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MANUALDE CRIMINOLOGIA

SOCIOPOLITICA
Coleção Pensamento Criminológico

MANUAL DE CRIMINOLOGIA
SOCIOPOLÍTICA

tola Aniyar de Castro


e
Rodrigo Codino

Tradução de

Amina Vergara

Instituto

2 Carioca de
Criminologia

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Editora Revan
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=Pensamento
Criminológico
Direção
Prof. Dr. Nilo Batista
C) 2017 Instituto Carioca de Criminologia
Rua da Glória, 344, 94 andar — Glória — Rio de Janeiro — RJ Aos meus alunos e aos meus colegas latino-americanos,
Tel: (21) 3970-3383 — criminologiagicc-rio.org.br com quem compartilhei a paixão por descobrir o oculto,
Produção gráfica e distribuição
e por construir um pensamento criminológico
Editora Revan que refletisse a nossa identidade regional.
Av. Paulo de Frontin, 163
CEP: 20260-010 — Rio de Janeiro — RJ
tel: (21) 2502 7495
tola Aniyar de Castro'
editorgrevan.com.br — www.revan.com.br

Projeto de capa Aos meus dois queridos mestres, Jorge Frias Caballero
Alexandre Cosi
e Eugenio Ratil Zaffaroni, que me ensinaram a pensar
Revisão um Direito Penal e uma Criminologia latino-americana
Roberto Teixeira • comprometidos com os direitos humanos.
Mariana Vianna Abramo À minha filha Camille, que me dá a força
para seguir adiante em outro continente.
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj
Rodrigo Codino2
C339m
Aniyar de Castro, Lola.
Manual de Criminologia Sociopolitica / Lota Aniyar de Castro,
Rodrigo Codino ; tradução Amina Vergara. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Revan; 2017.
552 p. : il. ; 21cm.
Tradução de: Manual de criminología sociopolitica
' Pesquisadora do Instituto de Criminologia "Dra. Lolita Aniyar de Cas-
Inclui bibliografia
tro" e Professora no Programa de Maestria Latino-americana em Disci-
ISBN 978-85-7106-601-4 plinas do Controle Social, ambos da Universidad dei Zoila, Maracai-
1. Criminologia - Manuais, guias, etc. I. Codino, Rodrigo. II. bo, Venezuela. Docente em outras Universidades da América Latina.
Vergara, Amina. III. Título. Coordenadora durante quinze anos do Grupo Latino-americano de
17-45318 CDD: 364 Criminologia Comparada.
CDU: 343.9 Docente e coordenador do Programa de Pesquisa em Criminologia da
Universidade Nacional de San Marfim, Buenos Aires, Argentina.
10/10/2017 13/10/2017
SUMÁRIO

PRÓLOGO 11

CAPITULO I
A história crítica, social e política do pensamento
criminológico 17

CAPÍTULO II
As Criminologias. Epistemologias.
AH istória 23

CAPÍTULO III
A criminologia clássica 35

CAPITULO IV
Desvelando o cárcere
Pesquisas criticas sobre a prisão 51

CAPITULO V
A prisão hoje 83

CAPITULO VI
Atese. A criminologia positivista 89

CAPÍTULO VII
O estereótipo do delinquente 131

CAPÍTULO VIII
A criminologia positivista
que estuda a sociedade 141

CAPÍTULO IX
Sutherland e o crime de colarinho branco 185
CAPITULO X CAPITULO XXI
Primeira ruptura. A criminologia interacionista A criminologia dos Direitos Humanos (II)
ou da reação social 209 Zaffaroni, a criminologia e o direito
penal críticos na América Latina 419
CAPITULO XI
Louk Hulsman e o Abolicionismo penal 233 CAPITULO XXII
A criminologia regressionista do século XXI (I)
CAPITULO XII A contrarreforma humanística 447
A antítese. Segunda ruptura
A criminologia do controle social (I) 255 CAPITULO XXIII
A criminologia regressionista do século XXI (II) 471
CAPITULO XIII
A chamada antipsiquiatria 267 CAPITULO XXIV
A outra face da moeda?A chamada vitimologia 493
CAPITULO XIV
"A nova criminolOgia" 293 CAPITULO XXV
Para encerrar o círculo: reflexões conclusivas
CAPITULO XV de Lola Aniyar de Castro
A síntese. A criminologia do controle social (II) 303 511

BIBLIOGRAFIA BÁSICA 529


CAPITULO XVI
Ainda a antítese. A criminologia do controle social (III)....319
Anexo 355

CAPITULO XVII
A criminologia do controle social (IV) 359

CAPITULO XVIII
. A criminologia do controle social (V) 371

CAPITULO XIX
A criminologia do controle social (VI) 377

CAPITULO XX
A criminologia dos Direitos Humanos (I) 391

8 9
PRÓLOGO

Nos encontramos diante de um acontecimento biblio-


gráfico de extraordinária importância regional e mundial:
pela primeira vez a criminóloga venezuelana Profa. Lola
Aniyar de Castro dá a luz a uma obra -geral sobre a matéria,
secundada por Rodrigo Codino, que ensina em universida-
des argentinas, depois de ter desempenhado funções judi-
ciais e de cursar estudos na França.
Não nos deve parecer estranho este tipo de empreendi-
mento em forma conjunta, pois nossa mestra não faz mais
que reafirmar a importância do vínculo discipular, inclusive
fora das suas fronteiras. Mais uma vez, promove na Argen-
tina a participação de uma nova geração de criminólogos
que começarão a discutir e a debater as suas próprias ideias,
além de percorres sua própria trajetória.
Esta obra — que ambos qualificam modestamente de
Manual — é um verdadeiro tratado de criminologia, se assim
entendermos um livro que provém de um conhecimento com-
pleto da matéria, exposto sem lapsos temáticos. Não o seria se
por tratado entendêssemos insuportáveis volumes repletos de
bibliografia, que costumam repousar sobre as estantes, ideia
que nunca entrou no projeto que aqui se concretiza, como
corresponde ao bom tino do sábio, isto é, do que domina o
conhecimento que expõe. Todos nós somos capazes de fichar
material, mas poucos têm o domínio do conhecimento que
lhes permite organizar ideais, correntes, épocas, expô-las com
claridade e, sobretudo, aportar criatividade. Este Manual tem
como objetivo o percurso básico das Criminologias para os
estudantes, de forma didática, e tenho que reconhecer que
ultrapassa esse objetivo, pois será, sem dúvida, uma obra de culo passado —, com a mesma elegância, profundidade, co-
referência. nhecimento e celeridade, sem a presença intelectual de Lola
Outorgaram-me a honra de escrever seu Prólogo. Since- Aniyar de Castro.
ramente, acredito que existem tarefas cujo empenho se faz Devo agradecer profundamente aos autores o capítulo
absolutamente inútil desde o começo, como é a de apresen- que me foi especialmente dedicado, mesmo que seja exa-
tar um livro que se apresenta por si mesmo. Se me permitem gerado quantos aos méritos e excessivo quanto aos elogios.
a comparação — e já os agradecendo, porque de fato me Eles resumiram e revisaram os textos publicados nestes longos
permito-a — diria que, em outro patamar, é algo tão desne- anos, inclusive contabilizaram as vezes que retrocedi para to-
cessário quanto apresentar os Beatles. mar outro caminho. Isto confirma, quiçá, a hipótese de que
Em uma obra geral de criminologia encabeçada pela Pro- enquanto se continua produzindo não se faz mais do que co-
fa. Lola Aniyar de Castro, os prólogos e apresentações ficam lecionar velhos erros para em seguida retificar-se.
sobrando. O leitor verificará em suas páginas o papel funda- Escrevo a partir de outra experiência, porque não pude
mental que cabe a esta criminóloga na renovação e na cons- compartilhar os primórdios de sua intervenção, tanto por ter
trução da criminologia latino-americana. Ela relata esse papel vivido esses anos sob um regime ditatorial genocida, como
e ele surge dos documentos que a própria autora incorpora, também por, nessa época, estar enclausurado em temas de
não por vaidade pessoal, mas sim como uma inevitável neces- dogmática jurídico-penal. Em 1980 tive o primeiro contato
sidade da própria exposição, pois ninguém pode omitir nem pessoal com a colega venezuelana, em ocasião do Congres-
apagar seu próprio protagonismo, quando com isso deixaria so de Caracas das Nações Unidas, ao qual assisti integrando
sem explicação o curso central do devir do pensamento crimi- a delegação da Sociedade Internacional de Direito Penal.
nológico regional. Foi o contato com a nossa criminóloga, bem como com
O que, quiçá, seja pertinente informar ou recordar ao Rosa dei Olmo, com os criminólogos de países em que se
leitor é que Lola Aniyar de Castro foi Doutora honoris cau- podiam discutir esses temas e com nossos exilados argen-
sa das Universidades Nacionais de Córdoba e de San Mar- tinos — como Roberto Bergalli —, o que voltou a despertar
tin (Argentina) e, além disso, foi a primeira mulher Sena- em mim o interesse pela criminologia, da qual tinha me
dora e Governadora de Estado em seu pais e embaixadora distanciado em razão da crescente desconfiança com que
da UNESCO. Também vale a pena destacar que integrou o contemplava uma criminologia que não permitia aproximar-
júri do Prêmio Internacional de Estocolmo em Criminologia, -me da realidade que vivenciava como participe do sistema
conferido pelo governo sueco e a Universidade da Suécia, penal. Na reunião de Medelín de 1984 conheci Alessandro
que é considerado a mais prestigiosa distinção mundial na Baratta; foi outro encontro que me incentivou a aprofundar
matéria. Mas, para além das funções, honras e distinções, o as leituras. Nessa época e por razões funcionais — e também
indelével será sempre a marca do seu pensamento em toda por vocação e interesse humano—, tinha contato quase coti-
a América Latina. diano com muitos presos, e não podia ocultar o meu espanto
Sem dúvida que não se teria virado a página da velha quando com frequência escutava de seus lábios raciocínios
criminologia positivista — que dominou a maior parte do sé- menos elaborados, mas, em termos de intuição, muito pa-

12 13
recidos aos que eu ia assimilando. Sem dúvida, o rosto da Efetivamente: quiçá o que devemos considerar é que
criminologia tinha mudado. não nos encontramos em um mundo onde se discutem ideias
Nas décadas seguintes andamos longos caminhos e nos e criações, onde se compete sobre a base de criatividade e
encontramos em diferentes circunstâncias. Hoje voltamos engenho na penetração dos fatos. Não me resta dúvida de
a coincidir, não somente neste prólogo desnecessário, mas que existe engenho e às vezes certa criatividade, não para
também na própria r!a própria rno-Anria, com o mesmo formular discursos científicos sérios, mas sim para fazer pu-
empenho e com mais calma, porém com idêntico entusias- blicidade, mesmo que na maior parte dos casos, esta tam-
mo, frente ao que as ameaças do século XXI nos despertam. bém não revela inteligência, mas a força bruta da reiteração
propagandística. Cada vez existe menos discurso e mais pu-
Enérgica e decidida como sempre, volto a encontrar a
blicidade. Cria-se a realidade da mesma forma que se mani-
nossa criminóloga, desta vez junto ao seu colaborador, nos
pula o mercado.
últimos capítulos desta obra, para denunciar a criminologia
Devemos aprender o que este livro ensina, mas saiba-
atuarial, os avanços dos filósofos apressados das neurociên-
mos que a luta será em um campo diferente ao que se expli-
cias e da sociobiologia. Novamente, levanta a bandeira para
ca aqui. Pouco importa hoje o que diga a academia e nem
enfrentar o neopunitivismo norte-americano e para denun-
sequer importa muito o que nos dizem os próprios fatos, mas
ciar a sociedade de risco do nosso momento histórico, em
que o poder punitivo pretende assumir o papel de um ídolo sim o que é criado pelos meios de comunicação, em espe-
omnipotente, capaz de resolver qualquer problema, como a cial a televisão. A realidade cotidiana das pessoas é criada
por esses instrumentos de publicidade; não temos mais re-
falsa religião, denunciada por Ruth Morris.
médio que lutar no mesmo campo.
Acredito que hoje nos são necessárias novas armas.
Não me resta dúvida de que estaremos mais bem ar-
Nenhuma dessas criações neoautoritárias é muito nova
nem muito elaborada. Não resistem ao menor sopro de crí- mados com um bom conhecimento teórico e com dados da
tica racional. Pode ser que alguém pretenda fazer Lombro- realidade, mas a luta não será na disputa acadêmica, mas
so voltar, mas não é ele quem volta, não nos confundamos. sim no terreno da publicidade. Ali é onde devemos desarmar
Não é possível negar que o velho Lombroso, por muito er- a realidade construída. Não são os pobres discursos dos re-
rado que estivesse, era mais engenhoso, mais criativo, mais ducionistas de qualquer índole que nos devem preocupar em
brilhante, em relação ao saber do seu tempo. um primeiro momento, mas sim a criação de realidade que é
imposta ao ser humana que todos os dias caminha pela rua,
Se Lombroso voltasse hoje, no afirmaria que primeiro o
pega o ônibus com a gente ou se senta à nossa mesa em um
nosso cérebro decide e depois pensamos, que os neurocien-
café ou um restaurante.
tistas veem o pensamento na atividade elétrica do cérebro,
ou que a sociedade é algo parecido a uma colmeia ou a um Se somente reparamos nos pobres discursos que impli-
formigueiro. Quiçá voltasse a se equivocar, mas sem dúvida cam uma regressão, deveríamos concluir que não represen-
com outros argumentos menos grosseiros. Tudo isso é muito tam nenhum perigo para a criminologia atual, mas não acon-
tece o mesmo com a criminologia midiática de nossos dias,
rudimentar para Lombroso em relação ao saber do nosso
que é fruto de uma técnica publicitária que fabrica políticos
tempo.

14 15
sem base territorial, que vende qualquer produto e que incorre CAPÍTULO I
na mais alta expressão da propaganda desleal a respeito da
suposta eficácia do poder punitivo.
A HISTÓRIA CRÍTICA, SOCIAL E POLÍTICA DO
Não existe produto cuja idoneidade seja mais adulte-
rada em nossos dias do que o poder punitivo. A forma em PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO
que ele é exposto midiaticamente excede, muitas vezes. o
limite do tipo de propaganda desleal, para cair abertamente O pensamento criminológico e suas relações com os Diretos
no da estafa. Não se impõe pela via da razão, mas pela da Humanos e as Instituições da Ordem e do Controle. Um
emoção; não procura o pensamento, mas a afetividade do caminho por meio do Poder, da legitimidade, da Democra-
cia, da dor, da força, e da máquina trituradora e seletiva do
destinatário.
chamado "Sistema de Justiça Penal".
Está se gerando um novo autoritarismo sem a criativida-
de perversa do passado, mas a partir de um não pensar, de
uma folga da noosfera, como há quase três quartos de século
vaticinou Teilhard de Chardin. Vamos começar a percorrer o caminho pelo qual transi-
Tenho certeza de que nesse terreno também encontra- taram as teorias criminológicas, que é o mesmo das institui-
remos os nossos autores. Por ora, aproveitemos o seu saber ções, e dos imaginários coletivos que elas produziram. Este
para nos prepararmos sob o aspecto acadêmico. Temos uma tem sido um caminho apaixonante, e diríamos admirável,
vantagem: nesse âmbito se disse de tudo, se percorreram os pela forma como elas foram se apresentando sucessivamente
caminhos mais escabrosos e sinistros, que foram criticados e ao longo da História.
desarmados. Os publicitários não sabem quase nada disso e, Apaixonante também, porque iremos descobrindo as
além do mais, sua soberba os impede de aprender. vinculações com as épocas sociais e políticas nas quais nas-
ceram e se desenvolveram, e suas determinações econômi-
E. Raúl Zaffaroni cas e políticas. Na realidade, é o mesmo caminho da história
Professor Emérito da Universidade de Buenos Aires das ideias e das sociedades influentes no mundo ocidental.
E é particularmente apaixonante, porque é uma História
que tem muito a ver com a própria história do Poder, da Or-
dem, do Controle, da Dominação e da Legitimação. Assim
Como com os conceitos da Boa Governança, dos Direitos
hiumanos e, consequentemente, da Democracia.
É um caminho que nos leva, também, a descobrir as
,relações do pensamento criminológico com o dia a dia do
„cidadão comum, com seus preconceitos, suas demandas e
seus estereótipos; com os interesses particulares e os interes-

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ses gerais; com os pré-julgamentos, os valores, os princípios, Essa perspectiva e esse caminho que, sem pretender as-
as normas sociais; com o conformismo, a rebelião e o pro- sumi-los como a única, definitiva e permanente "Verdade",
tagonismo social. Com a soberania, a cidadania, a organiza- -sinalizarão, pelo contrário, que as chamadas "verdades" são
ção social e o desenvolvimento. Com a Política e as Políticas passageiras, mutáveis, relativas, convergentes com um mo-
Públicas, a engenharia social, as modas epistemológicas, a mento histórico concreto, com o desenvolvimento intelec-
tolerância e o castigo (mesmo que nunca com a recompen- tual, tecnológico, axiológico, com os sistemas de exclusão
sa). E, definitivamente, até com seus determinantes e suas e de dominação; e, definitivamente, com a liberdade e a
pressões eleitorais. submissão, e suas variantes ao longo do tempo dos tempos.
Veremos como o pensamento criminológico está forte- Teremos a sensação de estar também pisando o esca-
mente vinculado às mudanças dos sistemas de produção e de broso e confuso terreno do Bem e do Mal.
dominação; às exclusões, aos ostracismos, à pena de morte Ao mesmo tempo, por conta disso, deveremos nos pro-
legal e extralegal, aos extermínios e crimes de massa. Às leis, teger da tentação de acreditar em um sistema valorativo que
sua criação, suas modificações, seus objetivos. Às penas in- tenha a ver mais com a Moral ou o religioso do que com
formais, às penas ocultas, à perda de diretos, à solidariedade, os valores universais da presença e permanência do homem
à governabilidade e à coesão social. sobre a Terra, em condições de sociabilidade e interação
E, além disso, ele também está vinculado às HigÈnk,±_
c õela_ positivas (o "animal político" do qual falava Aristóteles). Es-
anormalidade e da normalidade, segundo as discussões que as sas condições, que tendemos a supor, são mais naturais que
variantes do pensamento criminológico têm trazido consigo. forçadas.
Definitivamente, tem a ver com a paz e a guerra no inte- Efetivamente, as discussões da Dogmática Penal sobre
rior dos países. E, às vezes, também entre eles mesmos. o Bem Jurídico a tutelar, tentam desenhar o que sempre será
Um mosaico, como se vê, muito complexo, que tem uma tênue linha entre o jurídico e as categorias menciona-
que ser organizado para a sua melhor compreensão e para das. Como se verá também, as novas Criminologias inicia-
poder enfocar as consequências de todo esse entre cruza- ram o debate sobre o que se deve criminalizar por meio do
mento na qualidade de vida, na felicidade e na sobrevivên- Direito Positivo, enfocando-o a partir de ângulos externos ao
Direto, à moral e à religião.
cia dos cidadãos.
Isto é, com os Direitos Humanos. De fato, na longínqua Idade Média se estabeleceu um
tipo de demonologia, que consistia em que "o ser humano
Vamos organizá-lo a partir de uma perspectiva crítica
estaria influenciado por dois tipos de divindades superiores
que não se contenta em aceitar passivamente o que se nos
antagônicas (o Bem e o Mal)". O Mal interviria sobre o ho-
apresenta pré-construído. Uma perspectiva que desvelará,
mem, possuindo-o e tentando-o a cometer atos ilícito-penais
nesses casos — se for pertinente —, tanto a rigidez da unifor-
ou simplesmente violatórios da moral dominante de cada
midade e do pensamento único quanto a do absolutismo.
espaço temporal ou geográfico. A partir desse ponto de vista,
Tanto o absolutismo político como o científico.
à raiz do delito, ele se encontraria em pecado.

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A partir das novas Criminologias, veremos que não se ras, mesmo que em um primeiro momento pudesse pare-
pode descuidar da tendência a expandir "o penal" que pos- cer, nunca foram totais.
suem essas teorias sobre o "bem jurídico" a tutelar, conver-
Por isso, veremos que, em algumas ocasiões, alguns
tendo o chamado "Sistema Penal" em um monstro onicom-
elementos de umas permaneceram em outras. E isto não po-
preensivo que não deve — e na prática não pode — controlar
deria se dar de outra maneira, porque assim como nenhum
tudo o que acontece sobre a superfície do planeta. outro conhecimento ou pensamento, nasceu em de um vá-
Resumindo, o que será tratado neste Manual, que, pelo cuo histórico, nenhum conhecimento ou pensamento parte
apresentado até agora, pode parecer pretensioso e excessivo, do zero. Mesmo assim, um Manual de Criminologia Positi-
e que possivelmente o é, por suas dificuldades inerentes, é a vista, por exemplo, tem muito pouco a ver com um manual
história crítica do Pensamento Criminológico e suas relações interacionista, ou um manual crítico.
com os Direitos Humanos e as instituições da Ordem e do
Existem Criminologias que foram denominadas "de
Controle. alcance médio", como The New Criminology, de Taylor,
Não será um tratado sobre as toneladas de tinta e papel Walton e Young,' os quais, ao combinar elementos de Cri-
que se investiram nesses temas, ou das centenas de pesqui- minologias diferentes para obter pontos de vista que recupe-
sas feitas em diferentes partes do mundo. Será um Manual rassem algumas coisas úteis de umas e de outras, tentaram
Básico para que os estudantes, que são os seus destinatários, apresentar uma compreensão mais globalizante.
possam entrever os caminhos desse pensamento e ter a possi-
Este não é um Manual neutro, logicamente; está com-
bilidade, seguindo uma bibliografia também bastante básica,
prometido com os valores da História atual, especialmente
de ir paulatinamente aprofundando os temas, selecionando com os Direitos Humanos. Não pretende, consequentemente,
suas opções, e chegando às suas próprias reflexões.
chegar a verdades definitivas. O tempo nos dirá se as Crimi-
Ajudar-nos-á a entender que não existe somente uma nologias seguem adiante ou se veremos — como já se perce-
Criminologia, mas várias. Várias são elas, precisamente bem — retrocessos. Ou, por exemplo, se deveremos analisar
porque, pelas distintas relações que ao longo do tempo os Direitos Humanos e as Políticas Criminais em um futuro
têm estabelecido com as variáveis assinaladas, consegui- (que já é quase presente) frente às novas tecnologias informáti-
ram diferenciar-se de tal modo que não podem se encaixar cas, de comunicação e informação, o desmoronamento quase
em somente uma disciplina ou saber. Embora tenham ido simultâneo dos regimes socialistas autoritários, das economias
se encadeando entre elas ao longo do tempo, mesmo que globalizadas, do Estado de bem-estar e das economias de
parcialmente, em certas ocasiões abriram caminhos para mercado; desmoronamentos que neste momento nos abrem
outros tipos de Criminologia. Esse foi o caso do Interacio- uma grande interrogante sobre o que ainda há para inventar.
nismo Simbólico — ou Criminologia Interacionista —, que,
ao romper com o paradigma positivista, deu impulso à Cri-
' Taylor, lan; Walton, Paul e Young, Jock, The New Criminology: for a
minologia Radical e à Criminologia Crítica. Estas, por sua social theoryofdeviance, London, Harper Row, 1973. Primeira tradu-
vez, foram questionando ou enriquecendo os princípios e ção ao castelhano, La Ntleva Criminologia. Contribución a una teoria
afirmações das criminologias que as precederam. As ruptu- social de laconducta desviada, Buenos Aires, Amorrortu, 1977.

20 21
Ainda que, logicamente, a vocação do pensamento jus-
CAPITULO II
-humanístico que nos guia seja a de um refinamento pro-
gressivo. De maneira que, sempre estará à vanguarda da
I transcendência da vida, da liberdade, da igualdade e da As CRIMINOLOGIAS. EPISTEMOLOGIAS. A HISTÓRIA
dignidade humanas, onde quer que se encontrem. O que
neste momento se vê ameaçado pelo perigoso ressurgimento AS Criminologias. As criminologias antigas e as novas crimi-
das neurociências, da Sociedade de Risco, base da chama- nologias. Sua relação com os Direitos Humanos. Uma defi-
da Criminologia Atuarial, do Direito Penal do Inimigo, e da nição de Poder. A Criminologia como disciplina normativa.
antiga — pois até mesmo pelos seus novos adoradores já foi
superada — Política Criminal da Defesa Social.
Nada mais (ou nada menos). As Criminologias
Começaremos falando, muito brevemente, e a título in-
trodutoriamente explicativo, do conceito de Estado e de sua
relação com os Direitos Humanos e "As Criminologias".
Este plural significa que, pelas diversidades que o pensa-
mento criminologico assumiu, nos encontramos na presença
de várias Criminologias. Não nos atreveríamos a sinalizar nes-
te momento uma definição de Criminologia. Pois, até mesmo
definir a Criminologia é uma tarefa difícil, ao menos que in-
cidamos sobre algumas preocupações que parecem tangen-
ciais, como o Poder, os seres humanos, os grupos sociais, as
normas, os infratores (ou resistentes, ou delinquentes, ou des-
viados, segundo as denominações que lhes foram dadas em
cada Criminologia); as criminalizações e os castigos. Isto é, a
menos que vejamos cada Criminologia como o produto, his-
toricamente variável, da necessidade de manter uma Ordem
Social'. Não obstante, também existe quem, paradoxalmente,
como as teorias anarquistas, propugnaram a desordem, liber-
tária e autorregulada, como a melhor Ordem Social.

Essa busca por uma Ordem Social seria o impulso para construir novas
e diferentes Criminologias, segundo Pavarini, Massimo, Control y do-
minación. Teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemónico,
México, Siglo XXI, 1983.

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Todas estas questões foram desenvolvidas em áreas tra- deslegitimar o Poder. Por isso, as criminologias podem tam-
dicionalmente designadas a diferentes saberes que, apesar de bém ser classificadas seguindo, como pauta simples, a própria
aparecerem desvinculadas nos livros, cátedras e especialidades história dessas legitimações-deslegitimações do poder. Por sua
diversas entre si, nunca como no campo criminológico, foram vez, tudo isto significa incluir-se em uma determinada Teoria
observadas em sua condição totalmente "transdisciplinar". do Estado.
Não foi por acaso, pois, que o Grupo de Bolonha, em Uma Criminologia deveria ter, para ser considerada
vez de fazer uma publicação periódica sobre Criminologia, como tal, pelo menos, os seguintes elementos:
se referira de uma maneira nominativamente mais ampla à
C) Alguma definição do que deve ser prioritariamente
Questão Criminal, para nomear a primeira revista desse gru-
defendido e, por isso, protegido institucional ou so-
po; e que posteriormente, reiniciara sua tarefa editorial com
cialmente.
outra revista que optaram por denominar Dos Delitos e das
Penas. Mesmo que não tenham se atrevido a falar de "Cri- Processos de criminalização com requisitos e li-
minologia", estavam, sem dúvida, construindo uma delas, mites.
transdisciplinar. Uma forma de controlar comportamentos social-
Zaffaroni habilmente reconhece, por sua parte, que "no mente negativos, considerados graves em um mo-
curso dos discursos da Criminologia, o sentido de diversas mento histórico e em um lugar determinados.
coisas muda: o mundo, que parece organizado, deixa de sê-
Esta não é uma definição de Criminologia, são requi-
-lo", e que "se ao final do percurso se sente esse desconserto,
sitos para seguir seu rastro até conhecimentos relacionados
é que se há entendido o que é Criminologia". 2 com estes elementos.
No entanto, observemos como o Poder e o que se costu-
Estes elementos, somente por estarem presentes, tam-
ma chamar de maneira ampla Criminologia, sempre andam de
bém não nos conduzem a aceitar determinada teoria como
mãos dadas; e a Criminologia e a Política também; existe ao
uma Criminologia. O ponto de vista axiológico, emancipa-
menos, um fio condutor, geralmente externo, que as enlaça3.
dor, humanista e progressista do pensamento crítico estará
É a forma com a qual elas têm contribuído para legitimar ou sempre alerta ante mudanças futuras.

2 Zaffaroni, E. Raúl, "La Criminología como curso", in, En torno a la Veremos que os requisitos mencionados estão presentes no
cuestion penal, Montevidéu, BDF, 2005. livro da Idade Média escrito pelos monges dominicanos Kramer
3 Diversos criminologos tentaram definições: Bergalli pede que se a e Spengrer, em 1484, El martillo de Ias brujas ou Malleus Male-
considere uma Sociologia do Controle Penal. Zaffaroni, como bom ficarum, que Zaffaroni considerou "a primeira Criminologia".
dogmático dos Direitos Humanos, fala de uma análise crítica dos sa-
beres, "não estritamente jurídicos", acerca da questão criminal, para a
redução da violência a eles vinculados. Aqui também os fins reduzem As bruxas, isto é, as mulheres às quais a Medicina deve conhecimen-
o conteúdo da definição. Não obstante, como veremos ao final, a Cri- tos importantes, se dedicavam a curar seus filhos e anciãos, e para tal,
minologia Crítica, hoje, tem se dedicado a analisar também os saberes utilizavam ervas com as quais realizavam experimentos; ou analisa-
jurídicos, não somente desde o ponto de vista da Dogmática, mas vam esqueletos de defuntos enterrados, todos procedimentos proscri-
também, das Políticas Penais que fazem parte da Política Criminal. tos pelo poder dominante da Igreja.

24 25
O livro podia ser considerado como tal, segundo o autor, — e que a temos assumido porque nos parece irrebatível
porque já se apresentava nesse texto a integração de quatro irá explicitando e limitando aqueles que forem, em cada
,
elementos fundamentais para compor uma teoria criminológi- Criminologia, os temas a pesquisar, os bens a proteger, as
ca: uma Criminalística (ou busca de indícios ou provas); um leis a promulgar, as políticas criminais a estabelecer, o con-
Direito penal, e um Direito Processual Penal, tudo isso repre- ceito de ordem e as sanciones a aplicar.
sentando uma Política Criminal destinada à consolidação do A este Poder, o percebemos oculto
poder punitivo. Efetivamente, seriam estes os elementos: ou legitimado por um suposto consenso
Uma teoria criminológica:0 quem social geral, tanto na Criminologia Clás-
são os maus (neste caso, as bruxas), e sica quanto na Positivista. O veremos si-
quem são os bons (os inquisidores);© nalizado e destacado pela Criminologia
uma pluricausalidade: a debilidade bio- Interacionista e rejeitado pelas teorias
lógica das mulheres, o diabo e o Poder abolicionistas; acusado, processado ju-
Divino em açãocão estereótipo das mi- dicialmente, e que a Criminologia Radi-
norias sexuais como causadoras dos ma- cal procura sempre redefinir; e debatido,
les sociais;(a deslegitimação de quem limitado, reformulado, minimizado e
Nits Christie, Noruega
Eugenio Rani Zaffaroni, não considere às bruxas como perigosas, humanizado pelas Criminologias Crítica
Argentina
e que, portanto, desafie o poder. e de Direitos Humanos.
Uma teoria processual, criminalística e penológica:
2 Quanto ao que nos diz respeito, adiantamos que se-
a Inquisição. guiremos sustentando uma Criminologia como Teoria Crí-
Uma Política Criminal baseada na eliminação física tica do Controle Social, tanto o Controle Social formal
daqueles que usurparam o poder do saber, e se opuseram, quanto o informal', que hoje deve redefinir-se no contex-
por isso, ao poder imperante. O que, pelas milhares de mu- to da chamada Criminologia dos Direitos Humanos. Uma
lheres que foram exterminadas em virtude desses processos, vez que, esses Direitos Humanos são, atualmente, e por
determinou, talvez, o maior feminicídio da Historia'. sua acolhida internacional, um guia estratégico e legitima-
E, qual é, em cada caso, o Poder imperante? Pesquisas Criminológicas da Universidad dei Zulia, 1974. Claro que na-
quela época, Christie era basicamente interacionista, mas essa definição
"Poder é o poder de definir" de poder tem a capacidade de compreender todos os tipos de poderes
Ao longo deste Manual, esta definição de Poder, a que se pode encontrar no âmbito criminológico.
Como sustentamos em nosso livro Criminología de Ia liberación, Mara-
qual devemos a Nils Christie, desde o já longínquo 1 9 736
caibo, Instituto de Criminologia, Dra. lolita Aniyar de Castro, Universi-
dad dei Zulia, 1987 (Criminologia da Libertação — Coleção Pensamen-
5 De antemão, não significa que Zaffaroni aplaudira sua estrutura ab-
to Criminológico n" 10, 1' edição, 2005, Ed. Revan, Rio de Janeiro,
solutista e feminicida, que, além do mais, por sua, neste caso, sul
(N. do TI), Bergalli falava de uma Sociologia do Controle Penal, mas
generis busca causal-explicativa, era própria do Positivismo.
Christie, Nils. "Definición del comportamiento violento", in, Aniyar de esta definição, a nosso entender, exclui, ou pelo menos ignora, o guia
6
axiológico, e permanece no terreno da Sociologia, sem aceder às cons-
Castro, Lola y Tineo, Audelina (comps.), Los rostros de Ia violencia,
XXIII Curso Internacional de Criminologia, vol. I, Maracaibo, Centro de truções necessárias para se alcançar o progresso no terreno humanistico.

26 27
do para a construção de uma contenção justa, dentro de Nossa Criminologia é normativa (considerando não "o
uma sociedade justa para todos. que é", mas "o que deve ser"), da mesma maneira que o
Ratifiquemos que o tema do método que cada uma Direito Penal deve ser menos normativo e mais consciente
adotou é importante. Sem isto, tudo parece uma confusa da realidade. A robustez da nova Criminologia, assim enten-
aglomeração de explicações, termos, decisões, denomina- dida, estará enraizada na transdisciplinaridade. Uma de suas
ções. De fato, tem-se falado e escrito sobre "Criminologia tarefas é reconstruir a unidade perdida do conhecimento,
convencional", sobre "Nova Criminologia", sobre "Cri- que uma vez esteve enciclopedicamente integrado pela Mo-
minologia Radical", sobre "Não Criminologia" e até sobre ral, a Política, a Ciência e a Estética.
"Anticriminologia". Contudo, não se diferenciam no aspec- Esta transdisciplinaridade deveria reunificar a Sociologia
to essencial, que é sua epistemologia. e a História do Controle Penal e seu Direito: o estudo transver-
O que nos parece que falta falar ordenadamente para sal, e sempre crítico, das que vem sendo consideradas condu-
orientar a quem se inicia no estudo destes pensamentos é a tas delitivas ou condutas desviadas em seus diferentes lugares,
história das criminologias. Uma história com perspectiva críti- períodos e sistemas. Ou seja, Psicologia Social, Sociologia,
ca, ou seja, uma história que não se compreenda senão visua- Psiquiatria, Biologia, Fisiologia, em seus momentos de maior
lizando-a nas tendências e contraforças relativas à concepção auge; a Teoria do Estado, a Filosofia Política, especialmente
de uma sociedade justa e livre, e nas metodologias utilizadas, pelo tema do direito a castigar; a Economia Política, a Teoria
seu rigor, sua função legitimadora e sua autorreflex'ão. da Comunicação, a Semiologia, a Sociologia das Religiões, a
A História em geral, seus momentos críticos, seus siste- Política Educativa. Tudo isso iluminado pela busca, em cada
mas de dominação, seus sistemas produtivos, a prevalência caso, da "conjunção do ser e do dever ser social".
de uns interesses em lugar de outros (não só os interesses po- A história das Criminologias deve, então, ser contada:
líticos e econômicos, mas também os religiosos, os étnicos, cronologicamente;
os profissionais, os de modas intelectuais, de populismos e de
b) seguindo suas razões e impulsos históricos;
desenvolvimentos sociais específicos) vão determinar as crimi-
nologias que surgirão e predominarão. levando em conta a função dos elementos políticos e
econômicos presentes em determinado momento;
entendendo-a. como uma consequência de qual é o
conceito de Estado que a sustenta (se é gerado por con-
8
Saio de Carvalho tem um Antimanual de Criminologia (Editora Saraiva, senso ou por conflito), e da maneira como se produz o
2008) (que é de Criminologia dos Direitos Humanos, e, portanto, garan- conhecimento;
tista). Juarez Cirino dos Santos, no Brasil, denomina a sua criminologia,
detectando suas marcas no tecido social, nas institui-
como Criminologia Radical. Vincenzo Ruggiero tem o seu Delitos de
los débiles y de los poderosos. E jercicios de anti Criminología (2005), e ções, nas políticas públicas; e, por último, mas não me-
desde o nascimento dos Movimentos Radicais (URC) e (NDC) nos anos nos importante:
1970, vários grupos falavam de anticriminologias e antipsiquiatrias. Por olhando sua relação com os Direitos Humanos.
exemplo, o livro de Stanley Cohen se intitula Against Criminology.

28 29
rr•

Sendo assim, uma Criminologia crítica se confundirá com Nível Nível Nível . Nível
o Direito Penal Crítico e seus discursos progressistas sobre o epistemológico criminolefegico interpretativo político
Bem Jurídico Tutelado (Bustos); com os Direitos Humanos em
suas dimensões variadas e selecionadas (Baratta, Zaffaroni,
Método dedu- Administrativa
Schwendinger, Aniyar). E tudo isso, com a organização ne- tivo, lógico- Criminologia Política Criminal Criminologia
cessária de temas e ideias, prescindindo do supérfluo. -abstrato, Prevenção
Clássica tia repressão
Seu enfoque deve ser de compreensão, de propósito e especulativo geral
de significado, tanto das teorias quanto do controle que elas
mesmas têm gerado e ainda têm capacidade de gerar.
Criminologia • Crimmologia
Método indu- Acting out (atu- da-repressão .
positivista
tivo, ação) (ou ressociali-
Quais são as Criminologias? t Clínica
causal-explica- Prevenção zação,.
Estrutural-fun-
Os quadros abaixo têm o objetivo de apresentar diferen- tivo Geral e Especial reintegração,
cionalista
ças, objetivos, métodos e consequências. reeducaçao;

Abolicionismo
As Criminologias e seus objetos de estudo Criminologia novos bens
Construcion ismo Interacionista Reação Social jurídicos pro-
tegidos
Delito Criminologia Clássica
Materialismo . Teoria política
p
Criminologia Crichinologia •
Criminologia Positiva histórico do Controle
Delinquente Radical da Libertação
Social ,
(formal-informal)
Delinquência Criminologia Organizacional
Criminologia
Criminologia "Sistema" de do Controle
Reação Social Criminologia Interacionista
Teoria Crítica Crítica Justiça Penal Social e dos
• Direitos Hu-
Criminologia Radical, Crítica, manos
Controle Social dos Direitos Humanos

As criminologias antigas
Por conta do seu surgimento anterior, incluímos como
antigas a Criminologia Clássica, a Positivista e a Organiza-
cional, mesmo que todas elas coexistam atualmente com as
novas criminologias.

30 31
. A Criminologia Clássica, como se verá mais adiante, mente com os Direitos Humanos e as Garantias, enfocando
exercerá uma domiriWão de tipo legal, .da mesma maneira política e socialmente os aparatos e operadores do chamado
que será o Direito Penal o qual exercerá o controle legal dos Sistema Penal — incluído o Direito Penal, logicamente —,
discordantes. dando assim início à Criminologia dos Direitos Humanos.
A Criminologia Positivista, baseando-se no prestígio e Zg'-'t,cfl'PeePWW-1:
frenuriologeá•Z•!:IRklatiViciade i::',fs. -:"Labpiliii P l uralismo -
predomínio que a Ciência teve, tentará dar bases "científicas" ;!.. CiaN47i.~ g y .it.V41 Si.%) b, .!.;:iviir.i4.,:pi, ;i:!, , s, t5;4.-r
:int tmit . rit s c 1 a
;approac cultua,
a novas
_ . políticas públicas, em um momento no qual o contro- à j
• t
le social se via obstaculizado pelo caos posterior à Revolução C A
3:~~1:infes ritys‘V.AtreW X-95~Tett i:124",X.Pr, :r :
Francesa. Incluirá os moti.ços ou causas da transgressão vistos • Xrinnedologiá1 • Poliétign ,tienêncuameotiti,cat,r.25RtStin ,Rlocura.a'ss
g.,5TONw.;-':z.g- tt4W2 JeS.J.4,4, ,
no sujeito transgressor concreto. O que na Criminologia clí- k-eiltica , WitétOsei lup:iciel no . -.- meals wa,
az,s
Nynikgçn.' • ç .' '‘',.•‘... iVje
nica significará ver o transgressor como anormal, doente ou `..
,- Wrággla 'i-r^.4' '
.. n'-' . V _
diferente; e incluirá, posteriormente, os elementos suposta- _. 1 V " -. 01); . ' a aftrik
mente causais do entorno social. c`al'i.P2'•';!,-,
:r-L ,:j1:7:,,.&:',*',
:•;?;),:eèi it-L5 ;.* tra72,:i'?';n; 7:g:':( \j .57.;',,,
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;. 9teminologial„ Interesses :. ri noaiia,4 a.;Ét .' Medidas.e:Nt
PP,k5.-Mt:, st
, Ji::4';241,Zgt,',;f:::::;
A Criminologia organizacional, que é própria dos ope- Idos, Deréitdswi %erriánctpatdifti vit.' ma :$ériã'f'llfêtn"
kittkfrtrigOon'ilt-'• ,eiac,;45",!...E-try± .- .,: 7, J.,,, .• ;z:1 '' r,-.M!'NT:.:• • ,.,
radores do aparato do chamado Sistema Penal (polícia, tribu- r generaliz“, v, D!reitona ,n,,ai ivas „.
:':fiuriiálitir j'. ,.4-0-?,:, ,. 4/ ek..,.4t
nais, juízes, sistema penitenciário e todas as instituições que ri ?MiI nmo e'''',4-4, .c.1
,OS,.. ireitbsr:
lhe são conexas), e que opera em função de seus objetivos
t' do.:? :A:
e critérios, analisa sua efetividade e propõe reformas.. Em c •mo 1nVtg bOjieto t
determinado momento a denominamos "gatopardista", pelo ; ;n jon .Prt.r t:S'
ti_ •!. ;.e)corrio3limite,
fato de que era necessário "mudar as coisas para que nada
mude".

As novas criminologias
A Criminologia Interacionista enfocará o processo das
definições legais graças aos poderes que os grupos sociais
organizados conseguiram obter. Basicamente, se refere à Re-
ação Social.
A Criminologia Radical centrará sua atenção no Contro-
le Social a partir de princípios teóricos marxistas.
A Criminologia Grítica, partindo do materialismo histó-
rico e da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e, portanto, da
pós-modernidade, enfocará o Controle Social desde o ponto
de vista crítico fará crítica cultural, e se vinculará estreita-

32 33
CAPITULO III

A CRIMINOLOGIA CLÁSSICA
O marco histórico da primeira criminologia moderna. O
rnntratlialicrnn: n nn.cr¡rnantn do rctnin moder no sobre a
suposta base do Contrato Social, ou modelo do Consenso
como origem do controle social formalizado. Criminologia
Clássica, Direitos Humanos e reflexo institucional.

O marco histórico da primeira criminologia moderna


Transportemo-nos ao fim do Regime Feudal, do período
monárquico e do Direito Divino dos Reis.
Durante a Idade Média, a Europa estava praticamente
dominada pelo Império Romano. Com o declínio deste po-
deroso império e as invasões dos povos bárbaros, o território
se fragmenta e crescem os temores sobre os inimigos: mora-
dores do campo e das cidades procuram formas de proteção.
Na pirâmide social da época, no mais alto poder estavam o
Rei, seguido pelo Alto e Baixo Clero, seguidos pelos Nobres,
classe que se caracterizava pela possessão de terras. Essa é a
época do Feudalismo, na qual se consolida a submissão de
determinadas pessoas (servos) ao feudo (ou terras de bosques
e cultivos), cujo chefe, o senhor feudal, terá tanto obriga-
ções de proteção como direitos sobre os novos súditos. Es-
tes, por sua vez, estavam obrigados a prestar serviço militar
e a pagar impostos e dízimos ao Senhor (identificado como
"Nobreza"), e à Igreja.
Não era escravidão, mas uma forma análoga. Um sis-
tema autoritário no qual, todos os direitos, incluídos os de
vida e de morte, e até o ius primae noctis ou direito de
possessão sobre as virgens dos servos da gleba, eram atri-

;:
buídos aos Senhores. Eles eram o poder que nomeava e As Cruzadas, as guerras e as pestes; o esgotamento das
retirava reis. terras, a escassez de alimentos, reduziram a população euro-
Além da nobreza territorial, existiam os "vilãos" ou mo- peia e foram deteriorando, ao longo do tempo, o poder eco-
radores das vilas, dedicados à agricultura. Uns eram os servos nômico dominante. Os reis, a nobreza, os senhores feudais,
(chamados "da gleba"), e outros, os camponeses livres. Os não podiam seguir sustentando seu regime econômico sem
servos não eram donos de suas terras. Formavam parte delas, fazer alianças com os burgueses, donos do dinheiro.
à qual estavam atrelados, ao ponto de que quando eram ven- A França era o país mais indicado da Europa para a
didas, os servos eram vendidos junto com elas, automatica- modernização política do Estado,' porque era um país uni-
mente. Não podiam abandoná-las, nem sequer casar-se sem o ficado, com um poder também centralizado e um território
consentimento do dono dessas terras. Além disso, tinham que bem delimitado'.
pagar pelas terras que cultivavam e servir gratuitamente ao É assim como o feudalismo alcança seu ponto culmi-
proprietário do feudo, o senhor feudal. Os camponeses livres nante no século XIII; e é a partir de então que se inicia sua
podiam mudar de lugar, casar-se, e transmitir seus bens. Não decadência.
obstante, deviam pagar ao Senhor impostos em dinheiro ou
Entre 1789 e 1799, ocorreu o processo denominado de
em gêneros (grãos, animais etc.) pelo uso da terra.
"Revolução Francesa", o qual se inicia com a abolição da
Quando os excedentes de produção ampliam o inter- monarquia francesa, à raiz do derrocamento de Luis XVI e
câmbio comercial para além das fronteiras do senhorio, essas da proclamação da I República; e culmina com o golpe de
atividades comerciais fazem surgir uma nova classe, os co- Estado de Napoleão Bonaparte3.
merciantes ou "burgueses" (assim chamados por provir' dos
No século XVI, o jurista mais destacado da época — Jean Bodin — firma
"burgos" ou cidades), os quais também deviam pagar tributos
bases ao definir o que era a soberania do Estado. Nesse momento, o fez
aos senhores. Essas cidades ou burgos eram ao mesmo tem- para legitimar o poder absoluto de Enrique III. Para Bodin, a unidade so-
po espaços de defesa e de comércio; e conforme passava o cial natural, da que surge o Estado, é a família. O Estado é uma sociedade
tempo, nos séculos XIII e XIV, foi se desenvolvendo uma nova secundária ou derivada, mas é uma classe distinta da sociedade. Um Es-
sociedade e uma nova classe que aspirará a novos direitos. tado, diz Bodin não pode existir sem soberania. Bodin define a soberania
como o poder supremo sobre cidadãos e súditos, não limitado pela lei.
Um século, aproximadamente, será necessário para que o
Esse poder compreende o de criar magistrados e definir suas funções; a
processo de modernização política avance. Esta nova cias- L capacidade de legislar e anular leis; o poder de declarar a guerra e fazer a
se pressionará para que se facilite a abertura das cidades ao paz; o direito a receber aPelações e o poder de vida e de morte. O concei-
mercado externo, que se reduzam os tributos e se garantam to de cidadão, como pessoa possuidora de direitos, não existia até então.
Ver, entre outros autores, Copleston, Frederik, Historia de la Filosofia, T.
formas de comércio seguro; ao mesmo tempo que se realize
III, Barcelona, Anel, 1985, pp. 308-309; Zarka, Yves C. (dir.), Jean Bodin:
urna centralização da administração de justiça e igualdade das Nature, Histoire, Droit et Politique, Paris, PUF, 1996.
normas em territórios mais amplos, que a permita desenvolver 2
Skinner, cit. por Melossi, Dario, El Estado dei control social. Un es-
seu trabalho para além das fronteiras imediatas. E como con- tudio sociológico dei concepto de estado y dei control social en ia
sequência, garantias de que os que violem essas normas sejam conformación dela democracia, México, Siglo XXI, 1992.
3
Influem tanto a incapacidade das classes governantes (nobreza, clero e
castigados onde quer que essa transgressão tenha se ocorrido.
burguesia) para solucionar problemas de governabilidade, como as cri-

36 37
Significativamente, um dos primeiros acontecimentos rem geradas o que Arnaud denominou de "as regras do jogo
que geraram seu início, o festejado 14 de julho, foi a de- na paz burguesa".
nominada "Queda da Bastilha" — a Bastilha era uma prisão Os filósofos pré-revolucionários, Hobbes e Rousseau,
de reclusos miseráveis, que são postos em liberdade —; dessa se encarregaram, desde cedo, de construir uma teoria para
maneira, os setores despojados de poder também lutam para explicar e legitimar o Estado Moderno. Este estaria baseado
que suas necessidades e interesses fossem levados em conta. É no Pacto (Hobbes, 1651)5 ou no Contrato Social (Rousseau,
interessante se perguntar por que a massa insuflada começou 1762). Segundo essas teses, os "cidadãos" (nova categoria
pela liberação de presos de uma prisão, que, desta maneira se social que significa "conjunto de indivíduos dotados de di-
converteu em uma protagonista a mais desses acontecimen- reitos"), teriam se reunido virtualmente para delegar parte de
tos, quiçá suspeitando das razões pelas quais essas pessoas sua liberdade natural a um Estado moderno que teria a ca-
haviam sido relegadas a calabouços por uma obscura justiça pacidade — consensualmente sustentada por esta hipótese de
absolutista4. representatividade geral — de fundamentar a Ordem que não
O poder econômico até então im- existiria em um estado de natureza, e de exercer a violência,
perante, com seu consecutivo poder "direito a castigar" (que seria a expressão legitimada do
político, abre caminho para a ascensão poder punitivo do Estado) aos transgressores. Isso se daria
de uma nova classe econômica. Esse mediante o estabelecimento de normas legais. Tratava-se,
processo não se fez sem sangue, e a portanto, de estabelecer um Estado racional, e moderno, ba-
guilhotina foi, durante um período, um
5 Thomas Hobbes (Leviatán, México, Fundo de Cultura Econômica, 1940)
exemplo das novas ferramentas utiliza-
entende o Leviatã como um Commomvealth ou Estado, civitas em latim
das pelo poder nascente — sem dúvida, "que não é outra coisa que um homem artificial, mesmo que de maior
ainda influenciado pela violência tradi- estatura e vigor que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi cria-
Thomas Hobbes: cional do Antigo Regime — para con- do", já que "o homem era um lobo em relação aos outros homens". Esse
Leviatã (1651) solidar seus princípios revolucionários. Estado não era um objeto passivo da vontade do Príncipe ou dos povos,
mas sim um sujeito ativo que devia e podia decidir o que tinha que ser
Paralelamente, surgem os sinais legais do que serão as feito. Em 1762 Rousseau publica seu livro que se refere a um Contrato
democracias ocidentais posteriores. Começam, pois, a se- Social, que, segundo ele, seria o vínculo que existe entre o soberano e os
súditos. Ele descarta que esse vínculo se baseie na força ou na submis-
são; pelo contrário, os homens voluntariamente teriam renunciado a um
ses econõmicas, os impostos excessivos que os camponeses pagavam, o estado de inocência natural para submeter-se às regras da sociedade, em
surgimento das teorias do I luminismo e até mesmo o exemplo da guerra troca de benefícios maiores, Para Rousseau, no homem em estado natural
de Independência dos Estados Unidos. A influência desse movimento predominam dois sentimentos positivos básicos: o "amor de si". isto é,, o
sobre outras nações europeias despertou uma oposição ao sistema ab- instinto de autoproteção e a piedade ou "repugnância pelo sofrimento
solutista conhecido como Antigo Regime. No mesmo ano de 1789, os alheio". Sua teoria é mais social que a de Hobbes, já que fala da submis-
colonos norte-americanos publicaram sua Constituição. É, sem dúvida, são à vontade geral. Recentemente, Rawls (1921-2002), elaborou uma
início da Historia Moderna. teoria contratualista, segundo a qual, sob uma hipótese imaginária de seu
4
Ver Garcia Ramírez, Sergio, "Estudio introductorio". In: Beccaria, Cesare, estado original, seres racionais entrariam em acordo para estabelecer os
De los delitos e las penas, México, Fundo de Cultura Econômica, 2000. princípios generais da Justiça (Teoria da Justiça).

38 39
seado em uma Economia Política, também racional, cujo O contratualismo se popularizou, pois havia pergun-
modelo ideal era o mercado. tas que antes somente encontravam respostas através da re-
ligião. Encontrou-se assim, nos filósofos pré-revolucionários
Eram, pois, teorias "contratualis-
do Iluminismo "a forma mais atrativa de completar o vazio"
tas"; e os três princípios ideológicos e
que havia sido preenchido, até então, pelas explicações
políticos da Revolução Francesa podem
religiosas sobre as questões morais, e pela questão da auto-
também ser interpretados da maneira
ridade, a qual será vista a partir desse momento como urna
como se concebiam os contratos civis:
criação de seres humanos, e não somente como um produto
Jgualdade entre as partes e Liberdade
de abstrações extraterrestres8.
para contratar. A liberdade burguesa _
é então, o mecanismo que defende o Os Estados considerados assim,
indivíduo proprietário contra a injusti- como provenientes de um Pacto Social,
Jean Jacques Rousseau:
ça, .o terror, "a desordem e, sobretudo, estão baseados no que chamaremos
O contrato social
a violência. E Fraternidade, para justi- (1762)
"modelo do Consenso".
ficar a igualdade nascente e, ao mes- Isto quer dizer que, independente-
mo tempo, preservar a Ordem legal que devia ser instituída. mente das funções que esse Estado con-
Por isso, Pavarini€ definiu a Criminologia como uma ciência sensual cumpriu na história imediata, é
burguesa, nascida com a aparição do sistema capitalista de importante apontar que, pela primeira
Massimo Pavarin e,
produção. Claro que, desde Hobbes, se estabelece a dife- vez, ainda que se tratasse de um Con-
Itália
rença — que com frequência não distinguem nossos políticos trato ou de um Pacto Sociais de caráter
ou juízes — entre Lei e Direito, que não são a mesma coisa'. virtual ou hipotético, tentou-se justificar o Poder com uma
vontade que se criava de baixo para cima, e não o contrário.
6 Pavarini, Massimo, Control..., op. cit. Porque ninguém desenvolveu
com maior precisão essa Criminologia em suas origens históricas, as
Tratava-se, pois, de derrotar o autoritarismo punitivo, posto
características descritivas da Criminologia clássica, que incluímos neste ao serviço do "interesse de Estado", de classe, ou de raça9.
Manual, provém centralmente deste autor (lntroduzione alia Crimino-
(ogia, Firenze, Le Monnier, 1980), e da citada obra: Control y domi-
nación. Essa teoria se vincula também estreitamente a seu livro, escrito
com Melossi, Dano, Carcere e fabbrica, Circere e fábrica: as origens do Ver Limodio, Gabriel, Principios de Derecho privado ii, 2011. Certa-
sistema penitenciário (Revan, 2' ed., 2010) [N. do T.I. Ver igualmente mente, tais noções devem ser interpretadas sincronicamente (no mo-
Melossi, Dano, El Estado..., op. cit. mento histórico de 1804), a fim de não atribuir ao legislador propósitos
7 "As palavras lex e jus, Lei e Direito, se confundem com frequência, e reacionários fora de contexto. Para instituir a "paz burguesa" e garantir
não obstante, raramente poderá existir duas palavras de significação a liberdade do indivíduo-proprietário, o Código Civil recorre à noção
mais oposto. Direito é a liberdade que a lei nos permite, e leis são jurídica de "ordem pública" e à noção moral de "bons costumes".
essas limitações mediante as quais concordamos mutuamente em res- Como disse Garcia Ramirez, Sergio, op. cit.: "O Direito Penal que
tringir nossas liberdades recíprocas. Lei e Direito são, por conseguinte, encontraram era atroz, desigual e injusto".
tão diferentes como proibição e liberdade, que são opostas. Assim Na realidade, como veremos, gostaríamos hoje, de regressar à época
afirma Hobbes, Thomas, Elements of Law, Libro II, Madrid, Centro de do contratualismo, que representa o modelo de Direito Civil, onde os
Estudios Constitucionales, 1979, p. 364. vínculos emanam do acordo e não da força institucional.

41
40

A
A Criminologia que esses Estados criaram e que lhes Esses Códigos e princípios legais incluiriamw:
deu base de sustentação, isto é, as que proveem a sua legiti-
O Princípio da Legalidade, para assegurar o espaço
midade, são as Criminologias do Consenso.
da liberdade que se mantém depois do Pacto Social: poucas
Isso significa que nem os cidadãos, nem os criminólo- leis, claras e inequívocas;
gos, supostamente, podiam ter uma posição crítica sobre os
princípios que sustentavam essa ordem, em aspirar a uma A lrretroatividade da Lei (para o presente e para o
ordem alternativa: o suposto consenso pressupunha a tam- futuro);
bém suposta representação de todos os cidadãos na hora de c) O Livre Arbítrio, que garantirá a genuinidade do con-
se formular políticas públicas de Lei e Ordem. trato social. Se todos são iguais (não se trataria de delinquen-
tes doentes), todos são responsáveis. Portanto, não interes-
Criminologia Clássica, Direitos Humanos e reflexo
sam as causas ou motivos da infração;
institucional
Para começar, vamos esclarecer que entendemos que A Codificação, para assegurar que o cidadão tenha,
todo processo de definição de regras ou de condutas repro- fácil e sistematicamente, o conhecimento dos limites da con-
váveis ou negativas, e toda formulação de políticas que te- duta permitida;
nha a ver com o manejo político e o controle das transgres- Ej)A Interpretação disciplinada da Lei (Dogmática e Ju-
sões, e, portanto, com a Ordem e o Controle Social, é uma risprudência),_para evitar as contradições;
Criminologia.
A Equivalência entre Delito e Pena ou "proporciona-
Temos que considerar o novo sistema em sua dimensão
lida e" (a liberdade será vista como uma mercadoria: isto é,
sincrônica ou histórica, assim como o fato de estar repre-
tempo de vida que se_pága pelo delito cometido)" Esta pro-
sentado em um Direito Humano fundamental para seus ob-
porcionalidade, como se verá, só é questão simbólica, por-
jetivos históricos: a liberdade. Esta liberdade, que agora se
que não há critérios matemáticos possíveis para estabelecê-
teria frente ao poder absoluto, garantiria o desenvolvimento
-la, e sempre será reflexo de uma valoração subjetiva sobre
sem obstáculos do mercado nascente, e estaria baseada na
a base da importância que têm os bens jurídicos lesionados
"segurança jurídica que as leis garantirão".
a partir da ideologia dos legisladores;
A Criminologia Clássica se reflete muito claramente nas
instituições. A classe emergente se defende então do passado Garantias processuais, para assegurar os direitos.
mediante leis que servirão de muro de contenção ao poder Tudo isso, que se pode resumir no conceito de Seguran-
político. Particularmente, se reflete no nascimento e na es- ça Jurídica, contribuiria para a previsibilidade do livre jogo
trutura dos Códigos Penais Liberais. do mercado que começa a se desenvolver. Sem dúvida, tra-
10
Ver Pavarini, Massimo, Introduzione..., op. cit. Pavarini, como dissemos,
é o autor que melhor interpretou a razão histórica e econômica do nasci-
mento dessa Criminologia; por isso, este capítulo o cita amplamente.
11
Ver as obras citadas de Massimo Pavarini.

42 43
ta-se do nascimento do Direito Positivo em sua mais refinada de sanção mais humano, parecia, além disso, ser o meio
aparição na História. mais inócuo e mais seguro para medir a proporcionalidade
Mesmo que tradicionalmente se estude esse conjunto entre delito e pena". Mesmo que a prisão, com o tempo, se
de regras sob o título de Teoria Clássica do Direito Penal, transformasse em um sofisticado mecanismo de destruição
elas também formam, de acordo ao que temos expressado humana, em instrumentos de "tratamentos cruéis, inumanos
anteriormente, uma Criminologia — pois é uma forma de e degradantes" — apesar de que tenham sido rejeitados pela
controle social, que poderíamos chamar de Clássica. Este é contemporânea Convenção contra a Tortura —, elas têm que
momento da dominação legal. ser vistas à luz dos elementos, sem dúvida, estruturais, que
foram sendo agregados à vida contemporânea.
Para que serviu, em poucas palavras, esse aparato de
um novo sistema de Governo e de dominação? Como ve- Não se poderia afirmar a intencionalidade de um siste-
remos no esquema a seguir, para a distribuição seletiva dos ma de dominação a partir das elegantes divagações que se
ilegalisrnos: fizeram nessa época para construir com esses instrumentos
um sistema democrático que, depois do obscurantismo me-
dieval, invadiria o Ocidente com novos ares de liberdade.
É, simplesmente, o que ocorreu na prática institucional pos-
Distribuição (seletiva) terior. Muitos dos princípios da Criminologia Clássica foram
Princípio da legalidade dos ilegalismos resgatados para a modernidade como um sistema de garan-
tias necessário para assegurar a Justiça e o Bem Comum, tal
como se imaginou na época.
Direito Direito
Direito Civil Direito Penal E, justiça seja feita, tem que se reconhecer que Cesare
Mercantil Administrativo
Beccaria — que era, é importante recordar, Marquês, ou seja,
proveniente da classe derrotada — foi o pai fundador do Direito
Único sistema normativo com sanções estigmatizantes Penal moderno. O reformador da Justiça. Seu opúsculo Dos de-

Veremos então como, atualmente, essa distribuição se- 12


De acordo com Gallo e Ruggiero, Delitos de los débiles..., op. cit., as
letiva permitirá submeter os estratos subordinados a um regi- prisões, de qualquer maneira, são uma fábrica de desvantagens psicofí-
me que é o do Direito Penal, com especiais características de sicas. Somente para fala! dos efeitos do espaço e do tempo, suspensos
pela vida em reclusão, que constituem a essência do próprio encarce-
sofrimento, de dano físico, psicológico e de estigmatização. ramento — sem levar em conta outras circunstâncias, como de saúde,
Ao mesmo tempo que tem servido para segregar, de maneira comunicação, nutrição, epidemias, características de nossas prisões —,
concentrada, a parte definida e entendida como a mais obs- foram determinados os seguintes efeitos: tal como acontece com os es-
cura e danosa da sociedade. A partir dos mais atrozes instru- peleólogos que descem às profundezas da terra, os ossos dos reclusos se
descalcificam em 39%- diminui o apetite sexual (o nível de testosterona
mentos de tortura e eliminação, das execuções públicas sob
baixa) e a secreção de cortisona baixa a um terço da média normal; e a
aspecto de espetáculos regozijantes para o povo, se passa frequência cardíaca diminui. O mais grave, segundo os especialistas, é
à prisão que, nessa época, sob o argumento de um sistema "a ausência do tempo", que, junto aos demais fatores, mina e destrói o
sistema imunológico e gera transtornos físicos e psíquicos imprevisíveis.

45
44
fitos e das penas, que chegou a ser um best seller, deixou uma Isso foi demonstrado na pesquisa de Chambliss sobre as
marca permanente nas políticas penais que configurariam a Po- Leis de Vagos (Vagrancy Laws), na Inglaterra e nos Estados
lítica Criminal da época. A Declaração dos Direitos do Homem Unidos, realizada para conhecer seu nascimento e trajetória,
e do Cidadão de 25 de julho de 1789 foi precedida pela disso- onde aparece a relação direta que houve entre a escassez de
lução dos poderes feudais e é a mão de Beccaria que está por mão de obra para o processo de industrialização que se ini-
trás do desenho dos princípios de legalidade, de igualdade, do ciava e a penalização da vadiagem que, em épocas críticas,
devido processo, da presunção de inocência, e até da mínima chegou a ser castigada inclusive, com as mais altas penas's.
intervenção do Estadon. Toda uma formulação garantista, repe- Essa pesquisa sobre a Law of Vagrancy na Inglaterra, diz que
timos, cara à Criminologia Crítica contemporânea. a primeira Lei, que é de 1349 — à raiz da escassez de mão
Essa história, não obstante, não de obra pelas mortes ocasionadas pela chamada Peste Negra
acontece sem que as transformações so- —, castiga também a quem dá esmola àqueles que podiam
ciais deixem sua marca obscura em ou- trabalhar, já que estes, diz a Lei: "na medida em que possam
tras classes. Eliminado o vínculo protetor, viver da mendicância, se entregam ao incorreto e ao vício, e
senhor feudal-servos da gleba, grandes às vezes, ao roubo e outras abominações".
massas de camponeses "liberados" e ca- A Lei foi também reformulada, talvez, com a finalidade
rentes, portanto, de ingressos e proteção, de que os indivíduos aceitassem trabalhos mesmo em troca
iriam engrossar as massas de mendigos de baixos salários.
Cesare Beccaria: Dos que se formaram como consequência. No século XVI (1530), são considerados delinquentes
delitos e das penas Deveriam, pois, como os autores citados quem não trabalhava, "para evitar que roubem aos comer-
disseram, "aprender a ser trabalhador", ciantes". Em caso de reincidência, as penas vão aumentando
para se incorporar, em troca de um salário, ao recém iniciado paulatinamente até a máxima penalidade de amputação de
processo de industrialização. uma orelha. E em 1535, os vadios reincidentes são decla-
Não existia mais servidão nem escravidão, uma vez que rados "inimigos do Commonwealth" e são castigados com
estavam proscritas, existia sim, uma sujeição material e le- pena de morte.
gal, já que à classe que mais adiante se denominaria "pro-
letária" (termo pejorativamente utilizado por sua capacidade
de produzir basicamente filhos), era obrigada a vender sua Ver Chambliss, Williani, "Elites and the Creation of Criminal Law".
In: Chambliss, William (ed.), Sociological Readings in the Conflict
força de trabalho para esse novo sistema".
Perspective, Reading, Addison-Wesley, 1973, pp. 430-444. Em sua
13 Ver Aniyar de Castro, Lola; "Rasgando cl velo de la política criminal pesquisa sobre a Law of Vagrancy na Inglaterra e nos Estados Unidos.
en América Latina, o el rescate de Cesare Beccaria para la Crimino- Ver também Hall, Jerome, Theft, Law and Society, 2' ed., Indianápo-
logía crítica". In: Actas dei Congreso Internacional Cesare Beccaria, lis, Bobbs-Mervils, 1952, que fez uma pesquisa similar (Carrier's Case,
Milán. Ver especialmente o trabalho bastante completo de Llobet Ro- de 1473) relativa aos carregadores de mercadorias secas, fundamentais
dríguez, Javier, Cesare Beccaria e el Derecho penal de hoy, 2' ed., para a indústria têxtil, a mais importante da Inglaterra naquela épo-
San José, Editorial Jurídica Continental, 2005. ca; e Quinney, Richard, Crime and Justice In Society, Boston, Little
14
Ver a análise completa de Pavarini, Massimo, Control..., op. cit. pp. 28 e ss. Brown, 1959, p. 535.

46 47
Chambliss alega que a adoção dessa lei nos Estados bres inocentes, uma vez que o valor fundamental era a apti-
Unidos, pela imprecisão do seu texto, permite à polícia fa- dão para o trabalho assalariado.
zer prisões de grupos de pessoas independentemente da sua ' Outras consequências, que permaneceram no Positivis-
índole. Sem dúvida, é um antecedente das já decretadas in- mo, foram:
constitucionalidades ou das felizmente abolidas Leis de Va-
gos e Meliantes latino-americanas, cuja ascendência mais a identificação do delinquente com o pobre;
imediata foi a "Lei de Vagos e Ociosos" espanhola. (3) do pobre como perigoso; e
No próximo capítulo nos referiremos particularmen-
do pobre como igual a delinquente e igtial a ini-
te a esta Lei de Vagos e Meliantes, que na Venezuela teve
os mais acentuados antecedentes de periculosidade, até se migo de classe.
transformar em uma lei-prova do Positivismo instituciona-
lizado, e que foi um verdadeiro exemplo de como as leis
podem ser criadas em benefício de determinados grupos e de
como os diferentes poderes utilizam essas leis para interesses
particulares.
No âmbito penitenciário, surgiram "Casas de Correção"
para aglutinar a mão de obra excedente e, quando escasseava
a mão de obra especializada, surgiram as "Casas de Trabalho",
orientadas a ensinar a disciplina da fábrica". Quando não se
necessitava de mão de obra, e esta era excedente, as prisões 1
eram apenas depósitos de terror, com um trabalho mais duro
e alienante. Isso obrigaria a classe proletária a aceitar as con-
dições e salários dos trabalhos fora da prisão.
Por isso, a chamada lei de less elegibility em que alguns
alegam que a prisão deveria estar dois pontos mais abaixo do
que o nível de vida exterior.
O sistema punitivo estará baseado então, em dois pila-
res: Educar para que se aceite a nova ordem; e Disciplinar,
para alcançar a inserção do proletariado na nova ordem.
O período dos séculos XVII e XVIII foi denominado por :
Foucault como "Período da Grande Internação". Nas casas
de correção haveria pobres culpados, e nas de trabalho, po-

Ver Melossi, Dano e Pavarini, Massimo, Carcel y fábrica, op. cit.

48 49
CAPÍTULO IV

DESVELANDO O CÁRCERE
PESQUISAS CRÍTICAS SOBRE A PRISÃO

Introdução: Pavarini e Melossi a partir de Rusche e Kirch-


heimer. Execução penal e força de trabalho. Três épocas na
história da execução penal. Relações entre cárcere e merca-
do de trabalho. Goffman e o controle total: as "Instituições
Totais". A prisão na mira de filósofos: Foucault, um filóso-
fo e historiador no campo criminológico. A territorialidade
do controle segundo Foucault.' O cárcere e a disciplina: o
panóptico de Jeremy Bentham. A contrarreforma penitenci-
ária. A cidade como panóptico e como instituição de con-
trole total. Para que serve a prisão hoje?

Introdução
A partir da Criminologia Clássica e da relação entre o
mercado emergente e o nascimento de sistemas formalizados
de controle, o encarceramento, o trabalho, a fábrica e a pri-
são começaram a ser elementos de um mesmo tecido.
Comumente fala-se de tentativas de reforma penitenciá-
ria e se deixa subentendido que ela obedece a razões huma-
nitárias ou que transita por instâncias científicas devidamen-
te formuladas. Reducionista seria negar que às vezes estas
variáveis também estão presentes nesses casos. Não obstan-
te, o que sempre tem se deixado oculto por conta dessas
razões é que a evolução da reforma penitenciária está bem
articulada aos interesses dominantes de cada época. Juristas,
Este capítulo foi publicado primeiramente em: Aniyar de Castro, Lola,
La Realidad contra los mitos, reflexiones criticas en criminologfa, Ma-
racaibo, Universidad dei Zulia, 1982, pp. 189-208. Para o presente
livro foram agregados alguns trechos.
sociólogos, criminólogos e mesmo filósofos têm contribuído proletário, que deve ser socialmente mais alto que o da pri-
para a necessidade de desmontar a ideologia construída em são. Quanto pior a situação carcerária, mais intimidará de-
torno ao direito de castigar e suas modalidades. Levaremos terminado grupo social [segundo a regra da /ess
Se a vida dentro da prisão é igual ou melhor que sua própria
em conta, especialmente, o chamado grupo de La Questione
vida, a ameaça de prisão não surtiria efeito.
Criminale e o filósofo e historiador Michel Foucault.
E agrega:
As pesquisas críticas que se fizeram sobre o tema, em
A história do sistema penal é mais que uma história do su-
geral, partiram de um trabalho, um pouco antigo, de Rusche
posto desenvolvimento particular de qualquer instilijção le-
e Kirchheimer2 e não podem se desvincular do trabalho clás-
gal. Ela é a história das relações entre as duas nações, como
sico de Goffman sobre as instituições de controle total, nem determinou Disraeli, de que se compõem a p_o_pulaçãoj os
do trabalho de Chapman sobre o estereótipo do delinquente. ricos e os pobres'. Estudá-la, então, fora do contexto global
Uma visão conjunta dessas pesquisas, que conflua na das relações de produção, conduzirá a apreciações falsas
75"
perspectiva da Criminologia, não mais como uma ciência da realidade, e permitirá que se façam afirmações tais como
causal-explicativa do delito e sua infração, mas como o co- as tendências à humanização das prisões, como se estas
nhecimento que se ocupa do controle total das relações so- fossem alheias ao seu contexto histórico.
ciais e da manutenção de um sistema determinado, ou seja, Rusche delimitou três épocas na história da execução
como uma ramificação a mais da planificação social, pode penal:
ser feita conciliando, como a seguir, os trabalhos de Goff- No princípio da Idade Média: as penas são pecuniárias;
man, Melossi, Pavarini, Rusche e Foucault.
Ao final do Medievo: estas penas são substituídas por
Execução penal e força de trabalho cruéis penas corporais e capitais•
As relações entre as crises econômicas e a demanda •:
0--)No século XVII: este sistema é substituído pela pena
por força de trabalho, por um lado, e a evolução da prisão,
privativa de liberdade.
as tendências à reforma e contrarreforma, por outro, foram
amplamente demonstradas. Também, a evolução da prisão Se estas fases da história penal se comparam às mudanças
e do chamado tratamento da delinquência estão fortemente na história social, encontram-se nexos surpreendentes'.
vinculados às características do proletariado. Rusche diz': Vejamos mais detalhadamente:
Qualquer esforço para uma reforma do tratamento do de- 1. Pena pecuniáha: No começo da Idade Média, o
linquente encontra seu limite na situação do estrato social mun o é fundamentalmente um mundo rural, escassamente
2 Rusche, Georg e Kirchheimer, Otto, Punishment and Social Structure, povoado. Existem muitas terras livres que permitem uma dis-
Nueva York, Columbia University, 1939. Em espanhol: Pena y estruc- tribuição bastante equilibrada da riqueza. Os delitos contra a
tura social, Bogotá, Temis. 1984. propriedade não são muito importantes, pois dificilmente um
3 Rusche, Georg, "II mercato dei lavoro e l'esecuzione della pena. Ri-

flessioni per una Sociologia deita Giustizia Penale", em: Dei delitti e
de//e pene: Rivista di studi sociali, storici e giuridici sulla questione Ibidem, p. 258.
criminale, Vol. II-III, Bolonia, 1976, pp. 319 e ss. Ibidem, p. 259.

52 53
camponês pode subtrair bens de seu vizinho que não possa cer seu trabalho. A economia decaiu. Procurou-se, então,
conseguir ele mesmo com seu próprio trabalho6. solucionar o problema mediante a coerção. A este novo sis-
A sexualidade e o ódio parecem ter sido os principais mo- tema, denominou-se Mercantilismo. "Teria sido uma cruel-
tores dos delitos. Para evitar a vingança privada e o desenca- dade economicamente insensata continuar acabando com
deamento de uma guerra, o legislador preferia a reconciliação -os delinquentes (...) a pena privativa da liberdade substitui
dos inimigos a um castigo como o atual. Até esse momento, 2É1 -r_i_a_upenas corporais e capitais. A "humanidade" substi-
como diz Schmoller, "os homens eram mais desejados que as tui a crueldade. Nos lugares de suplício surgem as Casas de
Mieis&
terras"7 . Quando o espaço vital existente ficou sobrepovoado,
"é determinada uma ruptura de classe entre ricos e pobres, nas- Com a Revolução Industrial na Europa, não obstante, as
ce uma classe de trabalhadores que não têm nenhum bem, que penas deixam de ser humanas (fins do século XVIII). Ocor-
competem reciprocamente até o ponto de fazer baixarem os reu, como se sabe, grande desemprego, foi a isso que Marx
salários". Hordas de mendigos são criadas, gerando desordem chamou de exército industrial de reserva. As Casas de Cor-
,social, revoltas. A criminalidade muda de aspecto; é produzido reção não eram mais rentáveis. "Quando os trabalhadores
um rápido aumento dos delitos contra a propriedade6. começaram a se oferecer voluntariamente em troca de um
pagamento mínimo vital, já não mereceram os gastos de re-
c2)Pena corporal: clusão e de custódia"". O cárcere não é mais um instru-
Como a pena pecuniária não é efetiva — dizem os autores — mento de intimidação, pois já não se está pior dentro que
pois não há nada que se possa tirar dos pobres, a pena é subs- fora. Mesmo que a tendência fosse regressar aos métodos
tituída pela flagelação, a mutilação e a pena de morte,. o úni- medievais, uma forma de tratamento mais humano já tinha
co que parecia construir certa defesa contra a criminalidade
se estabelecido na consciência popular, e não era sensato
da crescente massa de deserdados. A mais cruel fantasia não
é suficiente para dar uma ideia dessa justiça que prontamente instigar com tal provocação, uma situação que já era bas-
terminou com os vagabundos e incendiários assassinos (:..) tante revolucionária. Se a pena privativa da liberdade, o
e culminou com o extermínio dos proletários sem trabalho9. cárcere, sobreviveu, foi como um resíduo de uma época de-
terminada por grupos sociais que eram diversos entre si e já
3. Pena privativa da liberdade: Por volta de 1600 muda não compreensíveis aos olhos do presente. Mas sua função
a situação do mercado de trabalho. A força de trabalho ficou mudou e se adequou às novas exigências. As casas de tra-
mais escassa (havia mais mercados de consumo por conta balho forçado se converteram em lugares de novo tormento,
dos descobrimentos geográficos, existia um amplo fluxo de aptas para atemorizar até aos mais miseráveis'2.
mercados e se produziram epidemias e guerras, em especial
a Guerra dos Trinta Anos). Os homens se fizeram valiosos Mal alimentados (a pão e água), mal vestidos, o traba-
e preguiçosos, diz Rusche. Pensavam muito antes de ofere- lho era mais uma forma de tortura: deviam levar pedras inú-
teis de um lugar a outro, recebiam golpes, e coisas similares.
6 lbidem, p. 259.
lbidem, p. 529. '° lbidem, p. 531.
8 lbidem. " lbidem.
9 lbidem, p. 530. " lbidem.

54 55
Sobre esta elaboração de Rusche, foram construídas no- produtora de mercadorias. A ideia de retribuição por equi-
vas e mais detalhadas tentativas de análise desmistificadoras. valência encontra na pena de prisão sua realização máxima,
Pavarini, por exemplo, estudou a evolução do trabalho (isto é: __pois a liberdade impedida (temporalmente) pode representar
a forma mais simples de valor de troca".
trabalho produtivo, não produtivo e não trabalho) dos detentos,
em relação à estrutura económica, e começou dizendo que o Um segundo elemento era que o cárcere se estruturava
trabalho é "a questão central, enquanto que a instrução, a dis- sobre o modelo da fábrica, cujo princípio máximo era a "sur_
ciplina e a educação religiosa não são mais do que simples
projeções dos termos e das formas em que se vinha realizando
Havia uma contradição, afirma, entre pena-retribuição e •
historicamente a organização do trabalho obrigatório" 3.
pena-execução, que pode ser representada da seguinte forma:
Sua pesquisa se apoiou especialmente no período histó-
rico da formação do modelo capitalista de produção, isto é, Pena onio retribuição Pena como execução . .
o período da Economia Política clássica correspondente ao Momento do Direito Momento da disciplina
liberalismo. Reconhecia que nos sistemas avançados de ca-
Igualdade formal Desigualdade substancial
pitalismo esta análise devia ser utilizada com prudência. Por
outro lado, entendia que a opinião pública, cada vez mais Certeza jurídica Arbitrariedade do ato
influente nos processos de democratização e de eleições, as Segundo ele, era a contradição central do universo
conquistas do proletariado no processo da luta de classes, burguês:
a influência do poder político-religioso, o fenômeno da in-
A forma jurídica geral que garante um sistema de direitos
surgência política contra o. essencial do sistema, são .todas _Igualitários, se neutraliza por um espesso rol de poderes não
elas variáveis que têm qye ser levadas em conta para dar um _igualitários que propõem novamente assimetrias político-so-
enfoque contemporâneo da situação. ciais e econômicas, quê negam os vínculos formalmente si-
O primeiro elemento da análise de Pavarini tendia a de- métricos que se _deduzem da natureza contratual do Direito.
monstrar a correspondência que existia entre o delito realiza- Como explica Foucault, coexistem um direito e um não di-
do e uma quantidade, abstratamente considerada, de liber- reito, uma razão contratual e uma necessidade disciplinar's.
dade que se perdia como castigo. Essa correspondência, diz: Outro elemento que destacava em sua exposição é o
somente pode se produzir no sistema de produção capitalis- seguinte:
ta — refere-se ao seu nascimento histórico —, no qual todas_ se o trabalho subordinado é uma coação, a pena carcerária
as formas da riqueza social se reduzem à forma mais simples_ é o nível mais alto de coação (...) O cárcere supõe que a
e abstrata do trabalho humano medido situação material do prisioneiro é sempre inferior à do últi-
_ — . no tempo. A pena de
prisão se torna então, a pena por excelência na sociedade mo proletário. Se no sistema de produção há - perda de au-
tonomia e independência, na prisão essa situação de perda
13 Pavarini, Massimo, "In tema di Economia Politica deita Pena: I Rap- é o ponto mais intenso. A relação conceitual e de fato entre
poni tra Struttura Economica e Lavoro Penitenziario alie Origini dei Si-
tema Capitalistico di Produzione. Carcere ed Emarginazione Sociale", Ibidem, p. 268. Grifo nosso.
La Questione Criminale, n° 2-3, 1976, pp. 265 e ss. 's Ibidem, p. 268.

57
56
trabalhador e detento se concretizaria na seguinte afirma- homens. Essa é a dimensão real da invenção penitenciária:
ção: os detentos devem ser trabalhadores. Os trabalhadores a prisão como máquina de transformar o criminoso em vio-
devem se-r- ci-
e-tentosle. eS3t_nad0, irreflexivo (sujeito real), em detento (sujeito
Resumindo: Ideal), sujeito disciplinado, sujeito mecânico".
A pesquisa de Pavarini pretendia demonstrar as hipó-
Liberdade = valor de troca
teses implícitas no trabalho de Rusche, segundo as quais a
Cárcere = fábrica (ou subordinação disciplinada) prisão teria uma função "destrutiva" com finalidade terroris-
Trabalhador = detento ta quando havia excesso de oferta de força de trabalho, ou
Detento = trabalhador uma função "produtiva" com finalidade reeducativa, quando
Instituições de havia escassez de força de trabalho no mundo da produção.
Controle Total = preparação para o trabalho assalariado Entre esses dois extremos, e isto é o mais importante, se
colocariam as diversas experiências em matéria penitenciária
Sendo assim, a análise histórica tentava demonstrar que e as "invenções jurídicas" que surgem para isso, e frequente-
I o cárcere surgia como "meio de educação para o trabalho e mente entendidas como humanitárias e filantrópicas".
encontrava sua justificação como instrumento do mercado
de trabalho"n. A fábrica, por sua parte, era um modelo de Relações entre prisão e mercado de trabalho2'
j
\ qualquer instituição moderna na qual reinava o controle e a
Mercado Trabalho Função da Ideologia
subordinação da classe trabalhadora. Portanto, a escola, o de trabalho carcerário prisão penal
x asilo, o quartel, o manicômio, preparavam os homens para
I o trabalho assalariado'''.
Isso não quer dizer que a prisão tenha sido uma célula
Improdutivo Depósito
produtiva, isto é, que teve uma verdadeira utilidade econô- Mais demanda Pena
nao de orça —4
de trabalho intimidatória
mica. Sempre foi uma empresa marginal. Ela, segundo Pa- industrializado de trabalho

varini, não é verdadeiramente uma fábrica, somente a repre-


senta como modelo. A única finalidade, mesmo que atípica,
de produção que a prisão teve em sua origem histórica, e na
1
Menos demanda Produtivo Educação
Pena
qual teve êxito, é a de transformar o criminoso em (ou man- de trabalho
--4 para a
industrializado reeducativa
disciplina
tê-lo como) proletário. Como explica Foucault: 19 "O objeto
dessa produção não foram tanto as mercadorias, mas sim, os Um claro exemplo deste esquema é dado pela evolução
penitenciária nos Estados Unidos, na metade do século XIX:
lbidem, p. 270.
17
lbidem, p. 271.
IS
Foucault, Michel, "Le Grand Enfermement", Tages Anzeiger Magazin
25 de março de 1972, reproduzido em Defert, Daniel e Ewald, Fran
Pavarini, Massimo, "In tema...", op. cit., p. 275.
çois, Dits et Écrits, Paris, Gallimard, 1994, pp. 1165-1667. 21
lbídem, p. 277.
19 Ibidem.

58 59
public account ao contract co lucrativo para as prisões, mas, por ainda necessitarem
1. A prisão celular filadélfica (Newgate, 1776; Virgí- economicamente desse trabalho penitenciário, os empresá-
nia, 797; New Jersey, 1799; Massachussets, 1802; e Sing rios estabelecem o contract system. O capital privado trans-
Sing, a qual foi construída pelos presos no,sistema de public forma a prisão em fábrica e impõe aos reclusos a disciplina
do trabalho. E a p_assagem do artesão para o operário.
work) é modelo das relações de produção na primeira fase
do capitalismo. O trabalho não devia ser necessariamente Esse processo sofreu oposição por parte de algumas
tanto produtivo quanto instrumental no momento histórico forças sociais que temiam que esse tipo de execução penal
no qual se requeria transformar o criminoso em ser subordi- acabasse com o aspecto punitivo-terrorista da sanção penal.
nado. Assim, o sistema de subordinação que propõe o siste- Esta posição se apresenta vestida de humanitarismo, dizen-
ma penitenciário fundado no isolamento celular solitário, é do que o sistema de exploração privada (contract) embrute-
do trabalhador empregado na produção artesanal, na ma- cia o recluso, distanciando a possibilidade de sua educação
nufatura. O sistema de trabalho penitenciário nesse período moral-religiosa.
é o denominado de public account: a prisão se transforma A única exceção ao contract nessa época se encontrava
em empresa: compra matérias primas, organiza seu processo nos estabelecimentos do sul dos Estados Unidos, pois em
_produtivo interno e vende a manufatura no mercado ao pre- fins de 1850 houve limitações à importação de escravos afri-
ço mais conveniente. canos e isso fez com que usassem o leasing system, que era
2. O chamado "sistema auburniano" (de trabalho comum aluguel de detentos para utilizá-los nas plantações.
em silêncio) adota o sistema do contract: o empresário, que As organizações sindicais também se alinham contra o
contrata de fora, paga ao Estado um preço por cada dia de contract, pois o consideram competitivo; inclusive discute-
trabalho e por cada recluso empregado, e dirige a atividade -se sobre o trabalho dos reclusos (public work) em canteiros
produtiva dentro do estabelecimento até o ponto de que sua de obra ou estradas, por se considerar que esse trabalho de-
autoridade convive com a autoridade da própria prisão. O pro- veria destinar-se aos homens livres com dificuldades para
duto já não é artesanal e é o empresário que o vende para fora. obtê-lo.
Em 1807 a prisão de Massachussets muda seu sistema para o Com isso, o sistema de contract começa a desaparecer.
de contract, que é mais produtivo, dado o processo mais tecni- Em 1885 compreendia 26%. Até o ano de 1923 retoma-se o
ficado, de acordo com a evolução de inícios da industrializa- public account, o state use e o public work, que compreen-
ção: com a introdução da máquina, que barateia os custos e os derá 81% do trabalho penitenciário nesse mesmo ano.
preços, o aproveitamento económico da prisão diminui. Isso
Para esse processo contribuíram:
produz uma alta margem de desocupação da força de trabalho
carcerária. cip Á dificuldade que o capital privado tem de industrializar
processo produtivo na prisão, de modo que competis-
Consequentemente, baixa o padrão de vida da popula-
se com o progresso tecnológico.
ção carcerária, até o mínimo necessário para a subsistência.
A pressão e influência das organizações sindicais na
A reforma penitenciária é adiada e a pena volta a ser a ruína is vida econômico-política norte-americana.
da força de trabalho. O trabalho penitenciário torna-se pou-

61
60
No início do século XX, a prisão deixa, pois, de ser uma dicional e período de prova, assistência pós-carcerária, trata-
empresa produtiva. Resumindo: mento especial para jovens e para os que eram condenados
Pela primeira vez23 . Somente quando a situação econômica
Transformação do delinquente em melhorou na Europa, mesmo que mais em teoria do que na
Sistema auburniano um ser subordinado prática, o exemplo americano foi seguido. É a época de ouro
ou de trabalho comum Trabalho artesanal da reforma penitenciária.
em silêncio
Public account As "Instituições Totais"
Em 1968 Goffman24 definiu a chamada instituição
Trabalho coletivo não artesanal
Sistema filadélfico total como "o lugar de residência e de trabalho de grupos
Contract de pessoas que — amputadas da sociedade por um período
ou de isolamento celular
Empresa produtiva considerável de tempo — compartilham uma situação co-
mum _passando parte de sua vida em um lugar fechado e
• Separação entre cárcere e fábrica formalmente administrado". Mais adiante afirma: "tomare-
Aumento do controle social mos como exemplo explicativo as prisões, na medida em
global ou primário que seu aspecto mais típico também pode ser encontrado
Inicio do século XX
em instituições cujos membros não violaram nenhuma lei".
A.cidade como instituição total O caráter totalizador dessas instituições está simbolizado
na impossibilidade de intercâmbio social e de saída para o
mundo externo.
À diferença do que aconteceu na Europa com a Revo- Goffman divide essas instituições em cinco categorias:
lução Industrial no final do século XVIII, o panorama eco-
nômico geral dos Estados Unidos não era tão crítico. Havia Aquelas que buscam a tutela de incapazes não perigo-
sos (cegos, idosos, órfãos e indigentes);
muita terra livre; em vez de produzir desocupação, o desen-
volvimento industrial requeria mão de obra, todos encontra- Aquelas que abrigam incapazes que são perigosos
vam trabalho e os salários eram altos, havia possibilidade de para a coletividade, mesmo que não intencionalmente
mobilidade socia122. Para os mais pobres haviam muitas ins- (sanatórios antituberculosos, hospitais psiquiátricos, le-
prosários);
tituições de caridade e beneficência privada; a incidência de
delinquência era baixa. Como na época do Mercantilismo,
as prisões foram lugares rentáveis de produção que tinham 23
Ibidem, p. 533.
como fim reformar os detentos, os transformando, mediante 24
Goffman, Erving, Asylums. Essays on the social situation o( mental pa-
o trabalho, em "membros úteis à sociedade". Todo o siste- tients and other inmates, Nova York, Anchor Books, 1961. Seguimos
ma se orientava a isso: cursos de adestramento profissional, a tradução italiana: Asylums, Torino, Einaudi, 1968. Outros já haviam
higiene corporal, execução gradual da pena, liberação con- utilizado a expressão "instituição total": Rowland, em 1939 e Amitai
Etzioni, em 1957.
12 Ver Melossi, Dano, El Estado..., op. cit., pp. 531 e ss.

62 63
Instituições que alegam proteger a comunidade de pe- também uma incompatibilidade entre as instituições to-
rigos intencionais (prisões, penitenciárias, campos dé tais e a baixa estrutura de remuneração do trabalho, tal
concentração); como
- ela é entendida na sociedade externa, assim como
em relação a outro elemento fundamental da sociedade,
3 Instituições que, para desenvolver uma atividade, en-
contram sua justificação em nível instrumental (quartéis, a família 28.
naves, colégios, plantações coloniais, grandes fábricas);
A prisão na mira dos filósofos: Foucault, um
() Aquelas que se definem como "separadas do mundo"
filósofo e historiador no campo criminológico
(abadias, monastérios etc.), geralmente orientadas para
a preparação religiosa. A repressão e a perseguição judicial que se seguiram
Uma das características da sociedade contemporânea aos movimentos contestatórios do maio de 1968 francês iam
é que o homem tende a dormir, se divertir, trabalhar, em se agravando. De modo que, logo após escrever sobre a ex-
lugares diferentes, com companhias diferentes, sob autori- clusão social da loucura através da história, a partir de 1970,
Foucault colocou sua atenção28 no funcionamento do siste-
dades diferentes ou sem um esquema racional de caráter to-
ma penal. Em 1971, participou na formação do Grupo de
ta125 . Nas instituições totais estão desfeitas as barreiras que
separam essas três esferas de vida: todas as atividades estão Informação sobre a Prisão (G1P)30, no qual denunciava que
dirigidas por uma mesma autoridade, todas se desenvolvem 28 Ibidem, p. 41.
em contato com um enorme grupo de pessoas, são tratadas Alguns anos antes, a critica às instituições e a desmistificação da vio-
todas da mesma maneira e obrigadas a fazer as mesmas coi- lência humana em todas as suas formas foram expostas no Congresso
Internacional de Dialética da Libertação, em 1967, no qual participa-
sas; as atividades diárias estão programadas rigorosamente
ram o antropólogo Gregory Bateson, Stokeley Carmichael — líder dos
dentro de um ritmo preestabelecido segundo as regras fixa- Panteras Negras —, o filósofo Herbert Marcuse e o psiquiatra David
das a partir de cima e executadas através de um corpo de Cooper. O movimento da antipsiquiatria, como veremos, proporá a
representantes da autoridade; e todas elas orientadas a rea- subversão da ordem psiquiátrica tradicional, e efetuará uma critica
lizar o objetivo oficial da instituição. "O papel crucial das sem precedenteS às instituições totais. Ver Trillat, Etienne, "Una histo-
ria de la Psiquiatria", em Postei, Jacques e Quétel, Claude (comps.),
instituições totais é o de dever manipular muitas necessida-
Nueva historia de Ia Psiquiatria, México, FCE, 1987, p. 342.
des humanas mediante a organização burocrática de massas No prefácio da publicação dos informes do GIP Foucault denuncia-
internas de pessoas"28 . Outra característica é que existe uma va a opressão da classe dominante. As investigações realizadas não
grande diferença entre o grande grupo de pessoas controla- estavam destinadas a melhorar ou a tornar mais suportável um poder
repressivo, pelo contrário, estavam destinadas a atacá-lo, eram atos
das — chamadas justamente de "internas" — e um pequeno
políticos; apontavam a alvos precisos, a instituições que tinham lugar
staff que as controla. Os internos vivem geralmente nas ins- e nome, a responsáveis, a dirigentes. Tinham como objetivo derru-
tituições, com contatos limitados com o mundo, enquanto bar as barreiras do Poder, convocando a construção de uma frente
que o staff presta um serviço diário de oito horas27. Existe formada por detentos, advogados, magistrados, médicos, doentes,
funcionários de hospitais. Para Foucault, tratava-se de lutar para que a
" Goffman, Erving, Asylums..., op. cit., p. 35. opressão deixasse de existir e o primeiro alvo desse ataque tinha que
26 Ibidem, p. 36. ser a prisão. A primeira medida era dar voz aos detentos (Foucault,
27 Ibidem, p. 37. Michel, "Sur les prisons", l'accuse, 15 de março de 1971, reprodu-

65
64
no século XX se havia regressado àquele encarceramento gene- A prisão, dizia Foucault, era somente a ponta do ice-
ralizado que teve antecedentes no século XVII. berg. A parte que emergia funcionava como justificação da
Naquela época, não obstante, como vimos, encarce- sua existência; a parte escondida era a mais importante e a
raram-se sem discriminação em um mesmo lugar, doentes, mais temível. O que escondia esse iceberg?
vagabundos, doentes mentais, homossexuais e mendigos. Vigiar e punir", livro em que Foucault, que era filósofo
Além de delinquentes, pais dilapidadores, filhos pródigos , e historiador e não criminólogo, desenvolve sua tese, é um
etc.3' Contudo, desde a Revolução Francesa ficou estabele- marco para o entendimento da Criminologia contemporânea.
cido que os doentes mentais deveriam ficar em asilos e os Depois de sua publicação, é quase impossível não fazer alu-
delinquentes, na prisão. são a ela. Foucault indaga, com olhar de historiador e filósofo,
Foucault recorda que quando se criaram as prisões, as origens da prisão como instituição e analisa a utilidade de
estas tinham como finalidade a recuperação dos detentos. seu fracasso'''. Assim se refere a diferentes tipos de civiliza-
Supunha-se que o encarceramento, a solidão, a reflexão, o ções: as que reagiam frente a quem cometia delitos e crimes
trabalho obrigatório e as exortações morais e religiosas con- com o exílio, os expulsando da sociedade; as que torturavam
duziriam os condenados a se recuperarem. Mas o sistema e massacravam; e, outras, enfim, que encarceravam.
penitenciário, isto é, esse sistema que consistia em encar- Na Idade Média, por exemplo, a prisão não existia no
cerar pessoas, sob vigilância especial, em estabelecimentos sentido moderno. Era utilizada como uma antecâmara do
fechados até que os detentos se recuperassem, havia fra- tribunal: a pessoa imputada era presa para que seu com-
cassado. Esse sistema, para Foucault, formava parte de um parecimento fosse garantido, para, em seguida, matá-la, ou
sistema mais vasto e complexo, chamado sistema punitivo. aplicar outro castigo, ou para que pagasse por sua liberdade.
Nele, as crianças, os estudantes, os operários, os soldados A prisão era uma passagem para a morte ou para a liberdade
são punidos. Na realidade, segundo Foucault, somos puni- comprada com dinheiro.
dos durante toda nossa vida. A prisão não é mais que uma
parte do sistema penal e este último, não é mais que urna
op. cit., pp. 1293-1300. Coleção Ditos e Escritos, Editora Forense Uni-
parte de um sistema punitivo". versitária, Rio de Janeiro / São Paulo [N. do T.I
Foucault, Michel, Surveiller et Punir. Naissance de la Prison, Paris,
zido em Dits et Écrits, op. cit., pp. 1043-1044; "Préface a Enquete dans
Gallimard, 1975. Tradução castelhana: Vigilar e castigar. El nacimien-
vingt prisons", Paris, Champ Libre, 28 de maio de 1971, pp. 3-5, reprodu-
to de la prisión, Madrid, Siglo XXI, 1986. Vigiar e Punir. Nascimento
zido em Dits et Écrits, op. cit., pp. 1063-1064). Coleção Ditos e Escritos,
da prisão, Petrópolis, Ed. Vozes, 1987, 31' edição. IN. do T.I
Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro / São Paulo [N. do T.I
?4 , Seguimos para esta exposição uma entrevista realizada com Foucault
31 A versão moderna daquela prisão ,foram os campos de concentração
dois anos antes da aparição de sua obra sobre a prisão na qual expu-
nazistas, onde se fez conhecer a variante mais sangrenta, mais violenta e
nha as hipóteses que desenvolveria mais tarde. Ver Foucault, Michel,
mais inumana, na qual judeus, homossexuais, comunistas, vagabundos,
"A propos de Venfermement pénitentiaire", entrevista com A. Krywin
ciganos, agitadores políticos e operários se encontraram presos em um
e F. Ringelheim, Pro lustitia. Revue notifique de droit, T. I, N° 3-4: La
mesmo lugar (Foucault, Michel, op. cit.).
Prison, outubro de 1973, pp. 5-14, reproduzida em Dits et Écrits, op.
j2 Foucault, Michel, "Prisons et révoltes dans les prisons", entrevista com
cit., pp. 1303-1312. Coleção Ditos e Escritos, Editora Forense Univer-
B. Morawe, Dokumente: Zeitschfirt for obernationale Zusammenar-
sitária, Rio de Janeiro / São Paulo [N. do T.1
beit, n° 2, junho de 1973, pp. 133-137, reproduzido em Dits et Écrits,

66 67
Para Foucault, foi frente a um capitalismo em crise, com burguesia também pretendia evadi-los. Desse modo, o per-
problemas como a falta de mão de obra e o desemprego, sonagem do contrabandista, que surgia das classes popula-
quando se recorreu ao encarceramento como pena35. Essa "res, era tolerado pelo ilegalismo burguês. A burguesia tinha
prática também, explica, se deveu às grandes insurreições necessidade da existência dele.
populares na França, na Alemanha e na Inglaterra, no século já quando a burguesia ascendeu ao poder político, e in-
XVIII. O método repressivo das insurreições não era o mais clusive quando necessitou adaptar as estruturas ao exercício
adequado. Até esse momento, se enviavam tropas armadas de um novo poder e a seus interesses econômicos, o ilega-
que massacravam as pessoas e se apropriavam dos bens, que lismo popular que havia tolerado e que havia encontrado no
ficava durante semanas ,ou meses ocupando o território e, Antigo Regime um espaço de existência possível, agora se
portanto, proprietários de terras ficavam impedidos de pagar tornava intolerável, portanto, era necessário calá-lo.
os impostos. Tudo isso provocava uma catástrofe econômica Mas, foram os delitos comuns, em especial os delitos con-
generalizada. A prisão foi inventada, então, com o objetivo tra a propriedade, os que justificaram o emprego da prisão?
de obter um resultado determinado.
No Antigo Regime, Foucault explica que a fortuna era
Que diferenças Foucault observou entre o Antigo Regi- essencialmente a propriedade da terra e da moeda. Era por
me (Ancien Régime) e o que se derivou da Revolução Fran- isso que a burguesia daquela época defendia sua proprieda-
cesa? Em todo regime existiram diferentes grupos sociais, de, por um lado, contra os impostos da realeza e, por outro,
classes, castas; e em cada um deles se realizavam certos contra saques nas colheitas. Também devia defender seus
ilegalismos. No Antigo Regime, diz o autor, existiam certos bens móveis contra os ladrões. Mas quando a fortuna da bur-
ilegalismos e o funcionamento social se assegurava admi- guesia viu-se investida em uma economia de tipo industrial,
tindo-os. Esses ilegalismos formavam parte do próprio exer- isto é, nos ateliês, nas ferramentas, nas máquinas, nas ma-
cício do Poder. A arbitrariedade da realeza repercutia em térias primas, e que havia sido colocada nas mãos da classe
cada uma das práticas governamentais. Mas também havia operária, a burguesia tornou-se menos tolerante frente a todo
ilegalismos na burguesia, a qual, para obter vantagens eco- tipo de ilegalismo e perseguiu de maneira mais severa o que
nômicas, estava obrigada a violar certas regras, entre elas, o antes fazia de forma relativamente moderada. A perseguição
sistema alfandegário, as regras das corporações, as práticas ao ladrão se fez sistemática a partir dessa época.
comerciais. Também havia ilegalismos populares, como o
De fato, a teoria do crime e da penalidade variou,
dos camponeses que se esforçavam em escapar dos impos-
mas isso não explicaria por si só as mudanças profundas na
tos, ou o dos operários que tratavam de violar as regras das
prática real da penalidade. Um elemento que surgiu como
corporações. E todos esses ilegalismos podiam se beneficiar
fundamental foi a vigilância das classes popular, operária e
uns com os outros. Por exemplo, era muito importante para
camponesa. E, certamente, a verdadeira mudança observada
a burguesia que nas camadas populares houvesse uma re-
em fins do século XVIII e início do século XIX foi a invenção
sistência permanente ao pagamento de impostos, já que a
do panóptico.
35 Essa questão é interpretada da mesma maneira por Melossi e Pavarini,
Rusche e Kirhheimer.

69
68
A prisão e a disciplina O Código Penal Francês de 1810 representaria o poder
político como uma espécie de panóptico realizado nas ins-
A prisão não é, como vimos, diferente de outras institui-
ções dessa natureza, cujo fim nuclear parece ser a disciplina. tituições. O olho do imperador poderia olhar até os mais
recônditos e mais escuros lugares do Estado. Aquele vigiaria
Como observa Melossi36, no prefácio do volume onde Ben-
os fiscais e estes a todo o mundo. Dessa maneira a vigilância
tham, em 1826, expõe seu projeto de panopticum.
seria total. O panopticum é, pois, a representação arquitetõ-
Nele se lê:
nica da disciplina
Panopticum ou a casa de inspeção: contém a ideia de um
O que impressiona na am-
princípio de construção aplicável a qualquer tipo de esta-
plitude dos objetivos aos quais
belecimento no qual, pessoas de qualquer natureza devam
estar sob controle; e em particular, a penitenciárias, prisões, se aplica, é que ela determina as
indústrias, casas de trabalho, casas para pobres, manufa- relações entre elementos margi-
turas, manicômios, leprosários, hospitais, escolas. (...) não nalizados que são aparentemente
importa quão diferente, ou mesmo oposto seja o motivo: díspares. A vigilância — ou melhor,
seja o de castigar os incorrigíveis, vigiar os loucos, corrigir a supervigilãncia —, representa-
os viciados, isolar os suspeitos, colocar para trabalhar os da na distribuição radial dos cor-
ociosos, socorrer os que não têm ajuda, curar os doentes, redores reunidos em um controle
instruir em qualquer atividade os voluntários ou conduzir a central, está orientada a organizar
nova geração pelo caminho da educação: em poucas pa-
o universo disciplinário dos margi-
lavras, com o fim da prisão perpétua, que fosse aplicada
nalizados. Pobres, em casas para
como substitutiva da pena de morte, ou da prisão - como Jeremy Bentham (1748)
custódia antes do processo, da Penitenciária, da Casa de pobres; inaptos para o processo
Correção, da Casa de Trabalho, da manufatura, do manicô- produtivo (produção-consumo), em hospitais, asilos psiquiá-
mio, do hospital, da escola". tricos e escolas; presos, nas prisões.
Este sonho foi realizado não em forma de arquitetura,
mas como forma de governo. Bentham via no Panopticum,
\,
segundo Foucault, uma definição das formas de exercício do
Poder. Que diferença existia, se perguntava Foucault, entre trj-
áj litél
õ
um regulamento de uma prisão, de um colégio, de um asilo, PO"
de um orfanato em 1840? Nenhuma. A estrutura de poder I/ II -11ígile
1/1111 III Er 1/-
dessas instituições era a mesma.

36
Melossi, Dado, "Instituzioni di Controllo Sociale e Organizzazione
capitalistica dei Lavoro: alcune ipotesi di ricerca", em La Questione
Criminale, Carcere ed emarginazione sociale, ri° 2-3, 1976. A representação gráfica da disciplina dentro das institui-
37 Ibidem, p. 269. ções totais permite assimilar todos os níveis de marginalização

71
70
vai mais além. Mostra como a regulamentação escrita dos
e imaginar um panopticum social no qual o núcleo de controle
central de vigilância desenhado pelos interesses dominantes ir- exércitos, instituições educativas, prisões, hospitais e ateliês,
radie aos diversos braços, dos quais alguns seriam os presos, nos séculos- XVII e XVIII, persegue uma ideia construtiva e
outros os educandos, outros os pobres, outros os loucos ou in- arquitetõnica do corpo (Economia Política do Corpo).
válidos, e assim sucessivamente. Como diz Foucault, o panóp- A construção que elas perseguem é a construção (a pro-
tico simboliza a possibilidade de "ver sem ser visto"". dução) do capital variável (força de trabalho do operário).
Ao observar a história da prisão, vemos que ela "nasce Isto é, do indivíduo como máquina, mas também como par-
como um instrumento de controle e adestramento da força te da maquinaria capitalista tota142. O mérito de Foucault,
de trabalho, como lugar. de produção do proletariado". O diz Melossi, está em demonstrar que essa conversão do ho-
vínculo funcional entre cárcere e fábrica dá o conceito de mem em máquina não é algo que esteja em sua cabeça ou
disciplina (é a forma como ao operário se lhe apresenta a au- em sua alma, mas que é algo que passa por dentro de seu
toridade do capital)39 . A organização capitalista do trabalho corpo, remodelando-o para a organização total (posição dos
e a disciplina nascem juntas, como conceitos que se corres- ombros, costas, mãos etc.): "É mediante o uso de certas téc-
pondem, separáveis somente quando se consideram os dois nicas que o corpo pode ser acostumado a determinados mo-
vimentos, à repetição, à regularidade, de modo que possa
lados do capital: a organização do capital constante (máqui-
funcionar docilmente como apêndice da, ou melhor, como a
na-organização) e a do capital variável (força de trabalho)40.
própria máquina". Concebeu-se como uma maneira de dis-
Da mesma maneira pode-se afirmar que "todas as insti-
ciplinar o corpo para disciplinar a alma. "Já no século atual
tuições descritas por Bentham nascem unidas em sua função
tal técnica alcançará o papel de ciência com a organização
e em sua estrutura. Mesmo que irão se diferenciando a partir
científica do trabalho"43. Taylor dizia "adestrai o gorila" —
do que Foucault denominou de a grande internação (ou o
como afirmava Gramsci —, para anunciar o princípio social
grande encarceramento) que se produz entre o Medievo e a
da nova ciência". Essa Economia Política do Corpo não é,
Idade Clássica, suas funções seguem articuladas'. Foucault
pois, mais do que simples Economia Política. A ideologia (ou
sinaliza que a origem da prisão é o mesmo que o de ou-
forma como esta técnica reproduz a força de trabalho) "antes
tras instituições (Exército, escola, hospital, fábrica): o núcleo
de ser dita, lida ou contada, pode ser vista, medida, tocada:
central de todas as instituições é a disciplina. Mas Foucault ela está mais nos movimentos cadenciados, regular e norma-
tivamente prescritos com os quais o aluno deve sentar-se em
" Foucault, Michel, Vigilar..., op. cit. Bentham desenha uma estrutura para
vigiar sem ser visto. Uma estrutura semicircular, com quartos que estão sua carteira e segurar a pluma, do que em toda a filosofia de
abertos para o interior de um pátio e fechados para o lado de fora. No Hege1"45.
pátio, no meio do diâmetro encontra-se uma torre, de onde se veem os
quartos/as celas que dão para o pátio. Na torre se situa o vigilante que
olhará constantemente, ou, pelo menos, essa será a sensação que terão as 4' Ibidem.
pessoas que estejam nos quartos/nas celas. " Ibidem.
39 Melossi, Dado, "Instituzioni di...", op. cit., p. 296. Ibidem, p. 302.
90
Ibidem, p. 297. 45 Ibidem, p. 297.
41
Ibidem.

73
72
Outros autores nos apresentam coisas similares ou nhecimento e de uma abertura no controle dos delinquentes;
consecutivas: a escola de Frankfurt (Marcuse, Horkheimer) por uma maior ênfase no ato criminal e não no delinquente;
em 1936 nos mostra o papel cada vez mais relevante de por sentenças inequívocas, fixas, obrigatórias; por uma estri-
uma instituição privada. Por exemplo, a família patriarcal, ra.aderência às normas procedimentais e a abolição da paro-
no momento em que surge a sociedade burguesa para estes le. Ou, o que vem a ser o mesmo, uma volta de cento e oi-
mesmos fins. Althuser diz que as famílias patriarcais podem tenta graus até a Escola Clássica, retributiva, lógico-abstrata
também funcionar como aparatos ideológicos do Estado. do Direito Penal'''. Por acaso seria uma resposta ao grande
Melossi explica que quando se passa da estrutura religiosa desemprego que se havia gerado nos Estados Unidos, com
da sociedade, que é típica do Medievo, à laica da sociedade uma maior incidência delitiva, superpopulação das prisões,
burguesa, a autoridade se transfere da totalidade social para volta da fome, da sujeira e do ócio, que haviam levado às
diversas instituições, como a fábrica e outras instituições se- revoltas carcerárias dos últimos tempos?
gregadoras. Necessita-se, então, de "um elemento unifica- Alguns o imputam ao fracasso do modelo médico de
dor do consenso: a educação no seio da família patriarcal tratamento. Outros, a uma reação contra a politização cres-
monocelular, e a supervalorização da figura paterna, que se cente dos prisioneiros do mundo inteiro, que levou à destrui-
transforma, como diz Marcuse, no sacerdote laico da nova ção, nos anos 1970, por parte da violência dos detentos, de
estrutura social. Por outro lado, realiza a interiorização do prisões como Attica, Folsom, e Regina Coeli, entre outras.
principio de autoridade, que Freud descreve como a pre- Em alguns países, a razão da contrarreforma penitenciária
sença de um agente social (o Superego), dentro da perso- Parece derivar de uma reação frente ao terrorismo político.
nalidade. De Freud em diante, vemos como a Psicanálise Assim como afirma Baratta" ao se referir à Itália e à Alema-
sempre procurou analisar como se adestram os instintos sob nha, onde se observa uma tendência a abandonar os prin-
,
a pressão social". cipios liberais que propunham as garantias jurídicas, pro-
Tudo isso tenta explicar como se geram as "Instituições essuais e substantivas e mesmo o objetivo reeducativo da
Totais", que são fragmentos do controle social e a única for- pena, para converter a prisão em um "instrumento puro da
ma que o poder burguês podia assumir em suas origens. Manipulação do terror".

A contrarre forma penitenciária


Como dado que ratificaria essas pesquisas, em fins dos
" Ver Flynn, Edith, "EvalUative Research on Treatment of Offenders in
anos 1970, Edith Flynn observava, com relação ao modelo ' Reclusion. An examination of the American Prison Experience", comu-
de justiça penal nos Estados Unidos, um chamado pela de- nicação apresentada à Seção Tratamento do VIII Congresso Internacio-
volução do poder às ramificações legislativas e judiciais no nal de Criminologia, Lisboa, 1978.
nível do sentencing; pelo fim do tratamento forçado em re- Baratta, Alessandro, comunicação apresentada à Seção Tratamento do
VIII Congresso Internacional de Criminologia, Lisboa, 1978. Isto se
clusão ou em qualquer outro lugar; por um aumento do co-
produziu porque o terrorista, ao provocar uma sensação coletiva de
estar em risco, chegou a representar nesses países o estereotipo do
46 lbidem. criminoso.

75
74
A cidade como panóptico e como instituição de mais transparentes aos olhos e para os instrumentos (patru-
controle total lhas, por exemplo) dos agentes do controle.

A contrarreforma não se produz, entretanto, em todas À medida que o controle global aumenta, decresce a
as partes. Pelo contrário, parece que a reforma penitenciária po pulação carcerária (assim observam Rusche e Kirchheimer
floresceu especialmente naqueles países onde a distribuição entre o fim do século XIX e os anos quarenta do século XX
da riqueza aparece mais justa, como nos países nórdicos que
hal Grã Bretanha, na França e na Alemanha. Melossi observa
fortaleceram o sistema de Welfare State. De todos os modos, o mesmo na Itália, com exceção do período fascista). Esta
onde se faz mais necessário um homem para a produção do diminuição é acompanhada pela adoção, cada vez maior de
que como um inútil na prisão. medidas penais de controle em liberdade, como a probation,
À medida que o sistema capitalista se faz sólido e se que facilitam, como se indicou, não ter o suspeito ou delin-
transforma com a ajuda da tecnologia, e que o processo de quente presos, mas que os operadores da ordem os sigam
acumulação se aperfeiçoa eliminando através de monopó- rios lugares onde vivem, em suas vizinhanças e relações.
lios a concorrência", a diferença entre fábrica e cárcere ten-
Para que serve a prisão hoje?
de a desaparecer. Os velhos instrumentos de controle social
se tornam mais potentes e novos são criados. Foucault explica que desde 1842 havia se denunciado
que a prisão provocava a reincidência, ensinava o detento a
O critério diretivo é o da capilaridade, da extensão, da
Viver fora da sociedade, criava nele a consciência da injusti-
invasão do controle. Não se resume aos indivíduos; os se-
ça, se rebelava contra os abusos do poder que experimenta-
guem onde estão normalmente encerrados, fora da fábrica,
va dentro dela; e que o incluía dentro de uma "grande asso-
em seu território. A estrutura da propaganda e dos maÉs me-
dia, uma nova e cada vez mais eficiente rede de polícia e de diação ou clube de delinquentes"52. Para o filósofo francês,
assistência social, são os portadores do controle social neoca- essa delinquência formada no subsolo do aparato judicial,
pitalista: deve-se controlar a cidade, a área urbana (...) A crise a esse nível de "tortura e de morte", dessas que a Justiça
das instituições segregadoras encontra sua correspondente na vira a cara por vergonha, mas que experimenta ao castigar
construção da cidade como fábricas°. àquele a quem condena (...) é a vingança da prisão contra
a Justiça. Demanda de prestação de contas suficientemente
Existe cada vez mais controle primário que controle secun- terrível para deixar o juiz sem voz53.
dário. O adestramento de trabalhadores sai do raio de vi-
são do vigilante e se transfere à maquinaria deste controle Mas, por que, apesar de seu fracasso a prisão não de-
Fs •
primário, se fazendo "automático, impessoal, massificado, saparecia?
espontáneo"51 . A cidade inteira se converte em uma ins-
No início do Sistema Penal, os ilegalismos de todas as
tituição total. Na verdade, existe também uma arquitetura
classes eram os mesmos e coexistam. É a prisão a que intro-
panóptica em muitas grandes cidades, que tende a deixá-las
duz um elemento novo: o estigma os antecedentes penais.
" Ver Melossi, Dario, "Instituzioni di...", op. cit., p. 302. 52
Foucault, Michel, Vigilar..., op. cit., p. 276.
lbidem, p. 304. lbidem, p. 259.
lbidem, p. 305.

76 77
Está claro que ela não tende a suprimir as infrações, mas a que pertencem os indivíduos, o conduzirão ao poder ou à
distinguir umas das outras; a traçar limites de tolerância para
algumas; a definir "a verdadeira delinquência"54. Isso se de- A burguesia, pois, havia tentado naquela época encar-
prisão".
veu historicamente. ao desenvolvimento de certa dimensão cerar o proletariado, seguindo-o modelo da prisão, nas deno-
política dos ilegalismos populares nos séculos XVIII e XIX. Es- minadas usinas-convento, que eram verdadeiras prisões, das
ses ilegalismos eram geralmente contra o alistamento militar colônias para crianças pobres, abandonados e vagabundos,
obrigatório, o pagamento de impostos e o saque de armazéns, e outras instituições similares. Ainda que essas estruturas-fos-
um efeito da industrialização e das crises econômicas55, e sem economicamente inviáveis e politicamente perigosas, a
tendiam a mudar a estrutura do poder recém estabelecido. função do encarceramento não foi abandonada. Era possível
A vadiagem, o banditismo político, os roubos e as agressões ter os mesmos efeitos, por outros meios mais flexíveis, mais
bem poderiam ser incluídos dentro das lutas políticas. Passa inteligentes, mais finos. É assim como o sonho arquitetural
então, a ser conveniente considerar a plebe imoral ou sedi- de Bentham não só foi convertido em realidade jurídica e
ciosa, bárbara e fora da lei". Graças à literatura policial e à institucional no estado napoleônico, mas também, segundo
imprensa marrom, e também, por que não, à pseudociência Foucault, serviu de modelo a todos os Estados do século XIX.
inventada por Lombroso, o delinquente aparece agora como Se o aparato do "grande encarceramento" da época clássica
parte de um mundo diferente: o da loucura, ou o dos bairros havia sido em parte desmantelado, foi rapidamente reativado
marginalizados, ou o da novela 57. E por isso diz o que outros e readequadow. Como nos diz o atitor, teria sido homogenei-
autores, da época ou posteriores, como Chapman e Smauss58 zado por meio da prisão, por um lado, através dos castigos
de alguma maneira também indicaram: "Nesta delinquência legais e, por outro, através dos mecanismos disciplinários.
tão temível e surgida de maneira tão inesperada, que i fegal-
O universo disciplinário é, pois, um dos temas, aborda-
ismos poderiam ser reconhécidos?".
dos de forma mordaz por Foucault. Para explicar "como se
De alguma maneira, o delinquente comum está associa- disciplina o corpo para disciplinar a alma", Foucault revisa
do, ou se assemelha, a quem participa de greves e associa- velhos desenhos da organização ordenada e simétrica das
ções de pobres que protestam. Isso faz crescer tanto a des- camas nos asilos, conventos, hospitais, orfanatos, quartéis,
confiança em relação às classes baixas como, por oposição, internados; também as formações das tropas nos quartéis; as
a confiança em relação às altas. filas para realizar atividades; a forma como deve segurar na
Como diz Foucault59, o que existe por detrás de todas mão uma pluma para, escrever; o ritmo que se utiliza para
essas histórias são "jogos de forças que, segundo a classe a organizar a passagem de estudantes e soldados; os rituais
para comer. Tudo está programado para que uma sociedade
54 Ibidem, p. 277. se autocontrole através da disciplina.
55 Ibidem, p. 278.
Na realidade, segundo Foucault "vivemos em uma so-
56 Ibidem.

57 Ibidem, p. 292. ciedade panóptica tal como foi concebida naqueles anos. As
58 Como explicaremos em capítulos posteriores.

Foucault, Michel, Vigilar..., op. cit., p. 296. 6') Foucault, Michel, Surveiller..., op. cit., p. 348.

78 79
estruturas de vigilância estão generalizadas. O sistema penal ainda hoje tende a ser feita nos novos desenvolvimentos ha-
ou judicial é somente uma peça; a prisão é somente mais bitacionais, uma arquitetura panóptica, que facilita não só a
outra peça desse mecanismo." prevenção situacional do delito, mas também a chegada das
É necessário, então, se pergunta Foucault, reformar ou foças policiais e a vigilância oculta de todos os cantos onde
abolir a prisão para transformar essa realidade? se desenvolve a vida urbana.
O problema, dizia Foucault, não é transformar a prisão Mas essa vigilância oculta existe atualmente de mil ma-
em modelo ou aboli-la. A marginalização social no nosso neiras diversas, como as interceptações telefônicas ou in-
sistema é realizada pela prisão e esta marginalização não formáticas, a vigilância por satélite, a inteligência policial
desaparecerá automaticamente abolindo a prisão. A socie- ou política, a tecnologia de visualização nas ruas, esquinas,
dade a substituiria por outro mecanismo. O que falta por edifícios. E, mais sutilmente, nos registros burocráticos ban-
fazer é uma crítica ao sistema para que se explique por que cários, de impostos, votações, propriedades, lugares e ra-
a sociedade atual empurra para a margem uma parte da po- zões do uso de dinheiro plástico, os serviços de imigração e
pulação61 . e identidade, para mencionar somente alguns. A arquitetu-
Na realidade, os sistemas de submissão a juízo e regime a panóptica já não tem muros e pode ser virtual.
de prova que posteriormente se utilizaram como alternativas
ao encarceramento, como se disse, não significam outra coi-
sa que a possibilidade de seguir o controlado até lugar onde
vive, onde estão seus amigos e com quem se relaciona, sua
vida cotidiana, e seu entorno territorial.
O poder se converte dessa maneira, em capilar. Toda
a cidade se transformará em uma "instituição de controle
total", da maneira como foi descrita por Goffman em Asylu-
ms62 . Fato é, que existiu em muitas grandes cidades, e que
61 Foucault, Michel, "Le grand...", op. cit., p. 1174.
62 Diz-se que a construção dos Grandes Bulevares de Paris, desenhados
pelo barão de Haussman — e que podemos supor também hoje, sua
Étoile com o Arco do Triunfo em todo o centro, e a multidão de rond
points que existe na cidade para organizar o trânsito automotor —,
tiveram como finalidade deixar a cidade mais claramente organizada
e mais fácil o acesso dos carros da polícia em direção a todos os su-
búrbios onde possivelmente se escondiam ou se abrigavam os núcleos
populacionais considerados mais perigosos. Se esta não foi a finalida-
de, pelo menos foi o que pareceu. Sem dúvida, Paris é uma cidade
arquitetonicamente panóptica, e é possível que essa imagem tenha
influído na tese de Foucault.

81
80
CAPITULO V

A PRISÃO HOJE

A prisão genocida e a prisão como negócio. Violência in-


traclasse. A delinquência comum como nova profissão. A
necessidade de se pesquisar.

O Sistema Penal é um produto da dialética entre a guer-


ra e a paz. Com muita elegância, De Carvalho o resume com
a seguinte frase:

O bom (valor penal), o belo (valor criminológico), o ver-


dadeiro (valor processual) e o justo (valor jurídico) são os
valores morais que sustentam as ciências criminais. Qual-
quer ser humano inadequado à moral punitiva ou à estéti-
ca criminológica passa a ser percebido como objeto a ser.
eliminado, como inimigo'.

Somando-se as mortes intracarcerárias, em prisões da


América Latina, pelas condições inumanas, pelas condições
sanitárias, nutricionais e pelos enfrentamentos internos2; pela
perda de imunidade causada pela ausência de espaço e tem-
que implica a reclusão; pelas execuções extrajudiciais':
'4 De Carvalho, Saio, Antimanual de Criminología, Lumen juris, Rio de
Janeiro, 2008, p. 123. Antimanual de Criminologia, Ed. Saraiva, São
Paulo, V edição, 2013: IN. do T.1
? Ver Aniyar de Castro, Lola, "Matar de carcel", em Criminología de los
Derechos Humanos. Criminología axiológica como política criminal,
Buenos Aires, Del Puerto, 2010.
Também na Venezuela os índices latino-americanos e internacionais de
mortos pela polícia são superados; assim como os linchamentos feitos
por uma população que às vezes decide exercer justiça privada diante de
nr. 93% de paralisia sancionatória, o que estimula a sensação de que se pode
s'. fazer tudo sem consequências para os infratores. Além disso, nos casos
em que o sistema penal funciona, a tendência é encarcerar e não julgar.
que encontramos? Um panorama de morte violenta — de nor carência de poder econômico desses mesmos reclusos. E
pobres e, fundamentalmente, sobre pobres (está confirmado ainda que, geralmente, se fale das vítimas dos delitos, quase
por estadísticas que a violência do vulnerável é quase total- ninguém fala das vítimas secundárias, que não são somente
mente violência intraclasse, isto é, que a violência contra o a 'família da vítima, mas também a família dos presos. A po-
vulnerável resulta ser, em sua origem, do vulnerável contra breza se estende a essas famílias que devem conseguir seus
vulnerável) — ante o olhar negligente das autoridades da recursos por vias legítimas ou não, para garantir suas vidas,
área: isto gera uma espécie de genocídio, através da prisão e ou a vida de seu companheiro, irmão ou pai presos; os cha-
da carência de políticas de geração efetiva de direitos sociais mados "pranes", ou líderes negativos das prisões, cobram,
jurídicos, da parte mais vulnerável da pobreza. De acordo na Venezuela, aos presos mais pobres, uma espécie de paga-
com isso, ser sentenciado à prisão, pelo menos na Venezue- mento como garantia de segurança ou de sobrevivência, que
la, pode significar ser condenado à morte. se denomina "e/ obligadito", cuja omissão de pagamento
Não poderíamos considerar essas práticas letais como resulta em torturas, maus tratos, violações e morte de presos
uma tentativa de solução final, pela via mais simples, do por parte de outros.
inimigo, os não incluídos, ou os carentes de poder?' Paradoxalmente, a condição de um "pran" preso é a de
A violência do vulnerável é violência intraclasse. Não um acumulador de tamanha riqueza, que alguns não querem
apenas o caso de que a pobreza seja criminalizada, mas sair em liberdade por estar assegurando, com a negociação
também que a corrupção, o abandono, a ampla exclusão da das carências e a corrupção do Sistema Penal, um futuro bem
população de nossas prisões incidem sobre a maior ou me- resguardado'. Mencionamos este fenômeno que parece ser
novo, e sabemos pode ser aplicado, mesmo que com menor
Nos remetemos a cifras estadísticas contidas no capítulo "Matar de intensidade, em muitos países da região6.
carcel" do nosso livro Criminologia de los Derechos Humanos, já cita-
O resultado de uma pobreza que na microssociedade
do. Desde o ano de 2010 até setembro de 2011, foram cento e setenta
três cidadãos assassinados por agentes policiais, dos quais cento e fechada da prisão pode se transformar em um poder que se
vinte e nove foram vitimas de execuções, quinze por uso indiscrimina- tem que resguardar, leva à prática do que na Prisão de Uri-
do da força, doze por torturas ou maus tratos, sete por uso excessivo bana, na Venezuela, se chama o "Coliseu": segundas-feiras
da força, dois por negligência; não se puderam conhecer as causas de enfrentamento a faca, de presos rodeados por um círculo
dos assassinatos restantes. Este número representa urna diminuição de
27% em comparação ao ano anterior, quando se contabilizaram du-
s O número de mortos nas prisões da Venezuela, como apontamos em
zentas e trinta e sete vítimas de violação ao direito à vida. Um total
outras ocasiões, são significativamente maiores que do México, da
de trinta e sete corpos policiais, entre municipais, estatais, nacionais
Argentina e do Brasil (juntos), sendo que a Venezuela tem uma popu-
as Forças Armadas Nacionais, foram as instituições apontadas como
lação carcerária muito menor. Em apenas um dia do ano de 2012, por
responsáveis por esses delitos. O Corpo de Investigações Científicas,
exemplo, morreram na prisão de Mérida trinta e cinco pessoas, segun-
Penais e Criminalisticas continua sendo o organismo com mais vítimas
do informe do PROVEA (Programa Venezolano de Educación-Acción
(trinta e sete pessoas, o que equivale a 21,39% do total); seguido das
en Derechos Humanos).
Forças Armadas Nacionais, com trinta e um assassinatos (17,92%); e a 6
Há alguns anos, um fenômeno de dominação da cidade de São Paulo
recém-fundada Polícia Nacional Bolivariana, com doze (6,94%). Tudo
com ações dirigidas por elementos de dentro da prisão comoveu o
isso, segundo diferentes informes de organizações não governamentais
noticiário de diversas partes do mundo.
de Direitos Humanos.

84 85
de outros presos que esperam saber quem sai ganhando mais é muito rentável, e da qual participa uma parte da população
poder. Tudo se faz sob o olhar cúmplice, negociador ou ater- em geral, é produto da falta de políticas preventivas, educati-
rorizado dos guardas e da direção das prisões. Isso não só vas e éticas, ou da paralisia do Sistema de Justiça Penal? Ou
resulta em feridos, mas também em mortes, fora e dentro da dá perda do valor "trabalho" e de uma cultura de paz?
prisão. O número de munições e armas de alto poder de fogo Sobre essa dialética da pobreza-vulnerabilidade-poder,
que entra em nossas prisões é, em alguns casos, superior ao encontramos também um panorama global que produz obje-
da Polícia. São muitas as variáveis que intervêm nessa indús- tivos interpretativos e insta a novas pesquisas:
tria da morte. Podemos suspeitar por conta das dificuldades Sobre a crescente burocratização e fragmentação de sis-
de uma pesquisa acadêmica direta — pois oficialmente ela temas irracionais e caóticos de controle; sobre a disso-
também não existe —, de cumplicidade por corrupção, que lução das fronteiras; sobre os processos de acumulação
faz com quê os funcionários e guardas de prisões tenham ex- de riquezas que nem sempre provêm da produção, mas
celentes recursos adicionais com a intermediação de armas, sim de hábeis operações financeiras denominadas JIT
drogas, munições e bebidas alcoólicas. Também podemos (just in time: estar no lugar certo, no momento certo),
deduzir que o terror influencia: em 2011 foram assassinados, as quais englobam a delinquência dos pobres e a dos
poderosos;
nas ruas, por matadores de aluguel, cinco altos funcionários
de prisões7 ; e, por isso, uma suspeita, fundamentada nos rei- Sobre o advento das técnicas de comunicação e infor-
terados antecedentes de nossas mortes nas prisões: talvez in- mação, de seus aparelhos e softwares (smartphones, In-
teresse a alguém que os presos se matem entre eles mesmos. ternet, redes sociais, páginas pay pai e outras similares);

Esse fenômeno é relativamente novo na Venezuela. Em Sobre os atalhos tomados pelas economias frágeis e pe-
las emergentes;
outros países da região tem aumentado, ainda que com me-
nos intensidade. É catastrófico e também politicamente pe- Sobre o enfraquecimento dos Estados, que se transfor-
rigoso. E perigoso em mais de um sentido, porque incentiva mam cada vez mais em estruturas meramente relacio-
nais.
novos estereótipos: nas ruas (já que não existem poderosos
presos), o poderoso se confunde com o "preso poderoso". Na chamada Economia do Delito, baseada nas merca-
Novas perguntas surgem: a delinquência comum se tor- dorias controladas (drogas, armas, dinheiro de proveniência
na uma nova profissão (como a cobrança de dinheiro, os ilícita), na qual também existem pobres vulneráveis e ricos
assassinatos por encomenda, o pagamento dos sequestros confortáveis, graças, precisamente, às proibições e em vir-
relâmpago, o resgate de automóveis roubados8). Uma profis- tude delas, pode-se produzir um contínuo de métodos e de
são que não é necessariamente de pobres, pois hoje em dia enriquecimentos entre os delitos dos fracos e os dos pode-
rosos? Diversos autores falaram dessa nova criminalidade e
Em junho de 2012, a Diretora do Anexo Feminino da prisão de Santa
Ana, e seu marido, foram assassinados por orientações internas da dessa nova Economia que reflete os vaivens dos sistemas de
cadeia. produção imperantes no pós-fordismo: seria o "efeito Toyo-
8 Muitos deles organizados e controlados de dentro da cadeia, de acordo ta" ou de informalidade, plasticidade e adaptação delitiva às
com vídeos feitos pelos próprios presos com seus telefones celulares. demandas volúveis do mercado. Da "macdonaldização" do

87
86
mercado ilegal pelas urgências hist in time do consumo ou
da demanda estatal, no caso das armas, que têm as mesmas CAP1TULO VI
características de marketing que qualquer outro tipo de mer-
cadoria de circulação permitida, para incrementar o consu-
A TESE
mo, para a produção e para sua venda ou distribuição9. Aí
se misturam pobres e ricos, as riquezas surgem, se perdem, A CRIMINOLOGIA POSITIVISTA
mudam de mãos, o poder político mete a mão, não muito
limpa, e a ilegalidade é difusa e incontrolável. Conceito de Estado, razões sócio-históricas desta Crimino-
Esse panorama tão diverso deve ter algo a dizer sobre logia e o controle através da Ciência. A Ciência como novo
a pobreza, o castigo e a prisão. Não poderíamos interpreta- Deus. Sua relação com a nascente Sociologia Criminal po-
-10 hoje. Apenas alertar sobre a necessidade de pesquisar, sitivista e com a Criminologia Clínica. Durkheim e o con-
senso social. O determinismo e o livre arbítrio. O ponto de
discorrer com sutileza, de realizar estudos comparados, de
partida epistemológico e seus efeitos políticos. O positivis-
indicar hipóteses e de continuar perguntando. A prisão tam-
mo criminológico que estuda o indivíduo. A Criminologia
bém é o barômetro para medir os mitos legais. Veremos, Clínica: o delinquente como anormal. O positivismo bioló-
por, exemplo, as ficções e presunções do Direito, que afetam gico ou as ciências ocultas da época. O delinquente nato? A
principalmente as pessoas sem recursos, fazendo com que permanência e reiteração do paradigma positivista. A Crimi-
seu destino possa ser a prisão. nologia Positivista na América Latina. A função política da
Criminologia Positivista. Sua relação com os Direitos Huma-
nos e seu reflexo institucional.

Conceito de Estado, razões sócio-históricas e con-


trole através da Ciência
A Criminologia Positivista irrompe na história a rtir da
eclosão do prestígio das ciências naturais. Mesmo que ainda
dentro do conceito de Estado como produto de um consenso
sócia' (a partir das mencionadas teorias contratualistas de
Hobbes e de Rousseau), o qual havia dado base à Criminolo-
gia Clássica, se produz uma primeira ruptura no pensamento
criminológico ao desviar a atenção para outro objeto de es-
tudo: já não é sobre o delito, mas sim sobre o delinquente.
Enquanto a Criminologia Clássica se centrou no estudo do
delito e de todo o sistema de Justiça Penal que se desenhou
9 Como afirma Ruggiero, Vincenzo, Delitos..., op. cit. i)ara o exercício da liberdade e dos limites do poder punitivo

88
do Estado, a Positivista focará o estudo no delinquente e na Como o prestigio da Ciência permanece no tempo, em
sociedade; mesmo que, contudo, ao estudar a sociedade, virtude dos avanços e da modernização, das técnicas e dos
sempre o fará à maneira positivista, isto é: tentando desentra- novos descobrimentos científicos, a Criminologia Positivista
nhar relações de causa-efeito na conduta infratora de normas não deixou de exercer seu imperialismo acadêmico e po-
sociais e penais; relacionando a sociedade com a ecologia lítico — observável em textos, mitos e penitenciárias —, os
sob uma perspectiva biologizante, sugerindo determinismos que, não obstante, foram sendo permeados pelo pensamento
e entendendo-a como se fosse um superorganismo; isto é, crítico.
naturalizando-a. Ao mesmo tempo, considerou que suas
partes se substituam entre si quando uma delas falhasse, de Marco histórico do positivismo: a Ciência como
forma que o sistema sempre persistiria. Foi denominada, por o novo Deus. Sua relação com a nascente Socio-
isso, estrutural-funcionalismo. logia Criminal Positivista e com a Criminologia
Esta nova Criminologia se denominará então, Crimino- O
Clínica
logia do acting out (atuação). .caos pós-revolucionário — visto como incapaz de
A Criminologia Clássica, pois, estudará o "que", e a conter as transgressões — no qual estaria submersa a socie-
dade burguesa por volta da década de 1820 levou Augus-
Positivista o "porque".
to Comte, o principal sistematizador e expositor da filosofia
A Criminologia Clássica foi obra de filósofos e juristas.
positivista, a invocar uma teoria verdadeiramente orgânica,
A Positivista será, em sua ramificação clínica, de profissio-
única — segundo ele —, capaz de terminar com a crise que
nais da Psiquiatria, da Biologia, da Psicologia, da Antropolo-
preocupava essa sociedade. Tal como ocorrera depois de
gia'. Em sua ramificação sociológica, será desenvolvida . por
que Newton formulou a Lei de Gravidade, Comte dizia que
sociój2gos.
esta nova doutrina serviria para refundar completamente o
É característico às criminologias que cada tipo de espe- sistema socia12.
cialista pretenda ter a chave para administrar o Controle Social
Para Comte, a sociedade estaria submersa em uma to-
— e, com isso, administrar também o controle político da Or-
ial desorganização tanto espiritual como temporal, sendo a
dem —, tanto da delinquência quanto da "conduta desviada".
anarquia espiritual a que haveria precedido a temporal.
O objeto de estudo dessa nova Criminologia, a qual
No novo sistema /o positivo), o poder espiritual estaria
durante muito tempo se considerou que era a única possível,
nas mãos da Ciência. Por um lado, então, proclamavam-se
foi, portanto, descobrir aS" razões pelas quais existiriam sujei-
a morte de Deus e a fé na Ciência e, por outro, se previa o
tos discordantes, ou transgressores, ou resistentes, frente ao
governo dos sábios (os cientistas).
monumento jurídico — até então incontestado — do Direito
Penal e dos que foram seus aparatos de política criminal, As diversas ramificações das ciências tinham, logicamen-
que foram postos na história pela Criminologia Clássica. te, seus métodos específicos e inclusive seus próprios princí-

Comte, Auguste, Plan de travaux scientifiques nécessaires pour réorga-


' Veremos como no século XXI, esta Criminologia reviverá com o auge
niser Ia societé, exposée générale, Paris, Aubier-Montagne, 1970.
das neurociências.

91
90
pios teóricos; não obstante, a tendência generalizada era se mais antigo pai da doutrina positiva, que rejeitou as disputas
expressar em uma linguagem comum: a da matemática'. metafísicas próprias dessa Criminologia, as quais considerava
"meros procedimentos verbais". Impõe-se assim, a teoria sen-
A Fisiologia abre caminho para o estudo do sistema ner-
sualista do conhecimento segundo a qual nada é conhecido
voso; a Medicina e a Cirurgia têm uma época fecunda, e os
antes de passar pelos sentidos_, já que todos os seres teriam
estudos dos alienistas dão origem à Psiquiatria.
nascido como uma "tábua rasa" e, portaptp, iguais;
As ciências naturais também tiveram seu esplendor. A
Comte e Comte e sua reverência ao Os sociólogos da época
partir da classificação das espécies, passando pela Anatomia,
estabelecido: ordem e progresso também tentaram analisar a so-
a Paleontologia, até a tese da transformação dessas espécies
sob a influência do meio, essas ciências naturais representa- ciedade "cientificamente". Em
ram, portanto, o progresso inevitável da civilização. Foi, por- meados do século XIX, Comte
batizou a Sociologia como ci-
tanto, o momento no qual a tese evolucionista e o paradigma
ência de atos ou fenômenos
de Darwin se confrontaram com os princípios religiosos da
sociais, cujo conhecimento
Criação.
somente poderia ser alcança-
Ao mesmo tempo, foi o momento propício para conso-
do mediante a aplicação do
lidar a apoteose do pensamento científico nascente, transfor-
método positivo'.
mando-se na época, não só ou exatamente da Ciência, mas
Para Comte, a humanidade
do cientificismo, isto é, da obsessão pela Ciência.
tinha ciclos que iam do que ele
Como consequência, nada seria legítimo se não levasse o
chamava as "épocas orgânicas"
aval da fórmula matemática ou taxonômica, ou da sua inclu- até as "épocas críticas". Estes
são em uma lei geral de fenômenos similares. Foi assim como August Comte, ciclos tinham uma ordem que
as ciências naturais invadiram, com o prestígio da experimen- Francia. Pai da Sociologia seguiria uma linha ascendente
tação e a quantificação, o terreno das ciências sociais4. Positivista até o Progresso, ao qual levaria,
Distinguindo-se do mundo da Filosofia Jurídica que criou finálmente, à "Sociedade Positiva". Mas este Progresso não
a Criminologia Clássica, podemos encontrar Hume, talvez o poderia ser obtido se as características estruturais constantes
da vida coletiva fossem alteradas. É dessa ideia que provem
3 A Astronomia se beneficiava particularmente do progresso da Matemáti-
a frase "Ordem e Progresso", tão exitosa politicamente na
ca, já que, por exemplo, por um simples cálculo, se deduzia a existên-
cia de um planeta ainda desconhecido. As ciências físicas, conjugando América Latina, que até se incorporou à bandeira do Bra-
cálculo e experimentação, descobrem os princípios da termodinâmica, sil. Toda Ordem levaria ao Progresso, a menos que fosse
o eletromagnetismo, a óptica ou a eletricidade. No domínio da química stubvertida. A Revolução Francesa seria então, a última das
se formulam as leis da dilatação e a combinação de gases e, inclusive revoluções6, e isto asseguraria a manutenção e a reprodução
graças a uma aplicação química — a exposição à luz do cloreto de prata
do statu quo dos setores dominantes. A nova maneira de
—, nasce a fotografia, logo aperfeiçoada por Daguerre (ver Barjot, Domi-
nique; Chaline, Jean P. e Encrevé, André, La France au xix siècle, Paris;
Cajías, Huascar, Criminología, La Paz, Juventud, 1955, p. 79.
PUF, 1995, pp. 41 e ss.).
Aniyar de Castro, Lola, Criminología de la liberación, op. cit., pp. 47-48.
Aniyar de Castro, Lola, Crirninología de ia liberaci6n, op. cit.

93
92
legitimar o Poder, então, seria sacralizar a Ordem como se afirma o autor, é uma parte necessária de uma sociedade sau-
esta ordem fosse científica. dável. Somente um índice delitivo exagerado _pode ser con-
Para tal se requeria o modelo de uma ciência dura, siderado anormal. Para que existam sociedades sem delitos,
como a Física'. Desta maneira se erige, no cenário do pen- se necessitaria que os sentimentos que eles lesionam sejam
samento social, o império do fisicalismo. os mesmos em todas as sociedades e que tivessem a mesma
capacidade de lesionar esses sentimentos fortes e precisos. O
ç.'
O Positivismo e o Estado produto do consenso social delito seria, portanto, fator de saúde pública, porque a pena
(que inffige dor) seria uma reação passional que demonstra
Durkheim e o consenso social
que a consciência coletiva segue sendo comum.
Emile Durkheim, sociólogo francês, é um dos mais im- dcima de nós, a moral, os ancestrais, a divindade, que geraria
portantes fundadores tanto da Sociologia como do funcional- essa reação. E é precisamente a unidade do efeito o que revela
-positivismo, que estaria na base da integração social. Per- a unidade da causa. E disto derivam a solidariedade social e a _
tence, por isso, como Comte, ao Positivismo que estuda a permanência do sistema9 t_
sociedade, mais que ao Positivismo que estuda o indivkillo.
A assunção do consenso social como algo geral em
Para ele, há um sólido consenso social sobre. o.. que se uma determinada sociedade, desconhece a fragmentação
deve reprimir. O delito seria funcional ao sistema social. que existe nos grandes conglomerados urbanos. Pode encon-
Mais ainda, seria um fenómeno normal: sempre haveria de- trar-se em cidades pequenas, mas não em grandes cidades,
linquência, uma vez que existiria o que denominou um tipo com todas as suas variedades internas.
de "moral insaciável", de modo que ao desaparecer -uma
De seu livro, Dez Regras do Método Sociológico'°, nos
transgressão, surgiriam novas normas proibitivas. Uma ma-
parece importante recuperar aqui a última dessas regras, pois
neira de aspiração social à santidade.
tem a ver com a maneira como entendemos "as verdades":
Para esse autor, os delitos são atos que ferem estados "Nunca há respostas definitivas, porque nunca há perguntas
fortes e precisos da consciência coletiva. Não são sentimen- finais".
tos vagos, flutuantes, como o amor e a caridade, mas sim
Não obstante, foi do belga Ouetelet e do francês Guer-
"precisos": por exemplo, associados à vida e à propriedade.
ry" a tentativa de analisar de maneira que pretendiam "cien-
O delito não é mal em si mesmo: é mal porque a consciência
social o reprova. Por isso, em seu livro Da divisão do Traba- Emile Durkheim aperfeiçoou o Positivismo fundado por Augusto
lho Social° afirma que o único aspecto comum entre os delitos Comte. Se baseia em um, por ele denominado, "realismo epistemo-
é a reação que eles provocam. Algo é delitivo por sua relação lógico" e seu método é o "hipotético dedutivo". Seus livros, especial-
mente os referidos ao suicídio anômico, e as Dez Regras do Método
com a coletividade; e na sociedade sempre haveria consen-
Sociológico, são considerados fundacionais da Sociologia.
so (ainda que não necessariamente unanimidade). O delito " São Paulo, Ed. Martins Fontes, 3' edição, 2007, Coleção Tópicos. IN.
da T.1
Zaffaroni, E. Raúl, La palabra de los muertos. Conferencias de Crimi-
Cuerry, André M., Essai sur la statistique morale de la France, Paris,
nología cautelar, Ediar, Buenos Aires, 2011, p. 148.
Crochard, 1833; Quetelet, Adolphe, Physique sociale, Paris, Bache-
^ São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2' edição, 1999, Coleção Tópicos. , lier, 1835.
(N. da T.1

95
94
tífica", o fenômeno criminal. Apare- _ provinha de alguma família que exigiria uma vigilância
ce então a chamada "Física Social" particular; um isolamento semelhante ao que se impunha
que deveria sustentar —Mor--
urr te poTer aOs apestados, suspeitos de levar os germes da infecção12.
unificado. E isso produziria aquele Adicionalmente, Quetelet invocou a chamada Lei
procurado "governo dos sábios". térmica da delinquência, segundo a qual os delitos de san-
Para isso foram úteis as cha- gue e de conteúdo sexual se distribuíam no Sul, de clima
madas "estatísticas morais". Mesmo cálido, enquanto que os delitos contra a propriedade, parti-
que na obra de Guerry já se encon- cularmente os ardilosos, se concentravam no Norte frio. As-
trem algumas referência S ao sexo e sinalava, talvez consequentemente, que no inverno se come-
à idade em relação à delinquência, teriam mais delitos contra o patrimônio que no verão, e que
este autor não se interessou muito os delitos contra as pessoas aumentariam nos meses cálidos,
pela etiologia do delito; para ele, a Emile Durkheim. já que o calor sufocante aumenta a pressão.
estatística não era senão um meio França, 1858-1917
de averiguar as pautas morais de um O determinismo e o livre arbítrio
povo em um período determinado. Essa Lei gerou um dos traços significativos do positi-
Quetelet, por outro lado, não se limitou em sua obra a vismo criminológico: o determi-
expor números estatísticos sobre a criminalidade, mas tam- nismo geográfico, que teve efeitos
bém assinalou que os crimes se repetiam através dos anos, incontestáveis para construir um
conforme uma regularidade que obedecia a certas leis. Isso estereótipo que foi politicamente
faria com que o comportamento do homem fosse também manipulado com fins de domina-
suscetível a uma aproximação científica, quantificada, so- ção, tanto nacional como inter-
bre a base de cálculos matemáticos.r 0 delito seria, então nacional. De fato, a Criminologia
um fenômeno totalmente previsível. De maneira que, assim Positiva é determinista nos mais
como se podia prever o número de nascimentos ou de faleci- variados sentidos.
mentos, poder-se-ia antever quantos indivíduos cometeriam Segundo Ferri cuja tese é
homicídio, quantos seriam falsificadores, e quantos envene- relativamente pluricausalista, são
nadores haveria. fatores delitivos tanto elementos
A conclusão a que chegou Quetelet era que a socieda- antropológicos (constituição orgâ-
Enrico Ferri
de continha todos os delitos que se cometeriam no futuro. nica e psíquica, e características
(1856-1917), Itália.
Existiria, portanto, uma espécie de "patologia social". As do- Pai da teoria da Defesa social pessoais) como fatores físicos ou
Is cosmo-telúricos: o clima, a natu-
enças morais, dizia, eram como as doenças físicas: existiam
as contagiosas, epidêmicas ou hereditárias. O vício se trans- P Ver Bonger, Willem A., Introduccián a Ia Criminologia, México, FCE,
mitia em certas famílias como a escrófula e a tuberculose. A 1943, pp. 103-105; Saldatia,Quintiliano, Los origenes de La Crimino-
maior parte dos delitos, que afligiam um país — continuava logia, Madri, Victorino Suárez, 1915, pp. 413-416.

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96
reza do solo, a produção agrícola; e fatores sociais: costu- de; e da probidade, nos delitos
mes, religião, família, alcoolismo, leis cíveis e penais etc. contra a propriedade.
.É Ferri quem enuncia a teoria da Defensa Social, se- Se existem como este autor
assinala "delitos naturais" (isto
_.gyndo a qual os indivíduos são sempre responsáveis ante a
sociedade. A natureza e extensão da pena serão as necessá- é, não construídos social ou po-
rias para neutralizar a periculosidade. Portanto, se excluem liticamente), ainda que sejam
as colocações sobre a culpabilidade. O Direito Penal teria de difícil avaliação por estarem
como objeto a defensa contra os "inimigos naturais da so- referidos a "sentimentos", por
. ciedade". Hoje podemos ver isto representado na teoria de conseguinte, também existiram
Jakobs sobre o Direito Penal do I rilmigp. A sociedade se de- "delinquentes naturais".
fenderia de seus inimigos naturais. De forma que, mais que o É Garofalo quem em 1878
do delito, se defenderia dos delinquentes. define a periculosidade como ca-
O determinismo é um fator de perigosa aceitação, pois pacidade criminal, ou como "pe-
Garofalo e o
tem a ver com o livre arbítrio (que para o positivismo não exis- "Delito Natural", Itália riculosidade provável". Grave
tiria nas pessoas com as características descritas por eles), o conceito que afetará seriamente,
que sim, por outro lado, "determinaria" o tipo de controle so- e no imaginário coletivo, a concreção dos Direitos Humanos.
cial: medidas de segurança curativas, perigosas para os Direitos
O positivismo criminológico que estuda o indiví-
Humanos pela indefinição da sua duração no tempo; quando
não, reclusão indefinida ou pena de morte. De fato, Ferri e Ga- duo. A Criminologia Clínica: o delinquente como
anormal. O positivismo biológico ou as ciências
rofalo'3 , que constituem, conjuntamente com Lombroso, as três
figuras mais significativas do Positivismo, chegam a sugerir isso. ocultas da época
Garofalo criminálogo do "consenso", define o "delito Segundo Aristóteles, haveria Ciência Oculta quando
natural" como aquele que fere os "sentimentos" médios de toda forma natural aparente fizesse supor a existência de
piedade e probidade presentes em uma sociedade, e'rn um algo oculto: A Quiromancia, a Astrologia, a Cabala, a Ma-
dado momento. De piedade, nos delitos contra a vida e a saú- gia, a Alquimia. E nas Biotipologias, como na Frenologia de
Gall, o aspecto físico seria uma indicação de personalidade.
13 Garofalo, Raffaele (1851-1934) publica — em 1885 — La Criminología. O aparente definiria o oculto.
Estudio sobre e/ delito e sobre Ia teorá de la represión. Representa a
vertente jurídica da Scuola Positiva. Em 1878 definiu a "periculosidade" Veremos como esse positivismo é praticamente uma
como capacidade criminal e probabilidade de implementá-la, ou "peri- nova Ciência Oculta:
culosidade provável". Em 1880 inclui a definição de "adaptabilidade"
Como os criminálogos do positivismo viam os delin-
como o obstáculo interno capaz de frear a periculosidade, ou grau ou
possibilidade de adaptação social do delinquente. Os criminosos possui-
quentes? Do grego k/ynos (cama), a palavra "clínica" já pres-
riam uma anomalia moral e psíquica, uma espécie de "lesão ética" que. supõe o delinquente como doente. Os "gabinetes clínicos"
seria responsável por atos delitivos. Nega a possibilidade de aceitar o livre das penitenciárias, que costumam ser interdisciplinares na
arbítrio na ciência penal. área psicobiológica, se ocuparão de realizar um "diagnósti-

99
98
co", um "prognóstico" e' de emitir 1884, se tornariam definitivas. Deste modo, para o professor
um plano de "tratamento". Enfim, italiano, a tese do atavismo do delinquente se encontraria
termos médicos. no centro, enquanto que outras duas, a epilepsia larvada e a
.A primeira interpretação do loucura moral explicariam a delinquência em sua totalida-
delinquente por parte da Crimino- de. Assim se estabelece a tripla teoria lombrosiana.
logia Positivista nos diz que ele é . A partir desse momento, a teoria atávica começa a se
um selvagem ressuscitado na so- desenvolver e Lombroso vai encontrando novas característi-
ciedade moderna por um fenôme- cas regressivas que se somam à depressão no osso occipital,
no de herança retrógrada, isto é, acentuando a identificação do criminoso com o selvagem.
por atavismo. No aspecto anatômico: o estreitamento da testa, a exage-
Quem afirma isso em um pri- ração dos seios frontais, a frequente ocorrência da sutura
Cesare lombroso, Itália.
metópica, dos ossos wormianos, as sinostoses precoCeí,. a
meiro momento é Cesare Lombro- nO homem delinquente", 1871
so, médico-legista da Universida- grossura acima do normal da parte superior e interna do
de de Pavia que, fazendo a autópsia de um famoso bandido crânio, o desenvolvimento desproporcional dos pômulos e
calabrês chamado Villella, em 1871, acreditou encontrar - das mandíbulas o progaatismo, a obliquidade e grande ca-
em seu crânio aquela característica cresconcertante e inquie- pacidade das órbitas dos olhos etc. No aspecto fisiológico:
tante, imprópria dos homens atuais: um pequeno furo ou 'a sensibilidade obtusa, a ausência ou diminuição de rea-
pequena depressão no osso occipital. Esta particularidade ções vasculares, o mancinismo ou o uso da mão esquerda.
cranial era frequente nos roedores e outros vertebrado, so- No aspecto psicológico: a insensibilidade moral e afetiva,
bretudo, nos superiores, precisamente nos mais próximos ao a.Preguiça, a ausência de remorso, a imprevisibilidade. No
homem, como os símios antropoides e não era incomum em ,
aspecto social: o delinquente tenderia a ter sinais físicos pro-
duzidos por ele mesmo, como a tatuagem; em seu livro há
seus antepassados.
referências aos desenhos encontrados, que representariam
A partir dessa teoria, se deduz que o delinquente nato
ideias do que se denominava a "má vida" ou submundo so-
nasceria predeterminado por sua configuração física e seu
cial na Itália. Também afirma ter encontrado uma linguagem
escasso desenvolvimento evolutivo.
involutiva, metafórica, e a escritura hieroglífica.
Lombroso claramente sofreu influência de Darwin e de
.Q delinquente atual seria certa reprodução orgânica,
sua tese evolucionista sobre a Origem das Espécies; bem
mais ou menos acabada, do selvagem e do primitivo".
como de Morei e a loucura moral; e de Çall e seus proposi
ções sobre as protuberâncias cranianas. t- O delinquente nato?
,
Através das diversas edições do seu L'Uomo delinquen .Logicamente, em se tratando de urna criminologia estri-
te, publicado pela primeira vez em 1876 Lombroso foi to= tamente penitenciária, encontrava ali, na prisão, pessoas que
mando nota das discussões de seus contemporâneos e in
Bernaldo de Quirós, Constancio, Las nuevas teorias de la
vestigando outras hipóteses até que desenvolveu outras teses dad,2' ed., Madri, Revista de Legislación, 1908, pp. 23-30.
também singulares que, a partir de sua terceira edição em

101
100
trabalhavam em lugares pouco edificantes, como os portos, simos defeitos podem ser enfraquecidos pela frigidez sexual,
onde o hábito da tatuagem era (como é hoje) uma moda ba- a maternidade, a piedade ou a busca pela paixão. Tudo isso
seada em demonstrar valor para enfrentar um procedimento parece bastante confuso a um olhar contemporâneo.
doloroso. Hoje em dia alguns jovens explicam suas tatuagens Pela insistência em se falar de anormalidade e a gi-
com a desculpa de que seu corpo é "um espaço (talvez hoje gantesca variedade de afirmações diferentes que se fizeram
sentido como o único possível) de liberdade". Alguns, em um sucessivamente na Criminologia Clínica, que hoje, frente à
tom fragilmente filosófi- realidade contemporânea da delinquência nos parecem pou-
co, assumem esse pro- co críveis, assinalaremos nas notas de rodapé algumas delas
cesso como "um com- como mostra do cientificismo e do reducionismo imperan-
promisso com a dor". tes, e de como se converteram em teorias que não necessa-
Mas para Lombro- riamente concordavam entre si. Verdadeiras "ciências ocul-
so, o delinquente astu- tas", como anteriormente se falou.
cioso, o estafador, teria O delinquente seria visto:
características físicas di-
Como "primitivo atávico ou psíquico" (Cesare Lom-
ferentes às do delinquen-
broso, Napoleone Colajanne;
te violento.
Curiosamente, 2. Como "anormal moral", "louco moral" ou "degene-
como as mulheres eram t "rado" (Raffaelle Garofalo, James Cowles Prichard,
quase inexistentes nas: Henry Maudsley, Bénédict Augustin More1)16;
penitenciárias
penitenciárias — para Vt 15
A doutrina do atavismo criminal iniciada por Lombroso era ao mesmo
justificar isso se base- tempo pré-humana e humana, física e psíquica. Apesar disso, alguns
ava em que sua delin- autores, como Napoleone Colajanni, limitaram a regressão criminal
somente às características psíquicas ou morais, excluindo os físicos ou
quência era geralmente orgânicos. As características físicas dos criminosos eram comuns aos
oculta —, Lombroso acudiu a uma explicação que de todas as homens normais, como também sua raça. O criminoso, para Colajan-
maneiras não se adaptava ao seu tipo de delinquente nato: as ni, representava um indivíduo que tinha um atavismo psíquico que
prostitutas seriam, disse, sua equivalente. As demais caracte- era um retorno às características próprias das fases precedentes a sua
evolução, isto é, era um neosselvagem ou um neobárbaro, um espec-
rísticas que designa às mulheres, demonstram o pouco cien-
tro do tempo de nossos remotos antepassados (ver Bernaldo de Quirós,
tífico que eram as suas colocações: as mulheres delinquentes Constancio, Criminología, Puebla, Cájica, 1955, pp. 63-67; Colajanni,
teriam ausência de refinamento moral; e como são incapazes Napoleone, "Raza e delito", em criminologia Moderna, ano II, n" 12,
de sofrimento espiritual, também não teriam compaixão pelos Buenos Aires, 1899, pp. 350-353; Dallemagne, Jules, Les Théories dela
sofrimentos dos demais; sua inteligência seria inferior à mas- Criminalité, Paris, Masson, s/f, p. 121; Idem, Sociologia criminale, Ca-
tania, Tropea, 1889; Tarde, Gabriel, "L'atavisme moral", em Archives
culina; elas seriam, em geral, mais viciosas que os homens,
d'Anthropologie Criminelle, lyon, Storck, 1898, pp. 23 e ss.).
ainda que as que são delinquentes se comportem como osll 16
Em 1885 Raffaele Garofalo introduziu a tese original do delito natural.
homens e se pareçam a eles. Segundo o autor, esses gravís- Haveria delitos mala in se e delitos mala guia prohibita. Segundo este

102 103
S) Como "anormal racial" (Clémence Royer)'';
autor nem todo delito era natural, mas somente aquele que representava
Ç
uma violação dos sentimentos altruístas fundamentais de piedade e pro- humana tanto físicas e intelectuais como morais. Nele, Morei fazia alu-
são a todas as causas que podiam conduzir à degeneração, que definia
bidade. Com tal distinção, Garofalo queria indicar a existência de uma
serie de delitos que, em contraposição aos demais — os artificiais ou legais como um desvio do tipo primitivo, isto é, do tipo humano criado por
Deus. Morei estabelecia deste modo, uma etiologia da degeneração, que
—, tinham uma origem distinta, isto é, uma origem natural, posto que ca-
reciam de algo inato à própria natureza do homem. Esse algo inato eram era considerada, urna doença. Para este autor, os tipos extraordinários e
desconhecidos que povoavam as prisões não eram extraordinários nem
os sentimentos de piedade e probidade. Para Garofalo, esses sentimentos
desconhecidos para quem estudava as variedades mórbidas da espécie
se achavam dentro do homem, eram algo natural que não tinham nada
humana desde o duplo ponto de vista do estado psíquico e moral dos
a ver com uma construção humana. O delinquente apresentaria sempre
indivíduos que as formavam. Esses seres humanos eram justamente as
um elemento congênito diferencial. Para Garofalo, o delinquente fortuito
personificações de diversas degenerações da espécie, e o mal que as en-
não existe, posto que um homem bem formado moralmente não comete
gendrava constituía para as sociedades modernas um perigo maior que a
delitos. A pessoa que se arrasta para o crime tem algo exclusivo, uma
invasão dos bárbaros para as antigas (ver Castel, Robert, El orden psiqui-
maneira de ver o mundo totalmente particular. O delinquente seria um
átrico. Edad de oro dei alienismo, Buenos Aires, Nueva visión, 2009, pp.
ser à parte, um monstro de ordem moral que tinha características comuns
36-37; Morei, Bénédict-Augustin, Traité des dégénerescences physiques,
aos selvagens, e outras criaturas inumanas, o que lhe permitia conciliar a
intellectuelles et morales de l'espece humaine, Paris, Bailliere, 1857; Ber-
hipótese do criminoso atávico com a teoria da degeneração (ver Garofalo,
naldo de Quirós, Constancio, las nuevas..., op. cit., p. 70).
Raffaele, La Criminología. Estudio sobre el delito e sobre Ia teoria de Ia re-
No segundo Congresso de Antropologia Criminal de Paris, em 1889, Clé-
presión, Pedro Dorado Montero (trad.), Montevidéu, B de F, 2005, p. 84;
mence Royer — primeira tradutora francesa de A origem das espécies, de
López-Rey Arrojo, Manuel, Introducción ai estudio de la Criminología,
Charles Darwin —, seguindo a tese da degeneração, se propôs a indagar a
Buenos Aires, El Ateneo, 1945, pp. 32-35).
relação entre a criminalidade e a mestiçagem, indicando o erro de Lom-
Muito antes que Lombroso irrompera com sua teoria do criminoso nato,
broso de não tê-la levado em consideração. É difícil sustentar, dizia Royer,
_ai psiquiatria inglesa desenvolveu o conceito de loucura moral (Moral que um homem se torne um criminoso pelo simples fato de que seus ossos
insanity) com a obra de James Cowles Prichard em 1842. Não obstante,
apresentem anomalias, como também é impossível que essas anomalias
foi Henry Maudsley, um médico do asilo de Manchester, quem expôs
anatômicas produzam tendências para o crime. A tendência para o cri-
de maneira mais clara a vinculação entre crime e loucura dizendo que
me deveria apresentar, para Royer, uma causa que fosse comum àquelas
todos os que estudaram os homens criminosos sabem perfeitamente que
anomalias físicas, funcionais ou psíquicas, isto é, sua origem deveria ser
existe uma classe especial de homens consagrados ao mal. Ao estudar
buscada em fatores hereditários. Se podemos admitir que o crime possa ter
a população penal, sustentou que a classe criminosa constituía uma
parcialmente determinantes sociais, isto é, influência da sociedade sobre o
variedade degenerada e mórbida da espécie humana marcada por ca-
indivíduo, aquelas sempre atuam sobre urna soma de características inatas
racterísticas particulares de inferioridade física e mental, e que estes
que, em cada indivíduo, é o resultado hereditário total da sua genealogia, e
defeitos têm como consequência a falta parcial ou absoluta de sentido
modificam tão profundamente as influências do meio que, em meios idênti-
moral. Para Maudsley, a causa desta ausência de sentido moral era a
cos e circunstâncias parecidas, indivíduos diferentes podem atuar de modo
existência de alguma anomalia na família e o crime era uma espécie de
distinto. Royer se surpreendia de que Lombroso não tenha considerado
canal através do qual passavam todas as suas tendências moralmente
como causa hereditária da criminalidade, a mestiçagem, cjue era, segundo
danosas: eles seriam loucos se não fossem criminosos; e por serem cri-
ela, urna causa importante. A história mostrava que os atos mais imorais, os
minosos não eram precisamente loucos (ver Maudsley, Henry, El crimen
atos mais contrários aos seres organizados, se multiplicavam em épocas de
y la locura, Valencia, Sempere, s/f., pp. 35-39, 70).
grandes civilizações, isto é, de grandes misturas de raças. Para Royer, uma
Em 1857. também sob a influência da obra de Prichard, o médico fran-
investigação sobre a genealogia dos criminosos deveria ser feita para cons-
cês Bénéclict-Augustin Morei, provocando uma ruptura com a Psiquiatria
tatar a proporção de cruzamentos reiterados cuja herança podia convergir
precedente (herdeira de Pinel e de Esquirol), introduziu a teoria da dege-
com raças antigas muito inferiores, o que explicaria em seus descendentes
neração com um livro que fazia referência às degenerações da espécie

105
104
0Como "anormal cerebral" (Alexandre Lacassagne)18;
4. (69 Como "perverso constitucional instintivo" (Ernest
Dupré)";
C5-..--)Como "débil mental" (Henry Goddard)";
distantes a reaparição de características morais que somente se constatariam
grego kalos: 'bom, puro'; kakos: 'mal, pernicioso') apresentava duas
nas raças mais inferiores da humanidade ou inclusive em espécies animais
ramificações, uma com boas qualidades hereditárias e outra com más.
(ver Royer, Clémence, "Deuxieme séance", em Actes du Congres Interna-
tional d'Anthropologie Criminelle, Biologie et Sociologie, Paris, Masson, 12 Ao estudar a deficiência intelectual de um de seus integrantes, Goddard
pensou ter encontrado na sua herança familiar a causa da delinquência.
de agosto de 1889, pp. 170-172).
18 Para isso, investigou a família através de seis gerações e descobriu que
É comum encontrar nos manuais de Criminologia que a escola francesa
a debilidade mental se remontava a um antepassado, um soldado que
de lyon, chamada de Medio Social se opôs ao Positivismo Criminoló-
tivera relações ilegítimas com uma mulher deficiente. Do total de qua-
gico italiano. A crítica feita pelo médico francês Alexandre I acassagne
trocentos e oitenta descendentes identificados, todos eles eram débeis
no primeiro Congresso de Antropologia criminal realizado em Roma,
mentais, imorais sexuais, alcoólicos, epiléticos e criminosos. A prova
em 1885, Costuma ser apontada como o começo desta divergência
disso, segundo Goddard, estava em que o mesmo soldado, logo após a
entre duas escolas criminológicas. Lacassagne defendia que o meio
guerra, havia contraído matrimônio com uma jovem de boa família, e
social era o meio de cultura [no sentido de ambiente propício para
com um total de quatrocentos e noventa e seis descendentes, somente
que algo se desenvolva. N. do T.1 da personalidade; o micróbio era
um era doente mental e nenhum criminoso. Deste modo estava prova-
o criminoso, isto é, elemento que tinha importância somente quando
do que da primeira união descendia a linhagem má, que compreendia
encontrava o ambiente onde fermentar. As sociedades tinham, então,
os antissociais e amorais, enquanto que, na segunda linhagem, apare-
os criminosos que mereciam. Apesar disso, este antagonismo com a
ciam quase em sua totalidade seres normais e socialmente inúteis (ver
escola italiana não parece ser grande no caso de Lacassagne, já que
Goddard, Henry, The Kallikak Family, Nueva York, Macmillan, 1912;
este autor nunca foi um sociólogo e sempre sustentou que a causa
Capas, Huascar, Criminología, op. cit., p. 178; Pinatel, Jean, "Crimino-
principal do comportamento criminoso residia em um determinismo
logía", em Bouzat, Pierre e Pinatel, Jean, Tratado de Derecho Penal e
hereditário. Lacassagne estava convencido de que o cérebro continha
Criminología, T. III, Caracas, Universidad Central de Venezuela, Facul-
os mistérios do comportamento humano e era partidário fervoroso da
• tad de Derecho, 1974, op. cit., pp. 352-353).
frenologia ou craniologia defendida por Gall em princípios do século
2° No Congresso de alienistas e neurocientistas da França realizado na
XIX. Para este autor, o meio social podia ser compreendido como o
Argélia em 1912, o psiquiatra francês Ernest Dupré substituiu a teoria
conjunto de indivíduos cuja evolução cerebral era diferente. As ca-
antropológica da delinquência atávica pela teoria das perversões instin-
madas superiores eram as frontais, mais inteligentes e evoluídas. As
tivas, dando lugar a um novo termo que será utilizado pelos criminólo-
camadas sociais inferiores, que eram as mais numerosas e nas que
gos durante meio século: a constituição. Segundo Dupré, as anomalias
predominava o instinto, eram chamadas occipitais. Entre elas, existia
constitucionais deveriam ser entendidas como perversões instintivas à
uma serie intermediária onde predominavam os atos com certa impul-
base das tendências inatas do indivíduo, que eram anteriores à apari-
sividade, chamadas parietais. A teoria da criminalidade, para Lacas-
ção da consciência e da inteligência e que deveriam ser consideradas
sagne, tinha que se basear no estudo do funcionamento cerebral, isto
em sua atividade moral e social. O cérebro tinha, para Dupré, uma
é, o ato criminoso dependia em cada indivíduo da sua constituição
pluralidade de centros que correspondiam à diversidade de instintos
cerebral (ver Mucchielli, Laurent, "Hereditê et imilieu social' le faux
inscritos pela natureza. A normalidade supunha, então, um equilíbrio
a ntagon isme franco-ital ien",, em Mucchiel I i, Laurent (d ir.), H istoi re de
harmonioso entre aqueles centros. O delinquente, pelo contrário, pa-
la Criminologie Francaise, Paris, L'Harmattan, 1994, p.189; Lacassag-
decia de um desequilíbrio de origem patológica. Todo comportamento
ne Alexandre, "Les sentiments primordieux des crimineis", em Actes
que se desviava da normalidade era resultado, para este autor, de dis-
du troisieme Congres d'Anthropologie Criminelle, Bruselas, Hexes,
funções orgânicas que impediam que fossem respeitadas as exigências
pp. 239-240).
19
sociais (ver Dupré, Ernest, "Les perversions instintives", em Archives
Em princípios do século XX, o psiquiatra americano Henry Goddard
d'Anthropologie criminelle, Lyon, 1912, pp. 502 e ss.; Debuyst, Chris-
dedicou especial interesse ao estudo da família, vinculando debilidade
tian, "Les différents courants psychiatriques et psychlogiques en rapport
mental e delinquência. A família denominada Kallikak pelo autor (dc- ;

107
106
I I

Como "anormal físico e moral" (Charles Goring)21; don, e mais recentemente consideradas Delo casal
Glueck)";
Como "anormal hereditário" (Johannes Lange)22;
23 A pesquisas sobre a criminalidade nos anos 1920 representaram uma
Como "anormal morfológico" (as Biotipologias
grande mudança em relação à Antropologia Criminal dos primeiros
de Ernst Kretschmer, Nicola Pende, William Shel- anos do século XX, graças à contribuição da Psiquiatria, fundamental-
mente, por estudos referidos à constituição da pessoa, isto é, a sua es-
sência psicofísica.A biotipologia tinha como objetivo descobrir as cor-
relações existentes entre o físico e o psíquico no âmago de uma pessoa
qualquer e, como o delinquente era uma pessoa, seus resultados eram
avec les savoirs criminologiques", H istoire des savoirs sur le crime et Ia
aplicáveis. "Não é que a biologia constitucional constitua atualmente,
peine, París-Bruselas, De Boeck Université, 1998, pp. 422-425).
algo perfeito — dizia Kretschmer —, mas, de toda forma, nem na ordem
Após uma série de pesquisas científicas realizadas sobre réus condenados,
heredo-biológico nem no crimino-biológico pode-se prescindir dela;
em 1913, o inglês Charles Goring assegurava que não existiam caracterís- não há outro caminho se não o de colaborar no seu desenvolvimento".
ticas físicas especiais que confirmassem a existência de um tipo criminoso
A obra do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer, publicada em 1921
lombrosiano e que se as medidas encefálicas dos delinquentes fossem
foi uma referência na matéria, e influiu de tal maneira na Crimino-
comparadas com as dos professores universitários, não teriam muita dife-
logia, que quase todas as pesquisas até os anos 1950 refletiam de
rença. Apesar disso, as mesmas pesquisas levadas à cabo pelo professor
algum modo seus tipos biológicos e, através dos estudos realizados,
inglês demonstravam uma clara inferioridade física entre delinquentes e
se argumentou que existia uma correlação entre tipos físicos e caracte-
pessoas comuns, como também apresentavam um menor desenvolvi-
rológicos referente ao delito. Kretschmer afirmou ter descoberto tipos
mento físico em geral. Além dessa inferioridade física, Goring também
humanos mediante métodos empíricos. Os tipos morfológicos eram
encontrou nos casos examinados a existência de uma notável deficiência
de três espécies: o leptossômico (astênico), o atlético e o pícnico. Jun-
da inteligência, concluindo que se de fato os delinquentes ingleses se
to a estes, apareceram outros especiais chamados displásicos, que se
caracterizavam por uma condição física e uma constituição mental in-
caracterizam pela existência de desproporções orgânicas. O tipo lep-
dependentes uma da outra, o traço físico associado à criminalidade era
tossômico é singular pelo escasso acúmulo de gordura; o atlético pelo
geralmente uma imperfeição orgânica; e o fator mental, uma inteligência
desenvolvimento de músculos e do esqueleto; e o pícnico pelo grande
deficiente (ver Goring, Charles B., The English Convict, Londres, 1913;
desenvolvimento da cabeça, tórax e abdômen, e uma tendência ao
Hurwitz, Stephan, Criminología, Barcelona, Anel, 1956, p. 132).
acúmulo de gordura. Esses três tipos eram normais para Kretschmer,
22 Um dos trabalhos mais importantes e divulgados sobre o vínculo entre
sem que pudesse aduzir qual era melhor que os outros. Além disso, a
herança e delinquência apareceu em 1929 com o professor alemão partir do estudo dos pacientes e das definições de doenças psiquiátri-
Johannes Lange (El crimen como destino), que comparou as condições cas, tais como a esquizofrenia, a mania ou a depressão, Kretschmer
criminais dos gêmeos monozigóticos (idênticos) e dizigóticos (frater-
apresentou como conclusão a existência de uma afinidade biológica
nos). A conclusão a que ele chegou era que, com relação ao delito, os
entre a constituição mental e os tipos morfológicos, defendendo, por
gêmeos monozigóticos reagiam de maneira absolutamente semelhan-
exemplo, que na maioria dos casos, o tipo pícnico tinha uma cons-
te, enquanto que os dizigóticos reagiam de maneira bem distinta. No tituição mental maníaco-depressiva. Com isso, Kretschmer formulou
primeiro caso, as pesquisas realizadas mostravam uma concordância
sua famosa tese dos temperamentos (ou personalidades) em conexão
criminal quase total, enquanto que as exceções foram atribuídas a uma
com as principais formas de psicose. Os termos esquizoide ou cicloide
lesão cerebral como causa do delito; no segundo, existia discordância,
indicavam as personalidades anormais flutuantes entre a saúde e a de-
mas se incluiu uma comparação com irmãos que convivem com fre-
mência, que refletiam os sintomas psicológicos básicos da psicose. Do
quência para demonstrar que a influência de fatores ambientais tinha mesmo modo, existiam transições pouco claras entre os esquizoides e
um pequeno papel na gênese do delito: os gêmeos dizigóticos não cicloides, e certos tipos dentro do campo da normalidade psicológica
apresentam diferenças com os outros irmãos, apesar de uma maior comum das pessoas, que ele denominava personalidades esquizotírni-
semelhança ambiental (ver Hurwitz, Stephan, op. cit., p. 115). cas e ciclotímicas. Segundo Kretschmer era impossível compreender

109
108
-9Como "anormal constitucional cerebral ou hormo- orno produto de "uma constituição delinquente
0 nal" (Nicola Pende)24; por anomalias cerebrais" (Benigno Di Tullio) e, já
em pleno século XXI, com uma tese regressionis-
como urna verdadeira biologia criminalista poderia se construir sem a
ampla base das normas tipo-constitucionais; a constituição psicofísica ta dessas anomalias, sustentadas por Alan Raine,
é, na realidade, a parte mais extensa em que todos os demais fatores como veremos mais adiante neste livron;
causais produzem seus efeitos, e no qual todos convergem. Quanto à
relação entre o biotipo e a criminalidade, Kretschmer "descobriu" em minológica um novo impulso. A circulação dos hormônios permitiria
suas pesquisas que os pícnicos cometiam menos delitos e que geral- avaliar a qualidade dos comportamentos levando em conta as quan-
mente são estafadores; que os leptossómicos cometiam mais delitos e tidades químicas. A Endocrinologia servia deste modo, para estabele-
costumavam ser ladrões; e que os atléticos costumavam ser violentos. cer uma equivalência entre o comportamento criminoso e a liberação
Também na Itália, o médico Nicola Pende apresentou sua biotipologia hormonal, e permitia inferir que o crime poderia ser o resultado de um
humana em 1924 a que vinculou à Endocrinologia. Pende descrevia desequilíbrio quantitativo da produção hormonal. Nicola Pende relacio-
dois tipos de humanos morfologicamente fundamentais: o brevilíneo nou as constituições cerebrais com os descobrimentos endocrinológicos
e o longilíneo. O primeiro era um tipo vital anabólico, econômico, e com sua biotipologia, o que lhe permitiu explicar o delinquente da
que tendia à acumulação no centro de seus humores e de suas célu- seguinte maneira: na maioria dos casos, dizia, nos encontramos frente
las; o segundo, catabólico, consumidor, que pendia ao esgotamento a sujeitos que, por um lado, manifestam anomalias na constituição ce-
rápido das reservas nutritivas, em alguma medida incompatível com rebral, como efeito das causas que engendram a degeneração por meio
a resistência vital. Esses tipos humanos, segundo Pende, se encontra- da herança biológica e que produziram consequências sobre a estrutura
vam em todas as épocas, tanto do indivíduo como da humanidade. e capacidade funcional do cérebro e, por outro, o estímulo endócrino,
As pesquisas modernas, continuava, permitiam constatar a influência mais ou menos acentuado, que produz urna determinada influência.
de sustâncias químicas ou hormonais que estimulavam o anabolismo Na gênese da criminalidade pode predominar, segundo os diversos in-
ou o catabolismo, de acordo com o caso. Alguns anos mais tai-de, o divíduos (tipos humanos), tanto o fator endócrino quanto a constituição
professor americano William Sheldon, após ter fotografado quatro mil cerebral anormal. Somente ocasionalmente o delito é produto de ou-
estudantes, realizou outra tipologia baseada na de Kretschmer distin- tras causas físicas, psíquicas ou toxicas, e são geralmente insignificantes
guindo então, três tipos de indivíduos® um tipo redondo, de predo- frente à transcendência do fator degenerativo ou ao desequilíbrio hor-
mínio visceral: o endomorfo (similar ao picnomorfoCk? um tipo largo, monal (ver Pende, Nicola, "Constitución e Endocrinología", Trabajos...,
: op. cit., pp. 309-310).
de predomínio muscular: o mesomorfo (parecido ao atletomorfo); e@
um tipo frágil, de predomínio nervoso: o ectomorfo (análogo ao lep- 25 ' Na década de 1920, o professor Benigno Di Tullio, discípulo de Pen-
tomorfo). Sheldon, junto ao casal Eleanor e Sheldon Glueck, também de, à raiz de longas e rigorosas observações sobre aproximadamente
realizou uma pesquisa com quinhentos delinquentes que mostrava o mil delinquentes, precisou o conceito de que os fatores causais da
criminalidade estavam subordinados à particular estrutura da perso-
predomínio do tipo mesomorfo, enquanto que na mesma quantidade
nalidade do delinquente, ou seja, àquele conjunto de características
de não delinquentes prevalecia uma maioria de ectomorfos (ver Krets-
morfológicas, funcionais e psicológicas que diferenciavam um delin-
chmer, Ernst, Constitución y caracter, Juan J. López lbor (trad.), Barce-
lona, Labor, 1947, pp. 273, 278; De Greff, Etienne, Introduction a la quente do outro, e ainda mais, que existia uma particular pré-dispo-
Criminologie, Bruselas, Joseph Vandenplas, 1946, p. 26; Zaffaroni, E. sição constitucional para a delinquência em geral, coincidente com
características físico-psíquicas especiais capazes de favorecer reações
Baú', La palabra..., op. cit., p. 130; Pende, Nicola, "La biotipologia
criminosas. Assim como existiam constituições neuropáticas, psico-
humana", Trabajos recientes sobre Endocrinología y Psicologia Cri-
minal, Mariano Ruiz Punes (trad.), Madri, Morata, 1932, pp. 95-97; páticas, tuberculosas, urêmicas, segundo Di Tullio, existia uma cons-
tituição que podia ser considerada como "delinquencial", pelo fato
Pinatel, Jean, "Criminología", op cit., p. 317).
de que, por conta de seus elementos constitutivos, dava lugar a uma
24 O descobrimento das glândulas de secreção interna ajudou a reconhe-
pré-disposição, mais ou menos grave, para atos de natureza criminosa
cer a Endocrinologia como ciência, o que proporcionou à Biologia Cri-
em geral, que se revelava e se realizava, por outro lado, somente pela

110 111
mo "neurótico, anormal social ou doente men- Como produto de uma "organicidade inferior" (Er-
al" (os psicoanalistas Alexander e Staub?; nest Hooton)27;
. Como "anormal constitucional pré-disposto" (Ernst
See I ig)28.
influência de outros fatores da criminalidade e cuja tarefa sensibilizava Sobre estas bases investigativas, epistemológicas e res-
tal pré-disposição favorecendo a sua realização. Vinte anos mais tarde, tritivas da variedade da vida social, política e institucional,
durante a realização do Segundo Congresso Internacional de Crimino- chegou-se a falar de uma duvidosa Criminologia Científica.
logia em Paris, em outubro de 1950, Di Tullio parece reduzir a crimi-
nalidade a um fenômeno biopsicológico dotado de aspectos médico- 27 Em 1939, o professor americano Ernst Hooton expôs uma versão muito
-sociais. Uma das principais causas da criminalidade residiria, então, tardia do pensamento lombrosiano ao defender que as característi-
em uma anomalia cerebral. Teria que se analisar o vínculo entre o cas físicas dos criminosos eram diferentes das dos homens normais.
desenvolvimento ontogenético do cérebro e as funções internas dos Seus estudos sobre mais de doze mil detentos nas prisões america-
lóbulos frontais (Di Tullio, Benigno, La constituzione deliquenziale nas demonstravam que os delinquentes eram claramente inferiores em
nella Etiologia e Terapia della Criminalita, Roma, A.R.A, 1929; Idem, relação aos não delinquentes em peso, em altura, na circunferência
Tratado de Antropologia Criminal, Buenos Aires, I.P.A.C, 1950; Idem, da cabeça, no tórax, na cara, orelhas, nariz e inclusive no cabelo,
"Bio-criminogenese", em Actes du II Congres International de Crimi- dado que as pesquisas provavam que os delinquentes têm menos pe-
nologie, Paris, PUF, 1950, pp. 5-23. Andrieu, Bernard, "L'anomalie los no corpo e na barba do que na cabeça. Além disso, haveria mais
fonctionnelle: genes et neurones. Un modele scientifique ambigú dans delinquentes ruivos que não ruivos. As penitenciárias, para Hooton,
la psychiatrie et la biologie contemporaines", em Mucchielli, Laurent estavam construídas sobre areias movediças e pântanos estremecidos
(dir.), Histoire..., op. cit., p. 425). dos inferiores organismos humanos (ver Hooton, Ernst A., Crime and
26 Sob a influência da Psiquiatria Psicanalítica, Franz Alexander e.Hugo the men, Cambridge, Harvard University, 1939, p. 130; Lopez-Rey
Staub, médico e jurista alemães, assimilaram a delinquência à neuro- Arrojo, Manuel, Introducción..., op. cit., p. 55).
se. Tanto o neurótico como o criminoso, diziam, fracassaram pela sua G Em 1950, o professor austríaco Ernst Seelig também desenvolveu urna
incapacidade de resolver o problema de suas relações com a família tese' constitucional da delinquência. Para Seelig, o meio social tinha
em um sentido social. O que o neurótico exterioriza simbolicamente • um papel decisivo somente no desencadeamento dos atos criminais,
e com sintomas, não causam danos aos demais, o criminoso o realiza em sua data e em seu modo de execução, mas de modo algum expli-
mediante ações reais. Para dar início à discussão dessa questão, era cava as causas profundas do crime. Para isso era necessário penetrar
necessário conhecer como se formou a parte do Eu adaptada social- na estrutura da personalidade criminosa, onde podia se fazer notar
mente, saindo do grande celeiro da vida ancestral, instintiva e antisso- uma aptidão para o ato que repousava, via de regra, em una disposi-
ciai, isto é, do Id. Não obstante, reconhecem três tipos principais de ção criminógena. Assim como a humanidade em geral, o delinquente,
delinquentes crónicoscn os neuróticos _que têm uma conduta de ini- em sua estrutura psicofisiológica, estava determinado em grande parte
mizade social gerada diirante a primeira infância ou nos anos seguin- pela sua constituição e, excepcionalmente, por acidentes exógenos.
tes (doentes anímicos)ilos normais, os quais não se diferenciam em Os resultados da ciência da Etiologia Criminal, dizia Seelig, concor-
sua estrutura psíquica de quem não cometeu delitos, mas que se adap- davam com a sabedoria popular que traduzia a experiência milenar
tam à parte mais baixa da sociedade (anormais no sentido social)ats de dos provérbios: "a ocasião faz o ladrão" (a importância do meio
criminosos de base orgânica, que são aqueles cujo desenvolvimento no desencadeamento do ato criminoso) e "tal pai, tal filho" (a impor-
está retardado por causas somáticas ou cuja personalidade espiritual tância da constituição para o desenvolvimento de uma personalidade
foi destruída por processos patológicos orgânicos, hereditários ou não. criminógena). Estes provérbios, concluía, não se contradizem, já que
(Alexander, Franz e Staub, Hugo, El delincuente y sus jueces desde el expressam diferentes problemas (ver Seelig, Ernst, Lehrbuch der Krimi-
punto de vista psicoanalítico, Madrid, Biblioteca Nueva, 1935, PP. nologie, Graz, Jos. A. Kienreich, 1951. Tradução francesa, Traité de
52-53, 60-61). Criminologie, Paris, PUF, 1956, pp. 192-193).

113
112
II

O causal-explicativo e a dependência que tinham as ritabilidade e instabilidade e, se alega, um comportamento


pesquisas dessa índole do lugar onde se realizavam, que mais agressivo. Logicamente, trata-se também de perspec-
eram as prisões, já limitavam seu valor científico. tivas reducionistas que não dão conta nem do aspecto que
define o delito nem da complexidade das interações e con-
A permanência e reiteração do paradigma po- dições sociais que envolvem o ser humano.
sitivista
A Criminologia Positivista na América Latina
Como o Positivismo, aparentemente, nunca morre, ar-
raigado à sua vinculação com "o científico", como veremos Como em quase todas as partes, a Criminologia Positi-
no capítulo referente às neurociências e às pesquisas regres- vista dominou as publicações, as cátedras e as associações
sionistas, os. momentos históricos voltaram a assumir um profissionais da Criminologia latino-americana, e isso conti-
papel de retrocesso no pensamento criminológico, segundo nuou até que se instaurou na região a Criminologia Crítica,
novos ou similares parâmetros de Lei e Ordem, politicamen- como se explicará mais adiante neste livro.
te mais cômodos que etapas anteriores, mais críticas e totali- Os títulos dessas publicações e o surgimento dessas as-
zadoras do pensamento criminológico. sociações definem bem a orientação que seguiam, e por isso,
Sendo assim, ainda recentemente, em algumas novas bastariam para entender a Criminologia de épocas anteriores:
pesquisas norte-americanas foi assinalado que os presidiá- Em 1878, é publidada na Argentina a obra de José Ma-
rios violentos e os delinquentes sexuais mostram níveis de ria Ramos Mejía, Las neurosis de los hombres célebres en Ia
testosterona mais altos que outros reclusos, assim como do historia argentina.
correspondente grupo de controle. Em 1893, a obra de Martínez Baca e Vergara, Estudios
Com isso pretendeu-se explicar as baixas porcentagens de Antropologia Criminal, é publicada em Puebla, México.
de criminalidade que as mulheres apresentavam em relação Em 1897, o mexicano Macedo publica La Criminalidad
aos homens, e que contradiziam todos os estudos clínicos en México.
mencionados. Aduz-se, então, que isso se deve porque elas Em 1898, sai Los hombres de presa, do argentino Luis
são portadoras, por outro lado, de progesterona, que teria
Maria Drago e dois anos mais tarde, é publicada na Itália,
efeitos tranquilizantes. Apontou-se inclusive, que alguns tra- com prólogo do próprio Lombroso, e, em 1921, voltaria a
tamentos baseados nessas pesquisas têm efeitos perigosos: o ser editada, esta vez, sob o título de Antropologia Criminal.
tratamento à base de hormônios femininos para diminuir a
Em 1888, a Sociedade de Antropologia Criminal é fun-
agressividade, feminizou o aspecto físico masculino e pro-
dada em Buenos Aires, graças à iniciativa de Drago, Pinero
duziu alterações de personalidade que, dizem, com o pas-
e Ramos Mejía, diretores, além de um Boletim que publicou
sar do tempo incidiram em condutas antissociais. Mas essas
os primeiros estudos dessa Sociedade.
pesquisas, para justificar a chamativa flutuação das cifras de
criminalidade na mulher, a ligaram aos desajustes hormonais Um ano depois, em 1889, criou-se no Rio de Janeiro, a
produzidos no período menstrual, quando diminui a proges- Associação Antropológica e de Assistência Criminal.
terona, o que provocaria como consequência uma maior ir-

115
114
Em 1889, é publicada na Argentina a obra Ciencia Cri- ca, em 1906, "La Criminalitá dei negri in Cuba", na revista
minal y Derecho Penal argentino, de Cornelio Moyano Ga- Archivo di Psichiatria, e Los negros brujos, primeiro trabalho
citúa, quem funda, em 1905, a Cátedra de Criminologia na de uma serie sobre a Hampa Afrocubana.
Universidade Colonial de Córdoba, e publica La delincuen- Nesse mesmo ano, o costarriquenho Anastasio Alfaro pu-
cia argentina ante algunas cifras e teorias (Córdoba, Argen- blica Arqueologia Criminal, revisão de antigos casos criminais
tina, 1905). com alusão às novas orientações criminológicas.
Este autor, junto a Pinero, Ramos Mejía e outros, forma a Um ano depois, em 1907, aparece no Uruguai a obra
Comissão encarregada de elaborar o Código Penal Argentino de Miranda, El clima y el delito.
de 1906, com acusadas influências das então novas teorias
Em 1907, Antonio Ballvé, Diretor da Penitenciaria Na-
sobre a criminalidade.
cional, propõe a criação de um Gabinete de Psicologia Clí-
No Brasil é publicada, em 1396,_a obra Criminologia e nica e Experimental destinado ao estudo dos delinquentes,
Direito Penal, de Clovis Bevilacqua, e em 1897, a de Afrânio bem como a outras finalidades científicas de caráter geral.
Peixoto, Epilepsia e delito, sem deixar de mencionar obrai No dia 6 de junho, esse Gabinete transforma-se no Instituto
de Nina Roc_ILigues, como por exemplo, As raças humanas e de Criminologia e Ingenieros foi nomeado seu primeiro dire-
a responsabilidade penal no Brazil (1894), entre outras. tor. Em 1914, foi substituído por Osvaldo Loudet.
Outros autores que publicam obras durante este período Em 1912, é realizada a primeira compilação bibliográ-
são Miguel Macedo (México, 1889); Octavio Beche (Costa fica sobre Criminologia, na obra Criminologia Argentina,
'Rica, 1890) e Francisco Herboso (Chile, 1892). do argentino Eusebio G6mez que publicou, em 1908, Mala
Francisco Veyga funda em Buenos Aires, em 1898, o vida en Buenos Aires.
Curso de Antropologia Criminal, e Luis Montané faz o mes- No Chile, Israel Drapkin funda o Instituto de Crimino-
mo em Havana, em 1899. Enquanto isso, nesse mesmo ano, lógia à semelhança do qual José Ingenieros havia criado na
na Venezuela, é publicada a obra de Francisco Ochoa Estu- Penitenciaria de Buenos Aires.
dios sobre la Escuela Penal Antropológica. Em 1933, funda-se a Sociedade Argentina de Crimino-
Outros países que não ficam à margem deste desenvol- logia. Em 1934, é criado na Universidade do México, o cur-
vimento são Bolívia, com a publicação, em 1901, da obra de so de Criminologia para médicos e advogados, tendo Quiroz
Bautista Saavedra, Compendio de Criminologia, e México, Cuarón como o primeiro bacharel, e que pouco depois fun-
onde Julio Guerrero publica sua obra Génesis del crimen en dará a Sociedade Mexicana de Criminologia.
México (1901). Enquanto isso, em Cuba, Israel Castellanos fazia estu-
Em 1902 José Ingenieros funda em Buenos Aires a revis- dos sobre o peso da mão. e da mandíbula.
ta Archi vos de Psiquiatria e Criminologia, e em 1913 publica-
rá o primeiro tratado de Criminologia Clínica do continente.
Em 1906, aparecem as publicações de Roumagnac Los
criminales en México (México, 1905) e Crimenes sexuales y
pasionales (México, 1906). O cubano Fernando Ortiz publi-
116 117
A crítica do ponto de partida epistemológico do puderam sair do terreno abstrato do que é moral ou
Positivismo: a obsessão pelas técnicas de pesquisa pecaminoso. O Positivismo se instala, com seu arsenal
e o cientificismo de preconceitos, sobre o que poderia apenas ser con-
siderado como uma parte da "realidade".
A partir do ponto de vista epistemológico veremos
que para o Positivismo existe um mundo físico que 4. Como as ferramentas do Positivismo partem do cul-
pode ser conhecido ao desentranhar suas relações to do fato, do verificável e do quantificável, são
de causa-efeito, suas consequências, sua maneira de impróprias para uma discussão que vá além do fe-
entrar em atividade e sua fenomenologia. De modo nomênico. Na verdade, no terreno axiológico en-
que, o interesse principal desta Criminologia foi o de contraremos valores não verificáveis e, ainda me-
obter um instrumental de técnicas de pesquisa úteis nos, quantificáveis. Deixando assim, em aberto,
para definir, da mesma maneira como acontecia perguntas que não têm "resposta científica" porque
com as ciências naturais, as leis que regeriam aquele podem estar vinculadas, entre outras coisas, à Ética
mundo físico que era nada menos que a sociedade à Estética. Por exemplo, perguntas como "o que é
e os seres humanos com todas as suas complexida- bom, o mal, o feio, o amor, a tristeza, a felicida-
des. Desta maneira, as técnicas de investigação che- de, o justo e o injusto", não têm resposta: como se
garam, por vezes, a serem consideradas um fim em medem essas noções, como se verificam, como se
si mesmas, sem que importasse muito o que ao final classificam, como se transformam em cifras, estatís-
se pudesse "descobrir". Assim, veremos que determi- ticas ou leis gerais?
nado pesquisador das neurociências, por exemplo, 5. Produto fiel de um Estado moderno concebido gra-
costume aduzir: ças a um suposto "consenso social", segundo as
que seu "descobrimento" é suscetível em oferecer mencionadas teorias contratualista.s, o Positivismo
uma "verdade" generalizante e total às razões da não questionará a ordem dada e não aportará alter-
transgressão. Isso viria a caracterizar esse reducio- nativas. Isso será particularmente significativo para
nismo inaceitável dos atos sociais e de seus protago- a área do conhecimento criminológico, já que todo
nistas em uma perspectiva recortada da totalidade. Sistema de Justiça Penal, particularmente o referi-
do às definições de condutas delitivas presentes nos
O Positivismo implanta-se em terreno de tema tão
respectivos Códigos Penais, é aceito sem objeções.
transcendente como o das condutas (politicamente se-
lecionadas) que seriam tão socialmente negativas que Portanto, o Positivismo criminológico é legitimador
mereceriam uma pena ou sanção. Quase à maneira reprodutor do statu quo.
da justiça divina na terra, em cujo fundo poderia ha- 6. O Positivismo não é autorreflexivo. Esta perspecti-
ver um substrato de aroma religioso sobre o bem e o va cientificista — que não científica — significaria a
mal. O que através dos tempos foi debatido e definido separação do sujeito cognoscente e do objeto cog-
pela dogmática penal e os filósofos sociais como "bem noscível, isto é, que o mundo físico que se pretende
jurídico tutelado", e que, apesar das tentativas, não pesquisar estaria fora do observador, ao qual ele se-

118 119
ria alheio. Essa distância entre o sujeito que conhece do particular se chega ao geral. Caracteriza-se, pois,
e o objeto de conhecimento- impede o investigador pelo estudo de casos.
de observar sua própria dependência ou indepen- g. O método é, portanto, como se disse, causal-expli-
dência de critérios e valores. O que os Códigos cativo.
Penais, em um Estado que se presume consensual,
Não há que deixar de questionar a suposta relação
digam que é delito, é delito; e, portanto, será sem causa-efeito no mundo das ciências sociais e da con-
discussão uma conduta fortemente danosa, e uma duta humana. Causa é a que sempre produz um efei-
razão para considerar as pessoas que os cometem•
to; efeito é o que sempre é produzido por essa causa.
como diferentes" ou como anormais. Se um sistema Não é a mesma relação que existe, por exemplo, no
é consensual, aquele que se desvia não pode ser se mundo da química, quando duas partes de hidrogé-
não, anormal.
nio com uma de oxigênio compõem a água.
Para o Positivismo é possível que o conhecimento seja 9. O Positivismo Criminológico tradicional, então, que
, objetivo. O que se obtém como conhecimento então, se será fundamentalmente clínico, causal-explicativo
considera que tenha altas probabilidades de que seja cientí- penitenciário, sempre vendo o delinquente como
fico. Se assegura de antemão que o sujeito cognoscente não um doente, ou em todo caso, como alguém dife-
será influenciado pelo que está fora de sua observação, e rente ao normal. O fato de ser praticamente uma
que esse sujeito não aportará à pesquisa elementos que são Criminologia penitenciária reduz o campo de estu-
próprios de sua personalidade ou de seu sistema de crenças. do a indivíduos que demonstraram algum grau de
Assume-se falsamente que a pesquisa não estaria impregna- vulnerabilidade frente ao controle.
da por sua subjetividade.
10. Desconhece-se a seletividade de um sistema penal
Sobre essas frágeis bases se edificam não só a suposta que somente pega os indefesos, os mais fracos desde
neutralidade da ciência, mas também a cientificidade dos, ponto social, intelectual, biológico, educacional
resultados da pesquisa criminológica. económico. Sutherland fazia uma irónica relação
7. O Positivismo aspira à descoberta de leis gerais metafórica ao assinalar a Criminologia penitenciária
as quais definiriam o que constitui a realidade do"?: como potencial geradora de uma relação entre "per-
mundo físico e social" — sobre a generalização de nas curtas" e delinquência, já que quem corre mais
eventos recorrentes, isto é, analisando vários fatos rápido não será capturado pela polícia.
isolados que se repetem no tempo e no espaço, em 11 Esta Criminologia ignora, por isso mesmo, tudo o
uma forma de conhecimento indutivo, isto é, aonde que está coberto pelo manto opaco da chamada ci-
19
Ver Platt, Tony, "Proposiciones para una Criminologia Crítica en los
fra negra — delinquência oculta ou não registrada —,
Estados Unidos", em Capítulo Criminológico, n° 3, órgão do Centro de que supera a quantidade e a qualidade de indivídu-
Investigações Criminológicas, Universidad dei Zulia, Maracaibo, 1975. os submetidos ao sistema penal.
E Aniyar de Castro, Lola, Criminología de Ia Reacción Social, Maracai
bo, Instituto de Criminologia, Universidad dei Zulia, 1977, p. 10.

121
120
E, logicamente, ignora os delinquentes de colarinho amplas em uma época de naturalização do social, assegura-
branco que são justamente os que aparecem como mais ram a extensão dessas imagens e dessas afirmações sobre o
adaptados à sociedade e a seus fins implícitos, e a querni que hoje se chama o "pensamento do homem comum" ou
nenhum criminólogo positivista pensaria aplicar provas de'
inteligência, ou investigar sua composição familiar, sua raça, A isto se referiu posteriormente Denis Chapman,
ou sua morfologia corporal ou craniana. um criminólogo que poderíamos afiliar à Criminologia
Nessa época, portanto, proliferaram os livros e trabalhos Interacionista, fenômeno que desenvolveu sob o conceito de
sobre as relações entre delinquência e raça, delinquência e "estereótipo do delinquente" em seu livro com esse mesmo
inteligência, delinquência e pobreza, e até as pesquisas sobre título. A este conceito, por sua significação como o mais
o aumento do preço do pão e o aumento da delinquência, o claro reflexo institucional do Positivismo, dedicaremos pos-
que equivalia a relacionar a fome com o delito (Exner"). teriormente um espaço explicativo.
Sendo assim, por tratar-se de uma Criminologia do Con- A Criminologia Positivista tentou substituir a prisão por
senso e sem real autonomia, a Criminologia surgirá nos ve- outras formas de reclusão que, sob o nome de "medidas de
lhos textos do Direito Penal (e há alguns criminólogos da segurança", eram basicamente formas de tratamento de tem-
velha escola que ainda afirmam isso) como uma Ciência Au- po indeterminado, já que terminavam somente quando os
xiliar do Direito Penal. encarregados do tratamento opinassem que o delinquente
estava "curado" ou poderia ser "reintroduzido", e para as
O que sem dúvida era.
quais não haveria defesas, apelações nem garantias, mas
A crítica da função política da Criminologia Po- sim, somente a presença de especialistas não jurídicos. In-
clusive em algumas legislações, às vezes, a reclusão era du-
sitivista. Sua relação com os Direitos Humanos e
plicada em casos como os que no Código Rocco italiano,
seu reflexo institucional
tipicamente positivista, se denominou o "doppio binario"3'.
Comecemos por afirmar um paradigma das novas Crimi- Isso era a contraditória aplicação, a uma ?Ó pessoa, de uma
nologias: as teorias criminológicas não são inocentes. combinação de penas (que são para imputáveis) e de "me-
Durante muito tempo, em pleno século XX, gerações (Mas de segurança" (que seriam para inimputáveis, ou para
de latino-americanos aspirantes a criminólogos assistiam às aguela difusa categoria de "imputabilidade diminuída").
aulas de Criminologia Clínica — não podia ser outra que não Ao Positivismo se fizeram outras críticas vinculadas a
essa, que era a única sobre a qual se tinha conhecimento — sua epistemologia e ao reflexo político e institucional que
na prisão de Rebibbia, em Roma, onde na entrada da sala gerou:
de aula havia uma escultura de uma pessoa com as caracte-
' • O riminólogo positivista, por sua ausência de autor-
rísticas fisionômicas que Lombroso atribuiu ao delinquente
reflexão, exerce uma função autocontroladora. Con-
nato. Todas essas coisas, e a ausência de explicações mais
31 O "duplo trilho", para referir-se às vias paralelas de um trem que não
3° Exner, Franz, Biologia Criminal en sus rasgos fundamentales, Juan dei
deveriam se encontrar em nenhum ponto.
Rosal (trad.), Barcelona, Bosch, 1944.

123
122
formando técnicas de obediência e disciplina a valo- de decisão dos operadores do Sistema de Justiça Pe-
res estáveis e imutáveis. As supostas grandes mostras nal.
representativas refletiriam um "grande consenso". E
Porque o delinquente seria um doente ou teria de-
tudo isso, através do que se chamou um touch of
ficiências pessoais e sociais graves, se instauraram
science. Por isso Schuman diz que "na batalha con-
gabinetes clínicos nas prisões, com fins de diagnós-
tra o crime, a Polícia, os Tribunais e o Sistema Corre-
tico, prognóstico, tratamento e avaliação da "peri-
cional, formam a frente, enquanto que os criminólo- culosidade".
gos trabalham em uma remota base militar".
O mesmo conceito de periculosidade tem consequ-
Em sua dimensão clínica, se substituem as "Políticas ências graves para os Direitos Humanos, pois as pes-
Sociais" pelo "Controle do Crime". E, em geral, os
soas podem ser objeto do sistema penal somente pela
"investimentos sociais" pelos "custos sociais". sua probabilidade de se converter em delinquentes.
Sobre a base dos estereótipos do mal e do perigo- Por se tratar de f'pessoas doentes", o "tratamento"
so, grandes sistemas de dominação internacional se
estaria baseado em um amplo leque de medidas
instalaram no mundo. África e América Latina são diferentes à pena, que, portanto, se denominaram
um bom exemplo disso. Conquista, colonização e substitutivos penais os quais dependeriam de espe-
invasões favoreceram anexações e tutelas de territó- cialistas parajurídicos que o desenvolveriam.
rios ricos em recursos naturais. O desenvolvimento
Em matéria legislativa, foram colocadas em funcio-
se considerou um privilégio de países setentrionais.
namento leis de periculosidade, como as de "vaga-
E se negaram Direitos Humanos, como o da auto-
bundos e meliantes", que castigavam ou isolavam
determinação, os quais, certamente, foram poste-
"preventivamente" a pessoas pelo que eram e não
riormente reconhecidos internacionalmente sob a
pelo que realizavam. É o que se denomina Direi-
denominação da "terceira geração".
to Penal de Autor. Exemplo disso são os delitos de
A Cifra Negra, ou delinquência oculta, se baseará perigo abstrato, a punição dos atos preparatórios, e
no estereótipo, que mobilizará de forma preferencial a habitualidade e a reincidência como agravantes,
a atividade da Polícia, orientando-a ao lugar e em mesmo quando se houvesse cumprido condenações
direção ao objeto das prisões policiais de diversas anteriores por outros atos similares ou diferentes.
pessoas de uma só vez. Tudo o que consequente-
A Lei de vagabundos e meliantes — que na Venezue-
mente produzirá estigmatização e antecedentes poli-
la foi declarada inconstitucional quando já fenecia o sécu-
ciais seletivos, quando não execuções extrajudiciais.
lo XX, e somente porque sua denominação significava uma
Também orientará a atividade do Ministério Público,
pena infamante, apesar de que todo o seu texto era inconsti-
dos trabalhadores sociais, dos juízes e dos funcioná-
tucional — era na verdade um instrumento jurídico de terror
rios penitenciários, influenciados pelo estereótipo do
contra os marginalizados, mesmo quando não cometiam de-
perigoso. Esses são os denominados "procedimentos
litos. Estava cheio de violações à Carta Magna e influenciado
argumentativos", que estariam na base das tomadas

124 125
até que ela fosse fechada no final da década de 1940, pelo
pelos poderes presentes na sociedade daquele momento. Por
então Diretor do Serviço Penitenciário Federal, Roberto Pet-
exemplo, eram condenados quem pra. asse bruxaria (poder
médico); quem pedisse esmola sem o consentimento ecle- tinato. Apesar disso, os tribunais seguiram impondo essa
pena complementaria aos múltiplos reincidentes com cará-
siástico (poder da Igreja); quem nao ivesse ofício ou pro-
ter indeterminado. Essa medida fundada na periculosidade
fissão reconhecida (em um país que não assegura emprego
foi declarada inconstitucional, já que se tratava de uma de-
à maioria da sua população); quem vivesse de empréstimos
claração de inimizade que retirava da pessoa sua condição
ou estafadores "de ofício" (não se referia precisamente aos
comerciantes que negociavam com o apoio de empréstimos humana e violava todos os seus direitos fundamentais34.
bancários); bêbados de rua (e não bêbados em lugares onde A Corte lnteramericana de Direitos Humanos também
há um negócio de álcool, como clubes, bares ou discotecas); afirmou o seguinte:
ou quem levasse extratores de chaves quebras32 ; vagabun- A valorização da periculosidade do agente implica a apre-
dos, e a quem se imputara ter outras formas de periculosida- ciação do julgador acerca das probabilidades de que o im-
de ante delictum. putado cometa atos delitivos no futuro, isto é, agrega à im-
Mais grave ainda, seu juízo — se é que existia — era bre- putação, pelos atos realizados, a previsão de atos futuros
que provavelmente acontecerão. Com esta base a função
víssimo e sem defesa ante autoridades administrativas e não
penal do Estado se desdobra. No final das contas, se sancio-
penais (Prefeitos e Governadores), que "ditavam a sentença"
naria o individuo — com pena de morte inclusive — não com
até por cinco anos, renováveis ad infinitum, de banimento base no que ele fez, mas sim, no que ele é. Fica evidente a
à colônia penitenciária; supostamente colônias agrícolas de necessidade de se ponderar sobre as implicações, que são
reeducação na selva amazônica, que na realidade eram si- evidentes, deste retorno ao passado, absolutamente inacei-
milares à famosa Caiena francesa". tável desde a perspectiva dos Direitos Humanos35 .
Na Argentina, a Suprema Corte de justiça, apenas em
Hoje em dia, tem que se dar atenção aos Livros de Fal-
2006 — e com a pluma inconfundível de Zaffaroni —, decla-
tas ou Contravenções que existem em alguns Códigos Pe-
rou a inconstitucionalidade do artigo 52 do Código Penal
nais ou em Leis Administrativas, porque, sob a coarctada
de 1921, que estabelecia uma pena acessória por tempo
da levíssima gravidade dos atos comidos, se convertem em
indeterminado aos múltiplos reincidentes. O Código Penal
instrumentos punitivos, geralmente sem garantias ou sem
argentino havia previsto uma pena acessória à última conde-
aplicação dos elementos que a Dogmática designa aos tipos
nação em consonância com a lei de banimento francesa de
penais, quase como se se tratasse de indivíduos portadores
1885, que deportava os condenados para as colônias. Como
de periculosidade pré-delitiva36 .
a Argentina não possuía colônias, os reincidentes eram de
portados para a famosa prisão do fim do mundo em Ushuaia ."Gramajo Marcelo Eduardo s/robo en grado de tentativa", Recurso de
: hecho, sentença de 5 de setembro de 2006.
" Instrumento de trabalho de qualquer chaveiro profissional. [N. do TI 1.1."Fermín Ramírez c/Guatemala", CIDH, Serie C N" 126, caso sentença
" Colônia penal francesa fundada na capital de mesmo nome da Guiana de 20 de junho de 2005.
Francesa, em 1848, para onde eram levados condenados degredados 15... Ver Crisafulli, Lucas e León Barreto, Inês (coords.), ¡áCuanta Falta?!
Foi desativada em 1951. [N. do T.I Código de Faltas, Control Social e Derechos Humanos, Córdoba, Ine-

127
126
I w

Nos códigos de corte positivista se estabeleceram de risco" sobre a base de cálculos de probabilidades
as denominadas medidas de segurança que, como próprios das técnicas atuariais, expressão que subs-
dissemos, eram de duração indeterminada". titui — eufemisticamente — a positivista "periculosi-
Quanto à execução da pena, a consideração de dade pré-delitiva".
um delinquente como perigoso influirá nos lugares No terreno acadêmico, vimos que há pesquisas
de reclusão, no regime progressivo, na designação cujos elementos partem de pressupostos de pericu-
a estabelecimentos abertos, na semiliberdade, e na losidade sem analisar suas razões culturais nem a
preferência por medidas estigmatizantes. Assim, não seletividade da prisão. No Equador vimos especial-
lhes são outorgados medidas alternativas à prisão ou mente uma que tentava descobrir a agressividade
os mal denominados "benefícios" processuais — que através de desenhos encefalográficos, relacionando-
na realidade, são direitos —, e os reclusos estarão su- -a com a ingestão de milho: isso em um país onde a
jeitos ao que se chamou de um "segundo julgamen- população mais pobre, que é a indígena, se alimen-
to" nas penitenciárias, levado à cabo, nos relatórios ta de milho.
técnicos, por especialistas não jurídicos, geralmente • Ao ignorar a delinquência de colarinho branco
sem processo, defesa ou apelação. (que compõe as chamadas por Versele "cifras dou-
No terreno administrativo, alguns se apoiaram nas radas"), esta estará prevista em leis administrativas
Tabelas de Previsão Social do casal Clueck38. Elas e controlada por tribunais especiais, que não têm
prefiguram a contemporânea Criminologia Atuarial efeito estigmatizante e sim um tratamento classista
do Neopositivismo, que introduziu o termo "fatores diferenciado.

cip, 2011, onde há um extenso tratamento sobre a periculosidade do


Os programas e operativos de prevenção e controle
tema contravencional. se desenvolverão somente em bairros marginais.
37 Como temos dito, até que o sujeito perigoso se cure ou deixe de sê-lo, Os objetivos de reintegração e ressocialização con-
o que a princípio significava reclusões permanentes, pois geralmente
siderados como obrigação e não como direitos, afe-
não havia controle sobre as possíveis curas.
38 Glueck, Sheldon e Glueck, Eleanor T., Fisico e Delinquenza, Barbera, tam "o direito a ser diferente" que hoje é um requi-
Firenze Universitaria, 1965; e também seu Unraveling juvenile delin- sito das democracias ocidentais.
quency. Em sua pesquisa baseada no estudo comparativo de quinhentos
Em certas ocasiões se propôs (e ainda se propõe)
rapazes da mesma zona urbana, dos quais os primeiros teriam demons-
trado "evidentes e reiteradas mostras de tendência à criminalidade", o a castração de delinquentes, nos casos de delitos
casal Glueck analisou e deu ênfase a diferentes traços somáticos (segun- sexuais, seja como "tratamento", seja como alterna-
do a teoria de Sheldon), psíquicos, e a situações familiares e ambientais tiva à prisão. Por se tratarem de direitos que não se
que poderiam ter tido uma influência determinante na formação de sua. podem dispor livremente, estas medidas são inacei-
personalidade (tal como Ferri afirmou na multifatorialidade da gênese
táveis.
do comportamento delitivo). O grave desta pesquisa, desde o ponto de
vista de seus efeitos político-criminais, é que sobre a base de suas cifras Alguns protocolos têm tentado excluir os delinquen-
comparadas, podiam elaborar-se verdadeiras "tabelas de previsão" dd tes da proibição de manipulação genética, medida
comportamento delitivo, isto é, de "periculosidade ante delictum".

128 129
que deve ser sempre voluntária, e nunca em troca
CAPÍTULO VII
de negociação da pena de reclusão, já que o "con_,
sentimento" é dado de maneira obrigada pela cir
cunstância de ser recluso ou imputado. O ESTEREÓTIPO DO DELINQUENTE
O Positivismo institucional, como viemos dizendo, não •
está morto; pelo contrário, não só é um grande sucesso de Introdução. A tese de Chapman. Funções sociais e políticas
público, mas também subexiste em alguns departamentos do estereótipo do delinquente. O delinquente como bode
ministeriais que mantém nas prisões gabinetes clínicos in. ..„expiatório. Diferenças entre a teoria do etiquetamento ou
terdisciplinares, com o objetivo de desenvolver sistemas de. . estigmatização e a teoria do estereótipo. Da Criminologia
Tradicional à Sociologia da Conduta Desviada.
tratamento, ou reeducação, que constituem equipes que vão n-•
decidir sobre outorgar coisas tão importantes como rnedida,
alternativas à prisão, liberdade antecipada, ou ao contrário. Introdução
sobre a base do critério de periculosidade. O Positivismo, através de seus teóricos, elaborou de for-
O pior, talvez, é a sobrevivência de seus efeitos ideo- fria gradual, e com boa sustentação, os grandes mitos que
lógicos que mantém um sistema penal classista e seletivo, e -àCbmpanharam o delinquente e a Criminologia durante estes
por isso, violador dos Direitos Humanos. Últimos cento cinquenta anos. O mito fundamental foi o de-
.n.bininado por Chapman de o "Estereótipo do Delinquente"'.
'Sem ser criminólogo crítico nem radical, este autor de-
Monstra em sua obra as relações entre o caráter classista das
lerS•e a função repressiva da polícia e das instituições em geral,
para chegar finalmente: 1) à função das estruturas carcerárias;
' 2) ao que ele denominou de o estereótipo do delinquente; e 3)
-,,áfuncionalidade social do crime e do criminoso.
'A tese de Denis Chapman sobre o estereótipo do delin-
quente está praticamente fora do campo tradicional da So-
-- r-eçOlogia da Conduta Desviada e se estende sobre uma análise
-• Sstrutural da sociedade e seus mecanismos de manipulação
ê- ginalização. Pertence sem dúvida alguma à Criminologia
cl.a' Reação Social e é a melhor tentativa de desmistificação
. 'clã categorias delinquenciais.

, !;», Chapman, Denis, Sociology and the stereotype of the criminal, Lon-
-..r,ordres, Tavistock, 1968. Chapman é um autor britânico próximo à Esco-
la Interacionista.

130
Introduz-se dentro de um panorama conceituai de criti- social; f) uso idêntico de rótulos para identificá-los, mesmo o
ca das instituições chamadas "fechadas", ou "instituições de termo com mais eufemismo, como o de "desviado".
controle total" (manicômios, prisões, hospitais, asilos) que, Tudo isso contribuiu para uma crescente literatura sobre
como mencionamos no capítulo anterior, teve seu início ern tema anti-institucional.
Goffman com seus livros Asylums y Estigma. La identidad .
O estereótipo do delinquente não só foi transmitido pe-
deteriorada. Como se falou, é a partir de 1968 que se co4
los' operadores acadêmicos do Positivismo, mas também pelos
meça a denunciar o caráter ideológico das mesmas discip0 .--,
nas (Pedagogia, Correcionalismo, Criminologia, Psiquiatria ' . Meios de comunicação e por todo o controle social informal,
como a literatura adulta e infantil, a escola, e os grupos de
e similares) que pretendem justificar o estranhamento ou sei',I
?
-opinião, o que provocou a existência daquilo que atualmente
gregação daqueles definidos como doentes, "estranhos" otj
se consideram como verdadeiros "constructos sociais".
desviados, ou, em todo caso, que facilita identificar unia'
necessidade de disciplina, instrução ou tratamento. Chapman descreve este estereótipo da seguinte maneira:
Os delinquentes seriam, então, somente aqueles que estão/ O delinquente não é branco, casado, profissional, re-
nas prisões ou encarcerados, como os "loucos" são só os que; ligioso, nem de classe média ou alta. É anormal, violento,
estão reclusos no manicômio. Ambos necessitariam de represií feio, pobre e mal vestido. Pertence às camadas mais baixas
são, ostracismo e encerro, e, no melhor dos casos, um "trataY da sociedade. Tem problemas mentais ou, pelo menos, psi-
mento científico". Dizemos no melhor dos casos, colocandgl cõlógicos. Seu lar é um lar desunido. Não tem educação.
ênfase na relativização das definições e do tipo de tratamento" São suas perversões hereditárias, seus hormônios, sua per-
sonalidade, seus genes, junto ao alcoolismo, à sífilis ou à
A análise das instituições fechadas demonstrou que nd)
tuberculose, o que o induz a cometer atos proibidos.
seu interior se exercia de forma aberta a mesma violênci?‘
que no exterior se exercia de maneira mais sutil: arbitrarie?' Também Goffman definiu o desviado como alguém que
dade, crueldade, poder e exploração2. não é "jovem, casado, branco, habitante de lugares urbanos,
prOveniente dos estados do norte, heterossexual, protestante,
Goffman descobre impressionantes analogias entre toá\
dadre, com instrução de nível superior, le não tem] bom em-
tipo de instituições fechadas: a) a superposição de conceQ
. ,prego, boa pele, o peso e a altura adequadas e (não é] dado
tos, tais como cárcere-manicômio, enfermeiro-vigilante; bit
..a ccliversos deportes"3.
mesmo processo de degradação e de despersonalizaçãda
do indivíduo através de um mesmo ritual; c) a debilidade dtp Definitivamente, não é um WASP — White, Anglo-Saxon
ahd Protestant ou Branco, Anglo-saxão e Protestante.
racionalização científica que as sustenta; d) a semelhan4
dos especialistas que se ocupam deles; e) de como toda
rti . • A tese de Chapman
os reclusos são parecidos, todos eles marginais e excluído,
j,V A tese que se desdobra em seu livro, pode ser resumida
miseráveis e sem proteção alguma, e de uma mesma clasie2
nos seguintes pontos:
2 Ver, sobre este ponto, Capecchi, Vittorio e Jervis, Giovanni, "Inflas ,
ducción", em Chapman, Dennis, Lo stereotipo dei criminale, Torino5 Goffman, Erving, Stigma. Notes on the management sof spoiled identi-
Einaudi, 1971. . ty, Middlesex Books, 1970, p. 174.

132 133
Todo comportamento desaprovado pode se manifestar idênticos, objetiva e simbolicamente individualiza-
também em formas objetivamente idênticas que são; dos. É por isso que não se pode fazer nenhuma veri-
não obstante, aprovadas ou recebidas com indiferença. ficação científica das teorias e hipóteses que se têm
Os comportamentos se dirigem para um determi- dado sobre o delinquente e o delito, a menos que se
nado objetivo e para alcançá-lo podem se escolher selecionem os sujeitos de estudo independentemen-
condutas objetivamente idênticas, mesmo que umas te do status social em que se encontram.
sejam aprovadas, outras desaprovadas e outras indi. Forma parte, pois, das que se denominam "teorias do
ferentes. A escolha dependerá do azar, do conheci- - senso comum" ou everyday theories, uma maneira de sim-
mento, da aprendizagem, da educação, e — poderí- plificar as atitudes e crenças do cidadão comum.
amos agregar — da oportunidade. delito é um componente funcional do sistema social.
Não há outra diferença entre criminosos e não cri-, Na verdade, no crime a sociedade se avalia a si mesma.
minosos, que a condenação. O criminoso estereotipado exerce, pois, função ao sis-
O comportamento criminoso é geral, mas a incidência tema estratificado e se empenha e mantê-lo inalterado.
diferencial das condenações se deve, em parte ao azar Isso permite que a maioria "não criminosa" se redefina
a si mesma a partir das normas que aquele violou e re-
e em parte a processos sociais que dividem a sociedade,
em classes criminosas e classes não criminosas. As pri- forçar o sistema de valores de seu próprio grupo.
meiras correspondem às classes pobres e subalternas. Ao criar estereótipos, são criados elementos sim-
bólicos facilmente manipuláveis nas sociedades
O delito é um comportamento definido no tempo e no
complexas. Na sociedade existem diferentes este-
espaço, realizado por uma pessoa, que pode estar rei
lacionado a outra (a vítima), à Polícia, aos advogados, reótipos: o do alcoolizado, como um maltrapilho
embrutecido pelo álcool (que é, portanto, objeto de
aos magistrados, aos juízes, ou ao júri. Todas essas
medidas violentas, ou de sanções médicas, psiquiá-
variáveis são causais em termos científicos, e se, ao
L1:•, tricas e legais); estereótipo que serve para justificar
faltar a variável, falta o fenômeno, ela se torna causal
a existência e o comportamento — agressivo e impu-
As variáveis do modelo analítico, para Chapman, sem
ne — dos alcoólicos das classes média e alta. O es-
as quais não ocorre o crime (ou melhor, a criminalização);
tereótipo do jovem hippie, drogado, sujo e amoral,
e, portanto causais, são: o ator, a ação, o objeto da ação,
justifica que "pessoas de bem" repudiem os grupos
o ambiente social da ação, o resultado da ação, o lugar de jovens politizados, considerados perigosos para
ação, o tempo da ação, os recursos a instâncias judiciaiS
as classes no poder. Da mesma forma, a imagem do
superiores, o processo, a condenação, a apelação e a ratifi:
cr. ladrão se refere preferentemente ao pequeno assal-
cação da pena. Na realidade, ao modificar-se alguma dessa41 tante e se contrapõe ao especulador, cujo compor-
„1-
variáveis, pode desaparecer o delito. tamento é ratificado pela admiração e o êxito4 .
6. 'Tudo isso serve para selecionar, entre um número
maior de indivíduos, pessoas com comportamentos tn yer Capecchi, Vittorio e Jervis, Giovanni, "Introducción", op. cit.

135
134
O criminoso estereotipado viria geralmente do pro_ em clubes de categoria, rodeados de enormes jar-
letariado ou do subproletariado: cresce em condi_ dins ou altos muros protegidos. O respeito que as
ções econômicas e afetivas precárias que o deterrni., autoridades, de qualquer nível, têm para com essa
nam a ser um adulto instável, agressivo, incapaz de classe, consolida essa imunidade, e que, com fre-
se incorporar com sucesso ao aparato produtivo. quência, se deve a processos sociais subterrâneos.
A maior parte das investigações sobre o crime parte des- Assim, o grau de vulnerabilidade, observação e proces-
se estereótipo e o aceitam como um pressuposto incontestá- .
so ' de enderá da classe social. Por isso é que os jovens de
vel da investigação. Isso acontece porque o cientista social. cabelo comprido e os de pele escura têm maior probabilida-
participa ativamente, consciente ou inconscientemente, ds de de ser observados e detidos que os demais.
mesma ideologia que criou e mantém esse estereótipo. O sistema judicial como instituição tem por objetivo
A funcionalidade do crime se manifesta também da seguin- criar os crimes. Uma vez colocado em andamento,
te forma: o delinquente estereotipado se converte em um "bode desenvolve urna dialética própria e se vê por vezes
expiatório" da sociedade. A esse bode expiatório é dirigida toda' comprometido com seus mesmos mecanismos, e
a carga agressiva das classes baixas da sociedade, que de outra deve, em ocasiões, responder às solicitações sociais
maneira, se dirigiria contra os detentores do poder material de que persiga e castigue todo tipo de criminosos.
ideológico. Às classes média e alta é permitido descarregar suas Chapman insiste também na "falta de racionalidade"
culpas, simbolicamente, sobre esse pequeno e bem definido .das instituições, que castigam atos sem muita transcendência
grupo de criminosos de classe baixa, ao mesmo tempo em que social, enquanto deixam impunes outros de maior gravidade
transferem para eles sua hostilidade contra a classe proletária (delitos de colarinho branco, por exemplo).
Reduzindo-se assim então, as tensões de classe.
E como se fosse pouco, uma vez que o delinquente foi Funções sociais e políticas do estereótipo do de-
estereotipado, ele é impedido de escapar de seu papel de linquente
sacrificado, e seus antecedentes institucionais delitivos man-, O delinquente estereotipado seria o único inimigo
tem essa identidade. comum.
A imunidade frente ao aparato repressivo e judicial Estigmatiza toda uma classe social. Serve para que
que é reservado para certos grupos da comunidade' a sociedade se defina a si mesma como diferente, e
está garantida pela privacidade que rodeia suas vi- oculte em sua parte obscura um número indetermi-
das e atividades, assim como pelo mesmo ambien nado de pessoas que, por pertencerem a uma classe,
te institucional no qual, por vezes, desempenham podem ser perigosas, deixando o resto com as mãos
suas atividades. Às vezes, essas pessoas vivem em livres para terem condutas negativas.
bairros elegantes onde a polícia não ousaria entrar Isso faz com que a agressividade que de outra forma
onde os atos delitivos se ajeitam no âmbito privado., estaria orientada aos detentores do poder se dirija a esta
através de dinheiro, influências, intervenção das fa-
daSse. Destrói igualmente a solidariedade intraclasse, já que
mílias ou de um sacerdote. Suas vidas transcorrem

137
136
esse estereótipo estaria também disseminado na própria cias"-,
se social estereotipada, como perigosa. E, enquanto a Poli!.
cia entra nos bairros mais pobres, os ricos se protegem pht ‘reLle:C4LC:reba.L1142:?14
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detrás dos muros onde as tropas de segurança não entram.' itTv
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Para Gerlinda Smauss, o estereótipo positivista produziria '6


que ela denomina de "distância social", e seria um "obstá
culo para a coalizão" com as classes mais desfavorecidas»,
Alimenta-se de elementos emocionais transmitidos e aprer;
- didos (intolerância, rejeição da diferença, um sentimento dá
repulsa, ou simplesmente incompreensão, que geralmente'
vem também da ignorância e rusticidade).
Segundo a visão convencional, então: .

O delinquente NÃO é: O delinquente seria então:


Branco
áltr. i'igtiriTMISfgáCizaS;
Casado
Profissional 15stácul6pàra,a-koal Izao ;(Srnau ss)fi:
Religioso
- .
De classe média ou alta nereEitipafi-.:e.Véiyday, t 'eorieÉ:5?

O delinquente é: s .h.css7.sneyp,(;6,...téige,(n
. '{étm-(Selfs''21
kt z
es,,poh.
Escuro ou não branco ti
..gedie51
,4tride;t:.a4p( Sclientar4iaoteíitiri?
Sem família constituída
[imagens] Sem profissão reconhecida,
marginal ou carente de recursos
Sem hábitos religiosos
Com características físicas particulares
Parecido aos que já estão presos
Com antecedentes no Sistema de Justiça Penal]
5 Smauss, Gerlinda, "Teoria dei senso comune. Sulla Marginal itá e la
minalizzazione", em La Questione Criminale, ano III, n° 1, Bolonhã1
II Mulino, 1977. Smauss é urna criminóloga crítica checa cuja vida
acadêmica se desenvolveu em La Universidad dei- Sane, na AlernanW.

139
138
CAPÍTULO VIII

A CRIMINOLOCIA POSITIVISTA QUE

ESTUDA A SOCIEDADE

A. Sociologia da Conduta Desviada norte-americana. A So-


áologia Criminal e os chamados "fatores exógenos" pela
h.Criminologia Positivista. Antecedentes europeus. O funcio-
-nalismo. Conceitos operacionais. A Desorganização Social:
Thomas e Znaniecki. A Escola Ecológica de Chicago: Park,
urgess, Shaw e McKay. A Teoria da Anomia de Merton.
-5"Utherland e suas teorias sobre as Associações Diferenciais,
criminalidade das classes baixas e a Delinquência de Co-
lá-rinho Branco. O Culturalismo. Sellin, conflitos de cultura
criminalidade. As teorias subculturais e as orientadas para
-•=2k»ctiltura das classes sociais. A Teoria da Oportunidade Di-
glêrencial de Cloward e Ohlin. Os valores da classe média.
e a suposta subculttira da classe baixa. A subcultura juvenil
delitiva segundo Albert Cohen. Os valores subterrâneos e as
picas de neutralização segundo Matza e Sykes. Reflexo ins-
titucional da Criminologia Positivista que estuda a sociedade.

A Sociologia da Conduta Desviada: do "delin-


quente" ao "desviado"
Como vimos ao estudar a Criminologia Positivista cau-
,
sarexplicativa, há uma ramificação que estuda a Sociedade,
-
ou Sociologia Criminal, sobre a base do que o Positivismo
St;
J.,
:t•Clenteininou "fatores exógenos da criminalidade", para op•5-
nr-
los- oU associá-los aos denominados "fatores endógenos" ou
.4.nt•
o
fesSoais. Seus principais expositores foram Ferri e Carofalo
saciem que poderíamos juntar todos aqueles já menciona-
contribuem com teses como a influência do clima,
agairília, do preço do pão, da pobreza, da raça, e da
teligência na criminalidade; e algumas teses multifatoriais Alguns antecedentes europeus da Sociologia nor-
como as Tabelas de Previsão Social do casal Glueck. te-americana da Conduta Desviada. Gabriel Tarde
Há também uma Criminologia Positivista de tipo socio- como antecedente da Sociologia norte-americana
lógico, ou Sociologia da Conduta Desviada, que se inicia na A Criminologia de vertente sociológica foi pouco a pou-
década de vinte do século passado nos Estados Unidos, de mui- co perdendo lugar na Europa frente ao embate do positivis-
ta transcendência acadêmica e política, a qual se denomina Mo dos antropólogos e dos alienistas que aprofundaram os
também, como já adiantamos, funcionalismo ou funcional- âttidos sobre o indivíduo.
sitivismo. Esta se diferenciará amplamente da antiga Sociologia Mas na chamada Sociologia funcional-positivista, ou So-
Criminal europeia, mesmo que alguns de seus elementos sejam
ciologia da Conduta Desviada, que é claramente norte-ame-
anteriores .a esta última. Enquanto a Criminologia do século XIX
ricana, podemos rastrear no passado influências europeias,
tomava como objeto de estudo o delinquente, isto é, a quem .
particularmente de Tarde, na sociologia de Robert Park 2, tanto
havia cometido uma infração penal, identificando delinquente
qu'anto na teoria das Associações Diferenciais de Edwin Su-
com detido, os criminólogos (sociólogos) estadunidenses utili-
therland' e na Antropologia Americana de Franz Boas°.
zavam o termo desvio para abarcar de maneira unitária o É
V Desde 1883 Tarde foi um dos primeiros autores france-
versos problemas do mal-estar social e da não integração.. Não r+
ses a se opor a Ferri e ao seu naturalismo influenciado pela
mais se referiam a delinquentes encerrados. Para os sociólogos •
americanos do primeiro terço do século XX, o laboratório estará .teoria da evolução darwiniana, à qual Spencer logo dotou de
consequências sociológicas'.
nos grupos e nos indivíduos envolvidos em seu habitat.
Já não se ocuparão, então da "Conduta Delitiva", mas
gressiva de um modelo consensual de integração como explicação de
sim, da "Conduta Desviada", u_ra_ç_a_legoria muito mais am- "uma sociedade que não era homogênea, pelo contrário, era fortemente
pla e interessante. pni conflitiva e atomizada. Tal situação não permitia resolver os problemas
com referência às definições legais, tal como havia sido proposto pela
Uma das particularidades da linguagem científica dos
Criminologia Positivista que estudava o delinquente.
1-Ca e. •
sociólogos e criminólogos americanos, diz Pavarini, foi a de Ver Joseph, Isaac, "Tarde avec Park", em Revue Multitudes, Paris, 2001;
substituir a nomenclatura das diversas formas do que se de "Milet, Jean, "Gabriel Tarde et la Psychologie Sociale", em Revue Fran-
nominou, nos anos anteriores, "patologia social" (delinquen caise de Sociologie, XIII, Paris, 1972, pp. 472-484; Clark, Terry, Gabriel
Tarde on communication and social influence, Chicago-Londres, The
te, louco, pobre) pela denominação única de "Desvio".
University of Chicago, 1969; Viana Vargas, Eduardo, Antes Tarde do que
Certamente, em se tratando de uma criminologia reali nunca, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000.
zada por sociólogos e não por juristas, políticos ou filósofo. o Ver Debuyst, Christian, "L'école francaise dite du milieu social", His-

(Criminologia Clássica); ou por médicos, psicólogos, biólogo toire..., II, op. cit., p. 320; Bergalli, Roberto, Critica a la Criminologia,
Bogotá, Temis, 1982, p. 27.
ou antropólogos (Criminologia Clínica), era lógico que se uti Sobre a influência de Tarde em Boas, ver Caro Baroja, Julio, Los fun-
lizasse a expressão "conduta desviada" (de normas sociais) damentos dei Pensamiento Antropológico Moderno, Madrid, Consejo
não "conduta delitiva" (infratora de normas jurídico-penais)' Superior de Investigaciones Cientificas, 1991, pp. 124 e ss.
Até o ponto de ser considerado o criador do danivinismo social, ao
Segundo Pavarini, a razão pela qual o termo "desvio" tenha sido do- inserir em suas teses a cultura, a sociedade e a genética.
minante na criminologia norte-americana se baseava na imposição pra-

143
142
Tarde foi o crítico mais profundo da Antropologia Cri- incêndios intencionais, os roubos e, finalmente, os homicí-
minal de Lombroso mesmo que, fomentando uma aproxi- dios e delitos sexuais, como os adultérios ou as violações9.
mação sociológica da criminalidades, também não negava , Pode ser visto como um antecedente de teorias socio-
a influência de fatores individuais. Para Tarde a vida social lógicas mais contemporâneas, como a de Merton e também
e a historia não eram mais que invenções aceitas ou rejeita..j a de Sutherland e sua teoria da aprendizagem, tanto quanto
das, eram invenções imitadas. Todos os atos importantes da", do culturalismo em geral. E poderia ser visto mesmo como
vida social eram executados, segundo ele, sob o predomínid um antecedente da tese dos valores subterrâneos de Matza'°,
do exemplo; e o crime não podia ser a exceção,_porque se -ue explicaremos mais adiante".
q
encontrava sua causa na imitação7 . Durante o período compreendido entre a Primeira e a
Em uma de suas primeiras obras chegou a considerar o de- Segunda Guerra Mundial, a pesquisa sociológica aportou nos
lito como uma dissidência individual em um meio rigidamente Estados Unidos» e desde a década de 193013, a Criminologia
conformista, e o criminoso como um dissidente não inventivos.' passa definitivamente ao Novo Mundo, visto que na Europa e
.•
Sem dúvida, já na sua época, faziam parte das ulterio- até os anos 1970, aproximadamente, o saber que predominou
res teorias norte-americanas orientadas para a cultura da Seguiu sendo o de desenvolvimento acadêmico da Criminolo-
classes sociais, que considerou a delinquência como um gia Positivista de tipo clínico".
produto dos valores próprios das classes baixas, teorias qt.i r. É também, como dissemos, uma forma sociológica do Posi-
consolidavam o estereótipo "pobre igual a delinquente". tivismo Cri minológico, e, portanto, parte da tese de que o Estado
Mas em Tarde, a influência dos valores de classe recorre! é produto de um consenso coletivo, mesmo quando está mais
ria o caminho inverso. Explicou a origem da criminalidade,i vinculado ao contratualismo rousseauniano que ao de Hobbes.
dizendo que havia sérias razões para afirmar que os vícios 4.
e os crimes, que estavam localizados nas classes baixas, na l ?. Tarde, Gabriel, La Philosophie Pénale, Lyon-París, Storck et Masson,
realidade teriam sua origem na classe dirigente. Estes ator 1890, p. 332.
teriam sido progressivamente imitados pelo povo: o alcoolis,, Matza, David, "Subterranean traditions of youth", em Annals of the Ameri-
' can Academy of Political and Social Science, Vol. 338, 1961, pp. 102-108.
mo foi primeiramente um luxo da realeza, e logo um privilé- ,t .
".' Em um artigo, bastante original para sua época, mostrou interesse pelas
gio aristocrático antes de converter-se em um vício popular. :4 u transformações da impunidade sinalizando sua evolução como um re-
No mesmo sentido aconteceu com o consumo de tabaco, os sultado do exercício do poder. Existe já em Tarde certa reflexão crítica
sobre o poder onímodo do soberano, da Igreja, dos sistemas feudais e da
prensa. Tarde, Gabriel, "Les transfomations de l'impunité", em Archives
6 Mucchielli, Laurent, La Découvene da Social. Naissance de Ia Sociof d'Anthropologie Criminelle, Lyon, Storck, 1898.
12
logie en France, Paris, La Découvene, 1998, p. 131. Mucchielli, Laurent, La Découverte..., op. cit., p. 316.
13
A imitação desenvolvida como instrumento interpretativo — bastan- Pavarini, Massimo, Control..., op. cit., p. 60.
14
te controverso — por Girard e Lacan (que falava de identidade como Uma explicação interessante se baseia em que os autoritarismos e to-
relação simétrica); alguns também assinalavam Jung, por sua tese do talitarismos nunca viram com simpatia a Sociologia. Estes regimes têm
subconsciente coletivo. muita certeza sobre o que é a sociedade e a identificam com o Estado,
° Tarde, Gabriel, La Criminalité Comparé, Paris, Felix Alcan, 1886, pp: ou tendem a identificá-la. Para eles qualquer sociologia é suspeita de
190-193. Estas noções se encontram de alguma maneira em Sutherland. dissidência (Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit., p. 162).

145
144
O Funcionalismo Durkheim denominava, como vimos, "moral insaciável".
O funcionalismo americano, cujos antecedentes se en- Daí vem o termo funcionalismo.
contram também na Inglaterra dos anos 1930, está represen- Para a teoria funciona lista, a sociedade sobrevive às
tado basicamente pela teoria de Talcott Parsons, e dirigido à violações de suas normas, reincorporando os desviados a
manutenção da estabilidade social e de seus valores. outi leapéis (prisioneiros, exilados, excluídos, reso-
É uma teoria utilitarista, orientada a Manter a ordem es cializados, etc.), do mesmo modo em que o corpo humano
tabelecida, e com isso, se irmana também com a abordagem utiliza órgãos funcionais quando outros deixam de ser úteis.
de Augusto Comte da Ordem associada ao Progressols. D.e alguma maneira, a sociedade é então "naturalizada" e,
como se disse vista como um superorganismo. Isso também
Segundo o etnógrafo Malinowski, herdeiro da tese de,.
a vincula ao positivismo primitivo de caráter biológico. O
Durkheim sobre a existência de uma consciência comum:;,
- funcionalismo utilizava o paralelo de um organismo vivo para
estável apesar dos desvios existentes, os sistemas culturais;
explicar o funcionamento de uma sociedade. A sociedade,
são "integrados, funcionais e coerentes". Com isso ratifica .:
- i:Utal ao corpo humano, podia ser concebida como um siste-
também a tese de Durkheim de que o desvio está implícito"
rna, isto é, como um todo composto de diversas partes inter-
na própria organização moral e social. Por isso, quando á
' --relacionadas entre si. As mudanças em detreminada parte
sociedade reage emocionalmente através da saric ã_Q , O que
afetariam o funcionamento do todo. Mas não o destruiriam.
ela faz é demonstrar sua unidade. Tanto o perder-se de um
N.sociedade era, então, um sistema formado por diversos
caminho (desvio) quanto permanecer nele seriam coisas per-r.
t.ibsistemas (econômico,_político e cultural) desenvolvidos
feitamente compreensíveis, que acontecem naturalmente. .1
para assegurar o funcionamento, manutenção e reprodução
A diversidade aparece, pois, como um elemento natu-::,. da sociedade. Quando uma das partes não atuava apropria-
ral do sistema. De modo que, mesmo quando alguns desvios ahmente, era substituída por outra. Ao mesmo tempo, estes
específicos são controlados ou reduzidos, sempre seguirão-, "ilíbsistemas estavam compostos por múltiplas instituições
pertencendo à categoria de desvio. Inclusive quando elas;a (família, escola, religião) que asseguravam o funcionamento
desaparecem, esse desaparecimento produziria um reforçca Cid-Sistema, pdrque todos compartilhavam os mesmos valo-
moral das pautas violadas. Portanto, são funcionais à estabi- res sociais. Esses valores gerais, globais, abstratos, permitem
lidade do sistema. Os desvios novos serão considerados, en-,, um. consenso no fundamental e, portanto, o funcionamento
tão, como violações mais sutis das normas ou pautas gerais71; Wiregrado de todo o sistema social".

que sempre serão consideradas como tendências na sociedal I

- E a manutenção automática, autorregulada, da Ordem


de. Sempre existiriam normas das quais se desviar. É o que?. e do sistema.
Is Da mesma maneira como a Antropologia Cultural surge e se expan,ç Igualmente, os antecedentes da Teoria de Sistemas po-
de por conta dos interesses colonialistas da Europa em conhecer as: dem encontrar-se nessas propostas.
relações de parentesco e suas vinculações com o poder nos lugaresr
colonizados ou colonizáveis, Comte — e a França — se interessam pela!
Larrauri, Elena, La herencia de la Criminología Crítica, Madri, Siglo
Ordem à raiz do levantamento da Comuna de Paris e o extermínio dost
XX, 1991, p. 3.
comunas.

147
146
O marco histórico e cultural tentarão fomentar, pelo menos, o que se denominou uma
"sociedade democrática de massas"19.
Quem eram esses sociólogos norte-americanos, qual
era sua formação política e intelectual, a que tipo de socie- Ainda que o controle através do Direito continuasse
dade e de sistema pertenciam, e em que momento histórico sendo feito, havia nessa sociedade e nesses intelectuais uma
realizaram sua tarefa? rejeição ao contratualismo hobessiano, aquele Leviatã ou Es-
tado prepotente e único que resolvia conflitos através das
Melossi indica que, em sua maioria, eSses sociólogos .j
leis, cuja eficiência não lhes proporcionava confiança. Para
pertenciam ao mundo branco protestante, eram clérigos ou
a construção da nova democracia, os sociólogos se interes-
filhos de clérigos e provinham do mundo rural do meio Oes-
sarão em aproveitar o que as massas agregadas traziam. E
te norte-americano (Mills, 1943; Schwendinger, 1974; Wie-
be, 1977; Alio, 1975), caracterizados por sentimentos que - Mesmo que a coação continuasse presente nas instituições
políticas, se esforçaram em manter a unidade social através
iam desde a preocupação até a indignação moral".
da integração e da produção de consenso. Não excluir, mas
Explica igualmente"' que a democracia jeffersoniana integrar. Isto é, através da hegemonia, o convencimento.
original estava baseada em uma base social, racial e reli-
Segundo a opinião desse autor, por trás da teoria funcio-
giosa muito homogênea: a sociedade anglo-americana, que r,
nalista encontraremos com que a imigração, a massificação
constituía uma verdadeira convenção de "brancos de sexo
industrial e a democracia constituíam a linguagem que todas
masculino, protestantes e pequenos proprietários".
Às partes deveriam utilizar para que nenhuma delas ficasse
Isso vai se modificar fortemente entre o fim da Guerra de fora. Era o momento de analisar as relações sociais e de
Civil e a Primeira Guerra Mundial, com o surgimento dos' 'utilizar, onde fosse realmente necessário, já que, os sistemas
grandes negócios e a chegada das migrações da Europa cen-),, de comunicação e de construção da unidade legitimadora
trai e meridional, geralmente camponeses que não falavaml— são teses utilitaristas e pragmáticas.
inglês e eram católicos ou judeus, mais o acréscimo de granz
.1 . O funcionalismo entende o meio norte-americano desses
des massas de escravos negros libertos que se transferiramt
anos, e sua característica de ser um centro improvisado de
para os centros industriais. Por um lado, isso transforma a
múltiplas culturas, não como um sistema em perigo de desin-
composição populacional dos Estados Unidos, e, por outro,
tegração, mas como em processo de construção e integração.
entre 1870 e 1930, também gerou grandes conflitos entre
operários e proprietários, pequenos e grandes empresários, Simultaneamente, nos diz Matza, a diversidade se as-
etnias diversas, sociedade rural e sociedade urbana. O paísl sume como uma das partes do sistema e é o contrário de
passa por crises econômicas e sociais, e com a coesão so
'8. "As 'massas', a 'chusma', a 'multidão' que sempre se encontravam nas
cial em risco. Ao longo do tempo, o país e seus sociólogos; fronteiras políticas dos 'Estados' europeus, os bárbaros que os guardi-
.., ões militares e políticos da civilização mantinham reprimidos a ponta
de lança, agora se espalhavam por essa sociedade e por suas fábricas"
.flbidem). Surge neles uma aversão pelo papel europeu do Direito e do
17 Ver Melossi, Dado, El Estado..., op. cit., p. 150. Estado, e se interessam pelos processos de comunicação, pela opinião
pública e pelas relações sociais.
'8 Ibidem.

149
148
uma patologia20. Diversidade, diferente de patologia, signi- social". O papel que lhe é designado vai gerar "expectativas"
fica uma variação ou uma mudança que é viável. E como • nessas audiências, as que, ao não serem cumpridas, podem
o desvio não seria uma patologia, ela não destrói, somente produzir "reações sociais". Estas, por sua vez, podem ser va-
reconstrói21 . O certo é que, de toda forma, muitas discussões riáveis, e em alguns casos, poderiam inclusive decidir formas
foram suscitadas nessa Criminologia para definir o que seria de "controle social". Algumas formas de controle podem estar
uma "conduta desviada". submetidas ao sistema legal punitivo, outras não.
A Conduta Desviada, segundo esses conceitos, seria en-
Alguns conceitos operacionais dessa Sociologia
tão, de acordo com Clinard, "aquela que se orienta em uma
Alguns conceitos operacionais para essa Sociologia, direção fortemente desaprovada pela co/etividade"23.
além dos vários de anomia que veremos mais adiante, são
Mas há outras maneiras de entendê-la. Para Cohen, é
os de "papel", "audiência social", "expectativas sociais", "re-
Conduta desviada "a que se opõe a expectativas institucio-
ação social" e "controle social". É significativo que para Su-
Ralizadas", isto é, a não conformidade com cada modalida-
therland, o mais transcendente dos sociólogos da época em :•-•
e normatizada (lei ou conveniência social mais ou menos
direção à modernidade, a definição de Criminologia seja pre-
cOnsol idada)24.
cisamente a que estude todas essas situações, que são elos!
de uma mesma cadeia — ou para dizê-lo com a linguagem dej Para outros é a "conduta que se aparta da média estadis-
Talcott Parsons, um sistema de pautas — na que Sutherlan4 Uca". Assim, haveria o "desvio positivo" (atos santos ou exem-
inclui sabiamente o momento da criação do tipo penal. plares) e o "desvio negativo", o que, de acordo com o seu
grau, pode representar transgressões graves, simples atos pe-
As "personas" 22, como em uma obra de teatro, desempe,
Caminosos, violação de certas definições legais, ou transgres-
nhariam um "papel" (tão variável como podem ser os papéik •
- -.sões que merecem ser denunciadas à polícia. Tratar-se-iam de
sociais desempenhados pela mesma pessoa, ou outra, em dife.
ddieSvios de "atos normais", que seriam, para esta concepção,
rentes situações vitais ou ocupacionais, como os de professor, I]
aqueles que são realizados pela grande maioria dos cidadãos.
pai, esposo, aluno, médico, sacerdote, empresário, enfermei-
ISto é, desvios de "termo médio" ou de estatística média.
ro, operário, banqueiro...). Atuariam frente a uma "audiência
Este critério se baseia em que todas as pessoas, em
Matza, David, El proceso de desviación, Madrid, Taurus, 1981. inaior ou menor grau, dentro das sociedades diferenciadas,
f
21 Talcott Parsons não é simplista e por isso nos diz que "existe uma certay, .
Podem ser pessoas desviadas. Assim, não somente há va-
relatividade nas concepções da conformidade e do desvio (...) Não
possível fazer juízo sobre o desvio (...) sem referência ao sistema aci,k riações nas condutas conformistas ou anticonformistas; mas
que tal juízo se aplica. A estrutura das pautas normativas, em qualquer que para essa Sociologia da Conduta Desviada é tão impor-
sistema que não seja o mais simples, é sempre intrincada e, normal-.
mente, dista muito de estar completamente integrada; por conseguin-1.
te, singularizar uma pauta qualquer sem referência às suas conexões Para Marshall Clinard é a conduta que se orienta em uma direção
com um sistema de pautas, pode conduzir ao erro" (Ibidem). fortemente desaprovada pela coerção (Sociology of deviant behavior,
22 Do latim per sonare, máscaras que se colocavam no teatro para repre-,..„ Nueva York, Holt, Rinehan and Winston, 1963).
sentar determinados personagens ou papéis. É o rosto que se expressat Cohen, Alben, Deviance and Control, Englewood Cliff, Preguice Hall,
com linguagem sonora. 1966.

151
150
tante estudar um tipo de desvio como o outro, pois ambos imigrante polonês28 . A desorganização social seria para essa
possuem sentidos esclarecedores". escola - com a exceção de Merton, que a definirá de outra
maneira - uma situação de anomia (ou carência de normas)".
A Desorganização Social ou Anomia
A sociedade, segundo esses autores, se desorganiza por-
Como se falou, os primeiros trabalhos sociológicos nos cjue os meios de controle social realmente importantes, aqueles
Estados Unidos foram efetuados com a finalidade de propor baseados na comunidade e nos grupos de relação primários,
soluções ao problema da integração de migrantes procedentes teriam se debilitado por conta da heterogeneidade cultural, o
das zonas rurais para as cidades, e a dos países europeus parast anonimato, o individualismo e a competitividade social.
as grandes urbes. Essa migração massiva, desde 1920, provo-
Observaram que, em um primeiro momento, os imi-
cou uma urbanização acelerada nas principais cidades do país:
grantes não se integravam à sociedade, mas que se asso-
Por exemplo, a cidade de Chicago tinha - logo após a davam a outros imigrantes. Como estes grupos secundários
sua fundação - dois mil habitantes; em 1 860 já eram cerri; (igrejas, sociedades de imigrantes) não podiam cumprir sua
mil habitantes; em 1870 trezentos mil; em 1890 alcança-; função de modelo para alguns de seus integrantes, produ-
riam a cifra de oitocentos mil; em 1910 dois milhões. E em jia-se também uma desorganização individual, que levaria
1970 já um terço da população, de dois milhões e setecen- ánsigo problemas econômicos, de estrutura familiar e de
tos mil habitantes, era estrangeira". Essa situação irá gerar delinquência". A este último o denominaram anomie.
diferentes estudos que farão que esse grupo de sociólogos se:
denomine "a Escola de Chicago". A Escola Ecológica de Chicago
\/L/ilijant,1—Tácinaas conseguiu uma bolsa para pesquisar , ,. As pesquisas sobre a criminalidade adquiriram especial
na Universidade de Chicago os problemas surgidos com a desenvolvimento na cidade de Chicago, com a presença, no
gração, e esse estudo se centrou basicamente na colônia polo- Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago,
nesa. Junto ao filósofo polonês Florian Znaniecki, publicou Elt ,' de Robert Ezra Park (1914) e a incorporação, alguns anos
campesino polaco en Europa y en América", obra que influi-`1' 'mais tarde, de Ernest Burgess (1921).
rá no posterior pensamento criminológico americano. Nela,t. _ Os integrantes da Escola de Chicago elaboraram suas ex-
Thomas e Znaniecki desenvolveram o conceito de "desorga- plicações do que observavam nessa cidade baseando-se em
nização social" para explicar o problema de integração doi ? analogias tomadas da ecologia da vida vegetal como a comu-
28 Thomas era, certamente, um precursor do interacionismo já que incor-
25 Ver Aniyar de Castro, Lola, Criminologia de la Reacción Social, op. porou à sua sociologia positivista aportes de outras disciplinas, entre
cit., 1977, p. 23. elas a Psicologia, dentro da qual apareceria o conceito de "definição
Anitua, Gabriel I., Sociologia de la Desviación y Control Social, Cor-; da situação": as coisas que se definem como reais, são reais em suas
rientes, Mave, 2011, p. 14. consequências (teorema de Thomas). O que, segundo Zaffaroni, nun-
27 Thomas, William e Znaniecki, Florian, The polish peasant in Europe ca devemos esquecer nem em Criminologia em na Política.
and in America, Nova York, Dover, 1958; Tradução castelhana: Zarcoy n A expressão anomia provém do livro de Durkheim sobre o suicídio
Colón, Juan (ed.), Campesino polaco en Europa y en América, Madri, anômico.
Boletin Oficial dei Estado, 2006. 1° Citado por Anitua, Gabriel I., Sociologia..., op. cit., p. 18.

153
152
nidade biótica3'. Grande parte da linguagem empregada foi Essa concepção do caráter orgânico das zonas naturais
tomada diretamente de estudos ecológicos, em especial, da permitiu a Park e à Escola de Chicago trabalhar como se a
obra precursora do filósofo e biólogo alemão Ernst Haeckel. o zona natural fosse algo mais que uma unidade geográfica ou
termo mais importante adotado por eles e que iria caracterizar física. Segundo Taylor, Walton e Young, chegaram a consi-
as pesquisas empíricas da Escola de Chicago é o de "simbio- derar "o ambiente" como um todo e — com um modelo fun-
se". A simbiose pode ser definida como o costume de viver damentalmente orgânico da sociedade simbiótica saudável
juntos que apresentam organismos de diferentes espécies den-. como meta de trabalho — puderam sustentar que certos am-
tro do mesmo habitat. Nas comunidades vegetais, a simbio- bientes estão desorganizados patologicamente por causa de
se perfeita é o equilíbrio biótico, situação que surge quando seu parasitismo e do isolamento de sua cultura integradora".
todos os processos que intervém na reprodução das plantas, E visto que a afluência de massas de imigrantes dos países
nas relações entre a vida vegetal e o clima, o solo etc. estão pobres da Europa provocava uma urbanização caótica, a cida-
em estado de equilíbrio. Segundo Park, a tarefa do sociólogo de se converterá então no cenário para a pesquisa sociológica.
era descobrir os mecanismos e processos mediante os quais se• Essas cidades que se convertiam em receptoras de ho-
pode alcançar e manter o equilíbrio biótico na vida social. mens diferentes pelos costumes, língua, cultura ou riqueza,
problemas que afligiam a cidade de Chicago eram, para Park, tinham características particulares. A concentração social ia
consequência da questão das migrações incontroladas e da ao mesmo ritmo da económica, provocando problemas de
criação de "zonas naturais" nas que seus habitantes ficassem ordem social. Desde esse momento, o conhecimento crimi-
isolados da cultura geral da sociedaden. nológico colocará a grande cidade e seus problemas de or-
Para Park, cada comunidade tinha algum aspecto de uma dem no centro de sua própria análise.
unidade orgânica. Tinha uma estrutura mais ou menos defini-, Chicago, a grande metrópole, era o exemplo. Essa ci-
da e também uma história vital na que podiam se observar etai dade foi vista como um conjunto de círculos concêntricos
pas de juventude, vida adulta e senilidade. Tratava-se de um em torno ao Distrito Central de negócios sede das oficinas
organismo, era um dos órgãos que estavam formados por ou-, _públicas, dos bancos, dos comércios de luxo. Uma segun-
tros organismos. Portanto, a cidade era um superorganismo". da zona circundava essa zona comercial, originariamente
habitada pela alta burguesia, mas rapidamente abandona-
31 A ecologia vegetal se ocupa do estudo dos níveis de organização bio‘„ da e convertida em zona de chegada de imigrantes. Ali se
lógica que vão além do nível do organismo: a população, a comu- concentrava um significativo conjunto de problemas tanto
nidade e o ecossistema. Uma...população é um grupo de organismos
de saúde pública como de saúde social: doenças mentais e
estreitamente relacionados que normalmente se entrecruzam. Uma
comunidade se compõe de todas as populações de um determinado físicas, como tuberculose, prostituição, dr2gas _jogo bares e
hábitat. O ecossistema se forma pela comunidade dos organismos vi- algumas outras "condutas desviadas". Essa zona se identifi-
vos e dos fatores abióticos de seu meio ambiente. cava como uma zona de desorganização social (anomia), e
32 Taylor, lan; Walton, Paul e Young, jock, La
Nueva Criminología,
via inevitavelmente um crescimento progressivo dos índices
ed., Buenos Aires, Amorrortu, 2007, pp. 134-135.
33 Park, Robert E., "Human ecology", em American Journal of sociology, Taylor, lan; Walton, Paul e Young, jock, La Nueva..., op. cit., p. 138.
Buenos Aires, Vol. 42, n° 1, julho de 1936, p. 4.

155
154
de miséria, de criminalidade organizada, de prostituição "e Clifford Shaw e Henry McKay37 puderam demonstrar
de loucuran. corri suas investigações empíricas que as altas taxas de de-
iinquência apareciam relacionadas às "zonas naturais" de
, —Zona-deí.
.• ,t.I.Ansição, isto é, ,a delinquência se concentrava nas zonas
Zonas -esorgarniacaoisopal" que haviam sido residenciais, mas que se converteram em
Residenciais ória de trânsito. Nesses setores, a "desorganização social"
eneralizada estava caracterizada pela pobreza, pelas más
tOndições de habitat e pelas más influências da vizinhança.
Resumindo:
Distrito éiëz
Central ou ida 'Sêiiedaicié.i:Suneroiganisma-NN.
de negócios
..„.,-,iajçco I npa
osãe,. rrnan r.:_ctkm -'t'
malif,.
rwa peif9
e4;.dva ?st, sea
b
Voéalr.giásrespéCies)

Zonas na relação simbiótica


Have ri a um akc o srnu catemfti-star.f:ip
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. • -&

As zonas dessa cidade, para a Escola Ecológica de Chij mi:jr:4.@} .v43",Verrwictijak-?'"*?:'Nidi'tneniÇ4áganlititbS',,


cago, tinham entre si uma relação simbiótica, como na eco; at u: i ..„ etts r; ts
tsd Ir
Mfrr-
logia vegetal. A zona anõmica dependia economicamente' .;,,%ancias;,queltêm,:igatos:, W4tàzr
do fato de que os habitantes do Distrito Central, na saída do
trabalho, iam divertir-se nela. Não se menciona nessas pes:-
guisas o fato de que eram zonas onde os terrenos tinham um
valor elevado, mas que, por ter construções que desapare-
ceriam com a expansão progressiva do Distrito de Negócios/
tinham baixo custo de alugue136.

Shaw, Clifford e McKay, Henry, "Social factors in juvenile delin-


35
quency: a study of the community, the family and the gang in relation
Pavarini, Massimo, Contrai..., op. cit., pp. 67-68.
to delinquent behavior", em Report on the causes of crimes, vol. II,
36 Ver Taylor, Walton, Young, que fazem a melhor crítica desta Escola (op.
cit.). Ver Aniyar de Castro, Lola, Resumen Gráfico dei Pensamiento Crt2J .. Washington, National C 0111 rfl iSS i 011 on law Observance and En(orce-
.ment, 1)5 Gouvernement Printing Office, 1931; Juvenile delinquency
minológico y su reflejo institucional, Mérida, Editorial Venezolana, 2005.
.and urban areas, Chicago, Chicago University, 1942.

157
156
às normas, aos costumes e às crenças de grupos sociais nas-
O Culturalismo
cidos no exterior, se fizeram muito poucas tentativas para
Conflito de culturas e criminalidade demonstrar como esses aspectos influíam na criminalidade".
A convicção de que os grupos de imigrantes eram os res- Todos esses estudos pareciam ter considerado estes fatores
ponsáveis pela crescente criminalidade nas cidades dos Es- simplesmente como problemáticos, porque podiam levar a
tados Unidos por volta da década de 1930 levou diferentes conflitos entre pais e filhos, ou entre representantes da se-
pesquisadores a se ocuparem desta problemática. As estadísti. gunda geração de imigrantes frente àqueles nascidos em solo
cas mostravam uma distinção entre a criminalidade daqueles a mericano, o que demonstrava que as tensões emocionais,
nascidos no exterior e a .de seus descendentes nascidos em os sentimentos de inferioridade, a vergonha etc., podiam en-
solo americano, isto é, da segunda geração de imigrantes. contrar expressão no delito.
A criminalidade dos imigran- Thorstein Sellin e o Conflito Sellin entenderia este conflito como um conflito de cultu-
tes da primeira geração havia sido de Culturas ras, sempre levando em consideração o processo de socializa-
explicada por Thomas e Znanie- ção em cada indivíduo. O homem, dizia Sellin, nasce no seio
cki como produto da debilidade de uma cultura, e chega biologicamente equipado para rece-
do grupo primário que não os ber e adaptar seu conhecimento de si mesmo e suas relações
deixava resistir às influências de Com os demais. Seus primeiros contatos sociais começam por
desorganização social nas cidades um processo de coordenação que durará toda a sua vida e
norte-americanas. Não obstante, durante o qual absorverá e adaptará suas ideias transmitidas
por volta dos anos de 1930 se esti- formal e informalmente. Estas ideias podem ser consideradas
mava que o individuo nascido no como elementos culturais que ele incorporará em seu espírito
exterior entrava menos em con- e que formarão elementos de sua personalidade". Mesmo que
flito com a lei que os nacionais, cada manifestação possa ser considerada como uma expres-
ainda que à esta cifra se acrescen- são de sua personalidade, ela pode provocar uma resposta ou
tassem seus descendentes. Thorstein Sellin, USA reação no grupo social de aprovação ou de desaprovação'".
Para Sellin" era curioso As normas de conduta são produto da vida social, diz.
notar que os estudos sobre a delinquência que se tinham Os grupos sociais impõem aos seus membros certas restri-
realizado até aquele momento haviam centrado a questão ções que têm por finalidade assegurar a proteção de valores
no resultado de uma confrontação entre uma cultura rural sociais afetados por uma conduta sem restrição42.
e homogênea frente a uma cultura urbana e desorganizada. Diz-se que um conflito de normas existe quando há re-
Não obstante, mesmo encontrando-se constantes referências gras de conduta mais ou menos divergentes que regulam a
Sellin, Thorsten, Culture, conflict and crime. A Report of the subcom- Ibidem, p. 102.
mitee on delinquency of the committee on personality and crime, 40
Ibidem, p. 25.
Nova York, Social Science Research Council, 1938. Tradução france- 1' Ibidem, p. 28.
42.
sa: Conflits de culture et criminalité, Paris, Pedone, 1984. Utilizamos Ibidem, p. 28.
esta última versão para as citações.

159
158
mesma situação na qual o indivíduo se encontra. A norma
de conduta de um grupo pode dar uma resposta a esta situa- tuia o princípio fundamental na
ção enquanto que as normas de outro grupo podem outorgar. explicação do crime", rejeitou
uma resposta totalmente diferente'''. Assim, a anomia se pro- totalmente as explicações da
duz quando um excesso de normas diferentes conduz à falta criminalidade por causas bioló-
de normas seguras de conduta. gicas ou psicológicas próprias
Existiriam, então, para cada indivíduo, desde o ponto do positivismo que estudava o
de vista do grupo do qual é membro, uma maneira normal!, indivíduo, mas, ao mesmo tem-
(boa) e uma anormal (má) de reagir segundo os valores sc.:: po, fez uma crítica importante
ciais do grupo que a formule. Estas normas não são a criação 5 ao vínculo entre delinquência e
de um só grupo normativo, não se encontram encerradas por pobreza defendido por Shaw e
limites políticos e não necessariamente se encontram previs- McKay.
tas em leis". Para Sutherland, as teorias
Edwin Sutherland (EUA) descreve e segundo as quais a conduta de-
pesquisa, pela primeira vez, o litiva encontrava sua causa na
A Teoria das Associações Diferenciais e a organização
"Crime de colarinho branco" pobreza ou nas condiciones
social diferencial. Criminalidade das classes baixas e (White color crime) psicopáticas ou sociopatas as-
de colarinho branco
sociadas a ela eram enganosas e incorretas. Esta generaliza-
As pesquisas de Shaw e McKay — como vimos — propu-
ção se baseava em uma mostra deturpada da realidade que
seram a hipótese de que a "desorganização social" explicava
excluía amplas zonas de comportamento delitivo de pessoas
a delinquência, ainda que sua análise se reduzisse a um setor,
que não pertenciam à classe baixa, tais como o comporta-
da população, isto é, aos jovens de classe baixa que se en- mento delitivo de homens de negócios ou a criminalidade de
contravam concentrados em áreas geográficas determinadas.
profissionais (os denominou "delitos de colarinho branco")47.
No final da década de 1930, Edwin Sutherland", le-
: Propôs, portanto, uma hipótese que pudesse explicar
vando em consideração que o conflito entre culturas consti-
tanto a delinquência da classe baixa como a de colarinho
branco, e para isso utilizou o conceito de associação ou
43
Ibidem, p. 29. organização social diferencial, que se apartava do de "de-
44
Ibidem, p. 30. sorganização social" postulado por Shaw e McKay.
45
A Criminologia, para Sutherland, era o conjunto de conhecimentos
que se referiam ao crime considerado como fenômeno social. Seu do-
mínio compreendia tanto o processo de criação da lei e sua violação
quanto a reação frente a tal violação. O objeto da Criminologia era
desenvolvimento de um conjunto de princípios gerais e verificados, " Sutherland, Edwin, Principies..., op. cit., pp. 51-52.
outros conhecimentos em relação com o processo da lei, do crime Sutherland, Edwin, "White Collar Criminality", en American Socio-
seu tratamento (Sutherland, Edwin, Principies of Criminology, Fila- logical Review, vol. 5, fevereiro de 1940; tradução espanhola, "De-
delfia, J. B. Lippincott, 1934, p. 3., citado por Sellin, Thorsten, Con- lincuencia de cuello blanco", em anexo da obra do mesmo autor:
fias..., op. cit., p. 2). Ladrones profesionales, Madri, La piqueta, 1988, p. 220.

161
160
Para Sutherland, tanto a delinquência de colarinho Em síntese, a teoria de Sutherland explica que:
_branco como qualquer tipo de delinquência, e qualquer ti o
(.9 O comportamento criminoso não se herda;
de conduta, se aprende". A conduta criminosa é aprendida em interação através de
O fato de que uma pessoa chegue ou não a ser um de- um processo de comunicação;
linquente está em grande parte determinado pelo grau de Esta aprendizagem se dá entre grupos íntimos (família,
frequência e intensidade de seus contatos com estes tipos4' amigos etc.) e pode acontecer através da palavra ou de
de conduta: o delinquente, de um lado, e o que se adéqual gestos;
à lei, de outro. Este processo pode denominar-se, processo.,
A transmissão da conduta criminosa inclui técnicas de
de associação diferencial. Tal associação diferencial explic-a.
execução do delito, motivações, atitudes, racionaliza-
genealogicamente ambas condutas delinquentes, a de cola,. ,
ções e desejos;
rinho branco e a da classe baixa.
Um indivíduo chega a ser delinquente como resultado de
Os que se convertem em delinquentes de colarinho brancof
uma aprendizagem de definições favoráveis à violação
começam suas carreiras de desvio em "bairros de boa Vizi-
da lei, que predomina frente a uma aprendizagem favo-
nhança" e casas cômodas, adquirem títulos acadêmicos em..
rável à 'observação da lei. E conseguem isolar os grupos
universidades de prestígio e entram (...) em situações espe-
que se inclinam a respeitá-la;
cíficas de negócios em que a delinquência é praticamente as:
forma mais geral de atuação (...) Os delinquentes de classe'ei A conduta criminosa depende da frequência, da intensi-
baixa, por sua vez, iniciam geralmente suas carreiras em , dade dos contatos, e da prioridade que se outorga a cer-
bairros pobres e em famílias desestruturadas, se relacionam?: tos valores, e do prestígio do modelo (professores, ami-
com delinquentes dos quais adquirem atitudes e técnica -'t gos com poder sobre determinados círculos de pessoas
orientadas ao delito e a uma parcial segregação com relaçãq,. etc.);
às pessoas que se comportam conforme a lei. O processo 1-- O comportamento delitivo não pode ser explicado referin-
em essência o mesmo para os dois tipos de delinquentes.'..ii do-se ao princípio de busca da felicidade, à luta por status
Não se trata somente de um processo de assimilação, jál t social, à necessidade de dinheiro ou à frustração. Estas ex-
que com frequência se produzem inovações que são quiçá plicações são fúteis, visto que se aplicam tanto ao compor-
mais abundantes nos delitos de colarinho branco que nos de./ tamento delitivo como ao legal";
classe baixa. Os inovadores entre os delinquentes de classe, , As chamadas "zonas de desorganização social" são, na
baixa são geralmente delinquentes profissionais, enquanto4 realidade, "zonas de organização diferencial".
que os inovadores de muitos tipos de delito de colarinho
4
branco são, geralmente, advogados".

48
Pinatel acreditava que Gabriel Tarde havia tido essa intuição, mas:t
que tinha se centrado no processo de imitação. Sutherland, segundo.
Pinatel, explicava com mais refinamento os processos psicossociais. Sobre esta teoria, entre outros, David, Pedro, Criminologia y Socie-
que intervinham no desenvolvimento de uma carreira delitiva (Pinatel,': dad, Buenos Aires, Pensamiento Jurídico, 1979, pp. 139-141; Pinatel,
Jean, Tratado..., op. cit., p. 289). c» Jean, Tratado..., op. cit., pp. 287-289; Anitua, Gabriel, Sociologia...,
49
Ibidem, p. 234. op. cit., pp. 30-38.

163
162
Resumindo, Sutherland: ijjma compreensão mais ampla e equilibrada das condutas
;t.,e*-"rg,--ke',irt',);titt?.sSr.1'4st.t(zW..'e:J.-•)ai,tiM.•i•..V;tf>ftfV•trde„Nã-'ftkt
kéjèita•Yayt.tontepçaot pato dr wai; aft,crimina i a v .,, ot
bõlttfrolflkigifiratriient`p4pfêtestabelecideis•:(set,
,..: -ts:--,--tt--rutsi--~•..Ni.----,.er;riv,et 4^(ciais.
i" - Por isso dedicaremos o capítulo seguinte a esse tema,
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st8ray.,a,1-;..9,P-„,1,!„- wird teve uma grande repercussão no nascimento da Nova
3
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PítiVit....-t., 74;,dáidãkTëa,tspeiat :Aininólogia Latino-americana; e também, por conta de
-,,,-;,4,,e,,,, ...s.v.,;:ck-awfim-, -,-,--iv. - " -7 .c.:)-,
,córiclutá9Ldëlitivat's'etaprert. cfe Moda de interesse acadêmico internacional que chegou
:%Nitsw.i.t-f&it-t?iY4,Mr-i:5(::‘,/,t.:,„...t,„mtat., 47À
vimecanismos de:aprendizagem-saia
tii~%giati-,,.iip.5,,,.,:, r,c,....„s.:„„-t.5., ''`
.nic131;502_, • ' -
Sirriesmos% - 74?-;SsNer conteúdo de um Congresso, da respectiva disciplina,
4,tst trpbi,mtaâra-ai.c,qu'd.ittnria„0,Vê : I itf0à41/4,(agraiifigefiãe - ii'Ntehtei Ià Nações Unidas, sob o título "Delitos e delinquentes fora
ei rr „, kis r tstr ,,s k i....-.‘'<-.•„6 - ' 414”Cf —
off': ar-ai-set.: bo)Ased'Utirtre- a 40alcance da Lei".
e4-apr.en91.e_m.,31.9..te:raçao:' ,,tcArt- J.(qtitea's:-ASestgist:ern r--
.k , .t „ 0 já vimos que o próprio Sutherland se refere aos proces-
,e
4,94?„55,, e-7t,cp,mmqtcâçao,40
,, ... fie--itidluff.-ti,
„..4......i,i. vip..,ii..ttit,tr.bet-iii::tist;.Ptr::?,<.
igeSto ''s),..2 -
t‘eutr.-yr
.-.S: .m
mreferiveimenteiemsrupos.•pessoais, •intirhqs(o-cirie -Maitt US -delitivos diferentes, segundo o pertencimento de classe.
zmr.Efk,N.:iwit:ttk5w.tt,..?.-rk-rnttre-c-r.,-;‘,-;ÃoMr;:9;17,,,tp..S.,,set a;,._: - :kg --ty.!eiP -,i
meiossclecomunicaçaoêtc.-s -fabssao.1 ;muito -.•.-siihitièa s-tiv-or)-4 'é.encaixando
,. também no bloco de pesquisadores cultura-
z.; ''" '" -"# -•-• - ; .b. 1
..:' ''''..fn.,4 lístas.

A aprendizagem inclui: .,.A Teoria da Anomia


Técnicas Podemos considerar Robert Merton como um autor de
Motivos, impulsos oigum modo vinculado ao culturalismo, já que sua teoria se
,L
-.5r-efere aos valores de uma cultura dominante.
Justificações, atitudes
As teorias criminológicas mais
Associações diferenciais: se aprende por associação com significativas nos Estados Unidos na
mais definições favoráveis à violação de Códigos, que favo- década dos anos cinquenta foram
ráveis a respeitá-los. a teoria da anomia e as teorias das
Pode variar em: subculturas. Ambas tinham como
Frequência referência a Sociologia Funciona-
Duração (desde a lista, cujo máximo representante,
infância) Intensidade como assinalamos, foi Talcott Par-
(prestígio do modelo) sons.
Prioridade Dentro desta corrente socio-
lógica, Robert Merton foi quem
.s-
• -Rcajert Merton. Discordância desenvolveu uma das explicações
Mas é talvez seu trabalho pioneiro sobre Crime de Co tile metas e meios: anomia mais importantes sobre a conduta
larinho Branco (White Co/lar Crimes') que o faz transcender desviada, que teve como eixo cen-
s' Crime de colarinho branco: versão sem cortes - Coleção Pensament tral a Teoria da Anomia.
Criminológico n° 21, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2015. [NI. da TI'

165
164
A sociedade perfeita, segundo Merton, inculca em seus
membros o prazer da competição, apropriação do esfora,
e o valor da recompensa. Assim, a sociedade perfeita serj'a.
como um gigantesco jogo no qual todos se sentiriam ale-rr
tados a obedecer as regras, e todos seriam recompensadCi‘s
Copfcgmi.5n70)
com prêmios que estimariam adequados. Não obstante ri 'a
sociedade norte-americana teria feito, na prática, uma ex,
cessiva insistência nos objetivos que o jogo persegue e des
cuidou em colocar meioS adequados à disposição de todos)‘
Merton defendia que a cultura americana impunha
como meta o sucesso monetário, mas os meios para alcanç.á, gRitualisrrio;:r;
-lo não estavam repartidos de forma igualitária. Devido:á
que as metas culturais eram uma aspiração de todos, mas át tiontg:t32:7,-.?54..-E.A.
oportunidades estruturais para a sua execução eram limitã
das, surgia uma tensão, que ele chamou anomia 53 . A anomiá
aRetrainient0-
IN -> 0 0
ei;a precisamente a falta de meios lesítimos para- alca_t_n_aE
aquela meta. Merton concebe a anomia "como um desmoró, >CO C +
namento da estrutura cultural que ocorre sobretudo quandâ
existe uma discrepância aguda entre as normas e metas cul; . mi(+) aceitação; (—) rejeição; (+1—) rejeição de valores
turais e as. capacidades sociais estruturadas dos membros dO predominantes e substituição por outros novos
grupo de trabalhar em concordância com aquelas"".
Vejamos como se entendem essas formas de resolver a
Para Merton existem cinco tipos de adaptação individu5
tênão anômica:
ai à dita tensão, mas somente quatro dentre elas se conside
ram "desviadas". - 'Conformismo: A conformidade, tanto com as metas cul-
J rais propostas quanto com os meios institucionais ao al-
jRance de cada um, é para Merton a adaptação mais comum
tk,è)a que faz possível a sociedade humana.
52 Taylor, lan; Walton, Paul e Young, Jock, La Nueva..., op. cit., p. 116.
53 "Anomia" é uma palavra que havia sido previamente utilizada paá
Inovação: É a adaptação desviada mais importante -na ti-
definir o que existia nas .zonas de desorganização social como, pfáT ,r4rlogia de Merton. O "sonho americano" (american dream)"
exemplo, na Teoria Ecológica da Escola de Chicago. Se nanomie, nas AO ele descrevia está baseado em uma cultura que insiste no
teses precedentes, era "ausência de normas"; "anomie", para outro4 -ã1Cance pecuniário e que exorta a todos os cidadãos a triunfar,
se produziria por excesso de normas diferentes, e tinha um elemento' z"
2& triunfo e o status dependem do êxito econômico; mesmo
de conflito psicológico.
54
Merton, Robert, Theory and social structure, Nova York, The Free J.'-Algo como a possibilidade real de passar de "A cabana do Pai Tomás"
Press of Glencoe, 1957, p. 162. á5'i! para a Casa Branca.

167
166
que para consegui-lo, distribua as oportunidades de forma de-
sigual. A mudança seguinte nesse clima social e moral, pala • adaptação, mas de uma rejeição tanto das metas cultu-
:.finla
parte de alguns cidadãos, é, inevitavelmente, a inovação, -a <raiçcomo dos meios institucionais. O retraimento constitui
utilização de meios ilegítimos para buscar e alcançar o sucã? ./grri tt'a das atividades adaptativas de "psicóticos, autistas, páL
so. Para Merton, uma conduta ilegal, isto é, a delinquência, e.x-cluídos, vagabundos, mendigos, bebedores crônicos
crime, parece ser mais comum nas camadas mais baixaS icômanos"58.
sociedade". Entretanto, as inovações ilegítimas não estão res pessoas que mostram esta forma de adap-
tritas ao crime entre as classes socioeconômicas baixas. Pré itt4ão.dão as costas para a estrutura social convencional e
sões similares aos símbolos de um status monetário cada -v&, triarn de estabelecer outra nova ou muito modificada. Mer-
mais elevado são exercidas também sobre os grupos socioeco- ,.,''eton reconhece que a rebelião é uma adaptação sobre um
nõmicos altos, dando lugar a práticas comerciais imorais e ao.; .'41:.;15ho claramente diferente das demais.
que se chamaram "crimes de colarinho branco", a partir dot '▪ Representa uma resposta transitória que trata de institucio-
estudos de Sutherland. Não obstante, Merton assinalava qi.is& nalizar novas metas e novos procedimentos para que sejam
"sejam quais forem as proporções diferentes de conduta dee compartilhados com outros membros da sociedade. Assim,
viada em distintos estratos sociais (...) as pressões mais fortã se refere mais exatamente aos esforços em mudar a estrutu-
ji sob o desvio se exercem sobre as camadas baiXas"57. ra cultural e social existente que em acomodar os esforços
v• . dentro dessa estrutura".
.Ritualismo: Segundo Merton, este aspecto implica o
abandono ou a desvalorização dos altos objetivos culturaiS formas de adaptação à discordância entre metas e meios
!: de grande êxito pecuniário e de rápida mobilidade social, ner
cessários para satisfazer suas aspirações. "É a perspectiva dó .s,eAGEITA:ÇAt)40r0S:OpÉliA
empregado pusilânime, do burocrata esmeradamente confor NgORN, 1151M
mista que está no caixa do banco". Estes "vão no certo", se i-r.-re:ga.E.,t:,...,/,72,-;-.,
•:~,.--5, ,,,',, ,,nr-,%:'-v
convertem em "virtuosos burocráticos", que evitam as ambi- BSTFITMIçAcviDA,sociEDA
.
tt/Met115.11tilR' Ê.,
,,.
ções elevadas e a conseguinte frustração, se distanciam 4. •/-.-9-',
;ft-';'fizirWei:t-fir,4-:::[:•,...---
norma cultural segundo a qual as pessoas tem quese esforçar' BEISIA0i.(reVol udidriárib§)
ativamente a fim de avançar e ascender na escala social. .2
Retraimento: É a forma menos comum de adaptaçãO., 6f/WW6:1,,-61.(a.?À14?,EAO
"“ iD
O retraído está na sociedade, más não forma parte dela. Er -.)*C:.)15.0MAitiêNern
um certo sentido, poderia se dizer que não se trata tanto de • aslEt.ASt.1"SEK,IV1E105'.
M
54
"É uma resposta normal" i uma situação em que a ênfase cultural p6;. hippies',:sto'Xicorilands?'n?
ta no êxito pecuniário é central, mas onde existe pouca oportunidade
de aproximar-se aos meios convencionais e legítimos para ter tal êxitO
Merton, Robert, Theon/..., op. cit., p. 145.
57 Citado por Clinard, Marshall, "Las implicaciones teóricas de Ia ano
mie y la conducta desviada", em Clinard, Marshall (comp.), Anomiay Merton, Robert, Theory..., op. cit., p. 153.
Ibidem, p. 140.
Conducta Desviada, Buenos Aires, Paidós, 1967, p. 30.

168 169
As teorias subculturais e as orientadas para a cultura teoria das subculturas62. Basearam suas premissas na obra de
das classes sociais Robert Merton, ainda que tenham tratado de unir a teoria da
A concepção do indivíduo de classe baixa como pro- anomia, que se ocupava das origens da conduta desviada,
penso a cometer delitos, característica do Positivismo Crimi- da distribuição geográfica populacional (Escola Ecológica) e
nológico, se acentua com uma série de teorias que assinalam da teoria das Associações Diferenciais de Sutherland, que se
os valores atribuídos às classes baixas como próprios de urna c
oncentrava na transmissão (aprendizagem) de estilos des-
cultura propensa à delinquência. viados de vida63.
Alguns autores insistem em explicações que conduzem Herdaram o legado consensual de Merton. Admitem
a estigmatizar as classes baixas como portadoras de valo- que na sociedade norte-americana haveria uma meta cultu-
res discordantes com a suposta, ou pelo menos proclamada, ral omnipresente, o sucesso monetário, mas agregam uma
cultura dominante. Estas seriam as subculturas. A aprendiza- • nova variável: assim como para alguns setores populacionais
gem dessas condutas ocorreria, dizem, em certos níveis da haviam meios institucionalizados disponíveis para consegui-
estrutura social. Essa seria uma interrogante que se produzi- -lo, haveria também, tanto uma estrutura de "oportunida-
ria à raiz da teoria ecológica de Chicago (localização geo- des legítimas" como uma de "oportunidades ilegítimas". A
gráfica) e a das Associações Diferenciais ou comportamento primeira estava ao alcance de quem vivia em sociedades
aprendido, de Sutherland. "respeitáveis e organizadas"; a segunda, no bairro pobre or-
ganizado. As classes subalternas dispõem menos de meios
Admite-se que a delinquência era um comportamento ".
legítimos. Da mesma maneira, disporiam de menor acesso à
geograficamente localizado, ou aprendido por meio de con-
aprendizagem de condutas respeitosas da lei.
tatos diferenciais, o importante era averiguar a origem desta
diferença, isto é, entender porque determinados comporta- Ou seja, que as estruturas de oportunidades e de apren-
mentos eram promovidos em certos ambientes e rejeitados dizagem positiva também estavam desigualmente distribuí-
em outros". Vimos que nos teóricos da desorganização so- das. Visto de outra maneira, tampouco todos teriam a opor-
cial, a ênfase predominante estava colocada na falta de nor- tunidade de ser delinquentes. Por isso se falou que nesta
mas que se observava nas zonas delitivas. teoria se descobre que tem quem "perca duas vezes".

Ao passar da análise dos ecólogos a dos teóricos das Fora das estruturas mencionadas haveria "desorgani-
subculturas, passamos da geografia da vida humana à política '— zação" ou anomia: pois haveria também um bairro pobre
"desorganizado", no qual não haveria oportunidades legíti-
das relações sociais61.
mas nem ilegítimas. Os adolescentes enfrentando a "falta de
A Teoria da Oportunidade Diferencial normas" erigem sua própria cultura à margem dos valores
Os autores Richard Cloward e Lloyd Ohlin podem ser
Cloward, Richard e Ohlin, Lloyd, Delinquency and opportunity: a
considerados como os representantes mais significativos da theory o/ delinquent gangs, Chicago, Free Press, 1960. Ver também
Cloward, Richard, "Illegitimate means, anomie and deviant beha-
60 Larrauri, Elena, La herencia..., op. cit, p. 7. vior!", em American Sociological review, 1859, p. 164.
G' Taylor; Walton e Young, La Nueva..., op. cit., p. 160. " Taylor; Walton e Young, La Ntseva..., op. cit., p. 160.

171
170
utilitaristas. É uma maneira de, para quem não tinha que O sucesso como resultado "do destino" ou de "boa
escolher nada em um primeiro momento, expressar a criati- sorte";
vidade da práxis humana'''. Os sentimentos sexuais aflorados;
Sua teoria é, portanto, denominada de "Oportunidade Autonomia (ninguém os controla, dizem). Se escapam
Diferencial". ou saem de instituições correcionais e são reingressa-
dos é porque as autoridades se encarregam deles;
As teorias orientadas para a cultura da classe social:
As rinhas, as apostas, o consumo de álcool;
uma derivação das anteriores
Os ganhos fáceis;
Quais seriam os "valores de classe social"? Segundo
Whyte, haveria duas classes de jovens: os street corner's "Não" à disciplina, "não" ao trabalho;
boys (rapazes das esquinas/ruas) ou jovens de classe baixa, A importância de pertencer à quadrilha (ser um "in-
e os col/ege boys (rapazes universitários) ou jovens de classe -group membership");
média e alta. Por outro lado, os valores da classe média seriam os
Para Whyte, os valores que constituem a cultura da seguintes;
classe baixa (street corner's boys) seriam os seguintes:
A ambição como virtude;
Favorecem as relações interpessoais;
O sucesso como prova do esforço;
Não são ambiciosos; A racionalidade como planificação, previsão;
São gastadores; Subordinação da satisfação imediata a planos de lon-
Não aspiram a ascender à classe alta; go prazo;
Para Miller65 seriam, em termos resumidos e gerais, os Responsabilidade individual;
seguintes: Controle da agressividade física: paciência, autocon-
O machismo, não tolerar afrontas; trole, agressividade canalizada para fins legítimos;
Rudeza; Controle do tempo livre (hobbies);
Força física; Respeito à propriedade;
Picardia; Facilidade de internalizar as regras, através da família;
O status se obtém pelo esforço individual na igualda-
64
Ibidem, p. 161. de de condições.
" Miller, Walter, "Lovver class culture as a generating milieu of gang de-
linquency", em Journal of Social Issues, rf 14, 1958, pp. 5-19. Durante Os valores das classes médias dominantes na sociedade
treze anos realizou uma pesquisa nos "streetcomer's groups", também norte-americana, segundo a ideia de Max Weber, são as pró-
com pesquisa participante, sobre grupos de jovens divididos por classe,_ prias da ética protestante, a qual por sua vez deu origem ao
sexo, cor. Entende a relação de causalidade como uma situação dinâ- capitalismo como sistema, por seus conteúdos de poupança,
mica de uma complexa combinação de variáveis de muitos níveis.

173
172
trabalho, planificação, esfor- que fracassava, devesse se sentir obrigada a compensar com
ço e outros valores que favo- sucesso, em um sistema social distinto, e, de forma oposta
reciam formas de acumulação aos valores que demandava a sociedade, a chamada "sub-
de capital. Essa seria a cultura cultura". Se a sociedade exigia ordem, a subcultura defendia
dominante. As outras, opostas, a desordem; se a sociedade exigia paz, a subcultura apre-
seriam subculturas. sentava violência; se a sociedade exigia conservação da pro-
Outros autores ratificam a priedade, a subcultura pretendia sua destruição68.
tese da classe baixa delinquen- Para Cohen, as subculturas delitivas eram o produto de
te, como Miller, para quem a um conflito entre a cultura da classe operária e a da classe
delinquência de classe media, média. O aluno de classe operária frequentava, uma escola
quando ocorre, é porque os na que era julgado conforme as normas da classe média: a
valores da classe baixa ascen- confiança em si mesma, os bons modos, a gratificação diferi-
Max Weber: a Ética deram (upward difussion) às da, o respeito ao alheio etc. Seus "valores de classe operária"
Protestante e o Espírito, 1958 camadas médias convencionais não o preparavam bem para competir nessa situação, mes-
da população, através de ele- mo que, em certa medida, havia interiorizado as normas do
mentos culturais tais como o rock, o jazz e símbolos relacio- sucesso próprias da classe média. Como resultado da "frus-
nados. tração de status", os adolescentes reagiam coletivamente
contra as normas que não conseguiam realmente respeitar.
As teorias das subculturas juvenis Em um processo de "formação reativa", invertiam os valores
Alguns autores tentaram explicar que a aprendizagem da classe média e criavam uma cultura maligna, hedonista,
ocorria exclusivamente em certos níveis da estrutura social. e a curto prazo, não utilitária e negativista.
Albert Cohen66 via o processo de desenvolvimento de uma Cohen negava que sua teoria, além dos paralelos com
subcultura delinquente como um assunto de construção, Merton, fosse uma aplicação do conceito de anomia, por-
manutenção e reforço de um código para o comportamen- que, enquanto que este conceito era aceitável como expli-
to oposto aos valores dominantes, particularmente aqueles cação do delito profissional de adultos e semiprofissionais, o
da classe media67 . O sistema de competitividade americano, caráter não utilitário, a destrutividade, a versatilidade, o de-
dizia Cohen, criava as condições pelas quais uma criança leite e o negativismo global que caracterizavam a subcultura
juvenil delitiva, excediam o marco dessa teoria69.
66 Cohen, Albert, Delinquent boys: the culture of the gang, Chicago, Free
Press, 1955. Nas quadrilhas juvenis — verdadeiras subculturas — os
67 Sykes, Gresham e Matza, David, "Techniques of neutralization: A rapazes encontrariam o que se lhes negava em outras situa-
Theory of Delinquenzy", American Sociological Review, vol. 22, n° . ções sociais.
6, Nova York, New York University, 1957, pp. 664-670. Tradução
castelhana: "Técnicas de neutralización: una teoria acerca dela delin- " David, Pedro, Criminología..., op. cit., p. 148.
cuencia", em Aller, German (coord.) e Alvarez, Carlos (ed.), Estudios " Cohen, Albert, Delinquent boys..., op. cit., p. 36 (citado por Taylor;
de Criminologia, Montevideo, Carlos Álvarez, 2008, pp. 189-201. Walton e Young, op. cit., p. 162).

175
174
A quadrilha lhes proporcionaria uma confortável rela- ostulava Sutherland. Infelizmente, diziam, o conteúdo
ção de dependência de três ordens: uma dependência afe- específico do que era aprendido havia recebido relativamen-
tiva (conseguiriam nela amizades e carinho); uma_ cognitiva te pouca atenção.
(todos participariam da mesma concepção da sociedade); e Se era certo que as teorias das subculturas — especial-
moral (não seriam rejeitados dentro dela pelos seus valores). mente a de Albert Cohen — haviam feito um esforço nesse
As condutas a serem seguidas nas quadrilhas seriam não sentido, elas apresentavam sérios defeitos": a imagem da
utilitárias (sem fins lucrativos); maliciosas (o desafio pelo de- -delinquência juvenil como uma forma de comportamento
safio); negativas (seriam corretas porque são "contrárias"); e baseada em opor-se à cultura dominante ou contrapesar va-
pertenceriam aos valores da classe baixa (slum culture). lores, não era totalmente correta e, por isso, era necessária
Certamente, o fato de que Cohen7° já falasse de uma ,u.rna explicação alternativa. A ideia de que o comportamento

"jurisdição da reação social" indica seu caminho para a cha* .delitivo brotava de um grupo de normas e valores diferentes,
mada Criminologia lnteracionista. Haveria uma jurisdição isto é, de uma subcultura, segundo .esses autores, enfrenta-
nacional e outra que pode depender de subgrupos religio- va dificuldades tanto teóricas como empíricas. Em primeiro
sos ou confraternidades, ou laborais, ou fábricas, famílias ou - lugar, porque se essa subcultura existisse, poderíamos razo-
avelmente supor que os jovens não exibiriam sentimentos
"gangs" (bandos ou quadrilhas). Uma forte reprovação, por
Outra parte, não sempre coincidiria com as condutas positi.: "de culpa ou vergonha no momento de sua detenção. Mas,
pelo contrário, um número importante de delinquentes os
vamente criminalizadasn
exteriorizam. Pareceria, pois, pelo contrário, que o delin-
Para Winick, por outro lado, a delinquência juvenikerri
-Auente juvenil estaria comprometido com a ordem social do-
geral tem a ver com o fenômeno, moderno para essa época;
minante, ao declarar culpa ou vergonha quando viola suas
da intrusão dos adultos de todas as classes sociais no mundO prescrições".
dos jovens, através da roupa, do uso de drogas, da música
Em segundo lugar, os observadores notaram que o de-
e outros aspectos. De modo que começa a desaparecer 6
inquente juvenil parece reconhecer a validade do sistema
mistério e a autoridade do mundo adulto.
normativo dominante, pois admite experimentar admiração
Os valores subterrâneos e as técnicas de neutralização e respeito por pessoas que respeitam a lei.
Segundo os autores Gresham Sykes e David Matza haj Em terceiro lugar, existe evidência de que os delinquen-
via um acordo geral em considerar que o comportamento Ttes juvenis traçam uma linha sobre quem pode ser vitimizado
delitivo, como a maioria dos comportamentos sociais, era e
- -quem não, o que significa que o comportamento delitivo é
aprendido durante o processo de interação social, tal como. Mais reconhecido do que indicavam os autores das subcultu-
rás. Por último, era duvidoso que muitos delinquentes juve-
'c' Cohen, Albert, Delinquent boys..., op. cit., p. 28.
71 Como vimos em uma pesquisa comparada, já antiga, realizada no ins ruS fossem totalmente imunes às demandas de conformidade
tituto de Criminologia da Universidad dei Zulia: ver Aniyar de Castro,
Lola, "Reacción Social a Ia Conducta Desviada", em Capítulo Crimil, Sykes, Gresham e Matza, David, "Técnicas...", op. cit., p. 190.
nológico, ri" 4, órgão desse Instituto, Maracaibo, 1976. Ibidem, p. 194.

177
176
feitas pela ordem social dominante, já que há probabilidade ponente crucial das "definições favoráveis à violação da lei".
de que a família do delinquente esteja de acordo com que a É através da aprendizagem das técnicas (ou motivos) que o
delinquência é incorreta, ainda - jovem se converte em delinquente, mais que por ter impera-
se tal família está envolvida em tivos morais, valores e atitudes opostos aos sustentados pela
atividades ilegais'''. sociedade dominante'''.
Desta crítica emerge a te- Estas técnicas de neutralização se dividem em cinco ti-
oria das "Técnicas de Neutrali- pos:
zação". A negação da cesponsabilidade: na medida em que
O argumento que defen- delinquente pode definir-se a si mesmo como ca-
dem Matza e Sykes é que a rente de responsabilidade por suas ações desviadas,
delinquência está baseada em a desaprovação proveniente dele ou de outros reduz
justificações para o desvio que a sua influência restritiva. O delinquente se apro-
são vistas como válidas pelo xima de uma concepção de si mesmo como uma
rât delinquente, mas não pelo sis- "bola de bilhar", em que se vê irremediavelmente
Matza e Sykes: "Os valores dirigido a novas situações";
tema legal ou pela sociedade .
subterrâneos". Cada grupo social
gera seu próprio sistema de
como um todo. Essas justifi-
cações do comportamento,
a A negação do dano ou da injuria: o delinquente
frequentemente e de maneira incerta sente que seu
valores e suas "técnicas de
neutralização". que denominam "técnicas de comportamento não causa realmente nenhum dano
neutralização"75, são um com- apesar do fato de que seja contrário à lei";
74
C2D A negação da vítima: inclusive se o delinquente
Ibidem, pp. 191-192.
75 Com argumentos muito interessantes em sua obra mais recente, Zaffaro-
aceita a responsabilidade por suas ações desviadas
ni explica o papel dessas técnicas de neutralização nos crimes de massa, sua vontade de admitir que estas implicam dano
isto é, nos massacres. A maior parte dos grupos hegemónicos — por sorte ou injuria, sua indignação moral ou a dos 'demais
—, diz Zaffaroni, não chega a massacrar, mas há alguns que o fazem.
pode ser neutralizada afirmando que o dano ou a
O curioso é que nesses casos, emitem sinais mais ou menos claros que
geralmente são ignorados, inclusive pelas próprias vitimas. O signo mais
injúria não são incorretos à luz das circunstâncias.
mal-entendido é o reforço das técnicas de neutralização no sentido de Os ataques aos homossexuais ou aos suspeitos de
Sykes e Matza. Essas técnicas são divulgadas e reafirmadas de forma serem, aos membros das minorias, o vandalismo
orgânica, se sustentam discursivamente, e às vezes são sofisticadas. Essa como vingança contra um funcionário escolar injus-
organização do discurso precede o massacre. Quando as técnicas de
to, os roubos a um proprietário desonesto, são da-
neutralização deixam de ser difusas para se organizarem discursivamen-
te, difundirem-se e reiterarem-se no âmbito público e, em particular, nos ante os olhos do delinquente, cometidos contra
quando vêm do discurso do poder, o risco se faz iminente (...). Dá a
impressão de que em 1957, Sykes e Matza estavam analisando os mas- Sykes, Cresham e Matza, David, "Técnicas...", op. cit., p. 195.
sacres estatais mais do que as condutas dos rebeldes sem causa de seu 17 lbidem, p. 196.
tempo (Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit., p. 452). Ibidem, p. 197.

179
178
um transgressor78 . Mediante essa sutil manipulação, Em um artigo publicado em 196183, criticavam os teóri-
delinquente se coloca na posição de vingador e a cos das subculturas pela sua concepção errônea do sistema
vítima é transformada em um malfeitor; valorativo da classe média. Sua crítica dizia que esses teóri-
cos além de reduzir o sistema valorativo de toda a sociedade
A condenação a quem os condenam: O delinquen-
ao da classe média, se este sistema valorativo fosse examina-
te muda o foco de atenção de seus próprios atos
do de perto, se descobriria que muitos valores supostamente
desviados para o comportamento daqueles que de-
delitivos eram muito parecidos aos encarnados nas ativida-
saprovam suas violações. Pode afirmar que quem
des legais de diversão da sociedade dominante".
está condenando são hipócritas, desviados dis-
farçados, ou que são movidos pela má fé. Dessa A sociedade não estava dividida só em estratos. Mesmo
maneira, por exemplo, podem dizer que a Policia dentro dos valores dominantes, havia contradições, pois ao
corrupta, estúpida ou brutals°, lado de valores manifestos da sociedade se encontrava uma
série de valores subterrâneos, que não são tão diferentes,
recurso às lealdades superiores: os meios de con-
em termos valorativos, das atividades dos delinquentes que
trole social internos ou externos podem ser neutra-
formavam os "bairros marginais" da sociedade".
lizados quando sacrificam as demandas da socieda-
de, em benefício das demandas de grupos menores, Efetivamente, a busca pela aventura, pela excitação e
aos quais o delinquente pertence, tais como um pela emoção, nas classes médias e altas, o uso da prosti-
amigo, considerado como um irmão, ou a quadri- tuição, mesmo que fosse de luxo, o vício em jogos, mesmo
lha, ou seu círculo de amizades". que fosse a Bolsa de Valores; a paixão pela velocidade e a
violência (mesmo que fossem corridas de carros de luxo; e
As técnicas de neutralização de Matza e Sykes são im-
por jogos violentos, como o rugby, o futebol, o boxe e a luta
portantes, pois diminuem a efetividade dos meios de con-
livre) eram um valor subterrâneo que com frequência coe-
trole social e porque abriram uma possibilidade, antes não
xistia com valores de segurança, costumes do dia a dia, ou
explorada, de que fossem o motivo de grande parte da con-
outros valores, publicamente aceitáveis, e que tinham me-
duta desviada". A insistência feita na semelhança dos valo-
lhor reputação". Eles não representavam um valor desviado,
res delitivos e os da sociedade em geral, os levaram a expor
mas algo que devia se manter latente até que aparecessem as
sua tese "Os Valores Subterrâneos", ao substituir a noção circunstâncias propícias para a sua expressão.
de uma subcultura delitiva pela ideia de uma subcultura da
delinquência que existe de forma subterrânea na sociedade
"normal". Matza, David e Sykes, Gresham, "Juvenile delinquency and subter-
ranean values", American Sociological Review, vol. 26, 1961, pp.
712-729.
114 Matza, David e Sykes, Gresham, "Juvenile...", op. cit., p. 712 (cit. por
Taylor, Walton e Young, La Nueva..., op. cit., p. 207).
79 Ibidem, pp. 197-198.
Taylor, lan; Walton, Paul e Young, Jock, La Nueva..., op. cit., p. 207.
Ibidem, pp. 198-199.
Matza, David e Sykes, Gresham, "Juvenile...", op. cit., pp. 71 6-71 7
Ibidem, p. 199.
(cit. por Taelor; Walton e Young, La Nueva..., op. cit., p. 208).
97 Taylor, lan; Walton, Paul e Young, Jock, La Nueva..., op. cit., p. 207

181
180
O delinquente, então, longe de se desviar, se confor- mente das atividades do grupo investigado, sentin-
mava com esses valores de aceitação geral. Simplesmente os' do e compreendendo assim, as particularidades e
acentuava e não respeitava o momento ou as circunstâncias' detalhes culturais da realidade desconhecida desde
oportunas... fora. Um exemplo que teve muita publicidade se
deu com a publicação consequencial do livro Los
Reflexo institucional da Criminologia Positivista que hijos de Sánchez, que focava o tema de uma família
estuda a sociedade em condições particulares de pobreza, e os de Car-
As teorias causal-explicativas que surgem das teorias los Castaõeda, Una realidad aparte88, Las enseãan-
cientificistas mencionadas, mesmo que sociológicas, se fun- zas de Don Juan, entre outros, sobre a experiência
dam em valores de classe, e possibilitaram que: alucinógena do peyote.

o Se consolidasse o estereótipo de "pobre igual a de-


linquente";
(.® Se estigmatizassem zonas inteiras de uma cidade e • tv
seus habitantes;
(f) Se substituíssem políticas sociais por programas de
prevenção e controle do delito que eram realizados
somente em bairros marginais;
(p) As zonas denominadas de "desorpanização social"
será objeto de prisões em grande escala feitas por po-'
liciais ou militares que estigmatizam a população que'.
reside nelas. Um caso emblemático na América Latina,
é o que acontece atualmente, e há alguns anos, no Rio.
de Janeiro, com a ocupação territorial das favelas por,
parte das forças militares, o que se traduz na repressão
de seus habitantes e em execuções extrajudiciais"; )
ÇADN., Se introduzisse um elemento positivo: o método da'
"observação participante", segundo o qual o inves-
tigador experimenta vivencialmente a cultura das,
zonas e espaços estigmatizados, participa pessoal- ••'
"7 Sobre o novo tema político-criminal da "ocupação do território", ver o r,
trabalho de Vera Malaguti, "O Alemão é muito mais complexo", e de
Nilo Batista, "Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da.:
militarização da segurança pública", em Malaguti, Vera (org.), Paz Ar: r'.7
mada, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia, Revan, 2012- a Uma estranha realidade, Editora Nova Era, 2009. (N. da Tà

183
182
CAPITULO IX

THERLAND E O CRIME DE COLARINHO BRANCO

Revisão de denominações e conceitos. Elementos do con-


ceito. Semelhanças entre os delinquentes de colarinho bran-
co e os convencionais. A pesquisa latino-americana sobre
à tema'. Elementos do conceito segundo esta •pesquisa.
Problemas metodológicos e sugestões de pesquisa feitas por
outros autores.

Revisão de denominações e conceitos. Elementos


do conceito de "Crime de Colarinho Branco"
Dissemos no capítulo anterior que o trabalho de Su-
7f i.land sobre o Crime de Colarinho Branco (White Co/lar
er
Gitne) foi o que o fez transcender a uma compreensão mais
.‘,ampla e equilibrada das condutas delitivas e por isso justifica
nglia. análise em um capítulo independente.
t Á versão original desse texto foi apresentada por Edwin

SChFierland em dezembro de 1939 na reunião anual da So-


tiedade Americana de Economia na Filadélfia, e publicada
tibiLk 'ano mais tarde2.

Este capítulo reflete quase em sua totalidade o texto que foi publi-
cado em Lola Aniyar de Castro, La realidad..., op. cit. Nele estão
os elementos,. antecedentes e posições que. serviram de base para a
pesquisa latino-arnericana proposta pela autora. Somente incorpora-
mos algumas referências e incluímos os resultados dessa pesquisa, que
com os aportes de seus membros, foi desenvolvida pelo Grupo Latino-
-,americano de Criminologia Comparada nos anos 1980.
Sutherland, Edwin, "White Cofiar....., op. cit. Tomaremos como guia
nas próximas páginas a tradução "Delincuencia de cuello blanco" que
foi publicada como anexo em Sutherland, Edwin, Ladrones..., op. cit.,
pp. 219-236.
O objetivo de Sutherland era tentar estabelecer umm çâo dos informes financeiros de companhias, a falsa declaração
comparação entre o delito da classe alta — crime de colari- dos estoques de mercadorias, a corrupção de funcionários para
nho branco' — composto por pessoas "respeitáveis" ou, em conseguir contratos ou leis favoráveis, a malversação de fun-
último caso, respeitadas (homens de negócios e profissio- dos, as fraudes fiscais etc. A delinquência de colarinho branco
nais), e os delitos da classe baixa composto por pessoas com também tem lugar entre profissionais, como por exemplo, da
baixo status socioeconômico. carreira médica: compras ilegais de álcool e narcóticos, abor-
tos, informes e testemunhos fraudulentos em caso de acidentes,
As estatísticas mostravam inequivocamente que o de-
e práticas restritivas de incumbências médicas.
lito, tal como popularmente se concebia e castigava, tinha
uma elevada incidência na classe baixa e pouca incidência Para Sutherland, os crimes de colarinho branco não só
na alta. E como os criminólogos, diz Sutherland, e é certo, existem tanto no mundo dos negócios quanto o mundo dos
utilizaram como dados principais as histórias de casos e as profissionais, mas que, inclusive, o custo econômico e o
estatísticas criminais proporcionadas pelo sistema judicial, dano social desses delitos e a extensão da vitimização são
e a partir delas elaboraram teorias gerais sobre o comporta- provavelmente muito mais elevados em comparação àque-
mento delitivo. Estas teorias afirmam que, dado que a crimi- les que são considerados o verdadeiro problema criminal. O
nalidade estaria concentrada na classe baixa, se originaria da crime de colarinho branco é um delito real, mas geralmente,
pobreza ou por características pessoais ou sociais associadas não é chamado de delito. Em primeiro lugar, porque não se
a ela, tais como a debilidade mental, os desvios psicopáti- defendem tais condutas como delitivas nem recebem sen-
cos, as famílias deterioradas, e outras de índole similar. tenças condenat6rias no âmbito penal e ficam simplesmente
sujeitas à jurisdição civil, como por exemplo, os litígios eco-
Não obstante, afirmou o autor, essas teses são enganosas
nômicos ou sujeitos a sanções administrativas provenientes
ou incorretas, já que o delito não está relacionado nem com a
de Conselhos de Administração, de Comissões especiais ou
pobreza nem com as condições psicopatológicas ou sociopa-
ad hoc. Em segundo lugar, porque não se inclui como de-
tológicas associadas a ela. As explicações desta natureza são
linquentes seus acobertadores, como se faz geralmente nos
tendenciosas por serem parciais e por não incluírem amplas .
delitos comuns. Em terceiro lugar, porque os autores desses
áreas do comportamento delitivo que não são próprias da clas-
delitos gozam de imunidade pelo privilégio de classe dos
se baixa. Uma dessas áreas negligenciadas é o comportamento
tribunais e pelo poder que essa classe tem para influir na
delitivo somente de homens de negócios e profissionais.
execução e administração da lei, o que os transforma em
A diferença dos delitos que saem à luz nos meios massi- delinquentes privilegiados.
vos de comunicação, tais como roubos, homicídios, lesões, os
Também existe um forte contraste, segundo este autor,
crimes de colarinho branco se encontram com mais frequência
entre o poder dos delinquentes de colarinho branco e a fragi-
nas páginas financeiras. A delinquência de colarinho branco
lidade das suas vítimas. A delinquência de colarinho branco
no mundo dos negócios se manifesta, sobretudo, na manipula-
prospera mais naqueles lugares onde os poderosos homens
Na verdade, White Collar se refere aos executivos, burocratas de certo de negócios e profissionais entram em contato com pessoas
nível hierárquico ou funcionários das empresas. socialmente frágeis.

187
186
Para Sutherland, era necessário estabelecer uma hipótÉ,, , muitas de suas denominações posteriores tenderam a
se que permitisse explicar que, do mesmo modo como acon-i esvaziar o conceito original de seu conteúdo de classe, e
tece com a delinquência convencional, também se podei Ithegou-se inclusive a falar de "delitos de blusa azurs para
aprender a delinquência de colarinho branco. Aprende-se' referir-se àqueles cometidos por operários no exercício de
em associação direta ou indireta com quem já a pratica;í‘ éus labores. Um pouco dentro dessa mesma ordem de
e aqueles que aprendem deixam de ter contato frequente ideias e intenções, se encontra o tratamento que se tem dado •
íntimo com quem se comporta de acordo com a lei. .áos delitos chamados "ocupacionais" (Clinard e QuinneY..)
Aqueles que se tornam delinquentes de colarinho brand corn os que se pretendeu por vezes escamotear esse ele-
iniciam seu caminho. de desvio em bairros de boa vizinhari mento fundamental, ao se fazer neles a menção dos delitos
ça e cômodas casas, adquirem títulos acadêmicos em uni; ,COrrietidos por profissionais, fraudes em oficinas mecânicas,
versidades de prestígio — com uma formação um tanto idea. delitos de funcionários públicos, sacerdotes e outras pessoas
lista — e entram, em parte, por escolha própria, em situaçõev, cie
( classe média em geral. Assim, na Alemanha e nos Esta-
específicas de negócios em que a delinquência é a fornia.'.i dOs Unidos, para caracterizar esses delitos se faz referência
mais ampla de atuação. E assim, se iniciam nesse sistema det SOb esse título, geralmente ao abuso de confiança nas re-
conduta do mesmo modo que o fariam em qualquer outro:.
iáériones econômicas, enfatizando menos o pertencimento
Sutherland identifica o homem de negócios com o lai; dá delinquente à alta classe, que as maneiras como o ato é
drão profissional por certas características comuns: ambOs, teálizado. Outros& denominam de "colarinho branco" alguns
são geralmente reincidentes; sua conduta ilegal é geralmente
mais ampla do que indicam as acusações e denúncias; nã cor azul identifica os "macacões" usados pelos operários. Estes de-
litos foram denominados "golpes baixos" com relação aos delitos de
perdem seu status entre seus associados (o prestígio se perck colarinho branco. A cor muda segundo os autores, e cada cor tem
por uma violação do código dos negócios, mas não por vicic conotações, logicamente, diferentes. Reasons fala de "Lhe dirty cofiar"
'ação do código legal); ambos sentem e expressam despreá (o colarinho sujo) para opor-se a "The White collar" (o colarinho bran-
em relação à lei, o governo e seus funcionários; desprezar, co). Também se fala de delitos de cor caqui para se referir aos come-
tidos por militares em tempos de guerra. Referindo-se às estadisticas,
os delinquentes de menor categoria que foram acusados e
Versele falou, em 1976, de "cifras douradas da delinquência", para
sancionados; seus atos são deliberados e organizados; a or- nomear os delitos de colarinho branco que não aparecem nelas, em
ganização e sofisticação que os caracteriza fazem mais difícil' oposição ao termo "cifras negras da delinquência", referido por ele
a detenção e a prova de seus atos; alguns procedimentos são somente aos delitos convencionais que permaneciam desconhecidos.
Schultz, Hans, "Les délits économiques et la prévention generale", em
semelhantes: o uso da linguagem cifrada para comunicarerw
'carnal des Tribunaux, IV, 1967, p. 130; Schubarth, M., "Sind die so-
-se, ou a clandestinidade, por exemplo. genannten Wirtschaftsdelikte wirklich emn Problem?", Revoe de Droit
Alguns autores sugeriram fazer estudos de personalida l'éMal Suisse, 1974, p. 384 (387); Leferenz, Heinz, Literaturbericht Kri-
de que possam oferecer resultados comparáveis. Mas, como-- minologie, Zeitschrift for die gesamte Strafrechtswissenschaft, 1976,
p. 186 (212), todos eles citados por Tiedemann, Klaus, "Phenomeno-
é óbvio, a viabilidade de estudos semelhantes é praticamen2; logy of economic crime", trabalho apresentado na 72th Conference of
te impossível. Directors of Criminological Research Institutes, Strasburgo, publica-
Às vezes pode com a chamada "ética dos negócios". ções do Consejo de Europa, 17 de agosto, 1976.

188 189
delitos contra a propriedade que são especialmente difíceis lito ou impeça recolher provas suficientes para individualizar
de comprovar. autor ou determinar sua intenção dolosa.
O conceito de "crirninalité des affaires", geralmente uti- • Insiste-se em considerar, como um desses delitos, aque-
lizado pela Criminologia francesa e canadense, enfoca cen:- les cometidos pelos funcionários públicos no exercício de
tralmente os negócios como instrumento e como objeto dos i; suas funções, preferivelmente os de maior hierarquia, e que
atos delitivos. gozam, portanto, de maior impunidade. Estes se encaixariam
fia definição de Horoszowski. Neste caso, o elemento "po-
O Direito Penal, por sua vez, quando de alguma ma:
' der econômico" é substituído pelo "poder político", mesmo
neira toca este tipo de ato, o faz para proteger "os interesse?
quando nota-se que ambos elementos geralmente não se en-
socioeconômicos da comunidade", e normalmente aparei
'contram desvinculados. A consideração desses fatos faz com
cem, nos casos em que o Código Penal os contempla, solcr,
que, para alguns, os delitos desta espécie se caracterizem
título de "delitos econômicos". Neste amplo termo de
pelo que na dogmática jurídico-penal se denominam "delitos
delitos econômicos se dilui também o caráter classista que
próprios", isto é, aqueles que não podem ser cometidos por
originalmente tinha o conceito sutherliano de crime de co-,
qualquer pessoa, mas sim por aqueles que se revestem por
larinho branco, especialmente porque um delito econômicO
uina qualidade especial definida pelos códigos penais (a de
pode ser cometido entre pessoas pertencentes ao mundo do
funcionário público, neste caso) quando o fato se relaciona
negócios; isto é, pode ser um delito intraclasse, como por
com formas de enriquecimento. As estreitas relações entre
exemplo, a quebra fraudulenta, ou um delito que poderia ser
crime de colarinho branco e poder político podem ser de-
alternativamente intraclasse e interclasses, como a emissão;
monstradas, sem dúvidas, na prática. E também, a partir das
de cheques sem fundos, falsidade de documentos, moedas
etc. Segundo este termo, o traço característico seria o de teorizações de Engels sobre a origem do Estado, de outros
haver abusado de meios próprios da atividade econômica. como Poulantzas e_Milibadd, e, no campo específico da cri-
minologia, por
Pavel Horoszowski7 , polonês, tentou dar uma definição',
Desta forma, os delitos cometidos por funcionários pú-
adequada tanto para uma sociedade socialista como para
blicos seriam atinentes a uma investigação sobre colarinho
urna capitalista, e diz que o elemento comum é "o fato de que
branco na medida em que foram um elemento útil para fa-
essas infrações são cometidas em circunstâncias nas quais o
t'ilitar o cometimento de um delito econômico de alto nível.
autor se aproveita de uma oportunidade especial, criada ou -
, Isso quando esses funcionários representem, no caso con-
altamente favorecida pelas funções e organizações comple-,
creto, verdadeiramente o "poder político", mas não quando
xas dos sistemas tecnológicos, econômicos, socioculturais e
se trate de funcionários de menor hierarquia. Assim foi na
políticos" e os denomina "specia/ opportunity crimes". Essa, :
(, pesquisa feita sobre esta matéria pelo Grupo Latino-america-
"ocasião particular" será aquela que permita esconder o de-
no de Criminologia Comparada, sobre o qual falaremos em
Horoszowski, Pave!, "White Collar Crime, a Special Opportunity Cri- detalhes em Capítulo mais adiantes.
me", trabalho apresentado nas lournées d'Études sur Ia Criminalisation
et Infractions financiéres, economiques e sociales, Institut de Crimi- ' °: Em boa parte, tudo o que recolhemos aqui ajudou a elaborar um mar-
nologie de Line, dezembro de 1976. co teórico para essa pesquisa que se fez sobre casos muito pontuais

191
190
A variedade de definições produziu um enorme leque estejam definidas pelo Código Penal como delitos nem se-
de denominações: criminalidade de barões, capitalistas cri- quer contempladas como ilícitos civis ou administrativos,
minosos — ou criminosos capitalistas —, criminalidade das são causadores de intenso dano à comunidade; tal vez por
empresas, malfeitores da grande riqueza etc 9. Mas ao mesmo causa de uma imprevisão legislativa que pudesse ser produto
tempo impulsionou alguns autores a se absterem de defini- de mudanças tecnológicas e socioeconômicas, sempre mais
ções e a se consagrarem no estudo de problemas específi- velozes que os das instituições, ou, mais provavelmente, por
cos. Não é fácil, não obstante, elaborar uma sistematização uma proteção não inocente do que pelo silêncio que a lei
homogênea de todas as possíveis categorias de atos que penal faz sobre certos interesses econômicos. Assim, quando
dessem se relacionar com o enriquecimento em detrimento se trata de apurar os ilícitos que devem ser estudados pela
da coletividade, ou de obras pessoas, grupos de pessoas ou( Criminologia, Tiedemann" afirma que o critério decisivo
empresas, sem deixar de fora uma série de novas condutas que responde a esta questão é o mal social infligido pelo ato
fraudulentas, que ainda que tenham alguns elementos, não correspondente. Assumir esta posição reduz as discussões
têm todos os que aparecem em outras com cujos traços mais em torno do conceito do que é delitivo aos fins da Crimino-
gerais coincidem. É somente, como dizem Di Gennaro e Ve:, logia; ou, para serem mais precisos — dada a acepção legal
tere'°, "uma intuição profunda" a que há algum tempo incita que o termo "delitivo" tem —, em torno da qual é o tipo de
aos estudiosos e aos profanos a darem destaque a uma zona' conduta desviada que deve ser estudado pela Criminologia.
de comportamentos ilícitos que a longa tradição do Direito. Em ocasiões nos referimos, preferentemente, à "conduta
Penal, e a mais recente da Criminologia, já abandonaram antissocial", que indica a essência danosa do ato, já que esta
quase que inteiramente. • expressão passar por cima do relativo aspecto das definições
É, efetivamente, sobre a base dessa intuição, que: legais e o debate sobre o grau e a intensidade do desvio ao
surgiu o interesse em estudar condutas que, mesmo que não:', qual se deve ocupar o criminólogo. Porque, certamente, não
,átreditamos que estes atos pertençam à categoria dos mala
e que foi compatível com a realidade latino-americana. Ainda assim, proibita, em vez dos mala in se' 2.
decidimos incluir essa mesma pesquisa mais adiante, neste mesmo, ;
Capítulo, por sua relação com os trabalhos de Sutherland. É característico dos crimes de colarinho branco:
9 Levesque, Mano; Pacent, Colette e Kredgior, Richard, em sua pesquisa.: Que não possam ser explicados mediante as teorias
sobre "La criminalidad Económica en Quebec", sob a direção de Denis'
criminolágicas tradicionais (como falta de educação, insta-
Szabo (ver publicação do Centro Internacional de Criminología Compa!"'..
rada — CICC — da Universidade de Montreal, "La criminalité Economiquê bilidade emocional, carência intelectual, habitacional ou de
au Québec", 1977), fazem um quadro das denominações no qual se in:
cluem vinte e duas diferentes. Além das citadas por nós, e entre outras,. , " Tiedemann, Klaus, "La situation internationale de la recherche et les
estão "criminalidade financeira", "criminalidade profissional", "criminalii. I reformes législatives dans le domaine de Ia criminalité des affaires",
dade socioeconômica" (Tiedemann), "Advocational Crime" (Geis), "Cont comunicação realizada nas Primeras jornadas Europeas de Defensa
mercial Crime", "Corporate Crime", "Upper world criminal" (Morris). . Social sobre la criminalidad en los negocios, sob a organização das
10 Di Gennaro, G. e Vetere, E., "La criminalité economique, problémesciel . Nações Unidas, Roma, 28-29 de outubro de 1977.
Uma discussão sobre os critérios para definir os elementos do conceito
définition et lignes de recherche", comunicação realizada nas Prirneras'
Jornadas de Defensa Social sobre la Criminalidad en los negócios, sob: mala ia se, que é de caráter jus-naturalista, excede a intenção deste
_ capítulo.
a organização das Nações Unidas, Roma, 28-29 de setembro de 1977..

193
192
NP

m elemento que colabora fortemente com a impuni-


outra índole). Pelo contrário, criaram-se novas tentativas de .
explicação: a teoria da opção econômica (segundo a qual, . dade é a jorganização: Como diz Sutherland, na maioria dos
casos, se trata de um delito organizado. O fato de que seja
o crime de colarinho branco seria uma opção econômica a
cometido por grandes corporações torna mais difusa a res-
mais); a teoria da aprendizagem (proposta por Sutherland
ponsabilidade penal. A organização inclui, evidentemente,
como teoria de amplo alcance com o nome de "associações
toda uma complexa maquinaria para manter a corporação
diferenciais"); a tese da dessocialização (como falta de in-
fora do alcance da lei e de sua execução, mediante a contra-
tegração total e positiva de uma pessoa ao grupo socialy 3;
tação de administradores — chaves por sua posição na comu-
e a teoria do conflito, segundo a qual o empresário enfren-
nidade e por suas influências—, assessores e ligações com os
ta normas contraditórias, provenientes umas da economia e
organismos governamentais. Quando a organização chega
outras da lei; ao seu nível máximo, nos encontramos frente às multinacio-
urna gran-
Que quando existem sanções previstas, há nais. A potencialidade delitiva dessas companhias, não só
de dificuldade para descobri-los e denunciá-los e, portanto,
em intensidade, mas também em extensão, é tão importante,
impunidade. As variáveis "organização" e "sofisticação", especialmente nos países do terceiro mundo, que começa-
que utiliza Turk para explicar quando se produz a crimina- -se a dedicar-lhe uma especial atenção. A complexidade
lização por conflito entre "autoridades" e "oposição", sãd .. da aplicação das diferentes leis nacionais, a distância ou a
válidas também para analisar o mecanismo da impunidade imprecisão dos centros de decisão, e a cumplicidade das
destes delitos; filiais no exterior constituem um tipo de delinquente muito
A impunidade pode ser de Direito e de fato. particular para a Criminologia e, sem dúvida, de alta pericu-
A impunidade de Direito obedece ao silêncio da lei losidade. Não existem muitas pesquisas sobre este tema em
frente a certas condutas: particular. Por isso e, dado o contexto no qual a pesquisa
C2) Que a impunidade de fato obedece a diversas causas. comparada latino-americana devia ser realizada, sugerimos
nesse momento a inclusão de um capítulo supranacional so-
O forte poder econômico e social dos autores;
bre a delinquência destas companhias. Guillermo Ramos,
A cumplicidade das autoridades; pesquisador do Instituto de Criminologia da Universidad del
A privacidade que rodeia as vidas e atividades dos Zulia, elaborou uma primeira tentativa de análise' 4;
autores; A organização, por outro lado, não encontra contra-
A complexidade das leis especiais que, às vezes, buscam ponto na organização das vítimas, que não existe em quase
regular estes fatos, ao quais podem ser manipuladas por nenhum caso, salvo o de alguns movimentos não generaliza-
hábeis assessores legais e contadores. dos de proteção ao consumidor;

Ramos, Cuillermo, "Las empresas multinacionales. Delincuencia de


13 Ver Zybon, Adolf, "Aspectos sociológicos en el área dei Delito econ6-..4
Cuello Blanco a nivel supranacional", em Capítulo Criminológico, n°
mico", comunicação realizada nas Primeras Jornadas Europeas de De:
« 3, op. cit., pp. 131 e ss.
tensa Social sobre la Criminalidad en los negocios, op. cit.

195
194
Cl:A isto se agrega a tendência comum de acreditar que As Nações Unidas incluíram em seu programa de longo
as empresas maiores e importantes são mais honestas que as prazo o estudo dos "delitos que se cometem por abuso de
poder", particularmente de poder econômico".

o.
pequenas;
desenvolvimento tecnológico e os mecanismos de ma-
nipulação de consciências permitiram estas corporações a faze- A pesquisa na América 1atina18;'9
Como falamos anteriormente, tudo isto formou parte do
rem uso de técnicas publicitárias sutis para conservar a aceitação .
do público e sua boa imagem. O uso dos estereótipos, em espe- marco teórico discutido no Projeto sobre o Crime de Colari-
cial o estereótipo do delinquente, que tem ênfase particularmen- nho Branco na América Latina. Este projeto transitou pelos
te no delinquente convencional, criando uma verdadeira demo- ternas centrais dos delitos dos poderosos, delitos que foram
nologia do crime, desatando campanhas antidelitivas que atraem virando moda no nosso meio regional, para serem entendi-
efetivamente a atenção do público por meios praticamente terro- dos como formas verdadeiramente delitivas".
ristas, desviando-a assim, da possibilidade de ter uma consciên- Como exemplo, citamos as hipóteses fundamentais do
cia mais clara deste outro tipo de delinquência, forma parte dessa projetoEija seletividade das leis e dos tribuna...is frente a ambos
maquinaria organizativa da que não está isenta, consciente ou tipos de delitos (estes e os convencionais);)) seu tratamento
inconscientemente, a atividade oficial's. diferenciado nos meios de comunicação 3)'' ua percepção na
coletividade, que também era diferenciada; como várias
Semelhanças entre os delinquentes de colariti
efeitos remotos de suas ações; mas não é como ele, pois possui um
branco e os convencionais • sentido mais agudo do status e porque trabalha com maior visão para
A análise criminológica, por outro lado, permite assimiL, um objetivo distante".
As características deste delito, que para as Nações Unidas é um "delito
lar o delinquente convencional e o delinquente de colarinhf;
como empresa lucrativa", seriam as seguintes:0)objetivo de lucro e
branco em seus procederes, finalidades e valores16. utilização abusiva de qualquer forma legítima de comércio, indústria
ou atividade profissional/uma certa organização (um conjunto ou
Como dizem Capecchi e Jervis, na "Introducción" a Chapman, Denis))
C sistema de relações estabe ecidas entre as partes que realizam os de-
Lo Stereotipo..., op. cit., o criminoso estereotipado é funcional ao sis; litos)C3 os autores dos delitos possuem alta posição social ou poder
tema estratificado e contribui para mantê-lo inalterado. Isso permite.a
prático ("Formes et dimensions nouvelles — nationales et transnationa-
maioria "não criminosa" de redefinir-se a si mesma a partir das normas'
, les — de ia criminalité", comunicação do secretariado apresentada no
que aquele havia violado e reforçar o sistema de valores de seu próprid,
V Congreso de Ias Naciones Unidas para ia Prevención dei Crimen y
grupo. Por outro lado, da obra de Chapman se entende que o delin-, .
Tratamiento dei Delincuente, Genebra, 1973).
quente estereotipado delimita a zona escura do mal daquela iluminada.'
' A pesquisa desses delitos teria sido praticamente nula na América La-
à que pertenceriam as classes mais favorecidas; desviando-se assim a
'n tina até que o Centro de Investigaciones de la Universidad dei Zulia,
carga agressiva da coletividade em direção ao criminoso convencional,
r dirigido por Lola Aniyar de Castro, formou e coordenou um Grupo de
agressividade que de outra maneira se direcionaria às classes poderosas.'
econo- Pesquisa Regional no ano de 1974.
16 Como dizia Veblen, Thorstein, Theory aí the leisure class: an
2. Ver o Capitulo XV deste Manual.
rnic study of institutions, Nova York, Macmillan, 1912, p. 237: "(Y 2? Posteriormente, um dos Congressos da correspondente Branch das Na-
homem endinheirado ideal é como o delinquente ideal em sua conl
ções Unidas, se dedicou ao tema "Delitos e Delinquentes Acima do
versa inescrupulosa de bens e pessoas para seus próprios fins e em sua
Alcance da Lei", também chamados de "delitos cometidos por abuso
insensibilidade para com os sentimentos e desejos dos demais e nos
de poder".

197
196
vezes, simbolicamente, algum responsável de pouca impor, os atos eram cometidos, era a essência socialmente danosa
tãncia caía nas mãos do controle formal, e que, dessa maneirar, da ação. Este dano, por outro lado, devia ser de certa enver-
'f.11 gadura. Isto se refletiria em um elevado custo económico,
se convertia, previamente despojado da sua parte de poder, y-
no bode expiatório dos grandes delitos. A mensagem que fiscal, social, moral, direto ou de transferência24 .
tia o conceito de "bode expiatório" e a funcionalidade que' Ao incluir o custo social, em vez de somente a condu-
seu sacrifício cumpria frente à maior extensão do delinquente ta ilícita, estaríamos nos distanciando da tese originaria de
de colarinho branco estavam orientadas a fazer acreditar que- Sutherland. Por outro lado, no que alguns qualificaram de
-,
"estava fazendo algo".
Estes personagens "sacrificados" costumavam ascender?,
posteriormente. Em alguns casos pagava-se uma multa, qué:R, carrega na mão esquerda o escudo do êxito mundial, e na direita a
logo era repassada de algum modo ao consumidor, o quejr_ espada da influência. Com isso, é capaz de sobreviver à catástrofe e de
combatê-la". Alsworth Ross, Edward, "The Criminaloid", em The Atlan-
chegou a ser considerado como uma espécie de "compra de.':
tic Monthly, vol. 99, janeiro de 1907, pp. 44-50, citado por Reasons,
ilegalismo"21 . Charles, The Criminologist: Crime and the Criminal, Pacific Palisades,
Foram investigados casos concretos como a adulteraçã6 Califórnia, Goodyear, 1974, p. 227. Sutherland, por sua parte, cita as
de produtos alimentícios e medicinais; os delitos contra a segu-,: seguintes frases: "A. B. Stickeney, um presidente de ferrovias, disse a
outros dezesseis presidentes de ferrovias na residência de J. P. Morgan,
rança industrial; a corrupção administrativa e a contaminaçãqi? em 1980: 'Tenho o maior respeito pelos senhores, cavalheiros, indivi-
ambiental. Todos foram temas abordados pelas pesquisas das dualmente, mas como presidentes de ferrovias não lhes confiaria sequer
diferentes equipes nacionais deste grupo22. um relógio, se eu não estiver presente/h. James M. Beck disse em rela-
ção ao período 1905-1917: "Di6genes teria tido grande dificuldade em
encontrar um homem honesto em Wall Street que já conhecesse como
Elementos do conceito segundo a investigação latinor
dono de uma companhia" (citados e comentados por Aniyar de Castro,
-americana Lola, La realidad contra los mitos..., op. cit.).
Evidentemente, pois, um elemento que devia ser levadó O custo econômico de apenas um destes delitos pode ser maior que o
de todos os furtos e roubos que se cometem em um ano no país. So-
em consideração, ao lado do pertencimento à alta classe dd
mente ao que se refere à evasão de impostos, a perda estimada nos Es-
autor, de sua respeitabilidade23 e da maneira especial com, tados Unidos era de 25 a 40 bilhões de dólares; na França se estimava
entre 15 e 23 bilhões de francos; na Venezuela se supunha que entrava
21 O conceito elaborado por Emilio Carda Méndez, pesquisador do InsC nos cofres públicos apenas 50% do que por lei deveria entrar. Por ou-
tituto da Uniyersidad dei Zulia à época. tro lado, o custo em saúde humana e em perdas diretas de integrantes
22 A descrição desse Projeto pode ser vista em Aniyar de Castro, Lola, La
da coletividade é mais ou menos considerável, segundo os tipos de
realidad..., op. cit., incluído ao final deste capítulo. delito. O custo era social e moral, porque o dano era ocasionado por
23 Se excluíam, portanto, os atos cometidos por pessoas endinheiradas que„ quem assumia, em principio, reflexo e liderança do comportamento
são conhecidas como pertencentes ao submundo: como poderosos con::' coletivo — não se pode esquecer que, com frequência, os grandes
trabandistas, ou máfias comuns (não governamentais) vinculadas à dro- empresários são promotores do bem estar social, filantropos nacionais
ga. Como diz Ross (que denomina mal, a nosso ver, esse delinquente dê, etc. Além disso, existe um "efeito em espiral" que se produz pelo fato
"criminaloide"): "O criminaloide coloca a armadura de bom. Manténti: de que estes delitos vão acompanhados geralmente por outros que são
as costelas tensionadas com religiosidade e põe a couraça da respeita::,. seus instrumentos, como falsificações, corrupção etc.
bilidade. Seus pés estão calçados com ostentosa filantropia; sua cabeça.l.
está protegida por um elmo que tem a águia estendida do patriotismoU
199
198
inconsequências do autor,25 não há que esquecer que este se sempre estejam presentes na caracterização do tema propos-
referia também aos atos dos profissionais chamados liberais to a ser pesquisado, foram os seguintes:
Na maioria das vezes, a classe social do delinquente é
(médicos, advogados etc.). Na realidade, "White Collar" se
diferente a da vítima (inverso ao que acontece nos chama-
refere a um tipo de pessoas que usam terno e gravata, e não
dos delitos convencionais de teor econômico: (urtos, esta-
necessariamente aos mais ricos ou poderosos. Nós nos con fas, falsificações, apropriação indevida, pequena corrupção),
centraremos nesta última categoria. sendo a desta geralmente alta e a daquele media ou baixa, a
Ficava à margem do tema, em Sutherland, o delito das menos que se trate da comunidade inteira convertida em víti-
corporações transnacionais como um todo, talvez porque ma (como no caso da adulteração de sustâncias alimentícias,
seu desenvolvimento ainda não havia sido influenciado por contaminação ambiental, monopólio, especulação, evasão
essa circunstância, muito mais moderna, e ainda mais com de impostos, propaganda enganosa e outras do gênero).
plexa. Bem como as relações entre suas filiais e as práticas Não obstante, em alguns casos, a vítima pode ser outro
de corrupção de funcionários locais. Tema que foi pesquisa grande empresário da concorrência ou empresários que se
do, como mencionamos, por parte dos pesquisadores mem vinculam financeiramente com o autor do crime.
bros do grupo de pesquisa. C)0 ato antissocial é cometido no exercício da atividade
Por outro lado, o fato de que os delitos de colarinho empresarial ou funcional. Ficam, portanto, excluídos aque-
branco estejam fortemente conectados à estrutura do pode les atos que, mesmo sendo realizados por pessoas de alta
.` político pela interação que em nossos sistemas existe entre classe, poderiam ser cometidos por qualquer outra pessoa
esta estrutura e a de poder econômico não devia, contudo (lesões, homicídios, abortos etc.);
excluir da pesquisa aqueles atos cometidos por grandes em (:)A "respeitabilidade" do autor, como requisito definidor,
presários nos quais esta vinculação não fosse evidente. Com elimina a possibilidade de considerar de colarinho branco,
frequência, a vinculação somente existe no âmbito do trata' delinquentes de caráter comumente rejeitado, como, por
mento institucional que se dá a estes atos26. exemplo, os capas das máfias relacionadas a drogas;
4 I Outros elementos da pesquisa latino-americana (muitos Foi também hipótese da pesquisa a implementação di-
j de Sutherland) que sugerimos indagar, ainda que alguns nem ferenciada da lei, a sanção e os tribunais: de fato, quando
I ;
recebem alguma sanção, esta constitui uma medida de tipo
Sutherland falava também das estafas e roubos da classe média, in
25 pecuniário (multas, indenizações) que é repassada imedia-
clusive da classe média baixa. Di Genaro e Vetere, contudo, alegam
que pelo contexto da obra de Sutherland se compreende que essa tamente ao consumidor através dos preços. Por Outro lado,
referências se faziam para exemplificar que o delinquente de colari- como se falou, são substancialmente delitos, já que estão,
nho cometia os mesmos atos que o delinquente de classes inferiores em geral, previstos em leis especiais. Como não passam
Apesar disso, com frequência se refere aos "business and profesional pelos tribunais penais, não produzem antecedentes penais
men" e inclusive a pessoas cuja atividade é política (Di Gennaro, nem estigmatização;
Vetere, E., "La criminalité...", op. cit.).
Estas observações foram sugeridas oportunamente pelos membros crjambém foi uma hipótese de estudo que a__poputa_ção mal
26
do Instituto de Criminologia da Universidad dei Zulia, Emalo Caro avaliasse o caráter delitivo desses atos, os considerassem
Méndez, Audelina de Suárez e Thamara Santo. com maior indiferença que os convêijaiinais e não acredi-
tassem que seus criminosos fossem mais perigosos.
201
200
Estes são outros elementos que agregamos ao Projeto Isto se deve porque um alto funcionário público, ou
para ir delimitando melhor o se objeto que de pesquisa: . um alto empresário, está envolvido em algum escândalo e é

O termo abuso de poder, não só o econômico, represen- efetivamente preso. Não há que esquecer que as instituições
têm sua própria dinâmica e que em ocasiões a faz funcio-
tava uma alternativa para incluir nelas os atos de corrupção
nar contra os interesses que lhe deram origem ou aos quais
administrativa, nos casos em que esta fosse cometida por..",.,
funcionários da alta burocracia governamental. sustentam. Contudo, geralmente, as pessoas que constituem
esta exceção são previamente excluídas do poder político ou
Está claro que o simples suborno ao empregado ou fun-
econômico (que às vezes lhes é posteriormente retribuído) e
cionário público de categoria menor pertence aos delitos con-
isto explica seu conjuntural julgamento e sanção.
vencionais, já que, mesmo quando a impunidade de fato,
acontece, não exclui que esses funcionários em um dado mo-
mento possam ser sancionados como vítimas propiciatórios Problemas metodológicos e sugestões de pesquisa
para uma campanha midiática sobre a honestidade dos go- feitas por outros autores
vernos de turno. De fato, com frequência se diz que alguns As dificuldades de pesquisa sobre este tema não foram,
funcionários, assim como empresários e profissionais, de nível e não são, pequenas. Não só por sua nula incidência sobre
socioeconômico médio, sem verdadeiro acesso ao poder polí- as estatísticas ou qualquer outra fonte manejável de informa-
tico ou econômico, são castigados por seus atos e estes apare- ção. Também, como indica Szabo:286j05 organismos públi-
cem amplamente nos meios de comunicação social. Este é um cos não consideram que esta seja uma área prioritária, visto
falso delinquente de colarinho branco, que apresenta a ilusão que a obtenção de crédito se faz difície as implicações
de que estes atos podem ser castigados e facilita a impunidade políticas deste tipo de pesquisa impedem 'colaboração das
do verdadeiro delinquente de colarinho branco. autoridades e os empresários delinquentes não estão dispos-
tos a prestá-le uma investigação desta espécie requer uma
Usando a teorização de Chapman sobre o estereótipo do
delinquente como 'bode expiatório", podemos dizer que, equipe interdisciplinar onde haja aportes de juristas, eco-
assim como o estereótipo do delinquente convencional, é nomistas e sociólogos. Além disso, as técnicas de pesquisa
funcional para o delinquente de colarinho branco, o estere- usuais (a observação participante, as biografias criminais, os
ótipo deste que poderíamos chamar "delinquente de colari- estudos clínicos) não dão bons resultados, pela própria natu-
nho branco convencional", seria funcional ao delinquente. reza do objeto. E como o mesmo Szabo afirma textualmente:
autêntico de colarinho branco. Seria o bode expiatório dos
O mais importante tema de investigação deveria, não obs-
grandes delitos de colarinho branco: o que paga por todos.
tante, referir-se ao contexto socioeconómico e político no
Esta foi uma das hipóteses da pesquisa realizada.
qual tal e tal conduta é "criminalizada". Explicar a real fra-
A fórmula poderia ser representada da seguinte maneira: gilidade da sanção penal na grande variedade das infrações
DC é para DCB como DCBC é para DCB"
1° Szabo, Denis, "Editorial", em Affaires et Criminalité au Quebec, Uni-
versidade de Montreal, 1977. Também em Szabo, Denis, La crimina-
27 DC: Delinquente convencional; DCB: Delinquente de colarinho bran- lité d'affaires. Aspects Criminologiques, CICC, Universidade de Mon-
co; DCBC: Delinquente de colarinho branco convencional ou falso treal, 1977.
delinquente de colarinho branco,

203
202
de negócios é uma empreitada intelectual maior. Muita Uma teoria explicativa desse tipo de delinquência que
explicações se propuseram; poucas foram verificadas ern-: agregue às associações diferenciais de Sutherland o possível
piricamente. papel de certos fatores econômicos e a influência de alguns
traços psicológicos, segundo proposição de Clinard.3° Rico
Podemos dizer, contudo, que muitos desses casos fo' se refere, igualmente, à tese de Pinatel, segundo a qual,
ram verificados empiricamente em uma nova pesquisa. de uma comparação entre o delinquente convencional e o
de colarinho branco, se constata que ambos são egocêntri-
Os enfoques especialmente .teóricos foram aparecenci&
cos, instáveis, agressivos e indiferentes em alto grau, mesmo
em abundância na recente literatura criminológica, algur;s
quando o último, é — diferente do primeiro — um hiperadap-
tratando de delimitar o; conceito, outros tentando criar n-là: tado social; possui, além disso, uma emotividade profunda
delos de análise sociocriminológico; outros, por fim, sobr'e dissimulada e uma vontade de poder que pode ser expli-
as modalidades de um controle social eficaz para a prever'', cada por um sentimento de inferioridade.
ção primária e secundária, ainda através de novas propostas
de reação social formalizada.
Rico considerou as seguintes direções para uma
pesquisa,29 os quais extraímos do contexto total de seu trabá
lho, e que não foram fáceis de abordar na prática:
Delimitação do campo desta forma de criminalidade, que
compreenderia todos os problemas de sua definição;

A etiologia da delinquência nos negócios: tendo em conta


a dificuldade e menor urgência do estudo clínico do autor
do crime, sugere um enfoque sociopolítico das motivações,
dos mecanismos acting out (atuação), em especial a tole-
rância e as eventuais cumplicidades, conscientes ou incons-
cientes, dos homens públicos e do legislador;
A reaao social (todos os sistemas de controle) formal ou
informal (transações, medidas extrajudiciais, sanções pe-
nais);

" Rico, José M., "Notes introductives à l'étude de la criminalite des


res", em Criminologie: La criminalité des affaires au Québec, vol. 10;'
Universidade de Montreal, 1977. Esses elementos foram consideradáS
na pesquisa do Grupo Latino-americano. Mas alguns deles relaciona:
dos a estudos de suas personalidades foram evitados pela dificuldade.
" Clinard, Marshall, The Black Market, Nova York, Rinehart, 1952.
de realizá-los empiricamente.

205
204
ANEXO PRIMEIRA PARTE: Parte geral (aspecto estrutural)
O PROJETO' Objetivo: Realizar algumas aproximações gerais sobre
Recomendações para a com parabilidade dos dados as características da delinquência de colarinho branco nos
..países latino-americanos participantes.
1.1. As equipes partiriam de um mesmo conceito ope
racional de delito de colarinho branco. ..
. SEGUNDA PARTE: Parte especial (aspecto fenome-
1.2. O período a ser estudado seria o mesmo. nológico)
1.3. As hipóteses seriam comuns. Objetivo: Conhecer a fenomenologia da delinquência
1.4. Os atos que se pretendem pesquisar deveriam Ser. e colarinho branco na América Latina mediante a pesquisa
iguais. -e análise de algumas condutas em especial.
1.5. As técnicas que se utilizariam deveriam ser acorr-
TERCEIRA PARTE: Controle social (conclusões de polí-
dadas previamente e os instrumentos seriam padronizados.
tica criminal)
Mecanismos da pesquisa comparada
Objetivo: Investigar as medidas mais apropriadas para a
2.1. Realizaram-se seminários de pesquisa anuais pará :formulação de uma política criminal em geral e uma reforma
„.
a discussão das etapas realizadas e reorganização do proces legislativa em especial.
so investigativo.
2.2. A assembleia de equipes participantes nomearia': ASPECTO SUPRANACIONAL: A delinquência de colari-
uma pessoa ou comissão encarregada de elaborar a síntese. nho branco de incidência transnacional na América Latina se
final comparada da pesquisa. esenvolverá paralela e simultaneamente a estas três partes.
2.3. Cada equipe regional publicaria sua respectiva' As hipóteses gerais foram comprovadas. Os casos espe-
monografia nacional. Os organismos coordenadores publi- ciais de estudo nos diferentes países participantes completa-
cariam a síntese final. ram a articulação do conceito com sua fenomenologia.

Estrutura do projeto
3.1. A pesquisa estaria dividida em três partes, mai
uma pesquisa supranacional. Cada parte do Projeto sugeridó
poderia ser considerada como uma unidade separada e com-
pleta da qual poderiam se fazer uma síntese final.
3.2. As equipes poderiam participar em uma ou mais,
partes do projeto de sua escolha.

31
Apresentado ao Grupo Latino-americano pelo Instituto de Criminolo
gía Lola Aniyar de Castro.

207
206
CAP1TULO X

PRIMEIRA RUPTURA
CRIMINOLOGIA 1NTERACIONISTA OU DA REAÇÃO
SOCIAL

'Fundamentos epistemológicos: o construcionismo social.


Como se constrói o conhecimento e como isso influi na legi-
timação e no controle social. O Estado moderno produto do
Conflito. O Interacionismo ou "a construção social da reali-
dade" na Criminologia da Reação Social. A pluralidade cul-
tural e o relativismo valorativo. A variável "Reação Social" e
os Processos de Criminalização: criminalização de condutas,
. _
r- cnminalizaçao de indivíduos, e criação de carreiras crimi-
nosos através do etiquetamento e a estigmatização, ou "Ia-
belling approach". Reflexo institucional do Interacionismo.

Fundamentos epistemológicos: o construcionismo


social. Como se constrói o conhecimento e como
isso influi na legitimação e no controle social
Esta Criminologia, denominada lnteracionista, é produ-
,tO:daSociologia do Conhecimento, a qual estuda a maneira
como os conhecimentos se produzem. Esta epistemologia
të:denomina Construcionismo e os autores mais destacados
desta nova tendência epistemológica são Berger e Luckman'.
Se 'aceita que o que o indivíduo "conhece", isto é, o que
e':apreendido por ele, será normalmente considerado "real"
sujeito que "conhece". Este conhecimento, contudo, é

interativo, já que "uma realidade" se transmite e se apreende
e• maneira individual, e logo regressa ao mundo externo,

Berger, Peter L. e Luckman, Thomas, La construcción social de la rea-


lidad, Buenos Aires, Amorrortu, 1986.
contaminada pelos elementos aportados — inconsciente ou tivesse no mundo antes que fosse conhecido dessa maneira.
conscientemente — pela pessoa que o emite; e nesse mun- raT— itu-do, uma "construção" — ou construct° —_na _qual
do externo, essa realidade será entendida tanto de maneira ' participam diferentes elementos.,
pessoal quanto relacional. E haveria, também, elementos , A formação de uma pessoa estará, então, impregnada
próprios do sujeito ou sujeitos receptores, que poderiam ser I de seus ambientes naturais e sociais, e pelo seu organismo
inclusive biológicos, e que podem influir no processo de per- particular, que entra em interação com eles, e estará logica-
ceber e construir as outras realidades pessoais. mente influenciada por "outros significativos", que na infân-
O conhecimento, portanto, estará sempre em movimen- cia são, particularmente, os pais e os educadores, mas que
to, modificando-se. Assim, o conhecimento é produto de irão variar no mundo adulto ou profissional3.

uma interação. Por isso se diz que a formação do Eu é rela- Vários elementos estão presentes nessa teoria: a tem-
cional, e vai se construindo na medida em que se generaliza poralidade, a espacialidade, as relações de poder, a lingua-
a construção do "outro'. Portanto, essa formação do Eu é gem, a tipificação, a conformação do Eu, e o Eu objetivo
intersubjetiva. Isso determina que as realidades (e isso inclui (ou Imagem de espelho), da maneira como resumidamente
as "verdades"), segundo_. os processos de transmissão e apre- I expomos a seguir.
_ . _ ._
ensão dos conhecimentos, possam ser diferentes entre uma Por um lado, oEu objetivo (ou Imagem de espelho)
pessoa e outra, e entre uma sociedade e outra, da mesma nos conformará de acordo como os outros nos catalogam°.
maneira que os valores (o da liberdade, ou o da democracia, . Isto é, "o outro" sempre vai formar parte do Eus. Inclusi-
por exemplo) podem ser diferentes. Determina também que ve a neurociência reconheceu a existência dos chamados
possam chegar a desaparecer em uma comunidade é, não "neurônios-espelho", os quais permitiriam a cada indivíduo
obstante, aparecer em outras, e inclusive impor-se e sentir-se entender o que os outros esperam dele e se comportarem de
como verdades oficiais. acordo com a expectativa alheia.
De maneira que a verdade se caracterize por sua rela- Experimentar-se-á a vida cotidiana em graus que diferem
tividade. ,segundo a proximidade e o distanciamento — tanto espacial
Os autores reconhecem que há realidades físicas e na- quanto temporal — das realidades (naturais ou construídas).
turais. As realidades naturais influirão no processo de co- O mais próximo a um sujeito é a faixa de vida cotidiana
nhecimento, mas não necessariamente o determinarão: porque é mais acessível a sua manipulação corporal. Have-
geralmente têm prioridade as realidades que percebemos ria, portanto, não só um tempo oficial, convencional, mas
cotidianamente, as que vivemos todos os dias, e a maneira
como as vivemos. Enquanto que outras, menos recorrentes, Há em tudo isso uma clara relação com a teoria das Associações Dife-
renciais de Sutherland.
permanecerão na obscuridade. O que percebemos constan-
O encontraremos na teoria da Estigmatização e do Etiquetamento, e a
temente se transforma em obreibtoi é como se tudo o que amplificação do desvio, como formas de criminalização e de criação
tenhamos apreendido em um processo intercomunicativo es- de carreiras delitivas.
Tratado por Lacan, Jacques, 'te stade du miroir comme formateur de
Em um capítulo posterior veremos a significação do "outro" nos pro- Ia function du JE", 1949, reproduzido em Écrits, Paris, Seuil, 1966.
cessos de criminalização.

211
210
também o tempo biológico de quem ele conhece. Assim, As instituições, formadas dessa maneira complexa,
cada mudança na rotina das interações pode gerar uma mu- podem controlar o comportamento humano estabelecendo
dança social para os indivíduos. pautas (isto é, o que se chama controle social. E não só o
formal, mas também o informal). É o "dever ser". E formam
Para Berger e Luckman, as relações de poder têm um
também parte dos que foram denominados processos de so-
peso específico. De modo que, se uma norma é criada, seu
gue não são idênticos para todas as pessoas
conteúdo se faz verdadeiro (por isso pode-se compreender
que o Direito tenha uma função performativa, isto é, Lig_te Por este viés, esta nova epistemologia se opõe à Feno-
realize algo com palavras"). É desta forma que as instituições menologia, e particularmente ao Positivismo, que utiliza um
nos aparecem, como se 'fossem objetivas, mesmo que não método empírico, fechado, que impede novas hipóteses e
sejam mais que um ponto de vista sobre a realidade. novas interrogantes.
A linguagem, como também os gestos, são signos que Estes processos, tão complexos, devem então ser objeto
nos permitem objetivar a realidade, ou seja, "significar". Eles de estudo de uma nova concepção da Sociologia°.
têm elementos diferencialmente significativos, e seu próprio
O Estado moderno produto do Conflito. A plurali-
peso na construção da realidade.
dade cultural e o relativismo valorativo. O Intera-
Por isso, de acordo com o caso, os discursos políticos,
cionismo Simbólico ou "a construção social da rea-
segundo as linguagens e o poder que tenha quem os emite,
lidade" na Criminologia. A variável "Reação Social"
podem ter maior ou menor impacto, tanto nos sujeitos como
A maneira como empreendemos o conhecimento deter-
na coletividade.
minará seu resultado, e, em consequência, as hipóteses, as
A tipificação (a catalogação ou etiquetamento, e a este-
firmações e as teorias científicas, ou pretendidas científicas.
reotipia) é o que nos permite pensar facilmente algo acerca
dos demais6 . Assim como a Epistemologia Positivista deu nascimento —
tratando de compreender o fenómeno da delinquência através
Tudo isto configurará o que se chama "a construção
da Ciência — a uma Criminologia do Acting out (atuação), o
social da realidade". A ordem social, segundo esta teoria,
Construcionismo Social origina a Criminologia Interacionista.
se constrói então através da institucionalização de nossas re-'
alidades, tornando-as "normais" (cotidianas): e quando as Daqueles conceitos que eram próprios da Sociologia
atividades se tornam habituais, se institucionalizam também Funcionalista da Conduta Desviada: papel, audiência so-
em um nível que possam ser interiorizadas pelos cidadãos.. cial, expectativas sociais, conduta desviada, reação social
Isto funciona também para a aprendizagem de técnicas e de e controle social, que muito tem a ver com a linguagem
do teatro, como Goffman apontou, a Criminologia Intera-
atitudes'.

De onde a teoria do Estereótipo do Delinquente de Chapman, já men- .•


cionada, obtém seu conteúdo. Considera-se que esta teoria é uma síntese de Mead e de Durkheim,
7 Daí uma semelhança com a teoria do etiquetamento e da amplificação na medida em que o sujeito constrói uma realidade e esta retorna ao
do desvio da Criminologia Positivista que estuda a sociedade. sujeito.

213
212
cionista enfocará, basicamente, ayeação Social9 . Por conta ponto de vista que teve a oportunidade, o poder, ou a or-
disso, essa nova criminologia também será denominada de ganização suficientes para se impor sobre os demais'°.
Criminologia da Reação Social. Por defender a construção r Construcionismo Social, a Fenomenologia e a Teo-
das identidades como resultado de um processo interativo, ria Crítica ao assinalarem que a origem das normas não se
esta tendência também pode ser denominada como Intera- deve ao consenso, mas sim a posições, valores e interesses
cionismo Simbólico. em conflito, deram origem tanto à Criminologia da Reação
O processo de conhecimento próprio do Interacionis- Social quanto à Criminologia Radical, à Crítica, a chama-
mo Simbólico, que é também o da formação dos valores da Nova Criminologia (Taylor, Walton, Young") e em um
(os quais, como falamos, estarão influenciados pelas expe- ierreno — similar em muitas coisas ao que se denomina de
riências, as crenças e os interesses particulares, e que serão "Anticriminologia" —, também à Antipsiquiatria.
diferentes segundo os indivíduos e os grupos sociais), nos Veremos mais adiante como ambas as disciplinas, Cri-
põe na presença de um panorama muito diferente ao das minologia e Psiquiatria, vão se modificando na história, qua-
Criminologias Clássica e Positivista: a sociedade agora não se paralelamente, sob a influência das epistemologias.
é uniforme à maneira como Durkheim a havia descrito, mas• Nestes casos, as "definições" serão definitivas para a
sim plural, e os valores se identificariam como dissimiles. construção do conceito tanto de doença mental quanto o de
A "consciência social" da que falava Durkheim não existe, delinquência.
porque nem é única, nem é comum a todos. Não se aceita '
Aqui se faz evidente, como nunca, a definição de poder
que todos estejam de acordo com a realidade institucional. A '
de Nils Christie, como "o poder de definir".
tese do Pacto ou do Contrato Social termina por ser minos-,
prezada: o Estado moderno já não se considera produto de Então, o Estado, como consequência, será apenas o re-
um consenso coletivo; as instituições podem refletir somente sultado vencedor em um conflito de valores ou interesses
que existem entre todos os que estejam presentes em um
determinado conglomerado estatalu.
9 Esta perspectiva epistemologica, como veremos mais adiante, não só „. Esta perspectiva representa a segunda grande ruptura que
será utilizada no estudo da conduta desviada, tradicionalmente objeto
2 formará uma nova criminologia, muito diferente das anteriores.
da Criminologia, mas também por outra modalidade que o funcional- .
-positivismo denominou "conduta desviada": a dos distúrbios mentais,:;. O delito tipificado (que segundo a Criminologia Clássi-
estudados pela Psiquiatria. Assinalando o mecanismo de criação das ca estaria legalmente consensual); a construção filosófica de
normas — penais e sociais — que é o que daria nascimento a dois ti- suas consequências jurídicas, como a pena; e todo o chama-
pos dessa mesma "conduta desviada":QA que se desvia ou infringe
as normas penais, objeto da Criminologia, conjuntamente com todas'', Como diz Sellin, nas sociedades modernas nem todo o mundo coinci-
as condutas que se assemelham a elas, ainda que somente violem , de sobre quais devem ser as regras e como devem ser aplicadas (isso
normas sociais que estão na periferia da norma penal; C) a que se • pode variar segundo os grupos étnicos, ocupacionais, culturais etc.).
desvia de normas sociais que dão origem ao conceito, que será logo Cuja tese será resumida em capítulo adiante.
questionado, de normalidade mental. A Epistemologia Positivista Se nos é permitido um comentário baseado em um ditado popular,
conceito Durkheimiano de consenso social produziram, então, alén) , que pode explicar esta situação, "nada é verdade ou mentira, tudo
da Criminologia do Acting out (atuação), a Psiquiatria tradicional. depende do ponto de vista".

215
214
do Sistema de justiça Penal, têm agora, consequentemente, autor especialmente representativo,.Erving Coffman, que em
uma legitimidade questionada. seus livros Stigma e Asylums, citados anteriormente, consi-
dera em especial o tema da estigmatização, assim como às
E os estudos sobre o delinquente ou infrator dessas normas
instituições de controle total como variáveis que intervém na
(e suas características, centrais na Criminologia Positivista e -
deterioração da identidade.
Funcionalista), terão também uma cientificidade questionada13.
Trata-se de uma criminologia A Teoria do Etiquetamento ou da Estigmatização
também realizada por sociólogos, (ou IabeIIing approach). A formação de carreiras
majoritariamente norte-americanos14, criminosas
a partir de suas próprias experiências À raiz destas derivações, isto é,
nacionais, onde a sociedade costuma do que sucede como consequência
se organizar, ao redor de interesses e da imposição de uma etiqueta de
valores, em grupos sociais que pres- "desviado", essa vertente da Criminologia
sionam os Partidos e seus representan- lnteracionista foi denominada tanto Teo-
tes no Congresso para conseguir o seu ria do Etiquetamento quanto da Estigma-
reconhecimento legal. jçoem labelling approach).
Erwing Goffman, EE. UU. A reação social, ou o que tam- Seus principais autores são Becker, Le-
bém se denominou "a resposta dos mert Kitsuse Tannenbaum, Schur, Erik-
outros", gerou diferentes tratamentos acadêmicos, sendo um. son e Cusfield. Howard Becker, EE. UU.

Pode ser denominada também de Criminologia dos Pro-


Remontando-nos, não muito, no tempo, poderia se dizer que,a primeira
13
perspectiva interacionista da Criminologia foi proporcionada pela defi:
,cessos de Criminalização, como explicaremos mais adiante,
nição dada por Sutherland. De fato, ao propor como objeto desta dis- • já que o mais central da Criminologia lnteracionista é, preci-
ciplina os três elementos aos quais fizemos referência no Capitulo V (o, samente, a sua interpretação dos conceitos de delinquente e
processo de normas penais, a infração a estas normas e a reação social de delito, não como entidades autônomas", mas como fenô-
a esta infração), abriu caminho para a Criminologia da Reação Social e
menos resultantes de processos de criminal ização. As propo-
definiu o primeiro enfoque interacionista, ao mesmo tempo que consi-
derava esses três aspectos como uma sequência unificada de relações.. sições dessa Criminologia são absolutamente inovadoras. De
Nlão resta dúvida de que este autor iniciou com essas proposições, a -
Pião fato, uma afirmação da Criminologia Positivista é a de que
Criminologia moderna, e que, a sua Tese das Associações Diferenciais e' quem transgride as normas forma uma categoria homogênea:
seu estudo sobre o Crime de Colarinho Branco, podem ser considerados' • a dos delinquentes. Mas, como diz Becker":
como uma ponte entre a Criminologia antiga e a moderna. Claro que ao •
15
se incluir na Sociologia da Conduta Desviada, a palavra "desviada" re- Edwin Lemert se refere ao conceito de "desvio secundário". "Some as-
presenta uma nota discordante aos critérios de "normalidade" que logo pects of a General Theory of Sociopathic Behavior", em Proceedings
em seguida foram questionados pela mesma escola interacionista. of the Pacific Sociological Society, XVI, State College of Washington,

e Contudo, também são interacionistas, renomados criminólogos euro-


peus como Louk Hulsman, holandês; Nils Christie, norueguês; Phili- -
1948, pp. 23-24.
Becker, Howard, Los extraõos. Sociologia de la desviacion, Buenos Aires,
ppe Robert, francês; e Denis Chapman, britânico. Tiempo Contemporáneo, 1971. Em inglês: Outsiders, Chicago, The free

217
216
Tal suposição parece que ignora o fato central de que o des- delinquente a quem a realiza depois que a norma proibitiva
vio é produzido pela sociedade. Não pretendo dizer isto no aparece. A conduta foi "criminalizada" por um ato ou con-
sentido em que comunmente é dito, segundo o qual as causas junto de atos de caráter institucional (incriminação penal)
do desvio estão localizadas na situação social do desviado, ou que a convertem em conduta ilícita.
"fatores sociais" que impulsionam sua ação. Quero dizer, n'a
realidade, que os grupos sociais produzem o desvio ao criarem Q.9egundo processo de criminalização: cria-se desvio
as regras cuja infração constitui o desvio, ao aplicar tais regras . através da criminalização de indivíduos. Isto é feito através
a pessoas particulares e ao classificá-las como estranhas. de procedimentos, rituais ou cerimônias que conduzem a
apontar como delinquentes algumas pessoas e não outras,
Desde este ponto de vista, o desvio já não é uma qua- mesmo que todas elas tenham realizado atos similares, me-
lidadedo ato que a pessoa realiza nem produto de diante um sistema de seleção que depende de múltiplas vari-
característica especial dessa pessoa, mas, na verdade, urna áveis. Alguns autores, como Austin Turk, tentaram organizar
consequência de que outros apliquem regras e sanções a um: algumas delas, mas nem sempre é fácil indicar de antemão
"transgressor". O desviado é alguém ao que se lhe aplicou - quais serão, em cada caso, as razões intervenientes. Isso tem
este rótulo com êxito: "conduta desviada é a conduta que as a ver com a atitude de quem acusa ou denuncia; com a
pessoas catalogam desse modo" ("deviant behavior is beba- descoberta de que se realizou ato punível; com atitudes ou
vior that people se ?abei"). definições da Polícia que decide quem apreender e quem
não; ou do Ministério Público que decide quem imputar e
Os Processos de Criminalização
quando; ou dos Juízes que, ao final, concluem o processo
Becker diz que os grupos sociais produzem o desvio: com sentenças em um sentido ou outro.
1 .Ao j Criam-se delinquentes quando uma pessoa (que teve ou
Ao aplicá-las a particulares; ,não uma conduta tipificada) foi apontada, imputada e possi-
velmente condenada como tal. Por outro lado, não será de-
Ao catalogá-los como estranhos (outsiders).
linquente se não for descoberto, acusado — isto é, apontado,
"criminalizado" —, mesmo quando tenha realizado uma
(I)Primeiro processo de criminalização: cria-se desvio
conduta tipificada como delito. A cifra negra estará, portan-
ao construir normas (sociais ou penais). Uma conduta que,
to, composta pelos não criminalizados.
não era delitiva antes de sua tipificação penal, converte em
O ponto de partida das proposições de Becker surge de
Press of Glencoe, 1963. E Outsiders, Nova York, Free Press, 1964. Dis:
um relato do antropólogo Malinowski em sua pesquisa sobre
cípulo de Everett C. Hughes, colega de Erving Goffman, relacionado com
a escola de Chicago e com o Interacionismo Simbólico. A publicação de às Ilhas Trobriand nos casos de violação da proibição da
Outsiders rompeu com a tradição criminológica anterior. É pianista de jazz endogamia em uma tribo''.
e escreveu sobre metodologia de pesquisa, escritura científica e sociologia
Malinowski, Bronislaw, Crime and custom ia savage society, Nova
da arte. Publicou Los mundos dei arte (Art Worlds, Universidade da Califór- York, Humanity Press, 1926, pp. 77-88. Considera-se que o incesto
nia, 1984). Ver também Schur, Edwin, Labelling Deviant Behavior, Nova
é a primeira proibição na história. O incesto nessa época era o casa-
York, São Francisco, Evanston, Londres, Harper and Raw, 1971.
mento endogâmico, ou com pessoas da mesma tribo. Baseava-se na

219
218
No caso que coloca como exemplo, Malinowski des- Portanto, "o desvio é uma transação (uma interação)
cobriu que: que tem lugar entre o grupo social e a pessoa apontada por
esse grupo como transgressora".
A opinião pública não se sentiu ultrajada pelo conheci-
mento do "delito"; As seguintes situações influiriam, segundo os criminolo-
goS interacionistas:
A opinião foi mobilizada por uma declaração pública;
CO
, grau em que os demais reagem frente a um grupo des-
jA endogamia era uma conduta frequente e que as pessoas viado: em algumas ocasiões a resposta poderá ser indul-
gente, mas se nesse momento existe o que se chama uma
toleravam;
"campanha", serão maiores as probabilidades de que a rea-
_t_O grau em que as pessoas reagiam era variável. ção social seja dura;

Disso deduziu que: C....00 grau em que um ato será considerado como desviado
dependerá, por sua vez, de quem tenha cometido o ato e de
(.90 desvio não é uma qualidade do ato_ mas uma consequ- quem tenha se sentido lesado. De fato, a classe socioeconô-
ência de que outros apliquem regras e sanções; mica determina a persecução ou avanço nos graus do pro-
cesso total de criminalização. Por exemplo, onde a discri-
eilDs desvios não são uma categoria homogênea: pois não minação racial existe, os negros serão criminalizados com
todos os catalogados realizaram o ato; mais probabilidade que os brancos, mesmo quando todos
tenha tido a mesma conduta. Isso explica também porque o
(Também não se aplica a todos os que realizaram o ato;
processo legal de um jovem de classe média não é levado
(es-Não se pode esperar que existam fatores comuns, nem à adiante: é menos provável que eles sejam levados para a
personalidade, nem à situação vital, que expliquem o su- delegacia, que sejam registrados na Seção de Antecedentes
posto desvio. O único que todas essas pessoas catalogadas Policiais, e é menos provável ainda que sejam condenados;
como desviadas compartilham, é um rótulo, uma etiqueta VTambém o status da vitima determinará a intensidade da
de desvio; reação. Que a vítima seja conhecida, ou "importante", con-
tribuirá para limitar os processos de acusação ou crimina-
(Estranhos (outsiders, na terminologia de Becker) são tam-
bém os do grupo majoritário em relação com quem foi ca- lização;
talogado ou etiquetado. (._CO_ponto de vista é variável: "o delinquente de classe baixa
que luta por seu território está fazendo o que ele considera
necessário e correto, mesmo que professores, os assistentes
sociais e a Polícia o vejam de modo diferente".
necessidade de fortalecer as tribos por meio de alianças matrimoniais
com outros grupos. Um dos casos das Ilhas Trobriand tratava-se de Alguns integracionistas, não obstante, muitos dos quais
um casal pertencente à mesma tribo, cuja relação era conhecida, mas têm uma marcada tendência psicossocial, insistiram mais,
que não era condenada, pois havia uma atitude de tolerância. Outro
indivíduo, aspirante ao amor da jovem desta história, "põe a boca no como veremos, nas consequências do "etiquetamento" que
trombone", isto é, os denuncia, e a reação social assim induzida é nas da criação de normas. E sendo que o principal efeito do
sentida de forma dramática por uma das partes de do casal.

221
220
etiquetamento seria o de induzir mais desvio (mais delin4d, á-posição social lhes confere armas ou algum outro tipo
ência, se passamos a expressão para o campo jurídico), íje. Jpoder estarão • mais preparados para impor suas regras.
teoria, por esse lado, continua fortemente vinculada à'criri . premacia pode variar segundo os contextos, a favor do
'OgX4:7;su
minologia do Acting out (atuação), pois se faz causal-exi'Diir; da idade, da classe social, da etnia, da religião, da
l'344289..P
cativa. De fato, o marcado interesse na interpsicologia tálirofissão etc.
esta teoria demonstra, a faz depositária de ambas correnteS Becker cita casos de leis promulgadas por importantes
.criminológicas".
rgroos de pressão social, médicos, por-exemplo, como as
Na realidade, a própria sociologia da conduta desviadat it»t'greis'sõbre psicopatas sexuais, nos Estados Unidos, e, na Ve-
apesar de seu peso organicista e causal-explicativo, introdif aezuela, a Lei dê Transplantes de órgãos. Os casos da proi-
no interacionismo conceitos e referências, tais como a cul; s itl3ição do álcool e de drogas foram paradigmáticos e merece-
,
tura, o papel, a audiência social, as expectativas sociais, 'd amplas discussões desde o ponto de vista abolicionista.
mesma reação social, e seus efeitos, assim como a perspet,:, •Sio caso da proibição do álcool, são conhecidas as razões
tiva etnometodológica. ligiosas dos grupos prcitestantes, que consideravam o seu
A imposição das regras nsumo moralmente repudiável. Esta proibição, pelo me-
a; Quem impõe as re ras? Depende de quem tenha, em Tads - a do consumo, ainda se mantém em alguns municípios
%de-americanos".
fdado momento, como afirma Christie, "o poder de definir'
Os exemplos são muitos: as leis contra o Direito da Mu-
rasiSãci.fimpostászpélos lher a uma Vida Livre de Violência, produto da organiza-
oo das mulheres em reivindicação por seus direitos. Vemos
4Mbém, recentemente, como o 'casamento entre pessoas
4J6:Mesmo
4 795
sexo .foi se institucionalizando paulatinamente
"-..no. mundo, depois de muitos anos de pressão organizada
.9ifis•partes interessadas. Atualmente, as pessoas que se de-

?dicaVam à prostituição e que por isso eram criminalizadas,
"se autodenominam "trabalhadoras do sexo" e obtiveram a
àráceitaçao de sua sobrevivência. Da mesma maneira como
Para Becker", a imposição das regras é uma questão 'raCOnteceu, apesar dos ingentes obstáculos, com os operários
de poder político e econômico, já que os grupos aos quels êiirabalhadores organizados que puderam superar, para seu
tecônhecimento legal, novas leis laborais que trouxeram con-
18
Retirado de AniStar de Castre, Loja, Criminología de la Reacción So eCifções de trabalho mais satisfatórias ou menos opressivas.
cial, op. cit. Ver também, da mesma autora, "El proceso de crimina
lización", em Capítulo Criminológico, n° 1, órgano dei CentrO de
vestigaciones Criminológicas de la Universidad dei Zulia, Maracaibo'
1973; Idem, Resumen gráfico..., op. cit. -"; Um deles é Martin, no Estado do Tennessee, onde se produz o Bourbon
.1,
19 Becker, Howard, Los extrai-los..., op. cit. Jack Daniels, mas não se pode consumir in situ, por influência religiosa.

222 223
Internacionalmente, o exemplo mais claro é o da proi-Ï,H rão a imposição efetiva e, portanto, o etiquetamento daquele
bição das drogas, sua fabricação, comercialização e até seut que será selecionado pela reação social.
consumo que, em princípio, foram criminalizadas por Essa Criminologia é própria da experiência de socie-
fluência de grandes empresas farmacêuticas transnacionaisr dades que contam com numerosos grupos organizados ao
que viam a droga não industrializada como inimiga. E isso-- - redor de seus valores ou interesses. O que foi característico
continuou assim porque o negócio era altamente lucrativo e;., . na história da sociedade norte-americana, onde a hipótese
poderoso para cortar esses elos que manejam países, políti4; do Estado Leviatã ou consensual, ou forte, que centraliza o
cos, grupos econômicos não autorizados, e até governos21. poder, não teve lugar, e deu passagem a um poder intensa-
Da mesma maneira,:mas com efeitos contrários, o autorHt mente descentralizado, focalizado em uma sociedade plural,
apresenta como um grupo de produtores de alimentos pará;, na qual as gigantescas ondas de imigração, que descrevemos
pássaros, em cuja composição entrava a semente da canna_ em capítulo anterior, motivaram o esforço de um Governo
bis sativa, conseguiu, por meio da coesão organizativa que tentou integrá-las ao "país das oportunidades e da liber-
um grupo de industriais, que essa atividade não fosse coni dade". Mantiveram assim uma cultura que foi se tornando
denada pela lei proibitiva. Se os consumidores de maconha, . sincrética, e que alcançou poderes reais de negociação e
diz Becker, tivessem poder ou organização similar, pode,;.•, , decisão.
riam impor seu ponto de vista sobre os demais. •;-?. „, Esses processos de criminalização de condutas antes lí-
Mas a existência de uma regra não garante automati,,• citas, seguiriam os seguintes passos:
camente que ela será imposta na realidade. Muitos fatores;', 1: Primeiro, haveria grupos organizados que se convertem
basicamente provenientes da "audiência social", determinar' , em "Cruzados" ou "Empresários Morais", ao se mobilizarem
e mobilizar a comunidade através de "Campanhas" e publi-
21 Na Venezuela, a Direção de Prevenção do Delito, durante o periodO(,j, 'Cidade em diversos meios. Seus interesses chegam rápido às
transcorrido entre 1971 e 1974, dedicou seu tempo quase integralmente.: esferas institucionalizadas de poder, seja através de mensa-
lidando com o problema das drogas, mesmo quando o delito convencio,-, gens a seus representantes nos Congressos, seja através de
nal tinha uma extensão tamanha, que seria justificável se tivessem dea- .:
dicado sua atenção a este último. Influíram fatores de diversas índoles' representantes de seus pontos de vista: em geral, gente que
incluindo a moda e a imitação de padrões estrangeiros de política ore! , ,faz
, lobby com os parlamentares e busca convencê-los a ob-
ventiva, mas, sobretudo, a grande facilidade que este tipo de campanha.. .. ter seus votos na respectiva Câmara (e muitas vezes em troca
oferecia para justificar o trabalho oficial de prevenção completa; trabalho , - he votos eleitorais). Finalmente, diz Becker, "nomeia-se uma
de prevenção que em outros terrenos era negada de antemão pela incapa-,
çomissão", e é através dessas pressões, e de seu êxito, que
cidade dessa Direção em incidir positivamente na problemática delitiva,
dados seus escassos recursos humanos e econômicos, e a ausência s Pode-se impor critérios sobre outros pontos de vista presen-
uma planificação integral de prevenção no país. Nessa época, o proble2:' tes na sociedade.
ma da droga apareceu de forma exagerada ante a opinião pública e a ()Terceiro processo de criminalização: a Teoria do
campanha não cessou até que se criaram as diversas Comissões Contr:a-
o Uso Indevido de Droga, em nível regional e nacional, que culminaraor Etiquetamento e a estigmatização. A criminalização do in-
no anteprojeto da lei sobre Sustâncias Entorpecentes e Psicotrópicas, de' divíduo previamente considerado desviado compreenderia
1974. O que não diminuiu os efeitos secundários da criminalização.

225
224
o processo psicológico e social mediante o qual quem não. _ verter em prostituta para conseguir o valor da droga. O mes-
é mais que um simples desviado de normas sociais se trans-' ' mo acontece com as manifestações públicas. Nesses casos,
forma em criminoso. É o processo de formação de carreira's , a violência da repressão abre uma espiral de consequências
criminosas. imprevisíveis.
O etiquetamento seria "o processo pelo qual se cria um' . A maneira mais ilustrativa de compreender seus efeitos
1
i papel desviado e se mantém através da imposição de etique—t - é a utilizada por_ Paynen quando qualifica a etiqueta nega-
1 tas delitivas". Uma etiqueta social seria "uma designação ou '. tiva como "passadiços" que iniciam uma carreira desviada,
'{ nome estereotipado, imputado a uma pessoa sobre a base'. e como "prisões" que oprimem uma pessoa dentro do papel
1 de alguma informação que se tem sobre ela". Em definitiva;, 'de desviado. O etiquetamento seria "o processo pelo qual
\ "são formas de classificar indivíduos em agrupa ções mane.: .- um papel desviado se cria e se mantém através da imposição
\ jáveis". de etiquetas delitivas".
Criam-se mais situações de desvio e, em último caso,:. Segundo esse autor, as etiquetas podem ser negativas ou
até de delinquência, quando uma pessoa que foi aponta,, positivas. Uma etiqueta convencionalmente negativa ("ex-
da como geradora de uma conduta desviada, chega a ser: =presidiário", "homossexual", "estafador"), tanto como uma
delinquente como efeito da imposição de uma etiqueta de' - etiqueta positiva ("inteligente", "trabalhador esforçado"), po-
desviado, por conta da introjeção que essa pessoa faz dessa' dem ser verdadeiras ou falsas, ou baseadas em má informa-
etiqueta, e de sua autopercepção e aceitação como tal pes ção, em preconceitos ou em estereótipos.
soa desviada, em virtude do que seria seu Eu objetivo (ouï Trata-se de qualificações apriorísticas que induzem a
Imagem de espelho). Isto é, quando a pessoa se percebe a si Um comportamento de acordo com seu conteúdo. Ao serem
_
mesma da maneira como os outros a percebem. t Consideradas como passadiços, quer se afirmar que transfe-
Com isso, haverá um desvio rem uma pessoa de uma posição ou um papel, a uma nova
_wári
rir , produto de uma reação so- fiCisição ou um novo papel a ser desempenhado, tal como
cial adversa, que pode se converter 6 fazem os chamados _fl~.
"ri s c E seriam prisões
em secundária (na terminologia de „porque persistem como marcas, mesmo depois de que o
Lemert22), pelo processo desti_guata- 'comportamento do indivíduo tenha mudado'''.
mento e de sua conseguinte estigmati- As características das etiquetas, para este autor, seriam:
zação. Ser o principal ingrediente de identificação. Desta-
O desvio secundário não é sem- cam indivíduos por acima do conglomerado anônimo
pre o mesmo. Pode ser uma nova con-
E-dwin Lemert, EE. UU. Payne, William, "Etiquetas delictivas. Pasadizos y prisiones", em Del
duta. Assim, uma mulher etiquetada , Olmo, Rosa (comp.), Criminologla: textos para su estudio, n" 2, Estig-
como viciada em drogas pode se con- ' matización y conducta desviada, Maracaibo, Centro de Investigacio-
nes Criminológicas de la Universidad dei Zulia, 1973.
22
Lemert, Edwin, Human deviance, social problems y social control;•' Ver Aniyar de Castro, Lola, Criminologfa de la Reacción Social, op.
Enghelwood Cliffs, Prentice Hall, 1967. cit. Edwin Lemert, Estados Unidos.

227
226
que os rodeia, tornando-os mais visíveis, e convertei", incitam e mobilizam a energia pública. Payne ilustra
do-os em alguém diferente (estranhos, outsiders). E, ao'' esta situação com o exemplo da quebra de um Banco, a
mesmo tempo, tornando-os invisíveis, pois a etiquetaçL qual — mesmo sendo infundada — cria uma conduta pú-
também apaga outras qualidades pessoais; de modar blica que como consequência pode fazer dessa quebra
que perdem sua verdadeira identidade, que é mais com,l uma realidade. É isso que fala o denominado Teorema
plexa; de Thomas: "Quando se definem as situações como re-
2 As etiquetas se generalizam. Por isso se diz que as' _ais, elas serão reais em suas consequências" 25. É a cha-
etiquetas "têm um excesso de bagagem". À deterrni; mada profecia autorrealizável (self fulfilling profecy);
nada etiqueta são agregadas apreciações secundáriaç As etiquetas criam autoetiquetas. Os etiquetados
dependentes da primeira. Assim como se afirma que' acabam se percebendo a si mesmos como os outros os
"os cegos ouvem melhor", uma etiqueta, segundo Pay:t,. veem. Através de um processo de resignação, de arre-
ne, está geralmente acompanhada de uma etiqueta de pendimento, de exclusão ou de vergonha, o indivíduo
"pouca crença e participação religiosa", enquanto que começa a percorrer o passadiço descrito por Payne, e
uma etiqueta de boa participação religiosa gera o bônus suas possibilidades de reintegração diminuem;
de "não delinquente"; 6. As etiquetas criam "expectativas". Espera-se da pes-
(?)_As etiquetas contagiam outras pessoas por associa- soa etiquetada um comportamento coerente com a de-
ção, da mesma forma como acontece com as doenças•:., finição que lhe foi dada;
A etiqueta de uma mãe de "má fama" passa suas canse s etiquetas produzem subculturas. As pessoas eti-
quências para a filha. A má reputação de um membro quetadas como "estranhas ao grupo", por uma deman-
da família deteriora a imagem dos demais membros. E da profunda, de ordem psicológica, de serem aceitas,
a audiência social reage corno se essas característica estimadas, irão procurar um grupo de referência que
também pertencessem aos outros. Características comé?< lhes dê essa aceitação e apoio moral. Formam-se as-
o alcoolismo, o divórcio, a doença mental, a pobreza sim, grupos subculturais de ressentidos, porém iguais,
os defeitos físicos ou psíquicos, se transmitem às pessc nos quais o indivíduo já não é mais um estranho, e
as do entorno íntimo familiar; onde, como reforço, desenvolverão uma ideologia que
(1As etiquetas dirigem a atividade social. Ao se redõk racionalize e justifique as características de seus mem-
zirem as ambiguidades pelo processo de identificaç¥try bros, a qual corta seus laços com a comunidade exte-
que representa a imposição de uma etiqueta, a audi0; rior, aumentando, desta maneira, sua tendência a não
ência também se encontra em um "passadiço" que á; se reintegrar a ela. Portanto, insistirão em sua conduta
direciona a uma conduta reativa enérgica e solidária. k desviada. Esses grupos podem ser somente comuni-
comunidade torna-se coesa ao ter uma resposta similar' dades desviadas ou constituir verdadeiras "gangs" ou
e se mobiliza para atuar. Etiquetas como as de homosseté
xual, ex-presidiário, doente mental e viciado em drogas'
Cit. por Schur, Edwin, Labelling..., op. cit, p. 8.

229
228
I .~

quadrilhas26; e é possível que ao se contagiarem corri Reação Grupos


outros tipos de conduta desviada dos outros membrd'i social subculturais
do grupo, aumentem as oportunidades de se iniciarehi
em novas condutas desviadas; \ar

- As etiquetas, então, produzem desvio secundáriá, Maior reação I 1 Conduta Maior


fri isso, Payne afirma que "as formas desviadas dê social desviada desvio
conduta extraem muitas vezes seu alimento das própriás
ferramentas que foram criadas para inibi-las"._Estudts,
realizados demonstram que as forças policiais concen
tram soa atuação e 'suas atividades de repressão e Reação
social Maior reação
yenção sobre grupos previamente etiquetados. Os certi: social
ficados de antecedentes policiais ou penais jogam aqUi
um importante papel. Da mesma forma como priság
preventiva estigmatiza para sempre;
C-2)Isso também cria ressentimento e hostilidade entre cisx CONDUTA Maior desvio
sujeitos, que estarão menos dispostos a cooperar coin't DELITIVA
os agentes de controle formal e ao próprio grupo. Ao Se
intensificar, como consequência, a reação social, ccifir
solidam uma conduta que será cada vez mais desviad'al Como defende que o principal efeito do etiqueta-
V}
r
Quanto à formação de carreiras criminosas como cori- Wento seria o de.induzir a novos atos desviados ou deli-
sequência desses processos de etiquetamento e estigmiti tliyos, essa teoria segue fortemente vinculada à Crimino-
zação, vemos que a etiqueta produz estigma, e o estigiiii,
tbia do Acting out (atuação), que é causal-explicativa.
criminalização. É o provável início de uma carreira delitiy_?..
Este processo foi descrito por Wilkins como o de uma espirâl
Reflexo institucional do Interacionismo
delitiva ou "amplificação do desvio":
Aparecem novos grupos civis organizados com in-
teresses diversos, como organizações feministas, in-
digenistas, ecologistas, movimentos como o dos/das
"Panteras Negras", que representavam os direitos dos
afro-americanos; movimentos de homossexuais; de ex-
-presidiários; de trabalhadoras do sexo, e outros, que
pressionam politicamente para obter consideração legal
26 Lembremos da teoria das subculturas juvenis de Cohen, que explica aos seus interesses e pontos de vista;
mos em capítulo anterior, referente à Sociologia Positivista.

231
230

Ii
a A Criminologia Interacionista, ao determinar a CAPITULO XI
portância das definições, mais que do delinquente, fa¡
com que o Direito Penal do autor comece a dar lugar ao),
Direito Penal do fato; r.LOUK HULSMAN E O ABOLICIONISMO PENAL

áde
)Como previsão de reincidências •ou agravamentoY
condutas negativas prévias de menor importância,
, Introdução. O Sistema de Justiça Penal: questionamentos,
,,`f•-,
, afirmações e propostas de Hulsman. Reflexo institucional do
como produto do etiquetamento, se começa a proibiri•i:• abolicionismo. A prisão é um mal necessário? As medidas
C3 as penas infamantes; (as leis de periculosidade0o alternativas explícitas. Medidas processuais, penais ou pe-
uso de uniformes pelos prisioneiros(d) mostrar fotogra-;:. nitenciárias? Medidas alternativas, para que? Sua aplicação
fias de imputados ou condenados nos meios massivos,:h ft na prática.
de comunicação(e5)a emissão de antecedentes penais.
ou policiais;
Interesse pela função dos meios de comunicação e. Introdução
por todos os controles informais que constroem reaIi. -
Hulsman mereceria mais que umas breves páginas expli-
dades; ,
1.• cativas. Apesar de que, na verdade, não se preocupou mui-
a) A concepção da pluralidade das reações sociais abre em escrever. De fato, somente publicou um livro, que no
portas ao movimento abolicionista. - ..'original francês tem o título Peines perdoes. Le système pé na!
Si question1 (que significa, não só o que captamos em uma
primeira leitura,ue as penas aplica-
:" - tlas pelo chamado sistema penal se
ordem, mas que também, elas não
- são úteis: elas "não valem a pena",
jiaa acepção dialética do título em
'francês). Certamente, referia-se desde-
nhosamente ao seu livro como "final-
:Zente um livro verdadeiro!", porque
'sendo um abolicionista integral, não
,t. seguia as formas acadêmicas tradicio- Louk Hulsman, Holanda

nais. Preferia a docência boca a boca, a relação direta com os


“t milhares de alunos que teve na Europa e na América Latina,
?que também difundiam este tipo de novo evangelho liberador.

Huisman, Louk H. C. e Bernat de Celis, Jacqueline, Reines Perdoes. Le


système pénate eu question, Paris, Centurion, 1982.

232
Esse livro foi traduzido ao espanhol com o estranho ti- a criminalidade". "Os trabalhos dos comparatistas demons-
tulo: Sistema Penal y Seguridad Ciudadana; bacia una alter- . tarn que não há relação entre a frequência e a intensidade
nativa 2 . Dizemos que o título é estranho porque a sua leitura dos acontecimentos violentos C..) e o caráter repressivo ou a
simples não parece se relacionar com a "segurança cidadã":: extensão do sistema penal".
como se entende hoje. A explicação é uma interpretação, Ele mesmo cita Marc Ancel, um dos chamados "pais da
como veremos nas próximas páginas, do penalista Bustos Escola da Defesa Social"3, quando este denuncia as ficções
Ramírez. legais, já que impedem de chegar à realidade, ao mesmo
'
Louk Hulsman foi uma figura muito importante na tempo que propõe desjurisdizar certos conceitos para chegar
minologia e no Sistema Penal contemporâneos. Visitou am- ao homem.
plamente a. América Latina, onde deu múltiplos cursos e O que as vítimas solicitam, na verdade, é uma mudança
conferências e foi calorosamente apreciado. Provido de seu : ' Cias situações que geram esses acontecimentos, diz Hulsman.
cachimbo, sandálias e colete, além de um sorriso aberto, es- de fato, mais que uma pessoa presa, é mais útil a criação
pontâneo e permanente, visitou grande parte do mundo, con-.H ,de associações de mulheres violentadas, a solidariedade dos
viveu com indígenas e outros grupos populares — crente, de grupos feministas, ou obras alternativas de controle, assim
certa forma, no método da observação participante —, e Como o que eles geram como mudança cultural. O sistema
sorveu suas maneiras de resolver conflitos. E, ao longo de sua., 'Penal não pode dar às vítimas justamente a ajuda que elas
vida, que foi muito coerente com sua obra, aprendeu muito., fequerem. Não as restitui em nada. E até mesmo, tira seu
do que hoje é denominado de "O Outro Direito", isto é, o Di2 Protagonismo na hora de buscar soluções.
reito vivo, o que se realiza verdadeiramente na vida cotidiana .'" Recordemos que a vítima foi quem sempre teve partici-
_
dos integrantes de todas as cidades do mundo. O do cidadãO pação como protagonista do processo antes do sistema penal
comum, o que desde muito tempo, salvo em casos muito gra• e seu conceito de "crime" (discurso cuja origem se encontra
ves, ou por ter sido criminalizado, se desvinculou do Sistema; • por volta do século XIII) a substituíssem, colocando o Estado
Penal. "O sistema penal já está abolido", costumava dizer. O , êin seu lugar.
que fica é um mero símbolo que tem funções muito diversas. -
Não acreditamos que ele se considerasse um interacio-
O fato de que a cifra negra seja imensa, argumenta, demons-.-
, nista, mas nos parece que há muito boas razões para incluí-
tra que somente 1% dos casos (e também não tem certeza que- .; ,' -lo nessa Criminologia:
atinja essa porcentagem) chega ao sistema penal.
Se a Criminologia interacionista se baseia nas diferen-
O certo é que não resolve os conflitos que criam delin:
tes reações sociais; se parte de um relativismo valorativo; se
quentes. "É inútil esperar do sistema penal que ele suprima ]-
questiona a legislação penal como a única resposta legal-
2
Hulsman, Louk H. C. e Bernat de Celis, jacqueline, Sistema Penal!: mente aceita pelos conflitos interpessoais, podemos consi-
y seguridad cittdadana; hacia una alternativa, Sergio Politoff • derar a tese Abolicionista de Hulsman como uma consequ-
Barcelona, Anel, 1984. Publicou também alguns artigos em revistas..., .Lência lógica do interacionismo.
especializadas. Acreditamos que, algumas vezes, se viu obrigado a.,
tj

fazê-lo, já que esse não era seu estilo docente. Ancel, Marc, La délense sociale nouvelle, Paris, Cujas, 1981.

235
234
O que diz Hulsman? Mudar a linguagem não é uma condição suficiente, mas
"gtirn, necessária. As vezes muda-se as palavras para aparen-
O Sistema de Justiça Penal: questionamentosl, iátque o tema de fundo também mudou, como quando se
afirmações e propostas de Hulsman • -SObstitui a palavra encarceramento por tratamento ou resso-
Como foi funcionário do Ministério da Justiça na Ho- 'ãi,á lização." Poderia se falar de "pessoas implicadas", "atos
landa, e por isso conheceu de perto o funcionamento do >lárentáveis", "comportamentos indesejáveis", "situações
Sistema de Justiça Penal, Hulsman faz os seguintes questio :•boblemáticas"
,? r
F r-é:•-•
etc.
namentos e afirmações: " • No conceito de "delito" há situações que têm pou-
tem comum em sua motivação, em suas consequências,
O sistema penal é'um sistema?
:dm sua natureza; em suas possibilidades de controle: O que
O 50 Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção gi‘rn em comum a violência familiar, a violência das ruas, os
do Crime e o Tratamento do Delinquente sinalizava que dà- earrombamentos, a receptação, os delitos de trânsito, a con-
mos por certo que o chamado Sistema de Justiça Penal f423 taminaçao ambiental, a corrupção? Ele aponta que "a única
-
ciona como um verdadeiro sistema, no qual os diferentg icbisá que os delitos compartilham é que o sistema de justiça
subsistemas compartilham os mesmos objetivos. Mas isSs& tknal está autorizado a proceder contra eles";
não é certo, afirma. Cada parte do suposto sistema tem Sa
v. • Toda a discussão sobre reformas possíveis no sistema
próprios valores e interesses, corporativos, salariais, de mdtiP.
fi:. Ikjustiça penal se faz dentro da perspectiva do controle so-
tocracia, imaginários sociais e rotinas sejam estes judicialí,
ta: e não de sua eliminação ou alternativa: por exemplo,
penitenciários, ou de outra categoria de op~i..,j
i i:se que deve ser mais eficiente, ou que deve estar mais
d
res. Ninguém, de nenhum desses setores, participa da mes
,em qualificado;
ma cultura, nem está muito interessado nos outros estratos,
, • Se supõem— erroneamente — que o sistema penal está
desse mal denominado sistema.
?011);controle da sociedade que o criou;
Essa situação de fragmentação é grave porque cau451
Acredita-se que o delito é um ato excepcional que
além de muitos sofrimentos, estigmatização.
Mistifica a natureza excepcional de uma reação contrária.
Portanto, para começar: Más hem é um ato excepcional, nem sempre justifica a natu-
Tem que se eliminar a palavra "crime". j-Íza de uma reação penal contrária;

Tem que se mudar de linguagem. Não se pode superars Há situações difíceis que nos causam mais angústia
lógica do sistema penal se não se rejeita o vocabulário O:sofrimento que algumas condutas delitivas: problemas
serve de base a essa' lógica. Crime, criminoso, política dá- de trabalho, de habitação..., tanto em grau de
minal, criminalidade são palavras que pertencem ao me" -gravidade quanto no seu período de duração. E que, não
dialeto penal. É um a prioiri do sistema penal, que aponl i isos s ante, se resolvem por vias distintas à penal;
um homem como criminoso, isolando-o de sua rede real tjé
interações individuais ou coletivas. "1-, Não é o mesmo chamar de "servente" que de "trabalhadora doméstica";
7;de "concubina", em vez de "companheira". As palavras mudam o
`tatus das pessoas, agrega.
237
236
Muitos dos chamados "delitos" envolvem sofrimentó terceiro, diz que ele não aceita que o primeiro jovem tenha
para ambas as partes (violência familiar, acidentes de trânsito?, -estruído uma televisão em cuja compra ele investiu uma
As "tribos" (assim denomina grupos sociais que têm 4',e4eterrninada quantia; portanto exige ser indenizado. Esta é
eiSj
C -- E o último, por fim, pensa que é
compensatória.
objetivos comuns, tais como profissionais, moradores de "tli'rfi
ato malvado, que agride seus companheiros e propõe
mesmo bairro, clubes sociais, movimentos sociais, entre dã_
'denunciá-lo à polícia. Esta é a respostapunitiva.
tras agrupações) interagem com o Estado em termos de cai'
flito ou cooperação. Esse conceito substituiria o de claSsre Quatro respostas totalmente distintas, com demandas
kiue vão desde o abandono do conflito até alguma sanção
sociais;
iráve. Mas como o sistema penal tem somente uma resposta,
Em cada situação conflitiva ou problemática há mu
. 1-
O'deixar a vítima fora do processo, a retira do conflito.
___Las_ls ostas possíveis; i
Certamente, quando Hulsman realizava pesquisas (em
Mas o sistema penal não só tem uma única resposta t2.01
("&fma de enquete) sobre vitimização — essa grande ferramen-
mas, além disso; ,
fa"para aproximar-se à cifra negra do delito —, não pergunta-
,.
O sistema penal não permite as respostas das partes f.'y • 74:.:"por que o senhor não denunciou esse delito às autorida-
e'lcompetentes?", mas sim, "por que o senhor denunciou o
Desta forma, o sistema penal "rouba" o conflito -das
ri?". As respostas que ele afirma ter obtido se orientavam,
J:iartes•
yoggi€ Sua maioria, por razões burocráticas: "para que ficasse
Lhes nega uma resposta que pudesse ser mais -satiSd 1 .4strado na hora de acionar o seguro", ou "para que mi-
' toda para ambas; . riffás coisas fossem devolvidas, caso fossem encontradas";
Lhes nega uma interação que pudesse esclarecer'eas ,,Muito
e poucas vezes as vítimas o faziam como forma de
razões do conflito e entender melhor sua realidade. . 44çifi'k an a penal. .
Um exemplo muito usado em suas aulas universitária ••itPor
Por conseguinte, Hulsman propõe:
é o dos cinco estudantes que moram em um apartamento Substituir a expressão "delito", que contém uma carga
*Ar. • •
alugado: 4negativa e remete necessariamente a que o conflito seja re-
Z>fr-
Um deles pega a televisão coletiva e a joga pela jalt. e, 4solNiido exclusivamente pelo Estado, por conta da "situação
la, destruindo-a. Um dos estudantes diz que o amigo "Sá "króblernática";
1 ", e que deve ser levado a um psiquiatra ou a Um -I •
Joss..0 A reapropriação dos conflitos ou "privatização dos
cólogo. Esta é a resposta terapêutica. Outro, não se intereSP tétinflitos";
pelo assunto: pensa que o fato não é muito significative:41
que era uma televisão velha que não tinha muita potèr(ciá-sr ,.e.• Em caso de falta de interação, dar preferência ao mo-
s"
sempre tinha algum defeito. Esta é a resposta tolerante. ,Vm fleityda justiça civil. A justiça civil não só permite a ambas as
••&>:‘:
Partes expor sua posição com relação ao conflito, em situa-
5 É característico do Interacionismo, já que este trabalha basitartent ao &paridade, mas também que se encontre uma solução
com o conceito de grupos sociais organizados. Tnesèno depois da sentença decretada.
44'1\5&
239
238
Hulsman pensa que a proposta não é nem tão surpreen'i, r;a extravagãncia, pois a Guerra Fria legitimava o exter-
dente nem tão radical, porque o sistema penal já está prati;, Mínio de quem pensasse diferente, e não era comum a de-
camente abolido: a cifra negra dos delitos que se cometei iása dos Direitos Humanos; e, por outro lado, o marxismo
cotidianamente é geralmente tão grande, que a representa órtódoxo se assumia como o único capaz de dominar "as
ção que esses conflitos têm no sistema penal é mínima. l. inexoráveis da História". Hoje as coisas mudaram, diz
:eis.
i
pessoas solucionam suas "situações problemáticas" de forn4 Rólitoff: "Em todos os terrenos se questionam os deveres do
,
privada, enquanto que o Sistema Penal mantém seu recn: ffidividuo frente ao Estado e se reivindica a não violência
nhecido papel simbólico., se refere à institucional — e a participação". Esse livro de
fiulsman, afirma, é escrito "quando o debate antiautoritário
Enquanto Hulsman Participava de polêmicas amigáveis.
sobre abolicionismo, garantismo e Direito Penal Mínimo cont :Seseneralizou no mundo".
1,74!‘•
outros grandes pensadores de nossa época, como Baratta -• Bustos Ramírez diz que Hulsman não tentou negar os
Ferraioli, seu pensamento ia se expandindo não só entre Cfi,tt fáios definidos como criminalidade. A sua intenção é, na
minólogos e filósofos sociais, mas também entre penalistÁw 1a,lidade, um convite para se refletir sobre caminhos alter-
e processualistas, além de desenvolvedores de políticas púd nativos. E ao se referir ao nome que o livro tem em espanhol,
blicas. Ferraioli assume o Direito Penal Mínimo, fundame4
'tado em que o Direito Penal tem garantias que uma soluçãi n A segurança cidadã deve primeiramente aparecer ligada a
privada de conflitos não teria, e, além disso, principalmente uma profunda democratização do Estado, e que cada vez
para evitar a proliferação das penas informais. Para Barattác';: mais, a partir da base, sejam os homens, todos, e não só
o que se há denominado como "reapropriação privada. do . "g. alguns, os que tenham capacidade de resolver seus proble-
conflitos" é um desiderátum que se resolve incluindo-a e{ mas, e sua vontade não seja sempre substituída pela de um
um marco de garantias para ambas as partes. ente abstrato que diz representá-los em tudo, em todas as
partes e em todo o momento (...) um Deus terrestre que evi-
Os penalistas críticos latino-americanos receberam;:a dentemente consegue ser muito pior que um deus nos céus,
proposta de Hulsman com interesse:6 que pela sua distância pode ser mais generoso8.
Como uma forma de "Realismo Penal Verde" cotriCi,.5
denomina Zaffaroni, referindo-se assim ao humanismo do:s Reflexo institucional do abolicionismo
movimentos ecologistas em sua versão político-criminal. Suas investigações sobre a criminalização internacio-
Sergio Politoff cita o primeiro penalista (Paul Reiwa-lii»l nal da droga, sua participação nas propostas do então
que propôs, em 1948, "a abolição do sistema penal e Conselho da Europa sobre a descriminalização de con-
todo o direito a castigar", Para Reiwald, o efeito do Direit? dutas, suas proposições de reforma do sistema penal, o
Penal deve ser investigado mais em quem impõe a pena:çí impulso que o abolicionismo deu às medidas alternati-
que em quem a sofre. Naquela época, sua proposta parectt3
...g1Politoff, Sergio: Posfácio ao livro de Hulsman.
6 Mesmo que Radbruch já tivesse clamado por "algo melhor que o -;MBustos Ramirez, Juan: Prefácio ao livro de Hulsman Sistema penal...,
reito Penal". :op. cit.

241
240
vas à privação de liberdade, hoje são aspectos comúris freitos ter sido preterido, as figuras penais conseguintes ten-
no seu país, até o ponto de existir quatro mil vagas pa-i:Aa fiãm, por vezes, a uma supercriminalização. Ainda que st
presos em suas prisões. Essa situação é uma exceção'A- "Letansiderem condutas profundamente danosas, a única res-
As teses abolicionistas, especialmente a de Hulsniiàn osta entre as muitas alternativas de prevenção social e de
— já que outros autores como Christie e Mathiesen táf 'Ifáripoderamento
fl e proteção preventiva das possíveis vítimas,
outras propostas abolicionistas —, impulsionararn se tem dado, por exemplo, à violência contra as mulhe-
mas nos códigos de procedimento penal, com novie r.i.á/à violência familiar, à violação dos diretos das crianças
• -
princípios processuais que admitem acordos reparats "ti,,te,das minorias, e a criminalização.
rios; 1. As chamadas "polítiCas púbiicàs" geralmente carecem
A conveniência da justiça restaurativa foi posta ePri eirnaginação social. E por isso, entre outras coisas, não são
discussão; v ",tiv as.
Autores como Baratta e Ferraioli incentivam a prii4:
A prisão é um mal necessário?
dade à vítima no processo penal. E mesmo que não.'Qe
. Ninguém mais se engana sobre as funções explícitas da
diga expressamente, essa• proposta praticamente sugel
4r?são, relacionadas com o fim da pena. Como as penas não
que se estabeleça a ação privada como condição ogx 4
cglvumprem a função que lhes foi atribuída, se desfazem por si
proceder em todos os delitos;
Também estimulou a previsão de medidas alternativâ
kirresmas as razões de ser (as mais elegantes) da prisão. Vimos
acïtle histórica e socialmente serve para outras coisas.
à privação de liberdade, cuias possibilidades hoje sAb
.4àw? De modo que, se abstrairmos séculos carregando o peso
múltiplas, como veremos mais adiante;
giàiàs:mitos e estereótipos, e dos fins legitimadores que social
Verificou-se um crescente interesse pela descrimina ttpoliticamente realiza a prisão, a única e definitiva grande
lização de muitas condutas, o que se pode resumir ire alternativa é a sua abolição, da maneira como os abolicio-
forma mais enfática na proposta de um Direito Penal Rsta.'s^ , Mathiesen, Christie, Hulsman, a propuseram.
Mínimo;
im A prisão não desaparecerá, por hora. Há muitos inte-
Igualmente, com o surgimento de um novo interess, (ases nela. Por um lado, existe a moda perversa do atual
pelo tema ecológico, foram criados novos delitos ref'è" Osp.penalismo ou populismo punitivo. Por outro, a chamada
rentes à proteção ambiental. 4.i•ndústria da prisão9 ou benefícios espúrios, além do espírito
Paradoxal e lamentavelmente, o que se produziu na .,i:Vntlicativo que pode gerar pressões eleitorais; e, finalmente,
prática foi a incriminação de muitas novas condutas. A pei' ,Iãslegitimações que provoca. •
manência do punitivo está enraizada no populismo periii Por isso não existe a vontade — nem a valentia — de
na pressão midiática, e na organização de grupos que nko, :enfrentar o fracasso dos fim explícito da prisão, que não seja
haviam visto anteriormente seus direitos reconhecidos.;43 42-11“' ! •
'ecifocando "panos quentes": prisões supostamente modelos
forma que consideravam a mais adequada (isto é, atraQ6
da sanção penal). Geralmente, pelo reconhecimento de setijs KPara a qual Christie e Waquant apresentaram cifras muito interessantes.

243
242
'14
(que logo se transformam em lugares horríveis), Prisões aber- Alternativas, existem as formais, prescritas como tais, e
tas, sistemas sofisticados de classificação, prisões-fábrica;»— as cotidianas, mas não reconhecidas, não necessariamente
prisões privatizadas... Propostas que no final, por uma raj, decididas por um juiz em uma sentença ou previstas como
zão ou outra, também não funcionam. Claro que o pretexto. °medidas" da lei".
do tratamento ou reabilitação (ressocialização, reeducação': Assim, por exemplo, refazer os passos que conduzem
reinserção, isto é, a chamada família das "re") faz da prisão ábs processos de criminalização, isto é, os processos de cri-
mais humana, ainda que exista reservas sobre esses concei--. minalização vistos "para trás", produzem alternativas à pri-
tos, que deveriam ser substituídos pelos de desenvolvimento 'são: 1) o que se descriminaliza — de fato ou de Direito—; 2)
físico, cultural, intelectual — o que nunca é demais — mes- qüe se leva, ou não, às instâncias policiais ou ao Ministério
mo que não "ressocializem". Baratta reconhece esses aspec:4' Público; 3) que norma se aplica ou não; 4) quem é mais bem
tos como estrategicamente válidos, e como um direito, para - defendido no plano processual, com seus recursos de poder;
evitar dor, violência e mortes intramuros. 5) que impunidades se produzem; e, em consequência, 6) o
Mas já houve uma enorme ampliação teórica e, em al- que é castigado.
guns países, prática, das alternativas à prisão. As encontramos ] •• isto é, as formas como se criminaliza ou não — e as
em quase todas as legislações, mesmo que se reformulem, se » razões pelas quais isso acontece —, as pessoas na vida real
eliminem ou se desapliquem frequentemente de acordo com; da Justiça.
as pressões punitivas nacionais ou transnacionais. As teses minimalistas são igualmente uma alternativa à
Talvez o reflexo institucional do abolicionismo, mesmo privação de liberdaden. Baratta levou este princípio em con-
que não seja explícito, é a introdução nos respectivos instruH.1 (i,' e, desde o início, as viu como instrumento da abolição
mentos jurídicos das alternativas à pena privativa de liberdadey'- progressiva do cárcere. Essas . teses conduzem a um intenso
Houve algum avanço: íGOcesso de descriminalização.
Quais são as alternativas? A ponta de lança para as a14». Nos Códigos existem muitos delitos sem vítimas, muitos
ternativas atualmente são a participação da vítima nas media:, que não são realmente considerados delitos pela coletivida-
ções, a Justiça restaurativa, e os acordos reparatórios. lgual- ' ae, muitos que nunca são ativados nos tribunais, muitas re-
mente — mais que o princípio de oportunidade no exercício d-at gras simplesmente morais com pena designada, muitos atos
ação penal, ainda que nunca seja demais —, a possibilidadá ."-
. j' Em alguns países nórdicos tentou-se a castração como punição aos de-
(por que não?), como um avanço ao abolicionismo, de privile-, litos sexuais (eletiva, substituível por prisão) porque, claro, a castração
giar sempre a ação privada sobre o procedimento de ofício"P,' 'os evita, mas a escolha não é válida, porque não é livre, e seu corpo
9!' não é um bem disponível; além disso, é uma pena cruel, inumana e
rt degradante, para usar os termos internacionalmente cunhados, e para
10
Sobre este ponto existem divergências por parte de especialistas nos' 1-nos referirmos as Regras Mínimas das Nações Unidas.
novos direitos, que reconhecem a debilidade das vítimas frente a sei). ;t:Processo iniciado por Ferraioli, integrando-as a uma teoria global den-
agressores, o que impediria uma relação de compromisso efetiva. (. -, It'''tro da qual se unem o Direito Penal Mínimo, os princípios da "reapro-
caso da violência contra a mulher e contra os menores, em que prefe= ° priação dos conflitos" - ou a privatização da solução dos conflitos - e
rem a presença controladora do Estado. 'o da primazia da vítima, dentro de um marco de garantias.

245
244
com vítimas adultas condescendentes e, sobretudo, muitos As medidas alternativas explicitas
que poderiam ser resolvidos por uma via distinta à penal. As medidas alternativas previstas como tais nas legisla-
Tudo isso implica em uma inútil inflação penal, característi-, ' ções são mais ou menos sempre as mesmas. Por exemplo:
ca das democracias que se movimentam conforme os votos.,"
O trabalho comunitário em praças, hospitais, esta-
Sua inutilidade é entendida claramente quando nos fazemos
belecimentos educativos ou outros, geralmente designado
uma simples pergunta: o que aconteceria se arrancassem
fora do horário de trabalho, alguns dias por semana, é nor-
muitas páginas do Código Penal? Possivelmente não aconte-l'
malmente gratuito e não degradante. Deve-se evitar que o
cena absolutamente nada! De fato, nas prisões, geralmente;.;
;eu cumprimento seja estigmatizante. E, preferivelmente,
somente há reclusos por homicídio, lesões, alguns roubos;
deve ser gerador de consciência cívica, solidária e partici-
casos relativos a drogas, algumas violações denunciada,
pativa
pouquíssimos furtos e ainda menos estafas.
Assistência de palestras ou conferências de educação
Na América Latina, deveria se revestir uma significação
cívica;
especial, pelo seu conteúdo antropológico, reconhecer as re-
A prisão de fim de semana;
alidades múltiplas, ressaltar os matizes do tecido social, as- •
sim como, deveria se estimular o paralelismo do que se tem: O sistema de dias-multa;
chamado de "o outro Direito", isto é, o verdadeiro Direito. . A multa para reparar o dano ou o compromisso de
Penal, o Direito em ação, aquele pelo qual, na realidade, os - - .entregar parte do salário por um tempo, para indenizar a
conflitos se dirimem privadamente, o que explica a enorme vítima;
extensão da cifra negra.13 Não há dúvida de que, apesár 6;, A privação de direitos (inabilitação ou interdição);
críticas, esses modelos produzem mais paz social; que aiL - mesmo que em algumas legislações esta se considere aces-
comunidades indígenas e rurais se vêm identificadas cont - sória, em outras é medida à alternativa principal (Brasil).
esses processos; e que às vezes, as soluções têm um conteúdá:
mais humanístico e menos violento que a justiça formal, . Entre elas temos a privação de pátrio poder, do exerci-
que geralmente se baseiam em indenizações, reparações dii-: ,cio profissional ou emprego, de licença para conduzir, de
trabalho comunitário. Ydireitos políticos (votar ou ser eleito). Existem também:
O confinamento a um território limitado ou à residên-
- da, também chamado de prisão domiciliar; existe também o
piegime semiaberto (Bolívia) ou em uma colônia agrícola, tudo
13 Ver Gitlitz, John, "Justicia Rondera e DD. HH. Cajamarca", comuni-
cação apresentada no Encontro de Antropologia e Direito. Rotas de
,o que, na realidade, constitui um regime de semiliberdade;
encontro e reflexão, lima-lquitos, fevereiro de 2001. Pesquisas feitas' " • A condenação condicional ou suspensão da pena
na Venezuela sobre a forma como os conflitos nos bairros de grandes,
,
• qu ao processo (utilizada geralmente em casos de infratores
zonas urbanas se resolvem internamente, ou as formas desse outro:
,primários, de jovens adultos, de doenças graves, de idade
Direito que existe em favelas do Brasil, demonstram que essa é uma -
realidade presente não só em comunidades indígenas ou rurais. Existe. - -,,vançada). Esta medida é muito significativa se se aplica
uma coexistência legal de diferentes maneiras de administrar a Justiça. Obrigatoriamente aos casos de mulheres chefes de família,

247
246
r- papel sexual-social condenasse as mulheres a serem
grávidas, lactantes ou mães de menores de três anos. No
malmente se concebe como liberdade condicional e às ve- carne de prisão. Algumas delas requerem o cumpri-
u, mento de parte da condenação;
zes como submissão ao regime de prova ou probation, o
14; • As Medidas Terapêuticas (que os Códigos denomina-
parole (tratamento em liberdade sob palavra de honra)
A designação ao regime aberto, seja como núcleo da - ram tradicionalmente, e com histórico questionável,
própria condenação, seja como etapa de um sistema pro•-,... porque são praticamente penas, isto é, "medidas de
segurança") são as que provêm de tratamento médi-
gressivo ou pré-libertação. co, psicológico ou psiquiátrico, que às vezes são ca-
Geralmente, a aplicação dessas medidas é limitada por•...,•
sos de internação e outras, em regime aberto. As de
determinadas condições: internação hospitalar podem ser tão terríveis quanto
Pouca gravidade do delito cometido ou uma pena . o envio para a prisão. Deveriam ser rigorosamente
não muito elevada; controladas pelo Poder Judiciário, quanto à duração
Réu primário; do tratamento, e reavaliadas periodicamente, para
Características da personalidade do condenado que que não se convertam em formas substitutivas da
permitam supor que ele pode viver em liberdade ou prisão perpétua. Logicamente, ao considerarmos a
inimputabilidade, nunca deverão ser aplicadas con-
não retornar ao mundo do crime;
junta ou sucessivamente com a prisão;
Cumprimento de algumas obrigações derivadas da •
decisão, que podem ser obrigações atribuídas ast:;' - Em alguns países (Cuba) se aplica o "tratamento cor-
condenado como, pagamento de fiança, proibi- recional em liberdade", que é uma medida de traba-
ção de ir ou residir em determinados lugares, ou lho obrigatório, sem promoções nem aumentos sala-
se aproximar da vítima; ou indenização, reparação:, - riais, e impedimento de realizar funções diretivas ou
exercício de trabalho lícito, proibição de ingerir bei: - docentes. A classificação destas medidas é arbitrária,
bidas alcoólicas etc. Geralmente, essas medidas se, •t e muitas das que puderam ser consideradas acessó-
utilizam como substitutivas às penas curtas.'s Ouf., t!! •
rias, ou posteriores a um período de privação de li-
tias vezes são complemento de outras medidas, e`: berdade, podem também ser decididas como sanção
são denominadas "complementares". Algumas des:-sp: principal. O ideal seria que o juiz tenha a possibili-
sas medidas se utilizam em certos países somerite dade de decidi-las, de acordo com parâmetros legal-
(ir. mente definidos, e dentro de um amplo espectro de
para "mulheres honestas", como se o abandono
, alternativas, sejam principais, sejam acessórias;
14
Ver Carranza, Elias; Houed, Mario; Liverpool, Nicholas; Mora, Luis •.''
Sistemas penitenciarios y alternativas; O perdão judicial, elemento de antiga tradição ita-
e Rodriguez Manzanera, Luis,
y el Caribe, Publicaciones dei llanud, liana, e muito importante para excluir da prisão
a la prisi6n en América Latina
Buenos Aires, DePaillla, 1992. -o-st, pessoas — levando em consideração a motivação
A tese tradicional é que as penas curtas não são eficazes, separam de seus atos — que de outra maneira estariam sub-
15
condenados do trabalho e da familia, não dão tempo para a ressocia-
metidas ao processo de despojo de identidade, de
lização... Como se as longas fossem mais eficazes!

249
248
encarceramento e de etiquetamento, que é próprio , „ preventiva tem caráter penal, já que em muitos casos a
da prisão, pode aproximar as decisões judiciais au ,3- legislação penal a leva em conta para os fins do cumprimento
antigo princípio romano da equidade. Também , da pena. A diferença é que nestes dois últimos casos, se
pode ser uma medida que, sem descriminalizar: ; decide uma pena — e às vezes uma parte do encarceramento
atos cuja derrogatória seria socialmente polêmica, 17- é cumprida —, mas se suspende ou se substitui. Isto é, são
permitiria, não obstante, não utilizar a reclusão na' , ',Medidas" alternativas, mas formalmente não aparecem como
prisão, como é o caso do aborto da mulher violada..."• urna pena, decidida como tal diretamente pelo juiz da causa.
Entendemos que na Costa Rica, por exemplo, essair.: ,. A remissão da pena por trabalho ou estudo, assim como .
situação foi incluída no Projeto de Reforma do Cól. , o regime aberto, como parte de um sistema progressivo de li-
digo Penal, como possível razão para decidir o bértação, estes sim, são de caráter tipicamente penitenciário.
dão Judicial".Não sabemos o resultado dessa ação. • Há certa confusão em muitos textos legislativos sobre o
A Justiça da Paz, quando funciona, no marco de1. assunto. O que é penal ou processual ou penitenciário, ou se
garantias, por exemplo, é um caminho interessante-,- . devem estar em Leis Especiais", nem sempre depende de seu
que deve ser aperfeiçoado e impulsionado. conteúdo, mas simplesmente do instrumento onde apareçam:
na verdade, isso se deve porque às vezes uns códigos são
Medidas processuais, penais ou penitenciárias?
reformados antes que outros, ou criam-se leis paliativas antes
Em algumas legislações, muitas dessas medidas são de _- de reformar o Código substantivo. O avanço do pensamen-
caráter processual (na Venezuela, as processuais chamam-se to criminológico foi se plasmando da maneira mais expedita
medidas cautelares), ou mesmo penitenciário, e são decididas ' -possível, enquanto os Códigos Penais conservam sua tradição,
pelo juiz de execução da sentença". Não obstante, a detenção , e, geralmente permanecem vetustos e secundários. Assim, o
_ que deveria estar no Código Penal (que, para maior segurança
16 Ver Projeto de Reforma do Código Penal da Costa Rica.
" Na Venezuela há fórmulas alternativas para o cumprimento da conde.' jurídica, estaria submetido ao princípio da legalidade), Código
nação, para todas as pessoas que, tendo cumprido comas requisitos es:...r -que, insistimos, deve imperar sobre tudo o que tem a ver com
tabelecidos no Código Orgânico Processual Penal da Venezuela e tendo:.,. a qualidade, extensão e modalidades da pena, se encontra em
uma sentença definitivamente firme, e de acordo ao que estabelecem h:
leis especiais ou nas leis de procedimento.
o COPP e o Código Penal, tenham cumprido com um quarto de sua,::
pena, para o Trabalho Fora do Estabelecimento; com um terço, para o'.;
Medidas alternativas, para que? Sua aplicação na prática
Regime Aberto; com dois terços, para a Liberdade Condicional; e
três quartos, para o Confinamento. Ainda assim, toda pessoa condenada Um excelente estudo avaliativo19 dessas medidas no
a uma pena inferior a cinco anos, que não seja reincidente e não tenha —Brasil mostrou que as decisões referentes a elas haviam au-
incorrido nos delitos de: violação, furto agravado, furto qualificado, rou-
mentado em 5% dos casos, o que, segundo as cifras, se con-
bo agravado e sequestro, pode ser encaminhada para um regime de li=
berdade vigiada. Na Argentina, a lei de execução penal permite tambéMT. A Lei de Submissão a Juízo e Suspensão do Processo e da Pena, por
alguma moderação da prisão. Outra medida de caráter penitenciário na.";;;}. exemplo, está na Venezuela, em uma Lei Especial.
Venezuela é a Desobrigação da Pena por trabalho e estudo, segundo a' Ver Lengruber, Juba. Trabalho apresentado no Seminário sobre Reforma
qual, deve-se descontar um dia de pena a toda pessoa privada de sua:: . ç Penal e Medidas Alternativas à Prisão, organizado por Penal Reform
liberdade por cada dois dias de estudo ou trabalho dentro da prisão. International em San José, 2002. Não obstante, o estudo mencionado

251
250
não deve ser considerada, mas sim substituída por outras
siderava um progresso significativo. Lamentavelmente, essa
medidas não reclusivas.
cifra demonstra, na realidade, a escassa aplicação que essaS
medidas têm, seja pelo temor dos juízes em serem consi- As alternativas ("acata-se, mas não se cumpre") devem
derados "tolerantes", seja pela intensidade da pressão so- ser o norte de toda reforma penal, e devem ser prioritárias
cial sobre o aparato penal. Outra explicação poderia estar para os jovens, as mulheres grávidas ou com filhos menores
na falta de infraestrutura material para realizar as medidas de três anos. Em especial, fala-se de justiça restaurativa para
alternativas. Na Venezuela, apesar da grande variedade de r
eles. Em todo caso, toda estratégia de resolução alternativa
-
alternativas previstas, a prisão não foi abandonada, e a su• de conflitos deve ser voluntária e ater-se às normas prote-
perpopulação nas cadeias é endêmica. toras de Direitos Humanos. A Justiça Penal não deixará de
É comum que as legislações prevejam possibilidades de - , respeitar os Princípios Gerais que regem a matéria, tais como
devido processo".
grande modernidade, mas que não existam os estabelecimen-
tos, os recursos, ou o pessoal de apoio necessário para colo- O que não parece seguro é o argumento de que essas
cá-las em prática. Ou que o encarceramento se multiplique. medidas reduzem a população carcerária. Há uma rotina de
encher prisões, de aproveitar ao máximo os muros. Quanto
Toda reforma penal deve trazer consigo a processual e
mais casos são submetidos a medidas alternativas, mais pre-
a administrativa, com o fim de prover os recursos humanos",
sos se fabricam. Assim como também não é certo que a cria-
as alternativas de emprego, os locais para o trabalho comu- •
ção de novas prisões, com o pretexto de atenuar a superlo-
nitário, e outras diversas instâncias e decisões que a Admi--
tação das existentes, reduza essa população: na verdade, há
nistração de Justiça possa assumir. Não é eficaz aprovay
estudos que demonstram que as novas prisões só aumentam
gislativamente medidas que não contemplem a obrigação dq. •
número de encarcerados. Parece existir uma defasagem
Estado em aplicá-las na prática. Uma reforma penal deve ser - .
nas taxas de encarceramento, que depende de alguns fatores
proativa para evitar que a carência de infraestrutura esvazie. •
como a quantidade e tamanho das prisões de um país, e a
essas medidas ou estimule o juiz a não decidi-Ias.
capacidade operativa da força pública e do Poder Judicial.
Por exemplo, a medida de exercer um emprego lícità • Está demonstrado que o número de encarcerados é aproxi-
deve levar em consideração as dificuldades de inserção de inadamente sempre o mesmo e sempre excedente.
um condenado no mercado de trabalho, portanto, o Estadd
. O mais importante das medidas alternativas é que elas
deveria ter instituições que facilitem essa inserção.
levitam o sofrimento inútil, tornam o sistema penal mais hu-
Do mesmo modo, a composição social desigual de' mano, interativo e societário, e que são, sem dúvida, poten-
nossos países deve ser considerada, isto é, a pena de multa,, cialmente mais eficientes para a realização dos fins procla-
deve levar em conta as condições econômicas do acusadp; mados da pena.
de outra maneira, seria classista que os pobres fossem pre'l-
sos e os ricos não. Sendo assim, sua conversão em prisáS; ' Uma demanda das Conclusões e Recomendações do I Congresso In-
ternacional sobre Reforma Penal de 1999. Ver "Propuestas para una
-' agenda global sobre reforma penal" publicadas por Penal Reform In-
de Carranza e outros, citado anteriormente, aponta que a condenaçãè', ternational.
condicional na Argentina, México e Chile alcançava cifras importantes.,4 •

253
252
Mas tem-se que assegurar a possibilidade reaF de q tjé CAP1TULO XII
se apliquem os chamados benefícios (que são direitos, n'h
verdade) processuais, ou as medidas alternativas às penaS
privativas de liberdade legalmente previstas. Para isso, é ne'4' A ANT1TESE
cessário construir não só no sistema de Justiça Penal (juizes
SEGUNDA RUPTURA
da causa e funcionários de execução penitenciária), mas rí'à
comunidade em general, uma cultura das alternativas e A CRIMINOLOGIA DO CONTROLE SOCIAL (I)
seus benefícios.
O tempo e as circunStâncias históricas vão iluminarik Introdução. Antecedentes históricos, sociais, ideológicos e cul-
do os caminhos. Às vezes parece que estamos frente a um turais dos Movimentos Radicais (os anos 1960 e 1970). Union
abismo infranqueável. Mas nada é assim. A resistência aca; of Radical Criminology,Estados Unidos e National Deviancy
dêmica e de grupos organizados como os chamados Krirrii Conference, Inglaterra. O marco cultural. A Criminologia cha-
(Finlândia, Dinamarca), Krom (Noruega), Krum (Suécia) dc mada Radical. Reflexo institucional da criminologia radical.
países escandinavos ou nórdicos, podem construir pontes s6
bre esse abismo.
É necessária uma sociedade mais tolerante, uma cida- Introdução
dania mais ativa sob os estandartes dos Direitos Humanos-. O interesse dos criminólogos, como vimos, foi passando
uma atitude pedagógica coletiva que abra os braços para a:, .clO delito (Criminologia Clássica) para o infrator (Criminologia
civilização, como foi ocorrendo através dos tempos. itivista) e, posteriormente, para a Reação Social (Crimino-
O sangue das prisões, de alguma forma tem que purifi4 logiã Interacionista). Os criminólogos, agora com um novo
car nossas consciências. :objeto de pesquisa, vão se ocupar do Controle Social.
)); A expressão "controle social", por si mesma, gera de-
como veremos em outro capítulo. Claro que esses são
-K7
posteriores às primeiras tentativas de focalizar o controle,
Atm surgiram na década de 1970, na Escola de Criminologia
Oa'Universidade de Berkeley, Califórnia, e que até a data em
qUe este manual foi escrito permanecem, parcialmente, com
diferentes matizes e afirmações.

i:: Antecedentes históricos, sociais, ideológicos e cultu-


rais dos Movimentos Radicais (os anos 1960 e 1970)
,;'''Quando surgem os "Movimentos Radicais", o ambiente
cultural e político dos Estados Unidos viviam as seguintes
circunstâncias históricas:

254
Crítica universitária e social à política externa norte- contestações dessa época se dão nos verdadeiros museus
-americana: representada pela reação cidadã contra a da seletividade e da marginalização: as prisões. Isso se
Guerra do Vietnã, que devolvia a sua pátria soldados produz em virtude da aprendizagem política de minorias
condecorados, mutilados ou somente cartas de condo- rebeldes encarceradas, como alguns líderes dos Panteras
lência aos pais pela heroica morte de seus filhos em uni Negras ou o movimento negro norte-americano, do qual
distante país do sudeste asiático. As razões nem sempre eram líderes Angela Davis e os Irmãos Jackson, também
foram compreendidas, pois não significava nada para chamados Irmãos Soledad. Foi aí que surgiu a consigna
eles além de uma luta por princípios que nada tinham a "black is beautiful", e a moda feminina, branca inclusive,
ver com suas vidas cotidianas; de imitar o penteado denominado "afro";
7\ As rebeliões em Liceus e Universidades;
c3O golpe militar chileno contra o governo de Salvador
e8 .)A influência de outros movimentos radicais, como a
Allende, no qual se assumia a participação dos Estados
nti psiquiatria;
Unidos;
0) E, o muito significativo, nascimento das contraculturas.
@DO Projeto Camelot, com o objetivo de conhecer a
cultura dos países latino-americanos, para lhes impor a O marco cultural
norte-americana;
Trata-se, então, de dar destaque aos submissos, aos es-
O reconhecimento da maior lesividade que, frente aos quecidos, aos excluídos, às vítimas da violência institucio-
delitos convencionais, têm os crimes de colarinho bran- nal. Isto se manifesta na literatura e na arte, tanto quanto
co. Aparecem nessa época os estudos sobre a delinquên- na vida. E consequentemente, as sociedades em que esses
cia das transnacionais, o caso político Watergate, e o da manifestantes vivem são rejeitadas.
Thalidomida (substância que produzia graves danos na
Sobre isso nos deteremos um pouco mais, pela sua im-
formação do feto, e que continuou sendo vendida muitos
portância na composição do contexto cultural da época (anos
anos depois de ter sido denunciada por especialistas);
1970 e 1980). Surge nesse período a contracultura hippie;
CS). As contestações dos anos 1960 e a violência despro- entram na moda os vestidos "étnicos", de origem indígena,
porcional da reação policial; latino-americana ou africana; os jovens tentam viver em co-
C6) As rebeliões de natureza política que se produziram nas munidades de identidade contracultural, onde se exaltava o
prisões (St. Quentin, Les Tombs, Folsom, Soledad, Attica), amor e não a guerra. Uma das primeiras drogas consumidas
muitas das quais foram incendiadas pelos reclusos. Tam- pelos hippies, como forma de escape, foi a maconha (cujo
bém a prisão de Rebibbia, em Roma, foi alvo de revoltas consumo logo se generalizou na sociedade), e em seguida,
e de incêndio. Salierno e Ricci publicaram, no início da aparece o LSD, que diziam produzir alucinações, "viagens"
década de 1960, seu livro sobre Ii Carcere in Inver-
nizzi, um sobre La cárcel como escuela de revolución; e Em um laboratório europeu buscava-se no ácido lisérgico (15D) uma
e logo La medicação contra a enxaqueca. O experimento era feito em humanos,
Basaglia, os seus sobre La institución negada,
mas resultou que não era útil para essa doença, mas, por outro lado,
mayoría desviada. Como se pode ver, as mais profundas produzia transmutações importantes na realidade.

257
256
e visões multicolores (daí vem o conceito de "psicodélico"). "as palavras e o sentido da escritura eram obscenos" e que "o senhor não
No cenário musical, na Inglaterra, se produz a vertiginosa e iria querer que seus filhos cruzassem com isto". Em 21 de maio de 1957,
envolvente popularidade dos Beatles, que viajam para a ín- poeta Lawrence Ferlinghetti foi preso sob as acusações de "consciente-
mente publicar e vender material indecente". Em 2 de outubro do mesmo
dia, começam a utilizar instrumentos orientais e a inovar nos
ano, a proibição do livro foi retirada, Ferlinghetti declarado inocente, e
temas e na composição musical. O mundo inteiro canta com Ginsberg reconhecido como o melhor poeta norte-americano do século
os Beatles. Em suas canções pregavam o amor ("Ali you need XX. A defesa arguiu que se as cenas do poema se passassem em lugares
is love"), e era sugerido o interesse pela droga da época, o de classes sociais elevadas, e não em garagens ou pátios abandonados, ou
LSD, como se pode comprovar nas iniciais da música "Lucy em postos de gasolina, ou em "apartamentos de água fria", não se consi-
derariam obscenas. Ou seja, que a obscenidade também tinha a ver com
in the Sky with Diamonds". Também se referiam às questões
a classe social. Muitos dos poetas mencionados nos parágrafos de "Uivo"
dos trabalhadores e ao consumo desenfreado do sistema, te- morreram jovens, ou passaram períodos em hospitais psiquiátricos. Esse
mas presentes no filme de animação O submarino amarelo. poema diz coisas como, por exemplo: "Eu vi os expoentes da minha
Era a passagem do oculto para o evidente. geração destruídos pela loucura / morrendo de fome, histéricos, nus,/
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma
Nos Estados Unidos surge a chamada geração beatnik, dose violenta de qualquer coisa,/ hipsters com cabeça de anjo ansiando
cuja obra literária fundacional foi talvez o longo e extraordi- pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da
nário poema Howl ("Uivo"), de Allen Ginsberg2. Por conta noite, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sen-
tados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água
2
Mencionamos este poema, intenso, provocativo, duro e direto em sua quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz,/ que
descarnada percepção da época nos Estados Unidos entre 1957 e 1975, desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometa-
por considerá-lo relevante para entender o marco cultural da Criminolo- nos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos, / que
gia Radical, uma espécie de Bíblia do mundo marginalizado norte-ime- passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkan-
ricano — mundo que este poema proclama literariamente, legitimando sas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra,/ que foram
assim sua marginalidade —; representa também o início das "contracul- expulsos das universidades por serem loucos e publicarem odes obscenas
turas" no Ocidente, mesmo que logo em seguida fossem em busca de nas janelas do crânio,/ que se refugiaram em quartos de paredes de pintu-
receitas culturais, eróticas, religiosas, em um Oriente que havia sido ra descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestos de
ignorado ou escondido até então (Tanger, Nepal, índia, por exemplo). , papel, escutando o Terror através da parede,/ que foram detidos em suas
É uma espécie de testamento da chamada "geração beat", que viola exi . barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de mariktana para
pressamente os mais fortes tabus dominantes da época: a droga, o sexo, Nova York,/ que comeram fogo em hotéis mal pintados ou beberam tere-
alcoolismo, a loucura, a homossexualidade, o "feísmo" literário, ou bintina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram seus torsos noite após
utilização das consideradas "palavras más" ou "palavras sujas". Dessa noite /C..) que reapareceram na Costa Oeste investigando o FBI de barba e
época, são representativos os Beatles na Europa, com suas proclama- bermudas com grandes olhos pacifistas e sensuais em suas peles morenas,
ções musicais, seus instrumentos orientais e suas notas discordantes, distribuindo folhetos ininteligíveis, que apagaram cigarros acesos em seus
contra a guerra e a favor do amor, o L5D, a cultura da rejeição e do braços protestando contra o nevoeiro narcótico de tabaco do Capitalismo,
escapismo do sistema dominante (o retraimento do qual falava Merton), /que distribuíram panfletos supercomunistas em Union Square, chorando
e os denominados hippies, suas comunidades, o sexo compartilhado, e e despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os afugentavam gemen-
mais posteriormente a ampliação do vegetarianismo ou cultura verde. do mais alto que eles e gemiam pela Wall Street e também gemia a balsa
"Uivo" teve uma primeira edição de quinhentos exemplares, e sua distri- de Staten Island/ que caíram em prantos em brancos ginásios desportivos,
buiçãoe venda não apresentaram nenhum problema; foi a segunda edi- nus e trêmulos diante da maquinaria de outros esqueletos,/ que morderam
ção de três mil exemplares, em maio de 1957, que foi retirada das livrarias policiais no pescoço e berraram de prazer nos carros de presos por não
após ser declarada obscena pelo fiscal Chester McPhee, quem disse que - terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica,/

259
258
desse poema, Ginsberg enfrentou um processo por suposta' meios institucionalizados para obtê-las". Nas formas de adap-
obscenidade, ao apresentar um submundo oculto, miséria, e tação a essa tensão, que denominou anômica, como vimos,
álcool e drogas, "cebolas e música ruim"... "apartamentos. assegurou que seu produto não foi simplesmente negação e
com água fria", diz, as exclusões, os terminais de ônibus •• fuga, mas também era uma busca por alternativas políticas.
Greyhound, que existiam no país do Norte, o mundo subter-
râneo e infernal, no qual viveu todas as derrotas e degrada- Á Criminologia chamada Radical
ções possíveis, sustentado por um amor aliado à diversidade* A Criminologia Radical pertence à concepção engelsia-
sexual3 . De alguma maneira, era uma apologia da infração na de Estado, e, portanto, está incluída nas Teorias do Estado
de leis que eles deslegitimavam. Produto do Conflito.
Igualmente fundacional foi a novela On the Road, de - Os principais expoentes da URC (Union of Radical Cri-
Jack Kerouack, a quem Ginsberg dedica seu poema, e quem . minology) nos Estados Unidos foram Tony Platt, Paul Takagi,
descreve esse submundo, em uma travessia simbólica, sem ' -~uinney, e o casal Hermann e Julia Schwendinger.
rumo definido, por todo o território do país, somente por Existem muitos outros, sobretudo na Alemanha, Itália e In-
percorrer e experimentar sem descanso. Era a apologia da glaterra. Neste último país, o autor mais conhecido no nosso
não estabilidade, do descobrimento permanente, do não Meio é talvez Stanley Cohen.
convencional. O método dessa Criminologia é histórico, e está vincu-
Não se tratou somente de dar luz ao que estava escon- lado ao pensamento marxista.
dido (a essência por detrás da aparência), mas também que a Desde o ponto de vista epistemológico:
fenomenologia abriu janelas para uma sociedade que deseja-
Utiliza a categoria de totalidade, não parcela a realidade,
vam fosse distinta, e que consideravam possível. São anos de
- e-busca a essência atrás da ap_artocia;
convulsão e transformação cultural em países importantes,
que obviamente, se refletiam no âmbito político e no pensa- cblpõe ênfase na Teoria do Conheci-
mento criminológico. mento, enquanto que a Escola Positi-
De alguma maneira, nota-se um mundo menos materiali- va se fundamenta em uma Teoria da
zado, menos pragmático, e mais alternativo, localizado talvez Ciência;
em uma das formas descritas por Merton em sua Teoria da r\c)yõe ênfase na prática do aprendi-
Anomia, como tensão entre "metas culturalmente propostas e a praxis deveria ser o instrumento
que uivaram de joelhos no metrô e foram arrancados do telhado sacudin- que devolve esse conhecimento à re-
do genitais e manuscritos ...". GINSBERG, Allen. Uivo: Kaddish e outros alidade, com o fim de transformá-la;
poemas, Editora L&PM, L&PM Pocket, tradução de Claudio Willer, 2000. este princípio, por sua vez:
O pai da geração beatnick é William Carlos Williams. rd) Cera um compromisso social e po-
3 Sobre o processo mencionado, é absolvido, pois o juiz considerou
Tony Platt
que a liberdade de expressão não podia ser questionada em um pais ‘111-i-Co.
Inglaterra — EE. UU.
de liberdades. Não obstante, nos anos 1970, a Escola de Berkeley é
fechada e seus professores mais representativos, dispersados.

261
260

1.1
Crirnipologia RadicaLentão,.é uma teo_r_i_a_neu~, ta da falta de um conhecimento mais
pois busca a "Jtalidatle possível", o "dever ser" da realidade. profundo e consolidado do marxismo.
E considera os aparatos do sistema penal como uma força Muito significativa, nesse mo-
mento, foi a publicação, na Inglater-
ra do livro The New Crirninology, de
Taylor, Walton e Young, considerado
uma Teoria de Alcance Médio, a qual
resumiremos em um capítulo mais
adiante, pois, ao estudar as bases his-
S!anley Cohen, Inglaterra tóricas de cada Criminologia, e seus
ti aportes, esses autores se interessam
em recuperar o que é aproveitável de cada uma, com o fim
de elaborar uma Teoria Criminológica "fully social" (total-
asrac.jal). Este livro foi a mais séria e extensa crítica que
até então se havia feito do papel político-ideológico, tanto
das teorias criminológicas como do criminólogo.
Sentados: htermann e iulia Schwendinger
Esses autores publicaram também Criminologia crítica,4
militar interior ao serviço da classe dominante. onde recolhem, com seus pares, os trabalhos de Platt, Quin-
São as seguintes, as consequências dessa teoria neoinar- ney, Schwendinger, Chambliss e Pearsons, reunindo assim,
xista, que constituem o núcleo de sua concepção do Sistema em um mesmo volume, os radicais mais destacados de lín-
de Justiça penal: gua inglesa da época.
A Lei é um ato político; o delinquente um delinquen- Lembramos que essa também é a época das guerrilhas
te político; e todo preso s_eria um preso olítico. latino-americanas. Ser marxista e revolucionário estava na
Esses movimentos podem ser considerados como uma moda. E era obrigatório que todo intelectual o fosse, como
verdadeira Ciência Política do delito. Uma vanguarda das lutas por uma nova sociedade. Ho Chi
Após o fechamento da Escola de Berkeley, em 1973, Minh e "Che" Guevara se converteram em heróis cantados
que ocorreu porque o local se converteu no centro de um e poetizados também em nossos países. Na América Latina
movimento de agitação política em que professores saíam se iniciou o Grupo Latino Americano de Criminologia Com-
das salas de aula, junto com estudantes, para manifestar nas parada, que posteriormente deu à luz ao Grupo Latino Ame-
ruas seguindo lideranças negras, algumas representadas por ricano de Criminologia Crítica, com seus matizes próprios,
aos quais dedicaremos um capítulo especial.
Black Power e as Panteras Negras; ou junto às mulheres; ou
às trabalhadoras do sexo. Com a dispersão dos professores,
alguns reconhecem que tal movimento durou pouco por con-
' Século XXI, 1977.

263
262
Reflexo institucional da criminologia radical O/- Enfoca-se na organização classista da Justiça e da Ad-
ministração da Justiça em geral;
Surgem novos movimentos acadêmicos, corti6»i
. OÉ gerada pressão para redefinir os direitos humanos de
Union of Radical Criminology (URC), na Universidades
Scheley,_Cainmia, Estados Unidos; o Grupo Europeu. iSáth 'd'aráter mais social.
o Estudo do Delito e do Controle Social, e a National6è Em definitivo, a crítica à justiça se politiza.
viancy Conference (NDO, na Europa. Na França, pérás
mãos de Foucault, nasce em 1971 o Grupo de InformaM
sobre a prisão (GIP). As investigações realizadas, como dij
Foucault, não estavam destinadas a melhorar ou a deiXt-
mais suportável um poder repressivo, pelo contrário, e0.:
vam destinadas a atacá-lo, eram atos políticos; aponta»
a alvos precisos, a instituições que tinham lugar e nonk
a responsáveis, a dirigentes. Tinham como objetivo derá'3k
bar as barreiras do poder, convocando detentos, advogad&
magistrados, médicos, doentes, funcionários de hospital,
constituir uma frente para o fim da opressão e o priméCro
alvo desse ataque tinha que ser a prisão. A primeira media
era dar voz aos detentos. Para Foucault, tratava-se de lUtáf7,2,

Q A politização nas prisões e a insurgência dos rec.lu4t.


nos anos 1960 e 1970 produziram movimentos externo
• 4[1
sociativos, de apoio aos internos;
C_•DA partir desse momento, "os presos políticos" ficaram
em seções diferentes das prisões;


.; Pela primeira vez a lei se encontra em um context8
G
socioeconômico concreto, indicando seu caráter clasSiSta,t
, yzee•
sua função estrutural;
r•• Os temas do poder e seus interesses são coloca-
em evidência. Sob essas circunstâncias as instituições penais
serão lidas.;
re. Do mesmo modo, se desperta um novo interesse.'em
que a Criminologia estude crimes não codificados, corn9W:N•
sexismo, o militarismo, o etnocídio, os crimes de colaririli& •:?;
branco, a corrupção e os delitos internacionais;

265
264
CAPíTULO XIII

A CHAMADA ANTIPSIQUIATRIAT

Introdução. Ronald Laing: os nós da comunicação. David


Cooper: Antipsiquiatria e Política. Thomas Szasz: o mito da
doença mental. A doença mental como conduta desviada.
: Thomas Scheff: o desvio residual. Franco Basaglia: o mani-
cômio e a prisão como formas de violência institucional. A
exclusão social da loucura: Michel Foucault, um não crimi-
nólogo, mas interacionista e crítico, provindo da Filosofia e
da Historia. Funcionalidade política da loucura.

Este capítulo segue quase textualmente o que foi publicado em Aniyar


de Castro, Lola, Criminología dela Reacción Social, op. cit., pp. 154-
184. Somente incorporamos algumas novas referências. A imagem
representa o mecanismo .de extração da "pedra da loucura" segundo
uma gravura do livro Feldbuch der Wtindarztnei, do cirurgião alemão
Ç Johann von Gersdorff, publicado em 1517, em Estrasburgo.
colocados sob a etiqueta dos antipsiquiatras rejeitem esse
Introdução termo que divide a Psiquiatria em duas vertentes (uma de ve-
Incluímos neste Manual os movimentos que aparece- lha estirpe, e outra, mais moderna, e de diferentes matizes,
ram no terreno da Psiquiatria, pois tanto esta disciplina como que revisa os velhos postulados), tal termo busca analisar a
a Criminolo 'a seguiram caminhos similares, surgiram em' psiquiatria e seu papel de controle social, estudar critica-
períodos similares, trabalham com as categorias de norma- mente as nosologias tradicionais, inserir a doença mental em
lidade e anormalidade, e foram influenciadas pelas mesmas um contexto histórico-social e econômico determinado — às
metodologias e circunstâncias históricas. te• vezes utilizando os postulados da escola interacionista — e
As duas disciplinas têm a mesma definição das cate- estabelecer uma perspectiva mais humana tanto do rapport
gorias com as quais trabalham; nelas existem atitudes que médico-paciente como do tratamento em ambas disciplinas.
andaram err; paralelo, tais como a ideolo_gia do tratamento. A antipsiquiatria estuda fundamentalmente aquelas do-
Compartilharam o conceito de conduta desviada, reconhe-
enças que não têm substrato biológico, que consistem em
ceram a estigmatização e seus pesquisadores e pesquisados atitudes do indivíduo julgadas sobre critérios éticos e cultu-
foram considerados parte de uma suposta "desorganização rais e que são vividas por ele com uma linguagem própria,
social". Como explicamos no capítulo anterior, houve "an- a única que "o solitário, o rejeitado, o pobre e o não instru-
ticriminologias" e "antipsiquiatrias", assim como crimino- ído podem recorrer, na esperança de obter o que não con-
logias e psiquiatrias positivistas, interacionistas, radicais e seguiram por outros caminhos, isto é, sua porção de amor
críticas. Pois houve uma psiquiatria biologicista, uma socio-' humano"5. Ou seja, parte do conceito de que também existe
lógica, outra filosófica e uma política. Esta última, como a uma historicidade da doença mental, portanto, seu diagnós-
Criminologia Radical, que chegou a denominar-se Anticrimi- tico depende, entre outras coisas, do ambiente sociocultural
nologia, é também uma disciplina do Controle Social. Am- ionde o indivíduo está inserido.
bas apresentavam o mesmo tipo de sujeito "a ser controla-
Efetivamente, demonstrou-se, com certeza, uma causa
do", e os mesmo lugares de reclusão (instituições de controle
-. Orgânica em alguns casos de disfunções mentais: a fenilce-
total). E a ambas lhes foi atribuída funcionalidade política.
tonúria (derivada de transtornos enzimáticos) que ataca as
3—
O termo antipsiquiatria2 é atribuído a David Cooper crianças; a Coreia de Huntington, que é hereditária e ataca
que o analisa em um dos capítulos de seu livro Gramática a'quem têm mais de quarenta anos; a encefalite; a sífilis; o
de Ia vida'. Mesmo que quase todos os autores que foram ,i(washiorkor (síndrome de carência de proteínas durante a
Também os movimentos radicais em criminologia foram denominados ..gravidez e a primeira infância, que produz retardo e desenho
2
em forma similar: anticriminologia, mesmo que o termo não tivesse eletroencefalográfico alterado); a epilepsia; o envelhecimen-
muita aceitação. - to cerebral (demência senil). As sustâncias tóxicas também
Londres, Tavistock,
3 Cooper, David, Psychiatry and anti-Psychiatry, Ciodem produzir essas disfunções mentais (por exemplo, o
Buenos Ai-
1967. Tradução castelhana: Psiquiatria y anti-Psiquiatria,
res, Paidás, 1978. Berlinger, Giovanni, Psiquiatria y Poder, Buenos Aires, Granica,
4 The grammar of living. An examination of politica 1972, pp. 21 e ss. Ver também: Fanti, Silvio, Le Fou est normal, Paris,
Cooper, David,
acts, Londres, Allen Lane, Penguin Books, 1974; tradução castelhana fr Flammarion, 1971, p. 215.
Barcelona, Anel, 1978.
La gramática de Ia vida,

269
268
álcool, a heroína, a cocaína e os resíduos químicos da sua' seu real, e o real e as experiências
elaboração, como o "paco"). Contudo, existem muitas mais dos demais. A interação mediante
desordens mentais cuja causa biológica não está demons- a qual cada um vive e interpreta ou
trada nem determinada, e em cuja definição influem mais acredita interpretar as vivências, ati-
fatores próprios da audiência social que do indivíduo. tudes ou intenções dos outros em re-
Para demonstrar que o diagnóstico das psicopatias de? lação a si mesmo, se converte em um
jogo em espiral completamente feno-
pende de condições histórico-sociais e culturais, cita-se ã
menológico e, em todo caso, relati-
Kirman, que observou que "se um só indivíduo afirmasse
vo, de total falta de comunicação. "É
ter ingerido a carne e o sangue de Deus, seria considerado.
que" — segundo Laing — "na medida
um doente mental; mas, como isso forma parte do ritual ca.2'
que nossa experiência do mundo dife-
tólico, em ocasiones aconteceu de ser considerado insano Roland taing
re, vivemos em mundos diferentes"8.
(e que corria o risco de morrer na fogueira) quem afirmasse
'0 Universo está cheio de homens que fazem os mesmos
contrário". Por outro lado, afirma-se que entre os negros
gestos nos mesmos lugares, mas que levam neles, e suscitam
esquizofrênicos norte-americanos predominam os delírios.
ém seu entorno, universos que estão mais distantes entre si
religiosos e as alucinações, entre os brancos, as ideias hi-
ititie as próprias constelações", diz Mounier°.
pocondríacas e entre os asiáticos, as formas catatônicas de
imobilidade absoluta. Esta afirmação indica, na verdade/ Alguns poemas de Laing'°, como o que se segue, ilus-
relações de expressões mentais reiteradas com específicas tram esse mecanismo:
formas culturais. João sofre / ao pensar / que Joana acredita que ele a faz
sofrer / porque (ele) sofre / ao pensar / que ela pensa que
"Os nós da comunicação" ele a está fazendo sofrer / ao fazê-la sentir-se culpada / de
Nem todos os antipsiquiatras pensam da mesma manei: Fazê-lo sofrer / porque (ela pensa) / que ele a faz sofrer /
ra. Mesmo que todos eles pareçam vinculados a uma mesma , porque (ele) sofreu / ao pensar / que ela pensa que ele a
corrente, existem aqueles que enfocam o problema, como, faz sofrer / o fato de que... [e assim ad infinitum].
Laing, a partir do ponto de vista filosófico', insistindo nas
São os nós da comunicação.
diferentes maneiras com que cada um vivencia seu corpo,

Kirman, Brian H., Science and Psychiatry, Londres, Lawrence e


Wishard, 1968, pp. 24-25.
7 Jean Paul Sartre dizia, a propósito do livro Razón y violencia escrito por
Ronald Laing e David Cooper, que o seduzia a constante preocupação
dos autores em chegar a um enfoque "existencial" dos doentes mentais.:
Ainda mais, Sartre agregava, "penso — como os senhores — que a doeg
ça mental é a salda que o organismo livre, em sua unidade total, inventa Laing, Roland, Psiquiatria y antipsiquiatria, Barcelona, Salvat, 1975, p. 41.
para poder viver uma situação não vivivel" (Laing, Roland e Cooper, Mounier, Emmanuel, Le personnalisme, Paris, PUF, 1949, p. 22.
David, "Prefacio", em Razón y violencia, Buenos Aires, Paidós, 1969). 10
Laing, Roland, Psiquiatria..., op. cit., p. 54.

271
270
Antipsiquiatria, Psicologia e Política não seria uma etiqueta objetivamente aplicada pelo psiquia-
tra como observador, mas sim a declaração do que sente a
Outros antipsiquiatras dão ênfase ao psicologismo mais que:
à psicopatologia, como David Cooper, ainda que entendess€ 'pessoa observada pelo outro, isto é, o psiquiatra será, na
Verdade, uma testemunha. O diagnóstico, pelo contrário,
que a antipsiquiatria também tinha uma finalidade política". '-
era uma forma de não testemunhou.
Para esse autor, devemos primeiro apresentar a estru'l 1
Outra forma de inverter as regras do jogo psiquiátrico
tura do jogo da Psiquiatria: a Psiquiatria tem uma tradiçãO;''.
Consiste, para a Antipsiquiatria, em rejeitar a ideia infantili-
científica que atravessa a experiência, o diagnóstico, o prog-
zadora e paternalista da instituição psiquiátrica e estabelecer
nóstico e o tratamento, se transforma em uma operação mi
cropolitica de etiquetamento e propõe uma cura. Essa cura;, dma relação de reciprocidade entre o paciente e o psiquia-
tra, isto é, um intercâmbio de papéis.
se alcança, diz Cooper, quando a ex-persona se converte
um obediente robô que perambula nas salas menos visiveig: Por último, a Antipsiquiatria para
da instituição psiquiátrica ou caminha sem nenhum sentido..., Cooper era política e subversiva com
humano em relação à sociedade exteriorn. relação à ordem social burguesa re-
pressiva, não só porque validava al-
A Antipsiquiatria, para Cooper, "tenta inverter as regra.
gumas formas de conduta que eram
do jogo psiquiátrico como um prelúdio para interromper esí::.
altamente não conformistas, mas tam-
ses jogos". Formula, por exemplo, um antidiagnóstico. Este,-
. bém porque supunha uma radical li-
" David Cooper escreveu La gramática de Ia vida logo após sua volta de,: beração sexual".
uma viagem a Buenos Aires em inícios da década de 1970. "Quando vi-
Além disso, denunciava que nas
sitei a América do Sul pela segunda vez — escreve Cooper —, levei vários;
meses em compreender que me encontrava no terceiro mundo e descoi instituições psiquiátricas os guardiões
David Cooper
brir o significado do lema 'Primeiro ou terceiro mundo'. Meu objetivo: - exerciam seu poder contra os reclu-
consistia em colaborar com a formação de comunidades antipsiquiátricas: sos mediante processos sociais de admissão (diagnóstico de
e de um centro internacional de ensino-aprendizagem no terceiro mundo,. ‘'istriculosidade) e sua posterior institucionalização. O poder
onde europeus e norte-americanos não iriam ensinar, mas aprender, ajtk.,I.
dando assim a atacar o imperialismo cultural. A Argentina é um terreno.»
. colonizador das mentes se exercia com drogas destinadas a
propício para este trabalho lento, em primeiro lugar porque sua tradi- • reduzir sua experiência e a produzir obediência, que podem
ção psicoanalítica (por exemplo, Pichon-Rivière, Emilio Rodrigué, Maria levar à intervenção do corpo (castração .química) ou da men-
Langer) alimenta a rebelião e os grupos dissidentes; em segundo lugar, te (eletrochoque ou psicocirurgia).
porque os laços de camaradagem são mais amplos e conduzem a uma
saída mais fácil da família nuclear do que no primeiro mundo; em ter- . Faz-se necessário ressaltar que Cooper, em uma des-
ceiro lugar, porque depois dos Estados Unidos, a Argentina é, quiçá, o . crição bastante interessante, também fez referência à saúde
país mais psiquiatrizado do mundo e muita psiquiatria dá lugar a muita Mental dos governantes. Este autor dizia que as atrocidades
antipsiquiatria; em quarto lugar, o cenário político fluido produz uma boa •
do imperialismo, do racismo, o sexismo, o ecocidio e o men-
e útil fluidez individual. Menciono estas questões porque grande parte cid'
conteúdo desta obra foi determinado por minhas experiências na Argentit,
lbidem, p. 72.
na" (Cooper, David, La gramática..., op. cit., p. 11). Ibidem, p. 74.
12 lbidem, p. 71.

273
272
ticídio eram as criações dementes das mentes oficialmente mente a ontologia da loucura, partin-
normais's. A guerra aberta ou encoberta de uma potência • do da afirmação de Ryle de que "um
contra uma nação do terceiro mundo era análoga à situação mito não é, logicamente, um conto de
de uma família na qual o único que não podia ser tolerado fadas. É a apresentação de atos que
era a afirmação da autonomia por parte de um de seus mem.. , pertencem a uma categoria em termos
bros, de modo que se chegaria à conclusão de que o direito, que pertencem a outra" 9. Assim, se-
à autonomia tinha que ser invalidado. Assim, por exemplo, gundo Szasz, pode-se dizer que criou-
a população do Vietnã tinha que ser destruída e eliminada -se o mito da dsiers_à_ rrr_r_
itaL±/ão
fisicamente, em uma necessidade de destruir o autônomo, existe a doença mental, diz. Ela exis-
iiiornas Szasz: "Se você
na medida em que isso encarnava a liberdade e a autodeter- fala com Deus, você está te na medida em nue existem outros
minação responsável, temida pelo perseguidor em sua par- rezando; se Deus fala conceitos teóricos. "Pouco a pouco,
com você, você é estes conceitos teóricos foram sendo
ticular gama de possibilidades. A mesma loucura caracterij esquizofrênico".
zava o Estado nazista, onde a elite dominante construiu um considerados atos"20. O conceito de
sistema segundo o qual se afirmava que a terra era côncava e. doença mental funciona_corm
que em suas profundezas moravam seres sobre-humanos qúe mito. As doenças do cérebro são orgânicas, mas as doenças
guiavam a elite nazista mediante estranhas influências cós- , Tente não são. Estas são ocasionadas pelos problemas
micas; qualquer "alteridade" que pudesse se afirmar devia': do viver. Uma doença do cérebro (como uma dos ossos ou
ser reprimida, isto é, que os judeus, os ciganos, os escravos da pele) produz um defeito neurológico: por exemplo, um
e os pacientes psiquiátricos seriam utilizados como material • defeito visual causado por problemas cerebrais. Mas uma
de treinamento pela 5516. Crença pessoal (o Cristianismo, o Comunismo, a ideia de
Cjue os órgãos estão podres ou de que o corpo está morto)
O mito da doença mental não se pode explicar como um defeito ou uma alteração do
Szasz analisa a doença mental como um fenômeno °ri: sistema nervoso.
ginado em razões e interações sociais. Seu livro17, El mito de' ' Outro erro epistemológico da Psiquiatria tradicional
Ia enfermedad mental' 8 , que fez muito sucesso, nega aberta- consistiria em interpretar as comunicações com nós mesmos
e o mundo circundante como sintomas do funcionamento
'5 Grifos nossos.
Cooper, David, La gramática..., op. cit., pp. 80-81.
neurológico. Assim, uma declaração de ser Napoleão ou
Szasz, Thomas, The myth of mental illness: Fondations of a Theory o!
— ao omitir as garantias devidas aos pacientes — outorgar aos psiquiatras
personal conduct, Nova York, Harper 8t ik-ow, 1961. Tradução italia-
um poder que é análogo às famosas cartas de cache( ou ordens reais de
na: limito della malattia mentale, Milan, II Saggiatore, 1966; tradução
prisão sem processo do antigo regime. Seria interessante, continua, que
castelhana: El mito de la entermedad mental, Buenos Aires, Amorror,
tu, 1973. Ver, também, Szasz, Thomas, Law, liberty and Psichiatry, juízes que negam aos pacientes psiquiátricos o direito de habeas corpus,
Nova York, Colher Books, 1972. o lessem (Zaffaroni, E. Rani, La palabra..., op. cit., p. 260).
18
Para Zaffaroni, esse livro merece uma atenta leitura por parte dos crimine,- Szasz, Thomas, Law, liberty..., op. cit., p. 11.
logos, pois destaca a estrutura inquisitorial a partir da perspectiva do con- Desta maneira, as bruxas deixaram de ser perigos teóricos para con-
trole social psiquiátrico. Não falta razão a Szasz, diz Zaffaroni, sobre a lei verterem-se em causas comprovadas de alguns eventos.

275
274
estar sendo perseguido por comunistas "será considerada mas éticas: o desejo de amor, a amabilidade e as relações
sintoma mental somente se o observador acreditar que o pa_ con jugais estáveis.
ciente não é Napoleão ou que não está sendo perseguido por Quando os psiquiatras falam de que s6 um doente men-
comunistas". "Afirmar que algo é um sintoma mental implid , tal é capaz de cometer homicídio, estão com isso, fazendo
em fazer um juízo". "A noção de sintoma mental está inexi- . referência a uma norma legal. Se falam de "excessiva repres-
plicavelmente ligada ao contexto social e ético no qual sel P.
. são, ou manifestação de impulsos inconscientes", referem-se
dá" 21 . Como se vê, é uma perspectiva interacionista. a uma norma psicológica.
"Viver é um processo árduo", diz Szsaz. Deriva de'. Quem define a norma e, portanto, o desvio?
tensões e estresses inerentes a relações interpessoais sociaisi -
Em primeiro lugar, o paciente (por exemplo, um artista
complexas. Mesmo que geralmente a doença mental tenha;
2 pode acreditar que sofre de inibição para o trabalho e pro-
sido considerada causa de uma desarmonia social ou Inter. I.
curar um médico). Depois, sucessivamente, os parentes, o
pessoal, na verdade é o contrário, isto é, ela é seu efeito.
médico, as autoridades legais e a sociedade em geral a defi-
Anos atrás, como vimos, tratou-se de vincular a doen- nem. Desta maneira, o psiquiatra acaba sendo não mais que
ça mental e a delinquência a razões sociais ao afirmar que: um agente do paciente, dos parentes, da escola, do serviço
elas se encontravam preferivelmente em certas áreas da cida-- kiilitar, do tribunal etc; agente que estará encarregado de
de — áreas chamadas de desorganização social —, nas quais mudar essa conduta.
abundavam, com preeminência em relação a outras zonas'
"As dificuldades nas relações humanas podem ser anali-
urbanas, uma serie de situações de doença psíquica, física • t,
sadas, interpretadas e carregadas de conteúdo somente den-
e social. Segundo o clássico trabalho mencionado de Sh-aw
tro de contextos sociais e éticos específicos". "Seria razoá-
e McKay22 , essa zona, em Chicago, estava localizada, eni
vel falar de uma terapia psiquiátrica que seja diferente, por
forma de círculo concêntrico, ao redor do centro da cidade:,
4 . exemplo, para católicos e judeus, religiosos e ateus, demo-
sendo uma zona de imigrantes e gente empobrecida, onde d
cratas e comunistas, negros e brancos etc."23.
fenômeno da chamada "patologia social" era característico:
O trabalho de Hollingstead e Redlich (1958) demonstra
A doença mental como conduta desviada que as pessoas buscam ajuda psiquiátrica de acordo com seu
A doenagorpnral é desvio de uma norma: a norma da - status social e crenças éticas.
).
integridade funcional e estrutural do corpo humano. Então: Efetivamente, em uma investigação realizada pelos au-
de que norma a doença mental é desvio? Pode-se dizer que tores, constatou-se que até o tratamento recebido depende
ela se desvia de conceitos ou normas psicossociais, éticas e da classe social do paciente: os pobres recebem eletrocho-
legais, diz a Antipsiquiatria. A hostilidade crônica, a vingan- ques; a classe média, comprimidos tranquilizantes; e a das-
ça e o divórcio, por exemplo, dependem das seguintes nor- se alta, tratamento psicológico pelo custo de várias centenas
de dólares a hora. Assim, dizia um cartaz posto por estudan-

Szesz, Thernag, LaW, liberty..., op. cit., p. 13.


ClIfford MeKey, Henry, Ittvenile..., op. cit. Szasz, Thomas, Law, liberty..., op. cit., p. 15.

277
276
tes de medicina de Parira no manicómio municipal: "O filho Outra deficiência, que aponta Scheff, foi a má
de rico está cansado, o filho do pobre está louco". formulação do problema: nunca se incorporou o processo
Também são distintas as consequencias que a etique. - social à dinâmica da desordem menta125.
ta de doente mental acarreta. Segundo a classe social e AS,: Excepcionalmente, na teoria psicoanalitica, não obstan-
condições pessoais, um operário pode perder seu trabalho e te, as origens das neuroses eram consideradas externas ao
sua vida social, um idoso pobre ser rejeitado pela familia e indivíduo por se referirem ao complexo de Édipo. Feniche126
enviado para um asilo, enquanto que um playboy brilhará diz, por exemplo, que a situação social da família da crian-
por suas extravagâncias". ça durante o tempo em que este complexo se instaura e se
resolve é determinante. Sendo assim, a ausência de um dos
O desvio residual. Urna perspectiva interacionista pais ou, sim lesmente, rdebilidade de urna das figuras pa-
normas Scheff propugna trocar o termoi_tesumal por' rentais, influi na não resolução do complexo. Mas na teoria
desWado e o de ~liça mental por desvio residual, já çiti psicoanalítica a situação externa não é senão, uma limita-
nos termos anormalidade e doença mental está irnplicita toda» da fonte de conflitos para o desenvolvimento das neuroses.
uma teoria do comportamento, Segundo ele, para que este - Basicamente, esta teoria se refere a um sistema de conduta
enfoque seja verdadeiramente novo, a linguagem não deve contido dentro do individuo. Partindo de alguns postulados
estar baseada em presunções convencionais, Na linguagem relativamente gerais, ela desenvolve um grande número de
comum, desviado se aplica a algo que inerentemente inj proposições para tipos muito concretos de conduta, e mes-
desejável e tem unia forte conotação de maldade, de moral mo quando apresenta uma ampla popularidade, é potencial-
negativa. Mas nesse tipo de dige11000, esta palavra se refe. mente refutável, visto que em uma investigação séria poderia
re somente a uma avaliação feita pela sociedade, relativa ay, ser transformada ou rejeitada.
standards de jufgo e a reações especificas de cada sociedai:„ O processo social também foi levado em consideração
de, os quais variem segundo esta sociedade val mudando, pela teoria marxista, segundo a qual os problemas psicoló-
Atualmente, não ha um conhecimento rigoroso das caü:' • :' gicos que produz o sistema de produção se traduzem em
sas, nem das curas nem dos sintomas das desordens mentais, alienação, quando o indivíduo desconhece o objeto que
O que hoje se sabe é clinico, intuitivo e não verificável - produz, pois torna-se alheio a ele ao converter-se em mer-
métodos científicos, Em relação ao conceito de esquiz.ofrenikL ,S„cadoria. Todos os meios de desenvolvimento da produção
urna das desordens mentais mais frequentes, há muito escrito, , o dominam e exploram. Como diz Marx, transformam o
mas não há uni acordo pacifico. Nenhum progresso sobre e trabalhador em um fragmento de homem, em um apêndi-
aprofundamento deste conceito foi feito, apesar de sua grande ce da máquina, destrói o encanto do trabalho e distancia o
Incidência, sua cronieldade e da faixa etária mais afetada (ea.' 25
Scheff, Thomas, Being Mentally ill A sociological theory, Chicago,
tre 15 e 44 anos) que é A faixa mais produtiva da §ociedade:' Aldine, 1966. Tradução castelhana: Firo! de enfermo mental, Buenos
Sem dúvida, tratei@ da categoria mais confusa da Psiquiatri& Aires, Amorrortu, 1973.
26
Fenichel, Otto, The psychoanalytic theory of neurosis, Nova York, W.
W. Norton, 1945 (cit. por Scheff, Thomas, El rol..., op. cit., p. 17).
14 BerlInger, Glovãnni, fisiquiatrías,„ op. cii.,p. 21.

279
278
homem de suas potencialidades Intelectuais, transformando Scheff pensa, não obstante, que não se devem rejei-
seu tempo de vida em tempo de trabalho. E a "alienação"; ,tar, de forma alguma, as formulações psicológicas e psiqui-
precisamente, é uma das condições psicológicas da discus— átricas, mas complementá-las e iluminá-las com o modelo
são psiquiátrica atual. 'sociológico. Os poios principais de sua teoria são o papel
social e a reação social. Esta última, a seu entender é, na
Scheff trata de formular uma teoria que integre tanto O-,
maioria dos casos, a mais significativa determinante para en-
sistema social quanto o sistema individual de comportamener."
trar naquele papel.
tos. Segundo este autor, os pesquisadores interacionistas que._ -
estudamos anteriormente, Lemert, Erikson e Goffman Como sabemos, segundo Becker, o desvio deverá ser con-
gos) e Szasz, Laing e Esterton (psiquiatras), contribuíram pari siderado mais como uma qualidade da resposta dos outros, que
essa perspectiva. Lemert destaca os mecanismos de controle" ' Ëomo uma característica do ato em si mesmo". A cultura do
social e a importância da reação social na criação de novas grupo tem, geralmente, um vocabulário para categorizar várias
violações de normas (amplificação da conduta como afeitai, ,iolações de normas: crime, perversão, bebedeira, más ma-
reflexo da estigmatização). Também Berne" oferece um siste- neiras. Mas depois de esgotar estas_ _ categorias
. há sempre um
ma social, em vez de individual, para entender o alcoolismd,L. residuo dos mais diversos tipos de violações
_nara as quais —a -cul:
_
colocando-o em um jogo interpessoal, do qual o indivíduo é, tura não põe urna
_ .etiqueta
. específica. As vezes essas yiolaçõe
somente uma parte. Por sua parte, a Psicologia Condutista não, - conduzem a etiquetar o sujeito como doente mental. Por_ _ isso,
_
acredita em causas inconscientes, mas em hábitos aprendi: Scheff chama a doença mental de desvio residual.
dos. Ulmann e Krasner" asseveram que a pessoa cuja conduta A importância da reação social se faz evidente com es-
é inadaptada (pela aprendizagem), não cumpre com as ex.pec.:_' tes exemplos: as conversas com espíritos, a reza a Deus,
tativas que se tem de seu papel; é uma conduta consideradár:, o estar fora, a ilusão, vestir roupa de banho são condutas
inapropriada pelas pessoas que são chave na vida de alguém;, normais em certos contextos culturais e sociais. Desta forma,
porque podem controlar as sanções". .á 'Condutas também devem ser estudadas sociológica e an-
Desta maneira, a doença mental, tal como se consir-lh ,trOpologicamente, como qualquer outra conduta social, e ser
derou a delinquência no Interacionismo, se consideraria a retirada do terreno dos atos físicos onde a Psiquiatria as tem
oposição a um "papel" social; e aos sintomas psiquiátricos,..[ relegadas como se tratasse de um sintoma fisiológico a mais
violações de normas sociais ("expectativas"), segundo umát: (dbirlo a febre, por exemplo)''.
audiência social definida. Algumas experiências de laboratório deram os seguintes
.resultados:
27 Berne, Eric, Games people play, Nova York, Grove, 1964, pp. 73-74» t,:
(cit. por Scheff, Thomas, El rol..., op. cit, p. 25). Como diz Eysenck! ' 1. Certas substâncias psicotrpicas podem causar réplis_
"Não existe neurose sob o sintoma, mas só o sintoma em si mesrnO.t cas de sintomas psiquiátricos: a mescalina e o ISD-25
Eliminar o sintoma é eliminar a neurose".
28 Ullman, Leonard P. e Krasner, Leonard, Case studies in behavior' 3°Isto é, que "a conduta desviada é conduta que foi etiquetada como
modification, Nova York, Holt, Rinehart and Winston, 1965 (cit. por • tal".
Scheff, Thomas, El rol..., op. cit., p. 27). " lbidem, p. 41.
29 Scheff, Thomas, El rol..., op. cit,
p. 28.

281
280
Quando uma pessoa começa a empregar sua conduta des-
produzem alucinações visuais, falta de orientação tem- ••
viada, ou um papel baseado nesta, como meio de defesa,
poral e espacial e interferências no pensamento;
ataque ou ajuste aos problemas abertos e encobertos que
A falta de sono também produz esses sintomas (en; são criados pela reação social conseguinte, seu desvio se
uma maratona de dança, depois de cento e sessenta denomina secundário. O desvio secundário é produto da
oito horas de baile, um casal se dizia pertencer a amplificação do desvio primário".
clube secreto
secreto de insones, ou um dos dois acusava o
1- No terreno da chamada Antipsiquiatria se faz presente
tro de flertar com um espectador, mesmo que ele tenhar'; -
iião só o etiquetamento, mas também o estereótipo: assim
permanecido ao seu lado o tempo todo etc.);
fi.Ê)s. deparamos com que o estereótipo do doente mental
A privação da estimulação sensorial pode causar Pi-esente nos meios de comunicação que o apresenta como
cinações. Em uma experiência com vinte e nove pesso;` - , -alguém que se exibe e atua de forma diferente das outras
as encerradas em um cubículo a prova de ruído, coró' Pessoas (boca aberta, olhar perdido etc.).
pouca visibilidade (em penumbra), com luvas de algo!- • b
A família tem um papel preponderante na criação e ma-
dão, para evitar contatos e sensações similares, depoit t.
nutenção das chamadas doenças mentais. Atualmente, os
de dois ou três dias, vinte e cinco dos vinte e nov0. •
. psiquiatras pensam que as famílias, por vezes, estão mais
disseram ter tido alucinações cada vez mais complexa
"loucas" que os pacientes e que os sintomas destes não são,
4. As paisagens monótonas (voos longos, estradas retat:.. ienão, reações normais a situações não usuais, geralmen-
intermináveis etc.) também podem gerar sintomas desrao,- ie, a solicitações contraditórias dos pais enviadas através de
índole". .4 ) mensagens, orais ou implícitas, que não são coerentes entre
Em todos esses casos de laboratório, os sujeitos forani:, ...VÊ por isso que autores como Cooper e Laing dão ênfase
advertidos de que qualquer pessoa, no seu lugar, teria apr:: . ápecial à crítica da instituição familiar e em sua importância
sentado esses sintomas, isto é, que eles eram normais. Ima; - 'áfite o momento terapêutico".
ginemos que essa informação não lhes fosse dada, e Como consequência de tudo que dissemos até aqui, a
pelo contrário, por conta disso eles fossem etiquetados como4i 'Classificação das síndromes psiquiátricas seria, pois, como
anormais e tratados como doentes mentais: essas pessoas se?, diz Basaglia: "A expressão de nossa impotência, por um
estabilizariam em seu papel e seriam verdadeiramente trans . ,..
ia
formadas em pessoas anormais (não se pode esquecer que 33-Lemen, Edwin, "Capitulo 4", Social pathology, Nova York, McGraw-
13,-Hill, 1951 (cit. por Scheff, Thomas, El rol..., op. cit., p. 53).
as psicoses modelo não são diferentes das ordinárias). IssO,
Ver Cooper, David, The dead of the family, Londres, Penguin, 1974.
acontece porque, mesmo que as pessoas geralmente vistaiii..
Tradução castelhana: La muerte de la família, México, Planeta DeA-
o personagem, às vezes é o personagem que as manipula. gostini, 1986; Laing, Roland, The politics of the family and other es-
É o que o Interacionismo chamou de "amplificação do des,' says, Londres, Tavistock, 1969. Tradução castelhana: El cuestiona-
vio". Como diz Lemert: » miento de la família, Barcelona-Buenos Aires, Paidós, 1982; Laing,
Roland e Esterson, Aaron, Sanity, madness and the family, Londres,
,.„ Tavistock, 1964. Traducción castellana: Cordura, lontra y família,
México, Fundo de Cultura Econômica, 1995.
32 lbidem, pp. 43-46.

283
282
ie•—••••
lado; e de nossa agressividade, por outro, ante uma doença Os antipsiquiatras mais polémicos afirmam que a ativi-
dade psiquiátrica é médica somente no nome e que, em sua
que nos escapa"35 .
maioria, os psiquiatras estão comprometidos em uma tentati-
O manicômio e a prisão como formas de violén4
va de mudar a conduta e os valores dos indivíduos, grupos e
cia institucional. A perspectiva crítica in.stituições, e até mesmo de nações. Portanto, pode-se con-
Basaglia, italiano, é talvez o mais político dos antip-r siderar que a Psiquiatria é uma forma de engenharia social".
siquiatras. Segundo este autor, o psiquiatra tradicional cria Como diz Basaglian, o interno, além de parecer doente,
distância entre si e o doente, instaurando uma relação ob.::: é Objeto de uma violência institucional inumana que atua em
jetal e impedindo-o de sair de um circulo coisificante. 'todos os níveis, já que toda a ação de rebeldia ou oposição
uma relação de poder entre o médico e o doente: de podei: se define dentro dos limites da doença. Um filme dos 1970,
institucional, terapêutico e carismático, que impedem umá -pne flew over the Cuckoo's nest (Um estranho no ninho),
relação autêntica entre ambos. "O doente foi isolado pela
ca. usou furor pela denúncia dessa situação. É que tanto a do-
Psiquiatria, para com isso ocupar-se da definição abstratl, ença mental quanto a delinquência e a conduta desviada em
da realidade", mas... "estamos obrigados a isolar a doença _general, se definem a partir de uma ideologia da diversidade,
como classificação nosográfica, se queremos ver a cara cid: • 5 em que o direito a ser diferente é negado e onde todos os
doente e seu real mal-estar", diz Basaglia. mecanismos institucionais estão destinados a sua submissão
Um exemplo disso é que, en- . e transformação.
quanto o paciente de um hospital. As funções da prisão e do manicômio apresentariam,
geral é tratado como qualquer outra: pois, no nível da violência institucional que representam,
pessoa da sociedade, o doente mentai, um paralelismo real, reforçado pelas semelhanças que Goff-
hospitalizado é tratado como se esti.- man e Chapman haviam identificado. Assim, explica Basa-
vesse dentro de um status, não como:: glia na entrevista que concedeu para o livro Psiquiatria y An-
pessoa, mas sim desempenhando o,. t1psiquiatría39 , durante muitos séculos "loucos, criminosos,
status de doente mental, e, como se p}ostitutas, alcoólatras, ladrões e extravagantes de todo tipo"
não bastasse, privado do poder de eram reclusos no mesmo lugar onde os distintos aspectos da
Franco Basaglia e
negociar esse status. .sua normalidade representavam "essa parte do homem que
O isolamento da doença mental não só era uma afirma- r devia ser eliminada, erradicada e ocultada". E ainda que a
ção de princípios, mas também um programa de trabalho prisão e o manicômio se separaram posteriormente, conser-
produziria na Psiquiatria alternativa italiana uma virada anti- taram idêntica a função de defesa da norma e de distancia-
-institucional36. mento dos doentes da sociedade normal. Nem o delinquente

Szasz, Thomas, El mito..., op. cit.


35 Basaglia, Franco, ‘Psiquiatría o ideologia de Ia locura?, Barcelona, : " Basaglia, Franco, Psiquiatria o..., op. cit., p. 37.
Anagrama, 1972. 39
Psiquiatria y Antipsiquiatria. Personalidade entrevistada: Franco Basa-
Colucci, Mario e Di Vittorio, Pierangelo, Franco Basaglia, Buenos Ai- glia, Colección Barcelona, Salvai, 1973, p. 15.
res, Nueva visión, 2006, p. 74.

285
284
"1+6
nem o louco, que acabam sendo segregados e penalizados, aniquilar a quem não está na norma e, sobretudo, "a quem
tiveram jamais, dentro das instituições, reconhecimento de não tem força contratual e econômica para se opor a esta
sua dignidade como ser humano. exclusão". Por isso, significativamente, os internos de ma-
nicômios franceses chamam a seus médicos flicpsiquiatras
Don't leave the brain to the experts: it's y0ur5 40, falou! •
ou flicquiatras (flic é uma gíria para denominar policial na
-se, como forma de rebelião contra os mecanismos condi.*
França).
cionantes... "abandonar o cérebro nas mãos de especialistas '
implica uma renúncia à personalidade própria e uma acen- - A exclusão social da loucura. Um filósofo intera-
tuação dos aspectos opressivos da sociedade"". cionista e crítico, sem ser criminólogo
Como solução, Basaglia propõe alentar a comunida:: Falamos, ao início deste livro, que a historia crítica do
de terapêutica nos hospitais. Uma comunidade terapêutica - .pensamento criminológico tinha a ver com o poder, com a or-
é "aquela na qual se cumpre deliberadamente o esforço de
;t 'dem, com o controle, com a dominação e com a exclusão".
utilizar, da forma mais abrangente possível, em um pland •
Foucault escreveu sua tese douto-
terapêutico amplo, a participação de todos: funcionários "el ,..•
ral em meados do século XX, em um
pacientes". momento em que a Antipsiquiatria
Nessa solução existe: irrompia. Para Thomas Szasz, como
Liberdade de comunicação entre pacientes, médicos; vimos, a doença mental era um mito.
enfermeiros e empregados (sem hierarquia); • Para Ronald Laing, David Cooper e
Franco Basaglia, que dirigiam unidades
Análise do que acontece na comunidade em termci's
experimentais em locais fechados, a
de dinâmica individual e interpessoal; Michel Foucault
/!Filósofo e historiador
loucura não era uma doença, mas uma
Tendência à destruição da autoridade hierárquic história. A história de urna viagem, de
em contraste com o hospital tradicional no qual o pà:. 1; (ima passagem ou de uma situação onde a esquizofrenia era o
ciente está no mais baixo degrau e todo o hospital dek-:: ;exemplo porque traduzia com uma resposta delirante o mal-
carrega contra ele suas tensões; restar de uma alienação social ou familiar".
Possibilidades de aproveitar ocasiões de reconheci;:,:`;
t.)
mento social (bailes, passeios, teatro, filmes etc.); I •r

Uma reunião pessoal, médico-pacientes, com freq4 42 Falamos que a obra de Michel Foucault, apesar de não ser criminOlo-
• go, foi uma das mais fecundas em abordar essas questões, e sua obra,
ência diária, e outra mais restrita.
b'‘ 'a partir de Vigiar e Punir, despertou inúmeros seminários, oficinas,
Segundo Basaglia, a comunidade terapêutica teve a vir; . pesquisas e publicações nos centros acadêmicos de Criminologia. Nos
tude de mostrar que existe a necessidade de excluir e dé Ktremetemos ao capitulo sobre a prisão, onde Foucault analisa a fundo
a disciplina e a cidade-panõptico.
4; Roudinesco, Elisabeth, "Lectures de l'histoire de la folie, Introduccidin",
.0 "Não entregues teu cérebro aos especialistas, ele é teu".
em Penser Ia folia Essais sur rnichel Foucault, Paris, Galilée, 1992, p. 16.
" Ver Berlinger, Giovanni, Psiquiatria..., op. cit.

287
286
.rancesa, período no qual os psiquiatras propuseram um tra-
Em História da loucura", Foucault se aproxima de séiiiirss
contemporâneos ao narrar a história de uma viagem, n-6s., j.gmento moral aos loucos que habitavam os asilos".
fazendo-o através da análise da segregação e da exclusão.'",,É kt Para Foucault, mesmo que .a loucura se encontrasse pre-
A loucura, dizia Foucault, não se encontra em estado selk-e , rite no horizonte social durante a primeira etapa, isto é,
gem, isto é, somente existe em sociedade. Isso significa ' e‘trritre o Medievo e o Renascimento, era um assunto somente
a loucura não é_ um feito da natureza, mas produto de tira e caráter estético, e se aceitava como cotidiano.
cultura". Sua história é a história das culturas que a definehr O homem, apesar de sua falta de juízo, não deixava de
e aquelas que as perseguem'''. Em que momento a louc.átrl nPrj.iim ser humano, somente estava situado à margem, era
começou ser excluída sóbialmente? Quando se cárneçoia yeWn'Siderado um infeliz, e era digno de interesse e de com-
encerrar os insanos? Somente o louco foi encerrado ou ;ão. O louco não se encontrava excluído do mundo, se
Wpsalix
bém outros diferentes? ggcontrava, na verdade, nos confins do mundo. O laço que
Explicamos anteriormente que o século XVIII foi clica .uhia a esse mundo estava distendido, mas não desfeito".
mado por Foucault de o século da grande internação. :01 N Mas o que acontecia se o louco provocava um dano
„n-
me
do grande encarceramentol. Igualmente a Basaglia, quarin k,-; cometia um crime? Foucault não se deteve em analisar
escreveu seu livro La mayoria desviada, Foucault aptititn° 's1 as hipóteses, mas em fins da Idade Média, e durante o
como eram segregados, ou internados em instituições fecha-u ;
tf:Renascimento, esses casos se resolveram conforme o Direito
das, mulheres questionadas familiar ou socialmente, eØ 426mano. O louco estava sujeito à instituição da feitiçarie
podiam converter-se em freiras; crianças abandonadasM *'geral, sua família que o tinha sob sua responsabilidade,
gum tipo de doente; pessoas mentalmente discordantes; !respondia civilmente pelos danos ocasionados. Em matéria
em situação de rua; deficientes; infratores, e outros "desát_:.w íriminal regia o princípio segundo o qual não se podia con-
dos". E como acabavam marginalizados por definiçõeSSe- debar ninguém duas vezes pelo mesmo motivo. Considera-
normalidade e por decisões institucionais. • então, que a pena que Deus lhe havia infligido era
g.
Foucault distingue três momentos através da históriâlda S.:cientemente severa para aplicar-lhe outra adicional. A
loucuraCa Idade Média e o Renascimento& grand0 Recura era uma pena em si mesma;_para o Direito Penal, o
carceramento durante os séculos XVII e XVIII; e, por últir4 i, tnploco se encontrava em um estado similar ao da morte". A
3),o período contemporâneo, que começa com a Revolu0;
2' ed., Paris,',
44 Foucault, Michel, Histoire de Ia folie à l'âge classique,
Mandrou, Robert e Braudel, Fernand, "Trois clefs pour comprendre la
Callimard, 1973. Tradução castelhana: Historia de Ia locara er4
à l'âge classique", Annales. Économies, Sociétés, Civilisations,
Edad Clásica, 2' ed., II tornos, México, Fundo de Cultura Econt4r;
g:$ ano IV, n° 17, 1962, p. 764.
ca, 1976. Tradução brasileira: História da loucura, 9' edição, Editora
Foriers, Paul, "La condition des insensés a Ia Renaissance", em Folie et
Perspectiva, 2010. [IN1. da T.]
Adéraison a Ia renaissance, Colloque international, novembro de 1973,
45
Foucault, Michel, "Ia folie n'existe que dans une société", Le moryele
.4Bruxelas, Universidade de Bruxelas, 1976, p. 30.
N° 5135, 1961, p. 9, publicado em Dits et Écrits, op. cit. 16;/éCarbasse, Jean e Marie, Histoire du Droit Penal et de /a Justice Crimi-
46
lbidem. Ojrnelle, Paris, PUF, 2000, p. 226.
7 Roudinesco, Elisabeth, "Lectures...", op. cit., p. 19.

289
288

II
) loucura não era passível de pena'', mas o "louco" devia fiéàr . Em seu livro La mayoría desviada, Basaglia cita a ten-
sob responsabilidade e proteção da família, e só em caso Aentr -kncia de que uma grande quantidade de condutas e perso-
que esta não assegurasse custódia, se autorizava, excepciór na- gens (crianças, deficientes, "doentes mentais", delinquen-
\ nalmente seu ingresso na prisão, tal como estava previsto re 4• 4nUes, mulheres não conformes com seu papel socialmente
Direito Romano52. ; Atribuído de mãe ou esposa, e outros não conformes com as
ápectativas normatizadas), sejam recluídos e apartados da
Funcionalidade política da loucura 'S'Odiedade de maneira que uma parte minoritária dela pudes-
O conceito de norma da sociedade industrial coincide se ocupar livremente em administrar o poder sem ter que
com a produção, diz Basaglia, o mais político dos antipSã' lidar com os inconvenientes da diversidade.
,,
-,r3m
quiatras. Aquele que esteja "à margem dela é um inadapta,: A função social da loucura, pois, tem um sentido si-
do". "Não ter uma função ativa ou passiva na aa 41 bilar ao da função social da delinquência. É possível que a
rejeitar (por escolha própria ou por necessidade) a função.0 partir de uma perspectiva mais humanista se abarque toda a
consumidor, deve converter-se — através da ideologia dere; i--41'oblemática do desvio.
fica mais apropriada — em algo que seja, ao mesmo temp.i5T Para tal contribuem, não pouco, as ciências sociais e o
uma confirmação da norma" 53 . É por isso que o desviado, We Tegresso à abordagem epistemológica, assim como a análise
t-, 5.
ser excluído, ratifica o conteúdo da norma. d3 poder e dos interesses na determinação das definições.
.aecordaremos incessantemente que, como disse Nils Chris-
51 Em crimes considerados de lesa majestade divina e humana náci;se. `Itie: "poder é o poder de definir".
podia invocar esta causa para absolver o acusado: esses crimes
inescusáveis. Em 1563, o médico Wier reclamou contra a inimput41
lidade das bruxas, apesar de tê-las imputado pelo delito mais grave-dr
todos. Este autor dizia que sua doença.— a melancolia — impedia ciN
se pudesse aplicar-lhes uma pena. Havia que absolvê-las, pois neàe5
sitavam de um tratamento médico, e outro espiritual, mas não de unta
pena. Pode-se considerar a colocação de Wier como um anteceda
à medida de segurança para imputáveis (ver Zaffaroni, E. Ratil,'"G'ril%
minologia e Psiquiatria: El trauma del primer encuentro", conferêhdáfl
realizada na Associação Psicoanalitica Argentina, outubro de 2005:,
reproduzida na Revista de Derecho Penal, Montevidéu, 2006; Codir
no, Rodrigo, "Imputabilidad penal. Entre Ia historia e la prehistorián
Revista de Derecho Penal y Criminolog(a, ano n° 5, Buenos Airet,itt
La Ley, junho de 2012, pp..290-294). ,CPCS
52 Ver Laserre, Emmanuel, Étude sur les cas de non-culpabilité ,,pt
d'excuse en matière pénale, Toulouse, Bonnal et Gibrac, 1877.
53 Basaglia, Franco e Basaglia Ongaro, Franca,
La maggioranza deviarile
Torino, Einaudi, 1971; tradução castelhana: La mayoría margina,da)
Barcelona, Laia, 1977, pp. 26-27. É importante assinalar que Baságlia:at Judiciais, de modo que as pessoas que antes eram enviadas a esses
E.,ilugares, fossem enviadas para sanatórios gerais.
conseguiu que na Itália, por um tempo, se eliminassem os Manicórnios

291
290
CAPiTULO XIV

"A NOVA CRIMINOLOGIA"

.Introdução. Modelo teórico que propõe "A Nova Crimino-


logia" de Taylor, Walton e Young. Pressupostos. Requisitos
formais. Requisito substancial ou central. Uma teoria de al-
cance médio e "completarilente social". Também uma teo-
na marxista. "A Nova Criminologia" e a pesquisa.

Introdução
b livro "A Nova Criminologia" foi a mais séria e extensa
-ãtita que até então se havia feito do papel político-ideoló-
'lá) tanto das teorias criminológicas quanto do criminólogo.
"Nova Criminologia" não é, necessariamente, criminologia:
Essa denominação faz referência ao livro que, com esse
x4r16'me, foi publicado por três sociólogos ingleses nos anos 197O:
._iiliáli•Taylor, Paul Walton e Jock Young. Foi sem dúvida o esforço'
r47 mais completo e sistematizado de fazer uma criminologia de
-êã.rte marxista, mantendo com o marxismo a distância necessá-
kiiii;
0.para não fazer dele uma aplicação esquemática, e na preten-
sãWde conservar uma posição crítica. Tem que se reconhecer,
' 4f\
..,,,iKciusive com o passar dos anos, o impacto dessa obra em todo
nIl ártabouço conceituai de nossa disciplina.
três evangelistas deste enfoque começaram por fa-
1P7'üma análise histórica e epistemológica de cada uma das
teorias e posturas que haviam aumentado o acervo crimi-
i. .;,.-
n lógic o e amplificado até o infinito a confusão geral nesse
etno e .
12 No livro, cada peça volta lentamente a ocupar o lugar

eXato que lhe corresponde no quebra-cabeça da teoria crimi-


í:
,uslógica. Positivistas, como Durkheim, Eysenk; funcionalis-
tas, como Parsons e Merton; teóricos do conflito, como Turk, O modelo formal proposto pelos autores é resultado da
Qui nney, Dahrendorf; os etnometodólogos, como Garfinkel; crítica imanente dos pensadores anteriores. Em todo caso,
e fenomenólogos, como Matza, Sutherland e o grupo da Es- reconhecem a necessidade de sua aplicação empírica a ca-
cola de Chicago, e os interacionistas: todos, enfim, foram sos concretos.
submetidos a uma dissecação com bisturi crítico.
Pressupostos
Wolfgang encontra neles "mais urbanidade da lingua-
gem e uma gramática geral de discurso mais racional" que Uma teoria socialmente adequada deve estar livre
a que encontra na Sociologia radical norte-americana. A vi- das implicações biológicas e psicológicas que fo-
são inglesa seria, segunddele, "mais logicamente adequada, ram próprias de teorias anteriores, ou seja, deve
mais próxima da razão, menos polemicamente política". Ela ser completamente social (fully social). Os autores
é, efetivamente, mais serena e faz, dessa maneira, valer seus destacam também a falta de sentido da história das
instrumentos teóricos. velhas teorias;
2. Requer-se, a seu entender, não só uma teoria com-
Modelo teórico proposto pela "A Nova Criminologia" pletamente social, mas também uma sociedade na
Mesmo conhecendo as limitações de uma sociologia - que os homens sejam capazes de afirmar-se de uma
isolada do entendimento econômico das forças estruturais, 4. maneira completamente social;
Taylor, Walton e Young trataram de abrir o debate crimino.: um estado de liberdade em relação às necessidades
lógico, indicando certos requerimentos formais e substanti- materiais, com o incentivo material; uma liberação das
vos de uma "teoria completamente social do desvio". Seria constrições da produção forçada; uma abolição da di-
uma teoria que pudesse explicar as formas assumidas pelo; visão do trabalho forçado, em um estado de liberdade,
controle social e a ação desviada das sociedades desenvol, • com um conjunto de situações sociais que não façam
vidas, isto é, em sociedades caracterizadas pela presença surgir a necessidade social, política e economicamente
induzida, de criminalizar o desvio3 .
de um modo capitalista de produção, por uma divisão
trabalho que envolve o crescimento de verdadeiros esqua ,' Requisitos formais
drões de especialistas, trabalhadores sociais, psiquiatras, e =
O modelo teórico da Nova Criminologia compreende
outros, a quem lhes designa um papel crucial nas tarefas de -%
--dois tipos de requisitos: formais e substanciais. Os requeri-
definição e controle social, pela necessidade de segregar — —
mentos formais dessa teoria se relacionam com sua finalidade.
em sanatórios mentais, prisões e instituições juvenis — uma
variedade crescente de seus membros, que eram apontados. As origens mais remotas do ato desviado refere-se às
origens estruturais, nas quais o ato deve estar corre-
como necessitados de controle'.
tamente localizado.
Essas considerações estruturais devem abarcar o reconhe-
cimento de questões estruturais intermediárias que são já
' Citado por Platt, Tonny, "Proposiciones...", op. cit., p. 116.
, Grifos nossos.
2 Taylor, lan; Walton, Paul e Young, Jock, The New Criminotogy..., op. cit.!

295
294
tradicionais na Criminologia Sociológica (por exemplo, minho desviado, como uma solução para os proble-
áreas ecológicas, localização subcultural, distribuição de mas que se apresentam, pela sua existência em uma
oportunidades para alguns atos, como o roubo). E estas, sociedade contraditória.
por sua vez, inseridas dentro do contexto geral das de-
O ato atual
sigualdades do poder, do bem-estar e da autoridade, na r.
sociedade industrial desenvolvida. Sendo assim, deveria Nem todo aquele que decide assumir uma condu-
considerar aquelas questões, tradicionalmente trabalhadas ta desviada pode estar apto para levá-la a cabo. O
pelos psicólogos, relativas às causas que excluem certos requerimento formal deste nível, pois, é o de uma
Indivíduos da interação normal. explicação da maneira como os atos concretos são
Mas, tal como se fez nos últimos trabalhos da chamada Es- explicáveis em termos da racionalidade da escolha,
cola Antipsiquiatrica, tem que se localizar esses elementos ou dos constrangimentos na escolha, que podem
psicológicos (por exemplo, a natureza esquizofrênica do precipitar a ação. O requerimento formal é, então,
núcleo familiar burguês) no contexto de uma sociedade na levar em consideração a dinâmica social real que
que as famílias não são senão, parte de um todo estrutu- rodeia o Ato em Concreto.
ral, relacionado, mas contraditório. Isto é, o indivíduo deve
As origens imediatas da reação social
estar sempre compreendido em sua conexão geral com as
estruturas sociais e na sua submissão às pressões de uma Assim como o ato desviado em si mesmo pode ser
exIstõncla sob condições sociais prevalentes4. precipitado pelas reações dos outros (por exemplo,
a necessidade de ser considerado macho pelo grupo
Essas origens remotas, pois, devem ser entendidas "em
imediato), a definição subseguinte desse ato depen-
termos das contingências políticas e econômicas em ráPida
derá de muitas coisas, como a proximidade ou dis-
transformação da sociedade industrial avançada". O reque-
tância do parentesco ou da amizade com o sujeito,
rimento formal seria, pois, uma Economia Política do Crime. as razões para denunciar, os estereótipos utilizados
As _j_miLESc
ot rii Latas_d o ato desviado pela polícia etc. O requisito neste nível é uma expli-
Os homens, reconhecem os autores, não vivem os cação da audiência social em termos das escolhas
constrangimentos sociais de forma equilibrada. As- que são possíveis para essa audiência, isto é, uma
sim, a teoria deve explicar as diferentes maneiras Psicologia da Reação Social.
em que as solicitações estruturais são interpretadas As origens mais amptas da reação social
e a maneira diferencial com que se reage frente a
A psicologia social da reação social se explica so-
elas, O requerimento formal neste nível seria, por
mente em termos da posição e dos atributos pes-
conseguinte, o de uma psicologia social do delito,
soais de quem instiga a reação contra o desviado.
entretanto, à diferença do que está implícito nos tra- Assim, explicam, a ideologia reformista do traba-
balhos dos interacionistas, deverá reconhecer que lhador social se opõe à ideologia punitiva das insti-
os homens podem conscientemente escolher o ca-
tuições correcionais; a ideologia policial se enfren-
ta com a filosofia da prática judicial e, mesmo no
i% Taylor, km; Mito% Paul e Young, Jock, La Nuesin CrImInolopM—, op. cit.

297
296
Ambito público, a situação varia segundo a Entendemos esta teoria como marxista pelos seguintes
social, o grupo étnico e a idade. O requerlment& elementos:
formal neste ponto é, pois, um modelo efetivo doi. Trata de entender a sociedade como uma totalidade-
imperativos políticos e econômicos que sustenta4 Trata de estabelecer uma economia política do ato e
essas ideologias e que sustentam verdadeiras crud• jc la =cão social e uma psicologia social politicamente
das que emergem periodicamente para controlar':( _ _
informada sobre essa dinâmica social;
desvio e sua desCriminalização, isto é, uma Econe
Contextualiza historicamente as teorias existentes;
mia Política da Reação Social.
Trata de integrar a compreensão do homem à socie-
c6-:\ O impacto da reação social na ação posterior dei,. dade em que vive;
N--) desviado
É uma teoria normativa, isto é, está orientada nor-
Refere-se à teoria interacionista. Não obstante, aeü
mativamente para a eliminação das desigualdades de
sarn seu conceito de desvio secundário de não dia-,
riqueza e poder, das desigualdades na propriedade e
/ético, já que o homem se compromete com o
nas oportunidades vitais. Sua intenção é não cair no
vio sempre de forma consciente, mesmo em relaçãe
correcionalismo e, por conseguinte, considerar o desvio
ao que espera que ocorra quando é apreendido (j
como uma patologia. Sua tarefa fundamental, pois, é a
teoria interacionista seria, em certo grau, aeusarrr
de criar uma sociedade na qual os atos da diversida-
os autores, determinista). Afirma-se que as condi;
de humana, seja ela pessoal, orgânica ou social, não
cionantes do primeiro ato devem Influir igualment‘'; estejam sujeitos ao poder de criminalização ou, como
no ato posterior. Todos os atos, segundo os autores
disse Marx "o importante não é conhecer o mundo, mas
devem ser explicáveis, pelo menos parcialmente, ettú:: transformá-lo".
termos da consciência do mundo que tem o sujelitSP+'
ator. A epistemologia marxista utilizada se apresenta com
:claridade, ela é histórica, é concreta, é social, é dialética, é
Requisito substancial ou central ietalizante, requer a interdisciplina e entende o conhecimen-
to vinculado à prática.
< 7:) A natureza do processo desviado como um todo
As realidades analíticas a que se referem os requisito "A Nova Criminologia" e a pesquisa
formais não são facilmente distinguíveis: A pesquisa, de acordo com este modelo e segundo os
O requerimento central de uma teoria completamen= autores, giraria em torno das seguintes perguntas, tanto em
te social é que estes requisitos formais não devem ser' nível global quanto na consideração particular de um caso
considerados como requisitos essenciais que devem estar, concreto:
sempre presentes, conjuntamente, e em forma invariável;
na teoria. Trata-se, na verdade, de que esses requerimen- 1. Quais são os conflitos culturais, estruturais e sociop-
tos apareçam todos na teoria, como acontece no mundo sicológicos da sociedade estudada?
real, em uma relação recíproca, complexa e dialética.

299
298
°Qual é o fundamento da ação concreta do sujeiió, de desvincule de uma teoria desta natureza, já que seria ela
,tw ,Ftque lhe dá sua finalidade, sua essência e seu sentido ético.
estudado?
X.'iomo
f diziam Werkentin, Hofferbert e Baurmann6, o objeto
G A ação cumprida significa busca por uma solução?.
problemática? É expressiva? É individual ou coletiva?
uma teoria da criminalidade é a transformação das formas
Inconscientes de ação na ação consciente de classe do pro-
esforços conscientes foram feitos pelo ator em um exca
Óletariado organizado.
lente balanço de racionalidade, antes de realizar a ação?gi
"A Nova Criminologia" -resulta ser, ao mesmo tempo,
C 4I. Que forma a reação social toma? É variável em grau dê.
severidade? É informal ou formal? É ampla óu específicálfr
-
driminologia do acting out (atuação) e criminologia da re-
aão social. Mas os matizes que lhe foram dados a salvam
Quais são os coniextos estruturais da reação social? 'Pb`iMa consideração individualizada, atomizada, da primeira; e
çp oram criados interesses? Como se mantém? São variá2"
• :4:
14;A”,,
ecanicista e limitada da segunda. Tudo parecia indicar que
veis ou constantes? 'ela permitiria ao crimin6logo cumprir sua responsabilidade
(61) O conteúdo da reação social é internalizado ou
te_4
secial e histórica e sobreviver eticamente, se não material-
sistido pelo desviado? Produz-se uma amplificação otk inente,
frl às pressões do positivismo ideológico e do reformis-
a reação social a detém? Esta reação muda a gama 4t o liberal.
opções do desviado ou simplesmente a limita? 4 ,

C Quais variáveis das anteriormente expostas influere.•


na persistência ou mudança de conduta?
A Criminologia Radical já estava desenvolvendo pês7j
guisas parciais que tocavam algum ou alguns destes aspee.f
tos. Já citamos o clássico estudo de William Charribliss sol4e
a "Lei de Vagos e Ociosos"5 na Inglaterra e nos Estados
dos, uma pesquisa sócio-histórica sobre a origem dessa lei•!er
as razões econômicas que a geraram..
Em geral, as pesquisas sócio-históricas das instituiçõe»,
do controle social formalizado eram um terreno promisa
para esta escola. Em um trabalho posterior, os três autoret
alegam a necessidade de uma pesquisa criminológica orierí
tada para uma tomada de consciência, dos homens implka,,,
dos, de todos os elementos de sua realidade socioeconõm -
e histórica. Propõe pesquisar para conscientizar, utilizar cj
resultados para retroalimentar as massas. Que a práxis não Werkentin, Falco; Hofferbert, Michael e Baurmann, Michael, "Crimi-
nology as•police science or: How old is the New Criminology", em
5 Ver Capítulo III. Crime and Social Justice, n" 2, Berkeley, 1974.

301
300
CAPITULO XV

A SÍNTESE
A CRIMINOLOGIA DO CONTROLE SOCIAL (II)

A Criminologia Critica. Seu marco histórico, cultural e epis-


temológico. Enfoques e propostas. A Criminologia Crítica e
a Escola de Frankfurt. O antiautoritarismo. A Criminologia
da Libertação. Criminologia Crítica e Pós-modernidade'.

O marco cultural: a essência por trás da aparên-


cia e o desestruturante
Ao século XX alguns chamaram o das revoluções da
Era de Aquário2 — a qual, supostamente, teria começado em

Este capítulo, principalmente a parte introdutória do marco cultural,


foi tratado anteriormente em Aniyar de Castro, Lola, Criminologia de
los Derechos Humanos..., op. cit.; e também, da mesma autora, em
sua colaboração ao livro coordenado por Elbert, Carlos, Criminología
dei Siglo XXI, Buenos Aires, Rubinzal, 1999.
Essas "Eras" (à de Aquário se seguiria a "de Peixes, e cada uma duraria
cerca de dois mil anos) não são produto do que se chama Ciência,
ainda que se alegue que estariam baseadas nos ciclos equinociais. Tem
mais a ver com as teosofias, a Cabala, o livro sagrado de Zohar, a nu-
merologia, com agregados de misticismos e esoterismos. Mas foi uma
inserção cultural destacada, particularmente no que se considerou "pós-
-modernidade". Talvez seja menos importante indagar se a sua origem
é científica ou astrológica do que entender o que se buscava nessa nova
"Era":íj Nela, o conhecimento pertenceria a todos, e, segundo o li-
vro de Zohar, "quem tente reter os conhecimentos, poderia perdê-los".
É, pois, um conhecimento dináplico, plural,-0 fundamental seria a
verdadeira liberação da menteà0 personagem mítico por trás dessa
Era seria Urano, O Destniidor, que representa a tecnologia, a Internet,
os aviões supersónicos, as armas de destruição massiva etc., algo com
que o livro La Sociedad dei Riesgo, de Ulrich Beck, poderia ter a ver: o
fato de que a humanidade parece ter penetrado na Idade do Medo (The

li
meados do século XX —, para apontá-lo como geradora das borados com elementos efêmeros. São a busca de momen-
mudanças que se produziram na maneira de pensar, nas no- tos criativos que se encerram temporalmente em si mesmos
vas crenças, nos novos agnosticismos, e nas novas aberturas. e sem intenção de perdurar. Ao mesmo tempo, um artista
vestido como Cristo envolve as paisagens, pontes, edifícios,
Nessa chamada Era de Aquário, muitos movimentos da
em grandes lençóis, tentando cobrir (esconder?) a realidade
mais variada índole pareciam orientar-se na busca da essên-
P
uramente visual do dia a dia, deixando viva a curiosidade
cia por trás da aparência, e se inclinavam para o desestru-
pelo ocultado.
turante. As primeiras manifestações, ou pelo menos as mais
evidentes dessa busca, se dão no mundo das artes plásticas e - Na literatura surrealista, os chamados "cadáveres ex-
da literatura. Por exemplo, na pintura, o cubismo tenta bus- , traordinários" e as "aproximações insólitas"3 fazem, do
car as formas geométricas ocultas (a essência) em paisagens inesperado, uma nova realidade cotidiana. Por sua parte, o
ou qualquer outro tipo de cenário gráfico. Ao manifestar o dadaísmo foi pura destruição da linguagem: a descompõe,
escondido, de alguma maneira, desestrutura-se a aparência • em aberta rebeldia ao pensamento formal. Também a nova
(o evidente). Também, outra das manifestações pictóricas da novela tenta, tanto descompor a estrutura organizativa clássi-
época, o impressionismo, descompõe as linhas em seu com- ca (é o caso de Joyce: páginas e páginas sem vírgulas ou ou-
ponente básico, que é a luz: fusão de todas as cores. Assim, tros sinais de pontuação) quanto criar realidades alternativas
as formas serão dadas por manchas de componentes da luz (Kafka). E, no caso da novela objetivista, também chamada
(cores) e não por linhas. Na literatura, o surrealismo (que re-: nouveau roman na França, negou-se a expressar a narração
presenta uma realidade alternativa) apresenta a necessidade subjetiva para permanecer simbolicamente na superfície da
de desencadear o subconsciente na criação tanto literária• mera descrição dos objetos: um aparente culto desdenhoso
quanto plástica. Também o surrealismo incorpora elementos , da coisificação. Também foi o momento no qual a criação li-
estéticos marginalizados, como o chamado "étnico", pelas , ferária se abriu a realidades mágicas ou maravilhosas (como
culturas dominantes. Assim, por exemplo, o africano, atê no realismo mágico de boa parte da nova novela latino-ame-
(.
então marginal à cultura ocidental, invade com imagens os ncana).
quadros de alguns pintores surrealistas do século XX. Por sua - Igualmente na arquitetura realiza-se o desconstrucionis-
parte, a pintura abstrata será a epifania da revolução artísti- mo. No desenho dos edifícios que parecem se elevar e ao
ca: nada conhecido aparecerá ali, de modo que a imagina-
' Chamaram de "cadáveres extraordinários" aos poemas feitos por várias
ção e as sensações puramente estéticas do espectador serão
pessoas que iam agregando versos sem terem visto os anteriores, de
liberadas. Experimentam-se também, novas formas de arte . modo que ao se apresentar o poema total, era um produto que, mesmo
que apontam para a autodestruição: a arte feita nas calçadas s, que muito possivelmente belo, dificilmente descreveria uma realidade
das ruas (como desenhos que o vento leva); ou bem ela- aparente, que não teria conexão com a lógica do racionalismo cons-
. ciente. "Aproximações insólitas" eram precisamente aquelas que não
Age of Fear), hoje de moda — mesmo que esse livro tenha sido escrito,. T. apareciam logicamente organizadas no espaço exterior; o exemplo foi
certamente, em outros termos, (ver Beck, Ulrich, World risk society, a expressão do Conde de Leautréamont referida a algo que era: "belo
Cambridge, Polity, 1999; Idem, La sociedad dei riesgo: hacia una nueva como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação de uma má-
modernidad, Barcelona, Paidós, 1998). quina de costura e um guarda-chuva".

305
304


mesmo tempo, estão a ponto de cair: o estável aparenta co- Como tudo isso é visto na Criminologia? Enfoques
meçar a desestabilizar-se. e propostas
Na música dodecafônica se impõem novas escalas, no- Na Sociologia surgem o Construcionismo Social e o In-
vas notas surgem, e a melodia se desvia dos canais tradicio- teracionismo Simbólico. Isto é, a relatividade aplicada aos
nais. Os ruídos adquirem a categoria de som e se incorporam valores da vida cotidiana. junto a essas disciplinas surgirá
às novas estéticas. O jazz penetra no gosto do intelectual de uma nova Criminologia, com um afã multidisciplinar, em
vanguarda, pois significa uma quebra da melodia conven- princípio, contestatória e incorporará filosofia, história, se-
cional e a exibição da improvisação como liberação do sub- miologia, epistemologia, ciência política e crítica jurídica.
consciente. De fato, a chamada "nota azul" do jazz está fora Na Política Criminal, por exemplo, em matéria correcional
do pentagrama conhecido. Ao mesmo tempo, no campo da de prevenção, tende-se a eliminar a burocratização e se
chamada música clássica, aparecem impressionistas como• incorporam o participativo e o comunitário. Aparece o abo-
Debussy e outros mais modernos como Stravinsky, que pa- licionismo, espécie de bomba atômica contra as instituições,
recem revolucionar as harmonias tradicionais. Vemos, pois, de cujo iceberg gigantesco ainda não vimos a base. Ante
como do romanticismo musical — totalmente apegado aos fracasso proclamado dos sistemas de tratamento e da fi-
sentimentos mais conhecidos do ser humano (o amor, a nalidade das penas ("nada funciona", como afirma a Cri-
dor, a liberdade, a depressão, a alegria) — passa-se à música minologia Avaliativa), a nova Criminologia volta seu olhar
totalmente abstrata, à desarmonia, e à música cibernética. para outra parte. Olha para fora do sistema penal, em busca
de soluções, respostas talvez, ainda que se saiba que serão
Na Psicologia reivindica-se o valor da Criança criativa
sempre provisionais, relacionadas com o abolicionismo ou
frente ao Pai ou Adulto censor e normativo.
outras alternativas.
E até na Medicina, que é precisamente o centro do den-.
Nesse ponto, a Anticriminologia, como descrevemos
tificismo, começa-se a falar de curas por meio das flores, de
em outro capítulo deste livro, encontra-se com a Antipsi-
terapias aromáticas, da energia das pedras, de cura por meio.
quiatria.
de produtos da natureza e outros não fabricados em labora-
tórios. O olhar se volta para formas terapêuticas de culturas No âmbito da política, da filosofia e da sociologia, o
que foram marginalizadas pela chamada civilização ocidenj século XIX foi o apogeu do individual e da liberdade°. Por
tal. O esotérico, pois, entra na moda. outro lado, o século XX culmina sob o signo do social, do
participativo e do coletivo; sob o signo da igualdade e — ain-
Contra a extrarracionalidade de inícios do século •
(denominada Modernidade) e que incorporara o Cientificis- Maud Manonni, psicanalista, educadora, criminóloga, realizando ana-
mo e o Positivismo, e também viram nascer muitos regimes logias com a Antipsiquiatria, mostra que a educação se encontra obs-
taculizada pelo peso das estruturas hierárquicas e burocráticas. Que
autocráticos que se ergueram como símbolo de uma Ver-
problema não é doutrinal, e que a educação tem que inventar-se
dade Absoluta, surgirão o pensamento laxo (fight) e outras reinventar-se em cada momento na experiência prática. Filósofos,
facetas do que se chamou Pós-modernismo. jus-humanistas, juristas e teólogos discutem sobre a Ordem e a des-
-Ordem. O Direito produz desordem na ordem natural das coisas?

307
306
da que pareça paradoxal — também do "direito a ser dife- mos com um panorama que tem como denominador comum
rente". Este é o princípio fundador da não discriminação, e, a negação do estabelecido ou do formalizado. O que pode-
certamente, da democracia. ríamos considerar como uma desestruturação do panorama
No âmbito dos Direitos Humanos surgiram os chamados habitual.
Direitos Humanos Sociais e de Terceira Geração e o Direito É certo que, em muitos casos, as cúpulas e ideologias
dos Povos. E a humanidade se conscientizou da importância tradicionais seguem mantendo suas estruturas de Poder. Es-
da preservação ambiental, patrimônio de todos. pecialmente em alguns âmbitos culturais que estão altamente
À sua maneira, pois, o século XX é o século do antiauto- envolvidos com alguma forma ou benefício do poder político
ritarismo. Não porque os autoritarismos não existissem, mas _ como é o caso da Criminologia —, elas permanecerão com
porque são fortemente combatidos. Nesse período, os regi- uma capacidade de difusão cada vez mais ampla, e a tradicio-
mes políticos montados sobre teorias que se apresentavam nal cultura de massas absorverá suas reivindicações como se
fossem a única verdade, que é o caso do Positivismo.
indiscutíveis também foram derrocados. É o caso da queda
do Muro de Berlim, da dissolução da União Soviética, e do Então estaremos na presença do que se chama mid
redimensionamento dos Estados existentes, que se desmem- Can ou cultura popular. A cultura popular não é totalmente
braram para restaurar os antigos Estados Nação e regressar a endógena e geralmente é pré-construída. É bem recebida
suas culturas (histórias, religiões, tradições) originais. porque representa interesses subliminares do poder e porque
O direito a ser diferente, então, demandará das conside- se encaixa ao pensamento pré-moderno e a arquétipos (sen-
timentos arcaicos).
rações de instituições controladoras à parte do Poder Execu-
tivo, como o Poder Judicial, cuja autonomia se considerará O tradicional em Criminologia é bem recebido pelas
um novo Direito Humano. massas. O tema do delinquente é intensamente emotivo.
Existem aí, coisas tão diferentes às apregoadas pela Era de
Vemos como, em todos esses casos, ao mesmo tempo
Aquário, como a ordem, o sentimento vindicativo e o auto-
que se construiu um novo discurso, destruiu-se o anterior. E,
ritarismo. Ainda hoje, os resultados de enquetes para medir
por sua vez, esse novo discurso será também defenestrado.
reações frente ao castigo, a tortura e a pena de morte reme-
O que parece não ser aceita de nenhuma maneira nesse
moram às épocas em que as massas, entusiasmadas, se sen-
século é a Ordem, tão cara a Augusto Comte e ao Positivismo.
tavam para presenciar o espetáculo das execuções.
Tudo o que se fez no século foi negar as ideias de Comte: o Pro-
Explicaremos, mais adiante, que fenômeno político se
gresso, em vez de seguir a Ordem — como consequência dela
associará ao século XXI, que, como um chamado ao sub-
—, foi considerado o resultado da Des-ordem. A extrema racio-
consciente coletivo, hoje parece refletir-se no império do
nalização é Ordem. A Ordem é dominação. E é contra isso que
Medo, do Risco e da Insegurança. Não obstante, a insubor-
vai se produzindo uma insurreição em quase todas as ordens da
dinação frente ao pensamento ultrarracional e incumbência
expressão humana, e em parte também, na institucional.
de respeitar a ética e o transcendente trouxeram um ar fres-
Ao realizar uma apresentação superficial — apesar da
co: a Antítese, que logo deveria se converter em Síntese.
banalização e do reducionismo que isto traz —, nos depara-

309
308
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Um resumo do que explicamos até aqui, pode ser visto discurso filosófico contemporâneo: o Pós-modernismo e a
mais sucintamente nos quadros abaixo: preeminência da razão prática ou moral frente à razão tec-
Alt.tt4“:"r"Itivtftt109.P.ititattttit';:taf.ric:rttirrtit
,ft:•5$-
Séculor.-X»enStaiirou1novas,. tteVolücqe
-nológA Criminologia
iminologia Crítica foi muito influenciada pela filo-
Sofia da chamada Escola de Frankfurt. A Teoria Crítica desta
4.ÉScola é Teoria Negativa porque é uma Crítica ao Positiv.
it mo, que é Teoria Positiva. O "domo se conhece" é conside-
rado fundamental. Nem todo conhecimento está baseado na
»ciência. Portanto, o Positivismo será considerado opressor,
pois substitui a teoria do Conhecimento por uma Teoria da
.t.:Ciência, a qual não parece aplicável à variedade e movi-
menos dos fenômenos sociológicos e históricos cOntempo-
€'2rrâneos.
O Marxismo faz crítica econômica. Já a Escola de Frank-
Jun, integrada por prestigiosos filósofos alemães (Marcuse,
- .á
.rFromm, Horkheimer, H_abermas, alguns com vinculação a
çategorias da Psicanálise), não obstante seus fundamentos
briginários —marxistas não ortodoxos — realiza, na verdade,
.•crítica cultural ou crítica da ideologia. Dal que vem a ex-
pressão "Teoria Crítica", que vai se opor à expressão "Teoria
7 Convencional".
A Teoria Crítica ganha força em um período denomi-
nado de modernidade tardia, também denominado capita-
O'
A Criminologia Crítica e a Escola de Frankfurt:' lismo tardio, já •não é a época do marxismo original que
antiautoritarismo focaliza o nascimento dos processos de industrialização e de
Vimos, pois, como se expandem as tendências antiau- acumulação de capital através de mais valias agregadas ao
toritárias em diversos campos. A tendência filosófica mais Wobjeto produzido. A sociedade, com o tempo, se -faz mais
significativa esteve representada pela chamada Escola de tomplexa. Surge a que logo se chamou revolução comuni-
tc.
Frankfurt. Ao nos falar criticamente da cultura de massas é tacional (e com ela o conceito de "aldeia global"). Nasce a
do medo à liberdade, esta Escola parece privilegiar a liber7. ,informática. As economias se tornam transnacionais, globa-
dade extrema e, de novo,.o individualismo. lizadas e são fundamentalmente financeiras. A riqueza não
Ao se favorecer uma possível 'tendência anárquica será considerada produto de mais valias, mas de uma série
também se abre o caminho a dois elementos presentes nórt- muito complexa de jogos financeiros e mecanismos de or-

311
310
ganismos nacionais e internacionais. O dinheiro em espécie Digamos que essa Crítica Criminológica teria atualmen-
dá passagem a papéis: documentos, ações, títulos-valores, te, segundo os trabalhos críticos que foram aparecendo, e a
instrumentos de crédito; e ao manejo das Bolsas mundiais, nosso entender, um Decálogos:
isto é, o que se denominou uma economia JIT (Just in Time): 0 respeito à importância do imperativo jus-humanis-
que seria o benefício de estar no lugar certo na hora certa ta, tanto no Direito quanto no exercício de suas insti-
para investir. Esta seria a forma priorizada e mais produtiva tuições6;
da acumulação de capital neste tempo.
(y. A dúvida metódica sobre o poder e seu exercício, a
Não obstante, Hegel segue na base da Teoria Crítica a dizer
liberação das relações ocultas de poder e o funciona-
que sob uma aparência de harmonia e ordem, e de um suposto mento dissimulado dos interesses;
intercâmbio de equivalentes, uma essência de miséria, corrup-
ção e injustiça estava oculta. A questão continua sendo ética. Q. A necessidade de que a crítica seja consistente e
permanente em qualquer cenário social, ideológico ou
Horkheimer diz que a razão instrumentaLou-técnica_é
político;
a razão do Positivismo, ,Çrri que as técnicas de pesquisa são
um fim em si mesmo, enquanto que a rizão_prática ou moral 413 objetivo de que todos os seres humanos sejam
se interessa pelos fins: o injusto e o justo; a vida e a morte; compreendidos em função de sua realização total, sem
a felicidade e a infelicidade. De modo que, a reivindicação marginações e no exercício possível da felicidade;
da razão moral implica em uma revalorização do humano
(DO entendimento dos seres humanos como iguais,
— isto é, da ética —, por um lado; e por outro, do essencial ainda que sejam diferentes. Aceitar seu necessário direi-
frente ao superficial ou aparente (o que vulgarmente poderia to de serem tratados de maneira que produza igualdade
denominar-se "as mentiras"). O tecnológico e a ciência, en-
significará, precisamente, o reconhecimento da diversi-
tão, transformam-se em pensamento rígido.
dade. E que "os diferentes" possam tornar-se uma maio-
A Escola de Frankfurt nos fala, pela primeira vez, da pos- ria significativa frente a quem emite a lei, aos valores
sibilidade de que as teorias, ao estagnarem, assumam uma impostos e ao permitido. Este ponto é a bússola para
atitude autoritária. Em consequência, postula-se que a função saber em qual lado estão os diferentes (se do lado do
da teoria é a de desmascarar todo tipo de legitimação ideoló- poder ou do lado dos submissos).
gica e de exigir uma discussão racional de toda relação fática
Se ser diferente é somente o produto de uma etiqueta
de poder. O poder, pois, senta-se no banco dos réus, como já
de normalidade, então o diferente não deve estar sujeito às
vimos na Criminologia Radical. A ela se chegava através do
características do etiquetamento'.
compromisso social, mesmo que nunca se apontou pelo peri-
go dos autoritarismos derivados. Outro elemento da Escola de
Frankfurt é a consideração de que a prática teórica é transfor- Segundo Lectio Doctoralis de Aniyar de Castro, Lola, na Universidad
madora, o que equivale a dizer que construir conhecimento é Nacional de San Martín, Buenos Aires, agosto de 2012.
potencialmente construir mudanças. Aniyar de Castro, Lola, Criminología de los Derechos Humanos..., op. cit.
Ibidem.

313
312
Criminologia Critica e Pós-modernidade
C6)0 dever de desmascarar toda legitimação ideológica
dás instituições de Lei e Ordem; Se a modernidade esteve constituída por dois extremos
7.)A discussão de toda relação fática de poder; que com frequência se tocaram, o Positivismo e o Marxismo
— e sua extrema aspiração à racionalidade — o novo momen-
. O antiautoritarismo e a denúncia "do medo à liber-
C: ade" apontados por Fromm;
C99 A favor da autocrítica (pensamento laxo, aberto), do
to histórico, que se denominou pós-modernismo ou pós-mo-
dernidade, como vimos, estimulou o pensamento flexível ou
laxo frente ao pensamento rígido.
ar mais oxigenado dos tempos, para que nem sequer a
No nosso entender — como se pode ver, seguindo os tra-
crítica fique atorada no devir histórico, e contra o air du
ços descritivos do pós-modernismo, tal como se resume nos
temps, que pode ser regressivo;
quadros a seguir—, a Criminologia Crítica é Pós-moderna:
10)A rejeição do poder vertical e centralizado, junto à
atitude vigilante de suas tendências a capilarizar-se me-
diante a invasão total dos 'espaços privados cotidianos. MODÉRN IDADE PÓS-MODERNIDADE

Portanto, abarca igualmente uma Teoria Crítica do con-


trole social inforr universb.disciplinar_f_ou_cauitianD_S Hegemonia da Razão Espaço para a Intuição
do panóptico de uma sociedade levada a se csauterlw
uma instituição, a maior e mais invasiva, de controle total,
i a todo o espaço planetário por meio da moda Secularização Religiosidade
que se e—s-tê-r—d
da globalização; essa que parece hoje cambaleante por con-
ta das fortes oposições populares. Centralidade do discurso Pluralidade de saberes
A Criminologia da Libertação
Na década de 1980 a chamamos de Criminologia da Li- Científico-técnico Pensamento laxo
bertação8. Libertação das estruturas opressivas, com o objetivo
de acabar com a ocultação das relações de poder e do fun-
cionamento dissimulado dos interesses; do discurso educativo, Noções e miniconceitos Ideias-força
religioso, artístico, jurídico e criminológico; e daquela razão
tecnológica que postulava um conceito artificial de desenvol-
vimento para a América Latina. Interessava-nos — e ainda nos
Desconstrução
interessa — a crítica cultural, porque a uniformidade, como se História
Pós-estru uralismo
disse, é autoritária. Assim, tentou-se caminhar ao lado de todos Sujeito
Contingência
aqueles, que na América Latina, reivindicavam a libertação. Progresso
Pensamento pós-dialético

e Ver Aniyar de Castro, Lola, Criminologia de Ia Liberación, op. cit.

315
314
- _
. . ,

MODERNIDADE . P:OS-MODERN IDADE Desde o ponto de vista da gestão política, privilegiam-se,


na segunda coluna, novos conceitos:

_
Sociedade dominada por: Planificação Não desenvolvimento

_ _
Racionalidade Empatia, sociabilidade Democracia Governabilidade

Estrutura mecânica Estrutura complexa/orgânica Globalidade Localidade

Organização funcional Massa/pessoas


Desenvolvimento Desenvolvimento Sustentável

Agrupamentos contratuais Agrupamentos afetivos


Despotismo/Verticalidade Horizontalidade

Identidade Identificações
Cultura domina a natureza Natureza e Cultura

O mundo é: Futuro Presente (o aqui e agora)

Organizado Complexo
Predomínio do/da:

Certo Incerto
Masculino Feminino

Linear Estocástico
Coletivo Subjetividade

Previsível Caótico
Competição Tolerância, Cooperação

Em equilíbrio Virtual

317
316
,i,• pl r
j .,.,__. ,,.: ,

Disciplinaridade Transdisciplinaridade CAPÍTULO XVI

Reducionismo Holismo AINDA A ANTÍTESE


A CRIMINOLOGIA DO CONTROLE SOCIAL (III)
Tudo isso pode ser visto com clareza também, no q& f; introdução. A Nova Criminologia latino-americana, o am-
foram as Políticas Criminais democráticas, inclusive as biente acadêmico, histórico e político onde surgiu. Seu
nais, tal como foram apareCendo na literatura criminológicá ±51( início e posteriores desenvolvimentos. O Direito e a Lei.
da época, incluídos os aportes da Escola Italiana de Crimi't Ditaduras e Democracia. Os grupos latino-americanos de
nologia Crítica ou das revistas La Questione Criminale e Dei Criminologia Comparada e Criminologia Crítica. As pes-
quisas, debates, discussões e propostas. Criminologias do
Delitti e delle Pene.
primeiro e terceiro mundo. O projeto de investigação com-
'parada sobre Sistemas Penais latino-americanos e Direitos
Humanos. Criminologia Crítica e Direito Penal Crítico.

Rityli,Npepe bfe, ÇRI MI ÇA-.:;11'.,:4 MAM RICNrEATINATty-

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...e.'Efuisas;fundà`rheritaiS

318
O ambiente onde surgiu a nova Criminologia la-
Introdução
tino-americana
Referir-nos-emos aqui, a dois grandes movimentos da Cri-
minologia Crítica dos anos 1970 e 1980: a criminologia latino- Qual era o ambiente acadêmico, histórico e político
-americana (a partir de 1974), e a europeia, com enfoque fun- para o despertar de uma Criminologia de outro corte na
damentalmente na italiana (a partir de 1975). Ambas nasceram América Latina?
de formas diferentes, mas se desenvolveram em tempos simila- çi) No âmbito acadêmico, traduções feitas por Rosa dei
res e pertenceram a um marco cultural e ideológico parecido, Olmo, seus cursos, e o livro Criminologia de Ia Reacci-
ainda que as condições políticas sociais fossem divergentes. 6n Social, de Lola Aniyar, abriram o caminho para no-
Sendo assim, suas reflexões estiveram centradas em dois vos desenvolvimentos teóricos. Havia um movimenta-
espaços geográficos e circunstâncias locais muito distintos, do ambiente internacional no âmbito acadêmico, tanto
que demarcaram com grande intensidade seus interesses: a na Europa quanto nos Estados Unidos. E começou a se
italiana, com naturais vinculações europeias, deu ênfase à tecer relações com investigadores de outros países em
Filosofia, Política Criminal e Dogmática; e a nova Crimi- Congressos internacionais, onde se confrontavam as po-
nologia latino-americana, castigada por guerras internas e sições convencionais com as dissidentes ou que repre-
ditaduras e manchada por diferentes tipos de abuso de poder sentavam realidades discordantes. Assim, já nas sessões
e pela cópia de modelos não adequados ao nosso entorno do Congresso Internacional de Defesa Social, realizado
concreto (caracterizado pela violência, a marginalidade e os em Caracas, em 1976, a equipe venezuelana interveio
ao questionar a diferença entre o conceito de margi-
delitos econômicos).
nalidade na Europa (o Programa do Congresso incluía
Em capítulo anterior, referente ao Positivismo, descre-
somente menores de idade e mulheres) e na América
vemos os nomes dos livros e citamos os autores do que foi
Latina (exclusão ou pobreza);
historicamente a Criminologia Positivista latino-americana',
a qual, sem dúvida, foi produto da transnacionalização do g A América Latina, além disso, nas décadas dos anos
1960 e 1970, se encontrava convulsionada por aconte-
conhecimento criminológico daquela época.
cimentos obscuros: ditaduras no Cone Sul (Argentina,
Muitos desses livros datam de fins do século XIX ou
Chile, Uruguai, Brasil); e enfrentamentos sangrentos e
princípios do século XX (1888, 1897, 1898 e 1918). A Cri-
contestações políticas que chegaram a ter caracterís-
minologia latino-americana da época foi causal- explicativa,
ticas de Guerra Civil na América Central (Nicarágua,
centrada no homem ou em aspectos pontuais da sociedade
El Salvador, Guatemala). Essa situação, abonada pelas
considerados "criminógenos"; não questionava as definições
experiências do exílio de intelectuais dos países opri-
legais, e, portanto, se orientava pelas diretrizes dos Códigos
midos, que tiveram acolhida em Universidades latino-
Penais; era frequentemente racista e, logicamente, classista.
-americanas, especialmente no México e na Venezuela,
Se houve alguma pesquisa, ela foi penitenciária.
impulsionou o interesse de juristas e criminologos pela
Ciência Política, a liberdade, a democracia, a justiça,
Ver o copttulo 9, HA uma versào em português, Crirninologia da ROA-

Olo Social, Rlo do janeiro, Forense, 1983.

321
320

11
a exclusão, as repressões — Isto é, o controle social — e nal: o caudilhismo, fenômeno que, com algumas nuances,
pelo sangue derramado em grande parte do nosso terri- ainda parece permear nosso panorama político. Mesmo
tório latino=americano, que era muito mais abundante que América Latina, graças a eles, tenha se convertido em
que o sangue ocasionado pela delinquência comum; uma espécie de centro do "realismo mágico" — o que al-
guns chamavam de "real maravilhoso" —, pois tudo ali pa-
De modo que, poderíamos dizer que a seletividade
9o controle social formal (contra uns, sim e contra ou-
recia cinematograficamente surrealista, a realidade social
e política da nossa região, que não tinha nada de mágico
tros, não), que sempre existiu, se converteu no centro
nem de maravilhoso, tomou corpo na cultura internacio-
das preocupações continentais;
nal em virtude desse movimento literário;
As contestações dos anos 1970 nos Estados Unidos
Somente alguns países tinham nessa época cáte-
e na Europa tiveram seus reflexos no nosso continente,
dras ou institutos de Criminologia: Colômbia, México,
junto ao início da epifania dos sistemas de comunicação;
,---, Panamá e Venezuela tinham instituições dedicadas à
(S.NO crescimento das esquerdas teve influências tan- docência ou à pesquisa em Criminologia (no Equador
\o)na teologia quanto na filosofia latino-americanas'. havia um Instituto de Criminologia Clínica no ambiente
As ditaduras da região eram mais de caráter ideológico penitenciário). Colômbia, México e Venezuela° tinham
que social ou de interesse crematístico. Por isso, se carac- várias Universidades e Institutos trabalhando autonoma-
terizaram por uma dureza e uma destruição inusitadas; mente na matéria. Não obstante, em sua maioria, esta-
6. Eram os anos do que se denominou "boom" literário vam todos dentro de Faculdades e Escolas de Direito.
latino-americano. Escritores de quase todos os países, Isso, talvez, orientou nossas inquietudes, mais adiante,
Cortázar, Carda Márquez, Carpentier, Vargas Llosa, sobre o controle social;
Benedetti, Donos°, Roa Bastos, Sabato, Onetti, Lezama
Lima, por citar somente alguns poucos, colocaram a Amé-
QD
3. O surgimento das contraculturas, e seus questiona-
mentos culturais, sociais, juvenis, musicais, dos anos
rica Latina, o Idioma espanhol e o tema de seus regimes 1970, que foi tão importante em outras latitudes, tam-
autoritários, alguns rurais, alguns ideológicos (todos ter- bém ocorreu na América Latina. De fato, nesses anos
ríveis), em voga. Seus livros foram traduzidos e publica- estava-se autoritariamente fechando a Escola de Crimi-
dos em diferentes línguas. Muitos deles, nAo sabemos se nologia da Universidade de Berkeley, na Califórnia, por
de comum acordo, escreveram novelas sobre ditadores'. seu ativismo contestatório;
Parecia uni reflexo cultural de um fenômeno muito regio-
9. O esotérico também entrou na moda. O tema das
2 Surgem movimento como n Teologia da Libertaçno; a Filosofia da rogas, visto desde a América latina, lugar de produ-
Libertnetio; a Pedagogia do Oprimido; e em Criminologia, de Lola ção, foi enfocado politicamente;
Anlynr, Criminologla de Liberta*.
O outono do patriarca (Gabriel Careta Mnrquez); O recurso do omito- A Venezuela tinha vários centros e institutos de pesquisa em Universi-
do (Alejo Carpentierk Eu o Supremo (Ron Bastos), Conversa na Cate- dades Autônomas: a Universidad Central de Venezuela, em Caracas;
dral (Mario Varges Um); Oficio de defuntos (Arturo Usler Meei); O a Universidad dei Zulia, em Maracaibo; a Universidad de Carabobo,
Senhor Presidente (Miguel Angel Muno), Por exemplo. em Valencia; a Universidad de los Andes, em Mérida.

323
322
foi fundamental para manter a vigência espiritual dos Direitos
Houve também influência do movimento deno-
g. Humanos. A tarefa de solicitar e resguardar os Habeas Corpus
minado "maio francês" de 1968, e de suas consignas
dos desaparecidos, por exemplo, facilitou os juízos posterio-
libertárias como o "é proibido proibir", movimento
res sobre os responsáveis por delitos contra a humanidade.
que tinha sido encabeçado por figuras intelectuais de
O axioma tem sentido se pensa-se na utilidade ou fun-
prestígio internacional, como 1. P. Sartre e H. Marcuse,
ção política de ambos os espaços de conhecimento (Direito
qual incidiu igualmente em atividades relacionadas
e Criminologia). A tradição autonômica das universidades
com a reforma universitária e a crítica aos programas de
latino-americanas, nos países onde foi mantida, facilitou a
formação profissional nas Faculdades de Direito. Esse
irrupção de uma criminologia insubordinada frente ao passa-
foi, pelo menos, o caso da Venezuela.
do acadêmico anterior. O Direito Penal é a Ordem, a Crimi-
O Direito e a Lei. Ditaduras e Democracia nologia livre podia ser uma forma de des-ordem.
Tudo isso conduziu a um axioma que, nestes lares, ti-
O movimento crítico latino-americano
nha fundamentos de veracidade: "Em países sob ditadura se
Em 1973 a Sociedade Internacional de Criminologia
desenvolve o Direito Penal, enquanto que nos países com
encomendou ao Instituto de Criminologia da Universidad
democracia se desenvolvia a Criminologia"5. Especialmente
dei Zulia a organização de um curso internacional de crimi-
Direito Penal autoritário ou defensivo, no primeiro caso; e
nologia. O tema "violência" foi o selecionado.
a Criminologia crítica no último. já que a Criminologia tradi-
cional se ocuparia, como sempre, de ratificar os estereótipos Os antecedentes que citamos anteriormente deveriam ser
amplamente abordados no curso. Para esse evento, realizado
legais. em Maracaibo, foram convidados e participaram como con-
Cada sistema ditatorial se legitima em leis que lhe são
que a Lei. Como ferencistas, os mais destacados intelectuais de todas as ten-
favoráveis. Por isso, o Direito é algo mais dências criminológicas do momento: Jean Pinatel, que era o
dissemos, o Direito são princípios, geralmente de categoria
presidente da Sociedade Internacional de Criminologia, cuja
constitucional e preferivelmente supraconstitucional, e está
teoria centralmente apresentada e sustentada era a da "perso-
vinculado à concepção universal dos Direitos Humanos. As
nalidade criminosa", mesmo que posteriormente descreves-
leis, por outro lado, são regras, limitações ao Direito. De fato,
se a Sociedade Criminógena, a qual repassa à sociedade os
Lei é quase qualquer coisa que ocorra aos legisladores da vez.
elementos de sua teoria da personalidade criminosa', Denis
Por isso, Baratta afirmou, em certa ocasião, que para respeitar
Szabo, diretor do Centro Internacional de Criminologia Com-
Estado de Direito em regimes autocráticos havia que violar
parada da Universidade de Montreal, cuja tendência essen-
Direito (supomos que se referia às leis). Hitler, por exem-
. Na Argentina, durante cial era a Criminologia Organizacional; Karl. O. Christiansen,
plo, tinha juristas e leis auspiciosos6 investigador dinamarquês que realizara o mais amplo estudo
a ditadura, o trabalho dos juristas democráticos na resistência
conhecido
, até então sobre os gêmeos univitelinos, à procura
,de uma explicação genética da delinquência; Severin-Carlos
5
A frase é de Emilio Carda Méndez.
Um desses juristas foi o penalista Mezger, apoiador ideológico do na-
zismo por meio do Direito Penal, descoberto por uma pesquisa de Egoísmo, agressividade, instabilidade, indiferença afetiva.
Francisco Murioz Conde, em um trabalho relativamente recente.
325

324
Versele, criminólogo belga, que havia e setores marginalizados contra a discriminação (mulheres e
cunhado o termo "cifras douradas da negros, entre outros).
delinquência", para se referir à obs- Basaglia disse, ao final, que "em Maracaibo, a velha
curidade estadística dos crimes de co- Criminologia havia morrido e que uma ciência alternativa
larinho branco; Franco Basaglia, co- abria passagem para visualizar o homem em uma dimensão
nhecido antipsiquiatra critico italiano, humana".
que mencionamos neste manual, autor Apartir de então, começou a visualizar-se na nossa re-
de La mayoría desviada; Nils Chris- gião que a Criminologia era uma área de conhecimento po-
de, abolicionista, cuja concepção de lítico.
"poder como poder de definir" ainda Luis Rodrígues Manzanera rente à Tese positivista, havia se instalado a Antítese.
nos guia; Stanley Cohen (cujos livros Grupo latinoamericano
O significado desse curso, com matizes próprios de uma
do momento e os atuais foram chaves
criminologia radical, que teria na América Latina as cores e
na construção de uma visão alternativa da Criminologia) e
ás dores dos países aos quais se denominavam, então, eufe-
Shlomo Shoham, ambos importantes figuras da Criminologia
misticamente, "em vias de desenvolvimento" — hoje chama-
Crítica em língua inglesa; Philippe Robert, da França; Wolf
dos "emergentes" — foi, não só uma maneira particularmente
Middendorf da Alemanha; Katalyn Gonczol, na Hungria,
politizada de se abordar o tema da violência, tanto em sua
que naquele momento, se encontrava atrás da cortina de fer-
definição quanto em suas características institucionais e insti-
ro; e Vasile Stanciu, da Romênia, mas radicado na França e
tucionalizadas (o que podia se esperar pela época na qual se
especializado no tema do terrorismo. Também criminólogos
realizou e pelos antecedentes mencionados), mas também, a
latino-americanos, como Luis Rodriguez Manzanera, do Mé-
necessidade que emergiu de aglutinar um grupo de pesqui-
xico; Luis Marco dei Pont, da Argentina; Guillermo Monzón
sadores, com qualquer tipo de formação afim, que pudesse
Paz da Guatemala e Hernando Rosero Cuevas, do Equador.
continuar uma tarefa que apenas começava naquele evento.
A estes, somaram-se, certamente, múltiplas apresentações de
criminólogos e comunicadores venezuelanos, como José Luis O grupo latino-americano de criminologia
Vethencourt, Francisco Canestri, Rosa dei Olmo, Héctor Nie- comparada
ves, Luis Gerardo Gabaldón, que aparecem resenhadas nos
Ficou acordado que o Centro de Investigações da Uni-
dois volumes publicados sobre o curso8.
versidad dei Zulia formaria e coordenaria um grupo de pes-
Desse curso surgiu também uma carta de protesto ante quisa comparada regional. O Centro Internacional de Crimi-
a Universidade de Berkeley, na Califórnia, contra o fecha- nologia Comparada, na pessoa de seu Diretor Denis Szabo,
mento da Escola de Criminologia por causa de suas publica- manifestou o interesse em promover suas tarefas, à maneira
ções e das manifestações de rua de professores, estudantes como o fazia em outras partes do mundo: dando impulso
à pesquisa comparada. Esse apoio institucional, totalmente
° Ver Aniyar de Castro, Lola e Tineo, Audelina (comps.), Los rostros de respeitoso, pois não influiu em nada nas decisões, hipóteses,
op. cit.
Ia violencia,

327
326
deu — e este foi o verdadeiro milagre — um conhecimento e
análises ou conclusões de nossos projetos, facilitou o finan-
um contato direto com fenômenos muito fortes e variados
ciamento de pesquisas e seminários anuais em Universida-
em um subcontinente que, como descobrimos caso a caso,
des Latino-americanas.
tinha mais semelhanças que diferençasu.
Começa, então, a primeira tarefa: a busca por docentes
Paralelamente, o Instituto Latino-Americano das Nações
ou pesquisadores latino-americanos que gostariam de conti-
Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento da Delin-
nuar pesquisando sobre o tema da violência. A partir do Ins-
quência (ILANUD), com sede na Costa Rica, cedeu pesquisa-
tituto de Criminologia da Universidad dei Zulia em Maracai-
dores e suporte a temas que documentavam sobre suas pró-
bo, essa busca foi sendo feita de país em país, até conformar
prias experiências. Foi particularmente interessante a ativação
um grupo integrado por aqueles pesquisadores ou docentes
crítica que lhe foi dada por seu Diretor, Elías Carranza.
de lugares onde existiam universidades livres, ou onde se
trabalhasse a disciplina criminológica, além de professores Houve seminários em Quito, Lima; várias vezes na Co-
de Direito Penal (que para a maioria, a Criminologia não lômbia (Bogotá, Medellín, San Andrés, Cali); diversos ou-
existia ainda como atividade acadêmica) que participaram tros na Venezuela (Valencia, Maracaibo, Puerto La Cruz);
como estudantes de suas respectivas cátedras°. no Brasil; duas vezes no México (na UAM, na Sociedade
Mexicana de Criminologia e pesquisadores do INACIPE); e
Assim, começa uma peregrinação de norte a sul em
na Bolívia, Porto Rico, Nicarágua, Costa Rica e Cuba, para
nossa região latino-americana (nessa época o Sul não era
apresentação e debate dos resultados dos projetos elabora-
muito acessível por conta das ditaduras presentes, então,
dos por equipes docentes ou de pes-
desses países foram incorporados pesquisadores exilados,
quisa dos países membros.
como foi o caso da Argentina, Chile e Uruguai, muitos dos
quais foram incorporados como professores em universida- A cada evento (que às vezes coin-
des venezuelanas)' °, em seminários que foram sendo feitos cidia com alguns sobre Criminologia
ano após ano, promovidos pelas universidades latino-ameri- Comparada dos países do Caribe, or-
canas que puderam fazê-lo, e que, com três grandes projetos ganizados pelo Centro de Pesquisas
comparados (violência, crime de colarinho branco e con- Comparadas da Universidade de Mon-
trole social na América Latina), durante dezesseis anos, nos treal), íamos conhecendo em primei-
ra mão, através dos pesquisadores,
9
O Grupo permanece ativo há vários anos, inicialmente Sob a coorde- as tragédias, as guerras e as agressões
Vias Carranza, ILANUD
nação de Lola Aniyar de Castro, do Instituto da Universidad dei Zulia,
nos primeiros quinze anos, e em seguida, foi coordenado por Luis II
A descrição em detalhes desses movimentos, projetos e alguns tra-
Rodriguez Manzanera, do México. balhos, encontram-se em Aniyar de Castro, Lola, Criminologia da li-
'° A dispersão dos intelectuais desses países, já sem apoio acadêmico, bertação (Editora Revan, Rio de Janeiro), op. cit. Especialmente no
salvo os que estavam em universidades venezuelanas, mas sem o po- Capitulo "A História não contada da Criminologia Latinoamericana".
der suficiente para organizar suas próprias equipes de pesquisa, im- Muito disso se encontra na revista Capitulo Criminológico, do Instituto
pediu uma participação mais ampla nesse Grupo, com exceção do de Criminologia da Universidad dei Zulia, em Maracaibo, a qual, cria-
argentino Luis Marco dei Pont, que contava com o apoio da UAM no da em 1973, cumpriu quarenta anos de publicação em 2013, a mais
México, a qual promoveu a reunião de Azcapozalco, onde se aprovou antiga revista criminológica ainda com presença na região.
o Primeiro Manifesto do Grupo Critico Latino-Americano.
329
328
(como no caso do Panamá) que às vezes não eram apresen- movimento de pesquisadores fez tan-
tadas apropriadamente pelos meios de comunicaçãon. Esse to ruído que especialistas europeus
_ como Baratta, Pavarini, Hulsman,
11
Os Grupos de cada país foram dirigidos por juristas que logo se torna- argentinos no exílio espanhol, como
ram criminólogos ou funcionários de alta hierarquia institucional: como
Enrique Bacigalupo e Roberto Ber-
Enrique Castillo e sua equipe de lúcidos estudantes da Costa Rica — hoje
excelentes profissionais —, como.Anaata e Sonia Navarro; Al- galli (que chegou a integrar o Grupo
fonso Rem, da Universidade Externado de Bogotá, com jovens pesqui- Crítico) e alguns espanhóis, como
sadores excepcionalmente brilhantes (Emiro Sandoval, Antonio Muhoz Luis Rodriguez Ramos e Miguel Bajo
e Guillermo Villegas Duque); Nilo Batista, do Brasil, que com Vera Fernández — foram se aproximando Alfonso Reyes Echandia
Malaguti Gisálio Cerqueira,.Niziene Nader e Juarez Girino dos Santos Pie. TSi Bogotá
são o centro atual de uma criminologia brasileira de ponta (agora com
posteriormente para participar de al-
ramificações em todo o pais, com Vera Pereira de Andrade S212 _de gumas reuniões.
Carvalho e_tqli.e) [adáctila, por exemplo); Luis Marcó dei Pont, e sua O "Projeto violência" deu mais de um resultado: um
extraordinária equipe da UAM, hoje pesquisadores consagrados, como
teórico e outro sangrento. De fato, vários membros do Grupo
Augusto Sánchez, Alicia Gonzalez (México), Luis Rodriguez Manzanera
(México) e Maria de la Luz Lima, multifacetados criminólogos com uma de Pesquisa foram caindo nas mãos dos regimes autoritários:
abundante produção escrita; Carmen Antony, hoje a mais conhecida alguns morreram, como foi o caso de Guillermo Monzón
especialista em criminologia de gênero e Marcela Márctuez (Panamá); Paz e de Jorge Palacios Motta, professores da Universidade
ocasionalmente, participaram Zulita Fellini, Esteban Righi, Enrique Ba- de San Carlos de Guatemala, que foram assassinados em
cigalupo, e, especialmente, o Instituto de Pesquisas Criminológicas da
Universidad dei Zulia (Venezuela), instituição interdisciplinar, onde se
seu país logo depois de terem anunciado, em um dos se-
concentrou a totalidade de seus pesquisadores nessas linhas e projetos' minários, em Puerto La Cruz, Venezuela, que, depois do
de pesquisa, e desde onde, por dezessete anos, foram coordenados os extermínio de quatorze professores da Faculdade de Direito
Grupos Crítico e Comparado Latino-americanos: Lola Aniyar de Castro, da sua universidade, possivelmente, ao regressar, seria a vez
Francisco Delgado, Thamara Santos, Maria Angélica Jiménez, Elsa Villa
deles. E foi assim que aconteceu, tragicamente, quinze dias
López, Audelina Tineo, Gladys Tinedo, Tito Córdova M., Emilio Gar-
cia Méndez, Argenis Riera, Guillermo Ramos e Emperatriz Arreaza; aos depois. Alfonso Reyes Echandia, grande penalista e crimi-
que se juntaram Luisa Leal, Adela Carda Pirela, Jesus Enrique Párraga, nólogo, diretor do excelente Grupo de Pesquisas da Uni-
Pablo Han, Jorge Morales, Ana Victoria Parra, Gladys Sánchez e Ma- versidade Externado de Colômbia, e que era presidente da
rianela Perez. E, posteriormente, se aproximou, em importante relação Corte Suprema de Justiça da Colômbia, morreu calcinado
de colaboração reciproca, Eugenio Raúl Zaffaroni, que foi coordenador
de um grande projeto latinoamericano, promovido pelo Instituto Inte-
em um incêndio criminoso ocorrido na própria Corte em
ramericano de Direitos Humanos, sobre Direitos Humanos e Sistemas
Fernando Arnedo e Pablo Vega. Mais os de Córdoba, como Gustavo
Penais latinoamericanos, e que, à raiz dos debates sobre a Criminologia
Cosacov, e que trabalharam sob a primeira orientação de Marco dei
Critica, começa a se interessar por esse tema e se converte não só em
Pont, e em seguida, de Jorge Perano, como Inés León Barreto e Lucas
penalista crítico, mas também em um dos mais destacados criminólogos
Crisafulli. Em Mendoza estava, e está, Daniela Puebla, impulsionando
do continente. Ao redor de Zaffaroni, da Universidade de Buenos Aires
a partir de pesquisas na área de Serviço Social, um movimento crítico.
e da Universidade de Córdoba se concentra hoje, um grupo de novos
Já veremos como, na prática, o trabalho de criminólogos e penalistas
criminólogos, entre eles, Julio Virgolini, Alejandro Alagia, Rodrigo Co-
críticos foi se transformando em uma única, e às vezes complexa, di-
dino, Alejandro Slokar, Lucila Larrandart, Mary Beloff, Gabriel Anitua,
mensão.
Graciela Otano, Gabriela Gusis, Renato Vannelli Viel, Matías Bailone,

331
330
Bogotá, que era um símbolo da justiça independente na re- Isto é mais que uma trágica ane-
gião. Ali morreu também Emir° Sandoval, da mesma equipe. dota. Demonstra o risco que a cri-
Atílio Ramírez Amaya, juiz do processo de assassinato do minologia livre pode ter em regimes
Arcebispo Arnulfo Romero, em El Salvador, salvou sua vida autoritários. E como a condição de
escapando de um atentado e se exilando em outros países professor ou de juiz não protege con-
centro-americanos. Jorge Enrique Torres, da Guatemala, fi- tra a violência das instituições, o que
cou deficiente em um "acidente" automobilístico. possivelmente sinaliza é o perigo que
O presidente da Sociedade Internacional de Criminolo- os críticos sempre propagaram: que a _ _
José Maria Rico
gia nessa época, Denis Szabo, e José Maria Rico, professor práxis teórica é também uma atividade
Prof. Titular da Escola de
titular da Escola de Criminologia da Universidade de Mon- transformadora... Criminologia da
treal, que nos acompanharam nesses encontros, escrevem, Universidade de Montreal
As pesquisas
em 1981, o seguinte:
Além do projeto sobre violência na América Latina,
"Tendo o privilégio de participar
desenvolveu-se um projeto sobre crime de colarinho branco
deste despertar da criminologia latino-
na América Latina, o qual abarcou os temas centrais dos de-
-americana, e de constatar as imensas
litos dos poderosos. Como expusemos no Capítulo IX, "cri-
dificuldades da tarefa empreendida,
me de colarinho branco" era um conceito ainda não muito
queremos denunciar de maneira enér-
trabalhado na região, nessa época. A partir desses estudos,
gica — pois infelizmente é a nossa úni-
esses crimes foram focados como formas verdadeiramente
ca ação possível — esses assassinatos,
delitivas e atos de amplo dano social que, em nossos países,
esta repressão da qual têm sido, e
ainda não eram entendidos dessa maneira'°.
Denis Szabo ainda são, vítimas nossos colegas da
No auge desse projeto, as pesquisas se orientaram para
Diretor do Centro América Latina. Queremos igualmen-
Internacional de Criminologia te que os criminólogos e os juristas do o tema do controle social, entendido em sua função histórica
Comparada.
mundo todo conheçam estes horrores e ideológica. O interesse por essa historiografia e o resultado
Universidade de Montreal
e se indignem junto a nós"13. dos projetos anteriores fazem com que o conceito "controle
social" seja incorporado como tema central na proposta que
ÇD,
1 Ver Szabo, Denis e Rico, José M., "Criminologia y Represión en Amé- faríamos posteriormente, de um novo objeto de investigação
rica Latina", em Capítulo Criminológico, já citada, n° 8/10, 1981/82,
da Criminologia latino-americana, isto é, na Nova Crimino-
em que agregam: "É extremadamente perigoso fazer Criminologia na
América Latina. No que nos concerne, temos a firme intenção de con- logia Crítica.
tinuar a tarefa empreendida em 1974, apoiando a todo momento, nos- O projeto sobre o controle social, em sua fenomenolo-
sos amigos e colegas latino-americanos, participando na sua missão gia de controle informal, se iniciou quando pesquisávamos
de desenvolver e reafirmar uma criminologia própria, mas também
fazendo conhecer à comunidade criminológica internacional, as difi- 14
Posteriormente, um dos congressos da correspondente Branch das Na-
culdades que se encontram nessa tarefa e os nomes dos mártires que ções Unidas, se dedicou ao tema "Delitos e delinquentes fora do alcan-
apontam essa via". ce da Lei", também chamados "delitos cometidos por abuso de poder".

333
332
sobre os meios de comunicação, as igrejas, a educação e a ESTRUTURA DO CONTROLE SOCIAL NA AMÉRICA LATINA
literatura. A criminologia foi entendida dessa maneira e de
sesip1/44À5 Noiiime1/43-ivos
como seria, a partir de 1981, o Grupo Latino-americano de
Criminologia Crítica". 4,
Os quadros a seguir foram apresentados por Lota Aniyar Religião, ética, Direito (Civil, Penal, Mercantil):
costumes, usos contemplados e não contemplados
como um marco para a análise da estrutura do controle so-
cial na América Latina. Por meio deles pode-se observar a
seletividade do controle penal, ao estabelecerem instituições
de controle não penal para os ilegalismos dos direitos (como Proibições
a utilização espúria dos instrumentos de crédito, as quebras
fraudulentas, a propaganda enganosa, os delitos financeiros)
Ilegalismos Ilegalismos
— com restrições em forma de sanções civis, administrativas,
dos bens dos direitos
mercantis etc. — à diferença dos ilegalismos dos bens (furtos,
roubos) produto de tipificações penais, que é o verdadeiro 4,
poder estigmatizante16. A coluna da esquerda pode se con- Destinatários Classes Classe
siderar integrada pela sociedade civil, enquanto que a da subalternas hegemônica
direita, define instrumentos da sociedade política.

1
).126CES.SOS

Estereótipos Criminalização

DESTINATÁRIOS

15 Logo viriam muitos trabalhos individuais posteriores, críticos, sobre o Todos Classes subalternas
controle formal, e já não somente dos grupos mencionados.
16
Esse modelo de Controle Social foi apresentado por Lola Aniyar, na re-
alidade, na reunião preliminar do Grupo Crítico, e permaneceu como
referência para o desenvolvimento de pesquisas posteriores.

334 335
ES±RAtÉGIAS

Socialização primária Socialização substitutiva


(transmissão de atitudes (reeducação, tratamento
e valores) e repressão)

DESTINATÁRIOS

Classes
Todos subalternas S t 111111 a iS ti li•e . tei !ti! is In et iCa
; a .; it it u hii1rjt. 8 d
). 4 li ./ /8

Juarez Cirino dos Santos (Brasil), Enrique Castillo (Costa Rica), Julio
Mayaudon, Thamara Santos e Tito Cérdova (Venezuela)
SANÇÕES

Positivas Negativas

Perda de privi égios,


indenizações, multas, Tratamento
outras medidas ou prisão
administrat vas

DESTINATÁRIOS

V
Classes
Todos Todos
subalternas Carmen Antony (Chile-Panamá), Lola Aniyar de Castro (Venezuela),
Louk Hulsman (Holanda), J. M. Rico (Espanha-Canadá)

336 337
O Grupo Crítico Latino-americano agudos, isto é, a América Latina de então, que, mesmo sendo
Por conta das pesquisas sobre crimes de colarinho politicamente mais sangrenta, não era menos violenta, nem
branco, violência na América Central e controle social na injusta, nem complexa que a de agora'.
América Latina, assim como da urgência de construir teo- O Grupo Crítico Latino-americano se reuniu em paralelo
ria sobre dados da nossa realidade, uma maioria do Gru- com o Grupo de Criminologia Comparada, já que nem todos
po Latino-americano de Criminologia Comparada — que os membros de um grupo participavam do outro. Seu Primeiro
fazia Criminologia Crítica com base em pesquisas empí- Manifesto foi emitido no México, em 1981. Foi elaborado,
ricas — decide criar em 1981 o Grupo Latino-americano originalmente, por Roberto Bergalli, Julio Mayaudon, Emiro
de Criminologia Crítica, com o objetivo de elaborar mma Sandoval e Lola Aniyar de Castro. Sua tese central foi que o
"Teoria Crítica Criminológica Latino-americana". O novo tema de orientação dos trabalhos — que seriam basicamente
grupo, que se reunia simultaneamente com o de Crimino- de caráter teórico e não necessariamente empírico — seria a
logia Comparada nos diferentes países do subcontinente, construção de uma Teoria Crítica do Controle Social.
baseou-se sucessivamente em dois manifestos, ambos esta-
belecidos no México com uma distância de dez anos entre
um e outro. É assim, como no México, o Grupo Latino-
-americano de Criminologia Comparada dá a luz a um sub-
grupo, que seria, exclusivamente, de Criminologia Crítica,
com o objetivo de construir teoria.
A esse grupo, posteriormente, associa-se, de maneira
quase permanente, o professor italiano Alessandro Baratta,
que começou seu périplo Latino-americano —itinerário que
logo se converteu em parte de sua vida acadêmica e pessoal
—, ao dar um curso em Maracaibo para alguns dos membros
de nossos países que puderam comparecer. Baratta era parte
fundamental de um grupo italiano — o La Questione Crimina-
le —, surgido quase simultaneamente, mas sem vínculos pré-
vios com o Grupo Latino-americano de Criminologia Com-
parada. Ao grupo italiano, chamado Grupo de Bolonha, nos lolita Anyiar de Castro, Venezuela
referiremos em um capítulo posterior.
Sua participação no grupo foi experimental e em uma via 17 De fato, após o fim das ditaduras no Cone Sul, Baratta chegou a dizer
de mão dupla. De fato, em anos posteriores, se referiu a o que
sobre Criminología: aproximación desde un margen, um dos primei-
denominou "criminologia mestiça", considerando que não se ros excelentes livros criminológicos escritos por Zaffaroni, que devia
podia entender o que acontecia na Europa sem compreender considerar-se o contrário: a Europa era a margem, e América Latina o
o lugar que ele considerou era o centro dos conflitos mais centro, pela força com que ali se manifestavam os conflitos.

338 339
Resumindo:
): g
in o 1:0:g I a. ra ;!bertaçaccM\-_,
tern molog ea'iCrít mcatniáWin érica- a Ina. tra
m.N.0:90ii,iewgnwitigit-gtgetmla oS.gõttátà11.ii-i?-11'i.e:C;õklitilgt.?,Sei a
imi nedcigialdbttebhtfólé.15dciál •

Parte dos princípios teórico-filosóficos da Escola de Frankfurt


(Teoriá Crítica)

A Criminologia Crítica Latino-americana teria as seguin- Os debates e as críticas não demoraram a aparecer.
tes características: Não foi um movimento qualquer. Era a referência latino-
-americana a muitos temas palpitantes do Direito Penal e dà
Compromisso com os esforços de libertação humana; li- Criminologia do momento, muitos dos quais seguem sendo
bertação também da mentira.
as frentes de ação para o que hoje se faz na América Latina
Atitude crítica ante todo o controle social e o sistema pe--
e no resto do mundo. As discussões se centraram em "qual
nal subterrâneo.
Estudar o papel da teoria, da ciência e todos os sistemas era a sua epistemologia", se tratava-se ou não de uma "tese,
normativos (formais e informais), çfri sua relação com o ou de ciência, ou de uma teoria"; se era ou não "criminolo-
poder (existe um contínuo). gia"; se era "latino-americana"; se trataria de todo o controle
Isto é, Teoria Crítica de todo o Controle Social. social e não somente do controle penal, para o que se propu-
nha uma Sociologia, deixando o nome de Criminologia para
Bergalli propõe que seja somente Sociologia do Controle Penal
a perspectiva etiológica".
Mauricio Martínez compila todos esses temas em um
livro"; e alguns dos participantes dos debates os desenvol-

1° Essa foi ideia proposta por Roberto Bergalli. A resposta de Lola Aniyar
era que o controle social é um contínuo, que encontra seus momentos
delimitantes na aparição — normalmente conjuntural, segundo o tem-
po, o espaço, as pressões — de uma proibição legal.
Maninez, Mauricio, é Qué pasa en Ia Criminología moderna?, Bogotá,
Temis, 1990.

341
340
vem em revistas latino-americanasn, que os foram publican- do controle social), de acordo aos modelos impostos pelos
do para abonar o terreno a uma criminologia que estaria centros do poder localizados nos países centrais. Tratava-se,
surgindo depois, nos anos 1980, com o fim das ditaduras e logicamente, de sua própria e exaustiva pesquisa, que tenta-
em direção à Criminologia e o Direito Penal Críticos de hoje. va versar sobre o positivismo latino-americano.
Mais recentemente, sobre o alcance das traduções e
Criminologias do primeiro e do terceiro mundo
importações culturais dessa época, também se colocou em
A discussão, apresentada por alguns autores há vários dúvida sua existência ao sinalizar-se que as investigações
anos, acerca de se havia existido ou não, uma criminologia históricas e empíricas sobre a questão criminal foram excep-
própria da América Latina; se desenvolveu com maior pre- cionais na América Latina, e se falou de "importação cul-
cisão e alcance, tanto no primeiro capítulo de Criminologia tural", apesar da originalidade, obra do exercício de uma
da Libertação' quanto, mais recentemente, na Criminologia inventiva teórica e política de muitos intelectuais que co-
dos Direitos Humanos'. locaram para funcionar a construção de uma criminologia
Rosa dei Olmo", particularmente, pretendeu demons- crítica regional24.
trar que não existia uma criminologia latino-americana, mas É interessante ressaltar algo que alguns desconhecem,
una transnacionalização do saber criminológico (e portanto, pois estiveram pouco informados sobre o que já se havia fei-
Aniyar de Castro, Lola, "La Investigación Criminológica en Venezuela, to na América Latina, talvez pela sua juventude atual ou pe-
conflictos, problemas epistemológicos y prácticos y orientación ac- las restrições que seus países viveram, por conta da presença
tual" em Revista Doctrina Penal, n° 1-2, Buenos Aires, 1978. Idem, "El de governos autoritários da época, e que o mesmo Baratta
Movimiento de la Teoria Criminológica y evaluación de su estado ac- apontou, textualmente, em Medelín:
tual", em Anuario de Derecho penal y Ciencias Penates, Madri, 1983.
Idem, Democracia y Justicia Penal, Congresso da República, Cara- Quando em 1978 visitei pela primeira vez a América Lati-
cas, 1992. Idem, "El Jardin de ai lado o respondiendo a Novoa sobre na para ministrar um curso no Instituto de Criminologia da
Criminologia Critica", em Doctrina penal, n° 33/34, 1985. Bergalli, Universidade de Maracaibon, trazia um acúmulo de conhe-
Roberto, "Una intervención equidistante, mas a favor de la Sociologia
cimentos aprendidos na Europa que desejava transmitir. Em
dei Control Penal", em Doctrina penal, n° 36, 1986. Novoa Monreal,
tal processo encontrei uma experiência científica autônoma,
Eduardo: "En procura de una clarificación", em Doctrina Penal, n"
e uma séria produção teórica que constituía, em boa parte,
36, 1986. Dividem as ideias de Lola de Aniyar, também, Luis Bravo
Dávila, "¡Desorientación epistemológica en Criminologia Critica?", no resultado acerca da pesquisa teórica sobre a violência,
em Doctrina Penal, n° 30, 1985; e Rosa dei Olmo, que propõe "uma tema que havia sido entendido desde o começo como o fio
Criminologia das contradições".
gia, Coleção Pensamento Criminológico n" 9, Editora Revan, Rio de
21 Aniyar de Castro, Lola, Criminologia da Libertação, op. cit., no qual
Janeiro, 2004. IN. da T.I
se reúne esse debate a explicações concretas da originalidade do de- 24
senvolvimento da criminologia Critica e Comparada latino-americana, Sozzo, Máximo, "Traduttore Tradittore. Traducción, importación cul-
tural e historia dei presente de la criminologia en América Latina",
desde os anos 1970.
em Sozzo, Máximo (coord.), Reconstruyendo criminologias criticas,
22 Aniyar de Castro, Lola, Criminologia de los Derechos Humanos, op. cit.
Buenos Aires, Ad Hoc, 2006, pp. 406-407.
6 Dei Olmo, Rosa, América Latina y sti Criminología, México, Siglo 25
Nota dos autores: trata-se do Instituto de Criminologia da Universidad
XXI, 1981, onde analisa com exclusividade o positivismo na crimino-
logia tradicional latino-americana. A América Latina e sua criminolo- del Zulia, conhecido mais pelo nome da capital do Estado Zulia, que
é Maracaibo.

343
342
condutor da Criminologia Critica Latino-americana. A partir alguns exemplos, isto se viu em disciplinas como a H istória,
daquele momento, violência e dominação, permaneceram, a Sociologia, a Geografia Humana, a Filosofia, a Pedagogia
também para mim, como o fio condutor do meu trabalho de e a Antropologia28.
Crimindlogo Crítico na análise do Sistema Penaln.
Transcrevemos, para destacar como já se analisavam
Parecia, pois, que a influência havia invertido seu tra- elementos centrais da vida política latino-americana, temas
dicional curso histórico: ia da América Latina para a Europa. alheios aos europeus, como a invasão ao Panamá, a ingerên-
Acreditamos ter demonstrado nos livros mencionados a cia do primeiro mundo nas guerras civis centro-americanas,
existência de uma criminologia crítica de indubitável corte e sua manipulação ideológica nos meios de comunicação29.
latino-americano, desde os anos 1970 e 1980 . Se as metodo- Igualmente, a Doutrina de Segurança Nacional, e pela pri-
logias e processos cognoscitivos costumam estar vinculados meira vez, os extermínios massivos e a existência de mode-
a atmosferas intelectuais globais, que são geradas através e los econômicos diversos no Primeiro e Terceiro Mundo, que
em virtude da história — e não pode ser de outra maneira
—, seus conteúdos — se são tomados de pesquisas particu-
de produtos perigosos, proibidos no Primeiro Mundo, (em especial às
larizadas, tanto de campo quanto teóricas, especialmente equipes da Costa Rica e Colômbia); o controle social e suas seletivi-
se trata-se de temas de profundo caráter político — desen- dades e orientações, algumas através da história (como o fizeram as
volvem o histórico concreto de cada lugar27. Só para dar equipes do México e Colômbia, que tinham arquivos originais pré-
-colombianos e coloniais); e outros, informais, como a escola, as igre-
26 Ver discurso de agradecimento do Prof. Baratta por sua condecoração jas e os meios de comunicação de massa (Venezuela). A análise dos
por parte da Universidade de Medelín, em Criminologia Crítica, Primeiro ilegalismos e das leis perigosistas, e as relações entre o novo Direito
Seminário, Colômbia, Universidade de Medelín, 1984. Grifos nossos. Penal e a Nova Criminologia (Venezuela). Isso era verdadeiramente
27 Para dizê-lo brevemente, e com amplas possibilidades de injustiça Criminologia Latino-americana.
25
por não citar a totalidade do muito que se produziu, a história dessas Ver Bergalli, Roberto. "Hacia una Criminología de la Liberación en
pesquisas (algumas teóricas e muitas de campo) e uma quantidade América Latina", em Capítulo Criminológico, n° 9/1 0, 1981/1982.
apreciável de seus resultados parciais — nos referimos especialmente Onde fala: "As considerações que foram expostas no rascunho que figu-
aos dos venezuelanos, Pois cada país publicou, dentro de suas pos- rou como tentativa de 'Manifesto' de um movimento de opinião crimi-
sibilidades, os próprios de cada um — podem ser lidos em diversos nológica, cuja criação foi proposta, e que fora distribuído entre muitos
exemplares da época da Revista Capítulo Criminológico do Instituto interessados pela questão do controle social na América Latina, que
de Criminologia da Universidad dei Zulia, diversas vezes citada neste hoje assistem a esta reunião, pareceriam encaixar no marco teórico es-
Manual. Também em revistas colombianas e revistas e livros mexica- boçado por Lolita Aniyar de Castro, propiciando a construção de uma
nos, como o de Augusto Sánchez Sandoval; e publicações do Instituto teoria critica do controle social. Esta circunstância validaria, então, a
da Universidade do Panamá. Desde a pesquisa sobre a fenomenologia pretensão de formular umas reflexões que, complementariamente, po-
e a explicação da violência na região (que, como se disse, trouxe seus deriam servir como contribuição para o pensamento esboçado naquelas
próprios mortos, assassinados na América Central e Colômbia, além considerações, ao mesmo tempo que presumem dar uma modesta sus-
das mortes nas guerras centro-americanas e a invasão ao Panamá); os tentação epistemológica à posição de Lolita Aniyar de Castro".
21
crimes de colarinho branco relativos à segurança industrial e os delitos Ver Aniyar de Castro, Lola, "Los Derechos Humanos como dimen-
das transnacionais (Venezuela); a corrupção administrativa (muitas das sión política de la Justicia nacional e internacional", em Democracia
equipes nacionais a trataram, incluídos Colômbia e Panamá); a adul- y lusticia Penal, Congresso da República, 1992, sobre delitos inter-
teração de sustâncias alimentícias e medicamentosas e a exportação nacionais.

344 345
Bergalli apresentou — corredator do Manifesto — da seguinte a vida e os bens dos habitantes. Todos esses diferentes as-
maneira: pectos da dominação marcaram, e continuam marcando, o
desenvolvimento social dos povos latino-americanos.
Trata-se, na verdade, de chegar a um enfoque mais adequa-
do da realidade social dos países latino-americanos acerca E mais adiante, diz:
das necessidades, dos meios e dos fins do controle social.
A prática teórica transformadora (não reprodutora), que Lo-
Não cabe dúvida — e a história menos recente já colocou em lita Aniyar de Castro propõe como conteúdo de uma Crimi-
evidência — que a dominação teve na América Latina um
nologia orientada para o estudo do controle social na Amé-
rosto evidente. Quem vai negar o exercício do poder des- rica Latina, deverá então ser construída tendo bem presente
pótico por parte de grupos, famílias ou indivíduos, os quais
a realidade— única e descarnada — tendente a perpetuar os
— tas vezes durante décadas — jogaram com o destino de diferentes sistemas de dominação: aqueles locais como os
massas de'indigenas, camponeses ou o incipiente proletaria- que estabelecem os blocos imperialistas.
do? Quem pode refutar que, desde o seu nascimento como
colônias ou desde a sua aparição como países supostamen- Em torno desta premissa, em outros âmbitos do conheci-
te independentes em sua forma política, a grande maioria mento do pensamento latino-americano, se gestaram pro-
desses países latino-americanos estiveram limitados pelas postas teóricas dirigidas a construir alternativas liberadoras.
apeténclas inesgotáveis de distintas metrópoles imperiais? Essas tentativas partiram de um denominador comum, que
Enquanto os processos de dominação internacional foram se parece ser também o próprio da Criminologia, ou pelo me-
polarizando, a prática do despojo da produção de matérias nos o dessa Criminologia que no subcontinente cumpriu o
primas e do exercício de penetração do capital monopolista papel legitimador das estruturas de dominação e de reali-
transnacional nas economias latino-americanas dependere mentação de um Direito Penal que reafirma a desigualdade.
tes assumiram características aberrantes, inumanas e san- A partir dessas experiências,
grentas. Os casamentos entre as oligarquias autóctones, os
e para dar o impulso a novos pen-
patriciados tradicionais e os novos grupos "managerlales",
samentos sobre nossas realidades,
com os interesses desses monopólios transnacionais, gera-
ram os totalitarismos homicidas do Cone Sul, por exemplo. criou-se o Programa de Mestrado La-
Esses regimes, para manter as políticas econômicas maneta- tino-americano em Ciências Penais e
ristas estranguladoras (escola de Chicago-Milton Friedman), Criminológicas, Disciplinas do Con-
precisaram desenvolver um novo sistema de controle social trole Social (que funciona desde 1985
que chegou a assumir nome próprio como "Doutrina de Se- até a presente data, em Maracaibo).
gurança Nacional". (...) Sustenta-se uma filosofia do novo Era um instrumento necessário de ex-
modelo de controle social, para o qual todo cidadão é um tensão e de formação de novos crimi-
guerreiro e então quem discorda com o sistema de valores nólogos no continente. Roberto Bergalli,
oficiais se converte em subversivo, enquanto que o con- Argentina
descendente deve transformar-se em delator. Dessa forma, Por esse Programa de Mestrado,
a sociedade civil desses países viu-se, em todos os seus ní- que foi originalmente desenhado por
veis, permeada pela ordem castrense, e as Forças Armadas Eugenio Raúl Zaffaroni, na parte penal e por Lola Aniyar de
se constituíram em depositárias do poder de decisão sobre Castro, em sua parte criminológica, passaram destacados pro-

346 347
fessores e alunos de diversos países latino-americanos (Peru, Com o avanço do projeto", já não se encontraram
Brasil, México, Bolívia), e inclusive um aluno holandês". maiores obstáculos para entender a direção e o conteúdo da
pesquisa em curso. É interessante notar que a partir desses
O projeto de pesquisa comparada sobre sistemas encontros, Zaffaroni, que era excelente dogmático, ainda
penais latino-americanos e Direitos Humanos que como se explicará mais adiante, já tinha formação cri-
Esse projeto, do Instituto Interamericano de Direitos Hu- minológica, se converte em um criminólogo fundamental,
manos, coordenado por Eugenio Raul Zaffaroni, começou a tanto que começa a escrever livros sobre Criminologia, com
se desenvolver em 1982 e teve seu auge em 1986. Represen- forte ênfase crítica; inclusive, seu Tratado de Derecho Pe-
ta, sem dúvida, um ponto de inflexão na mudança pioneira nai" se transformou profundamente.
dos estudos críticos sobre o controle social, e se centrou no A restauração da democracia nos países do Cone Sul des-
estudo das instituições penais, contravencionais, processu- pertou um apoio entusiasta e uma excelente produção teórica da
ais, tutelares, militares, penitenciárias e algumas similares, criminologia latino-americana. O Brasil, através de Heleno Clau-
como as psiquiátricas. Os temas eram relativos tanto a ele- dio Fragoso (prematuramente desaparecido) e de Nilo Batista,
mentos da dogmática como ao funcionamento e repressão havia dado suporte a reuniões do Grupo Crítico, e foi academi-
das instituições correspondentes, e sua lesão aos direitos fun- camente enriquecido com o trabalho transdisciplinar que Batista
damentais. Os dois volumes em que o projeto foi compila- desenvolveu posteriormente, em conjunto com Vera Malagutti,
do podem ser considerados como um novo guia de reflexão no Instituto Carioca de Criminologia, não só com a organiza-
sobre quase todo o sistema punitivo nos nossos países. Não ção de excelentes seminários, mas também com suas próprias
obstante, o que tornou esse projeto mais significativo, à parta pesquisas. É mérito seu, inclusive, a tradução e publicação de
da inteligência e da ilustração de seu coordenador, foi o con- obras fundamentais através da Coleção Pensamento Criminoló-
vite a se incorporarem, além dos especialistas em matéria gico (Editora Revan, Rio de Janeiro). Foi também fundamental o
penal, criminologos do continente. Pela primeira vez, cri- Programa de Mestrado que dirigiram, em seus primeiros anos, na
minologos e penalistas de toda a região se sentaram frente a Universidade Candido Mendes. Tudo isso difundiu e consolidou
frente para analisar tanto as teorias penais quanto as realida- uma nova geração de críticos, em todos os cantos desse gigantes-
des e o seu funcionamento. Nas primeiras reuniões, não foi co e multifacetado país. A isto se agrega o trabalho do poderoso e
fácil que os dogmáticos, acostumados a processos cognitivos interessante movimento académico do IBCCrim em São Paulo".
basicamente dedutivos, entendessem o que os criminálogos
críticos estavam dizendo e pesquisando, bem como compre- 32 Ver os dois volumes do Instituto Interamericano de Direitos Humanos,
endessem suas particulares e novas metodologias". Sistemas Penates y Derechos Humanos en América Latina, Buenos
Aires, Depalma, 1984/1986.
31 Zaffaroni, E. Raúl; Alagia, Alejandro e Slokar, Alejandro, Derecho Pe-

30
Hans Ciezen, que, aconselhado por Huisman, fez em urna Moa da nal, Buenos Aires, Ediar, 2000.
34
periferia de Maracaibo sua tese sobre o funcionamento do "outro Di- O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), que conta com
reito", isto é, sobre a soluello privada dos conflitos. 4600 membros, se constitui na defesa dos Direitos Humanos, das mi-
31
Daí que surge o denominado Debate Novoa monreal-Anlyar de Castro, norias e dos marginalizados, dos princípios de um estado democrático
que focalizava temas epistemológicos Já mencionados anteriormente, de direito e da dignidade das pessoas no Direito Penal.

348
349
Na Argentina, ao redor da figura de Raúl Zaffaroni e da ências. No outro, um ponto de vista externo. Pois já não é um
equipe da Corte Suprema de Justiça, gestou-se um movimento segredo que o controle social informal pode se converter em
importante de jovens penalistas e criminólogos críticos. Tam- controle social formal apenas pela aparição de um ato admi-
bém em diferentes Universidades (a de Buenos Aires, a de San nistrativo (uma incriminação legal), que faz um corte no con-
Martín, a de la Plata, entre outras) foram difundidos, pesquisa- tínuo. Isso determina o caráter penal de uma conduta, como
dos e desenvolvidos novos e comprometidos temas. Uma ex- demonstrou a Criminologia dos Processos de Criminalização.
tensa tarefa editorial argentina complementa esse crescimento". A Criminologia Crítica, na realidade, ao ser normativa,
se converte em um dever ser. Um "dever ser do Direito", e
particularmente, ainda que não exclusivamente, do Penal. O
Direito Penal, nessa relação mais que simbiótica, se conver-
te então, em "um Ser". Por isso também se falou que Crimi-
nologia Crítica e Política Criminal são a mesma coisa. Isto é
exatamente o contrário do que se dizia no momento do Posi-
tivismo: a Criminologia, nessa época, era o "Ser" e o Direito
Penal, 6Dever Ser. Ambos campos o seguem sendo, mas em
uma relação que, agora, no terreno crítico, é dialética.
Hoje existe um forte movimento criminológico latino-
-americano, fundamentalmente crítico, em todas as suas va-
riações. Trata-se de um renascimento com força inusitada,
que está produzindo coisas fundamentais sobre a realidade
regional." Às vezes são temas novos. Outras vezes, temas
velhos, mas analisados a partir uma nova perspectiva.

Vera Malaguti (Brasil), Lola Aniyar de Castro (Venezuela), criminólogas 36 Com risco de omitir novos nomes que há muitos anos ou em tempos
criticas, e Nilo Batista (Brasil), penalista critico] recentes realizam seus aportes ao pensamento critico na América Latina,
e pela rapidez com que esses novos nomes estão se formando, men-
cionamos somente alguns dos mais consolidados até a presente data.
Criminologia Crítica e Direito Penal Crítico Alguns interromperam pesquisas já iniciadas; outros surgiram depois:
O resultado é que ambos os campos de conhecimento, Carmen Antony Garcia, Gladys Tinedo Fernández e Ana Isabel Carita
(Perspectiva critica sobre controle social e mulher); Lola Aniyar de Cas-
Direito Penal e Criminologia, estão agora tão profundamente
tro (Teoria criminológica, Sistema Penal subterrâneo, Delitos interna-
entrelaçados, tanto que é difícil diferenciá-los. Em ambos tra- cionais, Meios, Medidas alternativas à prisão, Prevenção participativa,
ta-se de analisar o controle: no primeiro caso, é um ponto de Crimes de colarinho branco, Direitos Humanos); Jorge Enrique Torres,
vista interno no momento das definições e de suas consequ- Guillermo Monzón Paz, Tito Córdova (Psicologia Critica); Maria Angé-
lica Jiménez, Tamara Santos, Jesús Párraga Meléndez, Luis Marco del
Movimento que se enriqueceu com novos criminólogos e penalistas Pont, (exilado) fundador do grupo critico no México, ao que se so-
35
em outras regiões do pais, como Córdoba, San Luis e Tucumán. maram Alicia Gonzalez Vidaurri e Augusto Sánchez Sandoval); Walter

351
350
Talvez o mais significativo, além de ter feito as bases E que; pela primeira vez, entrelaçaram os pensamentos
para uma verdadeira Criminologia latino-americana, é que, críticos, penais e criminológicos em um só movimento de alter-
em seu caminho, estes movimentos semearam no nosso nativas e trabalhos conjuntos. Foi um período intenso e denso.
mundo, o interesse por este campo de estudo, e de cátedras De sofrimento, coragem, destruição e reconstrução sobre
e pesquisas criminológicas. uma entidade que a Criminologia reconhecia pela primeira
vez de maneira global: a América Latina como um todo.
Antillon (Garantias e Processo penal); Alfonso Reyes Echandia e Frago-
so, Claudio Heleno (Perspectiva crítica do Direito Penal e o Controle
social); Guillermo Villegas Duque (O outro Direito); Emiro Sandoval
Crimin6logos e penalistas latino-americanos se reúnem
(Teoria criminológica, o penitenciário); Antonio Muffoz e Emilio Gar- a fins do século XX em Buenos Aires, para avaliar suas
cia Méndez (Lei de proteção à criança e ao adolescente); Juan Pego- propostas e avançar em uma hipótese sobre como seria a
raro (Controle social); Elizabeth Sussekind, Cisalio Cerqueira, Cizlene Criminologia do século XXI
Nader, Audelina Tineo, Vilma Nuiiez de Escorcia, Ramón de Ia Cruz
Ochoa, Fernando Tocora (Política Criminal); Karen Von Groningen (De-
fesa e classe Social); Sonia Navarro, Raquel Yrigoyen (Enfoque crítico
sobre o tema dos indígenas); Luis De La Barreda, Julio Mayaudon, Mau-
ricio Martinez (Abolicionismo, Política Criminal, Teoria Criminológica);
Eugenio Raúl Zaffaroni (Teoria criminológica, Positivismo, Sistema Pe-
nal, Direitos Humanos, Criminologia cautelar, Criminologia midiática);
toda a equipe latino-americana coordenada por Zaffaroni sobre Direitos
Humanos e Sistemas Penais na América Latina, entre os quais se en-
contram Eduardo Novoa Monreal, Roberto Bergalli, Juan Bustos (Pen-
samento criminológico, Controle social, Justiça penal na América Lati-
na); Elías Carranza (Presos sem condenação; nova prevenção, situação
penitenciária); Raúl Cervini (Delinquência de poderosos); Juárez Cirino Da esquerda para a direita: Augusto Sánchez Sandoval (México), Ramén
dos Santos (Criminologia Radical); Augusto Sánchez, Alicia Martínez Vi- de la Cruz (Cuba), tola Aniyar de Castro (Venezuela), Alicia Gonzalez
daurri (Controle social e teoria criminológica). Nas últimas décadas sur- Vidaurri (México), Marcela Márquez (Panamá); Felipe Villayicencio (Peru),
giram muitos novos nomes: Nilo Batista (Direito Penal Crítico e Controle Gustavo Gabaldón (Venezuela), Rani Zaffaroni (Argentina), Carmen An-
social); Vera Malagutti (Teoria Criminológica e Política Criminal); Elsie tony (Chile), Elias Carranza (Argentina-Costa Rica), Carlos Elbert (Argenti-
Rosales e Carmelo Borrego (Drogas, crime organizado e Direito Penal na), Cecilia Grossman.
da Constituição); Andrés Antillano (Teoria Criminológica); Vera Regina
Pereira de Andrade (Teoria Criminológica); Marildo Menegat, Julio Vir-
golini (Crime organizado, Teoria criminológica); Gabriel Ignacio Ani-
tua (Pensamento Criminológico); Saio de Carvalho (Anticriminologia);
Gamil Gopfel (Crime organizado); José Simonetti (Crime organizado,
Corrupção administrativa); Juan Pegoraro (Controle social); Pablo Han
(Controle Social); Tito Córdova (Psicologia Crítica); Sergio Salomão She-
caira (Teoria Criminológica); Máximo Sono (Criminologias Críticas);
Juarez Tavares (Filosofia do controle social); José F. Martínez Rincones
(Delito político, crimes ecológicos); Elsie Rosales, Adela Garcia Pirela
(Garantismo); Luisa Leal (Garantismo, segurança).

352 353
.
ANEXO tiveram maior obstáculo para impor as políticas mais apro-
priadas aos seus propósitos de usufruto das forças naturais e
PRIMEIRO MANIFESTO DE CRIMINDLOGOS CRíTICOS de exploração dos recursos humanos.
(MÉXICO, 1981)
No discurso da centralidade e da periferia do poder,
Desde 1976, um grupo de interessados em questões a questão do controle social se apresenta como um tema
criminológicas tem trabalhado entorno de temas como vio- prioritário. O tipo de disciplina necessária para que as rela-
lência e crimes de colarinho branco, na América Latina. ções sociais nos países periféricos se mantenham dentro do
marco previsto pelas potências imperiais, condiciona o tipo
Esse grupo, com a coordenação imediata do Instituto de
e a forma dos sistemas de controle. As relações de produção
Criminologia da Universidad dei Zulia e sob o auxílio do Cen-
baseadas na exploração do homem, geradoras da desocu-
tro Internacional de Criminologia Comparada, superou, feliz-
pação, o analfabetismo, a mortalidade infantil, as grandes
mente, os estreitos marcos da criminologia tradicional que im-
massas de marginalizados etc., são, entre outros, os meios
pera oficialmente neste subcontinente, até chegar a se ocupar
úteis com que se mantém a submissão, se fortalece o poder
de todos os aspectos relativos ao controle social em geral.
de certas minorias e o capital transnacional obtém ganhos
Alguns participantes desse grupo decidiram pela or- consideráveis.
ganização de um movimento criminológico autônomo de
E tal como a atualidade o demonstra, salvo em contados
conteúdo crítico, com a independência de que se continue,
casos, a violência estatal e a repressão constituíram as ferra-
separadamente, o trabalho de pesquisa do grupo latino-ame-
mentas básicas daquele controle.
ricano de criminologia comparada.
Tudo aqui manifestado, não obstante, não significa
O presente texto contém um resumo das inquietudes
que, mesmo nas situações mais extremas, não se faça uso do
que conduziram à constituição deste novo movimento.
aparato penal do Estado como um mecanismo de cobertura
As realidades sociais da América Latina, ainda que ideológica. O Direito Penal tem servido de instrumento para
diversas entre si, respondem a uma lógica uniforme que tem aprofundar as diferenças sociais e a ciência jurídica penal
sido ditada pela política que divide o mundo em países cen- tem justificado a intervenção punitiva oficial no auxílio de
trais e periféricos, apesar de que estes últimos — entre eles os privilégios minoritários. Uma clara demonstração disso é a
latino-americanos — têm, intrinsecamente, não só as possi- proteção que os códigos penais latino-americanos outorgam
bilidades materiais, mas também as capacidades individuais a determinados interesses jurídicos particulares, enquanto
que lhes permitiriam converter-se em uma força homogênea, que mantém sem proteção importantes necessidades coleti-
a fim de fazer valer os interesses regionais. vas; as descrições legais omitem, sobretudo, muitas das con-
À semelhante lógica tem respondido, coerentemente, as dutas que violam bens de caráter social. Não obstante, é ne-
situações nacionais internas. Nelas primaram, em geral, os cessário reafirmar que as garantias que o direito penal liberal
privilégios de grupo em detrimento das maiorias. As distintas supõe, devem ser definidas de modo que possam combater
oligarquias sempre constituíram os pontos de penetração de a opressão e o autoritarismo estatais.
domínio dos países poderosos e, salvo poucas exceções, não

355
354
A legitimação de um direito penal desigual para a formação profunda e democrática dos atuais mecanismos do
América Latina tem sido corroborada pelo papel subalterno controle social do delito que, no final das contas, são os que
que a criminologia tradicional tem desempenhado. A deter- o criam e multiplicam.
minação de uma criminalidade a-histórica foi formulada a A esses fins, se tentará a maior difusão possível, tanto
partir de modelos e tipologia construídos pelo sistema penal nas instâncias científicas quanto a nível popular, dos resul-
— particularmente pela prisão—, os quais geralmente se apli- tados das pesquisas pertinentes, assim como dos postulados
cam a quem terminou marginalizado, de forma prévia, pela que sustentam o movimento.
ordem social constituída.
Segundo Manifesto
O movimento que sé inicia terá como objetivo a
construção de uma Teoria Crítica do controle social na Amé- O Segundo Manifesto, dez anos depois, reitera em to-
rica Latina. dos os seus termos, o primeiro, mas, uma vez que começam
a formular-se e trabalhar-se in extenso temas como redução
Portanto, entre outras coisas, terá como objetivo o es-
tudo e a denúncia das situações referidas, a sinalização da do ato penal e da prisão; fenômenos de extermínio massivo
de caráter político; práticas aberrantes do sistema Penal, que
tarefa legitimadora cumprida pela criminologia tradicional, e
Lola Aniyar chama de Sistema Penal subterrâneo, e Zaffaro-
a elaboração de estratégias alternativas para o controle social
ni, de Sistema Penal paralelo, são agregadas algumas consi-
na América Latina; deste modo se procurará unir valiosos
derações:
esforços individuais que distintos latino-americanos estão le-
6. (...) O movimento deverá dirigir seus esforços para o
vando adiante.
exame das realidades concretas de cada país. Dele surgirão
As pautas básicas que hão de orientar o trabalho conjun- propostas para uma transformação e uma redução radicais
to devem estar determinadas pela erradicação das ideologias do sistema penal, as quais deverão levar em consideração,
positivista ou defensista que têm determinado o tratamento fundamentalmente, os direitos e necessidades reais dos se-
patológico da criminalidade e a falsa concepção médica e tores mais numerosos e desprotegidos, assim como das mi-
ressocializante da execução penal e, em definitiva, pela er- norias marginalizadas; e também propostas para eliminar os
radicação de toda ideologia que tenda a converter a questão grandes custos sociais e a injustiça dos atuais mecanismos
punitivos, propondo políticas adequadas para a supressão
criminal em um simples problema de ordem pública.
da prisão e outros sistemas de segregação.
O movimento deverá dirigir seus esforços para o exame Deverá também denunciar e combater todo abuso de poder
das realidades concretas de cada país. Dele surgirão propos- e atuação ilegal dos órgãos da justiça penal, como o em-
tas para o emprego do sistema penal, as quais deverão levar prego de penas extralegais, operações ou redadas policiais
em consideração, fundamentalmente a proteção dos setores e militares, as penas de morte extrajudiciais, a desaparição
mais numerosos e desprotegidos, que são os que estão ver- forçada de pessoas, os abusos da detenção preventiva e a
dadeiramente interessados nas propostas alternativas de polí- atividade de grupos de extermínio, amparados ou não por
Órgãos do Estado. Sendo assim, se oporá a toda legislação
tica criminal, em uma luta radical contra a criminalidade, na
que viole os Direitos Humanos.
superação dos fatores que a geram e, por fim, em uma trans-

357
356
Da mesma maneira, denunciará e combaterá as práticas de
CAPITULO XVII
tortura e outras Práticas ilegais; e rejeitará qualquer ação
dirigida que procure passar impune.
O movimento apontará e rejeitará os abusos de poder inter- A CRIMINOLOGIA DO CONTROLE SOCIAL (14
nacional, tais como o intervencionismo, o mercenarismo e
o terrorismo de Estado, e o estrangulamento econômico dos
A Escola italiana de Criminologia Crítica (ou Grupo de Bolo-
países latino-americanos.
nha): La Questione Criminate y Dei Delitti e deite Pene. Po-
A estes fins, se tentará a maior difusão possível, tanto nas
líticas penais alternativas. O Direito Penal Mínimo. A visão
instâncias científicas quanto a nível popular, dos resultados
de Alessandro Baratta. Direito Penal Mínimo e Garantismo,
das investigações pertinentes, assim como dos postulados
segundo Ferraioli, em busca da seguridade jurídica. As pro-
que sustentam o movimento.
postas da Criminologia Crítica para uma Política Criminal
7. Por último, deve-se expressar que a proposição de me-
alternativa.
didas para o controle social alternativo na América Latina
não significa, de nenhuma forma, renunciar à convicção
da necessidade de mudanças estruturais, pelo contrário, as
primeiras seguramente contribuirão para estes últimos.
A Escola Italiana de Criminologia Critica (ou Gru-
po de Bolonha). La Questione Criminale y Dei
?kccilléf I 6i iP ituCioná da?Crilip entel9gia r,,Cr Rica .e.• Delitti e deite Pene
atinorairseilcanawestz:”
Apenas um ano depois do Curso Internacionalde Crimi-
nologia em Maracaibo, surge na Itália, em 1975, um grupo
de pesquisadores que se juntou ao redor de uma revista de-
a cim. 1,9)s tra t ty.a: a 9.5,4
,r nominada La Questione Criminale, nessa época dirigida por
aks"' 'á'e. u(l4'
0 kirans ry a lona,' s' •
Alessandro Baratta, acompanhado de Franco Bricola, mas
que continha nomes de especialistas das mais variadas rami-
ficações do conhecimento: Sociologia, Comunicação Social,
Direito, Sistema Penitenciário, Filosofia Social ou Filosofia
ïãiUï.?:'?Alifitidei-Oná s, do Direito, Psicologia Social, problemas relativos ao gênero,

entre outras coisas, pois não havia nenhum tipo de linitação.
:fgratitiè-fgi".kitiMabt "
Era uma nova maneira de entender a transdisciPlinaridade
e de estabelecer a complexidade do tema que se analisaria.
,
uáritit'W'Sà"?'tit-jytítefil'S',M;káitãtP4aieéitár.
A revista propunha, em seus inícios, a possibilidade
de desenhar uma "Política Criminal Alternativa". Esta se-
ria uma Política Criminal do Movimento Operário, levada
adiante pelo próprio movimento, já que os intelectuais que

358
dela faziam parte — o disseram expressamente — não preten- Em 1983, a revista se refunda sob o nome de Dei Delitti
diam converter-se em uma vanguarda'. O problema que se e delle Pene, em referência ao famoso livro de Cesare Becca-
colocava, como se vê, não era o da marginalidade, como ria, De los delitos y de las penas, e em sua primeira reunião
se conhece nos países latino-americanos, mas o da classe é aberta uma discussão autocrítica sobre a revista inicial'.
trabalhadora organizada — o que não se dava com a mesma Nesse debate, se rediscute o conceito de Política Cri-
clareza no nosso contexto regional —, que era a que resulta- minal do Movimento Operário, já que este não representa-
va, como acertadamente diziam, "preferivelmente vitimiza- va nem a classe trabalhadora, nem esta, necessariamente, a
da pelo sistema penal". classe subalterna.
Propunham: Mas talvez, a mais destacada das discussões, em um
Evitar a identificação da questão criminal como um pro- momento, dos debates sobre abolicionismo penal, no qual
blema de "ordem pública", assim como o tratamento ide- surge como proposta alternativa a do Direito Penal Mínimo,
ológico de "estado de guerra" que sempre se deu à "luta foi a que se deu em torno ao "socialmente negativo" e, em
contra a delinquência"; consequência, sobre qual seria o "referente material do de-
A necessidade de construir também uma Política Penal lito".
profundas reformas estruturais; dessa maneira, a Política Na realidade, era um debate sobre o Bem Jurídico Tute-
Criminal não deveria ser senão, uma parte a mais da Política lável, que é o mesmo que dizer o "criminalizável".
Social (esse postulado foi objetado posteriormente porque
Mesmo que na reunião inaugural o tema tenha sido de-
parecia indicar que a delinquência era etiologicamente pró-
pria das populações miserabilizadas); batido, somente Baratta tentou, posteriormente, definir al-
guns parâmetros para o que seria esse referente material°.
As políticas penais têm uma relação de gênero-espécie
com a Política Criminal, que seria o gênero; Referir-se-á, para tal, ao conceito de necessidades reais
fundamentais;
Somente como extrema ratio se propõe o recurso da san-
Que representem interesses generalizáveis;
ção penal.
Que ao emancipar os setores mais frágeis, signifiquem a
A revista, de amplo reconhecimento internacional, fun- emancipação da sociedade em general.
da a mais interessante e importante coleção de discursos al-
De alguma maneira, é o reconhecimento de que há con-
ternativos críticos, e é ali que surgem novos criminólogos2.
dutas que são socialmente danosas, mesmo que não sejam
' Esta proposta está intimamente ligada à razão de ser desta revista: mesmo as registradas pelos Códigos Penais; e que algumas incrimi-
sendo diretor do Instituto de Filosofia Social da Universidade do Sarre,
na Alemanha, Baratta não perde nunca a conexão com seu Grupo de 3 Após a morte de Baratta, recuperou-se parte do nome original, tendo
Bolonha, na Itália. Nesta cidade, a esquerda costumava ter uma maioria como subtítulo: "Studi sulla questione criminale. Nuova serie di Dei
política, de modo que a possibilidade de acender ao poder por meio dela, defini e delle Pene", e é então dirigida fundamentalmente por Massi-
permitiria a estes pesquisadores planificar uma Política Criminal Alternati- mo Pavarini com a assistência de outros colegas e alunos de Baratta:
va baseada, como disseram nesse momento, nas Políticas Sociais. Dado Melossi, Giuseppe Mosconi e Tamar Pitch.
2 Os mais conhecidos, talvez sejam Massimo Pavarini, Pio Marconi, Dedicaremos um capítulo especial a este tema mais adiante.
Raffaele di Giorgi, Dado Melossi, Realino Marra e Tamar Pitch.

360 361
nações são requeridas, pelo menos provisoriamente, mesmo nezuela, recomenda-se o "controle difuso da Constituição",
que devam estar vinculadas a um novo sistema de valores. segundo o qual todos os juízes são juízes constitucionais.
Abre-se assim, a possibilidade de discutir Políticas Pe- Não obstante, isto tampouco se reflete na prática. O que de-
nais Alternativas. monstra que não são as leis, mas as instituições vivas as que
verificam o Direito real.
O que de alguma maneira, na medida em que foram
incorporadas ao Direito positivo e as suas agências, é seu A Descriminalização
reflexo institucional.
Como alternativa resultante da discussão sobre aboli-
Políticas penais alternativas cionismo, tiveram impulso as tendências para a descrimi-
nalização, a desjudicialização, ou a não intervenção. Na
Quais seriam as Políticas Penais que foram sendo pro-
realidade, estas últimas pertencem à ideologia do Estado de
postas em diversos cenários intelectuais e geográficos da
Bem-Estar, no qual houve intenção de humanizar o sistema
época'?
penal e de desocupar as prisões.
Manter o princípio do Direito Penal de Ato e não o de
Ou como dizia — já classicamente — Radbruch, buscar
Direito Penal de Autor. Isto é, um deslinde da orientação
"algo melhor que o Direito Penal".
do Positivismo e de suas leis perigosistas. Dessa maneira,
se impedirão o castigo ou os agravantes em razão das con- Quando ficou em evidência, finalmente, a ineficácia da
dições pessoais do sujeito, ou de seus antecedentes, ou a inflação penal, a descriminalização e as posteriores propos-
penalização da reincidência depois da sanção. A pena se tas de Direito Penal Mínimo foram um esforço para desenhar
autorizaria somente em casos de delitos de resultado ou dè uma Política Penal Humanista.
perigo concreto;
O Conselho da Europa, com a pluma inesquecível de
C.D0 uso alternativo do Direito. Esse movimento foi produto Louk Hulsman', definiu algumas propostas:
de movimentos organizativos de juízes democráticos6. Por
exemplo, nos Movimentos do Sindicato da Magistratura, na Não se deve criminalizar pelo desejo de fazer dominante
França e o de Juízes pela Democracia, na Espanha. Isso pro- uma concepção moral determinada. O debate sobre ques-
duziria, como no antigo conceito romano da equidade, "a tões morais, alega, deve circunscrever-se a igrejas, partidos
Justiça (ou o Direito) do caso concreto". ou meios de comunicação, e não ser levado perante a lei
para que esta o dirima. Os critérios de nocividade ou pe-
Fazer crítica ao duplo discurso das Constituições, que riculosidade também não são muito explícitos. Em quase
costumam ser totalmente respeitosas dos Direitos Humanos, todo comportamento podemos encontrar nocividade ou pe-
e de um sistema penal que não obedece a tais princípios. O riculosidade, de modo que esgrimi-los não é, às vezes, mais
juiz deve aplicar principalmente a Constituição. Hoje na Ve-
Hulsman, Louk H. C., "La Decriminalisation", Colloque de Bellagio,
s Um pacote de políticas penais desse tipo aparece no projeto sobre 7 de dezembro de 1973. Para mais detalhes sobre este tema ver o ex-
Sistemas Penais e Direitos Humanos na América Latina, coordenado posto em Aniyar de Castro, Lola, "Sistema penal y sistema social: La
por E. Raúl Zaffaroni, citado anteriormente. criminalización y Ia decriminalización como funciones de un mismo
Na Europa: Barcellona, Coturri e Perfecto Andrés lbaiiez. Na Venezue- proceso", em La realidad contra los mitos, op. cit., pp. 209-233.
la, Jorge Rossell Sehnen.

362 363
que uma desculpa para encobrir um desejo de criminaliza- ( 9 Não criminalizar condutas tão frequentes, sobre as quais
ção que resulte assim, racionalizado; o Direito Penal não tem poder dissuasivo, ou que por essa
frequência se considerem normais ou que não produzem
cpparaTambém não se devem criminalizar condutas somente
criar um ambiente propício para dar "tratamento" ao
reação de rechaço na maioria da coletividade (como o adul-
tério ou o aborto);
delinquente de forma coercitiva. Esse desejo de "ajudar" um
delinquente não é, por vezes, mais que uma cobertura "ra- Tampouco criminalizar aquelas condutas que são produ-
cional" de outras razões para criminalizar; to de um desajuste social ou psíquico, ou um comportamen-
to que seja difícil de definir com precisão;
(j)Não se deve criminalizar para fazer acreditar que se so-
lucionou um problema. Este é o caso da hemorragia legis- e Nem as que têm lugar dentro da esfera privada (incesto
ou condutas sexuais de qualquer índole entre adultos con-
lativa que se produziu na Venezuela em relação ao delito
ecológico, que na Argentina também se deve prestar aten- descendentes) ou aqueles comportamentos que possam ter
ção. A nova consciência sobre a preservação da natureza soluções distintas à penal (a bigamia, por exemplo).
parece ter se acalmado com a formulação de novos tipos
Não obstante, atualmente, surgem novos temas, como
penais. Mas as sanções não afetam os principais culpados.
os delitos cometidos por abuso de poder, a violência de gê-
Revertem-se, pelo contrário, ao consumidor. O problema
não foi resolvido. As normas e regulações de segurança in- nero ou a violência doméstica em geral, que —contrariamen-
dustrial são também abundantes. Não obstante, sua aplica- te às proposições críticas de diminuição do penal — levam à
ção é escassa. Uma situação similar se produz em relação criminalização e, às vezes, à sobrecriminalização.
à adulteração das sustâncias alimentícias. Os exemplos são Existe, certamente, e como veremos mais adiante, in ex-
muitos e nos alongaríamos enumerando-os; tenso, um vaivém de políticas criminais. Estas derivam não
('zD Não se deve criminalizar também, quando se trata de só do refinamento do pensamento político, mas também de
'comportamentos que são geralmente próprios de grupos so- pressões sociais regressivas, como a nova criminalização de
cialmente frágeis, que são discriminados, ou que correm o imigrantes na Europa, que se converteram em um novo bode
perigo de sê-lo; expiatório dentro de uma precária e interessada globalização.
(„5)Nao criminalizar comportamentos que somente a polícia
pode conhecer quando investiga por sua própria conta e O Direito Penal Mínimo
não em virtude de uma denúncia ou acusação, o que Ba- O Direito Penal Mínimo foi, posteriormente, a consoli-
ratta chamou posteriormente de "princípio de primazia da dação conceituai das primeiras tentativas descriminalizado-
vítima". Isto foi apropriado pela vitimologia e se introdu- ras. Estas tentativas, como necessária consequência, impli-
ziu nos princípios do processo acusatório (superioridade do caram também, na busca do referencial material do delito,
princípio de oportunidade sobre o de legalidade). sobre qual se ocupou Baratta em especial.
O consentimento da vítima deve ser considerado no tipo
penal ou, na sua falta, ter efeitos na atribuição de respon-
sabilidade. A vítima deve ter uma participação importante
no processo, para evitar assim que perca duas vezes: uma,
frente ao delinquente, e outra, frente ao Estado;

365
364
O Direito Penal Mínimo segundo Baratta O Direito Penal Mínimo e o Carantismo, segundo
Ferraioli, à procura da segurança jurídica
, ' '
Q.ena nprno:, arécria-;,:i4na' re'a i a e ser,a,,con iiçao),;r1e4t
Cir•t47;313SViti.".-•,,.
;céSsári k atára?pr..p r.,esSw.á• aesjappars.çáoti. ,eeng2i . céntez.
. vm : „:.
,mente4retéciu,,seta,este reito5!:Pena ipia).9.'iCgrno

o n-gsidma, que., iça ara:-,..aritêrv.en


hitiv.ar-itteritro da p6litica-2integrai1oe; A oposição de Luigi Ferraioli nos
.quaiidckf:se;Consi Vempevit on en.agravissi debates sobre o abolicionismo tidos
na _ •., „ ... com Louk Hulsman, também esteve
baseada na necessidade de manter as
Note-se que nessa definição cada expressão é significa- garantias e de evitar assim as penas
tiVa, pois representa um conceito em si mesmo: informais oficiais e os riscos da vin-
"espaço residual"; gança pr.ivada8.
Dos debates e aportes produzidos
- da política integral de proteção dos Direitos
"dentro
pela Criminologia Crítica, posterior-
Humanos";
mente, se apresenta a necessidade de
"quando se considere inevitável"; Luigi Ferraioli,
que a justiça penal deva ser participa-
• "para responder a gravíssinias violações de direitos__, tiva, e que quando haja intervenções Argentina
fundamentais". mediadoras, ou de tipo restaurativo,
Baratta considera assim, reiteradamente, que os Direi deverão estar no mesmo ,marco de garantias que o sistema
tos Humanos são o limite da ação estatal: penal oferece.

Ferraioli, Luigi, Diritto e ragione. Teoria dei garantismo penale, Bari-


-Roma, Laterza; 1989.

367
366
Barata, em artigos ulteriores, defendeu a solução privada dos local (nunca centralizado);
conflitos, condicionando-a às garantias do sistema penal. pluriagencial;
As propostas para uma política criminal alternativa multidisciplinar;
que, em geral, a Criminologia Crítica tem reivindicado participativo;
proativo;
No penitenciário: as garantias do sistema penal também
e, preferivelmente, situacional.
devem estender-se às regulamentações do sistema penitenci-
ário, como princípios da legalidade e da proporcionalidade A justiça para menores: falou-se que os processos tute-
na execução das sanções, direito à defesa e apelação ante a lares eram verdadeiros juízos que designavam medidas pe-
outorga dos benefícios ou direitos processuais, e ante outras rigosistas, mais temíveis que as penaisg. E que neles havia
limitações de direitos no curso da execução penal. seletividade de controle: "criança" era a que tem acesso à
escola ou que não foi expulsa dela; e "menores" (em "estado
Destacam-se, entre outras:
de abandono" ou "em situação irregular") eram os outros.
CS Que o trabalho na prisão esteja submetido às mesmas
Com isso, a tendência passou da justiça especial e pa-
condições laborais que o trabalho extramuros;
ternalista a processos que dão espaço para as garantias pro-
riQue se garantam o resguardo da saúde, da identidade e da cessuais (como o direito à defesa, às medidas de proteção de
dignidade do processado; tempo determinado, apelações etc.).
Ci)Um tratamento adequado às condições próprias da mu- Não faltaram normas e princípios internacionais nessa
lher reclusa em consideração a que os cidadãos, em razão matéria: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança;
de seu gênero, têm características sociais diferenciadas; as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração
C) Um tratamento também especial para a mãe reclusa, a da Justiça Juvenil — ou Regras de Pequim —; as Regras Míni-
--
qual deve ter medidas de proteção, como prisãc)r-----
lorniciliar mas da Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberda-
ou suspensão condicional da pena e do processo durante os de; e as Diretrizes das Nações Unidas para a Administração
primeiros três anos de vida de seu filho. da Justiça Juvenil. As Normas Mínimas das Nações Unidas
para o Tratamento dos Reclusos; e as dos Pactos de Direitos
A função policial: a tendência é para a descentraliza-
Humanos, como o de San José, resolveriam os vazios legais,
ção, a desburocratização e a participação cidadã, com res-
com a incorporação constitucional desses instrumentos.
guardo do direito à privacidade e dos Direitos Humanos, e
com ênfase em que sua tarefa seja basicamente preventiva. O problema, na prática, foi que as reformas legais para a
A Polícia Comunitária não deve contribuir para que a comu- Proteção Legal de Crianças e Adolescentes não contaram na
nidade se converta em polícia, mas, pelo contrário, a polícia América Latina, senão muito precariamente, com as instituições
em comunidade. adequadas para dar seguimento e aplicação aos seus princípios,
de modo que, incluíram esses menores no campo minado do
A "Nova Prevenção": sobre o que o Grupo de Bolo-
sistema penal e penitenciário, onde os ambientes adequados
nha estabeleceu para este assunto, sintetizamos os conceitos
centrais. O controle deve ser: 9 Em trabalhos distintos, Carda Méndez e Santos.
369
368
para a atenção aos seus problemas não só não existem, como CAPintio XVIII
potencializam suas condições de precariedade.
Vimos com razoável receio que as leis de Proteção à
A CRIMINOLOGIA DO CONTROLE SOCIAL (V)
Criança e ao Adolescente serviram para diminuir a idade
da imputabilidade penal, amplamente reivindicada institui-
Baratta e a Criminologia Crítica: Um filósofo que revolucionou
ções retrógradas de nossos países. Dessa maneira, leis que
a Criminologia. Baratta totalizador. Suas propostas básicas.
supostamente carregavam valores progressivos, se converte-
ram em um Cavalo de Tróia para introduzir de contrabando
questões indesejáveis.
Baratta e a Criminologia Crítica: um filósofo que
revolucionou a Criminologia
A partir da revista La Questione Criminale a presença de
Baratta na Criminologia Crítica foi amplíssima e permanente.
Sobre ele, dissemos'° ter sido um homem do Renascimen-
to: o antropocentrismo, o humanismo, o enciclopedismo, a
elegância de seu estilo literário e de sua estética moral e sua
capacidade de envolver diferentes saberes em uma só massa
teórica sobre a submissão e a liberta-
ção, o fazem o mais completo pen-
sador de sua época. Poucos filósofos
haviam adentrado com tanta agudeza
totalizadora no que até então havia
sido o submundo relegado do contro-
le penal institucional. E dissemos "es-
tética moral", pois ele levou a cabo a
reunificação de saberes e valores dis-
persos e o fez com a harmonia restauradora que essa tarefa
solicitava; e porque ética e estética, vistas especialmente,
ainda que não exclusivamente, no âmbito sociopolítico, são
a mesma cosa.

10
Estas linha foram escritas, em sua maior parte para a página web da
Cátedra Libre Alessandro Baratta sobre Criminologia e Direitos Huma-
nos, que é celebrada anualmente na Costa Rica.

370
Mesmo que Pavarini, seu companheiro de trajetória, frente ao Poder, que em um primeiro momento foi esque-
tenha dito que Baratta nasceu e morreu como um filósofo maticamente marxista, e posteriormente alinhou-se a alguns
do Direito Penal, ele foi um criminólogo de novo cunho, o aspectos das teorias pós-modernas e fortemente garantistas,
criminólogo da totalidade'. que enfocavam, na realidade, a crítica cultural ((-labermas se
Quando se insiste em enraizar para sempre a Crimino- encontra aqui e ali na sua obra).
logia na vertente etiológica de suas origens, se aceita — não No jogo do poder, todos os recursos são possíveis: Gra-
sem debates — que com esse nome, ela tome a hierarquia de msci apontou os intelectuais orgânicos como um de seus ins-
uma nova amplitude integradora de conhecimentos com uma trumentos mais sofisticados. Muõoz Conde hoje desvela as
perspectiva política. E é certo, que o próprio Baratta disse: alegações fascistas de Mezger, o dogmático penal legitima-
"Inclusive minha participação atual no movimento da Crimi- dor do regime nazista. Por outro lado, Baratta, em matéria de
nologia Crítica representa somente uma lógica continuação controle, é um intelectual inorgânico; não só por sua vocação
de meus estudos passados de Filosofia jurídica Penal". Em sua difusora das boas-novas, manifestada nas duas importantes —
fase jovem, efetivamente, a crítica de Baratta é uma crítica do e históricas — revistas que dirigiu em Bolonha', mas também
Direito desde um ponto de vista liberal e garantista, partindo pela ação prática, já que nesta cidade participou junto ao go-
da Filosofia do Direito, tanto a partir do interior como a partir verno local de esquerda do projeto Cidade Segura. Baratta
do exterior da Dogmática. A Criminologia Crítica viria a ser compartilhou a consigna de que não bastava conhecer o mun-
um ponto de vista exterior que o permitiria fazer a crítica do do, mas que é necessário transformá-lo. Portanto, cumpriu
Direito Penal2 . E, mais que como Filósofo do Direito, Barat- com o compromisso de passar à ação, o que se viu em muitos
ta, por também ser sociólogo, cientista político e jurista, se dos criminólogos críticos na América Latina.
aprofundou nas masmorras teóricas da prisão, desmitificou as Baratta explica em seu livro Criminología Crítica y Crí-
doutrinas penais referidas à Escola de Defesa Social, e colo- tica de! Derecho Penal° que não há uma teoria única, um
cou sob os holofotes da pesquisa acadêmica, novas formas de conceito único de delito, nem haverá propostas únicas e
conduta antissocial, muito mais terríveis que as previstas nos imutáveis na história. A "Ciência" — o cientificismo, para ser
código penais, como foi o caso dos desaparecidos no período exato —, à maneira positivista, não tem nada a ver com essa
de sombra autoritária do Cone Sul. Esgrime uma atitude crítica reunificação, exercida por ele, da Ciência (entendida como
coerência e pertinência lógica) com a Filosofia.
' Sobre estas anotações, ver Pavarini, Massimo, "Para una crítica de la
ideologia penal. Una primera aproximación a la obra de Alessandro
Baratta totalizador
Baratta", em Revista Anthropos, n° 204, Alessandro Baratta. El pensa-
miento crítico y la cuesti6n criminal, Barcelona, 2004. Ver também Não obstante, Sandro — como ficou conhecido — faz pro-
Baratta, Alessandro, "Problemas abiertos en la Filosofia dei Derecho", postas metodológicas concretas para definir a Criminologia
Doxa, 1, 1984, p. 38.
1
É evidente que os trabalhos da Criminologia e da Sociologia Criminológi- 3 La Cuesti6n Criminal (La Questione Criminale) e De los Delitos y de
ca influíram no encontro de Baratta com a Criminologia e em sua relação las Penas (Dei Delitti e delle Pene).
com o Direito e a Dogmática Penal, aos que Baratta observou afetados ' Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução à Sociolo-
por uma "paralisia" ou "lentidão", por seu distanciamento da realidade. gia do Direito Penal, Coleção Pensamento Criminolágico n°1, Editora
Revan, 6' edição, 2011, Rio de Janeiro. IN. da T.)

372 373
Críticas. Sua vocação globalizadora, característica do intelec- A referência a liabermas e à ação comunicativa, que indubita-
tual tão ponderado quanto dessacralizador que ele foi, o fez velmente influiu em Baratta, levou também, ao longo dos anos,
incorporar, a partir de seus debates, desencontros e críticas — a uma reformulação da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. O
paradigma não é já o da observação, mas sim o da interrogação,
com outros e sobre outros pensadores progressistas —, tudo o
pois se trata de uma comunicação na qual o sujeito que comu-
que era recuperável para um mosaico razoavelmente compre-
nica deve introduzir partes suscetíveis de controle, de maneira
ensivo de temas tão complexos quanto o poder, a transgres- que possa encontrar a intersubjetividade. Só assim, entre ambos
são, a emancipação, o castigo, o abolicionismo, o garantismo os fatores da comunicação, haverá um possível entendimento
e até algumas características internas dos seres humanos. geral, e fará dela uma ação não contaminada pelo poder.

Propostas básicas Tudo isso entra no grande campo de batalha onde, em dife-
rente graus, e por diferentes razões, se enfrentam Garantis-
Isto é facilrnente discernível das suas propostas, expos-
tas, Minimalistas e Abolicionistas.
tas a seguir, e que serão os pilares da criminologia que ele
tenta construir: Baratta confessa, de maneira tangencial, seu coração abo-
licionista, mas se acolhe no garantismo e no minimalismo
Não é científico que a Criminologia Crítica estude causas por razões práticas.
a partir de definições por normas, convenções ou avaliações
sociais ou institucionais, sob pena de reilicar os resultados, 3. Ao mesmo tempo, rechaça os realistas de esquerda — os
como o fez a Criminologia Positivista, que terminou conver- três evangelistas britânicos do The New Criminology e seu
tendo-se em uma instância a mais do sistema penal; lema de levar a sério o delito ("to take seriously crime") —
por regressarem tanto a uma concepção objetiva quanto a
;Rechaça, por ser idealista, a teoria da Reação Social, pois uma concepção naturalista da objetividade, as quais, diz,
ao se considerar que o referido à criminalidade era somen- estariam orientadas pelo chamado "senso comum" ou opi-
te um resultado das definições, se obscurecem situações ne- nião estereotipada do cidadão comum.
gativas e sofrimentos reais da população, que poderiam ser
considerados como um referente objetivo dessas definiçõess. C.4.' Opõe-se à "radical non intervention" porque esta nega a
possibilidade de que haja alguma intervenção socialmente
Portanto, propõe o estudo de situações negativas, estejam
útil e oportuna.
ou não definidas nas normas legais, na medida em que cor-
respondam a construções teórico-científicas dos problemas cü Reivindica, contudo, a necessidade de estudar os proces-
sociais, e das necessidades reais, construídas em uma co- sos da definição próprios da Criminologia da Reação Social.
municação livre de poder. Dessa maneira, reconhece que há tanto uma dimensão com-
portamental quanto uma definicional. Portanto, a Criminolo-
5 Tal como disse no Congresso Internacional de Criminologia que ocor- gia Crítica deveria fazer uso de um método interdisciplinar.
reu em Medelin, em 1984.
No seu entender, haveria uma interdisciplinaridade ex-
6
E é que, ao dar conta do significado de etiquetas, signos, ou metáfo-
ras institucionalizadas, se a interpretação dessas estruturas simbólicas, terna, como processo de colaboração e remissão recíproca
ou inclusive de sua forma, não é o resultado de processos históricos, de conhecimentos, entre a Criminologia e as disciplinas da
mas que é livre ou relativa, parece óbvio que sobre os fundamentos conduta (como a Psiquiatria, a Psicologia e a Antropologia, as
ideológicos da Teoria Crítica, baseada no materialismo histórico, se quais, não obstante, também foram objeto da Crítica por suas
aproxime a ameaça de dissociar-se da práxis.

375
374
bases definicional e cientificista). E uma interdisciplinaridade CAPITULO XIX
interna no intercâmbio dos conhecimentos provenientes do
estudo do controle penal ou da Sociologia jurídico-penal.
A CRIMINOLOGIA DO CONTROLE SOCIAL (vi)

O sistema penal em questão. Legalidade como legitimida-


de. Sistema Penal e pobreza. Lei e realidade: as ficções do
Sistema Penal. Pobreza e espaço. Quantos Sistemas Penais
existem? A periculosidade do Sistema Penal.

O sistema penal em questão


O chamado sistema de Justiça Penal está adequada-
mente composto por adornos que ratificam a sua vocação
de poder: edifícios barrocos ou imponentes, togas, fórmu-
las sacramentais, papéis cheios de carimbos, reverência a
magistrados e disciplina interna nas salas de audiência, vo-
cabulário codificado, abundância de papéis, segurança ex-
terior e interior, toda uma série de símbolos de majestade e
autoridade.
Apesar da comprovada incapacidade do Direito Penal
para seus fins manifestos, ele foi selecionado, prioritaria-
mente, para solucionar problemas sociais e políticos. É ques-
tão, parece ser, por um lado, de economizar nos enormes
e complexos custos necessários para satisfazer necessidades
sociais; e por outro, de oferecer falsas "soluções" imediatas
com aparatosas reformas legislativas e as chamadas Leis de
Emergência, que pretendem tirar coelhos de cartolas com
alguns rápidos movimentos de ilusionismo.
Esse jogo de utilizar a legalidade (o Sistema Penal) como
legitimidade — para justificar simbolicamente um estado de
coisas que não interessa, ou não se sabe, ou não se pode
enfrentar de outra maneira —, essa ousada oscilação entre
os limites da legalidade e da ilegalidade, faz do tema da

376
criminalizaçâo e de seus procedimentos formais e informais irrevogável. E para proveito de alguns ambiciosos, subme-
grande problema atual da Democracia e dos Direitos Hu- teram desde então todo o gênero humano ao trabalho, à
servidão e à miséria'.
manos.
Na ilustração seguinte podemos ver a imagem hipoté-
As ficções do Direito Penal tica de Rousseau no século XXI: desorientado e alarmado
Enumeremos simplesmente, de forma sucinta, alguns frente às contradições que as instituições criaram, ao longo
aspectos da realidade do sistema penal desde o ponto de da história, na sociedade que se previu consensual por ser
vista externo, que ó o da Crirninologia Crítica. produto de um pacto realizado virtualmente entre homens
que para Rousseau eram "bons por natureza", e de acordo
Vejamos primeiro como isto se encontra particularmen.
) te no Direito Penal, que carrega vários postulados dogmáti- com o qual, entregavam par-
cos não sujeitos à verifisasão empírica os quais podemos, a te de seus direitos para que o
partir Criminologla, considerar ficções: Estado administrasse a paz e
a felicidade e provesse certa
Ca, A ficção da sociedade consensual; ordem que refletisse a "von-
NJA inocência Impossível; tade geral".
?.E))0 conhecimento interpretado; Por isso, e porque as
rd1:0 garantiu:no irrecuperável; instituições falharam, nin-
,.(.4))A perpátua mensagem penal;
guém quer ver-se refletido
. f):1/4 ficção da justiça ao alcance das mãos.
r
em um consenso do qual não
ra),A ficção da sociedade consensual participou; e hoje o chama-
do pós-contratualismo inclui
Que o sistema penal,_.suas incriminações, suas defini-
pluralismo.
ções do injusto e dos benQurídicos, ou sociais, tuteladas.
„sejam produto de um pacto social é uma metáfora obscura, ()A inocência iaossível Çiewyritir.
insidiosa e marginallzante, que não esteve na complexida-
Apesar de que, em teo-
de do pensamento rousseauniano (nem sequer no conceito
ria, e na boa consciência dos
hobbesiano de Estado, pouco menos que autoritário). De Ilustração de Ben Marchesini,
penalistas e filósofos críticos,
fato, Rousseau aspirava por uma sociedade onde todos se realizada para l'Espace Rousseu em
sentissem representados. Mas não se ocultou a si mesmo, Genebra, 2003
nem ocultou aos outros:
"Discours sur 1-origine et les fondements de l'inégalité parmi les hom-
que a origem da sociedade e das leis (...) deram novos obs- mes" (apresentado à Academia de Dijon, em 1754). A ilustração é
táculos ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem volta de Ben Marchesini, realizada para l'Espace Rousseu em Genebra, em
a liberdade natural, perpetuaram a lei da propriedade e da 2003, publicada em: Rousseau, Jean Jacques, Le Subversif, Paris, Hors
desigualdade; e de uma tola usurpação fizeram um Direito Serie Le Monde, 2012.

379
378
Direito Penal se assume como uma instituição garantista, quando há necessidade de manipular oportunistamente o tipo
na realidade — que é penal como uma forma de demonstrar "que se está fazendo
algo" frente às demandas e denúncias de cidadãos geradas
campo de batalha da Criminologia crítica como cri-
pelas incapacidades funcionais dos governos. Isso se trans-
minologia dos controles — encontramos algumas presunções
mitiu de tal maneira, como uma solução para a coletividade,
como a da inocência, que não se realizam no mundo insti-
que esta aceita pacificamente as incriminações como única
tucional. Neste mundo, o Ministério Público já não crê em
política preventiva, ou de pacificação, quando na realidade
"boa fé" e se dedicará a demonstrar o contrário; a defensa
são "panos quentes" sobre problemas de governabilidade.
pública costuma ser precária; e a pré-construção do este-
Essa colcha de retalhos, com frequência contraditórios entre
reótipo ou da manipulação • midiática colocarão um peso
si, que se encontra em alguns códigos penais, manipulados
obscuro no processo. A prisão preventiva, ou detenção sem
até seus mais extremos limites por reformas eleitoreiras, fez
condenação, que é — na prática — sine die, presume, ao con-
desaparecer por diversas vezes a coerência legislativa.
trário, a culpabilidade. Os fiscais do Ministério Público cos-
tumam fazer carreira graças ao número de processos nos que Se o conhecimento da lei não existe, então tem-se que
resultado é condenatório. Ou ainda os submetem ao verti- presumi-lo! E é uma suposição que compreende uma forma
cal princípio da unidade de critério do Ministério Público, o de sanção: "A ignorância da lei não dispensa seu cumpri-
qual, segundo os recursos da justiça negociada e do princí- mento". Em seguida, a Dogmática se esforçará em falar so-
pio de oportunidade, decide sobre a criminalização em cada bre erro de fato ou de direito, erro imperdoável e uma varie-
caso concreto, deixando a Teoria do Delito como uma ma- dade imprevisível, porque dependerá dos autores, de formas
rionete. E parecia que, frente a uma consolidada atitude so- de "erros" derivadas dessa confortável suposição.
cial repressiva, o melhor juiz é aquele que aplica sentenças O garantismo irrecuperável
mais fortemente punitivas. Tanto na Venezuela quanto na
Argentina, os gigantescos atrasos processuais provocam as A incapacidade real de aceder ao conhecimento da lei
se alimenta também da incessante produção de "Leis Espe-
confissões automáticas de presos possivelmente inocentes,
ciais", fora do clássico princípio da codificação como garan-
em busca de uma sentença que seja imediata, para poder
tia de segurança jurídica, nas quais, sob o manto de ser de
aceder às possíveis antecipações do processo de liberdade.
caráter administrativo, se incluem delitos com todas as suas
eo conhecimento interpretado
A esse Direito também se supõe certo conhecimento,
consequências, menos, claro, as garantias penais.
Assim, mesmo que o respeitável, mas desrespeitoso, ga-
mesmo que essa suposição exista, precisa e justamente, por- rantismo lute pela recodificação do penal, pareceria que é
que para o cidadão comum é impossível ter acesso a esse um dos esforços que nem o empenhado senhor Hércules da
conhecimento. Por vezes, é impossível até para uma boa mitologia grega poderia levar a cabo. Porque o penal, e o ul-
parte dos juízes ao longo da América Latina, pela apressada trarrepressivo, apesar dos esforços abolicionistas, se expande
e constante incorporação de tipos penais no mesmo código irremissivelmente, para o campo da jurisdição administrati-
(isso que se chamou de "o Direito Penal de emergência"), va, sem processo garantidor.

381
380
Vejamos quais são alguns dos métodos ocultos de castigo e y\ perpétua mensagem penal e o populismo punitivo

Por um lado, fala-se em descriminalizar e sobre um Di-


'J. -24:- •
ia st iãkt..??..l.s CrirninSfiiagg
reito Penal nuclear ou mínimo; e por outro, se criminalizam
,irtc3:i.°
condutas que antes não eram criminalizadas.
S .j-• -4 r
O.tc'asti 0,
restáss9,...„...-,
./5e rs o2.1
iN justiça ao alcance das mãos
.
-172pli-fiáérdáraúQ@s Encontramos também a ficção de que o acesso à Justiça
'

. t ,tipd"41,AV-4NRESR,4èg, realmente existe; o que não é certo para a maioria as pesso-
as, especialmente as mais frágeis socialmente, que mesmo
sendo o objeto, mais que o sujeito, prioritário do Sistema Pe-
;;;.•;0 u t pa an áièin s g r
--fi
...t.,d
,-..;;LeriebaO
.eN•zfmR .iftsoa
ksztt;-,a
.yk wn:i44,e .?d•e.s t6ç rtaoi12;t - y ' ,o
7 tj.giiwav nal, devem atravessar, desprovidas de habilidades— a menos
9ireen atcè4maconditarcirmen01zadataAtOlMeersa4
, , .,
:0s .5.5;. r`,..r•n
..e4i ,. ; - s.. cà. .'c...n4:t
•s r.~ e..,s..-t st ' que possam pagar assistência de especialistas qualificados—,
_taitss.acomn,rih,viaCife?.garantrasv
"- .1M2.5.effi'.kAW'jisift*WSWP~Si.Y.,,W labirinto kafkiano d'O Processo'.
a?' E, além disso, manejam-se conceitos subjetivos e abs-
2,+4 +.t •••••••tn- iTt ei tratos como a chamada ign±22±W; e a ficção da qua-
ão`Irnétodos o ultos de castigo] se divertida e etérea imagem do "espírito do legislador" que
não é mais que a vontade de uma intencionalidade política
dominante.
Medidas legais Medidas legais É o pobre, o sem poder, que carrega sobre suas costas
que excluem que privam de direitos peso dos mitos. Tratam-se de dogmas, entendidos como
princípios inegáveis, mesmo que sejam doutrinas mantidas
,Sançoes4córioéXcsSo» por uma organização de autoridade e não submetidas à pro-
rN
- teili'agagemtP(S:ápreàaci.),4 va de veracidade. Uma dogmática que estabelece um dever
ser, mas que não o é.
Confiscos, multas, expropriações não indenizadas

Penas informais do sistema penal subterrâneo


2 o Processo é um livro fundamental, escrito por Kafka, um novelista e
não um jurista, filho de judeus, e, portanto, suposto herdeiro da tradição
da autoridade suprema e indiscutível do Pater Familiae; ou que talvez
A constante descodificação que se fez do punível, ex- representasse nos pesadelos processuais, o irracional extermínio legali-
pressa a obsessão repressiva como única e possível solução zado do Holocausto. Essa novela (que se supõe surrealista, mas que não
para os problemas sociais, administrativos e burocráticos. é exatamente) descreve os passos perdidos de Joseph K. pelos con-
fusos labirintos, arquivos, escreventes e fórmulas de processos penais,
Ratifica-se assim, a função praticamente simbólica do
pelos quais o próprio Joseph K. teria sido acusado... de ser acusado!
Direito Penal.
383
382

—weie—LmeleY— ..11111.
Em definitiva: uma vinculação muito forte, que na Amé- Poderíamos nos perguntar como seriam as prisões ou
rica Latina se faz mais evidente, entre a pobreza e a totalida- se elas existiriam se os ricos fossem para a prisão°. De fato,
de do Sistema Penal. em um país latino-americano havia prisões especiais para
pessoas com poder. Mas também, quando por alguma cir-
l Outra ficção: legislação penitenciária excelente. Mas
cunstância excepcional essas pessoas são imputadas ou apri-
realidade infernal: pobreza, tempo e espaço, e sistema pe-
sionadas, seus lugares de reclusão são mais exclusivos.
nal.
O tema do espaço também se relaciona — como foi pes-
Isso pode ser explicado com uma fórmula que parece
quisado por Karen Von Groningen sobre a defensoria pública
simples, ainda que seja terrível:
na Venezuela — com o escasso número de páginas dos expe-
Essa relação entre pobreza e sistema penal é notada cla- dientes, com a quantidade e qualidade das provas colhidas
ramente nas condições das prisões latino-americanas, não só e descartadas (e por consequência de longas condenações
pelo vínculo — já descrito e anunciado por Rusche e Kirchhei- como conclusão) nos juízos de quem não pode pagar por
mer, por Melossi e Pavarini, por Foucault e pelas pesquisas de uma defesa privada. Deve haver poucas e honrosas exceções
Wacquant, entre sistema penitenciário, mercado de trabalho latino-americanas, mas é uma pesquisa que convida ser re-
e função simbólica de estereotipia e estigmatização do "outro- plicada em outros países da região.
-inimigo", e do bem e do mal na sociedade — mas também
Não é só o espaço; também o tempo dos processos pe-
pelas relações entre espaço e pobreza, que são uma carac-
nais opera contra os pobress.
terística da vida cidadã em geral. O espaço é compartilhado
pelos pobres com muitas outras pessoas, tanto nas salas de- E o que ocorre como consequência? A presença de vá-
aula quanto no transporte público, nos hospitais de assistên- rios "Sistemas Penais".
cia social ou nos mercados de alimentação. E esta é só uma
enumeração preliminar. Mas, na medida em que se ascende
de classe social, o espaço se reduz, tornando-se mais exclusi- do ser submetidos a modalidades de privatização. Em geral, se preferirá
vo, isto é, para pessoas que extraem um maior benefício em o regime aberto e o caráter de colônias agrícolas penitenciárias. Em todo
tempo e qualidade de vida. Isso também pode ser observado caso, as fórmulas de cumprimento da pena não privativas de liberdade
na prisão, onde a superlotação é particularmente asfixiante e de aplicarão com preferência às medidas de natureza reclusiva".
E também, o art. 18 da Constituição Argentina: "... As prisões da Nação
causa graves problemas de saúde e de socialização3.
serão salubres e limpas, para segurança e não para castigo dos réus nelas
3 Incluímos como exemplos de, provavelmente, todas as míticas legisla- detidos, e toda medida que a pretexto de precaução conduza a mortificá-los
ções latino-americanas em matéria penitenciária, o art. 272 da Consti- além do que aquela exija, o juiz que a autorize, será responsabilizado".
tuição Venezuelana, que diz textualmente: "O Estado garantirá um sis- .)
(.4 "Se os ricos fossem às prisões as prisões desapáLts2L_ Hiam", disse uma
tema penitenciário que assegure a reabilitação do interno ou da interna vez o penitenciarista Elio Gomez Grillo, talvez com muita propriedade.
e o respeito de seus direitos humanos. Para isto, os estabelecimentos pe- 5 Ver Carranza, Elías; Houed, Mario; Liverpool, Nicholas; Mora, Luis
nitenciários contarão com espaços para o trabalho, o estudo, o esporte e Rodriguez Manzanera, Luis, Sistemas penitenciados..., op. cit.; e
e a recreação, funcionarão sob a direção de profissionais penitenciários Carranza, Elías (coord.), Carcel y justicia penal en América Latina y el
com credenciais universitárias, e serão regidos por uma administração Caribe, publicações de ASDII, ILANUD, Siglo XXI-Raoul Wallenberg
descentralizada, a cargo dos governos regionais ou municipais, poden- Institute, 2009.

385
384
Quantos sistemas penais existem? instituições dominantes, por exemplo, os de alguns grupos
de imigrantes, africanos ou de outros países e os religiosos
Sistemas Penais
que praticam procedimentos não aceitos no Ocidente, como
a ablação do clitóris das meninas; ou os grupos indígenas
cujos meios de resolução de conflitos são diversos, sejam
Sistema Penal O Sistema Penal os reconhecidos, como algumas modalidades das Rondas
-Formal (simbólico) Privado Campesinas no Peru, sejam os não reconhecidos e suas
formas resolutivas entram em oposição ao sistema penal
dominante, como a prática do "olho por olho" em alguns
grupos étnicos (o caso dos wayúu, na Venezuela); e tudo o
Sistema Penal que é denominado como o "Outro Direito" - em ocasiões,
Subterrâneo (manipulado O Sistema penal
mais "civilizado" que o da cultura e do Direito dominantes
pelo Estado) - dó N)utro"
-, que é a maneira como em espaços particulares os confli-
tos se resolvem. Isso inclui os modos de mediação, o papel
dos "negociadores" ou as compensações econômicas pelo
A ponta do iceberg é o Sistema Penal Formal, o qual dano produzido. Também é Sistema Penal "do outro" o das
dissemos, é simbólico, pois se ocupa de uma parte mínima denominadas Mafias, ou outros grupos delitivos com algum
dos conflitos sociais. É o sistema estatal. grau de organização ou coesão.
O Sistema Pfinial Pcivado.é o que se realiza cotidianamente. O Sistema Penal Subterrâneo6 também é mar_lipulado
na vida so - cial,onde_as_p_esnlyemas í conflitos pelo Estado e chamá-lo dessa maneira traz à luz sua per-
como desejam ou podem, dentro de um amplo leque de versão, pois se execut-OEFIrtin-do que—é- a .fo-rma_.como re:
indifer-enças, e às vezes até por ignorância que alguns têm almente o Estado deseja resolver, e -em m - uitos casos resol-
de se reconhecerem como vítimas de condutas danosas; isso -giã'i -7-7)-ida, e às vezes a mais
ve, os conflitos. É a manãra-r
quando não agem por meio de vinganças privadas de todo aplaudida por quem ignora os riscos que ela comporta. Mas,
tipo, incluídas as violentas. sobretudo, a mais perigosa para os cidadãos e os Direitos
Sistema Penal Privado teme consequências de tipo Humanos, pois acontece à margem daJei...0u contra ela.
funcional, pois está fora dos registros oficiais, deixa na obs-
curidade os delitos dos poderosos, e não sempre deixa de
oferecer riscos para o controle das violências verificadas pe-
las policias privadas.
6 Ver Aniyar de Castro, Lola, "Derechos Humanos, modelo integral de
Sistema Penal do "outro" é o que pertence às la Ciencia Penal y Sistema Penal Subterráneo", en Sistemas Penales y
subculturas - e se verifica nelas - de quem forma parte Derechos Humanos en América Latina (Primer Informe). Documentos
de grupos étnicos ou nacionais diferentes aos da cultura e y euestionarios elaborados para el Seminario de San José, 1983, ob.
cit., pp. 233 e ss.

387
386
Mortos,
feridos e torturados
nas prisões

Estes assassinatos e os que acontecem nos estabeleci-


mentos penitenciários não estão sequer registrados nas cifras
de homicídio do país:

Sigieffirát,RdWallSifititèrefrieb9,j

A administrativização Os castigos
do sistema penal ocultos

O Sistema Penal Subterrâneo:


grave problema para os Direitos Humanos.
O que gera?

Na época das ditaduras latino-americanas, nos regimes


que ainda eram democráticos, a esses mortos os denominá-
vamos como "os mortos das democracias".

;;Extelmfnicksrdo,r,sistemwpenálrsubtetrâneo
EXECUÇÕESt;EXTRIAJODICIAI

389
388
O rri'édó determina reações:: repressivas : enquanto que CAPITULO XX
I 1996 32% da população oPihaNf. if- ánéa.00líéia.ánha direito
eSSa-cifra-àunienyói.iipari 38,4% em 2004 Em março;
00:Z0 113.,- 58- presos foram desarmados, despidos assassina — A CRIMINOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS (I)
dos, e centenas foram feridos pfria,Griarda-iNacional- ,
durante- uma i çidadãciy,çõmLítieagUarti,égril
aprovação e: A introdução do tema dos Direitos Humanos na Nova Cri-
minologia. Limitando o Sistema Penal. A discussão sobre
"o criminalizável": o casal Hermann e Julia Schwendinger.
Isso acontece apesar das disposições legais, e pior ain- Baratta e o referente material do delito. Aniyar de Castro so-
da, constitucionais, frente ao Sistema Penal Formal, domi- bre as necessidades reais fundamentais. Baratta e o respeito
nante ou legal. aos Direitos Humanos na Lei Penal. Baratta e os princípios
do Direito Penal Mínimo. Uma teoria dos direitos humanos
O que diz a Criminologia dos Direitos Humanos?
como objeto e como limite da lei penal. Princípios intrassis-
temáticos e extrassistemáticos. O sentido dos Direitos Hu-
manos para a Criminologia: um olhar ético.

Limitando o Sistema Penal. Primeira abertura da


Criminologia para os Direitos Humanos: o crimi-
nalizável
discussão entre Abolicionismo e Direito Penal Míni-
mo - e os trabalhos e a crescente tendência na sociedade
ocidental pela descriminalização, pela desjudicialização, e
pela reapropriação dos conflitos, mais a aspiração expressa-
da por Taylor, Walton e Young7 de uma sociedade onde não
houvesse a necessidade de criminalizar - trouxeram como
consequência, entre outras coisas, a interrogante sobre que
incriminações seriam necessárias, ainda que fossem para
concretizar esse Direito Penal Mínimo provisoriamente. Esse
é o tema do "criminalizável".

7 The New Criminology, op. cit.

390
Nos extremos do debate teórico sobre o que deve ser tes nesses anos nos Estados Unidos sobre "o particular" (Ta-
considerado e positivizado como delito, encontramos diver- ppan, Sutherland, Sellin), às quais qualificaram como de-
sos pontos de vista, alguns deles opostos. bates entre "conservadores e reformistas", introduzem, pela
O absolutamente valorativo primeira vez, o tema dos Direitos Humanos na Criminologia
e propõem a Carta das Nações Unidas de 1948 como base
Para o jus-naturalismo, os direitos seriam imanentes à
para definir o delito, considerando essa Carta como uma de-
condição natural do ser humano. Segundo os jus-naturalis-
finição universalmente válida.
tas, haveria uma Ordem Natural. Portanto, os direitos exis-
tem à margem de qualquer referência aos processos de cri- Em um primeiro momento propõem:
minalização ou de positivação do Direito. Criminalizar as viola_ções aos Direitos Humanos previstos
No Positivismo está Raffaele Garofalo — um dos pais des- na Carta das Nações Unidas;. consideram que. são delitos,
especificamente, o sexismo e o racismo (que podem- abri-
sa corrente — que, como vimos, definia um conceito de "de-
lito natural" como a lesão aos sentimentos de piedade e pro- gar-se no princípio de não discriminação), e o militarismo;
biíraïíj-e-xistentes nas caciedades superiores "civilizadas". Posteriormente, em 1970, ao avaliar que algumas leis que
protegem a propriedade, a segurança e os direitos econô-
Esse absolutismo valorativo talvez tenha contribuído
micos e políticos (como o direito à greve e a à dissidên-
para que Garofalo, por sua crença nas "sociedades superio-
cia política) podem ser úteis à classe trabalhadora e podem
res", não só se filiasse ao fascismo italiano, mas que chegas-
se a defender a pena de morte e a eugenia. contradizer os interesses dominantes, propõem que sejam
mantidas como base para uma definição do delitivo;
A Criminologia Radical, ou marxismo ortodoxo, está re- •
presentada nesse tema pelo casal Schwendinger'°. Esses auto- • Em 1977, definitivamente afirmam: "Os direitos de classe
res, partidários dos movimentos radicais da década de 1970, que reproduzern.p capitalismo devem ser. proibidos,. e. _os
que favorecem à classe trabalhadora devem ser afirmados".
depois de examinarem com cuidado as polêmicas existen-
(L)A "piedade", como vimos em ocasião da Criminologia Positivista, se O a-valorativo
relacionaria aos homicídios, violações, lesões etc.; a "probidade", aos
O Interacionismo (o abolicionismo que vimos é sua últi-
furtos, roubos e estafas.
Garofalo não encontrou atos que fossem puníveis em todas as partes
ma consequência), por sua parte, não crê em valores únicos
e em todas as épocas. Sendo assim, depois de ter pesquisado os atos e absolutos e poderia ser considerado como uma proposição
puníveis através da Antropologia, optou por se referir não aos atos, a-valorativa,. não porque negue os valores, mas pela concep-
mas aos sentimentos. ção que tem da sua relatividade:
In
Schwendinger, Hermann e Julia, "2Custodios dei Orden o defenso-
res de los Derechos Humanos?", em Taylor, Walton e Young (eds.), o absolutamente a-valorativo, o pragmático e a análise
Criminologia Critica, op. cit. O trabalho original, contido em Crime sistêmica, como propõe Niklas Luhmann'.
and Social Justice, é de 1977. Ver, dos autores: "Clases sociales y la
definición dei Delito", em Capitulo Criminologico, n° 13, Órgão do Este é um resumo injustamente comprimido de um dos pensadores
Instituto de Criminologia "Dra. Lolita Aniyar de Castro" da Universi- mais complexos da filosofia social alemã, disperso em múltiplas pu-
dad dei Zulia, Maracaibo, 1985; e "Defenders of Order or guardians blicações. Talvez sua obra mais difundida tenha sido Soziale Systeme.
of Human Rights", em Issues in Criminology, n° 15, Berkeley. Grundrig einer allgemeinen Theorie, 1984 (Sistemas Sociales. Line-

392
393
Para esse autor, "acabou-se a era do Direito Natural e, A posição de Herbert Hart2 e as necessidades hu-
portanto, nos últimos duzentos anos acabou-se a confiança em manas (human needs)
que a lei possa organizar a realidade social e política", ou ainda,
Herbert Hart demonstra que existem condições naturais
"Quem pode universalmente afirmar que a cultura é um valor
nos seres humanos que requerem uma atividade protetora.
maior que o da higiene, ou o da liberdade, maior que o da paz?".
Essas "condições naturais", e suas proteções necessárias, se-
O Poder e a Lei, para esse autor, devem ter a função de riam as seguintes:
reduzir as complexidades do sistema social.
A Aproximada Igualdade: nenhum ser humano é tão pode-
Portanto, propõe: roso que possa submeter outro por muito tempo sem coopera-
O Bem Jurídico Tutelado deveria depender de um ção. Isto determina a necessidade de uma contenção recíproca.
"acordo intersubietivo" tecnológico-estratégico. Isto é, A Vulnerabilidade Humana: se o ser humano fosse in-
provir de um acordo entre as partes que se encor
_sm vulnerável, não existiria a proibição "não matarás".
em conflito em uma sociedade-
O Altruísmo Limitado: nenhum ser humano é total-
C.) Os valores, como consequência, podem ser opor- mente bom nem totalmente mal: se encontra entre ambos
tunistas. Para selecioná-los, em cada ocasião, devem extremos. Portanto, se requer uma contenção recíproca de
levar em consideração: condutas danosas.
Quais são possíveis ou urgentes e Os Recursos Limitados para satisfazer as necessidades
Quan to ea tizsw,...aa.pcsitisaasJiversaLyat. de todos: implicam na proteção de certa forma de proprie-

dade, particularmente para as necessidades de alimentação,


ED Deve assegurar-se que os valores preteridos circula-
rão ordenadamente (isso assegura o consenso de quem
vestimenta e refúgio.

deve esperar); A Criminologia Critica: Baratta e o "referente material


4. O sistema pode esperar se o espectro de valores é do delito"'
acessível de forma organizada. Como explicamos, ao nos referir sobre a fundação da
Assim, á ideologia serviria para escolher:(áD) programa Revista Dei Delitti e delle Pene e suas propostas para um Di-
de valores, e b)-bs sacrifícios e renúncias que este comporta. reito Penal Mínimo, Baratta propôs concretizar um "referente
2 Hart, H la, Punishment and responsability, Oxford, Clarendon, 1968, ci-
tado por Macklin Fleming, Sobre crimenes y derechos. El Código Penal
visto como una Carta de Derechos, México, janeiro, 1982.
3 Ver Baratta, Alessandro, em Dei Delitti e deite Pene, ano 3, «3, 1985.
Em espanhol: "Requisitos mínimos dei respeto a los Derechos Humanos
amientos para una teoria general Compendio de tina teoria social, em la Ley Penal", em Capitulo Criminolágico, órgão do Instituto de
1992). Para Luhmann, a sociedade não está composta por seres hu- Criminologia da Universidad dei Zulia. Baratta, Alessandro, Criminolo-
manos, mas por comunicações. Os seres humanos são simplesmente gia Critica y critica dei Derecho Penal, México, Siglo XXI, 1986. Idem,
o entorno social dessas comunicações. E o Direito seria um dos subsis- "Entre la política de seguridad y la política social", em Carranza, Elías
temas do Sistema Social. (ed.), Delito y Ia seguridad de los habitantes, México, Siglo XXI, 1997.

394 395
material do delito", isto é, determinar que tural, as necessidades humanas que possam considerar-se
interesses ou necessidades, mínimos, de- fundamentais.
veriam ser objeto de tutela penal^. Desses aportes, selecionou as comunidades pesquisa-
Os elementos para aproximar-se a das por Malinowski6, que se refere a uma tábua de necessi-
esse referente, segundo Baratta, são: dades básicas, que parecem suficientemente explicativas dos
(9 Reconhecer que o ser humano é requerimentos para a sobrevivência humana em condições
portador de necessidades materiais que dignas. A estas necessidades básicas, somam-se suas corres-
sejam reconhecidas como "necessidades Alessandro Raratta pondentes concomitantes culturais.
reais fundamentais"; Seriam necessidades básicas: o metabolismo &reprodução,
(f.";Que haja um acordo intersubjethLo_ m m omu- c bem-estar corporal, a segurança, o crescimento, o_movimento
nicação livre de domínio • com o qual absorve a objeção a saúde. São suas concomitantes culturais:-_.a comida,
_o paren-
de Habermas, filósofo da Escola de Frankfurt, que alegava tesco, o abrigo, a_protes_ão, o exercício, as atividades, a higiene.
que ainda que o "acordo ~jetivo" fosse um ideal a ser
perseguido, este deve dar-se em uma comunicação livre de . 4 2-4 -1-1—
Án.iiy.at-:!-QU'ai: s'ião-;-essis- necessídadéséaís-r
poder. Deve consistir em uma real "comunicação". E a ver- i 4 -L44.i.i..
füriaahlrentáki_ , 12 i , .. .,2 ., , . ,.......: .j. _
dadeira comunicação é intersubjetiva, isto é, de mão dupla; ; H :! .11 t... , :,.. ; 4 4 i.H1 .11
Ailàhriewski-att rçditaz citie. são- decessidadesj-t tm t .
çá:: Que essas necessidades sejam generalizáveis: Que ao básiCis.iS:Segu.intes., e diz quais são C:.s retgie-j_i_„;_,_
se produzir a liberação das classes subalternas se -produza- - rinieniots!Para- atisfai&-los+ ,I•st-LH 1
a liberação da sociedade em geral. Com o qual concorda ,--r,n -.- ; +r ti : • : I- I 1
Necessidades básicas Concomitantes
com a afirmação de Filippo Sgubl —P, que propõe a proteção
culturais
dos interesses difusos, isto é, que os interesses que se devem
proteger sejam generalizáveis e fundamentais para todos; Comida
Metabolismo
(41-Que as necessidades possam ser satisfeitas na medida Reprodução Parentesco
dos recursos disponíveis em um momento e lugar dados. Bem-estar corporal Abrigo
Segurança Proteção'
A pergunta que surge, então, é: quais são as necessida-
Crescimento Exercício
des reais fundamentais?
Movimento Atividades
Lola Aniyar buscou na Antropologia, que indica exem- Saúde Higiene _
plos de uma compartilhada e reconhecida experiência cul-
-5as: 11*---t -r -l-nr-r1-4,- r.; 1 -: .-t

Aniyar de Castro, Lola, "La Nueva Criminologia y lo criminalizable", Os bens a se proteger então, seriam: a vida, a integri-
em Capítulo Criminológico, ri° 15, Maracaibo, órgão do Instituto de dade pessoal, a nutri_ção o estado civil, a seg_urança física, a
Criminologia da Universidad dei Zulia, 1987. Os penalistas já haviam
tentado esclarecer esse tema, ao tratar do Bem Jurídico. 6 Malinowski, Bronislaw, Una teoria científica de Ia cultura, Buenos
Sgubbi, Filippo, "Tutela Penale di Interessi diffusi", em La Questione Aires, Sudamericana, 1970, p. 109.
Criminale, 1975.

396 397
liberdade espiritual e material o crescimento_fisico e espiri- vida uma revalorização dos aportes liberais da Criminologia
tual, o espaço, os medicamentos e o ambiente. Clássica de contenção do Poder.
Isso se conjuga ao estilo antiautoritário presente em sua
.4 • E:
• • • iE
• •;IE•Ii•EEEEI. disposição pelas alternativas à pena e à resposta restitutiva;
Arnyar: o-Estado 'deve 'responder a iessasFnecessit
-1 !:1
.! •-"'' !!!!
-1-!; - t •• •; - i • em sua afirmação sobre a necessidade de priorizar o con-
Odes- básicas prptegendoio's seguintes bens:4-1-
.1*i ;- I (-ti • • 1.• H j- -1.-- trole proativo (prevenção) antes do reativo; no seu chamado
-;-41 1.1 a acentuar a primazia da vítima no processo penal; na sua
•• • • •' !
I ! tTtt
asseveração de que tem que se prescindir metodologicamen-
Necessidades Bens a se proteger
te dos conceitos de delito e pena, para melhor enfocar as
origens do conflito em busca de soluções melhores que a
Comida - Vida, integridade,
Parentesco nutrição, estado pena (o que constitui a sua aceitação de alguns postulados
Abrigo civil, segurança de Hulsman, como resíduo de suas discussões sobre a aboli-
Proteção física, liberdade ção do Sistema Penal).
Exercícios espiritual e material, Por isso, quanto à prisão e a pena de prisão, e já no
Atividades crescimento físico e campo das Teorias da Pena, Baratta nos diz que a teoria do
Higiene espiritual, espaço, castigo ou neutralização é uma falácia naturalista, pois eleva
medicamentos, atos (o penitenciário) a normas, enquanto que a teoria da
ambiente
ressocialização é uma falácia idealista, pois se trata de uma
norma que não pode ser realizada. A alternativa entre esses
poios, afirma, é uma falsa alternativa. Devemos aceitar que
Baratta e os Direitos Humanos a prisão não ressocializa; e ao mesmo tempo que aconselha
manter a ideia da reintegração para não ceder às teses ne-
Marxista ou não marxista, liberal ou garantista - uma
discussão inútil, porque a evolução do pensamento, que oclássicas e neoliberais, propõe reconstruir a reintegração
deve ser livre, necessita de todo tipo de ingredientes-, Barat- sobre diferentes bases. A reintegração do condenado não se
ta pode ser definido - ao final de sua vida - por sua trajetória produzirá, pois, através da prisão, mas sim, apesar dela. Este
e angústias, como um criminólogo dos Direitos Humanos. seria seu conceito sociológico da reintegraçãq

De fato, mesmo que reconheça que o sistema penal não Mas em definitiva, diz, a ressocialização ou tratamento
é o mais idôneo para defender os Direitos Humanos, afirma é um direito - e não uma obrigação -, já que em uma ordem
que somente a violação dos Direitos Humanos fundamentais justa tem que se dar espaço à diferença.
pode ser objeto de tutela penal. Com is-so, fundamenta sua Por isso, trata-se de buscar não só uma prisão melhor
assunção do Direito Penal Mínimo, como conclusão de seus - está claro que a melhor prisão é a que não existe -, mas
encontros com o pensamento garantista de Ferraioli, sem dú- menos prisão.

398 399
1~

indígenas que receberiam dupla penalidade; o do devido Com a união de todos os elementos presentes nas dis-
processo (procedimentos secretos, detido incomunicável e cussões que se produziram no ambiente de fim de século,
todas aquelas atuações insidiosas do que temos denominado Baratta vai realizando uma linda e democrática tarefa in-
de "sistema penal subterrâneo" (detidos sem condenação, tegradora. Com ela matiza as considerações do marxismo
defesa pública deficiente, falta de acesso real à justiça etc.)9. autoritário sobre os Direitos Humanos do casal Schwendin-
Essa consciência, ou melhor, essa sabedoria detectada ger, sem se distanciar do seu compromisso com os sujeitos
pela pesquisa empírica latino-americana, justificava, a seu despossuídos e arma um quebra-cabeças no qual todas as
entender, o Direito Penal Mínimo, posto que permitiria de- posturas do pensamento progressista irão convergir em um
tectar as diferenças entre a operatividade real do sistema pe- mesmo ponto'. É também o Baratta integrador que propõe,
nal e o discurso legal. como vimos em outras alianças de interesses, uma "Crimino-
logia Mestiça". Sandro fazia uso de seu conhecimento sobre
Com razão, Pavarini disse em um ato dedicado à me-
pesquisas latino-americanas para propor seu Direito Penal
mória de Baratta: "A partir da análise das contradições eco-
Mínimo, pois aqui existiriam condições pré-beccarianas, tal
nômicas, políticas e sociais daqueles países, Sandro lia mais
como foi demonstrado pelo Projeto de Zaffaroni: Direitos
claramente nosso mundo, o primeiro mundo. Porque, em
Humanos e Sistemas Penais Latino-americanos, onde em
definitiva, quanto mais uma sociedade está construída sobre
todos os países se violariam todos os princípios do Direito
a desigualdade, mais ela necessita de meios repressivos para
Penal Liberal: o da legalidade (execuções extrajudiciais); o
manter a ordem"".
do juiz natural (julgamento de civis por militares, órgãos ad-
Baratta e os princípios do Direito Penal Mínimo. Uma ministrativos e policiais); o do non bis in idem, no caso dos
teoria dos direitos humanos como objeto e como li-
7 Em Dei Delitti e delle Pene, ano 3, d. 3, 1985. Versão em espanhol:
mite da lei penal
"Requisitos minimos...", op. cit. Este, e nenhum outro, é o seu argu-
Em um artigo que resume os princípios do Direito Pe- mento conclusivo: "Na articulação autônoma da própria consciência dos
nal Mínimo", Baratta se propôs a, segundo suas próprias conflitos e de suas necessidades de direitos em urna comunicação livre
de poder, a ideia da democracia e da soberania popular é o guia para
palavras, realizar uma articulação programática da ideia da
transformar o estado formal de Direito no Estado dos Direitos Humanos".
mínima intervenção penal como guia para una política penal 8 Ver Martínez, Mauricio, "El sur que amaba el Profesor Baratta. Lati-
a curto e médio prazo. Essa ideia pretendia, então, ser uma noamérica como referente material para ia construcción de ia Crimi-
nologia Critica", em Revista Anthropos, ri" 204, op. cit. Em oposição
ao etnocentrismo próprio dos europeus e de alguns outros que, sem
Ver Aniyar de Castro, Lola, "Derechos Humanos...", pp. 233 e ss., op. cit. sê-lo, se mimetizam com eles, advogava por um Estado Mestiço, e
'° Ver seu "Criminologia Critica e Politica Criminale Alternativa", em La pela globalização dos Direitos Humanos. É como defendeu: o centro
Questione Criminale, ano III, n° 3, pp. 339-359. Ver também a entre- do mundo devia estar onde os conflitos da sociedade capitalista se
vista a Barata em Martinez, Mauricio, em Qtié pasa..., op. cit., pp. expressam com maior nitidez; onde a repressão das necessidades reais
159 e 160. é mais evidente, onde o recurso ao controle punitivo é mais descarado
11
Baiana, Alessandro, "Principios dei Derecho Penal Mínimo (Para una e presente. De alguma maneira, como dizia, onde subsistam condi-
teoria de los derechos humanos como objeto e limite de ia ley penal)", ções pré-beccarianas. Ver também: Aniyar de Castro, Lola, "Sandro,
em Doctrina Penal, ano X, n" 40, Buenos Aires, Depalma, outubro- el Hombre, el Maestro, el Amigo, en América Latina", pp. 114 e ss.
-dezembro, 1987, pp. 623-647.

400 401
resposta à questão acerca dos "requisitos mínimos de respei- Requisitos mínimos dé respeito
to dos direitos humanos na lei penal". aos Direitos Humanos na Lei penal
Para Baratta, o conceito de direitos humanos assume
a ft -; ão. Em primeiro lugar, uma fun ão negativa,
uma dup_L__
Mínima intervenção como Política Penal
concernente aos limites da intervenção penal; em segu
lugar, uma_inap__Pasitiva
ft em relação à definição do objeto,
possível, mas não necessário, da tutela por meio do direito
penal, segundo o autor. Isto é, a violação aos Direitos Hu- Negativa: limites da intervenção penal
manos seria o núcleo do criminalizável. Função dos
Sobre isso, cabe assinalar que para Baratta um conceito
Direitos Humanos Positiva: definição do objeto possível,
histórico-social dos direitos humanos permitia incluir como
mas não necessáriõ; da 'tutela penal
possível objeto de tutela penal, além dos interesses indivi-
duais, também aqueles coletivos, como a saúde pública, a
ecologia ou as condições laborais. Segundo sua perspectiva,
os conceitos de "segurança de Estado" ou "ordem pública" Deriva das pesquisas da Criminologià.Crítida Sobre os
tendem a ser relativizados desde o ponto de vista das neces- sistemas punitivos:
sidades dos homens e da comunidade, e não o contrário.
Suas manifestações
Baratta apontava a influência em suas ideias da pesquisa le-
vada a cabo na América Latina e que foi coordenada por Suas organizações
Zaffaroni nos anos 1980— à qual já fizemos referência no ca- •• Seu funcionamento
pítulo relativo à nova criminologia latino-americana —, que Suas funções reais
apfirmava a necessidade de instrumentar a articulação de um
conceito amplo de direitos humanos, tanto dos individuais
quanto dos econômicos e sociais, como critério de valoriza- Os princípios que se articulam ao nível da lei e à ideia
ção para uma análise crítica dos atuais sistemas punitivos. da mínima intervenção penal se agrupam, segundo o autor,
Para Baratta, o conceito de direitos humanos, na dupla em duas categorias:0o ponto de vista interno dá lugar aos
função assinalada, é o fundamento mais adequado para a princípios intrassisternáticos, que indicam os requisitos para
estratégia da mínima intervenção penal e para a sua articu- a introdução e manutensão de figuras delitivas na lei (o que
lação programática no quadro de uma política alternativa do incluir e o que manter. 13o ponto de vista externo dá lugar
controle social. aosnios extrassiste máticos, que se referem, por outro
lado, a critérios políticos e metodológicos para a descrimi-
nalização e para a construção dos conflitos e dos problemas
sociais, de forma alternativa à que o sistema penal oferece
(critérios para descriminalizar).

403
402
Princípios intr assistemáticos nham sido previstas pela lei com antecipação ao ato,
. princípio que compreende o regime processual e de
1. Os princípios de limit,2ção formal podem ser enun-
ciados da seguinte forma: execução.
OPrincípio de reserva de lei ou princípio da legalida- jI Princípio do primado da lei penal substantiva. Este
de em sentido estrito. Baratta destaca que se adota-se tem o propósito de assegurar a extensão das garantias
uma definição sociológica da pena, podemos constatar contidas no princípio de legalidade à situação do indi-
que uma boa parte da função punitiva se realiza, ainda víduo em cada um dos subsistemas em que pode ser
atualmente, fora do Direito. Por exemplo, haveria que dividido o sistema penal, isto é, tanto frente à ação da
pensar na pena de morte extrajudicial, as torturas, os polícia, como dentro do processo e na execução da
desaparecimentos forçados, as ações ilegais da polícia, pena. Este princípio exclui a introdução, de fato ou de
dos corpos militares e paramilitares, isto é, na extra- direito, de medidas restritivas dos direitos do indivíduo,
polação da função punitiva à margem da legalidade. nos regulamentos e na prática dos órgãos de polícia, do
Reconhecida essa realidade, o primeiro elemento de processo e da execução, que não sejam estritamente
um programa de limitação formal da violência punitiva necessárias aos fins da correta e segura aplicação da lei
consiste, então, para Baratta, em realocá-la no âmbito penal substantiva.
da lei e sob o seu controle. Esse princípio impõe limitar
o exercício da função punitiva somente às ações pre- A título de exemplo, destacamos as seguintes medidas: a
vistas pela lei como delitos, segundo o princípio naifa tutela dos direitos de liberdade frente à ação dos órgãos
poena sine lege, nu/Ia poena sine crimine. Isso exclui, de polícia; os direitos dos imputados e dos condenados;
particularmente, a possibilidade de introduzir apenas os limites do poder ponderado da polícia e dos órgãos
no âmbito de qualquer dos poderes do Estado que não do processo penal; a limitação do poder executivo no
seja o legislativo. processo; a independência e imobilidade dos juízes pe-
nais; juiz natural, regime de provas (favor rei, presun-
Princípio de taxatividade. A pena é aplicável somente ção de inocência); o respeito do princípio da prova e a
nos casos de realização de condutas expressamente previs- limitação das consequências negativas para o imputado
tos pela lei como delitos, com indicação de seus elemen- na definição da verdade processual; os limites do poder
tos descritivos e normativos. O princípio de taxatividade disciplinar dos órgãos propostos para a execução.
exclui a aplicação analógica da lei penal, a qual, para Ba-
ratta, deve ser expressamente proibida pela lei. Proíbe o R\Princípio de representatividade popular. Este impõe
no procedimento de formação da lei penal, o respeito
reenvio a normas administrativas e valorações sociais.
aos requisitos mínimos do Estado de Direito no que con-
Cc))Princípio de irretroatividade. Este exclui a aplicação cerne à representatividade da assembleia legislativa e
das penas ou de seus equivalentes, e de qualquer con- ao seu funcionamento regular; em particular, refere-se à
dição que agrave a situação do imputado, que não te- participação popular na formação da vontade legislativa

404 405
mediante eleições livres e secretas, assim como a livre em relação às situações em que se pressupõe uma grave
organização dos partidos e dos movimentos políticos. ameaça aos direitos humanos, de acordo a experiências
ou prognósticos realistas.
Os_princípios da limitação funcional são os seguintes:
Princípio da resposta não contingente. A lei penal é
um ato solene de resposta aos problemas sociais funda-
a frincípio de subsidiariedade. Uma pena pode ser
aplicada somente se se provar que não existem outros
modos penais de intervenção aptos para responder a
mentais que se apresentam como gerais e duradouros
situações nas quais os direitos humanos se acham ame-
em uma sociedade. Não pode ser uma resposta imedia-
açados. Não basta, portanto, ter provado a idoneidade
ta de natureza administrativa, como, pelo contrário, o é
da resposta penal; se requer também demonstrar que
frequentemente na prática, e deve ser produto de uma
esta não é substituível por outros modos de intervenção
discussão política e social prévia à sua promulgação.
de menor custo social.
Deve se evitar a administrativização da lei penal e a
proliferação de elementos secundários e complemen- incípio de proporcionalidade concreta ou princípio
tares de leis penais em leis civis ou administrativas. Os re adequação do custo social. Está comprovado que a
problemas que se devem enfrentar têm que estar sufi- pena produz elevados custos sociais. Estes não podem
cientemente decantados antes de pôr em prática uma ser simplesmente avaliados a partir do ponto de vista do
resposta penal. Esta, em geral, não pode contemplar cálculo econômico de custos e benefícios, mas sim, e
situações atípicas ou excepcionais. sobretudo, a partir do ponto de vista da incidência ne-
gativa que a pena pode ter sobre aquelas pessoas que
(1) Princípio de proporcionalidade abstrata. Somente
constituem seu objeto, sobre suas famílias e seu ambien-
graves violações aos direitos humanos podem ser obje- te social e, mais em geral, sobre a própria sociedade.
to de sanções penais. As penas devem ser proporcionais
ao dano social causado pela violação. Deve-se considerar o fato de que a violência penal pode
agravar e reproduzir os conflitos, como por exemplo, as
Princípio de humanidade. Proibição de penas que injúrias e as lesões.
violem o direito à vida e à dignidade. Por outro lado, existem casos muito evidentes nos quais
(.
7":&'Princípio de idoneidade. A violação grave dos direitos a introdução de medidas penais produz problemas no-
humanos e o princípio de proporcionalidade represen- vos e mais graves do que aqueles que a pena pretende
tam somente uma condição necessária, mas não sufi- resolver, como na penalização do aborto e nos conflitos
ciente, para a aplicação da pena. Esse princípio obri- domésticos.
ga ao legislador a realizar um estudo atento dos efeitos Deve-se também refletir sobre a criminalização do uso
socialmente úteis que cabe esperar da pena: somente do álcool em tempos passados, e sobre o que constitui
subsistem as condições para a sua aplicação, se é com- atualmente a proibição de entorpecentes. Sabemos, diz
provado ou altamente comprovável, algum efeito útil Baratta, que este é o fator principal do qual depende a

406 407
estrutura artificial do mercado de drogas e que este, por gredida pela violação da lei. Mas essa legitimação, para
sua vez, determina sobre a sua produção e circulação, Baratta, altamente questionável, cobre a realidade do
formas ilegais de acumulação e uma criminalidade or- funcionamento do sistema que pode ser interpretado
ganizada de extrema relevância; por outra parte, o proi- como o sacrifício simbólico do condenado considerado
bicionismo torna mais grave e perigoso o uso da droga como bode expiatório, enquanto que a maior parte dos
para os consumidores. infratores da lei permanecem impunes.
A incidência negativa da pena, especialmente da pena Para Baratta, somente é possível adequar os progra-
carcerária, na família dos condenados, é muito maior mas aos recursos existentes ou designáveis ao sistema,
nos estratos sociais mais baixos que nos mais altos. o contrário consistiria em uma militarização da justiça
I) Princi io •de implementabilidade administrativa da penal e do Estado'2.
ei penal. Segundo Baratta, a introdução deste princípio ç'grPrincípio do respeito pelas autonomias culturais.
tenta adotar um método de argumentação que trasladar Para Baratta este princípio trata de elaborar uma teoria
as bases do discurso para terreno do imaginário adver- realista e crítica do sistema penal, tendo em conta o fato
sário. Levam-se, pois, em consideração, segundo este de que este é uma parte do processo geral de "coloniza-
autor, as premissas de um discurso tecnocrático para ção" do "mundo de vida" de grupos sociais diferentes,
mostrar e utilizar suas consequências contraditórias. por parte do sistema (Habermas); e que existe uma per-
A seletividade do sistema penal no recrutamento de sua cepção diferente da realidade, das normas e dos valores
própria clientela, consistente em indivíduos pertencen- sociais, parcialmente condicionada por parte dos gru-
tes às classes sociais mais baixas, não depende unica- pos dominantes e de sua cultura hegemónica.
mente do fato de que o sistema reflete e reproduz as si- Se segue-se o mito durkheimiano de uma consciência
tuações de desigualdade existentes em uma sociedade, social que integra igualmente todos os membros de uma
mas que também tem uma ulterior origem estrutural. sociedade, não se leva em consideração o fato de que
Isso consiste na grande discrepância que há entre a a percepção e a definição de certos comportamentos
previsão de sanções para determinados comportamen- como delitivos ou socialmente negativos dentro de uma
tos delitivos na lei penal e os recursos administrativos determinada cultura dominante podem enfrentar repre-
e judiciais que têm como objetivo realizar as previsões sentações sumamente variadas em diferentes grupos so-
legislativas. dais e subculturais. Por isso é necessário, segUndo Ba-
ratta, levar em consideração a percepção específica da
Uma tentativa de legitimar este funcionamento seletivo
realidade e dos valores que tem as minorias étnicas e os
é verificada por meio da chamada teoria da prevenção-
-integração. Esta teoria considera o sujeito que tenha 12 O desigual funcionamento da justiça resulta, então, em uma causa
sido objeto de uma sanção penal como portador de estrutural entre os recursos administrativos e o programa legislativo. A
porcentagem de clientes do Sistema Penal é mínima. Se estima uma
uma função punitiva (Jakobs) que tende ao restabele-
média de 1% entre todos os casos penais conhecidos pelo sistema
cimento da confiança na ordem (jurídico-social) trans- (pela proporção entre os programas penais e recursos para ativá-los).

408 409
grupos que representam culturas diferenciadas dentro O autor propõe para estes casos, sanções e desincen-
de uma determinada sociedade. tivos, que para além do sistema das penas pessoais, e
Assim, a cadeia de direitos estará baseada em igualda- com maior eficácia, possam derrubar a organização em
de, democratização e pluralismo. seu núcleo essencial, isto é, em sua liberdade de opera-
ção e em seu patrimônio.
Princípio de primazia da vítima. Agrega este princí-
Portanto: não à responsabilidade objetiva, coletiva ou
pio, que consiste em substituir em parte o direito puni-
alheia; limites à tentativa (atos preparatórios) e aos
tivo pelo direito restitutivo e, mais em geral, por dar a
delitos associativos e de perigo abstrato (de modo que
ambas as partes dos conflitos interindividuais maiores
as pessoas jurídicas seriam submetidas à sanção por
prerrogativas, de maneira que possam estar em condi-
outras ramificações institucionais).
ções de restabelecer o contato perturbado pelo delito,
por um lado; e assegurar em maior medida os direitos (-1.;) Princípio da responsabilidade pelo ato. Enunciando
a uma indenização para as vítimas, por outro. Estas são este princípio, se rejeita toda forma de direito penal de
algumas das mais importantes indicações para a realiza- autor e se mantém somente o direito penal de ato. Ne-
ção de um direito penal de mínima intervenção e para nhuma consequência penal, em sentido estrito, assim
evitar os custos sociais da pena. como nenhuma medida que implique uma internação
coativa, podem se derivar da "periculosidade social" de
Como se pode ver, há nele uma forte influência da teo-
um sujeito. O princípio de responsabilidade pelo ato se
r-r abolicionista.
estende a todo o direito penal, incluindo o direito penal
'U) Os princípios gerais de limitação pessoal ou prin- do menor e o regime de medidas de segurança para os
r dpios limitativos da responsabilidade penal são os se- adultos. Os menores e inimputáveis são os menos ga-
guintes: rantidos por serem "perigosos" e a internação é igual à
c_c_ A pena pode ser aplicada somente à pessoa ou às prisão. As medidas alternativas, liberdade condicional,
pessoas físicas autoras da ação delitiva. O princípio da como se disse, não são concedidas aos "perigosos".
personalidade exclui toda forma de responsabilidade Portanto, não ao Direito Penal de Autor.
objetiva ou pelo ato de outrem e, por ende, a aplicação Impôs-se, para Baratta, a tarefa de redefinir um conceito
de sanções penais por violações aos direitos humanos de responsabilidade penal, útil a toda a área do Dirieto
que não possam ser reconduzíveis mediante uma rela- Penal, que permita assegurar, a todos os sujeitos, limites
ção causal direta do comportamento de pessoas físicas. peremptórios de duração de cada medida de interven-
É dali, para Baratta, de onde derivam os limites rigorosos ção coativa que tenha sido prevista como consequência
para a conformação de tipos penais de perigo abstrato. jurídica do delito.
O princípio de imputação pessoal se refere a pessoas Princípio da exigibilidade social de outro compor-
físicas e exclui, por isso mesmo, toda forma de respon- tamento. Em uma construção dogmática, teriam que
sabilidade de pessoas jurídicas e entes morais. ser definidos dois requisitos fundamentais: as causas de

411
410
inexigibilidade social do comportamento conforme a seja compatível com as exigências mínimas de uma
lei; critérios para a sua verificação com relação ao con- ordem justa.
texto situacional da ação e aos papéis sociais ou institu- 2cipio da privatização dos conflitos. Trata-se
b) Psir
cionais cobertos pelo sujeito na situação problemática; da estratégia da "rea ro itos", a qual
e critérios de avaliação do espaço de alternativas com- considera possibilidades de substituir parcialmente a
portamentais à disposição do sujeito na situação pro- intervenção penal por meio do Direito restitutivo e
blemática que conduziu à ação. Neste último sentido, pelo acordo entre as partes no marco de instâncias
Baratta se refere à teoria da coculpabilidade esgrimida públicas e comunitárias de reconciliação.
por Zaffaroni nos anos 1980, em relação às grandes di- Princípio de politiza‘ão dos c Trata-se de
ferenças sociais que existem nas sociedades periféricas, restituir aos conflitos a dimensão política que lhes é
como um princípio de graduação da reprovação que pr±pria (por exemplo, na corrupção, os delitos de
se pode fazer aos autores de delitos. Este princípio dá trânsito, as relações entre máfia e instituições, os des-
conta do distinto espaço social de que gozam aqueles vios do serviço secreto, órgãos militares, etc.) e con-
pelas desiguais condições econômicas e as situações de siderar, como alternativas ao seu tratamento "penal",
carência social, as quais devem ser imputadas à socie- formas de intervenção institucional, assegurando fun-
dade antes que aos indivíduos. damentalmente a participação do controle popular na

r Princlaios extrass istemá ticos À


Os princípios extrassistemáticos da mínima intervenção
gestão das contradições mais relevantes do sistema
político.
Outro princípio é o da conservação das garantias for-
penal, para Baratta, podem ser divididos em dois gru-
mais nos âmbitos administrativos ou comunitários.
pos:
Este princípio exige que, no caso de que os conflitos
(T.) Princípios extrassistemáticos de descriminalização.
se trasladem para fora do campo da intervenção pe-
A maioria dos princípios mencionados anteriormen-
nal (para outras áreas do controle social institucional
te funcionam também como princípio de descrimina-
ou comunitário), a posição das partes não esteja su-
lização, diz Baratta, e indicam as condições relativas
jeita a um regime de menores garantias das que estão
ao respeito dos direitos humanos, sem cuja realização
previstas pelo Direito Penal.
não se justifica a manutenção e as leis penais. Aqui,
se consideram outros princípios para uma política de Princi ios metodoló icos da construção alternativa
descriminalização que, à diferença dos anteriormente dos conflitos e dos problemas sociais. Para Baratta, es-
indicados, implicam na adoção de um ponto de vista tes princípios geram a liberação da imaginação socio-
externo aos sistemas penais. lógica e política respeito a uma "cultura do penal", que
colonizou amplamente o modo de perceber e construir
ÇOirincípio da não intervenção útil. Um princípio ge-
os conflitos e os problemas sociais em uma sociedade.
ral de política alternativa é aquele que designa o es-
paço mais amplo de liberdade à diversidade, no que

413
412
e :6')Princípio da subtração metodológica dos concei-
_t9.5 da_criminalidade e da pena. Tal como postulava
nições de desvio; as segundas se referem às situações
complexas nas quais se produzem os conflitos.
Hulsman, pela carga semântica que essas palavras Nesse sentido, diz, a política da justiça social (como
contém, Baratta propõe a subtração hipotética de de- realização dos direitos humanos, e a satisfação das
terminados conceitos ou palavras pré-estabelecidos necessidades reais dos indivíduos), representa muito
ou a suspensão de sua validade. Recomenda-se que mais que uma política criminal alternativa: constitui
se prescinda do emprego dos conceitos de criminali- a verdadeira alternativa democrática à política cri-
dade e pena, com o fim de verificar se poderiam ser minal.
construídos, e de que maneira, não só os conflitos e O Sistema Penal não é o mais idôneo para defender
problemas, mas também suas respostas, a partir de os Direitos Humanos, pelo fato de que a sua interven-
uma ótica distinta da punitiva. ção está limitada à formulação de respostas sintomá-
(e3 Princípio de especificação dos conflitos e dos pro- ticas aos conflitos, isto é, a uma resposta dos conflitos
blemas. Este princípio também deriva de observações no lugar e no momento em que estes se manifestam
utilizadas por Hulsman para propor a abolição do dentro do sistema social. O Sistema Penal olha para
Sistema Penal. Considerar-se-á que o sistema penal os efeitos, e não as origens dos conflitos (estas são
pode ser interpretado sociologicamente como um complexas, distintas e distantes). Tem que se passar,
aglomerado arbitrário de objetos heterogéneos (cha- cada vez mais, do controle reativo ao controle pro-
mados atos puníveis) que não têm outro elemento em ativo.
comum que o de estarem sujeitos à resposta punitiva. r
eg)Pri ncípio da articulação autônoma dos conflitos e
O que têm em comum delitos tão diferentes entre das necessidades reais. Para Baratta, este é, quiçá, o
si como o aborto, a injúria entre particulares, a mais importante dos princípios extrassistemáticos. O
criminalidade organizada, os pequenos furtos, os sistema penal constitui, tradicionalmente, um aspec-
delitos ecológicos? Como se pode esperar que o to da expropriação ideológica por parte do sistema e
sistema penal responda com os mesmos instrumentos da cultura dominantes, que os sujeitos de necessida-
e os mesmos procedimentos a conflitos tão heterogê- des e de direitos humanos sofrem frente à percepção
neos? dos conflitos em que se acham envolvidos.
Isso permite chegar a propostas alternativas: Nenhuma mudança democrática na política do con-
\L) Principio geral de prevenção. Este princípio oferece, trole social, diz Baratta, pode ser realizável se os su-
para Baratta, uma indicação política fundamental para jeitos de necessidades e direitos humanos não con-
uma estratégia alternativa ao controle social. Trata-se, seguem passar de sujeitos passivos de um tratamento
essencialmente, de trasladar, cada vez mais, a ênfase institucional e burocrático, a serem sujeitos ativos na
posta nas formas de controle punitivo para formas de definição de seus conflitos e na construção dos ins-
controle preventivo. As primeiras respondem às defi- trumentos de intervenção institucional e comunitária,

415
414
e que sejam idôneos para resolvê-los segundo as suas controle social, que deixa reduzido, como nunca, o Direito
necessidades reais. Penal convencional à sua mais limitada expressão simbólica.
A conclusão definitiva é a que se pode ver no quadro Como veremos no próximo capítulo, a Criminologia se
a seguir: torna, dessa maneira, cada vez mais regressiva: voltam-se
aos velhos estudos genéticos abandonados e às pesquisas
Os sOjeitos de ne&ssidades:deveroerõ jh6sitiVoS da,dons- cerebrais; e até o conceito de populações vulneráveis, mal
Uutão do.OntFole4Ocial .o,tyao-:61Mto pàsij./6: ;•
. • utilizado, se mostra ameaçador, ao identificar a vulnerabili-
dade com elementos característicos da pobreza.
ff/1/4 articulação -aotônórna:d.a própria consciência dos conflitos
_ O que ocorre no mundo académico costuma estar ar-
b é áê Suas necessidades.dé,:diieitos em. urria .cOmUnicáCãO,IN:,re
ticulado com momentos históricos, que como vimos, estão
1-de poder a idéia da derrio:ááéia é da 'soberania pàjáiitai é it
o guia para transformar á Estado formal de Direito em Estado permeados, seja por motivações, seja por consequências po-
'dos :DireitOt P; líticas. E tudo isso tem a ver com o valor fundamental da
existência humana, a que nos caracteriza e nos diferencia
entre todos os seres vivos, que é a liberdade.
O sentido dos Direitos Humanos para a Crimino-
logia: um olhar ético
Em resumo, os Direitos Humanos têm sido, pois, pro-
postos como limite e como objeto do Direito Penal. Isto quer •
dizer que os Direitos Humanos são o limite da intervenção
punitiva do Estado; e que o Direito Penal não está legitima-
do se não contribui para diminuir a violência punitiva. E,
portanto, que os Direitos Humanos também são o limite e
devem ser o conteúdo da própria Criminologian.
Por sua parte, o tão debatido Direito Penal do Inimigo
perde seu sentido específico ao estender-se a todo tipo de le-
gislação administrativa, onde resulta ser mais difícil rastrear
a perda de garantias. Tem que se investir muito esforço para
manter pelo menos alguns dos princípios do velho Direito
Penal Liberal, que já não nos servem senão para os relati-
vamente escassos juízos penais formais que ainda se reali-
zam. Na prática, o controle formal se converte em um polvo
de muitos braços, princípio institucional da capilaridade do

13 Ver Aniyar de Castro, Lota, "La Nueva Criminologia...", op. cit.

417
416
CAPITULO XXI

A CRIMINOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS (II)


ZAFFARONI, A CRIMINOLOGIA E O DIREITO PE-
NAL CRITICOS NA AMÉRICA LATINA

O pensamento de Zaffaroni. A criminologia e a política. Crimi-


nologias do primeiro e do terceiro mundo. Sua proposta sobre o
que a Criminologia latino-americana deve fazer. As mortes anun-
ciadas. Os massacres do poder punitivo. O papel dos meios mas-
sivos de comunicação ou a "Criminologia midiática". Zaffaroni e
a Criminologia cautelar. A tarefa de uma Criminologia Militante:
uma forma de contrainformação radical.

O pensamento de Zaffaroni
É difícil resumir os aportes de Itatil-Zãffaroni ao pen-
samento penal e criminológico latino-americano. Para isso
tem-se que analisar com cuidado inumeráveis livros, arti-
gos, apresentações, projetos, conferências, colóquios, semi-
nários, congressos, cursos, entrevistas, reportagens; percor-
rer por seus cargos como procurador geral, juiz, legislador,
constituinte, catedrático e, também,
às suas atividades como membro in-
tegrante de distintos órgãos nacio-
nais e internacionais. Acreditamos,
entre outras coisas, que neste Ma-
nual não pode faltar a abordagem
de algumas ideias de sua Crimi-
nologia Militante, na qual assume
seu compromisso permanente com
os direitos humanos, revelado em E. Rant Zaffaroni
suas inovações — profundamente vinculadas à especificida- Zaffaroni — nunca adequou sua conduta aos ditados políti-
de latino-americana —, tanto na Dogmática Penal quanto na cos dos inspiradores ideológicos desse paradigma nem foi
Criminologia. um fanático defensor dele. Foi, justamente, essa tensão, essa
contradição, entre Política e Criminologia — reconhece — a
Não achamos apropriado abordar o pensamento de Za-
que lhe permitiu transitar por outros caminhos em busca de
ffaroni sem advertir sobre suas influências, pois, como ele
mesmo expressa, ninguém nasce do nada: todos nós nos alguma resposta.
formamos em um determinado contexto ideológico. No seu Apesar do seu extraordinário desenvolvimento crítico
caso, seus primeiros contatos com a Criminologia estiveram posterior, pois toda a sua obra se encontra nas antípodas do
conectados ao mais duro positivismo, como aconteceu com Positivismo, Zaffaroni confessa que não sente ter traído os
muitos, pois esse era o tempo do Positivismo. Posteriormen- ensinamentos do seu mestre, mas que, pelo contrário, tem a
te, influiram em seu pensamento as propostas da Crimino- firme impressão de ter seguido seus passos.
logia Crítica latino-americana e sua aproximação a alguns Essa confissão poderia parecer estranha, mas não é, se
criminólogos europeus, como Louk Hulsman, Alessandro pensarmos que tanto o mestre quanto seu discípulo tiveram a
Baratta e Antonio Beristain, entre outros. mesma necessidade urgente de pesquisar sobre o tema dos cri-
mes massivos, como o genocídio', e de pôr seus instrumentos
A Criminologia e a Política intelectuais a serviço do combate contra eles. A diferença pode
Zaffaroni encontrou-se pela primeira vez com a Crimi- talvez radicar em que, enquanto seu mestre ficou aprisionado
nologia em 1965 quando começou seus estudos, no México, na visão da "ciência" própria da época, o discípulo, nos anos
junto ao professor Alfonso Quiroz Cuarón14 , que já era consi- posteriores, lutando a partir da política, pôde averiguar que a
derado "o pai da Criminologia mexicana"15. Criminologia e a Política caminhavam de mãos dadas e que
Nos anos 1960, como vimos, toda a América Latina não se podia fazer uma criminologia que não fosse política2.
tinha o Positivismo como marco de referência: a criminolo- Quiroz Cuarón o definia assim: "Segundo Alfredo Niceforo demonstrou
gia latino-americana se movia dentro do paradigma do re- há mais de meio século, o crime não desaparece, evolui e se transfor-
ducionismo biológico. Não obstante, Quiroz Cuarón — diz ma de tempos em tempos e de sociedade para sociedade, e fenômeno
semelhante acontece com a agressividade humana; esta não desapare-
'4 Sobre Quiroz Cuarón, ver: Zaffaroni, E. Raul; Neuman, Elas e Mar- ce, se transforma e evolui de tempos em tempos e de sociedade para
chiori, Hilda, El maestro Quiroz Cuarón, em Quiroz Cuarón, Alfonso, sociedade e uma das expressões evolutivas atuais é a da tendência a
Las ensetianzas de Ia Criminología, Córdoba, Lerner, 1987. Quiroz desaparecer a pena de morte, transformando-se em genocídio. Logo,
Cuarón adquiriu fama internacional quando, junto ao psiquiatra José assim como se veio lutando contra a pena de morte, agora já tem que se
Gomez Robleda, realizou a perícia criminológica do assassino de león lutar contra o genocídio" (Quiroz Cuarón, Alfonso, "Da pena de morte
Trostsky, aplicando, pela primeira vez na América Latina, o polígrafo; ao genocídio", em Estudios criminológicos, México, 1958, pp. 52).
mais tarde, ganhou notoriedade quando descobriu a verdadeira iden-
2 Com muita razão Zaffaroni diz: "Toda criminologia é política. A cri-
tidade do assassino nos arquivos espanhóis, já que não se tratava de minalização de uma conduta ou de uma pessoa sempre é um ato de
Jacques Monard, mas sim, de Ramón Mercader. poder e, por ende, um ato político. Não pode caber nenhuma dúvida
15
Zaffaroni, E. Raúl, "Prólogo", em Vallejo, Gustavo e Miranda, Mansa de que o poder repressivo das agências do Estado é político, pois se
(dirs.), Derivas de Darwin. Cultura y política en clave de biologia, concretiza em atos de governo da polis que respondem a um poder e
Buenos Aires, Siglo XXI, 2010. que se exerce conforme determinado marco ideológico. Quando um

421
420
Foi, contudo, aquela contradição percebida em sua for- Criminologias do primeiro e do terceiro mundo
mação inicial a que o levou durante muito tempo a se refu- Aqui apontaremos que Zaffaroni também foi um prota-
giar na dogmática penal3 , já que, como ele mesmo disse, gonista singular no desenvolvimento de uma Criminologia
havia "algo" que "não encaixava" no que havia aprendido. latino-americana, ainda à margem dos Grupos Latino-ameri-
Nesse meio, e por sua extraordinária capacidade de canos de Criminologia Crítica e de Criminologia Comparada
busca de alternativas à Administração de Justiça estabeleci- que estavam compostos por pesquisadores que, nessa época,
da, foi advertindo que tanto a chave do Direito Penal como enquanto seu país padecia com uma ditadura militar, perten-
da Criminologia estava na política criminológica e em sua ciam a países democráticos, ou em luta pela democracia, e a
estreita dependência da política em geral'. universidades autônomas ou livres. Mas quando se abrem as
liberdades democráticas no Cone Sul, e geram-se perspecti-
ministro ordena a polícia a reprimir uma manifestação ou a proíbe de vas liberadoras de todas as ordens, a nova criminologia lati-
ser feita, não faz outra coisa que exercer um poder político, tomar uma no-americana, tanto a anterior como a que se foi agregando
decisão política" (Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., p. 11). de maneira especialmente brilhante nesses países, se integra-
3 Sua volta à dogmática não foi sem consequências. Zaffaroni caminhou
pela senda de uma corrente realista, como é a das estruturas lógico- ram em um só bloco de perspectivas coerentes. O Sistema
-reais de Hans Welzel e, a partir dessa perspectiva, logo tentou —in- de Justiça Penal e suas debilidades ou maus compromissos
clusive no Direito Penal — estabelecer uma ponte entre Criminologia e foram colocados sob o foco do novo pensamento criminoló-
Direito Penal. Enquanto na Alemanha, depois da morte de Welzel, se gico; e juristas, tanto quanto criminólogos, se incorporaram
retomou o fio condutor idealista ou normativista, Zaffaroni aprofundou a trabalhos conjuntos. Nessa conjunção, como veremos na
(e por vezes radicalizou) o realismo das estruturas lógico-reais, que.
Welzel levou para a teoria do delito, mas o levou para a teoria da parte sobre as "Mortes Anunciadas", a obra, o pensamento e
pena, dando assim, entrada à Criminologia sociológica e crítica. Em as iniciativas de Zaffaroni cumpriram uma função transcen-
outras palavras, não se tratava somente de uma discussão entre finalis- dental.
mo e causalismo em torno do conceito de ação nem a sua localização
na teoria do delito. Welzel propôs um realismo na dogmática que Em princípios dos aos 1980 Zaffaroni fazia alusão à par-
revolucionou o Direito Penal, ainda que tenha caído na armadilha da cialidade da teoria criminológica dos países desenvolvidos
retribuição para explicar a teoria da pena. Zaffaroni, por outro lado, que ignorava a realidade dos países em desenvolvimento.
extraiu todas as consequências de um realismo na dogmática, que o Um dos principais erros no nosso continente, segundo Za-
levou defender uma teoria negativa ou agnóstica da pena: "A pena"
ffaroni, era não terem observado a análise parcial que as
— diz — "é um exercício de poder que não tem função reparadora ou
restitutiva nem é coação administrativa direta. Trata-se de uma coer- criminologias europeia e norte-americana faziam.
ção que impõe privação de direitos ou dor, mas que não responde aos Nós, como latino-americanos que pertencem aos países do
outros modelos de solução ou prevenção de conflitos". capitalismo periférico, recebem as teorias criminológicas
4 A dogmática jurídico-penal não era mais que um imenso esforço de
elaboradas nos países do capitalismo central e já notaram
racionalização de um programa irrealizável; a criminologia-tradicional
ou "etiológica" era um discurso de poder de origem racista e sempre há tempo que essas teorias não têm validade universal,
colonialista (Zaffaroni, E. Raúl, Criminología. Aproximacidn..., op. posto que não são aplicáveis à interpretação da forma de
cit; Idem, En busca de Ias penas perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1998 controle social na nossa área. Daí que surge a justificada
[Em busca das penas perdidas, Editora Revan, 5' ed., Rio de Janeiro, aspiração a elaborar uma "criminologia latino-americana",
2010]).

422 423
ainda que acreditemos que, sem muito esforço, a mesma -americana estava imbuída no estudo de outra problemática.
poderia estender-se até abarcar uma "Criminologia do Ter- A ameaça em nossa região era representada por ideologias
ceiro Mundo'. mais próximas e perigosas para os cidadãos, como eram a
do capitalismo de Estado, a do Estado tecnocrático ou a do
O professor basco Antonio Beristain também se referia
Estado de segurança nacionais.
aos importantes aportes de uma criminologia terceiro-mun-
Em seu regresso à Criminologia, Zaffaroni ressaltava a
dista com respeito às particularidades próprias desse mundo,
necessidade de uma crítica que ampliasse o objeto da Cri-
particularmente as étnicas, as linguisticas e as culturais; mas,
minologia na nossa margem. Não havia razão para que a
sobretudo, assinalava que ela deveria estudar a injusta desi-
Criminologia compartimentasse sua atenção sobre a conduta
gualdade econômica. Enquanto sigam vigentes as irritantes
do delinquente e não aspirasse a que a violência do poder
desigualdades econômicas — dizia — a criminologia compa-
fosse também objeto de estudo9 . A respeito do tema da vio-
rada teria muita autocrítica a fazer6.
lência, certamente, incluída a violência institucional e a ins-
E era evidente, como aqui já o havia expressado a de-
titucionalizada, em nosso continente, as pesquisas levadas
legação venezuelana em 1976 — isto é, quatro anos antes da a cabo pelos centros de pesquisa criminológica dos Grupos
citação anterior —, no IX Congresso Internacional de Defe- de Criminologia Crítica e Comparada em universidades da
sa Social que se celebrou em Caracas, que não era correto Venezuela, do Peru, do Equador, do Brasil, do Panamá, da
generalizar, por exemplo, ao falar de "classe trabalhadora" Costa Rica, de El Salvador, da Guatemala, da Colômbia, do
ou de "minorias", expressões que têm na Europa e nos Es- México, da República Dominicana, da Martinica e da Guia-
tados Unidos um sentido diverso ao que têm nos países do. na haviam sido precursoras'°. Note-se, como se mencionou
Terceiro Mundo, em que as categorias de marginalidade e anteriormente e se falou no capítulo referente à Nova Crimi-
de diferença têm a ver, na realidade, com a miséria e com a nologia Latino-americana, que, nessa época, os países não
falta de inclusão'. participantes estavam sob regimes ditatoriais.
É que, como disse Zaffaroni, enquanto a preocupação No nosso continente, nesse momento, o autoritarismo
daquelas teorias centrais consistia em analisar a crise da ide- não só obstaculizava universidades e pesquisas livres, mas
ologia do Estado providente (Welfare State), que havia atingi- também provocava massacres, genocídios, desaparecimentos
do alguns países do Primeiro Mundo, a criminologia latino- forçados de pessoas, apropriação e subtração de identidades,
Zaffaroni, E. Raúl, "Criminalidad y desarrollo en Latinoamérica", ILA-
tudo isso sob o império da ideologia da Segurança Nacional".
NUD, 1982 (reproduzido no Instituto Interamericano de Direitos Hu- 8 Zaffaroni, E. Raúl, "Criminología y derecho", em Política criminal la-
manos, Sistemas Penales..., op. cit., pp. 135-174). tinoamericana, Buenos Aires, Hammurabi, 1982, p. 31.
6 Beristain lpiha, Antonio, "La Criminología Comparada y su apoda- 9 Ibidem, p. 54.
ción. Política criminal: una reflexión tercermundista", em Universitas, 10
E nas reuniões nas que se examinou e discutiu seu conteúdo: Venezue-
if 59, Bogotá, 1980, p. 215. la (1973), Quito (1976), Lima (1977) e Bogotá (1976 e 1978).
Assim o expressou, já em 1976, a representação venezuelana, 11
O tema do desaparecimento forçado de pessoas havia sido discutido
afirmando que a expressão "minoria" era intraduzível à realidade da em um dos Seminários do Grupo Latino-americano de Criminologia
marginalidade em nossos países. Ver Capítulo Criminológico, n° 4, Crítica realizado em Medellín, e as mortes massivas em guerras civis e
op. cit.

425
424
A ficção do "Estado de Segurança Nacional" latino- Referimo-nos no respectivo capítulo a uma criminologia
-americano, dizia Zaffaroni, consistia em dar por certo que latino-americana que se desenvolvia nessas circunstâncias
esse Estado se encontrava em guerra e que, por ende, ne- históricas e políticas, e que não podia ser outra, que não
cessitava reforçar a "frente interna", isto é, alcançar o grau uma Criminologia do terceiro mundo ou terceiro-mundista,
máximo de homogeneidade. precisamente como assinalavam Zaffaroni e Beristain.
A política criminal de segurança nacional — continua-
A proposta sobre o que a Criminologia latino-
va — se caracterizou por uma transferência ao Direito Penal
-americana deve fazer
comum, de conceitos que eram próprios do Direito Penal
Militar; transferência derivada .da "ordinarização" do con- Zaffaroni advertiu que qualquer criminologia que pre-
ceito de "Corpo" e do princípio geral de "eficácia", próprios tendesse comportar a realidade repressiva latino-americana
do plano jurídico-militar. Tendia-se a conceber a sociedade devia ser crítica a fim de evitar que se seguisse importando
como um "Corpo" cujo fim seria o de "ganhar a guerra". E, o pensamento criminológico central, que era impróprio para
por conseguinte, cada vez eram menos as condutas que na compreender a nossa realidade". Para ele, não tinha muito
vida ordinária se reservavam ao âmbito ético, como resulta- sentido reivindicar uma criminologia conforme certos mode-
do de um "verticalismo" social que, por sua vez, implicava los de sociedade de países centrais, enquanto que no nosso
em .urna hierarquização". meio não se satisfaziam as garantias elementares, como o
A realidade de nossa região demonstrava também que
direito à vida, à integridade pessoal, o respeito a princípios
elementares de igualdade e não discriminação, as exigências
era.arriscado conceber uma criminologia que não fosse com-
mínimas de justiça social etc., inclusive em períodos demo-
placente com o poder e que inclusive podia custar a vida13.
cráticos. Na América Latina, esses grandes modelos, pois,
intervenções em países latino-americanos foram denunciadas em tra- não se ajustavam à sua dramática realidade15.
balhos apresentados nesses anos por participantes desses grupos e na Zaffaroni propõe então, um _realismo criminológico
discussão do mesmo Manifesto constitutivo do Grupo Crítico.
2pai
_ j,gj!/atque revele a violentíssima contenção repressiva dos
" Zaffaroni, E. Raúl, "Valoración crítica de la política criminal latinoa-
mericana en los últimos veinte atios", em Política criminal..., op. cit., mais carentes e a violência de mesma magnitude que impli-
p. 108. ca na invulnerabilidade dos poderosos.
13
Recordemos os assassinatos de Guillermo Monzón Paz e de Jorge Pa-
A realidade latino-americana mostrava que o sistema
lacios Mona na Guatemala, professores universitários da Faculdade
de Direito da Universidade San Carlos de Guatemala; as mortes de penal jogava sua "rede" sobre os setores marginais da popu-
dois membros da Corte Suprema de Justiça, Alfonso Reyes Echandía e lação e pegava somente aqueles mais vulneráveis. Quanto
Emiro Sandoval Huertas, na Colômbia, na tristemente conhecida "to- à criminalidade do poder, se constatou que a sua criminali-
mada do Palácio da Justiça", onde 'se comprovou posteriormente que zação era quase inexistente e que somente estava reservada
existiram execuções sumárias e desaparecimento forçado de pessoas.
A perseguição e exílio de Atilio Ramírez Amaya, juiz denunciou o 19
Zaffaroni, E. Raúl, Criminología..., op. cit., pp. 21-22.
assassinato do Arcebispo Arnulfo Romero em El Salvador; os atentados 15 Ibidem, p. 23. Ver também: Santos Alvins, Thamara, Violencia criminal y
contra Enrique Torres na Guatemala, mencionados no capítulo refe- violencia policial en Venezuela. Signos de una frustrada modernización,
rente à Nova Criminologia Latino-americana. Maracaibo, Instituto de Criminologia da Universidad dei Zulia, 1992.

426 427
para quem havia perdido "cobertura", no caso disso ser fun- produziria pelo efeito da ligação a uma coluna vertebral, que
cional para outros de maior poder que eram invulneráveis é o sistema penal e sua operatividade'9.
ao sistema penall". A respeito deste último ponto, também
foi precursora a pesquisa do Grupo Latino-americano de Cri- As mortes anunciadas
minologia Comparada sobre a criminalidade de colarinho Como se falou no Capítulo XV, a pesquisa sobre Siste-
branco17 , cujo primeiro seminário com todos os países par- mas Penais e Direitos Humanos que Zaffaroni coordenou de
ticipantes se realizou na Colômbia (1978), e o seminário se- 1982 a 1986, no Instituto Interamericano de Direitos Huma-
guinte, de estudo e avaliação, se realizou no Rio de Janeiro nos, foi um momento de inflexão histórica para a conjun-
(1979) graças à convocatória dos brasileiros Heleno Claudio ção da Criminologia e do Penalismo no continente. Graças
Fragoso e Nilo Batista, intelectuais eminentes e comprome- a sua coordenação, verificou-se pela primeira vez uma reu-
tidos. Frente a este panorama, Zaffaroni achou conveniente nião conjunta de penalistas e criminólogos destas latitudes,
contar com um próprio saber criminológico que permitisse que empreenderam um gigantesco esforço enciclopédico de
explicar o que são nossos sistemas penais latino-americanos, síntese entre o Direito Penal e a Criminologia Crítica, sob a
como operam, que efeitos produzem, por que e como se bandeira legitimadora e propícia dos Direitos Humanos.
ocultam estes efeitos, que vínculo mantém com o restante Quiçá corresponda aqui resenhar alguns resultados dessa
do controle social e do poder, que alternativas existem a esta pesquisa que culminou em uma publicação e que centrou sua
realidade e como se podem instrumentarls. atenção no direito humano à vida nos países latino-america-
A interrogação devia ser colocada a distintos saberes nos, alguns dos quais recomeçavam sua vida democrática.
provenientes de disciplinas dissimiles como a Política, a- Zaffaroni nos advertia que a vida humana de toda pes-
Economia, a Sociologia, a História, a Biologia, a Medicina, soa, de cada pessoa, é irreproduzível e digna do mesmo res-
a Psiquiatria etc., mas cuja finalidade fosse a de averiguar peito e, por conta disso, a lesão desse direito não é tolerável.
como mudar a realidade de nossos sistemas penais, para
O certo é que quando a perturbação desse direito humano
melhorar nossa coexistência, possibilitando-a com o menor
se produz por pessoas que fazem parte de instituições do
nível possível de violência. Para ele, nossa criminologia, Estado e têm lugar de forma reiterada, com alta frequência
aqui (na nossa margem) e agora (naquele momento históri- e mais ainda, quando existe a suspeita de que a mesma está
co), trataria de um saber cuja delimitação episternológica se se convertendo em um fenômeno estrutural, que é parte do
modo de exercício de poder que os sistemas penais da re-
'6 Zaffaroni, E. Raúl, Criminología..., op. cit., pp. 24 e 27. gião levam a cabo, é mais que evidente que se converte em
" Uma de suas hipóteses demonstradas era de que havia delinquentes um problema jus-humanista prioritário20.
de colarinho branco que serviam de bodes expiatórios para manter a
impunidade de outros mais poderosos. O maior problema que enfrentávamos na América Latina
18 Zaffaroni, E. Raia, Criminología..., op. cit., p. 19. Ver também os
— inclusive depois das ditaduras — foi batizado por Nilo Batista
resultados da pesquisa latino-americana sobre o Crime de Colarinho
Branco, na qual as hipóteses da implementação diferencial da lei e e por Raúl Zaffaroni, na reunião realizada pelas equipes em
dos tribunais, e o tratamento midiático, eram diferentes nestes aos de
19 Zaffaroni, E. Raúl, Criminología..., op. cit., p. 19.
delinquência comum. Hipóteses que foram demonstradas.
2a Zaffaroni, E. Raúl, Muertes anunciadas, Bogotá, Temis, 1993, p. 5.

428 429
Salvador, capital da Bahia, como o fenômeno das "mortes causaria alarde. Entretanto, naquelas situações nos encon-
anunciadas". Estas eram, segundo Zaffaroni, as mortes que, trávamos frente a uma causa de morte à que não se prestava
de forma massiva e normalizada, eram causadas pela ope- atenção na região. Sendo assim, afirma, de alguma maneira,
ratividade violenta do sistema penal. No conceito de mortes a opinião pública latino-americana estava aplaudindo outra
anunciadas se agrupavam várias supostas mortes vinculadas Auschwitz, com torturas e execuções sem processo».
ao sistema penal, entre elas, as mortes institucionaisn, as mor- O objetivo jus-humanista daquela pesquisa não podia se
tes extrainstitucionais, as mortes parainstitucionais, as mortes reduzir à mera exposição desse fenômeno, nem à simples de-
contrainstitucionais e as mortes metainstitucionaisn. núncia. Pelo contrário, devia explicar-se por que certa popula-
Zaffaroni retomou a famosa novela de Gabriel Garcia ção terminava sendo vítima do sistema penal ou de uma forma
Márquez (Crônica de uma morte anunciada) para desenhar de exercício do poder que violava o direito humano à vida26.
uma analogia com as mortes que o sistema penal latino-ameri- Nessa explicação, segundo Zaffaroni, não se podia per-
cano produzia, particularmente as execuções extrajudiciais». der de vista o que Sykes e Matza haviam chamado "técnicas
As mortes se produziam em um contexto em que cada de neutralização", ainda que estes autores houvessem ten-
um assumia um papel já previamente estabelecido e o de- tado elucidar a problemática criminal limitando-se à delin-
sempenhava até seu trágico final, de forma que chegava a ser quência juvenil. Para Zaffaroni, essa teoria — vista a partir
parte de uma realidade social "normalizada" pela imprensa de outra perspectiva — permitia observar que quem exercia
diária. Como na ficção, ninguém detinha seus protagonistas". o poder, invocava essas técnicas, que não eram outra coisa
As mortes institucionais do sistema penal, em especial,. que uma ampliação muito além dos limites legais das causas
apresentavam uma temível particularidade: as cifras eram de justificação e de exculpação.
cem vezes superiores às da Europa e dos Estados Unidos. Recordemos que Sykes e Matza consideravam como "téc-
Imaginemos, dizia Zaffaroni, que o resultado dessas mortes nicas de neutralização": a negação da própria responsabilida-
tivesse sido provocado por uma doença e que afetasse à po- de, a minimização do dano infligido, a negação da vítima, a
pulação mais jovem dos países, esta situação seguramente condenação dos juízes e a apelação a legalidades superiores.
k,
:‘
(,21) Para Zaffaroni, as mortes institucionais eram as mortes causadas pelos fun- Nos discursos de justificação dos sistemas penais, dizia
cionários armados das agências do sistema penal no cumprimento de suas Zaffaroni, encontramos os mesmos mecanismos a respeito
funções ou em direta relação com elas. As vítimas podem ser: suspeitos, das mortes institucionais:
presos, terceiros, testemunhas, advogados e funcionários em desacordo.
22 Zaffaroni, E. Raúl, Muertes..., op. cit., pp. 12-13. A negação da responsabilidade, geralmente atribuída
23 Essas execuções extrajudiciais foram denominadas por Lola Aniyar de às condições de trabalho ou à falta de recursos;
Castro como: "os mortos da democracia", no Seminário organizado
A negação do fato, afirmando que foi causado pela
por Manfred Mac Neff, promovido pela Cruz Vermelha Sueca, em
Montevidéu, Uruguai, sobre Efeitos Psicossociais dos Regimes Autori- própria vítima, ou minimizando-o com o argumento de
tários, confrontando-as, por seu grande volume, com as dos regimes
ditatoriais. Uma relação numérica para a época na Venezuela está em 25 Zaffaroni, E. Raúl, Hacia un realismo jurídico penal marginal, Cara-
sua Criminologia da libertação, op. cit. cas, Monte Ávila, 1993.
24
Zaffaroni, E. Raúl, Muertes..., op. cit., p. 11. 26 Zaffaroni, E. Raúl, Muertes..., op. cit., p. 112.

430 431
que em toda luta caem inocentes, e que é preferível o afrontar um compromisso ideológico aberto frente à plurifa-
homicídio institucional à dor das vítimas violadas, le- torialidade massacradora29.
sionadas, assassinadas. Que é preferível a morte de um Parte de seu conteúdo deve, pelo menos, incorporar: a)
marginal que a de um pai de família, por exemplo; as condições culturais e históricas que favorecem a instalação
de um mundo paranóico; b) as condutas de agências políticas
A negação da vítima, considerando-a perigosa, mar-
e dos meios massivos de comunicação que apontam bodes
ginal, incorrigível;
expiatórios; c) as agências do poder punitivo, que são seus
AQondecta_ção sdízes, considerando-os como cor- potenciais perpetradores; d) e a conduta dos possíveis bodes
ruptos, burocratas, acobertadores de delinquentes; ou
expiatórios, isto é, sua disposição para assumir o papel.
porque fazem denúncias, são taxados de comunistas,
Os massacres do poder punitivo, diz, têm uma particu-
esquerdistas, extremistas etc.;
laridade: seus perpetradores são agentes do sistema penal ou,
A apelação a ideais. mais altas, reclamando pelo
ainda, estranhos que atuam com indiferença, beneplácito ou
"prestígio da instituição", a "necessidade" de proteger
omissão. Para que isso ocorra, é necessária a instalação de
os cidadãos honestos, a "defesa social" etc. 27.
um mundo paranóico que promova uma vindicação dessa
característica, desproporcional frente à autoria, frequência e
Os massacres do poder punitivo
qualidade dos delitos cometidos. É vítima dessa vindicação
A preocupação pelas mortes do sistema penal na nossa
um bode expiatório (inimigo), a quem se torna responsável
margem e a necessidade de preveni-las levou Zaffaroni a
pela ameaça e a quem se imputam os piores crimes, de ma-
analisar o fenômeno dos massacres do poder punitivo. Em
neira que sua eliminação seja legitimada". Para que se insta-
2009, obteve por sua monografia o Prêmio Internacional Es-
le um mundo paranóico é indispensável um bode expiatório
tocolmo de Criminologia 28.
ao qual imputar os crimes.
Mesmo que todo resumo sacrifique a totalidade das ide-
Ao longo de séculos e desde que o poder punitivo re-
ais, exporemos sinteticamente algumas das mais significati-
apareceu na Europa, nos séculos XII e XIII, é constante, diz
vas, para melhor entender a que se refere quando propugna
o autor, sua tendência a se descontrolar sob o pretexto de
uma criminologia cautelar (ou preventiva de massacres). combater "inimigos".
A primeira advertência que este autor reitera é que a
Há oito séculos, as emergências e os inimigos foram
incorporação do massacre na Criminologia, tanto teórica
mudando: primeiro eram a degeneração da raça, a sífilis, o
quanto de campo, não pode deixar de assumir o menciona-
álcool, a droga, o comunismo internacional, e logo outros,
do compromisso ideológico-político com os direitos huma-
nos (em especial o da vida). Assim, uma criminologia que
incorpore o massacre deve deixar de ser neutra para passar a " Zaffaroni, E. Raúl, "Masacres, larvas y semillas. Lineamientos para un
planteo criminolágico", em Revista InvesUgaciones de Ia Corte Supre-
27 Zaffaroni, E. Baú!, Muertes..., op. cit., p. 30. ma de lusticia de Ia Nación, Buenos Aires, Biblioteca do Congresso da
28 Zaffaroni, E. Baú', "2Es posible una contribución eficaz a Ia preven- Nação, 2010, p. 13.
30
ci6n de los crimenes contra Ia humanidad?", em Crímenes de masa, Zaffaroni, E. Ratil, "Masacres...", op. cit., p. 14.
Buenos Aires, Madres de Plaza de Mayo, 2010.
433
432
até chegar, atualmente, ao terrorismo'', ao qual poderíamos o inimigo que ameaça a sobrevivência social ou humana. A
agregar inimigos de outro tipo, como os imigrantes32. legislação habilita exceções repressivas; e na realidade, às
vezes fica expedito o caminho para os massacres".
Seguindo a hipótese de Zaffaroni, podemos dizer que
desde há pelo menos oito séculos se cometem os chamados Entretanto, agrega, nem toda técnica de instalação de
crimes de ódio, geralmente definidos como atos danosos ou um mundo paranóico tem êxito; e se tem sucesso, nem sem-
letais realizados contra grupos identificados pela sua raça, pre acaba em massacre; e quando esta se produz, sua exten-
sua religião, sua orientação sexual, suas deficiências, sua são é variável.
1 etnicidade, sua nacionalidade, sua idade, seu gênero, seu Zaffaroni incorpora o conceito de massacre larvado
1 grupo social ou sua afiliação pOlítica33. como "toda sinalização comunicacional de um bode expia-
A História, diz Zaffaroni, mostra a enorme heterogeneidade tório que se esgota na pretensão de convertê-lo em inimigo",
I desses inimigos: bruxas, hereges, judeus, viciados em drogas, ou seja, "São sementes do genocídio que não são viáveis ou
( traficantes de drogas, comunistas, subversivos, sifilíticos, defi- vão nascer em um terreno não apto para a sua germinação,
cientes, ciganos, prostitutas, burgueses, ateus, alcoólicos, religio- mas que com potência germinadora e terreno fértil fecundam
sos, pedófilos, socialistas, minorias sexuais, terroristas etc. como maldade venenosa e desembocam em massacres"36. A
individualização dos inimigos, isto é, o broto paranóico do
Não obstante, dentro dos inimigos, se distingue o delin-
Estado, se alimenta de discursos que racionalizam o sacrifí-
quente comum e se aponta seu caráter residual. Com isto,
cio expiatório, ampliando de maneira diferente as causas de
se quer dizer que ele é selecionado por falta de melhores
justificação e de exculpação próprias do Direito Penal.
candidatos. O delinquente comum, deste modo, é um ini-
migo intermitente (ele aparece quando desaparecem esses Então, o que fazer? A verdadeira prevenção consistiria
"melhores candidatos"). Projeta-se sua imagem em casos de na denúncia das técnicas de neutralização.
delitos "naturais" (homicídios, violações, roubos) e ele é as- Do mesmo modo em que havia que analisar as técnicas de
sociado ao estereótipo das classes subalternas'''. neutralização a respeito das mortes anunciadas, o autor volta a
Uma vez instalado o mundo paranóico, o poder puniti- invocá-las quando se trata dos crimes de massa. Essas técnicas
vo rompe todos os limites e se traslada para a vindicação pa- se teorizariam em um alto nível político e se glorificariam pelos
ranóica mediante medidas extraordinárias ou excepcionais, meios de comunicação social em um mundo paranóico.
porque não é suficiente capturá-lo, mas tem que se destruir A maior parte dos grupos hegemônicos — por fortuna —,
31
diz Zaffaroni, não chegam a massacrar, ainda que alguns o
ibidem, p. 40.
façam. O curioso é que nesses casos emitem sinais mais ou
32 Ver Aniyar de Castro, Lola, "Castigar ai Otro", em Criminología de los
Derechos Humanos..., op. cit., p. 276. menos claros, que geralmente são ignorados, inclusive pelas
33 O ódio ao diferente, ou seu desprezo, tem múltiplas variáveis, por próprias vítimas... Essas técnicas são divulgadas e reafirmadas
isso preferimos chamá-los de crimes motivados pelas diferenças (ver de forma orgânica, se sustentam discursivarnente e, às vezes,
Aniyar de Castro, Lola, Criminología de los Derechos Humanos...,
op. cit.). 35
Zaffaroni, E. Raúl, "Masacres...", op. cit., p. 18.
34
Poderíamos dizer que este é o critério de "inimigos confortáveis", que
16 lbidem, p. 19.
assinalou Stanley Cohen.

435
434
se tornam sofisticadas. Essa organização do discurso precede relação explorador-explorado é substituída por uma não rela-
massacre. Quando as técnicas de neutralização deixam de ção incluído-excluído. Fala-se da generalização de um mode-
ser difusas para se organizar discursivamente, se difundir e se lo com 30% de incluídos e 70% de excluídos. Em semelhante
reiterar no âmbito público e, em particular quando chegam a modelo, praticamente não há espaço para as classes médias.
ser o discurso do poder, o risco se faz iminente37. O excluído não é o explorado, este é necessário ao sistema; já
excluído está sobrando, sua própria existência é desneces-
É espantoso, assinala, que ainda não vejamos com cla-
sária e incômoda, é um descartável sociarm.
reza que estamos ante o renascimento da Ideologia de Segu-
rança Nacional, agora em um plano mundial. Na realidade, agrega, o que se discute desde os anos
1980 e 1990, é um modelo de sociedade:
O papel dos meios massivos de comunicação" ou
Trata-se, em definitiva, de resolver como o Estado quer mo-
a "Criminologia Midiática" delar a sociedade: se quer uma sociedade inclusiva, que
Zaffaroni advertiu há alguns anos que estávamos na pre- tenda à incorporação progressiva de toda a população, que
sença de um novo momento de poder planetário, o da globa- persiga uma sociedade sem exclusões, ou que afirme que a
lização — como antes foram o colonialismo e o neocolonialis- história termina aqui e é imperdoável que uma porcentagem
da população fique excluída e que, esse mesmo Estado, se
mo — e frente a um pensamento único, um globalismo ou um
limite a controlá-la para que não incomode'.
fundamentalismo de mercado, que pretende legitimá-lo". A
principal consequência social desse fenômeno, diz, é a gera- A principal fonte atual de insegurança existencial e de
ção de um amplo e crescente setor excluído da economia. A violência difusa, tanto na América como na Europa, provem
da decomposição dos Estados de bem-estar (desemprego,
37 Zaffaroni, E. (2w:ff, La palabra..., op. cit., p. 452.
38 A pesquisa sobre os sistemas penais na América Latina dos anos 1980 desigualdade laborai, provisional; deteriorização dos servi-
mostrou as justificativas ensaiadas por quem exercia o poder à respeito ços estatais; elevação de preços; dificuldades de habitação,
das chamadas mortes anunciadas em um continente que vivia ditadu- saúde, educação). A violência difusa, então, se expressa em
ras, conflitos armados e, inclusive, incipientes democracias. Mas, mes- atitudes xenófobas, classistas, racistas, sexistas e em todas
mo assim, precisou o papel dos meios massivos de comunicação na
divulgação dessas ideias. As mortes institucionais — que foram o objeto
as formas possíveis de discriminação: contra imigrantes (Eu-
central da pesquisa — eram encobertas, conclui Zaffaroni, por um falso ropa), contra grupos étnicos instalados desde antigamente
discurso de guerra. Não só os operadores do sistema penal invocavam o (afro-americanos) ou em crescimento (latinos nos Estados
espanto pelo "crescimento da criminalidade", mas também as projeções Unidos), de setores excluídos dentro da própria socied_ade
das noticias falavam da necessidade de uma "guerra frente à delinquên-
(América Latina) ou contra etnias minoritárias (África)42 .
cia". As campanhas que incidiram sobre as mortes institucionais foram
as que combinavam o alarde sensacionalista de uma criminalidade cres- No nosso continente, o controle dos excluídos é levado
cente com a defesa da atuação policial enérgica e demandas de maior a cabo através de um _massacre a conta gotas: os criminali-
energia; a particularidade foi que sempre recaíram sobre pessoas dos zados, vitimizados e policizados são selecionados a partir
setores mais humildes (Zaffaroni, E. Raúl, Muertes..., op. cit., p. 122).
Zaffaroni, E. Raúl, "La globalización e las actuales orientaciones de 4° Ibidem, p. 184.
la política criminal", em En torno a ia cuestión penal, Buenos Aires, 4 ' Idem, La palabra..., op. cit., p. 5.
BDF, 2005, p. 181. 42 Idem, "Masacres...", op. cit., p. 20.

437
436
do mesmo setor social ou de outros também desfavorecidos. cerveja em alguma esquina, fará o mesmo que o semelhante
As contradições que o sistema penal introduz são funcionais que matou uma idosa na saída do banco e, por conseguinte,
para dificultar a tomada de consciência, evitar que se unam tem que se separar todos eles da sociedade".
e que adquiram protagonismo no poder. Em definitiva, diz, A tarefa que devemos realizar em nossos países latino-
ter mortes de pessoas desse setor é a forma de controlá-los. -americanos consistiria, então, atualmente, em pesquisar
Os esquadrões da morte, os justiceiros de comunidades, as como funciona a dinâmica dessa criminologia nos nossos
mortes por ingestão de substâncias tóxicas ou para elimi- marcos políticos gerais, e deduzir algumas constantes.
nar competidores em sua distribuição e a execução policial Em primeiro lugar, Zaffaroni afirma que devemos assi-
sem processo, como também a vitimização dos habitantes nalar a demagogia que se empenha em aprofundar os pre-
da própria comunidade e inclusive a de policiais, são todas conceitos populares discriminadores. A criminologia midiáti-
funcionais a essa tática de controle da exclusão social". ca, segundo o autor, sintetiza em seus estereótipos os piores
Em sua obra mais recente de Criminologia, Zaffaroni preconceitos discriminantes de cada sociedade, os manipula
achou necessário analisar de um modo mais preciso o papel e acentua para criar um eles de inimigos". Mas, além disso,
que os meios de comunicação massiva têm, a fim de evitar responde a interesses financeiros midiatizados por empresas
futuros massacres. de comunicação".
A chamada criminologia midiática criará uma realidade O maior risco político da nossa região — diz — é que os
através da informação, subinformação e desinformação em próprios políticos comprometidos com os estados de bem-
convergência com preconceitos e crenças baseados em uma -estar demolidos, fazendo concessões em meio ao seu des-
etiologia criminal simplista, mas assentada em uma causali- concerto, acabem serrando o galho no qual estão sentados,
dade mágica". pois a criminologia midiática é parte da tarefa de neutralizar
A realidade para essa criminologia é a existência de um qualquer tentativa de incorporação de novas capas sociais e,
mundo de pessoas decentes frente a uma massa de crimino- por isso, se globaliza como parte de uma tática de demoli-
sos identificada através de estereótipos, que configuram um ção mundial do Welfare State".
"eles" separado do restante da sociedade". A particularidade Além disso, uma das características mais sobressalentes
que apresenta é que esse eles não se compõe somente de é que a criminologia midiática naturaliza as mortes — as nor-
delinquentes, mas também de um mundo mais amplo de es- maliza através da imprensa da televisão—, pois todos os efei-
tereotipados que são semelhantes, mas que não cometeram tos letais do sistema penal são para ela um produto natural
nenhum delito e que nunca irão cometer. A mensagem da (inevitável) da violência própria deles. E chegam ao máximo
criminologia midiática atual é que o adolescente de um bair-
ro precário, que consome alguma substância tóxica ou bebe " Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit., p. 370. Este é o que se cha-
mou de "estereótipo do delinquente" (ver Chapman, Denis, Sociolo-
Ibidem, p. 30. gy..., op. cit.).
44 Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit., p. 365.
47
Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit., p. 399.
08
45
Ibidem, p. 369. Ver também, Aniyar de Castro, Lota, "Castigar ai Ibidem, p. 401.
49
otro", op. cit. Ibidem, p. 403.

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438
grau de encobrimento nos casos de execuções sem processo, Frente a esta "primeira criminologia" etiológica que se
disfarçadas de mortes em enfrentamentos quando estes são erige uma criminologia crítica, um século depois, na obra do
apresentados como episódios da guerra contra o crime, em jesuíta alemão Friedrich Spee, chamada Cautio Criminalis°.
que se mostra o cadáver do fuzilado como o de um soldado Esta obra, para Zaffaroni, marca uma inversão de pa-
morto na guerra, como sinal de eficácia preventivas°. radigma, semelhante à que se produziu há pouco mais de
quarenta anos com a Criminologia da Reação Social, pois
A Criminologia Cautelar
traslada o eixo conceituai da etiologia do mal — representada
Parece-lhe claro então, que em cada sistema penal ha- pelos demon6logos — para o sistema penal que critica, repre-
bitem elementos de um possível massacre e, em ocasiões, sentado pelos príncipes, os teóricos, os confessores, os su-
até o de um massacre a conta gotas em curso. É por isso que periores de sua própria ordem e os funcionários corruptos".
o sistema penal é um aparato perigoso, cujo funcionamento
Segundo ele, o discurso de Spee, igualmente aos pos-
deve ser atentamente vigiados'.
teriores de Beccaria e de todos os iluministas, deduzia da
Não se trata, ao seu entender, de defender a abolição sua crítica a necessidade de estabelecer os princípios do que
do sistema penal, pois nossa cultura não encontrou, até o logo se chamaria o Direito Penal liberal, por oposição ao
presente momento, outra via de canalização da vingança; e, Direito Penal autoritário, que até hoje responde ao esquema
enquanto não a encontre — ou, pelo menos, uma maneira de estrutural do Malleus. Os principais pontos reivindicados por
reduzi-la ou suprimi-la —, não haverá forma de eliminá-la. É Spee são os princípios básicos do Direito Penal liberal, em
indispensável então, que o criminólogo se dedique à tarefa de especial, os seguintes: legalidade", direito de defesa", prin-
indagar como se pode, a curto e médio prazo, manejar o apa- cipio de inocências°, abolição da tortura" e distinção entre
rato para que ele não se desequilibre, isto é, evitar que se des- moral e direito".
controle e produza milhares de novos cadáveres silenciosos".
54
Spee, Friedrich, Cautio criminalis, seu de processibus contra sagas
Referimos-nos em outro capítulo ao que Zaffaroni con-
liber, Rintheln, 1631.
sidera como um discurso integrado de criminologia enoló- 55 Ver Zaffaroni, E. Raúl, "Friedrich Spee oder die Ursprung strafrechtliches
gica (as causas do mal, estudadas pelos demonólogos) e os Kritik", Cuadernos dei Departamento de Derecho Penal y Criminología,
meios para reprimir o mal (Direito Penal e Processual Penal Nueva Serie, n° 4, Universidad Nacional de Córdoba, Lerner, 2004.
autoritário) apresentado na obra emblemática Malleus Ma-
56 Destaca que as arbitrariedades e crimes dos inquisidores obedecem,
em boa medida, à falta de um código ou lei.
leficarum (Martino de Ias brujas), que legitimou o primeiro 57 Critica duramente a negação do direito de se valer de um advogado
grande genocídio (na realidade, feminicídio) da historias'. defensor e a arbitrariedade judicial de ignorar e não responder os ar-
gumentos defensivos.
58 Em reiteradas ocasiões sustenta o princípio ou presunção de inocência.
5° Ibidem, p. 375.
59 Spee defendia a abolição da tortura, argumentando que se não somos
51 Ibidem, p. 553. todos condenados por bruxaria, era simplesmente porque ainda não
52 Ibidem, p. 554. tínhamos sido torturados, dado que não há homem capaz de resisti-la.
53 Ver Capítulo. A primeira vez que invoca esta tese: Zaffaroni, E. Raúl,
60 Mesmo que Spee não o proponha de forma clara, quando se refere aos
"La mujer y el poder punitivo", Cladem, Lima, 1993. deveres dos confessores, separa totalmente seu ministério do punitivo e
enuncia um prelúdio importante à nítida separação de moral e direito

441
440
Desde 1631 nos chega, segundo Zaffaroni, a fórmula nitivo e advertir sobre seus riscos aos juristas e aos políti-
de Spee que reivindica prudência, cautio criminalis e que cos. Em terceiro lugar, deve pesquisar a realidade violenta
aconselha manejar o aparato repressivo com extrema cau- aplicando as técnicas próprias da pesquisa social de campo,
tela. Por isso, propõe que a Criminologia atual incorpore para neutralizar com dados reais a criminologia midiática; e
como objeto de estudo os massacres, tal como havia feito adquirir a prática comunicacional midiática para desnudar
Spee em ocasião do massacre das mulheres. Corremos um publicamente a sua causalidade mágica. Por último, deve
sério risco, nos diz, se não vemos o perigo que correm quem analisar as conflitividades violentas em todas as suas par-
são considerados diferentes. ticularidades locais para apontar a via mais adequada para
A criminologia cautelar, para ele, é a que proporcionará desmotivar os comportamentos violentos e motivar os menos
a informação necessária e alertará sobre um risco de desborde violentos. Sem dúvida, para ele, esta é uma tarefa teórica,
do poder punitivo, suscetível a derivar em um massacre. Não mas também prática e militante, pois deve fazer chegar seus
se trata de uma criminologia abolicionista, que implique em conhecimentos a todos os que estão comprometidos com o
um projeto de nova sociedade; se trataria de uma criminologia funcionamento do sistema penal62.
da prudência, da cautela como indicava Spee. A criminologia A Criminologia Crítica não morreu, afirma Zaffaroni,
cautelar demandará então, um novo marco teórico, pois é ne- está mais viva do que nunca, só que com ela se encerrou a
cessário que se reconheça que tanto o poder puniti_vo quanto Criminologia Negacionista que omitia os massacres63 e foi o
o massacrador têm a mesma essência: a vingança. Mais ainda, passo indispensável para fundar a Cautelar. Zaffaroni obser-
que quando se consegue fazer voar pelos ares a contenção ju-
62 lbidem, p. 496.
rídica, o massacre é o resultado do funcionamento do mesmo 63 Esse "negacionismo" nos parece que não se pode generalizar, pelo
poder punitivo. Sua tarefa será, pois, a de desenvolver os ins- menos na América Latina. No Seminário realizado na Nicarágua, em
trumentos para pesquisar e determinar, o mais precocemente plena época das guerras centro-americanas, o Grupo Crítico anali-
sou os delitos internacionais que tinham a ver com guerras e inva-
possível, os sinais dessa ruptura de limites de contenção e as
sões, e que significaram verdadeiras formas de extermínio massivo.
condições ambientais dessa tenebrosa possibilidade61. Ver Aniyar de Castro, Lola, Democracia y justicia penal, Congres-
so da República da Venezuela, 1992, em especial o capítulo "Los
A tarefa de uma criminologia militante: uma forma de Derechos Humanos como dimensión política de la Justicia Nacional
contrainformação radical e Internacional", onde este tema é abordado precisamente segundo
Em resumo, a contribuição da Criminologia à preven- as discussões desse Seminário. Ali se fala também das manipulações
ideológicas, midiáticas, para legitimar essas guerras, e se elenca frases
ção dos massacres, segundo Zaffaroni, deve consistir, em de políticos responsáveis, que tenderiam precisamente a "neutralizar"
primeiro lugar, na análise crítica dos textos suspeitos de a gravidade de seus atos. E finaliza mencionando a eficácia-ineficácia,
ocultar técnicas de neutralização. Em segundo lugar, deve e vice-versa, segundo Bertrand Russell (que dizia que na sua ineficácia
estudar os efeitos da habilitação irresponsável do poder pu- radicava seu prestígio moral), dos Tribunais que conhecem esses atos
no terreno formal e no informal. Por exemplo, o mesmo Tribunal Rus-
que Cristián Thomasius, a quem tanto influenciou, ensaiará em anos sell. O casal Hernann e Julia Schwendinger, por sua parte, já haviam
muito posteriores. falado da necessidade de criminalizar prioritariamente esses atos. O
61
Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit., p. 497. tema da violência internacional foi especialmente caro aos radicais
norte-americanos. Também no Seminário de Criminologia Crítica rea-

443
442
va que estamos caminhando para além da crítica, caminha- ou seja, a incipiente cidadania mundial que aspira a que
mos através dela". cada ser humano seja considerado como uma pessoa e dis-
ponha do mínimo requerido para que essa condição seja res-
Uma criminologia cautelar, para Zaffaroni, é uma cri-
peitada. Se a máxima negação desta dignidade é a privação
minologia militante, porque deve enfrentar verdadeiros guer-
da vida, o mais alto grau desta negação se alcança quando
reiros midiáticos que estão em constante fabricação de Urn -
se comete de forma massiva, isto é, como massacre'.
eles que não cessa, e que se fracassam em construí-lo, co-
meçam a construir outro eles imediatamente; e se se equi- A tarefa da Criminologia, conclui, é muito maior e mais
vocaram quanto a sua idoneidade para convertê-lo em bode complexa do que poderíamos supor nos anos 1970 e 1980,
expiatório, irão procurar outro65. mas isso não traz nenhum pessimismo. A Criminologia deve,
de imediato, trabalhar para os Direito Humanos, ante a evi-
A tarefa de uma criminologia militante, nos diz, não é
dência de que sem seu aporte, estes não poderão impulsio-
simples, pois deve deixar o sossegado espaço acadêmico,
nar ideal de realização, pois, além do mais, correm sérios
para ir às ruas, aos meios de comunicação; estar na forma-
riscos de novos e piores massacres, não só por ação direta,
ção de profissionais, de operadores do sistema penal, do pes-
mas também por obra de um sistema que os encobre e os
soal das agências executivas e penitenciárias; escrever para
o :grande público, participar do sistema, compreender as sustenta68.
vivências de seus operadores, acalmar suas angústias, falar
com as vítimas, com os criminalizados, com seus parentes;
estimular a quem tem a responsabilidade de equilibrar ou
prevenir o desequilíbrio; pesquisar os discursos midiáticos,
não se desanimar com os fracassos e não amedrontar-se, não
deixar-se levar pela ira, compreender as motivações; e para
prevenir erros de conduta, interferir na política, acostumar-
-se a ser mal visto, assumir o papel de portador de noticias
ruins; e, sobretudo, reproduzir a militãncia, porque não é
uma tarefa individual, mas que requer muitas pessoas com
consciência do problema e comprometidas com a tarefa de
impor cautela66.
A Criminologia então, deve retomar seu rumo, que não
pode ser outro que o que os Direitos Humanos reivindicam,

lizado em Medelín, em 1984, Rosa Dei Olmo havia tratado o tema dos
desaparecidos no Cone Sul.
64 Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op cit., p. 498. " Ver Zaffaroni, E. Raúl, "Prólogo", em Aniyar de Castro, Lola, Crimino-
65
Ibidem, p. 559. logía de los Derechos Humanos, op. cit.
68
" Ibidem, pp. 559-560. Ibidem.

445
444
CAPITULO XXII

A CRIMINOLOGIA REGRESSIONISTA DO SÉCULO XXI (i)


A CONTRARREFORMA HUMANISTICA

Antecedentes do século XX. O marco histórico e cultural. Risco,


medo e inimigo. "A Criminologia Atuarial". A Globalização.
Mundo globalizado igual a mercado institucional globalizado?
Castigar o "outro". Os novos inimigos internacionalizados: o
imigrante, o diferente, o terrorista. Endurecendo o controle so-
cial. Governança e sistema penal. A periculosidade do sistema
penal. O sentido dos Direitos Humanos para a Criminologia:
um olhar ético. O castigo adicional aos grupos de risco.

Antecedentes do século XX
Já no século XX iniciou-se um movimento de retroces-
so nas teorias e suas políticas criminais conseguintes. Elas
surgem como contrapeso à abundância de posições teóricas
jus-humanistas e críticas que foram surgindo, defendendo
uma sociedade e um Estado melhores, as que, mesmo que
nunca se deram totalmente na prática, foram pelo menos um
programa de ações civilizadas que conseguiram em gran-
de parte inserir-se nos instrumentos legais e na dogmática,
abrindo uma consciência nova e refrescante.
Um exemplo são os chamados "realistas", denomina-
dos como os "novos realistas de esquerda" (Taylor, Walton,
Young, já mencionados, que falavam da necessidade de
"pensar seriamente" o delito); e os "realistas de direita". Va-
mos nos referir sucintamente a estes últimos, que são talvez
os que de maneira mais intensa defenderam políticas crimi-
nais profundamente violadoras dos princípios ocidentalmen-
te elaborados sobre os Direitos Humanos.
Judith Wilks e Robert Martinson publicam um arti- Em 1963, o Conselho Nacional para o Crime e a De-
go com o título: "É realmente necessário o tratamento dos linquência recomenda a adoção de uma Ata Modelo para as
delinquentes?"69 . Marlene Lethinen argumenta que a pena de Sentenças (Model Sentencing Act), mediante a qual a maio-
morte pode constituir-se um eficaz efeito dissuasivo somen- ria dos considerados não perigosos podia estar sob supervi-
te se realizam-se por volta de três mil execuções por ano70. são não institucional. Os Estados que os aceitaram tiveram
Tudo isso foi muito popular nas revistas e jornais de divulga- menos problemas de violência intracarcerária.
ção para leigos da época. A mais propagandeada foi a obra Àquelas tentativas do pragmatismo punitivo devem-se às
de James Q. Wilson: Cran cambio en Ias prisiones: castigar, teorias mais recentes de Tolerância Zero e Ventana Rota e ao
no reformarn. Até no The New York Times saiu uma colu- grande negócio que Bratton instalou por meio de franquias,
na de Jackson Toby, em que propunha que os "incorrigíveis muito bem pagas em diversos países latino-americanos, de
devem ser privados de liberdade sem fixação prévia da sua um programa que (mesmo que se discuta se isso ocorreu
duração". Tratam-se de professores de boas universidades, realmente assim) teria conseguido diminuir a violência no
com pesquisas financiadas por recursos substanciosos 72. Du- metrô de Nova York.
rante o período da Grande Depressão (anos 1930) prolifera-
Muito interessantes foram as experiências dos prefeitos
ram, contudo, programas de inclusão social, como as bolsas
de Bogotá e de Medelín1, que durante três períodos suces-
de .trabalho, treinamento vocacional e recreação, como os
sivos de Governo municipal conseguiram diminuir a vio-
do Chicago Area Project e o Cambridge-Somerville, men-
lência em duas cidades que eram, paradigmaticamente, as
cionados anteriormente. O Estado norte-americano passou
mais violentas do mundo, simplesmente realizando enormes
a dedicar esforços a uma política penal correcional somente -
investimentos em qualidade de vida e gestão cultural (por
depois da segunda Guerra Mundial. A partir dos anos 1950,
exemplo, bibliotecas de alto nível, complexos esportivos de
são introduzidas os "Centros de trabalho penitenciário", para
primeira linha, salas de concertos, sistemas modernos de
quem estava em liberdade provisória, subsídios aos distritos
mobilidade etc.) dentro da comunidades mais caóticas e de-
para alentar a supervisão local como alternativa à prisão;
pauperadas dessas duas cidades2.
classificação para os diferentes níveis de delinquência e pro-
gramas de tratamento intramuros, alguns experimentais. O marco histórico e cultural
"9 "Is the Treatment of Criminal Offenders really necessary?", em Federal O século XXI nos foi anunciado como o portador de
l'robations, 40, 1 976. Ver sobre todos estes antecedentes o trabalho progressos tecnológicos e também espirituais, mesmo que o
de Tony Platt e Paul Takagi, "Critica a los nuevos realistas", em Capi-
século anterior já tivesse dado presságios de que a memória
tulo Criminológico, n" 6, op. cit.
Lethinen, Marlene, "The value of life. An argument for the Death Pe- humana podia oferecer buracos negros sobre uma história
nalty", em Crime and Delinquency, 23 de julho de 1977, pp. 237-
' Os prefeitos Mokus, Fajardo e Perialoza.
252.
71 Sendo este um Manual de Teorias Criminológicas e não de Políticas
"Big Change in prisons: Punish not reform", em LIS News and WorIcl
Criminais, nos remetemos à Aniyar de Castro, Lola, Criminología de
Report, agosto 25, 1975.
72
Por exemplo, as Fundações Ford e Rockefeller, ainda que também los Derechos Humanos..., já citada, onde há referências a estes temas
e um amplo capítulo dedicado à segurança dentro de uma estratégia
tenham enfrentado aos que denominavam "advogados utópicos".
de Direitos Humanos.

448 449
recente de sangue, destruição, ódios e guerras, e que o seu aquecimento global, a natureza se tornou vindicativamente
desenvolvimento progressista pudesse encontrar obstáculos hostil: a ameaça de furacões e tormentas, desmoronamentos e
conjunturais e, apesar das imagens documentadas de espan- inundações parece ter aumentado. Por outro lado, as práticas
tosos extermínios genocidas e as experiências paranoides do capitalismo selvagem anunciam ameaças de fome mundial
dos autoritarismos, permitiu-se conservar as esperanças. por escassez de alimentos, ou de destruição da Amazônia e
São precisamente o desenvolvimento tecnológico, a glo- sua potencialidade de produzir o sustento das gerações futu-
balização, a falsa desaparição das fronteiras, a substituição ras; os movimentos políticos e sociais emergentes de vocação
da Guerra Fria por outro sistema de ódios e enfrentamentos, violenta, o terrorismo, as guerras econômicas, ou religiosas,
os que começaram a definir um panorama obscuro sobre o étnicas, ou tribais; as crises financeiras das economias virtuais
futuro da humanidade. Isso não podia, senão, refletir-se nas do primeiro mundo que arrastaram em sua queda a todos os
políticas penais e criminais. De fato, para explicar e legiti- países; a voracidade do mundo petróleo; o perigo de desapa-
mar certas políticas regressivas se nos remete à Teoria da So- recimento do planeta, das ameaças de guerras nucleares, das
ciedade de Risco, na qual se gerariam temores e ansiedades religiosidades fanatizadas e genocidas, das armas que elimi-
generalizados. O risco seria o sinal do século em que vive- nam somente organismos vivos (bombas de nêutron) e dos avi-
mos. É o início da Era do Medo (The Age of Fear); e o risco, ões não tripulados, característicos dos enfrentamentos bélicos
como veremos, é a parteira do medo e da não solidariedade. da época, tudo isso conforma um panorama apocalíptico. O
Risco se estende então, como um conceito para além do tec-
Na modernidade tardia', segundo essa teoria'', e em virtu-
nológico: o pensamento pós-moderno, como vimos, postulou
de das novas tecnologias e das catástrofes naturais imprevistas
relatividades e flexibilidades que eram inevitáveis. As técnicas
que se desencadearam, estar-se-iam produzindo riscos que,
de comunicação, informatizadas ou não, tornaram realidade
mesmo que em boa parte artificiais ou construídos, teriam a
a previsão da aldeia global. Mas esta, adicionada a sua nova
capacidade de gerar destruições massivas. Em uma Sociedade
ferramenta de incontroláveis redes sociais, mesmo que por
de Risco não existiria a possibilidade de estabelecer padrões
um lado se pareça à uniformidade anunciada; por Outro, já
de regularidade ou normalidade. Nela tudo seria incerto e não
que não se pode conter as tensões internas, produziu-se uma
haveria maneira de manusear sinais confiáveis de previsibili-
massa bastante informe de razões suficientes para gerar medo.
dade e calculabilidades. É inegável que, produto ou não do
Por exemplo, a ameaça do terrorismo já não se circunscreve
Os livros publicados recentemente em espanhol sobre o debate na cri- a objetivos geográficos ou políticos específicos, mas o medo
minologia anglo=saxa são muito interessantes. Ver Young, Jock, El verti- sim. Assim, ao colocar-se em voga inimigos similares para
a° de Ia moclerniclad tardia, Buenos Aires, Didot, 2012; O'Malley, Pat, todos os países, vão se criando novos temores: todos temos
Riesgo, neoliberalismo y justicia penal, Buenos Aires, Ad Hoc, 2011. medo de tudo.
O Ver Beck, Ulrich, La sociedad..., op. cit.; Rodriguez de Assis Macha-
do, Marta, Sociedade cio risco e Direito Penal. Uma avaliação das Com isso, gera-se a necessidade de produzir bodes ex-
novas tendências politico-criminais, São Paulo, IBCCrim, 2005. piatórios, de identificar inimigos e ódios indefinidos que ficam
en Ver De Giorgi, Raffaelle, "O risco na Sociedade Contemporânea", Revista
Sequência. Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade
buscando para onde se dirigir. As propostas em certos setores
do planeta chegaram a ser as de exterminar os "outros".
Federal de Santa Catarina, n°28, Florianópolis, junho de 1994.

450 451
Por sua capacidade de generalizar as vitimas, mesmo indispensáveis para sobreviver. Pelas mãos do autoritarismo,
que alguns autores dissessem que esses riscos implicariam o Leviatã regressou. E o fascismo também.
em uma "democrática" tendência igualitária, o certo é que
nesse tipo de sociedade existe, na realidade, uma força de A construção do medo nos espaços locais
atração entre a extrema pobreza e os riscos extremos, de ma- Os medos, reiteramos, são construídos (mesmo que
neira que, na prática, as pessoas desprotegidas em maior grau não faltem razões para criar ansiedades). O crime tornou-se
são precisamente as vítimas mais generalizadas6. Isso é cons- um valiosíssimo recurso de entretenimento televisivo e cine-
tatado ao trasladar-se o conceito de risco para o âmbito crimi- matográfico, em sua maioria produzido em países centrais,
nológico. Efetivamente, ali constatamos que nem o sentimento mesmo que muitos países periféricos os copiem ou modifi-
de insegurança nem a insegurança real têm relação direta com quem segundo suas circunstâncias culturais, recurso sem o
a possessão de bens e porque, pelo contrário, o encontramos qual as indústrias do entretenimento e de comunicação já
expresso com maior intensidade nos estratos mais carentes, não sobreviveriam. Agora, mais que nunca, se intensifica a
O "risco", como nova etiqueta de perigo, preencheu famosa "regra de ouro" para o mercado de cenários e noti-
também espaços criminológicos. Hoje se fala de uma Cri- cias: sexo, esporte e crime. Já ninguém faz aquelas velhas
minologia Atuarial, baseada em cálculos de probabilidade, pesquisas de quantos delitos aparecem em uma semana de
da mesma maneira como trabalham as empresas de seguros. televisão ou de cinema. As cifras são desnecessárias. O que
teria que se computar é, pelo contrário, quais são os progra-
Um vocabulário neopositivista substituiu o do positivis-
mas, filmes, jogos eletrônicos, notícias nacionais e interna-
mo arcaico, em vez de se falar em periculosidade social, se
cionais que não são violentos ou destrutivos. A desconfiança
fala agora de Grupos de Risco. Na realidade, é o mesmo. Só
recíproca se instala até mesmo no cotidiano da vida privada.
que não se teme somente às pessoas em sua dimensão indi-
vidual, mas também em sua capacidade de se agrupar, e por
isso se ultrapassou as leis e previsões sobre os denominados OS MEIOS
(mal denominados, segundo muitos) delinquência organiza- Selecionam
da, armamentismo e terrorismo.
Divulgam
Vivemos, então, em um mundo globalmente aterrori-
zante, que se nos apresenta como quase totalmente trans- Ocultam
gressor. As cifras negras viraram tendência e as enquetes de Convertem acontecimentos em atos delitivos
vitimização também, porque as cifras oficiais dessas trans-
Comercializam o delito ao vendê-lo com outros
gressões são insignificantes ou meramente simbólicas. As de-
núncias e acusações são mínimas, os conflitos se resolvem "objetos de consumo"
à margem do sistema penal (nacional ou internacional). As Desta maneira, expandem o medo
relações sociais se reduzem, as interações urbanas são as

fi Ver as obras citadas de Beck e Rodriguez de Assis Machado.

453
452
O medo', transformado em monstro dos pesadelos mo- de menores, policiais, que têm pouco a ver com a nossa
dernos, arrasta, por sua parte, perversas consequências no realidade institucional de base (e que também não contam
que se refere tanto à democracia quanto aos mecanismos com instituições de apoio adequadas). Igualmente como as
do controle formal. E como tudo o que se relaciona com legislações internacionais sobre a delinquência organizada,
a Criminologia é profundamente político — o são a Justiça a tendência a ter prisões e polícias privadas; e certamente,
Penal, a legislação penal, as políticas criminais e penais, o também as teorias do controle baseadas na Tolerância Zero
mal denominado "espirito do legislador", e a criminalizaçâo e os "fatores de risco"9 .
efetiva, pilares que sustentam a mesa da governabilidade
isso se refletirá sobre os direitos e garantias que o Direito é A globalização no terreno institucional
convocado a protegera.
A busCa de tini fácil,..Segóro,•Liniforrnizado e eficiente
Mundo Globalizado igual a Mercado institucional glo- controle penal elsociafgarante ao mercado globaliiado,
balizado sociedades de consumo estáveis, previsíveis
.
e manipu-

Existe um mundo globalizado? Na realidade, esse tão


repetido termo se reduz à globalização do mercado, com
suas correspondentes bagagens cultural e institucional. Aqui
também presenciamos uma esquizofrenia ativa: a unidimen-
à As Mesmas reformas penais processuais, de menores, •
sionalidade cultural, que já faz quase meio século foi demo-
policiais etc.; são. impulsionadas; ,
nizada pelos filósofos frankfurtianos, apareceria acentuada AS' legislações internacionais sobre 'a delinquência
hoje, em virtude do enérgico campo de uma informação ganizada
virtual e comunicacional, cada vez mais centralizadas no -A: tendência' a ter prisões e polícias privadas,:, '
âmbito internacional. No terreno institucional, essa globali- 9:Ass ieorias dó controle baseadas na Tolerância Zero e'
zação se cristaliza, entre outras coisas, na busca de um fácil, nos "fatores de riscn".:tt ''• '
seguro, uniformizado e eficiente controle, tanto penal como
social. Esse controle garante, supostamente, ao mercado, so-
ciedades de consumo, as quais serão estáveis, manipuláveis
e previsíveis. Assim, temos reformas penais, processuais, 9 Um informe do ex-Ministro francês Sarkozy, antes de ser Presiden-
te, apresentado à Assembleia Nacional, se baseou em uma pesquisa
CL) Também recorreu-se ao medo em épocas anteriores para permitir as do Instituto Nacional para a Saúde e a Pesquisa Médica (INSERM), e
perseguições de mulheres definidas como "bruxas". Ver Delumeau, solicitava estabelecer medidas de acompanhamento a crianças que,
Jean, La peur en Oeciclent, Paris, Fayard, 1978; tradução espanhola: desde o jardim de infância, poderiam ser precocemente detectadas,
El mieclo en Occidente, Madri, Taurus, 2012. e portanto, serem consideradas suspeitas de condutas indevidas no
II
Em 2013 ficaram conhecidos novos casos de violação do direito â futuro. Essa proposta se apoiou em novas pesquisas sobre crianças
intimidade e â privacidade, relacionados â invasão da espionagem muito pequenas, diagnosticadas por parentes e professores — não por
política (em alguns casos oficial) das mensagens e comunicações atra- médicos — com hiperatividade ou déficit de atenção, os quais seriam
vés da Internet, cuja denúncia, adicionalmente, gerou perseguições estigmatizados por sua potencialidade de condutas inadequadas.
internacionais e requerimentos de asilo político dos denunciantes.

455
454
A contrarreforma e suas consequências Endurecendo o controle penal
Parte da contrarreforma se apóia na indiferença — quan- O medo e a globalização acarretarão medidas penais,
do não na aprovação — da população ante os fatos. O medo que serão regressivas e oportunistas.
legitima a barbárie, e esta se reproduz também em leis penais. Mencionamos pesquisas que demonstram o quanto tem
Por sua parte, o tão debatido Direito Penal do Inimigo aumentado, recentemente, o volume de pessoas que opinam
perde seu sentido específico ao se estender a todo tipo de que a polícia tem direito de matar'°. Mas, além disso, presen-
legislação administrativa, onde é mais difícil rastrear a perda ciamos o jogo estético, no fundo hipócrita, de aprovar leis
de garantias. Tem que se investir muita força para manter ao supostamente protetoras de direitos, que têm seu contrapeso
menos alguns dos princípios do velho Direito Penal Liberal, em realidades não concordantes: as novas leis para o con-
que já não nos servem, senão, para os relativamente escassos trole de ações transgressoras do "menor" e do "adolescen-
juizos penais formais que ainda se realizam. Na prática, o te", por exemplo, traziam o que definimos como um cavalo
controle formal se converte em um polvo de muitos braços, de Tróia, ou seja, a diminuição da idade da imputabilidade
início institucional da capilaridade do controle social, que penal, enquanto mantém para os menores, instituições de
deixa reduzido, como nunca, o Direito Penal convencional reclusão similares a prisões, mesmo que novos especialistas
à sua mais limitada expressão simbólica. parajurídicos estejam hipoteticamente atuando. A experiên-
cia em nossos países é de um progresso muito precário e
Como vimos no capítulo XXI, a Criminologia se torna,
de reprodução do horror e da ineficácia penitenciários. As
dessa maneira, cada vez mais regressiva: retornam os velhos
leis de proteção ao direito da mulher a uma vida livre de
abandonados estudos genéticos e as investigações cerebrais;
violência não só não são acompanhadas pela instauração
e até o conceito de populações vulneráveis, mal utilizado, se
de uma cultura de não violência contra a mulher, o que
faz ameaçador, ao identificar a vulnerabilidade com elemen-
permite que as denúncias continuem sendo insignificantes
tos característicos da pobreza. A sociedade de risco é, pois,
em relação à realidade total, como os locais institucionais de
fundamentalmente, risco para a liberdade.
proteção e amparo — como casas de acolhimento — são pra-
Além disso, os organismos internacionais de Direitos Hu- ticamente inexistentes (na Venezuela existem somente duas,
manos funcionam com lentidão e com dificuldades para se- e com capacidade apenas para dez pessoas cada una). Mas
rem realmente eficazes. Os juízos por crimes contra a Huma- a supercriminalização e o "olhar permanente" (e autorizado)
nidade demoram muitos anos em seu percurso judicial, até o da comunidade próxima, sobre certos espaços íntimos, subs-
ponto de que os imputados ficam tão velhos ou doentes, que tituíram as políticas de mediação, empoderamento, escolas
então são eles que passam a solicitar medidas humanitárias. para pais e obras ações de promoção cultural.
A criminologia primeiromundista agora se debate entre
uma esquerda — que assim se denomina por sua tendência '° Declarações de Roberto Bricefio Le6n no seminário realizado por Ve-
namcham sobre Repressão do Delito e Direitos Humanos, El Nacional,
humanista (mesmo que em muitos países autodenominados
16-06-2005. Por sua vez, Liliana Ortega, representante da Cofavic,
de esquerda o conteúdo humanista costume ser falso por sua observa que 80% desses casos não chegam a juízo, e os que chegam
expressão vertical, autoritária e punitiva) — e uma direita que são absolvidos, e acusa à impunidade como promotora desses atos.
se caracteriza por traços fascistas.
457
456
inimigo social. O princípio do fascismo se fincou na necessidade
de castigar, eliminar ou segregar o diferente, despojando-o
medo aparece pelas mãos de um novo protagonista
ideologicamente de suas qualidades humanas e, portanto, de
da vida planetária: o inimigo. Os novos inimigos interna-
cionalizados são o imigrante e o terrorista, associados aos sua dignidade e seus direitos. As diferenças culturais caracte-
rizam os enfrentamentos básicos do mundo atual.
conceitos de Outro (diferença ou alteridade) e ao do Ris-
co, adicionados a um sentimento solidamente construído,
Medo. Um pouco de Santíssima Trindade, que representa
três divinos perigos em um só e que confunde a prevenção
com um mecanismo de guerra :destrutivo. Latinos
. !iffy.ancrg: Negros
MIGRAÇOESS' Muçulmanos
Ccrifriiriálitár-V) Delinquentes
4- - ,--,s,...
,,,,,,w.4,:•;,.. ---2....,..w..:,:pya-;:z...fat:;3,.-szi,,t,,.v-z-,,;,--w;...,,:ay,
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d'fittiáiiitC,',Clêts,Nua'squáludadeshumanasr,e;gppr.tanto'dejsma Não reconhecemos o diferente, e as guerras atuais -
ilMignedadegeieust.tureetos.-vp...--6 9,,,,,,s, -u. , para além dos interesses econômicos que as sustentam - têm
muito a ver com essas diferenças legitimadoras, que fazem
da alardeada "globalização" uma grande mentira. É o caso
Os imigrantes novos inimigos: o imigrante como das migrações, fenômeno acentuado pela pobreza mundial,
diferente que hoje faz com que doze milhões de latino-americanos
Desde a velha Criminologia Positivista vem se asseve- "ilegais" estejam lutando por direitos nos Estados Unidos,
rando que o delinquente costuma primeiro legitimar a sua por um lado; e pela aparição de novos blocos nacionais,
ação degradando, através das suas racionalizações, o valor como a União Europeia, por outro.
o significado da sua vítima. Outra coisa, contudo, é que A luta de classes foi substituída pela guerra internacional,
mesmo sentido de alteridade gere vítimas por diferenças em espaços internos, de nacionais contra imigrantes, ou vice-
de grupo, ideologia, cor, religião, etnia, gênero ou classe iena. No campo dós Direitos Humanos foi sendo produzido,
-_,L

459
458
Poderíamos citar muitas pesquisas norte-americanas e
cada vez com maior rigor, modificações esquizofrênicas: por
europeias que tentam explicar suas delinquências através de
um lado, os organismos internacionais desenvolveram cada
aspectos étnicos, ou antropológicos, ou culturais (os limites
vez mais bens protegíveis pelas declarações ou convenções
desses conceitos são flexíveis) dos migrantes do terceiro e
de Direitos Humanos; e por outro, os países que os aprovam
e os acolhem não estão dispostos a protegê-los na prática, ou quarto mundo.
ratificam somente aqueles que produzem mais vítimas por es- A Criminologia se toma mais positivista, aumentam os
tas violações de Direitos. Às vezes, como veremos, na formu- estudos sobre grupos étnicos migrantes de países marginais.
lação dos direitos que aparecem nessas Declarações, existem É assim como, mesmo quando somente uma condu-
exceções surpreendentemente ,Significativas, como por exem- ta intencional, e gravemente danosa, deve ser considerada
plo, que os imigrantes ilegais não têm alguns direitos huma- delito, as imigrações ilegais se converteram em um assunto
nos. Como podem se fazer Convenções que ao outorgar Direi- criminológico. Como costuma acontecer, os problemas de
tos Humanos para uns, se aproveitam para tirá-los de outros? governabilidade se traduzem em termos de criminalização.
É fácil ver seus efeitos nas cifras de criminalização de estran-
st i g geiros e na sua privação de liberdade em lugares de depósito
É.4 .,.., T, ,'I ,, Jz., •rgrà:,?:k, t?pt2.it'r -aazita.V; -: W. !-i
IreitosT yigranteste
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ros,
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4 .,
t(O ::k;,ütN-kk rag)m 't A ,3,i1 L-t, denominadas de outra maneira.
de'que sç aa,..vintezipàises•fosatiticaram;,,,emilmar,ço,_.9g,
- :1E,...mie l'• 4i.4%Tc»,.; -t-D-,• '.riblig;',4p:O.se" A situação é tão grave e significativa, que se-cunhou um
termo especial para se referir às relações entre imigração e
ecoriheceseficitiêrosiiiimi rarites ilegaisiit mg,legitimi
.i@z4.',....,•,.4,.rxic-,,si..,j,ag,vid..io.o...,..".,..y.,tsii~:.rf.iiiygi-ii,.;:it.i,..,, ,,,ti, ..f , av.
1' * tig'. Ci'''
„...,i,r,,f
,,a delinquência: "Crimmigration". No debate sobre imigração,
a raire i vi ri a i c aram a is ta i re i tos4ci ue ,os, narkh ,peam.9p_ogs4,,,,
era;:.--,:--tas..--44,-.4:0-3T-2t,.,,,,-:"'gr,v-i..wsbt:ftne:r.,7,-e:>,,ise,...-70.,,,,,t ,,...,,,„ afirma-se, o termo de "ilegal" engloba seres humanos que não
lifastiquefosNdiréitos;fundameritaiSidéstes.rta mberrtiotevemi
!...v",,iiiigt.-4, *,:x.,-, ..,;(apti.,.-5,v.y-p.,5›...-f-4.,, r.w.i.i.w4-tr.w.afi.k.:„.,r(r‘t-4,2.,,,f.e., :rit-''',• -..c são delinquentes, mas que violaram normas administrativas.
..serírespeitkdos;rconof:ser,es?-tiuma
i t rm- ,
tis'AVVeeSCM -ae.....,. -
0 ;,̀:L~.0.:TV5,9:*i
ramta4t rim nçãayfiãciterapttc
':ti, n4- 0 5N, it Á
, Nenhuma pessoa, pelo fato de ser imigrante, pode ser consi-
R
t R .i 94ti‘ :. Or4sêz 0 x) im .. w trnrevt derada "ilegal". E essa simples qualificação, que cria o este-
aqueles,aos qualspsimigrantessao, ? ;arigvkrios(MéXi,4 cs?f.tSt
arrocos
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34.-94
. & , , reótipo de pessoas que sempre estão violando as leis, serve
.c.,:, ,t-..g. :.,:.0:., - ?..kr..j.95..2 "" --, para legitimar medidas que violam Direitos Humanos. Serviu
%.5t-Tr.‘` ' P11 n•Vi.n.:-:-71,N,,, fr c,. ._,.., • .r(i.ig N.• , Cir._ tri:
en umpals.iocidentalsreceatou e;:imigrantesh-àtiticaww também para criar uma cultura do terror, como evidenciou
tri.:gcnt.1.,,tat'.-e,-2:frvg.kti49..,Ert‘lfri,,,, :INA'S'yrÉriirc,f)31%tn:të;tililt-fr:,,,,t..W.r.':.2Witl
onvençãor,TnesmpiqUea-irnatoriaideles;viv.amw,Europa....êçi uma enquete do ano 2000, segundo a qual, 75% dos norte-
.....90,,»,5,tt4,N?,:,%.‘<àiA.,ro".4":".31,,ti4,
, ,..\'',
V1,2";rs*.2t-g,?il.--,..Wzre:44.^_0•g.5*-8;;:'":"-C%'»-“,:::7
a Éra, trletipagiCtr•I Çartelp.0 trOS: Im pprtantes paisé s., receptot
,v ,..,4w , ,-,•...,ii"...--.v..,..;„„ii,%,
4~ ,,,404_,t--;, ,,6wjii.).05,
. mr-, v;t-z,, -americanos sentia que os "latinos" estavam envolvidos no
r.c.iret".;tambémnátkaatificar.am),-corpoiÀustr.glia:-.0s;-países,
'• C"' :4 '-'41k-tX;Ott.4.51à ?Ye4iggant?'72.13:t •;';'tt.":::,•}C•}0; ''C•• . •“Z`Na'• . aumento das taxas de delito. Não obstante, Robert Sampson
demonstrou que isso não era certo. A taxa de encarceramen-
to de nacionais era cinco vezes maior que a de estrangeiros.
-onsequ ncia,n aratt.exiSieiser,es?,„? Outros demonstraram que, mesmo que nas cidades de fron-
'11:!r?c!çt?Selttv;if.t nurnanos,semdireitas teira, como El Paso e San Diego, nos anos 1990, a entrada de
imigrantes tenha subido em 50%, as cifras delitivas reduziram

461
460
significativamente. Não obstante, desde 1998 o orçamento Reviveu-se a teoria ecológica da Escola de Chicago e
para aprisionar e deportar imigrantes aumentou em 600%, conceito de "desorganização social". Assim, frente a uma
constituindo a maior quantidade de casos no sistema penal, "direita" que buscaria encontrar aspectos delitivos em bairros
muitíssimo maior que o tráfico de armas e de drogas. latinos dos Estados Unidos, partindo da hipótese — implícita
ou formulada — de que ali há valores negativos, existe uma
Como explica Wacquant, como consequência dos Tra-
"esquerda" também funcional-positivista que alega que nos
tados de Schengen e de Maastricht, que se orientaram em
bairros onde residem pessoas de uma mesma proveniência
acelerar a integração jurídica para assegurar uma efetiva li-
nacional, os vínculos com os valores das famílias de mesma
vre circulação de seus cidadãos, a imigração foi definida por
origem são, na verdade, bons controles da delinquência. A
suas autoridades como um problema de segurança continen-
teoria do conflito de culturas de Sellin, foi novamente posta
tal, do mesmo nível que o crime organizado e o terrorismo.
em cena, mesmo que ainda não resulte ser reivindicadora da
Segundo o autor, essa privação de liberdade em "depósitos"
diferença.
de estrangeiros é mais um encarceramento de diferenciação
que um encarceramento de segurança". Como o mesmo au- Se na Europa os perseguidos e suspeitos proveem da
tor cita, o aumento dos estrangeiros entre população encar- África ou do mundo islâmico, nos Estados Unidos os perigo-
cerada na França depende exclusivamente do aumento três sos por etnicidade são os latinos'4.
vezes maior, nos últimos anos, de prisioneiros que violaram O terrorismo
suas normas de permanência nesse país'12. E, como se pode
Um novo elemento se associa ao "risco" para aumentar
ver nas cifras que ele apresenta, existe uma situação similar
medo: o terrorismo.
em toda a Europa. Também informa que:
a evolução da população penitenciária estadunidense [testemunhal o
enegrecimento constante da população detida, o que faz que, desde
1989, e pela primeira vez na história, os afro-americanos sejam maio-
ria entre os novos ingressados nas prisões estaduais, mesmo que não
representem mais de 12% da população do pais (...) Os latinos são o
grupo cuja taxa de encarceramento cresceu mais rápido no período
recente. Esta "desproporcionalidade racial" (...) é ainda mais pronun-
ciada entre os jovens (...) porque, a todo momento, mais de um terço
dos negros de 18 a 29 anos estão na prisão, ou sob a autoridade de um
juiz de aplicação de penas, ou de um agente de vigilância penitenciá- 14 Em 2011, a administração de Obama completou 1,1 milhões de de-
ria, ou ainda, à espera de apresentar-se ante um tribunal". portados. Um estudo feito em departamentos policiais da Flórida cons-
tatou que seus agentes utilizavam o nome, a etnia, o idioma e o lugar
11 de nascimento como base para recomendar sua deportação. Um estu-
Wacquant, Lok, Les prisons de la misère, Paris, Raisons D'agir, 1999. Ver
do de caso citado por Sharada, membro fundador do Projeto Stanford
também Tournier, Pierre, "La délinquance des étrangers en France: analy-
sobre Direitos dos Imigrantes, mostrou que 96% dos presos pelos po-
se des statistiques penales" em Palidda, Salvatore, Délit d'immigration.
liciais eram latinos, contudo, desses, somente 2% havia realizado atos
lmmigrant delinquency, Bruxelas, Comissão Europeia, 1996, p. 158.
12 graves e 45% dessa população foi condenada por estar, "Presentes
Wacquant, Ldic, Les prisons..., op. cit., p. 111.
13 sem Admissão" (PWA), o que não significa um histórico delitivo.
Wacquant, Ldic, Les prisons..., op. cit., p. 98.

463
462

111111
— .-:0-TERRORJSMO:." Governança e Sistema penal. O sentido dos Direi-
tos Humanos para a Criminologia: um olhar ético
Governança é "Bom Governo" e agrega-se com esta pa-
lavra, um requisito valorativo a muito pragmática "governa-
O terrorismo produz um sentimento de ameaça geral. bilidade".
As estratégias contra o terrorismo tendem a limitar
perigosamente os valores básicos que são herança co- Os produtos do medo e da seletividade
mum da humanidade.

_ nações, países e_
Classes sociais,
até religiões estigmatizadas, são o
Reflexo nos Direitos Humanos núcleo centraLdo "inimigo a des-
Estereótipos truir".
do mal
ou perigoso:
Algumas técnicas especiais de investigação ameaçam o
o "outro' São arquétipos de repressão e per-
direito à privacidade e às garantias políticas (escutas telefô-
nicas: Suécia, Inglaterra, Estados Unidos etc.). seguição encravados no subcons-
ciente coletivo e midiaticamente
Cuantánamo: terra de ninguém.
inflamados.
Potencial ização da cultura de guerra.
Apartam-se organismos internacionais:
Criam-se novos:inimigos: os "outros". A liberdade, a igualdade e a segurança em risco

Difunde-se um estereótipo (perseguir e assassinar um bra-
sileiro nas ruas de Londres por sua cor, suspeito de perten-: Aceitemos que o sentimento de insegurança, em geral,
cer a uma etnia considerada perigosa, por exemplo). é tanto ou mais perigoso em suas consequências sociais e
políticas que a insegurança real.
Bom Governo é o que respeita e ativa os Direitos Hu-
manos e se preocupa em evitar que as políticas criminais
trasladem seu foco da prevenção para a segurança. Isso sig-
nifica passar da planificação e das políticas sociais para o
imediatismo do controle e da repressão. Vejamos como isto
está se manifesta atualmente.

465
464
O castigo adicional aos grupos de risco ternacional a realizar um ato ou se abster de fazê-lo. Com
exatidão, Alejandro Alagia sustenta que o que produz cala-
Sob pretextos neopositivistas, como o de pertencer a
frios é o castigo por meras disposições internas, isto é, por
"grupos de risco" ou a estereótipos de "inimigos", não são
finalidades ocultas como a de aterrorizar a população, que o
permitidas medidas alternativas à pena privativa de liber-
juiz observa como sintomas de um potencial inimigo. "Puro
dade. Na prisão se submete os reclusos a uma espécie de
direito penal de espírito e de perigo. Uma variante normati-
"segundo juízo", agora um administrativo, em mãos de es-
va do velho perigosismo racista". Nunca antes o Congresso,
pecialistas não jurídicos, que decidirão se outorgam ou não
agrega, desde a recuperação da democracia, delegou tanto
saídas antecipadas ou alguma outra medida limitativa do en-
poder punitivo em favor de forças de segurança e de juízes.
carceramento, tudo isso sem o devido processo ou garantias.
Não há nada mais equivocado que se consolar com a ima-
Por outro lado, as formas de agarrar o "inimigo" foram
gem de banqueiros ou poderosos perseguidos ou presos. É
_jn.nrlo cada vez mais _per~so pode ser visto na
desconhecer a natureza seletiva do poder punitivo. Essa gra-
autorização das escutas telefônicas, nas recompensas para o
ve habilitação de mais trato cruel, a sofrerão grupos vulnerá-
denunciante, nos cartéis que difundem seus rostos, na perda veis da população sem que se afete minimamente a lavagem
da privacidade comunicacional ou eletrônica; e, inclusive de dinheiro ou o financiamento do terrorismo".
através do estímulo à população para que se organize em
ações de verdadeira inteligência social e até política. Os No Sistema Penal, surgiram novos pontos de vista re-
exemplos vão desde o Patriot Act, até o Decreto-lei do Siste- gressivos: o Direito Penal do Inimigo, conceito de Jakobs
ma Nacional de Inteligência e Contrainteligência que havia . que define esse inimigo como alguém que se colo-Cou vo-
sido aprovado em maio de 2012, na Venezuela's, e que con- luntariamente à margem da sociedade e que, portanto, não
vertia todos os cidadãos, assim como às organizações comu- pode ser objeto de proteções ou garantias; e o de Silva Sán-
nitárias, por obrigação, em agentes de inteligência política. chez e outros, que nos falam de um Direito Penal de uma,
- duas ou até três velocidades, traduzíveis em quantidade de
Também as restrições para obter e difundir informação
do que acontece no interior de alguns países" tornam mais garantias e direitos suspensos; ou o do termo vindo do beise-
expeditas e sinistras as dificuldades para exercer garantias e bol: "one, two,three strikes and you are out".
defesas. A liberdade de expressão limitada ou midiatizada O uso do sistema penal (graças a um Poder Judiciário
fecha portas. sem autonomia real pela sua provisionalidade, decretada na
A recente lei antiterrorista argentina, de 2011, penali- prática, e a um Ministério Público partidário) para perseguir
e destruir inimigos políticos é outro tema que neste momen-
za o autor de um ato que tenha por finalidade aterrorizar
to se debate na Venezuela; e poderíamos nos perguntar em
a população, ou obrigar as autoridades públicas nacionais
quais outros países o sistema penal se converteu também
ou governos estrangeiros ou agentes de uma organização in-
em arma política letal para destruir o inimigo. E assim, em
IS Felizmente retirada por seu proponente, o Presidente da República,
depois de protesto popular. "7 Alagia, Alejandro, "Otra vez una ley antiterrorista", Página 12, 22 de
'6 A Venezuela é um deles. dezembro de 2011.

467
466
diversos sentidos. Poderíamos sugerir um novo conceito de Não obstante, na nossa região existem atualmente ata-
periculosidade: a periculosidade do sistema penal. ques recentes orientados a fazer desaparecer os organismos
Por outro lado, considerar que os mortos em enfrenta internacionais encarregados pelo respeito aos Direitos Hu-
mentos entre gangues ou grupos não deveriam ser contabi- manos'', os quais, pela distância que tem com os poderes
lizados como cifras de homicídios realizados", é negar o locais, poderiam ter uma imparcialidade superior. Esses po-
deres pretendem, assim, evitar o controle dos excessos reali-
valor da vida humana e acentuar a sua falta de proteção,
assim como a agressão ao Estado de Direito' 9. zados, precisamente, através do sistema penal, para neutra-
lizar, castigar ou aterrorizar seus inimigos políticosn. É que
Vimos que a proteção dos Direitos Humanos deve ser
uso do sistema penal, apesar dos processos espúrios que
objeto e ao mesmo tempo, o limite do poder punitivo do
realiza, dá uma máscara de legitimidade a esses excessos.
Estado; bem como, que o objetivo a ser construído é um Di-
Por isso também se faz cada vez mais urgente considerar
reito Penal Mínimo, (chamado por alguns autores de Direito
a independência do Poder Judicial como um direito humano.
Penal Axiológico ou Direito Penal da Constituição)". A con-
trarreforma institucional que estamos experimentando, é exa- Já o slogan de "guerra contra o crime" não é só uma
tamente a inversão dos princípios postulados pelos Direitos questão de linguagem, ou seja, não somente as polícias e as
Humanos. Nenhum princípio jus-humanista foi abandonado atividades de contraterrorismo, as políticas contra as drogas
mais que o de Direito Penal Mínimo: o Direito Penal não só ou as instituições que realizam o crime organizado foram se
deixa de ser mínimo, como deixa de ter, ao admnistrativizar- militarizando, mas também foi se solicitando que as polí-
-se, a aparência formal do Direito Penal. Parece, pois, que cias e as atividades do controle formal da delinquência con-
chegou o momento para que uma renovada Criminologia vencional tivessem uma organização interna militarizada,
Crítica que enfrente o Estado policial-penal máximo e a sua quando não, que se reforçassem com a presença ou práticas
linguagem de guerra, proclame que o Direito Penal Mínimo militares. A violência está presente também na linguagem
deve ser considerado como um Direito Humano21. dos governos e dos políticos que se que se candidatam a
eleições'''. E como a violência se aprende, a violência que
18
Assim o expressou o Ministro de Relações e Segurança da Venezuela,
pudesse aparecer na sociedade se retroalimentaria também,
Rodriguez Chacín, em junho de 2008.
19 Na Argentina, as cifras a respeito de mortes nas prisões parecem não
dos discursos oficiais.
ser alarmantes, mesmo que costumem sinalizar alguns casos de "zona
liberada" em algumas prisões que permitem o acerto de contas entre
reclusos sob o olhar complacente da autoridade penitenciária. Estado Penal. Isso nos leva à situação de contar com um "Estado mí-
29 Como Barata, que afirma que o Direito Penal deve ser "o espaço resi- nimo" para as políticas sociais e econômicas e "Estado máximo" em
dual que fica para a intervenção punitiva dentro da política integral de matéria policial-penal.
22 Como a Corte Interamericana dos Direitos Humanos.
proteção dos direitos, quando essa intervenção se considere inevitável
para responder a gravíssimas violações de direitos fundamentais". Fer- 23 A Venezuela, em 2012, se exclui dessa jurisdição que vigiava os abusos

raioli também escreveu muitas páginas sobre o tema. e manipulações do Poder judicial, incômoda para o Poder Executivo.
21 Ver Benito, Mauricio. Como forma de conter a crise social gerada 24 "Perlonazos", "guerra" contra o crime, "mão dura", por exemplo, são

como consequência do crescente número de marginalizados, se apos- expressões características nas campanhas eleitorais da Venezuela e da
tou em uma política repressiva assentada sobre o princípio de mais Argentina.

469
468
Ao ser um projeto exclusivamente de segurança, o pro- CAPITULO XXIII
jeto da sociedade de risco implicará diferentes classes de
leis e de jurisdições, assim como uma Criminologia disposta
a desenhar parâmetros de uma política criminal mais dura. A CRIMINOLOGIA REGRESSIONISTA
É, também, o momento no qual a Criminologia deixou DO SÉCULO XXI 00
de ser "ciência auxiliar do Direito Penal" ao colocá-lo so-
mente como um dos diversos objetos de seu estudo e aná- O neopositivismo: o regresso do biologicismo com rufos de
lise crítica. Como se falou, uma Criminologia como Teoria tambor. A Genética e as Neurociências. "Com a sutileza de
Crítica do Controle Social, a qual não é mais que uma Cri- um elefante": a Sociobiologia, Neurociências, Genética e
minologia dos Direitos Humanos, ao ser axiológica, não é estudos cerebrais. Coisas novas e parcialmente esperanço-
diferente da Política Criminal; e é parte de sua tarefa, tanto o sas. Como explicar os crimes de massa? As investigações
estar vigilante sobre os desvios que se produzam no terreno biológicas, os fatores de risco e suas consequências.
dos valores quanto ter sob observação os movimentos das
relações de poder.
O neopositivismo: o regresso do biologicismo. A
Já existe urna longa lista de situações nas quais pode-
Genética e as Neurociências
mos identificar esses desvios. Restam as muitas que estão
produzindo-se nos âmbitos internos e internacionais, entre O regresso de Lombroso vem com rufos de tambor. O
outras coisas, as guerras que se produzem como formas de triste é que os soldados do mundo das ciências humanas
castigo a supostas transgressões, que não foram sempre veri- estão recolhendo apressadamente suas bandeiras. Isso tem a
ficadas nem legitimadas; e esse Controle Penal Internacional, ver com a permanente necessidade de se legitimar mediante
que às vezes elimina mais vidas que os homicídios de rua, o prestígio da palavra "ciência". Ainda em laboratórios, dou-
somados, de todos os países. Um criminólogo dos Direitos tores de jaleco branco se exercitam nos ritos de uma verdade
Humanos deve estar alerta frente às tendências que, mesmo supostamente incontestável, carregada da respeitabilidade
ocultamente, estão destruindo uma democracia que custou que produz toda aproximação ao conhecimento que traga
muito sangue para construir. fórmulas numéricas ou imagens extraídas do corpo humano.
A única certeza ou, pelo menos, aproximação à verdade,
proviria, segundo o mito, das ciências naturais25.
Não podemos deixar de colocar aspas na palavra "ci-
ência", independentemente de que, ao obedecer a técnicas
alheias às do mundo social — praticamente exóticas e, além
disso, quase herméticas para os não nativos dessa língua
especial — pretenda-se conferir-lhe esse status de algo tão

25 Aniyar de Castro, Lola, Criminología de los Derechos Humanos...,


op. cit., p. 133.

470
pouco linear como a complexidade do mundo político, so- As violações extremas das normas humanas de comporta-
mento nos chocam intuitivamente como algo anormal; que
cial, psicológico e antropológico. Pois, como reiteradamente
são anormais, por definição, é uma tautologia. Não é uma
dissemos nestas latitudes, não se podem abarcar, a partir dos
coincidência que utilizemos a palavra "doente" para descre-
microscópios, as razões do espírito26 . ver tais comportamentos'.
Sobre esta última parte, havíamos advertido há algum
tempo: as propostas de alguns criminólogos anglo-saxões O criminoso aparece assim, outra vez, considerado como
apresentadas nos simpósios internacionais de Estocolmo alguém anormal, isto é, como um doente, como aconteceu no
dos últimos anos, os prêmios obtidos, como também outras século XIX; trata-se de alguém que padece de alguma anoma-
difundidas em livros e revistas especializadas nos Estados lia genética ou cerebral. O ato criminoso fica reduzido, dessa
Unidos e na Europa, demonstram um regresso triunfal das maneira, a uma causa natural anômala que haveria de ser
investigações biológicas sobre a conduta delitiva, isto é, um identificada e suprimida ou, pelo menos, controlada.
retorno ao paradigma etiológico pelas mãos de estudos ge- Quando vemos que o modelo etiológico tende a ser do-
néticos e cerebrais27. minante, que pertence a um grupo poderoso e fechado de
É inquietante, porque hoje em dia, à diferença do que acadêmicos que não deixa brechas a outro tipo de crimino-
aconteceu ao longo do século precedente, a Genética e as logia, para a qual olha com suspeitas por conta do seu pos-
Neurociências já não falam de intervenção nos efeitos pato- sível, hipotético e estereotipado, intrínseco ativismo social
lógicos das condutas, mas sim em suas hipotéticas causas. e político, olhamos com simpatia para o passado, e mesmo
É a primeira vez na história da Medicina que nossa espécie para o presente latino-americano, onde qualquer coisa pro-
tenta conhecer e modificar os fatores determinantes da exis- gressista desde o lado jus-humanista era e segue sendo possí-
tência humana. Com este objetivo se se começa a substituir vel. Nesse novo mundo, com suas características históricas,
as terapias clássicas pelas terapias gênicas, inclusive autori- se construíram marcos sociopolíticos para um pensamento
zando, desde os anos 1990, tanto nos Estados Unidos quanto e pesquisas alternativos2 . Mesmo quando se diga, não sem
na Europa, os transplantes de genes. viés autoritário, que a Criminologia Crítica está em retro-
cesso neste continente, não deixamos de utilizar como me-
O crime serve como modelo para essas "ciências" que,
todologia as determinações históricas dos nossos controles
a partir da análise dos comportamentos violentos, veem nos
penais e sociais. Por isso o nosso interesse em teorizar em
delinquentes matéria para formular uma hipótese como a
um marco transdisciplinar de grande amplitude — o qual é
que se segue:
uma perspectiva integradora de história, política, interesses,
Todos nos comportamos de forma impulsiva e irresponsá- definição e controle — segue estando vigente.
vel, mas a maioria de nós tem a capacidade de nos manter-
mos alheios à criminalidade rotunda. Pelo contrário, é mui- ' Goldberg, Elkhonon, El cerebro ejecutivo. Lóbulos frontales y mente
to mais provável que o comportamento privado de inibições civilizada, Barcelona, Crítica, 2001, p. 197.
sociais por razões neurológicas possa ultrapassar o limite. 2 Nos referimos em páginas anteriores ao Grupo de Criminologia Críti-

ca Latino-americana. Ver Aniyar de Castro, Lola, Criminología de los


26 Ibidern. Derechos Humanos..., op. cit., p. 131.
27 Ibidem, p. 131.
473
472
Certamente, no mundo anglo-saxão, o olhar pragmáti- Apesar de que se possa pensar que isso pertence ao
co da pesquisa universitária sobre a prevenção obedeceu ao passado, Zaffaroni aponta a permanência de certas práticas
clamor público e eleitoral pela segurança, mas não é somen- temíveis na atualidade, como a utilização de uma espécie de
te um assunto de tradição. Existe muito poder detrás disto: "camisa de força química" (comprimidos psicotrópicos ou si-
poder médico, poder de governos que pagam pesquisas ou milares) repartidos generosamente entre toda a população; e
as estimulam comprando a bom preço seus resultados em que não falta quem se aproveite dos avanços das neurociên-
forma de consultorias; poder universitário que consolida e cias' para propagar um completo reducionismo biológico —
reproduz algumas máfias acadêmicas e interesses do merca- desta vez, impulsionado por empresas transnacionais produ-
do eleitoral'. toras de fármacos -6, o qual, segundo a hipótese deste autor,
Claro que as fórmulas mágicas, especialmente as mais justifica o interesse dos laboratórios em fomentar pesquisas
codificadas, por serem inexpugnáveis para os não especialis- para a produção de medicamentos que modifiquem os es-
tas, ajudam a aplaudir propostas perigosas. tados mentais, sexuais e cornportamentais dos indivíduos7.
Entraram na moda pesquisas longitudinais sobre a hi-
"Com a sutileza de um elefante" peratividade infantil, a partir de meses de idade em diante,
Podemos dizer, então, que os biólogos e neuro "cientis- vinculadas ao déficit de atenção, e que não ocultam sua
tas" entraram no mundo da Criminologia "com a sutileza de intenção controladora, de fato estigmatizante, mesmo que
um elefante". Trazem suas bandeiras carregadas de radiogra- nenhuma conduta tipificada tenha se constatado.
fias, seus exames moleculares, suas mostras de DNA, suas
neuroimagens e suas fórmulas de duvidosa aplicação cien- A Sociobiologia
tífica ao complexo cenário social e político. E as rupturas O velho processo positivista se reinicia com a Socio-
que ocasionam estão gerando consequências incalculáveis biologia. A sociobiologia humana (existe também uma so-
na geração de medidas autoritárias. ciobiologia animal) aparece como forma moderna do de-
Zaffaroni diz que os criminólogos costumam experi- terminismo biológico em duas obras de Edward Wilson'.
mentar um pânico histórico quando encontram a Psiquiatria catedrático da Universidade de Harvard e, em 1975, funda-
em seu caminho. Isso obedece, segundo ele, ao souvenir dor da Sociobiologia como disciplina. Sem dúvida, não são
de uma Criminologia Psiquiátrica que pretendeu patologizar
5 Para o Prêmio Nobel de Medicina Eric <andei, a tarefa das neurociên-
todo o campo do delito e da própria dissidência política, e cias é aportar explicações da conduta em termos de atividades cere-
caiu em um reducionismo genético, e legitimou aberrações, brais, explicar como atuam milhões de células nervosas individuais no
massacres, genocídios, abusando da manicomialização e encéfalo para produzir a conduta e como, por sua vez, estas células
empregando métodos dolorosos, torturantes, repressivos, in- são influenciadas pelo meio ambiente, incluindo a conduta de outros
indivíduos (Kandel, Eric; Schwartz, James e Jessel, Thomas, Nemo-
trusivos e deteriorantes4.
ciencia y conducta, Madri, Prentice Hall, 2005, p. 6).
6 Zaffaroni, E. Raúl, La palabra..., op. cit. p. 339.
3 Ibidem, p. 132. Andrieu, Bernard, "L'anomalie...", op. cit., p. 412.
4 Zaffaroni, E. Raúl, La pa/abra..., op. cit., p. 339 Idem, "Criminología 8 Sociobiología. La nueva sintesis, Barcelona, Omega, 1980; e Sobre Ia
y Psiquiatria...", op. cit., pp. 263-274. naturaleza humana, México, FCE, 1983.

475
474
as únicas obras relevantes sobre esta forma de pensamento, Efetivamente, como diz Roberto Ruiz, o conceito de
mas com certeza são as mais representativas, junto ao El gen "seleção natural" foi assimilado progressivamente à teoria
egoísta, de Richard Dawkins9. da ação social típica do mercado competitivo. Concebida à
Wilson define a Sociobiologia como o "estudo sistemá- imagem do sistema de mercado, a natureza foi usada para
tico das bases biológicas (genéticas) de todo comportamento explicar a ordem social humana, e vice-versa, em um inter-
social", o que significa que todo comportamento humano, câmbio recíproco sem fim entre darwinismo social e capita-
em sua dimensão social, tem um fundamento genético. A lismo natural. Diz-se que a Sociobiologia é somente a última
função da Sociobiologia, diz Wilson, no que diz respeito aos fase desse ciclo: a fundamentação do comportamento social
seres humanos, é então situar as ciências sociais dentro de humano em uma ideia da evolução orgânica, que seria a re-
um marco biológico de referência, marco erigido a partir de presentação de uma forma cultural de ação econômica. Isto
uma síntese entre estudos da evolução, Genética, Biologia é, que a Sociobiologia, como diz Sahlins, pretende dotar de
populacional, Ecologia, comportamento animal, Psicologia legitimidade científica a ideologia capitalista".
e Antropologia. Tese sem dúvida reducionista que promove Esta última explicação quiçá não seja a resposta pre-
de novo a ideia do determinismo biológico de que todo traço tendida por Marvin Harris, que sinaliza a necessidade de
físico ou de conduta é necessariamente produto da seleção elaborar uma teoria sociocultural coerente, de maior poder
natural. explicativo, frente às teorias elaboradas pela Sociobiologia,
Críticas não faltaram. mas possivelmente esclarece o auge desta disciplina nesse
contexto socioeconômico mundial'2.
A questão está em que, como diz Daniel Soutullo:
"questões tão variadas como a das raças humanas, a euge- Contudo, a Sociobiologia nos Estados Unidos goza de
nia, as implicações biológicas da teoria darwiniana ou, mais uma implantação política e acadêmica que deveria preocu-
recentemente, o projeto do genoma humano, entre outros par; e que começa a irradiar um crescimento progressivo
também na Europa desde a sua constituição como disciplina.
temas, podem ser abordadas desde o ponto de vista das rela-
ções entre biologia e ideologia"'°. O certo é que, como veremos, também sirva para jus-
tificar as medidas de encerro prolongado, se não indetermi-
9 Nesse livro, Dawkins diz: "Os genes seguem se desenvolvendo (...)
esse é seu ofício. Eles são os reprodutores e nós somos suas máqui- 11
Ver Sahlins, Marshall, The use and abuse of Biology, Londres, Tavisto-
nas de sobrevivência. Quando tivermos cumprido nossa finalidade, ck, 1977. Isto é, que a Sociobiologia, como disse Sahlins, pretenderia
seremos deixados de lado. Mas os genes são os habitantes do tempo dotar de legitimidade científica a ideologia capitalista.
geológico: os genes são eternos (...) Como eficazes pistoleiros de Chi- 12
Marvin Harris dizia que a Sociobiologia tinha conseguido uma popu-
cago, nossos genes sobreviveram, em alguns casos durante milhões laridade instantânea, em parte, porque as mais conhecidas estratégias
de anos, em um mundo sumamente competitivo. Isto nos autoriza de pesquisa da ciência social não podem oferecer soluções causais
a prever certas qualidades em nossos genes. Demonstrarei que uma científicas para os perenes enigmas que rodeiam fenômenos como a
previsível qualidade predominante em um gene eficaz é um egoísmo guerra, o sexo, a estratificação social e os estilos de vida culturais.
implacável". Harris, Marvin, "Sociobiología e reduccionismo biológico", em Mon-
10
Soutullo, Daniel, "Prefacio", Biologia, Cultura y Ética, Madri, Talasa, tagu, Ashley (coord.), Proceso a la Sociobiología, Buenos Aires, Tres
2005. Tiempos, 1982, p. 347.

477
476
nado, úteis para satisfazer medos e propostas do moderno desejo irrefreável de matar, se torna verdugo; o filho de um
populismo punitivo. comerciante que encontra sua felicidade matando, pode se
tornar açougueiro.
As neurociências
Por isso, alguns autores dizem que a violência é um
Em seguida, as neurociências também entraram em excedente da agressividade institucionalizada, que não foi
voga. A Fenologia ou Craneologia, fundada por Franz Joseph legalmente autorizado. Pensemos no boxe, na rinha de ga-
Ga'', foi um antecedente importante das atuais neurociên- los, nas touradas, no rugby, no próprio futebol e sua enorme
cias, segundo Antonio Damasio, professor de Neurociência carga de agressividade tolerada.
da Universidade de Southern California'''. Retomar como
antecedente o antigo positivismo biológico é interessante, A genética
porque permite a Damasio rejeitar a noção de fatalidade na Com relação às pesquisas genéticas, reviveu-se a pes-
conduta humana e eludir o problema do determinismo di- quisa sobre gêmeos univitelinos, que nos anos 1970, sem
zendo que não sempre o indivíduo com uma inclinação de- evidências conclusivas em relação à delinquência, Christian-
litiva passava ao ato: o homem é livre. sen realizou, e, muito antes, em 1929, também sobre o vín-
A inclinação para a agressividade, diz, poderia estar as- culo entre herança e delinquência em gêmeos univitelinos e
sociada a outras faculdades superiores — como a coragem, bivitelinos, Johannes Lange (El crimen como destino).
entre outras — que podem debilitá-la e evitar, dessa maneira, É interessante apontar o que o próprio Christiansen di-
ato delitivo. Assim, um estudante que sente prazer ator- zia nesses anos:
mentando e matando animais, pode neutralizar sua inclina-
Antes de que se apresentem algumas suposições, e admi-
ção homicida dedicando-se à cirurgia; um boticário que tem to que são generalizações especulativas, sobre algumas das
13
consequências deste estudo sobre gêmeos delinquentes,
Gall (médico austríaco que chegou a Paris em 1807) assentou as bases
devo atentar que não sou psicólogo (...). É evidente que al-
de uma nova disciplina ao afirmar a existência de funções específicas
nas distintas partes do cérebro, uma das quais teriam relação com o
gumas expressões de agressão são muito condenadas aber-
delito, que seriam definidas por protuberâncias no crânio. Junto com tamente, outras são criticadas, algumas são bastante aceitas,
seu discípulo,_1_ C Spiirzheim, se estabeleceu em Paris, onde co- e algumas se consideram expressões de valiosas qualidades
meçam a dissecar crânios em público; mesmo que dificilmente obti- humanas (...) a tolerância de diversas formas de agressão
vessem alguma legitimidade científica; inclusive sua publicação (In- difere segundo o tempo e lugar, por exemplo, com a cul-
vestigaciones sobre el sistema nervioso en general y dei cerebro en tura (...) eu desejaria que os psicólogos sociais ajudassem
particular) foi mal recebida pela comissão que a avaliava, em um júri a resolver esses problemas, se é que já não têm resultados
que estava integrado, entre outros, pelo psiquiatra P. Pine!. Mais tar- nas mãos".
de, Spurzheim se separa de seu mestre e amplia o sistema de Gall nos
países anglo-saxões: na Inglaterra e nos Estados Unidos. Em 1801, o
imperador Francisco II (1768-1835) proibiu suas conferências e cursos
'5 Christiansen, Kirk O., "La génesis dela conducta agresiva. Implicacio-
em Viena porque o materialismo ensinado era contrário aos princípios
nes de un estudio dei delito en un estudio de mellizos daneses", em
da moral e da religião.
14
Aniyar de Castro, Lola e Tineo, Audelina (comps.), Los rostros..., op.
Damasio, Antonio, El error de Descartes, Buenos Aires, Drakontos,
cit., pp. 268-269.
2008, p. 33.

479
478
Uma investigação de Terrie Mofitt" apresentada no demonstra que, o que impulsiona a violência é a carência do
Stochkholm Criminology Symposium, em 2006, e ganha- amor parental e da autoestima gerada na infância. É mais, os
dora do Prêmio Estocolmo de Criminologia, assinala que a múltiplos acontecimentos e experiências sociais que rodeiam
conduta antissocial infantil poderia ser explicada em gêmeos o desenvolvimento de uma personalidade, e não necessaria-
por influências genéticas comuns. mente o tratamento afetivo dos pais, teriam talvez muito a ver
Mas em outra parte da sua exposição, a autora alega que também com o tipo de conduta realizado.
existe uma interação entre o ser vítima de um abuso de me-
Os estudos cerebrais
nores e a predisposição genética a uma baixa expressão de
monoamina oxidase A, uma enzima que regula importantes A ressurreição e gloriosa ascensão de Lombroso tam-
neurotransmissores nas sinapses dos neurõnios cerebrais". bém podem ser vistas nas atuais pesquisas cerebrais. Tanto
Assim, quem não tem esta predisposição ou uma história de nos simpósios internacionais como em certas publicações,
abusos sexuais na infância, teria menores níveis de conduta apresentam-se mapas de cortes cerebrais e um vocabulário
violenta do que quem apresentou ambos os fatores. A autora que não se escutava desde a época do antigo e reputado
reconhece que esta investigação é experimental, que não foi professor italiano Benigno Di Tullio. Recordemos sua inter-
duplicada por outros especialistas e que pode ser refutável. venção durante a celebração do Segundo Congresso Inter-
nacional de Criminologia em Paris, em outubro de 1950, na
Mesmo à margem do determinismo etiológico, não é
que parecia reduzir a conduta criminosa a um fenômeno ce-
discutível que os abusos sexuais na infância possam ter al-
rebral. Uma das principais causas da criminalidade residia,
guma relação com transtornos de conduta, ainda que estes
para este autor, em uma anomalia cerebral, isto é, havia que
não sejam necessariamente delitivos; mas não está claro que
se analisar o vínculo do desenvolvimento ontogenético do
a baixa existência da enzima monoamina oxidase A tenha,
cérebro e as funções internas dos lóbulos frontai.19 .
na conduta violenta, uma maior influência que os abusos
sexuais. A relação entre lóbulo frontal, violência e criminalidade
volta com força no livro cujo título é representativo: El cere-
Na nova pesquisa de Moffit" sobre crianças gêmeas se
bro ejecutivo. Lóbulos frontales y mente civilizada, do atu-
invocou a influência do ambiente ao afirmar que "o gene per-
al professor de Neurologia da Universidade de Nova York,
manece silente" em um gêmeo que foi tratado com carinho
Elkhonon Goldberg.
pelos progenitores — enquanto que quem foi tratado com des-
prezo ou falta de amor, pode desenvolver violência —; o que Para esse autor, a relação entre o dano no lóbulo frontal
e a criminalidade é particularmente intrigante e complexa.
1' Mofitt, Terrie, "Program and Abstracts", Stochkholm Criminology Sabe-se, afirma, que o dano nos lóbulos frontais provoca a
Symposium, 4 de junho de 2006, p. 16. deterioração da intuição, do controle do impulso e da pre-
17
lbidem.
18
visão e, que, com frequência, conduz a um comportamen-
Ver Caspi, Avshalom; Moffit, Terrie; Morgan, Julia e outros, "Maternal
expressed emotion predicts children's antisocial behavior problems using
to socialmente inaceitável. Os pacientes que sofrem dessa
mz-twin differences to identify environmental effects on behavioral deve- síndrome "pseudopsicopática" são tristemente famosos por
lopment", em Deyelopmental Psychology, 40, 2004, pp. 149-161.
19 Di Tullio, Benigno, "Bio-criminogenese", op. cit., pp. 5-23.

480 481
sua demanda por gratificação espontânea e não se veem li- minosos não violentos22. Não sabemos quantos cérebros
mitados por costumes sociais ou por medo ao castigo 20. É de Raine observou, nem se todos os que possuem essa defici-
se suspeitar então, diz, que alguns desses pacientes estejam ência cometeram delitos. Por sua parte, Goldberg considera
predispostos a apresentar um comportamento criminoso. que nem sequer é necessário um dano direto nos lóbulos
Goldberg se pergunta se há alguma evidência de que indiví- frontais para produzir uma disfunção significativa, bastam,
duos processados, convictos ou sentenciados, sejam de fato às vezes, lesões de caráter leve, que também produzem essa
casos não reconhecidos de dano no lóbulo frontal. disfunção23.
Com argumentos surpreendentes, este autor sustenta o Adrian Raine e outros autores estudaram os cérebros
seguinte: de assassinos convictos através de tomografias de emissão
de positrons (PET) e encontraram anormalidades no córtex
Vários grupos marginais da sociedade mostram o traço pe-
culiar de delegar suas funções executivas a instituições ex- pré-frontal'''. Do mesmo modo, estudaram os cérebros de
ternas, em que suas opções estão limitadas ao máximo, e o homens com transtorno antissocial de personalidade e en-
poder de tomada de decisões sobre eles é exercido por ou- contraram uma redução de 11% na massa cinzenta de seus
tras pessoas. Alguns pacientes psiquiátricos crônicos se sen- lóbulos frontais25. A causa dessa redução é incerta, mas Rai-
tem incômodos fora das instituições mentais e procuram a ne acredita que é, pelo menos em parte, congênita, antes
sua readmissão; alguns criminosos se sentem incômodos no que possa ser atribuída a fatores ambientais tais como abu-
mundo exterior e buscam uma forma de serem encarcerados sos ou maltratos dos pais. Se essa afirmação fosse certa, diz
de novo. Isto poderia se imaginar como uma forma peculiar
Goldberg, então parece que as personalidades com certas
de automedicação, como uma tentativa de compensar um
formas congênitas de disfunção cerebral poderiam estar par-
déficit executivo que lhes deixa incapazes de tomar suas
ticularmente predispostas a comportamentos antissociais, o
próprias decisões21.
que para ele não seria implausíve126. Teria que se fazer estu-
Perguntamos-nos se esses "grupos marginais" têm ca- dos de controle de assassinos sem estas características, ou de
rências cognitivas por uma precariedade educacional e so- pessoas de conduta não atribuíveis a elas.
mente são efeito da escassez de oportunidades. No caso da
22 Raine, Adrian, The Psychopatology of crime: criminal behavior as a
prisão, este aspecto foi considerado como síndrome da pri-
clinica! disorcler, San Diego, Academic Press, 1993.
sionização.
23 Goldberg, Elkhonon, El cerebro..., op. cit., p. 199.
Também são inquietantes as conclusões às que recen- 24 Raine, Adrian; Buchsbaum, Monte e LaCasse, Lori, "Brain abnorma-
temente chegou, em suas pesquisas, Adrian Raine, professor lities in murderers indicted by positron emission tomography", Biolo-
da Universidade da Pensilvânia. Tendo como base vários es- gical Psychiatry 42, n° 6, 1997, pp. 495-508 (citado por Goldberg,
Elkhonon, El cerebro..., op. cit.).
tudos publicados, este autor sugeriu que a lesão cerebral é 23 Raine, Adrian; Lencz, Todd; Bihrle, Susan; LaCasse, Lori e Colletti,
muito mais alta entre criminosos do que na população em Patrick, "Reduced prefrontal gray matter volume and reduced auto-
geral, e ainda mais em criminosos violentos do que em cri- nomic activity in antisocial personality disorder", Archives of General
Psychiatry 57, ri° 2, 2000, pp. 119-129 (citado por Goldberg, Elkho-
20 non, El cerebro..., op. Cit.).
nossos.
2' Goldberg, Elkhonon, El cerebro..., op. cit., p. 198.
25 Goldberg, Elkhonon, El cerebro..., op. cit.

483
482
A pesquisa sobre a prevenção de homicídios por meio frentamento tradicional entre Psicanálise e Neurociências,
de uma melhor nutrição à base de peixe (Omega 3) apresen- no qual o primeiro acusava a estas de serem reducionistas,
tada por Raine no Simpósio Internacional de Criminologia mecanicistas e estáticas, ao negar a subjetividade e a história
de 2006, em Estocolmo, e também no de 2013, merece ser pessoal; e estas por sua vez àquela, apontando-a como mera
resenhada pela surpreendente conclusão. Segundo o pesqui- mitologia, aparece atualmente com uma colaboração expli-
sador, o componente Omega 3 ajudaria a evitar a deterio- cativa de ambos pontos de vista, entre um psicanalista e um
ração da estrutura cerebral. O cita como abono do "desco- neurologista, no livro A cada cual su cerebro. Plasticidad e
brimento" de que os húngaros, que comem menos peixe, inconsciente, de François Ansermett e Pierre Magistretti28.
cometem mais homicídios que os japoneses, que, por sua Neste livro se explica como a marca da experiência pes-
vez, consomem mais produto provindos do mar. Isso pode- soal — a memória —, influi significativamente na modulação
ria significar que todos os povos que consomem menos peixe da sinapse (ou transmissão de informação) entre os neuró-
são mais perigosos ou que as crianças que o consomem não nios, modificando sua forma e dinâmica, em um fenômeno
serão violentas? que denominam de "plasticidade" (o contrário da rigidez).
Analisemos com cuidado essa hipótese em nossos paí- De maneira que a historia individual intervém na modifica-
ses: com um consumo quase exclusivo de carne bovina na ção da conduta, a qual já não estaria predeterminada por
Argentina, como se explica a relativamente baixa taxa de um funcionamento cerebral autônomo.
homicídios nesse país? Ou, por acaso, será a diminuição do
E a macroviolência?
consumo de peixe a que indica o aumento da violência ho-
micida na Venezuela no século XXI, ou em alguns países da O impacto que essas pesquisas vêm apresentando sobre
América Central, no período pós-conflito bélico? a Criminologia, em um momento histórico no qual se acen-
tuam os racismos e o medo ao "outro", certas questões nos
Evidentemente, não só o simplismo, na realidade o ver-
são apresentadas.
dadeiro reducionismo, do esquema de uma conduta que é
produto de muitos componentes sociais, mas também a eli- Como se considerarão as pessoas com baixa monoami-
minação das variáveis tanto definicionais quanto culturais, na oxidase A, com história de abusos sexuais na infância;
geram questionamentos sérios a esses trabalhos27. aos sujeitos com traumatismos craniano com lesão no lóbulo
frontal e inclusive aqueles que tiveram golpes leves: perigo-
Coisas novas e esperançosas sos ou inimigos? Que tipo de prevenção ou de perseguição
Notemos hoje em dia, que muito dos temas das neuro- haverá que se estender sobre eles para evitar que sejam ho-
ciências e da genética têm variado. Na verdade, hoje se faz micidas? Será a pena de morte?
uma aproximação entre a Psicanálise (que enfoca o mun- Poderíamos nos perguntar também: terá sido feito um es-
do do subconsciente) e as Neurociências, em um sentido tudo semelhante em policiais ou soldados que em muitos países
diferente ao causal-explicativo puramente biológico. O en- se deleitam com violências e torturas? O que sabe se sobre a
baixa presença dessa enzima em juízes, presidentes ou minis-
27 Aniyar de Castro, Lola, Criminología de los Derechos Humanos...,
op. cit., p. 134. 28 Buenos Aires-Madri, Katz, 2012 (1' ed. em 2006).

484 485
tros ou em líderes políticos? Poderia se afirmar que foram gol- A sensação de que eu sou dono dos meus atos, sujeito cons-
pes na cabeça ou lesões em seus lóbulos frontais a causa da vio- ciente que atua, é ilusória. O cérebro decide antes de me
\
lência extrema nas condutas dos ditadores Videla e Pinochet? transmitir a sensação de que quero fazer o que me dispo-
nho a fazer (...) Não fazemos o que queremos — comenta o
Por outro lado, todas as condutas violentas são condu-
doutor Wolfgang Prinz, diretor do Instituto Max Planck de
tas delitivas ou, como dizia Christiansen, muitas delas são
Munique para a pesquisa psicológica —, mas sim, queremos
simplesmente cotidianas, toleradas, legais ou necessárias na que fazemos. Ou dito de outro modo: "o homem pro-
vida do século XXI (como os citados matadouros e açougues, põe e o cérebro dispõe". As pesquisas partem do princípio
boxe, futebol, cirurgia, para citar as mais aceitas)? de que os sentimentos são só uma interpretação subjetiva
Se consideramos que a agressão é significativa em si do que estimula o nosso cérebro. Ao tentar controlá-los ra-
mesma, deveríamos concluir que não se pode explicar atra- cionalmente, o sistema límbico, encarregado das emoções,
consegue evitá-lo.
vés do genoma humano nem dos estudos cerebrais, a te-
nebrosa paisagem da macroviolência, como os crimes de Dessa forma, Gerhard Roth chega a qualificar o con-
ódio, as guerras, "a limpeza de sangue", o genocídio ou trole racional dos sentimentos como uma ilusão, já que to-
extermínio, os crimes políticos, o terrorismo, a tortura, para dos aqueles estímulos que o cérebro racional processa fo-
seguir a ordem de nocividade da conduta agressiva. Que ram avaliados previamente pelo sistema límbico. Como diria
todos tenhamos genes que induzem à agressão não significa Henrik Walter, da Universidade de Frankfurt, somos mais
que os genes a produzam sem que haja variáveis do entorno um "animal emocional" que um "animal racional".
.que estejam presentes na associação. O mesmo se pode di-
Os autores continuam afirmando:
zer com relação a certas disfunções cerebrais. O entorno é
demasiado complexo para ser incluído em um resultado que É possível que o livre arbítrio seja um exemplo do mesmo
se pretende científico, nem mesmo visto através de imagens tipo de cegueira no qual, quem é somente uma pequena
engrenagem de uma grande organização burocrática cai:
cerebrais, do vidro das provetas ou das retortas das ciências
mesmo que se limite a corroborar decisões que outros mais
naturais.
altos tomaram antes, ele, no melhor dos casos, acredita ser
Outras pesquisas biológicas dono das alavancas do poder.

Há outro tipo de pesquisas biológicas que podem ser Como consequência, uma proposição: tem que se fazer
ainda mais assustadoras, porque se referem diretamente à ressonâncias magnéticas a todos os suspeitos e encarcerar a
capacidade de autodeterminação e, portanto, aos controles todos os criminosos em potencial, da mesma forma em que
que os pesquisadores consideraram necessários para a anun- se encarcera quem tem doenças contagiosas.
ciada periculosidade. Essa questão aparece em outras pesquisas: Hans H. Kor-
Talvez a mais significativa é a do professor Gerhard nhuer e Lüder Decke (1965) se propuseram a investigar, com
Roth, neurobiólogo da Universidade de Bremen, reitor da a ajuda do EEG, a relação entre os movimentos voluntários
escola hanseática, que diz: da mão e do pé e as ondas cerebrais. Assim, descobriram

486 487
que um segundo antes de que a pessoa que participava da As pesquisas biológicas, os fatores de risco e suas con-
experimentação movimentasse a mão ou o pé, o desenho sequências
das correntes cerebrais apresentava uma inflexão caracterís- Mesmo que, de antemão, não sejamos especialistas
tica. Eles chamaram esta espécie de sinal de "potencial de nessa matéria tão específica, de fato, sabemos da comple-
alerta". Benjamin Libet, neurofisiólogo da Universidade da xidade do mundo social e político, como também conhe-
Califórnia, se perguntou: "Como a consciência percebe esse cemos as terríveis consequências que as descrições e defini-
parco segundo? Quanto tempo transcorre entre a decisão ções podem ter para a liberdade e os direitos humanos, as
consciente do cérebro e o ato propriamente dito?". Enten- quais quisemos transcrever textualmente. Nosso propósito é
de que não pode ser um segundo, pois, do contrário, nos chamar a atenção urgentemente sobre o que estas pesquisas
movimentaríamos pelo mundo em câmera lenta. A única significam.
explicação que lhe pareceu possível foi que o potencial de A pergunta que os autores desses estudos se fazem, já
alerta para a ação se instaura no cérebro antes de que deci-
foi respondida: "Não sabemos se os delinquentes violentos
damos a ação conscientemente. Como conclusão: põe em que apresentam algumas deformações do cérebro podem ou
dúvida que sejamos donos dos nossos sentidos e dos nossos devem se reintegrar à vida social". Isto significa prisão perpé-
atos. Então, "esse livre arbítrio não seria mais que uma apa-
tua ou extermínio de sujeitos perigosos irredimíveis?
rência". Isso quer dizer que o cérebro decide como sistema
Apesar de os investigadores de biogenética terem res-
autônomo e não necessita em momento algum da nossa livre
pondido às críticas dizendo que os estudos em paralelo (lon-
vontade. À luz de toda a sua experiência, o cérebro decide
gitudinais), o trabalho sobre os genes, sobre os déficits cogni-
de maneira fulminante que alternativa de ação convém ao
tivos e neurológicos e as interações ambientais são somente
nosso organismo e que outra pode prejudicá-lo.
correlações, riscos e probabilidades, e não consequências
Outras pesquisas cerebrais, como a de Lutz Jenke, e inevitáveis, o estímulo deste tipo de pesquisa e a aceitação
algumas baseadas em testes aplicados, assinalam que exis- acrítica de seus resultados tiveram e ainda podem ter influ-
tem pessoas que não demonstram capacidade de empatia ências irreversíveis sobre os direitos humanos.
ou emoções particulares frente a cenas especialmente terrí-
De fato, o retorno triunfal do perigosismo positivista já
veis; ou que se mostram impassíveis em experimentos com
produziu na Inglaterra uma nova legislação (2003) que prevê
simulações eletrônicas capazes de gerar emoções em pes-
uma sentença adicional (indefinite public protection) para
soas "normais" (por exemplo, em mudanças bruscas dentro
quem foi considerado com alta probabilidade de reincidên-
de montanhas russas). Estes são casos de verdadeiros "so-
cia. Em 2005, apenas dois anos depois, foi reportado que
ciopatas", dizem (talvez, certamente, uma das adjetivações
mil pessoas receberam uma sentença indefinida.
mais questionáveis desde o ponto de vista sociológico), e sua
conduta delitiva seria facilmente previsível. Seguindo esse caminho, no futuro, especialistas paraju-
rídicos deverão elaborar um diagnóstico, à maneira mais tra-
dicional da Criminologia Clínica, do que em inglês se chama
DSPD (desordens severas e perigosas de personalidade). Irão

489
488
gerar também, sem dúvida, efeitos sobre as medidas de liber- falou d tema central do definicional. O que é delito, o que é
dade condicional e permissões de saída 29. homicídio e o que não é.
Como dissemos, Sarkozy, antes de ser presidente da A eugenesia, em um futuro próximo, poderia ser uma
França, já tinha defendido que era necessária uma lei para das propostas derivadas. Por outro lado, essas teorias não
registrar menores com problemas de conduta, de forma que só são suscetíveis de violar os direitos humanos dos jovens,
fossem acompanhados, nada mais, nada menos, que desde como também obscurecem as relações sociais de exclusão
a idade da educação pré-escolar (três anos)". e conflito na vida urbana. Outras consequências temíveis
Não é de se estranhar, então, que a repercussão des- são a explicação das diferenças de gênero para justificar a
sas pesquisas tenha sua versão latino-americana. Isso se ma- submissão da mulher, as castrações e as diferenças de raças
nifesta no Programa de Neurociência e Criminologia apre- e classes sociais. Não são menos importantes as implicações
sentado na Associação Psiquiátrica da América Latina, em políticas que isto compreende, como a justificação naturali-
2001, com alguns desses objetivos: investigar os aspectos zada da ordem social estabelecida.
morfológicos do encéfalo de delinquentes e criminosos em Não se trata de nos opormos a programas que pudessem
particular; estudar a capacidade de delinquir e determinar se refletir na prevenção de condutas não solidárias ou vio-
o grau de periculosidade; determinar os aspectos neurop- lentas. Existem, certamente, populações que são vulneráveis
sicológicos dos indivíduos com periculosidade pré-delitiva porque seus direitos e "necessidades reais fundamentais"32
ou "social" e delitiva ou "criminosa"31. Parece que não se não foram satisfeitos. A boa nutrição, um ambiente familiar
saudável e bem orientado, e a qualidade do processo
" Ver Soutullo, Daniel, "Prefácio", op. cit. Os chamados modelos cog- educativo, mesmo que não sejam receitas infalíveis, deveriam
nitivo-comportamentais são atribuídos para sistematizar, no futuro do
controle, as diferentes personalidades juvenis e infantis.
favorecer, entre outras coisas, uma personalidade adequada
30 Tenhamos em mente que o Centro de Estudos de Crime e Justiça do à convivência social. Essa afirmação, logicamente, não é um
Kingss College de Londres rejeitou as pesquisas do tipo de Moffit e retorno à etiologia.
outras baseadas nos modelos genéticos e cognitivo-comportamentais:
Em primeiro lugar, deixemos claro que correlação e as-
"Promovem um fundamentalismo genético e uma crença mítica, não
é uma real genética. Já anunciavam acerca dos usos políticos autoritá- sociação não equivalem à ocasião. Em uma correlação bila-
rios dos chamados 'perfis de riscos". teral, nem sempre se pode saber qual variável influi sobre a
3' Tornese, Elba e Ugarte, René, Neurociencia aplicada a /a conducta outra. Em segundo lugar, uma coisa é considerar que exis-
criminal y corrupta, Buenos Aires, Salerno, 2008, pp. 101-102. Nesse tem populações vulneráveis (e note-se que não nos referimos
livro, aliás, com título inquietante, resumem-se em algumas propos-
tas atuais na Psiquiatria argentina, que parecem voltar ao positivismo
somente a populações em estado de pobreza), por carências
lombrosiano do século XIX. Seu primeiro capítulo começa com uma ou por exclusões que podem ser remediadas com programas
citação de José Ingenieros na qual este autor manifestava que "igualar
a todos os homens seria negar o progresso da espécie humana. Negar foi estudado por Lombroso. O que não fizeram, foi relacionar essa
a própria civilização" (p. 17). Além disso, fala sobre um estudo reali- prática com o meio machista de indivíduos que transitam em vizinhan-
zado em uma prisão de Corrientes sobre 195 reclusos entre tatuados ças deterioradas, possivelmente de caráter violento, e que expressam
e não tatuados, e assinala que "as características predominantes de através da tatuagem uma conveniente resistência à dor.
agressividade foram mais frequentes nos tatuados" (pp. 99-100). Isto 32 Como as denominava Baratta.

491
490
sociais ou educativos, que devem ser grupais ou gerais — an- CAPíTULO XXIV
tes de começar a solucionar suas carências por outros meios
de caráter discriminatório ou estigmatizante —; e outra, é a
afirmação causal-explicativa e, como consequência, a perse- A OUTRA FACE DA MOEDA?
guição de pessoas individualmente classificadas e registradas A CHAMADA VITIMOLOGIA33
por suas condições genéticas, biológicas, raciais ou sociais,
com as consequências que isso pudesse gerar no histórico A chamada Vitimologia. Sua evolução desde o Positivismo
de quem nunca deveria deixar de ser considerado cidadão. até os Direitos Humanos. Os precursores e a Criminologia
O fundamentalismo positivista requer, então, e esta é a Positivista. A vítima culpável. As palavras; as definições.
nossa principal conclusão, um reviva! da discussão episte- Quanto vale uma vítima? A vítima que tem direitos. Evitar
mológica e política na Criminologia. vítimas. A vítima-termômetro. A vítima, os meios massivos
de comunicação e os direitos humanos.

A chamada "Vitimologia"
Da mesma maneira como a Criminologia acadêmica co-
meçou sendo positivista (centrada no estudo causal-explicati-
vo e interessada centralmente pelo delinquente), irá surgir um
conjunto de estudos, também causal-explicativos, mas enfo-
cados na vitima que configurarão o que se denominou de Viti-
mologia. Ferri denominou o delinquente como o "protagonis-
ta", já que era ele que se movimentava — nessa época era visto
como solitário — no chamado "cenário do drama criminal",
onde se desenvolvia o que Grispigni considerou como a força
criminosa: o ato social negativo ou de não solidariedade.

Os precursores e a Vitimologia positivista


Com a mesma exagerada ênfase em trabalhos isolados
e em diferentes países, aparentemente sem prévia comunica-
ção, e mesmo dentro do campo da Criminologia positivista,

33 Neste capítulo, com fins introdutórios, seguiremos o livro de Aniyar de


Castro, Lota, Victimología, Maracaibo, Centro de Investigações Crimi-
nológicas da Universidad dei Zul ia, 1969; primeiro livro em espanhol
publicado sobre o tema.

492
a meados do século XX começou-se a falar de outra pessoa, do que por imprudência, imperícia ou negligência de quem
a vítima. Ela chegaria para compartilhar com o delinquente conduz o veículo. Mas Menningerl, um psicanalista alemão,
a categoria de protagonista. Em 1948, von Hentig, professor em seu livro El Nombre contra si mismo, já havia tratado in-
de Vale, publica um estudo denominado The Criminal and tensamente das possibilidades de que certos indivíduos, sui-
his Victim; e um pouco mais tarde, Ellenberger" publica uma cidas inconscientes, aproveitassem qualquer conjuntura para
interessante reflexão sobre as "relações psicológicas entre o morrer por uma atitude que não era autenticamente passiva.
criminoso e sua vítima" onde faz uma primeira classificação Desde então, essas teorias continuaram sendo estuda-
das vítimas, uma tipificação que logo será reelaborada com das com maior profundidade: na Bélgica, isso foi feito por
outros aportes e denominaçõeS. A classificação que faz von Cornil, Calewaert e Racine; e por psicólogos como Della-
Hentig se completa e particulariza em um estudo que ele fez ert e Ellenberger. Na América Latina se debruçaram sobre
sobre a estafa". Pela primeira vez, com este autor, a juventu- tema, o jurista espanhol Jiménez de Asúa, o argentino
de, a velhice, a concupiscência, a depressão etc., do sujeito Sempertegui, o cubano Tabío, e o venezuelano José Rafael
passivo, são analisadas como um fator não tão determinan- Mendoza, este último em relação aos delitos culposos envol-
te da ação do delinquente, demonstrando que a oposição vendo automóveis.
legal entre o autor e sua vítima era muito mais complexa
Durante muito tempo, na administração da Justiça Pe-
que as classificações feitas pelo Dirieto Penal. Paul Cornil
nal, os termos "delinquente culpável" e "vítima inocente"
menciona que autores como Sutherland, De Greef e Selig já
foram opostos.
haviam feito menção destas relações, mesmo que não pro-
fundamente. Em 1956, Benjamin Mendelssohn, como parte - A vítima
de uma obra mais extensa, em seu artigo "La Victimologie",
A vitima culpável
se assume como precursor desse tema ao apontar que muitas
pessoas que caem sob as rodas dos automóveis o fazem mais Para a vitimologia2 da época, portanto, que, repetimos,
como resultado de uma inclinação suicida subconsciente, era profundamente positivista, frente à posição que mantinha
a existência tanto de um protagonista quanto de um antago-
Ellenberger, Schultz, em Mendelssohn, Benjamin, "Victimologie", em nista nesse "drama criminal", não se poderia dizer a priori
Revue de Droit Penal et Criminologie, Bruselas, 1958-1959, pp. 619- quem era quem. Quem era o mais culpável, quem era o
627.
mais inocente.
35 Na estafa, se diz então, que, o fenômeno de "escotoma" ou cegueira
momentânea, por focalizar-se basicamente em seus próprios procedi-
mentos interesseiros e fraudulentos (como quem adquire algo suposta-
mente de um valor muito alto, abaixo do preço, e que em seguida des- ' Ver Jiménez de Asua, Luis, "Victimiología" [que inclui mais um "i" na
cobre não ter valor nenhum), tem como resultado que quem quer estafar denominação), em Estudios de Derecho Penal y Criminología, Buenos
outro, termina por ser o estafado. Seria uma inversão do processo de Aires, Omeba, 1951, pp. 19-21.
projeção freudiano, pois, no caso de "escotoma", pelo contrário, não 2 Cornil diz que o termo Victimiología é, sobretudo, cômodo. Pois
se vê nos outros as condições que esse outro possui e que trata de dissi- abarca, como veremos, muitos campos, e não só o criminológico,
mular. Como dizia ironicamente La Rochefoucauld: "nunca se está mais especialmente se saímos do enfoque estritamente positivista ou causal-
perto de ser enganado, que quando se pretende enganar. -explicativo.

494 495
Seelig diz que a vítima pode ser "substituível", mas mal latente, esta predisposição vitimai, devem nos conduzir
pode se transformar em causa específica quando há um de- à elaboração dos delineamentos da Vitimologia Científica".
terminado caráter seu que incita o ato'. Por sua parte, psicólogos e psicanalistas aportaram opi-
Por isso se dizia que existem pessoas que atraem o de- niões em relação ao tema. Falou-se sobre a relação sado-ma-
linquente com uma sedução que se compara à sedução que soquista na qual o súcubo praticamente solicita ao incubo
a ovelha exerce sobre o lobo; ou que "o delinquente se ade- que lhe proporcione dano ou dor', da relação entre prosti-
qua a sua vítima como a luva à mão". Di Tullio se referiu tuta e cafetão, e estafador e estafado, nas quais haveria uma
a isto com o uso da expressão de "simpatia criminógena", atração entre tipos constitucionais complementários; com re-
que ficou denominado como "Síndrome de Estocolmo" lação à predominância de duas variáveis que supostamente
quando o sequestrado de apaixona pelo sequestrador; como coincidem nas personalidades de todos, representadas como
também foi descrito, não sabemos se apenas literariamente, Eros e Tânatos (instintos de Vida e de Morte); e também so-
sobre alguns casos em campos de concentração nazistas. bre as tendências suicidas. No delito passional se explanam
Inclusive, alguns autores apontam, como exemplo, que abundantemente as relações entre ambas partes do casal que
são os próprios guardas nos jardins zoológicos os que sempre protagoniza, que poderia passar da provocação à agres-
são atacados pelos animais, ou que são sempre os mesmos são de maneira mais ou menos rápida segundo os casos°.
A inter-relação dentro do casal criminoso teria sentido nas
que sofrem acidentes de trabalho. Versele indica que nos
Corpos Policiais, frequentemente, são sempre os mesmos dependências edípicas e geraria fenômenos como os ator-
agentes que, no exercício de suas funções, multiplicam os mentadores de esposas ou tiranos domésticos; nas chamadas
incidentes com os delinquentes com os quais se relacionam: relações pré-incestuosas, e em algumas pré-criminais, como
parricídio'.
"Anos de experiência nas seções penais de um mesmo tribu-
nal — diz — permitem nos convencermos de que são sempre Os trabalhos sobre a suposta participação da vítima le-
os mesmos agentes os que vêm testemunhar sobre atos de varam a diversas consequências:
rebelião ou ultrajes, dos quais, seriam eles legalmente as 1. Que se considerasse que o Direito Penal estava fun-
vítimas"4. damentado sobre concepções psicológicas insuficientes
Karl Marlbé, do Instituto austríaco de Woursburg, en-
5 A personalidade da "dupla criminosa" foi estudada por Sighele, que
trevistou três mil pessoas vítimas de acidentes diversos, e
acreditava que o súcubo — ou personagem dominado — era com fre-
chegou à conclusão de que "a receptividade vitimai sub- quência um criminaloide. Florian pensa que é a ação persistente do
consciente existe em certa medida em todos os indivíduos, incubo — ou dominante — a que finalmente destrói a resistência do
mas se faz inquietante quando o potencial de vitimização súcubo.
6 Mesmo literatos como Thomas de Quincey, em seu livro On mtirder
excede os limites normais". E diz: "este determinismo viti-
considered as one of the fines arts, afirma, ironizando, que "a vitima
queria ser assassinada".
7 Na literatura, que por vezes reflete estereótipos populares, Nabokov,
3 Seelig, Ernst, Traité..., op. cit.
4 Versele, Severin Carlos: "Appunti di Diritto e di Criminologia con ri- em sua novela Lauta, recriou uma inversão de papéis no caso do casal
guardo ala vittima dei delitti", em La Scuola Positiva, n° 4, 1962. adulto corruptor / criança corrompida.

497
496
acerca da atitude da vítima e sua influência sobre o de- pode ser a personalidade e a atitude da vitimai°, o que em
lito. O delinquente começará a se ver não necessaria- alguns casos foi levado em consideração e influiu em legis-
mente como o único responsável pelo ato antijurídico, lações pontuais (como reduzir a pena para quem pega um
pois a atitude da vítima pode coincidir, consciente ou carro que deixaram aberto com as chaves dentro).
inconscientemente, para o resultado. O próprio Tarde", em sua Filosofia Penal, critica a
Que haveria que se estudar, à maneira positivista, a "aberração legislativa" que se concentra muito na premedita-
"natureza" da vítima. ção, mas presta pouca atenção aos motivos, entre os quais se
Que se comece a falar de uma carga de periculosida- inclui a inter-relação entre delinquente e vítima. Certamente,
de na vítimas, que podia 'alimentar uma jurisprudência não se pode apartar simplesmente a complexidade de toda a
penal diferente; periculosidade que seria tomada em interação que produz danos importantes e não ter em conta
consideração, mesmo sem modificar disposições legais. a medida de cada participação no ato ocorrido. Mas é certo
Que se poderia modificar o juízo de reprovação ao im- que esses estudos e os que se seguiram produzindo à ma-
putado, diminuir a sua responsabilidade penal; e ainda neira positivista, tendem a ser para o público, antipáticos e
mudar as previsões penitenciárias. perigosos, pois, como se alegou, não só apagariam as fron-
teiras entre o bem e o mal, e as que separam o "bom Abel
Que era necessário assumir políticas profiláticas adi-
do Caim malvado", mas que também se trataria de exculpar
cionais contra a criminalidade.
os delinquentes ou de tratá-los com maior indulgência. De
Que poderia existir certa "participação culpável" da maneira que esses estudos foram forte e amplamente de-
vítima que produziria uma menor "participação puniti- nunciados, especialmente pelas feministas, pois têm servido
va" do ator. como justificativas inaceitáveis para que agentes de polícia
De forma que Mendelssohn substituiu a definição de recebam com indiferença as denúncias de violação e para
delito por uma que ele considerava mais "realista": "O deli- que juizes acusem as mulheres vitimas de terem atraído seus
to é o ato biológico, psicológico, social (delinquente-vítima) violadores com roupas curtas ou com vestidos provocativos.
sancionado pelas leis repressivas"9. Houve protestos massivos de mulheres na França, por ter-se
Os próprios penalistas deixaram de se limitar à análise desconsiderado acusações de violação, e justificado o ato,
do delinquente, e incidiram na influência do entorno sobre porque teriam dormido em barracas de camping em lugares
ato. Para von Hentig, uma dessas influências do entorno desprotegidos. Também acontece de a defesa alegar que as
mulheres não tenham se defendido "suficientemente". Isso
O Positivismo se envolveu tão fortemente no estudo da vítima, que motivou políticas dirigidas a que sejam mulheres quem re-
chegou a se falar de vitima nata, vítima latente e vítima por tendência,
vítima predestinada (o caso da crlicificação de Cristo se assume como
ceba essas acusações e denúncias e quem deva julgar es-
exemplo) e vítima propiciatória. 10
Hentig, Hans von, The Criminal and his Victim, New Haven, Univer-
Segundo a posterior "Teoria das atividades rotineiras" de Lawrence
sidad de Vale, 1948.
Cohen e Marcus Felson, 1979, a vitimização ocorrerá quando con- 11
Citado por Wolfgang, Marvin E., "Victim precipitated criminal homi-
virjam, temporal e espacialmente, um delinquente motivado e uma
cide", em Imana/ of Criminal Law, Criminology and Police Science,
vítima apropriada na ausência de uma vigilância efetiva.
1957, pp. 1-11.

498 499
ses casos. As mulheres seriam, por conseguinte, verdadeiras As definições
"Juizas Naturais". Às vezes, homens de certo nível cultural O importante da denominação Vitimologia é que ela
costumam pensar que, às mulheres, não lhes desagrada que encabeça um significado muito diverso do velho problema
as violem. jurídico sobre o sujeito passivo da vítima, e que vai além
da própria Criminologia. Mas especialmente porque abre as
As palavras
portas a uma nova concepção e a um novo protagonista dos
A palavra "Vítima" vem de vincire: 'animais que são Direitos Humanos.
sacrificados aos deuses'. Em holandês, shlachofer, e em ale-
Certamente que tanto as pessoas jurídicas quanto as co-
mão, opfer, faz referência à origem iWirTjà-PiRlas línguas
letividades também podem ser vítimas, e, como afirmam van
romances (victime, vittima e víctima — em francês, italiano e
Dijk e Rodriguez Manzanera's, há vítimas, mesmo que os
espanhol, respectivamente), se afirma a referência à palavra
danos que sofrem não sejam criminalizados.
latina vincire, a qual está relacionada ao animal ou à pessoa
sacrificada aos deuses. Outros sugerem que vem de vincere, Quanto vale uma vítima?
já que se trata de um sujeito vencido.
Apesar da já proclamada "proporcionalidade" entre a
O dicionário Littré diz que "vítima" é "aquela que é sanção e o ato cometido, nas estruturas primitivas dessa jus-
sacrificada aos interesses e paixões alheias"12 . Mendelssohn, tiça penal, era a condição da vítima a que determinava a
desde o início, tinha inventado novos vocábulos: vitimai é reação vindicativa: a Lei de Talião, que tinha a função de
um neologismo que usa em oposição à palavra criminoso. limitar a reação punitiva ao dano causado, tinha cânones de
Vitim idade se opõe à criminalidade; denomina como "dupla uma proporcionalidade absolutamente formal. Um olho "va-
penal" (couple pénah à "dupla vitima-criminoso"n; e chama lia" um olho; e um dente, um dente. Mas também em épocas
Vitimologia ao que von Hentig chama de Victimogénesis" 14. antigas, algumas qualidades da vítima foram significativas à
"Dupla penal", por outro lado, para Pinatel, é o delito come- hora de designar a sanção penal: a morte de um escravo era
tido por dois sujeitos. castigada com pena menor que a de um "senhor" ou a de um
12 homem livre. O chamado "guidrigildo", que compensava a
O Larousse francês a define como "Ia personne qui sucombe, la per-
sonne qui subit les conséquences d'un acte, d'un fait, d'un accident". morte de um galo-romano, era quantitativamente menor do
Para a Real Academia Espanhola, é a "Persona o animal destinada ai que a que devia reparar a morte de um franco-salio.
sacrificio. Persona que se expone a un grave riesgo en obsequio de
otra. Persona que padece dali- o por culpa o por causa fortuita". Pela 15
Ver Rodriguez Manzanera, Luis, Victimologia. Estudio de la Víctima,
primeira vez se menciona o que a vitima sente ou experimenta. 5' ed., México, Porfia, 1999. E van Dijk, Jan, em G. H. Van Kaam
13 À que von Hentig chama de "doer. sufferer". e Joanne Wemmers (comps.), Caring for Crime Victims, Selected Pro-
14
Ver Hentig, Hans von, The criminal..., op. cit.; Pinatel, Jean, "Les as- ceedings of the 9th International Symposium on Victimology, Nova
pects interpersonnels de la conduite criminelle", em Revue de Science York, Criminal Justice, 1999. Denominou-se "vitimologia penal" a que
Criminelle et de Droit Penal Comparé, n" 2, Paris, 1961, p. 392; e estuda os casos de violações à legislação penal, da maneira como a
Mendelossohn, Benjamin, "A new branch of bio-psychological scien- descreve a Declaração das Nações Unidas, em contraposição à "vi-
ce: victimology", Revoe Internationales de Criminologie et de Police timologia geral", que se ocuparia também de danos não sancionados
Technique, n° 2, 1956. penalmente, como os derivados de acidentes e de desastres naturais.

500 501
Também hoje em dia, em uma prática judicial bastante privação física, alimentícia, higiênica e mental, vestidos com
generalizada, se demonstra que o culpado teria uma pena uniformes maltrapilhos e marcados por uma estrela de seis
mais severa se a vítima é muito conhecida, ou importante pontas costurada na roupa, tinham um melhor tratamento
social, econômica ou politicamente. De fato, pesquisas de por parte dos guardas quando aprenderam a falar norueguês.
campo apontaram que aqueles que assassinaram funcioná- Essa capacidade de comunicação lhes outorgava o aspecto
rios policiais costumam ser objeto de uma perseguição e uma próprio de seres humanos, que tinham perdido durante as
detenção privilegiadas; às vezes nem sequer são julgados e condições de seu cativeiro'''. Mutatis mutandi, os imigran-
habitualmente tornam-se objeto de execuções extrajudiciais, tes sem documentos, os estrangeiros pobres, em geral, são
sob o habitual pretexto de se ter ocorrido um "enfrentamen- transformados em vítimas de ações inaceitáveis, mesmo por
to" com a Policia. parte de organismos oficiais. O tratamento outorgado aos
terroristas, em alguns casos inclusive de tortura, atualmente,
O mesmo acontece com algumas vítimas do que se de-
nominou pejorativamente de "limpeza ou profilaxia social" é uma mostra disso.
de crianças, idosos, mendigos, deficientes, usuários de dro- Também há textos literários já clássicos que foram estu-
\gas ou outros cidadãos em situação de rua; ou de pessoas dados através do processo que o autor segue do ato punível
pertencentes a grupos étnicos desprezados; ou de sexos di- para diminuir ou apagar as condições valiosas de todo ser
yersos. Estes são casos que se repetem cotidianamente sem humano antes de transformá-lo em vítima, como um pré-
Maiores repercussões, nem entre a audiência social nem en- -requisito justificador da sua aniquilação física".
tre a policial. Não se pode, nesses casos, deixar de mencionar, como
Os inimigos políticos também serão duramente sancio- atos socialmente relevantes ante a crítica criminológica e pe-
nados nos regimes autoritários por uma Justiça não indepen- nal, o feminicídio e a institucionalização que aceita a mor-
dente, quando não exterminados por corpos policiais. te. O apredejamento das mulheres adúlteras em países islâ-
micos; a ablação do clitóris e a costura dos grandes lábios
Nos códigos penais se costuma encontrar sanções mais
das vaginas das meninas, como métodos para garantir uma
graves em casos em que as vítimas são importantes: el mag-
pureza destinada ao futuro marido, têm sido práticas de al-
nicídio, por exemplo. Ou são significativas por ter relações
guns desses setores religiosos, promovidas pelas legislações
social e politicamente valorizadas com o autor, como no
respectivas. O fato de que médicos ou outros pesquisadores
parricídio, no filicídio, e no conjugicídio. Às vezes, em có-
"científicos", durante o regime nazista, tenham feito testes de
digos tradicionais, e o da Venezuela é um deles, o uxoricídio
por adultério, pelo contrário, era considerado um homicídio 16 Ver conferência de Nils Christie, "Definición dei comportamiento...",
privilegiado. Mostra do valor reduzido que a mulher teve op. cit.
social e legalmente. " Talvez os mais conhecidos são os estudos de Etienne De Greff e as técni-
cas de neutralização de Matza e Sykes. Na literatura clássica, particular-
É interessante a referência que faz Nils Christie
mente em Crime e Castigo, de Dostoievski, a trama se fundamenta nos
sobre como os judeus que foram presos em campos de passos seguidos por Raskolnikov para justificar seu homicídio, tentando
concentração nazista, na Noruega, em condições de transformar suas vítimas em alguém que não teria direito a viver.

503
502
fecundação entre animais e mulheres judias, além de outros enquanto que em alguns países se estima que 75% das mu-
experimentos feitos nessas mulheres, são uma prova da par- lheres é objeto de maus tratos por parte de seus esposos20.
ticular função política e social que se exerceu sobre a parte
As crianças costumam ser, muito significativamente,
mais vulnerável do gênero humano: a mulher. A violação
vítimas de abusos físicos, sexuais e psíquicos. O alcance
das que exercem a prostituição, hoje mais apropriadamen-
desta vitimidade indignante, por sua condição de inocência
te denominadas "trabalhadoras do sexo", costuma acarretar
e indefensibilidade, não foi avaliada; geralmente, por acon-
menos pena que qualquer outra violação. Inaceitável, pois
tecer dentro da intimidade do lar ou nas escolas, e pela for-
a violação é um delito contra a liberdade de escolher livre-
ma deficitária como é informada o papel da paternidade ou
mente o sujeito da relação sexual".
responsável em muitos países do mundo, como se constata
Como bem expõe Grisolía": também na nossa região. Não obstante, salvo algumas leis
A violência contra as mulheres é um crime universalmente de aplicação precária e carentes de uma institucionalidade
devastador e frequentemente impune. Vai além de todas as que lhes dê apoio, em nossos países se faz muito pouco para
fronteiras e seus exorbitantes custos humanos e econômicos evitar ou controlar essa tragédia, e menos ainda para prover
ainda devem ser calculados (...) O Banco Mundial (...) es- a assistência necessária para minimizar os danos sofridos ou
timou que a violência contra as mulheres é tão importante restaurar o equilíbrio emocional das crianças vítimas.
quanto o câncer como causa de morte e incapacidade entre
as mulheres em idade reprodutiva, e origina mais problemas A vítima que tem direitos
sanitários que os acidentes de trânsito e a malária juntos.
A Vitimologia, então, é algo que excede à mera parti-
Em todo o mundo, uma de cada quatro mulheres foi ou
cipação, consciente ou não, das vítimas, e por isso sempre
será violada, muitas das vezes por alguém que ela conhece,
nos pareceu que Vitimologia era a denominação mais apro-
priada21.
18
Ver De Oteyza, Luis, "áMalandro no es gente?", El Nacional, De fato, a vítima deve ser, como desde a década de
21/01/2001. Elias, Robert, Victims 5till — The Political Manipulation
1970 o é, não uma parte da Criminologia, mas o centro de
of Crime Victims, Nevvbury Park, Sage, 1993. Fattah, Ezzat A., "Victi-
mology: Past, Present and Future", Criminologie, 2000, vol. 33, n° 1, uma disciplina nova e própria, adequada a um estudo exaus-
pp. 17-46. Idem, "Does victimology need deontology? Ethical conun- tivo e genérico da vítima, que gere todo um tratado da viti-
drums in a young discipline", em Gaudreault, Arlène e Waller, Irvin midade, baseado nos direitos da vítima, de sua ascensão ao
(cornos.), X International Symposium on Victimology. Setected Sym- protagonismo, já não do ato delitivo, mas do processo penal.
posium Proceedings, Montreal, Association Québécoise. Plaidoyer-
-Victimes, pp. 129-154. Idem, "Selectivity, Inequality and Discrimina- A Vitimologia, atualmente tem uma Sociedade Interna-
tion in the Treatment of Victims of Crime", comunicação apresentada cional, Revistas especializadas, Cátedras e Congressos Inter-
em "Váldets offer-vârt ansvar", Nordic Conference, Estocolmo, setem- nacionais periódicos. E inclusive, existe um novo conceito,
bro-outubro de 2002. González Medina, Minam, "La mujer violada
doblemente víctima", em Grisolía González, Oly e outros (comps.),
Mujer, Familia y Derecho, Caracas, Livrosca, 2001, pp. 81-114. 2° Como cita Heyzer, Diretora Executiva do Fundo das Nações Unidas
19 Grisolia González, Oly, "Mujer, violencia y sociedad", em Grisolía para o Desenvolvimento das Mulheres, 2000.
González, Oly e outros (comps.), Mujer..., op. cit. pp. 1-30. 21 Ver o livro Victimologia, de Aniyar de Castro, já citado.

504 505
de amplo consenso internacional, de quem deve ser consi- Atualmente, se visualiza e se ativa o papel da vítima de
derado como vítima. muitas maneiras interessantes: não só como proprietária do
A Declara ão das Nações Unidas de 1985" define as víti- conflito, o que levaria à proposta de que todos os delitos se-
mas como as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham jam considerados de ação privada; mas também como parte
sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento receptora, por direito, de indenizações, assistência psicoló-
emocional, perda financeira ou menoscabo substancial dos di- gica, médica e social. E, o que é muito importante, como
reitos fundamentais, como consequência de ações ou omissões parte de processos de mediação. Isso faria da Justiça um ins-
que violem a legislação penal vigente nos Estados Membros, in- trumento mais humano, satisfatório e participativo, o que se
clusive a que proíbe o abuso de pOder. E na expressão "vítima" denomina de Justiça Restitutiva's.
inclui-se os familiares ou pessoas responsáveis, que tenham Evitar vitimas
relação imediata com a vítima direta, e a quem tenha sofrido
Em matéria de segurança, também se gerou instruções
danos quando assistiram a vítima em perigo ou para prevenir a
e receitas para evitar a vitimização, que tem a ver com a
vitimização. Despertou-se então, um interesse em intervir para
aprendizagem de atitudes e hábitos urbanos que a obstacu-
evitar ou diminuir os. efektos_da_vitimização".
lizem, ou que não facilitem situações de risco; com a edu-
Nada disso, como é comum acontecer, é totalmente pa- cação referida aos caminhos e condutas que os alunos que
cífico, já que os intelectuais costumam vangloriar-se de discor- regressam às suas casas devem seguir; com as diversas mo-
dar discutir ou inventar algo novo. Por exemplo, alguns, como dalidades de participação cidadã-26, assim como com a cons-
Cressey, afirmam que não existe sobre o tema das vítimas uma trução de ambientes citadinos "amigáveis" e transparentes;
disciplina "científica", mas sim, "um programa não acadêmi- com o controle da embriaguez e do uso de sustâncias perigo-
co sob o qual se agruparam arbitrariamente uma miscelânea sas que aumentam a vulnerabilidade cidadã; com a proteção
de ideais, interesses, ideologias e métodos de investigação"24. . de idosos e pessoas solitárias ou com distúrbios ou debilida-
Outros, como van Dijk (1985) agregaram a denomina- des mentais; com o cuidado no uso de cartões de crédito ou
ção "vitimagogia", referida à vitimologia de orientação apli- débito; com soluções habitacionais com pátios comuns onde
cada, a cujos especialistas denominaria como "vitimagogos". as crianças joguem sob o olhar dos progenitores.

22 A Declaração promovida pela Sociedade Mundial de Vitimologia so-


bre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e
de Abuso de Poder foi adotada pela Assembleia Nacional das Nações
Unidas em sua resolução 40/34, de 29 de novembro de 1985. 24 Entre outras muitas coisas, despertou-se o interesse pela necessidade
23 Como diz Fattah, Ezaat, "Victimology...", op. cit., p. 25, a Vitimolo- de orientar o trabalho da polícia e dos tribunais, e o apoio em organi-
gia passou de ser "uma disciplina acadêmica a um movimento huma- zações governamentais e não governamentais; assim como na criação
nista (...) [e] da investigação acadêmica ao ativismo político". de casas de abrigo para as mulheres vítimas de violência doméstica, o
24 Manifestado por Donald Cressey no V Simpósio Internacional de Viti- que é tudo bastante precário na nossa região.
mologia (Zagreb, 1985), e logo em: "Research implications of conflic- 26 Sobre modelos de participação, ver Aniyar de Castro, Lola, Entre la

ting conceptions of criminology", em Fattah, Ezaat (comp.), Towards a dominación y el mierio. Nueva Criminología y Nueva Política Crimi-
Critica, Victimology, Nova York, St. Martin's, 1992, pp. 57-73. nal, Mérida, Nuevo Siglo, 2003.

507
506
A vítima-termômetro os responsáveis pela segurança pública (polícia, políticos,
Atualmente, considera-se que a maneira mais precisa de juízes etc.). Nesses shows algumas vítimas são seleciona-
conhecer a incidência de vários tipos de delito são os questio- das e outras não, procurando sugerir discursos vindicativos
e repressivos às selecionadas. Se a vítima tem pudor ou é
nários de Vitimização, os quais mostram com bastante acerto
sóbria em suas expressões, diz Zaffaroni, não é idônea para
as idades, a saúde, o gênero, os setores e estratos sociais das
transmitir a mensagem que pede vingança, e, portanto, não
vítimas, horas e lugares onde se realizam os atos, a utilização
de armas, os sistemas de comunicação e transporte. Permitem interessa à criminologia midiática 28. Também não é interes-
sante se é vítima fatal de uma discussão o rixa, por exem-
detectar se a situação se deve a debilidades de sistemas infor-
plo, entre vizinhos conhecidos de um setor vulnerável da
máticos, e outros dados similares, que devem gerar políticas
população. Em ocasiões, a criminologia midiática encontra a
múltiplas para reduzir a vulnerabilidade vitimai. Van Dijk pro-
vítima ideal, capaz de provocar identificação em um amplo
pôs e elaborou métodos de questionários de vitimização que
setor social, e nesse caso a transforma em porta-voz da sua
deveriam se realizar a cada quatro anos para ilustrar as varia-
política criminológica, consagrando-a como vítima-heroi. O
ções e características da cifra negra da delinquência.
procedimento revelaria uma particular crueldade, pois o que
A vítima, os meios massivos de comunicação e os a criminologia acadêmica chama vítima-heroi é um porqui-
direitos humanos nho-da-índia a quem se infere um grave dano psíquico; é um
Em sua última obra, Zaffaroni destaca o tratamento dife- pouco menos que uma dissecação psíquica29.
renciado que certas vítimas recebem por parte da que ele de- Quando a criminologia midiática apresenta uma vítima-
norriina de "criminologia midiática". Segundo ele, os meios -heroi, explora algumas de suas características particulares,
massivos de comunicação prestam maior atenção a certas como o histrionismo e quiçá aspectos histéricos; lhe dá força
vítimas, distinguindo-as então, entre vítimas de primeira e ao proporcionar um cenário gigantesco para o seu desen-
vítimas de segunda classe. volvimento, mas, sobretudo, a fixa no momento de extra-
Para esse autor, existem vítimas às que os meios mas- vasamento da culpa, reforçando-lhe ao máximo essa etapa,
sivos de comunicação não lhes interessa indagar muito por imobiliza sua parte humana e lhe interrompe brutalmente o
não serem de seu interesse. Na verdade, poucas são as ví- caminho da elaboração da dor, ou seja, de restabelecimento
timas e familiares de vítimas que interessam à criminologia do seu equilíbrio emocional".
midiática nos casos de tiros a esmo, de execuções sem pro- Por causa da interrupção da dor, diz Zaffaroni, a vítima
cesso, de rixas, de ajuste de contas, de mortes carcerárias, continua acumulando uma culpa que a pressiona psicologi-
porque não produzem o mesmo entusiasmo comunicacional camente a aumentar a sua externalização até cair em exigên-
que as vítimas nos casos de homicídio por ocasião de roubo cias que são claramente inadmissíveis e então incorre em ex-
ou em circunstâncias que despertam o interesse mórbido". trapolações. Quando esse processo se agudiza, continua, a
A criminologia midiática latino-americana, afirma, tem 28 Ibidem, p. 386.
preferência pelos shows em que as vítimas se enfrentam com 28 lbidem.
30
lbidem, p. 387.
" Zaffaroni, Raúl, La palabra..., op. cit., p. 384.

509
508
vitima-heroi se torna não apresentável por ser disfuncional.
CAPÍTULO XXV
Nesse momento, a criminologia midiática se desprende dela,
a ignora até silenciá-la por completo, sem importar o dano
psíquico que lhe provocou ao interromper a elaboração de PARA ENCERRAR O CÍRCULO: REFLEXÕES CON-
sua dor. A criminologia midiática coisifica a vítima-heroi,
que quando deixa de lhe ser útil, a rechaça e esquece31. Por CLUSIVAS DE LOLA ANIYAR DE CASTRO
isso acredita que em uma criminologia para os direitos hu-
A Criminologia: requisitos, estratégias. A Ciência, a Política
manos é imperiosa a necessidade de assistir às vítimas — in-
e a Criminologia. A Metodologia que a Criminologia Crítica
clusive advertindo-as sobre os riscos da sua exposição nos propõe.
meios massivos de comunicação —, já que elas sofrem uma
perda com dano psíquico considerável que demanda uma
assistência especializada para recuperar a sua saúde. O tem-
po e a assistência especializada, diz, ajudam a superar a eta- A Criminologia: requisitos, estratégias
pa da externalização da culpa pela situação e, em definitiva, Não tratamos nem trataremos de dar uma definição de
a essa elaboração da dor. Criminologia, pois como vimos há muitas Crimificilogias, de
Quanto às vítimas esquecidas ou silenciadas, entende- acordo com a orierin_ç . ão epi_stemológica que as guia. Basta
_
mos que a proteção do direito humano à vida requer que a saber que, uma boa, iluminada e compreensiçã—Citminolo-
criminologia de campo volte seus esforços para analisar mi- gia deve tratar não somente da transgressão do penal, mas
nuciosamente por que certos homicídios se produzem mais também da criminalização. E que esta, por sua vez, tem a
em alguns lugares que em outros, principalmente entre pes- ver comí as definições sociais e institucionais ---b) as insti-
soas conhecidas entre si, ou seja, tratar de penetrar nas cau- tuições sociais normativas e administrativas que a realizam;
sas que fazem com que os conflitos interpessoais se resolvam expectativas sociais;edi o imaginário coletivoCépa ma-
da maneira mais violenta entre gente conhecida — em geral, nipulação política que usualmente se faz desse conjunto de
os mais carentes —, pois, como reiteradamente se disse, não feitos, ideologias e situaçõesrij)o castigo, em suas manifes-
se pode prevenir o que não se conhece. Acreditamos que tações abertas ou ocultasghuma política criminal humanista
uma criminologia para os direitos humanos não pode dei- que signifique todos os direitos para todo) temer o positi-
xar de alertar sobre quando algumas mortes podem estar se vismo que castiga pela diferença, qualquer que seja.
transformando em "mortes anunciadas", isto é, em mortes Uma criminologia democrática deveria também incluir
massivas e normalizadas, mais ainda, quando as causas des- o interesse pelas vítimas, tanto das transgressões quanto do
sa violência parecem ter sua origem em um sistema social próprio sistema penal. E uma estratégia para controlar a
excludente32. quem controla. Deve estar orientada em garantir três direi-
tos humanos fundamentais (sem detrimento dos outros que
31
Ibidem. podem se perder no caminho do controle penal): liberdade,
32 Codino, Rodrigo, "Criminología y muertes anunciadas", Buenos Aires,
igualdade,
_ segurança. Deve também incluir uma discussão
Página 12, 7 de dezembro de 2012.

510
sobre as condutas que são socialmente danosas, mesmo que nos tomaram de assalto — como morcegos positivistas — os
não tenham o castigo correspondente nos Códigos Penais. que se alimentam contra a Criminologia Crítica levantando
Por isso, o pensamento racional e coerente que se chama bandeiras de seu próprio partido epistemológico, disparan-
Criminologia deve ter como objeto de análise o próprio Di- do perguntas, tais como se ela tem ou não tem um "mé-
reito Penal, como parte que é do Sistema Penal Total. todo", se é ou não uma "tese", se é ou não é "teoria"; ou
Depois de ter passado, por fora da brevidade necessária "como se mede isso?"; ou "onde estão os números?", ou
de um Manual, pelos altos e baixos do pensamento crimino- "tudo vale?"; nãos paramos para ver passarem as páginas
lógico do século XX e de seus perigosos inícios no XXI, bem dos seus debates internos. Seus debates sobre "o científico"
como pelos seus esforços, em grande parte alcançados, de se e sobre "as teorias". Esse terreno, onde se enfrentam juristas
enraizar na concreta realidade latino-americana, pensamos contra médicos; sociólogos contra filósofos ou psiquiatras;
que é necessário voltar a um tema que pode resumir os prin- estadísticos contra humanistas; e, como se diz hoje na Crimi-
cípios teóricos que deveriam definir os êxitos da Criminolo- nologia Funcionalista, "quantitativos contra qualitativos"'. E
gia Crítica na América Latina em tempos futuros. ainda faltaria agregar aos comunicadores sociais que fizeram
Acreditamos que essa reflexão, tal como foi se adiantan- sua carreira utilizando ao seu gosto os conceitos que nós
do nos diferentes capítulos expostos, deve assentar-se sobre criminólogos manejamos. Sem dúvida com mais sucesso de
as relações totalmente necessárias entre a Ciência, a Política público que nós.
e a Criminologia33. Vimos, também, passar em frente às portas de nossas
Asso traspassa os velhos conteúdos em uma nova e po- casas, esses cadáveres impenitentes, que, lamentavelmente,
licromada interpretação holística do caminho conjunto que nunca renunciam ao gozo de uma, pelo menos anunciada,
esses três tipos de saberes recorreram e ainda devem recor- boa saúde.
rer. Especialmente em momentos em que "A Ciência" tenta E nos vemos nesse mundo dissecado, inacabado, sem
de novo impor as suas definições imperiais e parciais nestes alma, da discussão metodológica sobre o que é Ciência,
debates que, talvez, nunca deixarão de se fazer. no qual observamos, em seu próprio terreno, o empirismo
confrontando o racionalismo, o idealismo, o romanticismo;
A Ciência, a Política e a Criminologia ou o materialismo à fenomenologia, à dialética e assim ad
Comecemos pelo início: comecemos em dizer que o infinitum, nessas ânsias de saber o que é sério, porque isso
que se denomina normalmente Criminologia não é uma poderia ser uma maneira de se apoderar da verdade...
"ciência". Não quisemos nos envolver em um objeto tão O idealismo irracional é uma das variantes filosóficas do século
discutido pela chamada Filosofia das Ciências, sobre o que XIX que, ante o avanço do Empirismo e do Positivismo, buscou um
elas são e o que elas não são. Mas como com frequência espaço para o "sentimento humano" a partir de um procedimento
essencialista. Seus seguidores, entre eles Schopenhauer e Nietzsche,
" O que se segue é parte do conteúdo da Lectio Doctoralis de Aniyar de deram fundamento a um novo humanisrno, acusando a ciência de
Castro ditada na Universidade San Marfim Buenos Aires, em ocasião tratar caminhos triviais e superficiais da condição humana. Castro
do recebimento do titulo Doutor Honoris Causa dessa Universidade, Aniyar, Daniel. Darwin escuchando música en el corredor. Como re-
em agosto de 2012. gresa Ia emoción ai método científico, em processo de publicação.

512 513
Alguma vez decidiremos denunciar o complexo de in- zer isso, apontar os homicídios das guerras e os crimes de
ferioridade, a falta de autoestima, representado no fato de massa. Ou a quem desvia o olhar quando deveriam assinalar
que a obsessão pela ciência tenha transformado as humani- as execuções legais, realizadas por verdugos medievais, às
dades, as artes, a metafísica, a Filosofia, a Ética, a Estética, e vezes encapuzados para passarem incógnitos; ou aos atual-
até a Política, e a nova Criminologia — cujos pensamentos e mente disfarçados com os sagrados uniformes médicos da
princípios têm contraste empírico limitado—, em pirandellia- injeção letal.
nos personagens em busca de uma categoria "politicamente E é que, além disso, através dos tempos, os chamados
correta", que se conformam mesmo que seja com as muito criminólogos não se ocuparam sempre de um mesmo tema,
dietéticas "Ciências Light". sistematicamente estruturado, similar em seus fins, objetos
Acontece que, nisso que se chama — defendemos que de estudo, métodos e efeitos; e às vezes nem sequer susce-
só estrategicamente —2 "Criminologia", a palavra "Ciência" tíveis de serem articulados uns com os outros; tudo isso que
tem um peso muito denso para ser aplicado ao que os crimi- os perigosos especialistas metodólogos dizem que é "o que
nólogos de hoje estiveram apontando na estrutura política do faz com que a ciência seja." E como esses temas não tiveram
controle nas sociedades. tal unidade, não foi dessa maneira que as "verdades" velhas
Um peso que tem mais a ver com aquela obsessão de foram se transformando em "verdades" (digamos, "afirma-
naturalizar a sociedade, própria de uma época histórica que ções") novas. Os objetos de estudo que se foram assumindo
pretendeu dotar de verdade universal, pesquisas profunda- pela chamada Criminologia não tiveram nem uma unidade
mente questionadas, mesmo desde a própria perspectiva do conceituai nem uma visão geral; e, ao final, hoje, em seu
positivismo. Uma "Ciência" que logo em seguida se tornou conjunto, nem sequer procuram estabelecer uma verdade;
o fundo presunçoso do cientificismo, porque de científico mas sim, várias e provisórias.
demonstrou ter muito pouco. Segundo Bachelard, que por algum motivo também se
Imaginemos hoje ao bom doutor Lombroso encontran- ocupava com poesia, nem_s_equer a "ciência" (nem mesmo
do presságios biológicos de criminalidade em mulheres que a mais dura) pode produzir verdade. Pensar em Galileu,
menstruaram aos oito anos, ou na ruga central sobre os pô- Newton ou Einstein, nos leva a outras dimensões. E não ha-
via nada como aquela busca de Wright Mills pela imagina-
mulos dos homens, ou semelhança da sua estrutura cranial
com a dos macacos, ou no lugar exato onde se encontra o ção sociológica, que tanto nos alentou a quebrar esquemas!
lóbulo da orelha. Ou aos que inventaram a "loucura moral", Na verdade, a história da ciência (ou daquilo que de-
como se a moral fosse una e permanente, evitando, ao fa- pois do Positivismo teve que se chamar ciência para ser aca-
2
dêmica e politicamente aceita) é mais uma história da anar-
Porque isso lhes permite enfrentar os discursos anteriores que, sob esse
título já consolidado, não quiseram se reconhecer como instrumentos ,ryvia dos métodos que de uma reorganização de paradigmas.
da Ordem, nas salas de aula, nas universidades, nas bibliotecas, sob
O que a chamada ciência deveria fazer, se disse, era buscar
uma única denominação comum. Ver Aniyar de Castro, Lola, Cri- "melhores maneiras de perguntar" por meio de retificações.
minología de Ia Liberación, op. cit.; e na polêmica Novoa, Aniyar e
Bergalli, sobre o que se deve ou não considerar como criminologia.

515
514
Também, durante muito tempo, ocultou-se o compo- E, desde que a criminologia rebelde se instaurou, a dos
nente emocional das chamadas ciências. Tudo o que tivesse sociólogos, a dos filósofos e a dos políticos — ou pelo menos
a ver com o corpo, a identidade, o sentido de pertencimen- a de alguns deles, pois a fauna é extensa e temível —, o que
to, a intersubjetividade e a pluralidade'. já não se aceita é a substituição da Teoria do Conhecimento
Tratando-se do direito de castigar, e digamos mais cla- por uma Teoria da Ciência.
ramente, tratando-se da pior e mais humilhante das exclu- Bastaria com que o conhecimento fosse produto de um
sões, que é o castigo, isto é, a pena, o conhecimento cha- pensamento rigoroso, sistemático, sobre objetos concretos,
mado criminológico, por esse caminho — que mais parece reconhecíveis, e, somente se fosse possível, mensurável e
o exercício de um mea culpa —, foi se transformando em contrastável. E já veremos que ainda isso tem seus "poréns".
instrumento útil: se chegou a augurar a chegada do governo O que é que têm, então, em comum, a Criminologia
dos sábios (os cientistas). Tinha-se que santificar a Ordem, e Clássica, o Positivismo Clínico ou Funcionalista, o Intera-
por esse caminho, também o Poder, já que essa ordem e esse cionismo, os Movimentos Radicais e a Criminologia Crítica?
poder seriam nada menos que "científicos".
Fora o nome, que estrategicamente mantivemos para
A religiosidade se trasladou, então, do céu para os labo- subsistir nas Bibliotecas, Faculdades ou Departamentos de
ratórios de um paraíso terrestre, cheios de frascos de formol Direito onde se distribui o conhecimento da Dogmática, das
ou de divãs de psicanalistas; isto é, ao não sempre asséptico leis punitivas, e outros instrumentos da Justiça Penal, isto é,
reinado dos "jalecos brancos". Se tivéssemos convalidado nas bibliotecas da Ordem, que são as leis, têm precisamen-
esses "sábios" ou aos que ainda hoje nos aparecem, em ple- te em comum, paradoxalmente, suas diferentes maneiras de
no século XXI, com o peso das suas pesquisas fascistoides, entender a ordem, o poder, o controle, a liberdade e a ci-
batizadas com a água benta das neurociências, a Crimino- dadania.
logia não teria deixado de ser um submisso soldado do mais
O que têm em comum é, então, somente o que as de-
insidioso dos poderes: o que, sem uma controladoria social
sune?
e acadêmica, é o doloroso e temível poder penal.
Não: um passeio pela evolução desses saberes, desde o
A união da ciência com o poder social — tanto o religio-
pensamento iluminista até os nossos dias, uma vez desnuda-
so quanto o econômico, ou o político — foi uma das chaves
da em suas dimensões não explícitas, descobre a sua razão
para encontrar a mesma ciência transformada em controle e
política. Em diferentes níveis de ocultação e revelação, todas
poder.
..essas criminologias tentaram tanto a legitimação, quanto o -
Instalou-se, por aquele caminho, a Razão Técnica ou desmascaramentos_das legitimações _que são próprias a essa
instrumental, que a Escola de Frankfurt confrontou com a área da engenharia social.
Razão Prática ou moral.
A política não é um tique mental para nós que militamos
3
Castro Aniyar, Daniel, "Más acá de la Razón. Postmodernismo, Post- nesta área da criminologia libertadora, ela foi determinante
modernidad, Deconstrucción y Afectos", em Utopia y Praxis Latinoa- para o nascimento e a extensão de muitas disciplinas e teo-
mericana, ano III, n° 6, Condes, várias cidades, 1999. rias; sabe-se que Comte se interessava pela Ordem — como

516 517
equivalente, dizia, do Progresso — à raiz do levantamento da ° e
-lo em leis. E, portanto, como dizia Christie em 1973,
Comuna de Paris e do extermínio dos comuneros. Tinha-se sempre repetimos, "o poder como poder de definir".
que implantar "as regras do jogo da paz burguesa" (Arnaud). Os debates se reiteraram através dos tempos. Acredito
Da mesma maneira como a Antropologia Cultural, em es- que isso já não nos importa. Por isso falamos de "criminolo-
pecial a Etnografia, surgiu e se expandiu pelos interesses gias" e não de criminologia. As criminologias do Delito, ou
colonialistas que havia na Europa de conhecer as relações a do Delinquente, ou as da Reação Social, ou do Controle
de parentesco e suas vinculações com o poder nos lugares Social, ou a dos Direitos Humanos poderiam ser considera-
colonizados ou colonizáveis. das "conhecimentos" ou "saberes", validamente justificados
Diante da impossibilidade de uma descrição aceitavel- pelas comunidades acadêmicas c_omespondentes, mais do
mente compreensiva das diversas Criminologias, as defini- que "ciências" consolidadas. Certamente, uma comunidade
ções de objeto foram mudando. O "Grupo Europeu para o acadêmica não tem que ser considerada "científica". Basta
Estudo do Delito e do Controle Social" não quis se autode- que vá em busca de uma verdade historicamente determi-
nominar Criminologia, mesmo que seus objetos reproduzis- nada, e portanto variável, e que levante bandeiras até então
sem a tripartição de Sutherland do conteúdo da criminolo- universalmente éticas.
gia: criação de leis, sua transgressão, e o controle desta. O E como só existe uma "comunidade" quando os pontos
Grupo de Bolonha — mesmo que para eles nada carecia de de vista e as atitudes são "comuns", se esses pontos comuns
um componente profundamente político — foi amplamente são a felicidade humana, seu desenvolvimento físico e espi-
denominado na revista "Cuestión Criminal", e se orientava ritual, sua liberdade, suas necessidades fundamentais, tudo
em direção à Teoria Crítica do Controle Social e do Desvio. o que se resumiria, sempre provisoriamente, no conceito de
O "Desvio", conceito sociológico, nos havia provisio- Direitos Humanos, estaremos no marco da Criminologia Crí-
nalmente salvado dos contaminantes da palavra crime, e da tica. Libertadora, sem dúvida.
sua relação com o jurídico. A partir dela, passou-se a chamar Mesmo Marx, em sua carta a Ruge em 1843, dizia:
os delinquentes de "resistentes", "opositores", "diferentes", "Não nos enfrentamos com o mundo de modo doutrinário
"estranhos" (ou outsiders) ou simplesmente "infratores", "cri- dizendo: aqui está a verdade, inclinai-vos ante ela (...) É, na
minalizados", apontando a sua relação com o poder político realidade, o conhecimento próprio da época, acerca de suas
imperante. A Becker — entre sua compulsão pelo piano, pelo lutas e objetivos". Mas foi a Fenomenologia a que nos abriu
jazz e pelas anedotas de Malinowski — devemos o retorno ao as portas para o estudo da sociedade possível. Pelo menos,
antropológico, ao social e as suas complexidades, diferen- da sociedade desejada.
ciando a quem somente havia transgredido a norma com a Desde a Criminologia Radical dos anos 1960 e 1970 em
que o controle social o havia criminalizado. diante, quando o objeto desses saberes se dirigiu não mais
Assim, foi se formando para nós, outra concepção de ao delito, nem ao delinquente — e só parcialmente à reação
poder. Um poder nas mãos das pessoas, mas como produto social —, mas também ao controle social, vimos como uma
das lutas estratégicas de grupos organizados para transforma-
4 Ver em Christie, Nils, "Definición...", op. cit.

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518
teoria política do delito enfocou a economia política das de- Se isso fosse assim, se essa reação emocional realmente
finições criminosas e de suas consequências jurídicas; isto é, existisse, ela se introjetaria como uma forma autogovernada,
ao poder e aos interesses, que se encontraram pela primeira enquanto que — na verdade — é exógena, isto é, construída.
vez sob os refletores desse tipo de acadêmica e particular Mesmo que a teoria de sistemas não seja um santo da
"patrulha de pesquisa". nossa devoção, é certo que, como diz Luhmann5, ao mesmo
E ainda que seja uma interpretação extrema, carente tempo que o conceito de "valor" começa sua carreira filosó-
das sutilezas necessárias para compreender as complexida- fica, pela primeira vez na historia, a lei se fez positiva, isto
des dos intercâmbios sociais e dos interesses sociais subal- é, foi manejada por decisões do sistema político. Esta simul-
ternizados, que não são somente políticos ou classistas, mas taneidade sugeriria as conexões, ou ainda, a fusão, entre a
sim muitas vezes, como dissemos, culturais, religiosos, de ideologia e a lei.
gênero, e outros próprios de qualquer grupo social, até então A lei, diz, assim como a ideologia, teria funções de re-
submerso, que tenha valores e interesses protegíveis, vimos duzir as complexidades do sistema social, complexidades
através dos tempos, esses grupos, abrirem espaços de poder que tornam quase impossíveis a sua captação total da expe-
através da sua organização e de suas estratégias. riência humana. Nessas relações vemos vinculações profun-
Por múltiplas vertentes, então, se acenderam luzes para das entre o marxismo, o interacionismo e a teoria de siste-
um trabalho criminológico mais compreensivo da totalidade. mas. A lei produz estereótipos, como também os produzem
Esses caminhos abertos estão sendo trilhados, assim, em ge- as prisões, que, por sua vez, são executados pelos policiais e
rúndio, pela Criminologia Crítica. consolidados pelas sentenças judiciais (é o que acontece atu-
O que com certeza já sabemos, é que as categorias Cri- almente). Claro que a ideologia penal não é a única. Essas
me (definição e transgressão), Direito (existente e possível), ideologias, contudo, não são necessariamente indefinidas no
Política (teoria e prática) e História (com suas dimensões tempo.
aparentes ou ocultas) constituem um tecido indissolúvel. Celebramos em 2012 os trezentos anos de nascimento
Já não se entenderá que o Estado é produto de um hi- de Rousseau. Este pensador é, talvez, um dos mais claros
potético consenso ou de um pacto social, o qual nem sequer exemplos de como é difícil criar, e mesmo aplicar, uma te-
Rousseau assegurou a existência histórica. Ou que o sistema oria que não fosse, em algum momento, contraditória nos
penal é produto de uma durkheimiana consciência coletiva, seus resultados. Foi talvez o mais idealista, e ao mesmo tem-
na qual todos os interesses e valores são entendidos como po materialista; o mais conservador, e ao mesmo tempo se-
um só, e se manifestam na pena como reação passional. dicioso intelectual da história da filosofia política. Profeta
Os traços encontrados de uma possível consciência comum pré-revolucionário — cuja obra foi proibida na França, em
são um produto dos esforços unifOrmizantes e repetitivos das Berna, em Genebra, nos Países Baixos — definiu criticamente
ideologias, entre as quais é fundamental a ideologia penal, o "estado de natureza" como alguém que não era selvagem,
que se observa em todos os aparatos do sistema penal, mes- mas sim impregnado de abusos sociais. De alguma maneira,
mo que ali ela apareça fragmentada.
5 Luhmann, Niklas, The differentiation of society, Nova York, Universi-
dade de Columbia, 1982.

520 521
o Estado que o próprio Rousseau solicitava aos homens era pensamento global de muitos clássicos e utilizando-os como
aparentemente impossível. Ele dizia: "1/ faudrait des dieux les bêtes noires da Criminologia Crítica.
pour donner des lois aux hommes!" 6 . Assim como Rousseau era um revolucionário que não
Alguns o consideraram pueril e perigoso (de Ferney); pretendia uma sociedade estática, ainda que não pudesse
outros, contraditório. Por um lado, era acusado de que o seu prever a sua evolução, Darwin foi quem revolucionou a fun-
argumento de se submeter à "vontade geral", base do seu do o mundo do pensamento: destruiu os mitos religiosos do
Contrato Social — aquilo de ser um nos outros e os outros medievo e da religiosidade vitoriana ao desmontar a hipóte-
em um, se isso não fosse impossível, precisamente porque se criacionista. Não pretendeu naturalizar a sociedade, mas
se abstém de considerar as culturas, os valores e os interes- sim dotar o ser humano de sua realidade natural. Nunca ima-
ses7—, poderia asfixiar o Direito e as liberdades, e semear o ginou que Lombroso o utilizaria para falar de atavismo, no
Terror. Seu argumento de que "uma Assembleia do Povo que caso dos criminalizados, ou que Spencer criaria um perigoso
suspende toda a jurisdição e todo o poder executivo seria um darwinismo social.
solene convite para o crime"8 era refutado. Hoje é acusado O importante é que temos tomado consciência das di-
de ser o sustentáculo filosófico da Ordem positivista. E não ferenças que existem na emaranhada trama do tecido so-
obstante, escrevia, como um bom criminólogo crítico: cial e das ocultações; e isso foi se descobrindo à medida
Multiplicai as portas de ferro, as fechaduras, as correntes, que emergiam valores finalmente reconhecidos. Mesmo que
os guardas e vigias, levantai em todas as partes os gibets, alguns estejam justificados, não necessariamente esse reco-
as rodas, as guilhotinas, imaginai todos os dias novas tor- nhecimento representa um progresso hurnanístico. Somente
turas, endurecei vossa alma frente ao aspecto de todos os podem ser o efeito de formas mediadas de poder, que às
sofrimentos dos indigentes, criai cátedras e Colégios onde vezes são só uma mostra de populismo penal.
não se ensinem senão, as máximas que os convém: atraí,
Por isso, a partir de nossas experiências com a realidade
pagai sem cessar novos escritores, para tornar o roubo do
pobre ainda mais infame, e o do rico ainda mais respeitado, regional no Grupo de Criminologia Crítica Latino-americana,
imaginai cada dia novas distinções para autorizar em uns e optamos por denominá-la, não sem debates, Teoria Crítica
castigar em outros as mesmas manobras sob outros nomesg. do Controle Social. Era uma Teoria Negativa. Uma antiteo-
ria. E, ratificamos, que as teorias positivas são imperialistas;
Nada de novo entre o céu e a terra! Essa citação de descobrem uma suposta verdade e a impõem com todas as
um pensador fascinante em que todas as perguntas e todas suas consequências.
as respostas, possíveis e impossíveis, estavam presentes, nos
As teorias negativas, por outro lado, deixam a porta
parece necessária para entender como se foi sequestrando o
aberta para a interrogação, a liberdade de pensamento, a
6 "Necessitaríamos dos deuses para fornecer leis aos homens". crítica.
Hoje se fala de neocontratualismo para incluir o conceito de socieda- Como se disse, estamos tratando uma sustância política:
de plural e salvar a teoria do Contrato Social.
a ou as criminologias. Isso quer dizer que estamos imersos
Citado por Julia Kristeva, "Une felicite nomée Rousseau", em Rous-
seau, Jean J., Le Subversif, op. cit. em um universo que não pode ser mais complexo: não só
Rousseau, Jean J., Discursos sobre Ias Riquezas, 1753.

522 523
tem a ver com a própria história do Poder, da Ordem, do progressivas de conhecimento e de entendimento. Que, em
Controle, da dominação, da legitimação, mas também do vez de ser um produto do frívolo air du temps, o seja dos
Bom Governo, dos Direitos Humanos e, por conseguinte, perfumes da liberdade e do desenvolvimento espiritual da
com a Democracia. humanidade. A diretriz era, e é, portanto, "não formalizar",
As epistemologias demonstraram as raízes, os tecidos e já que, corno disse Rusconi, há uma permanente contradi-
os efeitos da construção do conhecimento. Construção que ção entre uma organização social socialmente insatisfatória
é ativa e passiva ao mesmo tempo. A intersubietividade foi e suas possibilidades internas de superação. Isto é, ver tudo
posta sobre a mesa ao mesmo tempo, pelos frankfurterianos através da dialética, e não do causalismo.
e pela teoria de sistemas. Sobre à carência de autorreflexão, Trata-se de encontrar a bidimensionalidade do que exis-
especialmente, se baseou a crítica ao cientificismo: pede-se te de fato e do que deve ser. É o produto do debate, não
ao sujeito cognoscente que se reconheça envolvido tanto nas necessariamente excludente, entre o eidos e o ethos.
hipóteses quanto na interpretação das suas investigações. Diz Lyotard:
Escreveu-se muito sobre a subjetividade do conheci-
O que permite hoje em dia dizer que uma lei é justa, um
mento e suas dificuldades de objetividade. Lyotard justifi- enunciado verdadeiro? Tivemos os grandes relatos, a eman-
cava a subjetividade com a parologia, que seria o discurso cipação do cidadão, a realização do espírito, a sociedade
individualizado, compreendido na totalidade da legitimida- sem classes. A Idade Moderna recorria a esses grandes re-
de que o sujeito se da a si mesmo. Esse sentido subjetivo latos para legitimar ou criticar seus saberes e seus atos (...)
contraporá toda forma de totalitarismo e dará privilégio à Onde reside a legitimidade depois dos relatos? Na melhor
primeira verdade, que é a do indivíduo. Trata-se de reduzir operatividade do sistema? Isto é um critério tecnológico e
a pragmática dos saberes. não permite julgar o verdadeiro e o justo. No consenso?
Não obstante, a invenção se faz por discordância (...)".
Não haveria negação do metadiscurso, mas sim, a ne-
cessidade de posicioná-lo afastado do critério da verdade Algum tempo depois de ter expressado esses conceitos,
universalizante; de respeitar a importância do intérprete so- encontramos um apoio nos fragmentos que transcrevemos
bre a interpretação, do ser humano sobre o "outro". Saber literalmente a seguir:
dos outros o que se sabe de si mesmo'°. Também foi enfati-
Na América Latina, ao mesmo tempo afastada e próxima
zado pelo interacionismo e o construcionismo social: o Eu da Europa — portadora de duas línguas que com zelo ainda
objetivo (ou Imagem de espelho) se reconhece na interação. guardam o verbo e o conceito ser—, a necessidade de voltar
Por isso, nossa proposta de Criminologia como Teoria ao corpo emocional é melhor entendida. Melhor intuída.
Crítica era o suficientemente aberta para que não se tornasse Muitos sabem o que se trata nesta discussão. Muitos inclusi-
uma nova forma de poder. Nesse caso, o poder do saber, ve suporão que o que se diz é evidente e sabido. Se é assim,
que tende a ser absoluto. Ela permitiria nos adequarmos às é uma evidência fascinante: a América Latina dualizava do-
cemente o discurso científico e o perdoava (...) De tal modo
experiências próprias das mudanças na história e nas formas
" Lyotard, Jean François, La Condition Postmoderne, Paris, Minuit,
1° Ver em Castro Aniyar, Daniel, "Mas acá...", op. cit., p. 13. 1979, em Castro Aniyar, Daniel, "Más acá...", op. cit.

524 525
que a reflexão sobre o método científico na América Latina Referimos-nos à pós-modernidade antipositivista, que
que se promoveu com o tema da pós-modernidade e do não acredita que o mundo seja organizado, linear ou previ-
pós-modernismo permitiu escapar-se da razão autocentrada sível, mas sim estocástico, caótico, e até virtual; à pós-mo-
(...) Em hebraico, tal como se menciona em Más Acá de ia
Razón" existem duas palavras para falar sobre a verdade: dernidade, que nos abre portas abolicionistas, que devolve
emet, a verdade das coisas verificáveis pela razão, e tov, a seus conflitos às partes em um ambiente de garantias, que
verdade das coisas verificáveis pelo coração (traduzível no além de interpretar o transgressor, traz a vítima de volta ao
espírito). campo da Criminologia e do Sistema Penal.
Propomos, pois, "uma_metodologia", "uma forma de
A Metodologia que propómos fazer criminologia". Com tudo isso, temos aspirado a uma
A metodologia que propomos deve, então, buscar Criminologia, não latino-americana, pois seria nos referir a
Tanto uma visão do subjetivo que existe no processo cog- um mundo muito amplo. Mesmo que sejamos muito seme-
noscitiva quanto uma visão do particular em relação à tota- lhantes, lamentavelmente, na dor, na marginalização e na
lidadecb;\ histórico, em seu sentido estrutural@ a crítica pobreza. Mesmo que em cada canto da América Latina en-
da uniformidade ailifOritária(d)o que Adorno chamou de "o contraremos esses personagens (a dor, a marginalização e a
conhecimento interessado"--isto é, o compromisso e uma pobreza), eles terão máscaras diversas, máscaras per sonare,
atitude frente ao poder; Cer.:a crença nas possibilidades de "para fazer sonar", como diziam os romanos, os papéis de-
transformação, apreciando os impactos RJ prática teórica, signados frente ao teatro de um mundo tão violento, malvado
mesmo que sem supervalorizá-la. e espoliador, que somente pode arrumar-se com discursos.
Vemos a pós-modernidade filosófico-política como uma Mas Amílcar Herrera já havia dito que elas, a ciência
opção, como "o ar mais oxigenado de todos os tempos". e as teorias, não têm nacionalidade. Somente maneiras de
Pois nesse cenário, frente à razão, se abriria espaço para a obter conhecimento, cujos objetivos gerais estejam harmo-
intuição, a empatia e a sociabilidade; frente à unidade do nizados com as necessidades de resolver os problemas da
discurso, utilizaríamos a pluralidade de saberes, e também, região. É a sociedade justa a que está em jogo. Pois não pode
existir uma dicotomia (Adorno dixit) entre o ser e o dever ser.
frente ao global, ao local, ou em última instância, à "gloca-
lidade". De Durkheim e de seu livro as Dez Regras do Método
Sociológico, sempre recuperamos — porque tem a ver com a
Não nos referimos, certamente, ao suspeito Direito Pe-
nal pós-moderno' 3 nem ao Wittengstein da "morte da razão". maneira como entendemos as "verdades" — a última dessas
regras: "Não há respostas definitivas, porque nunca há per-
12
Castro Aniyar, Daniel, "Más acá...", op. cit. guntas finais".
13
Os partidários dessa corrente de pensamento alegam que o Direito
Penal e o Direito Processual Penal não podem continuar tendo eficiên-
cia para exercer o controle social das novas formas de criminalidade propiciam a ampliação das faculdades de investigação da polícia, a
dos umbrais do século XXI (delinquência organizada, delitos violentos abreviação dos processos penais, a antecipação da punibilidade ou o
e extremismo político) mediante o uso de princípios e instrumentos agravamento das escalas penais. Isso, certamente, apresenta um grave
concebidos para o Estado liberal e gendarme do século XIX; e por isso, risco para os Direitos Humanos.

526 527
Por isso, frente ao futuro, privilegiaremos o aqui e o BIBLIOGRAFIA BÁSICA
agora. E ante a disciplina, a transdisciplina. E, ao final pós-
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-modernos, frente à globalidade, privilegiaremos o local.
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Frente àquela proclamação escravizadora de Comte: "Kafka ai fin derrotado, introducción ai pensamiento abo-
Ordem e Progresso, e seus parâmetros armados de Lei e Or- licionista", Revista de Sociologia de Ia Facultad de Sociologia de Ia
dem, aspiraremos talvez à desordem que possa nutrir mu- Universidad de Buenos Aires, n° 4, Buenos Aires, 1986.
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"Problemas fenomenológicos dei abolicionismo", em
frente o autoritarismo e a sociedade esclerosada: essa pode
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ser a bandeira.
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Uma criminologia à margem do Poder, mas não cega, punto de vista psicoanalitico, Madri, Biblioteca Nueva, 1935.
nunca cega, à margem de conceitos rígidos da Justiça (sem- ALSWORTH ROSS, Edward. "The Criminaloid", em The Atlantic Monthly,
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