (1952-53/1997; p. 290). Nossas vivências emocionais, por sua
vez, são transitivas, vivenciamos nossas emoções, vivenciamos nossos
próprios conceitos, vivenciamos a realidade em seus mais diferentes
aspectos. Elas incidem sobre nossa visão da realidade ao mesmo tempo
que se orientam por ela... As breves formulações, que acabamos de
recuperar do diálogo de Vigotski com Adler, mostram-se, assim,
repletas de possibilidades para um entendimento mais radical sobre a
gênese social da personalidade.
Notemos que o trabalho de 1932 contempla, em uma linguagem
psicológica, o que acabamos de retomar, no campo metodológico, de
anotações {66:} de 1929. Isto é, a oposição aos princípios intelectualistas
e mecanicistas, respectivamente pela ênfase na “construção artística”
(produção de sentimentos) e na “construção semântica” (produção de
significados). Aspectos indissociáveis da intervenção, social por
definição, da pessoa sobre seu próprio desenvolvimento - quanto ao
qual não pode ter total domínio... Isso se traduz, na referida conferência
em psicologia, como relação de determinação recíproca entre
“princípios gerais sobre a vida” e “vivências emocionais” compondo o
que se define como “estrutura principal da personalidade” ou
“caráter”. A personalidade é processo com gênese social, com dinâmica
repleta de conflito interior e estrutura organizada de modo afetivo e
sistêmico-conceitual frente à vida em geral... A rigor, um conjunto de
princípios sobre a vida é por si mesmo uma formação afetiva e
intelectual... No que temos acordo com elaboração anterior de Vigotski
citando Deborin: “Se por pensamento puro se entender a atividade da
razão livre de quaisquer percepções sensíveis, então pensamento puro

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é ficção, uma vez que pensamento, livre de todas as representações, é
pensamento vazio” (apud Vigotski, 1929/1986, p. 59 – grifo na fonte;
apud Vigotski, 1929/ 2000, p. 34 - grifo na fonte).
Ao mesmo tempo, os modos de concebermos a realidade são
indissociáveis das formas de nos relacionarmos afetivamente com ela.
Este aspecto de nossa egeneralização da realidade mediante
“princípios”- entre representações e conceitos - também foi tratado por
Vigotski, em comunicação oral, de 9 de outubro de 1930, intitulada
“Sobre os sistemas psicológicos”. Nela destaca que “não apenas
sentimos - [também] tomamos consciência de um sentimento como
sendo ciúme, fúria, ofensa, injúria. Se dizemos que desprezamos
alguém, tal denominação de sentimentos já os modifica, pois eles
entram em certa conexão com nossos pensamentos” (Vigotski, 1930/
1982, p. 125; 1930/1996, p. 126). Para além disso, nossos sentimentos se
referem ao conjunto de valores e parâmetros étnicos da sociedade e/ou
grupo social a que pertencemos. Por exemplo, “o ciúme de pessoa
ligada a conceitos mao-{67:}metanos sobre fidelidade da mulher, e o de
pessoa ligada a conceitos contrários sobre fidelidade da mulher,
divergem” (idem, p. 126; idem p. 127). Isso define que tal sentimento é
histórico, que “em distintos meios ideológicos e psicológicos, ele se
altera, mesmo de que nele reste, sem dúvida, certo radical biológico,
com base no qual essa emoção emerge”(idem). Assim, a estrutura da
personalidade é histórica. Mas, por ser social não está submissa a
qualquer “contingência de reforço”, sem nenhuma estabilidade ética.
Ela se transforma enquanto se mantém e só pode manter-se porque se
transforma.

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