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idade da terra e outros escritos  3  

 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
Idade 
 
 
da 
 
 
 
Terra 
 
 
 
 
 
 
 
e outros escritos 
 
 
 
 
 
 
 
 
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A idade da terra e outros escritos  5  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Além da dor e do prazer 
numa lâmina 
a rã não ‐ a sua coxa 
estremece torturada 
o que não é, enerva‐se 
impulsionada por não sei que para não sei onde 
estremece sem ficar de pé, saltar ou gemer 
magia que acolhe a morbidez asséptica dos enfermos 
galvanizando quem não participa do talhe 
 
 
 
  
 
 
 
 
 
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Sumário 
 
 
Algumas palavras para se ler 
 
 
A idade da terra 
 
 
Roteiro 
 
 
O caminho do mundo 
 
 
O pó da águas 
 
 
Hontem 
 
 
Fragmentos dramáticos 
 
     O filho da costureira 
     A grande vó 
     Casal na cama 
     Caim 
     Farsa do quem quer amar 
     A festa 
     Natal sem crianças 
     Uma última noite sobre a terra 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  7  

 
 
 
 
 
 
 
 
Algumas palavras para ler 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos recolhe textos de ficção em verso e/ou em 
prosa  que  se  constituem  em  um  especial  caminho  do  autor  em  experimentar  trilhas  e 
tradições expressivas de pouca ou nenhuma prática no Brasil.  
Este  especial  caminho  se  faz  parte  a  parte  e  pouco  a  pouco  pela  adoção  de 
estratégias de sentido que recuperam diversos tipos de memória que não as repetidas 
impressas  na  coletânea  do  imediato  liricamente  descritivo.  Se  há  algo  que  podemos 
indicar como motivo básico e recorrente para o livro é a dilatação da memória pessoal, 
ocasionando, também, o refinamento do instrumento lingüístico que capta e apresenta 
essa dilatação.  
Em  virtude  disso,  o  livro  se  divide  em  cinco  partes:  na  primeira,  A  idade  da 
terra  (1994),  temos  um  conjunto  de  vinte  e  um  poemas  interrelacionados  que  se 
movimentam no espaço‐tempo de uma mitologia sem data e sem nome, em remissão e 
referência a estruturas intencionais de sobrevivência de certas situações fundamentais 
irredutíveis e constantes. Cada poema funciona como um pequeno flash que retoma as 
danças, as cenas, os lamentos e as canções dessa presença do passado. 
A segunda parte desdobra e distende a primeira. Trata‐se de um poema dramático, sob 
o  título  de  O  caminho  do  mundo  (1994‐1996),  que  atualiza  os  atos  de  um  grupo  de 
caminhantes que individualizam o trajeto originário dentro do pano de fundo oferecido 
por  A  idade  da  Terra.  A  modernidade  da  gesta  dos  migrantes  do  amanhã  sem  rumo 
complementa a antigüidade da grande noite dos tempos sem homens e sem razão. Uma 
tribo  covarde  acampa  na  espera  de  sua  ida  para  A  Grande  Cidade,  o  fim  da  labuta,  o 
sonho de todos nós. 
A  terceira  parte  reúne  textos  com  mesclas  de  diversos  gêneros,  fruto  de  experiência 
pessoal  do  autor  de  simulação  de  alteração  dos  estados  imediatos  da  consciência. 
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Procurou‐se  transpor  para  o  papel  as  imagens  e  as  palavras  que  emergem  da 
simultaneidade  pontual  e  intensa  de  um  desnível  ativo  entre  os  meios  de  pensar  e  a 
atividade de representar, com a finalidade de propor para o público a possibilidade ou 
não do que acontece no entrechoque entre as capacidade de configurar e a realidade do 
que se configura. Busca‐se compreender se o poético é anterior ou posterior à intenção 
de expressar. 
Já  em  Hontem,  quarta  parte  de  A  idade  da  terra  e  outros  escritos  ,  temos  alguns 
textos  antigos,  de  1988,  que  constituem  a  base  deste  livro.  São  elaborações  que 
procuram  romper  com  esquemas  narrativos  e  prosaicos,  atualizando  estruturas 
poéticas seja no ritmo, seja na linguagem. Temos aqui uma hesitação fundamental que 
se encontra na adoção da perspectiva para apresentar os acontecimentos. Desde já, fica 
a  opção  pela  dramatização  personificadora  das  emoções  que  ultrapassa  a  constância 
objetiva do indivíduo e da sua consciência para preconizar o fluxo concreto de imagens 
que difunde quem fala,  para quem se fala e de quem se fala. 
Finalmente,  na  quinta  e  última  parte  deste  livros,  Fragmentos  dramáticos  (1996), 
saímos da opção expressiva revelada nos textos já escritos para procurar levar a palavra 
dramática a se converter em roteiro teatral, em palavra‐cena. Monólogos e rascunhos de 
peças  oferecem  as  meditações  e  a  escritura  que    se  originam  na  tensão  entre  palavra 
escrita  e  mundo  vivido,  dentro  da  qual  quem  vê  e  pensa  e  sonha  toma  cada  vez  mais 
significado  de  si  e  da  realidade  na  sensível  orientação  dos  limites  e  horizontes  da 
palavra, raiz das distinções. 
A  idade  da  Terra  e  outros  escritos  são  textos  que  pensam  essas  questões,  sem 
nenhuma metalinguagem ou arabescos explicativos. 
 
 
Para Walter, Marcelo, Zuleica, Franklin, André, Onésio, Renato, Pirlimpsiquice, The Band  e 
os  que  anonimamente  sabem  a  parte  de  cada  um  em  minha  vida,  mesmo  não  sabendo  a 
minha em cada vida sua. Quando tudo acabou, a vertigem deu seu próprio golpe de volta à 
mão  que  lhe  fez  cair,  errando  quem  buscava  tombar.  Daí  eu  ri  sem  pausa,  a  verdadeira 
festa.  
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  9  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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ROTEIRO 
 
Manifesto 
Pórtico Trágico.........................I 
Redenção................................II 
Vertigem................................III 
Grafia do Dólmem........................IV 
Antes do Nomear.........................V 
O Sacrifício do Céu.....................VI 
Hamartia................................VII 
O Corpo do Mundo........................VIII 
Último Ver..............................IX 
Anunciação..............................X 
Coro Agônico............................XI 
Áspide .................................XII 
Epitalâmio..............................XIII 
Preparação do Plexo.....................XIV 
Acolhimento.............................XV 
Expectação..............................XVI 
Sparagmós...............................XVII e XVIII 
Complexo Satyricon......................XIX 
O Circunvelante.........................XX 
Epílogo ‐ Nós, Os Caminhantes...........XXI 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  11  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
ARQUEOLOGIA DO SENSÍVEL 
 
Render‐nos à transvisagem que recupera o mito 
                         que nos reveste do que 
                                  funda o mundo 
 
Ritos de paixão 
estações fragmentárias da origem 
imagens que relembram a memória das coisas 
Por que não fazer do verso um acesso ao inexaurível? 
Por que não traduzir no papel o sobrehumano esforço 
                    de reencenar o drama primordial? 
 
Sempre lágrimas, sempre descrições, nunca o impossível... 
nunca  expressar o imponderável 
como se além de nós não se existisse 
como se não fôssemos nós mesmos a razão da existência do indimensionável 
 
Nós, os caminhantes 
de barro os corpos e as almas 
vivas modelações que nos escrevem 
sombras nas ruínas da História 
 
 
 
 
 
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Para longe 
o mais breve traçar da vertigem 
descerra o horizonte primeiro 
e acena o inaugurar da mensagem 
Nas grotas ainda cantam as águas 
sobrelevam‐se as virtudes de um anoitecer 
lá onde a espera é imensa 
inertes 
cegos 
escrevemos as lápides do destino 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  13  

 
 
II 
 
 
 
 
 
 
 
Riscado o céu para sempre 
a terrível manhã    último raiar 
vociferam as raízes do horizonte 
resguarda‐se o limite na atroz curvatura extrema 
da qual se avista o termo do contemplar 
 
um branco imenso 
alva que lava fatal o infinito 
cego o olhar na estrondosa dispersão 
abrangência que incide sobre o limbo da esfera 
 
imersos no ninho úmido das formas 
em vão saciamos o desejo desses escritos nas pedras 
vestígios indivisos de nós mesmos 
picturas do possível 
feitas da pele escoriada 
eis a partição: 
devolvidos ao solo  
as arestas da verdade nos modelam o corpo  
desterram o rosto  
o mistério rasteja 
 
 
 
 
 
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III 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
As excrescências da terra 
se voltam para o alto 
e não podem ascender 
olham de soslaio o firmamento 
elas 
dispersas em seu diferenciar 
olham o selvagem céu invertido 
elas 
de costas para o aclive 
incineram a vontade acolhendo o úmido 
antes que das solares partições 
venham mãos insinceras que possam 
sugerir o termo da angústia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  15  

 
 
IV 
 
 
Rígida mão que interrompe para acenar 
une o virar dos olhos à busca da origem 
a circunferência tomba em seu próprio eixo 
no plano megalítico das diferenças 
ante o  qual dramatiza‐se o toque 
 
 
baixamos o rosto 
bafeja a terra em sua agonia 
nasce um menir 
apontando para onde as entranhas do mundo querem 
ereto 
mostra apenas o plástico ímpeto da finitude em se ultrapassar 
teleologia às avessas 
chuva de estrelas enlameadas de placenta 
unha que fere e prolonga o limiar do úbere telúrico 
 
 
vértice não mais 
o movimento é ilusão de óptica 
curva‐se o delimitante azul‐urânico 
a retorcer‐se em cólica floral 
vértebra digitada desfiladeiro desferido contra  as nuvens 
 
 
um dedo sem carnes 
um sinal de pedra 
culto ao que aparece sendo mais do que é 
 
 
 
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A  
o livro de A 
de um a outro lado 
sobrepuja‐se o interdito  
na ronda  primeva do tragar 
punhos e lanças soçobram 
nem adiante nem além  mais 
‐ aquém da vera necessidade  
início e sempre           
influxo delirante residual 
a grande mensagem 
escancarada a boca 
 
A  
o livro de A 
a fenda só resgata o esforço 
lança clave acima que golpeia o vórtice mineral do córtex originante 
açoite  
retorno da pele à cicatriz acontecida  
declina a curva do bramido frente ao eco de seu viés 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  17  

 
 
 
VI 
 
 
 
No medo das aves 
o pacto antigo 
que por um sortilégio  
consagra a arrebatadora distância 
ritos do amor 
 
 
Amor tornando ausência 
flechas quebradas ao pé do abismo 
fogueiras eternas a arder indivisas crostas de sangue 
 
o medo nosso das aves 
espraia‐se entre as cinzas 
no chão sem caminhos 
galhos partidos     ramos desfigurados 
rosto e sombra de suspiro e espera 
 
 
Ah...desmedida presença 
asas incontáveis 
asas esvoaçando o mundo 
eclosão abrupta do silêncio pelo ruído 
cegueira altissonante      leveza incandescente 
frágil magma que consome e devora as encostas do firmamento 
 
 
 
 
 
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VII 
 
 
 
Lançado o dardo 
ele alcançará o alvo sem satisfazer o envio 
o salto é detido no impulso 
e o impulso prolonga‐se no arremesso 
a todo lado que é lado nenhum 
o vazio comprime o desejo na perspectiva 
( agredido o rosto pelo vislumbre da repulsa ) 
vinga o arco sobre a seta 
retroceder que abrange o possível 
reverbério na acústica do paradoxo 
 
imenso o alcance 
dentro do que distende o pontiagudo olhar da procura 
 
o que se realiza não passa do que se revigora 
avança o amanhã na pressa de fazer‐se agora 
eco dos tempos      visos do profundo 
 
 
o alvo nunca será atingido 
vestimos as cores de uma comemoração 
festeja 
‐o olhar não pode nos guiar 
o que se lançou foi a possibilidade última de redenção 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  19  

 
 
 
VIII 
 
 
 
 
Cede a pele ao encontro da lâmina 
acolhe a dor o espasmo redivivo 
é ânsia de beijar a terra 
o que nos lança para o sagrado 
o grito maior 
maior que a própria dor 
é ferida exposta e sangrando 
véspera inaugural da perpétua morte 
 
No chão 
sangue nas pedras 
rígidas arestas das rugas e dobras do pó 
a plástica vertente do dorso convulso 
há de se erguer um monumento 
que una terra e céu  
um corpo entregue 
reviravolta do baixo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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IX 
 
 
 
 
 
Falta o ar mas sobra esforço 
garras que avançam num vazio 
   alçam o salto antes do vôo 
 
 
 
o longo suspiro confunde‐se com o pulso 
penetrando na aflição maior e mais intensa 
   expande‐se o alento por busca e fuga 
 
 
 
sobra a ânsia 
a voz dos que erguem olhos aos céus 
reverbera e arranha a mudez seca da garganta 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  21  

 
 
 
 
 

 
 
 
 
Do que se não vê senão pelos efeitos 
obra de olhos dilatados na fúria para melhor ver 
irrompe e subverte a manhã 
 
 
incandescidas todas as vontades 
no entre ‐ estar do desassossego 
do que se não vê senão por medo e angústia 
flutua na indecisão de sua valentia 
 
 
perplexas as conformações 
sobejam vácuo e vertigem 
no gole acre da reversa viragem 
 
estarrecidos diante 
saudamos a chegada do que nos destrói e insufla o ânimo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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XI 
 
 
 
 
Negra 
negra bílis 
ilusão memorial da concha enganando o mar 
lembrança das aves que morrem antes e acima do próprio vôo 
 
agudo pender frente ao inalcançável 
incidência azul do pólen em sua dança 
 
negra  
negra bílis 
perpassa a carne dilacerada o entrave sonoro da ausência 
                    devemos ingerir o súbito 
                    difundir o ranger de dentes 
 
o futuro corrosivo sobre o cobre de nossos destinos 
ausculta a brevidade da casa‐cova sobre as águas 
 
 
negra 
negra bílis 
agouro 
memória do alento desfeito no voraz da epiderme 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  23  

 
 
 
XII 
 
 
 
 
Arrastar‐se entre o céu e a terra 
é ocasião de compreender‐se no que dista 
feito o sórdido movimento 
anjos sem rostos brotam a cada revelação 
o impulso de fazer‐se leve 
perpetua a agonia diante da queda 
é de pó o destino da morte 
e dor a seiva que escorre no chão 
o olhar sucumbe na gravidade 
                        concórdia incerta 
 
 
Mais lápides    mais grades para o corpo 
mais réquiens     dia desesperador 
 
 
as razões são íngremes 
suspendem‐se as geometrias na concruz dos caminhos 
atingida não a fenda e sim o talho 
retesada não a boca   e sim a pele 
encolhe‐se a luz na envergadura de um precipício que expele suas entranhas 
 
 
 
 
 
 
 
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XIII 
 
 
 
Nas núpcias do céu e da terra 
bodas fatais 
 
 
as águas não habitam os ares 
e os pássaros constroem seus ninhos nos tártaros 
brilha não mais a luz 
eclode sempre a mesma voz 
grito fundador que inaugura o rodopio incessante 
 
tomba o consorte e cumpre sua presença 
avulta no mundo inesperada aparição 
o agravo das almas insufla as amarras do padecer 
vestidos velhos 
rasga‐se a  abóbada da potestade 
e ergue‐se a novidade do disponível 
 
 
Nas núpcias do céu e da terra 
a espiralada convulsão das bodas fatais 
fecunda a inverossímil volúpia 
No viril vocifera a possessão do cerne e do pênsil 
padece e goteja 
as frinchas e as dobras do seu desvanecer 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  25  

 
 
 
XIV 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Flor que se sua à outra 
envolvem‐se as cerdas nas ramas suspensas 
cílios nus entremeados de luminescências 
a cada volver pulsa o golpe da despedida 
suportar na frágil viragem 
o ritmo das raízes sugando o céu 
seiva que brota de fora a dentro 
imergir 
no esforço maior que a duração do encalço 
sedosa intimidade que aguça a voragem febril 
sagração do súbito 
ígnea desolação pelo úmido 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  26  

 
 
 
 
 
XV 
 
 
 
 
 
 
 
Goteja a pele 
expondo os frutos de sua aspereza 
entre dobra e outra 
antes da continuidade que os pelos alardeiam 
os riscos e os pontos do tecido 
enroscam‐se e diversificam a fragilidade do vário 
 
 
rude 
     a pele na indiferença sangüínea que forra seu ventre 
 
 
por isso goteja 
o suor na pele prepara o aconchego 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  27  

 
XVI 
 
De mãos dadas 
nas bodas 
os velhos 
 
sempre iguais na dor e na lacuna 
pele rugosa cavada pela memória 
arqueados 
baús vivos 
dobrando‐se sobre si mesmos 
envergadura que suspende a queda 
une princípio e fim 
 
mãos nas mãos 
vigor na lentidão 
escondem o enigma do tempo e do espaço 
encurtam distâncias 
resolvendo a plenitude do horizonte 
 
cair e não ainda 
erguidos e nem tanto 
vivos mas já prestes  
mortos de fôlego baixo 
nas bodas o que fazem ? 
rugosa é a pele e a terra 
veredas descontínuas que sustentam o vário 
casca do eterno ulcerada pela seiva purgadora 
 
os velhos estão de pé 
hálitos sulfurosos que expelem a nostalgia do devir. 
 
 
 
 
  28  

XVII 
 
 
Maya dança 
a dança de Maya 
véus que sopram os despojos das horas 
e varrem o pó das trilhas sagradas 
dança Maya 
arma‐se do etéreo e traz‐nos os sons de outrora 
molda os contornos da terra  ‐  tablado do horizonte  
                                        fim da atmosfera 
seus pés desfazem as formas do mundo 
 
Dança Maya 
a dança de Maya 
retoma a figuração dos corpos torpes 
pendendo e burilando o sacrifício antigo 
cadências que suportam os ecos dos que se foram 
                           o grito da dádiva 
a voz é a mímica do canto 
plumagem‐cena no ardor da terra 
um apelo às fontes e aos ventos 
que lavam e secam o sangue dos que já dançaram 
 
véus de Maya 
várias cores     espectros do real 
arrastando o ímpeto das veredas 
Maya entregue a nós como dantes 
a dança recupera a própria veste 
cobre de pulsão os ossos do pacto 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  29  

 
XVIII 
 
dança Maya  
a dança de Maya 
bodas da grande deusa assassinada 
sobem e descem os golpes no corpo 
e mais os ritmos de braços e pernas se articulam no dorso vertiginoso 
 
graves 
a sucessão do rito é uma escada espiralada 
que oscila entre o vir a ser e o descer cisionário 
 
cai a deusa e sobe o grito 
rasga  o céu mais longínquo 
escurece o sol mais calcinante 
a mesma voz se distorce junto do coral que a acompanha 
todos celebram a fatalidade 
as vestes uma a uma caem 
e a deusa ergue‐se dançando 
até debruçar‐se no chão em seu delírio agônico 
 
desfigurada a face   nua a pele ensangüentada 
a deusa é sepultada com seus gritos 
        imolada em violência 
boca e olhos abertos 
voz que morre na língua surpreendida frente ao canto e à lástima 
 
a dança de Maya 
Maya dança 
arrebatamento aos sulcos do pó 
 
 
 
 
 
  30  

 
 
 
 
XIX 
 
 
 
 
 
Elevamos a voz sem encontrar alento 
respiramos o suor da pele agonizante 
flancos abertos do corpo na espera da noite 
clama a grande deusa 
e nós assassinos cantamos a dor que é nossa 
visível não as cores mas a ferida 
corrompe o derredor a extrema tortura 
ainda celebramos a queda e o sangue 
dor que medeia o acontecer da tribo 
remorso que encena os ritos do após 
 
cai a deusa e a terra se abre 
o porvir da raça são as águas do abismo 
eleitos 
caminharão sob o teto das brenhas 
 
 
elevamos a voz em uníssono com a mortalha 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  31  

XX 
 
No sem caminho 
regurgita‐se a plenitude às avessas 
de um olhar mais adiante que retrocede na intenção 
para fora e para trás 
à excessiva voz 
fonte e foz desses cantamanjares 
pensar mais além é voltar‐se adentro 
passo a passo no pleno 
ira de menos 
arremesso d'outro 
 
estreita voz  
padece e goteja a garganta extenuada 
cacos de ar afligem nossos pés 
num reclame por mais 
                     pelo anônimo 
 
reprimindo o ar 
resta‐nos o lamento 
que a cada instante brota das raízes do corpo 
na extensão do sopro 
distende‐se o lapso sustentando o vário 
 
retesa‐se o corpo 
confrange‐se circunscrito penar 
aquece o ficto e o tálamo 
nutrido pela mesma matéria que o envolve 
 
‐ O QUE TORNA NUNCA FOI 
MAS NOS ENCOBRE DE ANGÚSTIA 
 
 
 
 
  32  

 
XXI 
 
 
Nu o rosto e anunciado o agouro. 
Houve quem preparasse o caminho, espera lenta da intervenção, a comodidade eterna 
pelo ausente. 
Desde sempre, nunca atuaram. 
Encontramos as ruínas. 
Além demais para se chegar, perto ainda de se não fugir, o apenas. 
Breve  espalham‐se  as  águas  debaixo  de  nós.  Fim  da  noite  e  início  de  outro  espairecer. 
Sabemos  que  a  crueldade  nos  alimenta  e  é  preciso  fazer  o  fogo.  Não  vemos  nem 
andamos ‐ só o querer. 
 
Diante, já tangível, a espera encontra‐se, indevassável fronteira, limiar obnubilado. 
 
Resta‐nos  cifrar,  delatar  o  que  nos  oprime.  Concretizar  em  pedra  a  perdição, 
testemunho  cotidiano  da  imensa  vacuidade  que  nos  devora.  Escribas  do  incessante 
esforço contra a conspiração do mundo. Nós, os que cuspimos o mal, violenta possessão, 
despedaçamento ritual do referir. 
 
   AFRONTAR A PRÓPRIA ALMA PARA DESPERTÁ‐LA 
         FIM DO ORGULHO DO SER 
 
Cai estrela 
bebe da tua cegueira 
revolve‐se e rumoreja o amargo pó. 
 
 
 
 

 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  33  

 
 
 
 
 
O caminho do mundo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prólogo 
  34  

 
 
 
 
Distantes  de  nós,  sendo  nossa  própria  alma,  eis  os  caminhantes.  Em  pó  e  terra  abatidos, 
cumprem  a  angústia  da  visagem  da  espera.  Breve,  a  noite  acaba  e  chega  o  grande  dia. 
Adiante  do  acampamento,  após  a  montanha  esquecida,  encontra‐se  a  cidade  sagrada, 
encoberta pelas matas e vozes dos que a desejam. Os caminhantes há tempo tiram de sua 
relutância  a  permanência.  O  que  aguardam,  o  que  vêem,  entre  seus  rituais  e  jogos  de 
guerra,  quem  os  trouxe  e  os  abandonou  em  tão  desesperançada  condição  ?  Nenhum 
movimento,  nenhum  diálogo,  todos  sem  nome  e  passado:  eles  são  o  sempre,  um  coro,  o 
último coro sobre o mundo, do qual se tem notícia. Não habitam em tendas, nem escrevem 
nas paredes das cavernas. Não sofrem. Ninguém se ergueu e foi para longe, que  longe é o 
lugar  em  vivem  ou  parecem  estar.  Quando  a  palavra  soou,  há  tempos  atrás,  foi  Nibur 
quem disse, foi Nibur quem partiu. Ele os feriu e deu‐lhes algo para lembrar. Não, Nibur 
não poderia saber dessas coisas. Um caminhante ele não era. Nem um deus. Prossegue a 
vigília,  mas  não  é    mais  a  mesma  coisa  esperar  e  prever.  Ninguém  morreu  ainda  mas  é 
preciso matar, para que as feridas nos corpos se fechem 
Rumo à grande cidade marchamos, os pés na terra antes que o dia retorne. Além dos olhos 
crescem  as  muralhas  e  não  há  nada  que  possamos  fazer.  Vestir  o  corpo,  trazer  a  caça, 
buscar água ‐ tudo chega ao fim. 
 
 
 
 
O que vê 
 
 
 
 
Eleva‐se o olhar com os ramos 
suspenso o peso da terra erguida por entre as matas 
De todos os lugares surge o negro‐verde silencioso 
precipita‐se nos ares 
parábola de costas às raízes 
só o aparecer vário 
 
 
 
Alongam‐se os corpos na expectação 
e os pés somem diante das folhas caídas 
na cabeça rosna um nascer 
o que dista ataca os transeuntes 
 
 
 
 
 
 
 
Rumor   e ... 
A idade da terra e outros escritos  35  

 
 
 
Foi Nibur a origem     a voz primeira. 
nós o expulsamos   após  
Nibur é interdição   totem e prédica  
 
Longe da tribo subsiste 
não mais na memória 
Dia a dia 
ritos da ausência obscurecem sua sombra 
termos da desolação 
Disse Nibur que a cidade sagrada não seria pisada 
foi o verbo antigo 
anterior à própria jornada 
Nibur  
os lábios  a saliva negra agravando a terra  
cresce sob os olhos  
avulta e desaparece 
 
Ele    a voz 
 
Resta‐nos o que no peito pulsa 
esfregamos as mãos para afugentar o medo e o frio 
A ida de Nibur deu‐nos o tempo e o lugar da angústia 
Partiu‐se o desejo na véspera 
ecoando pelo corpo as vozes de ninguém 
Algo de nós se foi 
e permanecem os motivos da espera 
 
Dia a dia a grande roda 
sentados reverenciamos ao que pertencemos 
viver para a pendência eterna 
extremando o acontecer dos homens 
 
O que nos criou evadiu‐se 
 
 
Nibur Nibur 
o que nunca mais voltará 
o que viu e disse 
Nibur 
o que lamentaremos 
 
 
 
 
 
 
Os anéis 
 
  36  

 
 
 
 
De mãos em mãos as pedras 
aquecem a polidez dos sentidos 
na incessante busca e frustração 
mãos vazias 
braços pendentes 
todos ao acaso da revelação 
 
 
Eles rondam com a atenção das feras 
para que as mãos se abram ao peso das pedras 
ou a sangue cuspido no chão 
Tremem 
dor e gozo ao eternograndeoutro 
Mãos vazias 
braços enlaçados rumo ao destino de uma despedida 
 
 
 
 
 
 
Entre a montanha e os ossos 
 
 
Não 
nunca a grande cidade 
eleita pelos olhos como teto e afago 
Longe de nós  pertence a si 
alheia 
A distância sobrepõe‐se ao alcance 
sobram futuridades 
 
Grande fortaleza vazia e nua 
outrora mata densa 
jaz no nascedouro dos vales 
Perto 
um rio sem destino 
 
Desabitadas 
em imensas muralhas 
a cidade sagrada esquece os que acampados não marcham 
tantos são as ordens do impenetrável 
 
A grande cidade torna e retorna entre o pó que os ventos lhe cospem 
sua matéria  sua casca  
ao pé dos muros corpos de todas as tribos 
com últimos suspiros e êxtases 
A idade da terra e outros escritos  37  

carnes doces e mais    tragadas pela indiferença do que tudo vê e cala 
 
Não 
nunca a grande cidade 
 
 
 
 
 
 
 
 
O vôo do círculo 
 
 
 
 
 
Lá rezariam os que chegassem 
aplacando a agonia que os iniciou na busca 
vencendo a própria alma na súplica que não amanhece 
Juntos aprenderiam a cantar 
mais forte que o ódio das imprecações 
um rosto só e a mesma pele 
empoeiradas as vestes para que a dor fosse maior que a queda 
Cumprirão o que deles se espera 
 
Nós, os caminhantes 
prenhes da verdade que nos saboreia e doma 
perto do fim  
antes que dia ou noite faça sua morada  
antes que alguém nos chame pelo nome 
que é de marcas no corpo e no chão a vida dos que se ajoelham 
 
 
Delírios da tribo 
 
 

 
 
Um deus nos toma e leva 
mãos tremem  
o ar pulsa e parte abrupto 
a fala descompassa o corpo inteiro dentro de si 
 
Pelo deus gememos acordados 
e dormimos com as mesmas lembranças 
acenos da presença que não está nem devém 
 
O chão some aos pés 
  38  

e caminhamos afundando no próprio andar 
 
‐ Lugar nenhum    lugar nenhum    só o regresso 
alegra‐nos a vizinhança com o que nos tortura 
só o abraço com a ruína trará o fôlego e a rotina 
eis as artes e o canto 
 
Prostrados ao infinito 
olhos esvaziados do mim 
comungamos a fome e a falta 
repartimos a dor 
inventamos a perversidade de ontem 
 
Trazer o que jamais habitou conosco 
paus e pedras desenham os ausentes 
seca a vida       ásperos os sentidos 
o que não ajunta e espalha 
 
 
II 
 
 
Quem perde de vista o inimigo 
aquece as mãos em retirada 
ergue em volta de si as armas como despojos 
e não pode mais saber a cor das idades e das aldeias 
Em sua nova morada 
cozinha e lava as vestes empoeiradas 
antes das núpcias de sua filha e da chegada dos que partiram 
gira a colher na cerâmica      dentro da cova 
mói o ímpeto das raízes 
é o que podes fazer 
 
 
III 
 
 
Sobe ainda o calor das chamas 
entre as pedras  
contra o vento 
abatidas 
 
  
O chão e o rosto crepitam 
deixando vivas 
a  espera e a noite 
 
 
 
 
IV 
A idade da terra e outros escritos  39  

 
 
 
Ruiu a luz 
sobre a terra já podem brotar os dias 
a grande noite indefesa 
galgada pelas reminiscências do amanhã 
é pisada antes de seu grito negro apressar nossos cantos 
Quem te cuidou que te receba e vista 
com tão poucos lençóis há de sobrar carnes 
Os olhos não cobiçam mais do que possuem 
 
 

 
 
Andar mal é poder chegar 
mesmo que se atinja o indesejado e o esquecido 
é marcar os passos pelos pés próximos à queda sem olhos para registro e rastro 
Cede o corpo à ausência do ver     engolindo o que toca o ar 
provocando a gula das pedras 
Tenho uma mão dentro da perna e piso a face espalmada de minha íris 
engolem‐me as sobras dos andrajos amarrotados e cuspidos  
a caminho de ninguém 
 
 
 
 
 
VI 
 
 
 
No meio de céu veste‐se o visível de uma lembrança   
que incorpora ainda mais o que os olhos alcançam 
uma veste que paira sobre todos 
imóvel 
a única realidade do céu 
ponto escuro que involui 
e rapta quem ergue o rosto e abandona a terra 
túnica numa histeria visceral 
escondendo a gravidez realizada 
na morte do macho e aborto do filho 
veste que adorna o útero faminto 
daquela que goza e dança quando cessa o dia 
e zumbe o rancor dos que não podem mais arar 
 
 
 
 
 
  40  

 
VII 
 
 
 
 
 
É na ausência dos dentes que se tem fome 
lisa a boca    escancarada e muda 
esperando tragar o que lhe prepararam 
espanto do silêncio de lábios em baba e pele 
o que não come nem cozinha 
Na boca aberta e vazia ecoa o hálito do esmoler 
 
 
 
 
VIII 
 
 
 
 
Os pés não correram leves  
nem as mãos partiram‐se na queda 
sobreestendido 
o corpo vinga‐se da norma do ser 
bramido e remissão 
 
 
 
IX 
 
 
 
 
Da viúva e não da repudiada foi a única voz 
prenhe 
sua nudez não se vê e alguém a fez ?  
só os vestidos que nada deixam passar ou reter 
só os vestidos roçam por cima das cabeças 
nem o ventre entregue a sorte de um feto morto 
nem as garras que arranham a face de quem ergue os olhos 
apenas o grito e a mulher               volatilizando‐se 
 
 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  41  

 
 
IX 
 
 
 
Essa foi a guerra nossa gente 
de madrugada o frio gritou 
a fogueira sobrou como giro e escuridão 
morremos sem lutar 
 
 
Pobre de nós e sem cantores 
os monstros não nos pisam grandes 
No dia‐luz Nibur gritou  
Nibur   Nibur em sua montanha 
 
 
 
 
 
 
Epílogo 
 
 
 
Densa miragem que faz suar os corpos 
perante o inexprimível  
somente um grito de dor que rasga em  alto  e baixo o que nos faz ver 
 
Desfigurado 
o rosto amplia as entranhas do abismo 
há um gosto de nuvens torturadas que se debate em cada canto 
 
 
Os homens ainda não tombaram 
nem nasceu o sol 
Por baixo e acima de nós encontra‐se estranha soma de água e ar 
indefinida  memória longa dessa face que o peso da terra espanca 
 
Nada vemos 
apenas a pele acontece 
em seus vincos e dobras distende‐se a verdade de uma consumação 
Expostos 
entregues além de nós mesmos 
só nos resta esperar 
esculturas às margens das trilhas dos que foram 
nós 
no tempo erguidos 
suspensos entre o modelo e a massa 
 
  42  

Mas sempre haverá o rosto expulso da vida no instante de sua aparição 
emergência latente do intervalo 
pendência extremada 
momento oblíquo de um retorno inaugurador 
 
Nibur falou 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
Da boca o grito 
o grito habita o abismo sendo sua voz e seu corpo 
um corpo no qual a voz é sua alma 
uma voz que pulsa e se delata 
O abismo expande‐se nessa dor 
as entranhas consomem toda e qualquer profundidade 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
II 
 
De manhã a flor se esgota em água 
dispõem‐se ao que de cima vem 
em cima dela cair por sobre 
levam a noite inteira para dormir 
e ainda querem mais que a luz do dia 
 
pois de manhã a flor se esgota em ouro 
pedindo pouco para acordar 
para quem de longe lança seus olhos 
para quem de perto crava‐lhe os dedos 
um riso só para os dentes abertos da terra 
 
pois de manhã a flor se esgota  em unhas 
nas mãos por beijos quatro pétalas 
A idade da terra e outros escritos  43  

na falta de uma noite aguda 
na falta de um dia repetido 
levam noite e dia para viver 
os  que nunca viveram sobre a terra 
 
os que andam e colhem 
esses que nunca brilharão 
nem encontrarão o gozo da manhã 
 
Eles são o jamais 
 
 
 
 
III 
 
 
Debaixo dessas roupas 
debaixo dessas roupas 
o que me desejam todos nós ? 
debaixo dessas roupas 
 
Com as mãos fiz essa cinta 
no meio do corpo a coloquei 
podem tocar as roupas 
a cinta  não ‐ a cinta cor de barro 
 
 
 
 
 
 
 
IV 
 
 
 
Atirem as pedras mas acertem 
olhem para as pedras que eu piso 
sobre suas cabeças cai o pó de meus pés 
 
De um velho e estéril monte lanço minhas palavras 
é preciso a altura para a voz chegar tão perto 
eu   que falava com ninguém 
longe de minha garganta encurralada e cheia de terra 
 
Atirem as pedras antes que o vento o faça 
e devolvam as rezas 
uma alma é o que grita 
mesmo que só para os mortos 
a pele merece o sangue e o azul de sua queda 
  44  

 
Vejam  
seus cabelos não se movem mais 
e o braço é pedra que me aponta e pede 
 
Eu   que já fui embora para não voltar 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
Para que me servem essas cores 
se a pele é negra como a de um homem 
que traz caça e desejos iguais 
 
Para que colares 
se ergo a cabeça e volto os olhos 
‐os mesmos talhes da faca ‐ 
e amarro as vestes na cintura 
 
Avança para mim o que me toma 
quando me descobre comum 
 
( nunca mais outra vez o antes ) 
 
 
 
 
 
VI 
 
 
 
 
Do mesmo tempo partiram e não chegaram 
meus pés em seus pés antecederam 
sempre    para onde apressava o devir do território 
casa     círculo      bagagem 
o coro derradeiro do breve aceno 
o sopro terra a terra cobrindo os rostos 
a vigília para não partir 
quebram as cerâmicas da previdência 
queimam as vestes e os tabernáculos 
novamente a luz tardou a vir 
com estes homens há de faltar caminho 
com essa gente o mato cresce e traga o mundo 
A idade da terra e outros escritos  45  

a colheita é maior que o transcurso 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
O pó das águas 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  46  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
as estrelas do céu 
 
 
um pé já não se vê 
ele  
e o corpo estende as roupas 
os farelos das mãos bebem o dia novo 
os ombros não são a espiga mas o corte 
Onde tem leite 
onde tem leite 
deitar como os cães aquecem a pele 
 
quem pode sentir o corpo 
que deita na cachoeira comum 
e tira a roupa  
e mergulha a face 
O menino quer a água 
o menino sabe nadar 
o menino sua 
as águas devolvem o suplício 
 
para a água vir há o tronco 
todos esqueceram dos avisos do céu 
as mãos    o falo     a garganta 
cantam a força de quem te leva 
 
não é essa a areia desejada 
a que rasga e mostra o sangue contido 
ele nunca vai chorar nem ver os peixes 
os girinos e as madames rodam em seu dorso 
 
a árvore no chão 
A idade da terra e outros escritos  47  

a água em tudo 
não é lavar nem promessa 
Em uma tarde que já existiu 
meu menino o rio amou 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
Não o rosto menor que as mãos e o passado 
com pressa adiante encolhe‐se o outro    cego brilho que derreteu de costas um dia    o 
único 
um menino viu a mulher subir já no chão e não cede um centro mal riscado   ele 
a panela não cabe em si   pulmão banguela   mil olhos 
um terno também alisa a boca da casa maior  que os dentes 
a queda engole a fome na curva da testa que chuta os cintos 
 
À noite entrega‐se no escuro breve com atraso  
à noite zumbe ele  o primeiro   nu    suspira 
o peso se cala ao lado com o chão pedindo ossos de adeus 
morreu o ar entre dois abandonos 
dorme mulher    a boca no beijo de ontem logo mais 
nas pernas esfria  soluça e cheira 
fora da carne sobre o piso longe em pé agora é água 
a escada não sangra o eco somente  tudo a dor o grito 
mexeram as paralelas que mordem não    elas 
 
venha meu bem com meias relógio 
suba 
 
os seios empurram os botões da camisa branca 
a veste   a veste a mesma que menino tomou 
 
 
 
 
 
 
 
 
II 
 
  48  

 
 
ele ri ela chora 
estes não longe dela 
o canto as malas um ruído antigo de se esquecer 
já vou já vou bem baixinho 
lá lá    confirma de cima em baixo a testa e o queixo riscando de novo o que ? 
com quantas palavras   uma   a moça pára 
o som maior que a luz o sempre 
ali sob a voz nem a chuva escoa os que nascem calçados na lajota 
 
 
 
 
vovô tinha uma cadeira que não girava 
um empurrão espera marcar o taco contado com nome e número 
vovô nunca viajou de avião para morrer no natal 
um coração é mais que isso e morre 
 
ele traz ela puxa 
o vidro deixa de cobrir‐se de gente vidro   de novo    o vidro 
ela não   a boca   entre batom e cuspe 
calça suas chinelas de couro devagar 
deixa o corpo sem beijos e espuma amassado que os dedos grandes    um só na calvície 
mais alto 
rádio sem pilhas não esconde pisar o silêncio 
mais alto o roteiro dela implora    escuta pilastras paredes 
aí mesmo um gesto o nariz dá um passo à frente dele  vivo lê 
as unhas entram na mão fechada que bate uma vez    a última 
 
ele disse  
tinha rosto 
vestiu sua brancura 
virou e viu o revés 
segurou o bolo do pijama azul com moedasdrágeas 
sua língua dança já branca de se ver 
amarra o casal íntimos de nós 
prontos para marchar deixam o chão voltando 
quem escondeu esses olhos atrás dos lábios 
um  bolso uma só perna 
seus pais e agenda têm hálito e brilho 
de uma vez calou‐se o grande homem 
de novo a bagagem extraviou‐se 
é dura a terra varrida 
é quente a devora tão longa 
 
 
 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  49  

III 
 
 
 
 
 
abaixo do céu e dentro do túnel 
retorna o que vi para não esquecer 
no concreto cinza doente 
termina  a  pedra  no  risco  negro  que  o  carro  vence  antes  que  todos  comam  brancos 
voando do chão 
o teto se costura e aponta o que a roda não alcança já tonta 
é mais que três é mais que um só  e acaba e não cai 
tenho medo de nunca mais dormir 
 
a noite se espedaça fria e perto 
esquecidas as dobras  vomitam  os bichos com dentes 
eu juro eu juro que nunca mais vou contar 
eu vi a moça deitar para não dormir 
e meu pai com a boca na veia que salta 
loiros eram os cabelos mas não o espanto 
eu vi a água e o copo tremerem sobre o bidê 
um quarto pequeno e sem portas e orações 
eu rezei pelos nus  
mamãe dormir em paz o meu pastor 
e pude ver tv até tarde bem baixinho olhos vermelhos no mundo que pisca sem cor 
e fui no frio com lâmpada dar de beber à garganta rouca de amanhã 
e lambi o pé da tia nova velha que ronca eternamente 
Dick Dick Dick a boca aberta no asfalto cedo 
Dick Dick Dick seu cachorro sujo e bobalhão 
vira essa coisa vermelha sem olhos prá lá e dorme 
 
 
IV 
 
 
 
a raiz aonde 
a raiz se eu vi 
inteira com terra e fios com terra 
a terra ? 
a raiz ? 
puxa puxa puxa fim       mais terra em baixo 
fios direita esquerda e mais embaixo 
acaba a raiz  começa a planta ? 
dedos prá lavar 
rosto com olhos fora 
tudo aqui na mão ? 
por que as formigas não param de andar ? 
mais fios pequenos escondidos sem e sem cheiro como a terra que só Dick come tosse 
tosse 
  50  

mais fios de outras raízes de outras plantas sem fim 
mais terra no chão do quintal       espera ex‐cal 
a lata come mais que visita    porca margarina mistura feijão com arroz boca areia óleo e 
dente preto 
mais preto é o alumínio que não cansa e engorda torto 
raspa raspa a pedra a mãe das plantas dura cheia de raízes cristais cimento sem curva e 
folha 
noite dormir depois da espuma olhos fechados 
debaixo da cama a planta escondida encolhe‐se no dia em que voou 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
ele precisou gritar meu nome 
todos souberam ao sol se por 
a última vez a caça com pedras 
não o vento no rosto dos que escondem os pés 
não os pêlos secos do hálito que escuta e cega 
não a cobra‐terra parindo seu fogo molhado 
a voz pára e espera em pé como a casa 
lá fora olham porque é dia um rastro para o branco sem raízes 
 
as paredes elas esqueceram de um ventre para o choro 
em meio a si desejam no eterno quase mais que nascer 
o breve corpo pintado nos golpes que roubam sua redondeza 
sem pés sem mãos sem boca sem olhos 
sobre o formigueiro já grãos     outra terra pouca e nua 
voam na noite a escura altura dos que deixam atrás o impulso que rasga a pele 
porque ele pisa dois e um e no após separando metade acima e embaixo 
esse não é seu lugar  
 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
 
 
hoje os que se erguem não voltarão 
verei as promessas da terra roubada e presa 
um homem cairá em volta do que não foi plantado e busca a luz 
de costas para a porta sente o peso das carnes que já não lhe pertencem 
 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
 
A idade da terra e outros escritos  51  

Por quem chora a folhagem que vê ? 
por quem chora os quatro ‐ pés sem céu ? 
por quem chora o monte‐ira somente ele ?  
 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 
 
tarde cheguei do longo amanhã 
nosso luto será o ruído do silêncio 
tua culpa será a vigília que cala 
minha cama mudará a cada noite 
 
 
VI 
 
Outra a mesma cama de todas as noites 
presa ao teto de um rosto sem sono 
de costas para a noite que conta e escuta 
 
lá fora elas passam com o peito cheio de vozes 
agudas de tão frias chamando os homens para vê‐las 
nas paredes da casa retratos no lugar de janelas 
 
ninguém de novo soube dos passos longos pisando a escuridão calada de ontem 
 
eu mesma oro pelas que andam na vigília nuas 
as que esperam deles os braços em troca das cantigas 
tirando‐as do chão para o barro batido da casa 
‐onde quer que exista    não sendo a minha‐ 
(nas mãos os terços pesam e sangram os corpos de quem corre) 
um fogo sempre aceso nas panelas e nas carnes 
a noite fugindo louca dos que não tem medo 
os gritos ruindo as cercas perto da manhã 
 
Eu    a casada 
pouco o ar para o amor e os dias 
arrasto‐me entre as águas do rio e o suor de meus seios 
vestida para cuidar    nua para dormir 
dizem que os caminhos morrem entre a cerca e a casa  
e elas não podem queimar essa terra 
e elas não podem roubar meus irmãos 
fora de mim suas cabeças volteiam em busca 
Eu as vejo como sombras loucas nas dobras do quarto 
 
A órbita antiga de um céu que pisca 
o céu no quarto guardando os rostos 
aqui o homem  
o único o que veio para sempre 
dentro da noite choram e cantam em romaria  
meu homem dorme já longe de mim 
  52  

eu rezo em vez do consolo das vozes 
elas cantam porque não podem rezar 
 
 
chuva fina não traz calmaria 
prá quem anda assim na escuridão 
dos divinos dai‐nos os filhos de Maria 
ou esconde a gente sobre o chão 
que é pior sonhar acordado 
que dar de frente com o diabo 
oh mulher das noites infindas 
me ensina a viver na solidão 
oh mulher das perdidas iluminuras 
trocai minha tristeza oh glória nas alturas 
 
 
 
 
 
 
VII 
 
 

 
Um salmo para outro desejo 
que mesma é a boca que me esconde e prepara 
eu que espero a vingança da carne 
para sentir o seu amanhã sem memória 
 
foi para bem longe mesmo que eu veja 
e nunca mais será outra vez o antes 
Um salmo para outro desejo 
ao lado continuam a mexer‐se pernas 
vigiar nu com as cobertas novamente 
 
 
O choro caiu pelo suor  
os olhos eles têm de ver 
o retorno do que faz escorrer mais e ? 
um golpe uma voz que leiloa um pouco de um breve suspiro 
na parede chegam minhas mãos cansadas de buscar o toque 
andando pelo som de quem sequer sabe meu nome 
Um salmo para outro desejo 
 
 
 
 
Sei também que posso ir 
a casa a casa a casa depois ali igual 
A idade da terra e outros escritos  53  

por que se nem estou aqui se posso dobrar‐me entre as tábuas que vou tirar debaixo de 
mim 
rasgar os lençóis novos agora que tudo acabou com os pés arrastá‐los contra o colchão 
cadáver do algodão que não serve para vestir} 
com  os  travesseiros  dois  fazê‐los  um  amontoado  em  cima  do  outro  um  e  em  cima 
sempre escada que cai  entre dois que um não dois travesseiros e nenhuma cabeça} 
deixar a coberta só o após  uniu aqueceu    deixar a coberta aquecendo vendo o quarto 
preso quando  e quando 
erguer‐se para terminar com tudo que me pertence o que deixei antes de voltar na porta 
batendo a casa e o  piscar piscar trazer as roupas}  
  
 
Esperar pelo sono adiado de ontem 
pela noite de ontem    a que não terminou 
é preciso é necessário é 
dormi fora de meu lado da cama 
a roupa está pelo avesso 
dói em mim um calor ‐ tatuagem ‐ resto  
Um salmo para outro desejo 
  
 
 
 
 
II 
 
o banho esquece o esforço 
que a noite sussurra e vence 
mais lentas    as mãos são as mesmas 
na espuma que foge e não ama 
 
deitado    vê o perto vestir‐se de passos 
crescer depois da coxa estendida 
de uma vez os rostos encolhem‐se em queda antiga 
quem se fez breve      cresceu acima do após 
 
não é chuva o dia novo em pé vestido 
a chuva a chuva afogando  
 
nessa noite outro o fogo 
da que ri e dança entre os homens 
acariciando  
 
o ralo derrama‐se dentro e fora 
 
 
entre os olhos do instante dentes dedilham as bocas  
 
 
III 
 
  54  

não é ela desde que a trouxe 
antes mesmo atrás e atrás 
 
 
o coração pulsa toda noite sem luzes 
essa não é sua cama    a do dia com rádio 
os faróis passaram sem música 
entre     a porta   você não está mais ali 
 
a tia nunca tirou os óculos 
o pai sempre viu tv 
a mãe lava lava lava tanque 
viajamos juntos nas férias 
 
saio como vou dormir 
mais mais doendo é breve 
um só fugiu   ele só conheço 
de langerie esfrio‐me nas ruas 
 
um beijo só eu posso eu devo 
há tempo há tempo não me faça mal 
ela aqui não faça o que já sei 
minha cama acolhe uma mulher 
 
minha boca abaixo o rosto escondido 
não beijo ‐ falo e prossigo 
sob as águas tenho sede e frio 
esqueça   não fui eu que arranhei tuas costas 
 
uma voz sim o gemido não a fala 
mais e mais rosto e cabeça não se encontram 
vejo a boca não beijada aberta mais que os olhos 
e um corpo caindo em mim o peso que não me olha 
 
pele branca e lisa    menino não me bate 
como eu  espera o fim que o outro encurte a pele 
homem‐moça que não existia ou fugiu 
paga meu preço adoça meu ventre 
 
rápido eu estava aqui      crescem as pernas 
a lágrima não cai porque a garganta não deixa 
eu te amo até agora     me abrace teus seios em minhas mãos 
o que era para ir     ficou para sempre. 
 
 
 
 
 
IV 
 
 
A idade da terra e outros escritos  55  

O escuro, peço, tudo mais sem luzes 
deixe sua voz rouca e cansada agradecer minha inocência 
teu corpo sem rumo e pesado desafiar minha força 
de noite nada mostre que já não saiba 
o beijo frio de quem seu homem foi o pai das filhas 
as coxas amarelas e brilhantes que engoliram o resto de baixo 
as peles secas nas mãos cansadas de prender as veias que não querem esse corpo 
os pés sempre frios e brancos esquecidos da mulher viva com décadas 
 
Ela não tinha rosto de se ver   a pele 
sem pêlos nem o branco que o vento faz brilhar ao sol 
lisa a mulher morena e úmida    um detalhe o querer 
em pedaços acordar para ficar ou ir 
 
que ficassem mesmo no escuro os dois juntos 
voltou outras vezes   voltaram 
o primeira loucura namorava o moço confuso 
batam em sua porta de madrugada   o falo 
o escuro, tudo mais sem luzes, o que ama sem ver 
 
nunca mais a voz rouca e flácida 
que nunca implorou para amar o rapaz 
Desconhecidos de si mesmos entenderam 
nus 
que no escuro ninguém é pai  
 

 
 
elas o levaram entre a casa e as gentes 
os pés no mesmo sulco que do chão nos leva à casa 
abertos os braços    imóvel o corpo 
grita o povo a voz do que cala e espera 
sob o pó da estrada repetida 
a terra sobe girando acima das cabeças 
em frente leve é aquele que não sabe resistir 
pele e sangue marcam a volta que o pé aterra 
Nídia espera cantando nua 
 
A filha de Nídia fala nossa língua 
seus seios o frio das águas vivas 
só os cabelos longos sabem que escondem a nuca 
frio o vento não e suas pernas no corpo viverão 
 
 
Nídia canta e me despe enquanto eu toco 
ela é grande e não é mãe 
Nídia fala fala muito sem gestos ruídos na boca 
não pára de tocar a mulher que me joga para trás e frente 
Nídia que vocês duas, mãe e filha, façam isso por mim 
 
  56  

meus olhos viraram quando parei de pensar 
segurei seu dorso mãos no esforço sentindo a carne quase a falar 
sempre eu depois e só sem dormir    o menino 
te quero todo, garoto de olhos sem brilho 
diz nova outra viva suas unhas junto de um abraço‐cartão‐flores 
 
eu só queria a filha de Nídia, a cantora espanhola com rugas 
eu não queria ninguém 
outra lágrima em meus olhos flutuava no fim da carne contra carne 
a mãe penteia os longos cabelos da filha que nem o mar encolhem e escurecem 
 
com a cabeça em seu colo escuta o coração no ritmo do amor jovem não o pai 
choro mãe, eles morrem primeiro. Já sou viúva de véspera ? O mar, prá longe, me leva pro 
meu amor. 
as mãos agora, erguendo a cabeça, o riso sem canção, só os olhos na menina que a faz 
chorar, os caminhos da face preenchendo‐se de estranho calor, a mãe no dilúvio de um 
choro sem gritos, o rosto coberto das lágrimas, um brilho sob o úmido, um azul imenso e 
doloroso expulso do rosto. Mãe, mãe, não vá também, a noite acabou.  A moça abraça o 
corpo da mãe, espremendo os olhos que nunca mais se abrirão. Nídia (o ar para fora) e 
frente ao espelho. Retorna a garota que migrou com os pais. Ela, novamente, Nídia, atrás 
das coisas belas, o quarto onde cabe tudo. Sobrancelhas negras e grossas, indomável, a 
capital  do  estado  com  cinemas  e  bailes,  ela  só.  O  primeiro,  um  pai,  o  único  homem,  a 
cama  sempre  vazia.  Agora  pode  ver,  tudo  aqui,  todos  eles,  dizer  não,  o  pai  um  eco,  a 
culpa nela como seu sexo. Está vendo, o rosto novo, as águas que limpam. Mãe, o mundo 
dormiu tão depressa que não tenho sono. ( apalpa a mãe, chega ao rosto)  Junto com ele 
foi  o  passado.  Mãe,  estou  cega,  não  posso  te  ver  nova.  Posso  estar  alegre,  repartir  o 
milagre. Me leva pro mar, mãe, no frio das águas que murmuram. 
 
Nídia  morreu  e  ninguém  sabe  onde  foi  enterrada,  a  terra  não  queria  tamanho  mal  de 
esconder seu rosto. Antes, muito tempo depois, eu já era homem, meus olhos brilhavam 
e sabia falar. Sabia dizer não a quem não queria e me confidenciar quando era preciso. 
Nunca aprendi a cantar e troquei a garganta seca pela lágrima seca. Andando na noite, 
alta  escuridão  reencontrei  Nídia,  a  que  amei,  não  a  filha,  de  mesmo  nome,  Nídia  ela 
mesma. 
 
 
 
todos partem mudos e a cama desarrumada 
pressa para vestir o homem que a noite morde seus ouvidos 
com meias   cansado quase desistindo 
esquecem de mim olhos nos seios o rosto de menina penteada 
os cachos negros   o batom os olhos piscam piscam piscam 
não posso chorar nem que eu queira 
 
‐Nídia, Nídia mais nova que antes eu já falo 
‐Minha filha, cega, eu com seu rosto. Um amor tardio, sem amores para sempre. 
‐Como ? 
‐Você foi embora, ela sabia. Chorou a dor da mulher, ela uma menina. Ainda bem. Não 
vai passar por isso. Meu rosto brilhou e a escuridão profunda cobriu a face dela. O mar, 
ajude‐me, o mar, vamos levá‐la. Não me amou antes, mostre seu amor agora. (música) 
A idade da terra e outros escritos  57  

‐Nídia, ela dorme, longos cabelos, o mar pequeno.(ergue‐a) vou levá‐la. É fim de noite. 
Quase madrugada. Espere aqui. 
 
Seu corpo um corpo sustenta, meu e dela, seu rosto, o rosto da menina na mulher. Já não 
vive mais, seus longos cabelos nem o vento(...). Anda, vai sobre as ondas, os cabelos do 
mar,  as  águas  que  tudo  (...)  o  mar  e  a  mulher.  Primeiro  os  pés,  tornando  o  frio  em 
caminhada;  as  costas  molhadas,  um  leito  que  descansa  e  embala;  e  a  cabeça  salga  os 
olhos  vazios  de  uma  promessa  cumprida.  Eu  sou  Nídia,  que  não  nasci  prá  ser  mãe. 
Sempre jovem, luto ‐  minhas  as razões. Morra sem saber que nunca te amei; saiba então 
que nunca fui mãe. Em meu colo as mãos ela via, mas não meu rosto. Avança, meu amor, 
sobre as águas. Ela não voltará. Eu ainda tenho um rosto jovem, um sorriso sem palavras.  
‐(vira‐se)  Canta,  Nídia,  canta  uma  canção  de  despedida  para  os  amantes  (a  menina 
levanta  e  sorri  nos  braços)  mistura  essa  alegria  com  tua  miséria.  O  mar  nos  lava  e 
separa. Aos pés, a margem. A areia não desiste, cobre esses pés como um rosto ilusório. 
As águas, dissolve.  
‐ Obrigado, mãe. Mesmo que os homens morram, as mães vão primeiro. De que matéria 
fomos criados ? da areia, desmanchando‐se na praia, perto de seu mar. A areia, que as 
águas não querem mais. 
 
 
 
 
 
VI 
 
eu tive cores no pescoço 
rodei rodei longe dali 
um copo dado   uma mulher 
 
a boca tapa a sua sede 
se eu transformar tudo em líquido 
eu recusei tirar a roupa 
 
um louco cansa meu abraço 
eu vi sua mãe de terno e sóbria 
você com dois sabem piadas 
um prato alisa os cabelos 
 
as tias tem a calça suja 
me beijam sem dobrar joelhos 
elas sem sangue sabem dos quartos 
eu gosto que me falem tanto 
 
Nunca mais as vestidas 
fora minha fome 
nunca mais esse, o apenas 
eu sigo a curta reta desses grãos 
 
 
 
 
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VIII 
 
 
 
 
ela sabe que está só   ontem 
um rosto quem viu sem adeus 
não pare nas escadas caindo 
atrás a porta fechada por dentro 
comida para a boca mais cega houve e pratos 
assento na sala um só 
espere sua vez o soluço no bolso 
perto das chaves cobertas de lenços 
 
ele quase cruza as pernas nunca 
a moça do quadro falar dela 
as cores a saia na cerca acima da baba do boi 
em volta ali longe os ombros o fim 
aplausos gargalham a escolha‐moldura o sim 
em pé nada resta   igual 
as mãos se lançam com olhos‐marés 
 
ela a única que saiu entrando 
casa errada    logo a rua assenta os passos 
ele beija um pano‐sombra da parede 
dentro e mais em vão atrás a queda o solo derrubar 
perto nunca ela  a mulher vestida 
sempre ausente a mulher pintada 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
IX 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  59  

 
 
Não há porta mas eles batem e riem. A casa esquece a rua e varre a última desculpa que 
foi sangue nos lábios ( quem jogou essas pedras que as levem / que vestida de sangue 
ainda posso esperar / eles sempre voltam porque me amam). Só um caminho, lá fora. O 
tapete perde seus fios antes do quarto. Dia e noite, a mesma cor dos tijolos suja a pele 
dos que se vão. 
E  eu  espero  que  eles  venham,  em  pé,  sem  sair,  encostada  nesta  porta.  Um  cigarro  se 
esfumaça e minha boca deixa de ser e o rosto e meu corpo e as vestes. Voei... 
Em  vão  esmurram  a  porta.  Penso  dizer  que  não  estou  ali.  Brinco  em  apertar  beijinhos 
entre os lábios e juntar o fora e o dentro. De noite, jogo dominó sozinha ( pare de jogar 
com o diabo, grita a vovozinha, lavando os dentes que não são os seus no banheiro do 
quintal). 
Eu não sabia que tinha pernas porque corri descalça, nem sabia dos cabelos, até coçar as 
feridas na cabeça. Eu tinha era pintas, um corpo inteiro de respingos, todo para se ver. 
Sou daqui, nunca vou sair daqui... 
/// 
 
 

Frankmot 1 
 
em pé    mesmo que não andem 
um grito é menor que o disco 
um carro olha a curva com dor e esqueçam 
de pé o vidro com rótulo 
para dizer os outros a face é uma palavra      um bolso na camisa 
redondo é o prato para lembrar 
um olho come para dois mas um é negro 
você gritou com susto   o fim 
a boca esconde os dentes dizendo que as mãos empurram os olhos entre a pele que se 
dobra e esconde o rosto  
rir 
dos olhos caem dois braços que hesitam 
uma cintura fina 
o queixo sem covas  
Nasceu de mãe conhecida 
as boas novas correndo vestidas dos arranhões que escorrem para não voltar 
 
 
 
 
 
Frankmot 2 
 
Vou despir minha ignorância 
Subir no ponto mais alto. 
Gritar por necessidade 
Ultrapassar a noção do tempo. 
 
 
  60  

Aquele que não sabe procura suas vestes 
além de si a montanha se cala 
para chegar    os pés não são o bastante 
no chão caem mais que os apoios 
ele verá que a voz não pertence à alma 
e um louco rouba  seu corpo tombado 
 
 
Os céus só sabem do abismo sob os corpos 
um grito é bastante para quem morre 
sempre o frio molha a terra e ainda 
os passos da neve são suas raízes secas 
 
 
Os que caem     deixem 
O grito é veste do morto 
sabem que não vão voltar 
 
 
 
 
 
 
 
Frankmot 3 
 
brincar de ser gente 
cultivar o sagrado 
sem arrepender de  
seus pecados 
caminhar por necessidade 
ferir por prazer 
rasgar a alma  
calar o mar ,dominar 
o medo provocar a morte 
instinto sóbrio 
respeitar o não dito 
injetar agonia, manter a dignidade 
 
 
 
 
 
 
 
As meninas não sabiam pintar as unhas 
mas brincavam de pega ‐ maria 
e eu descosturei as almofadas 
arroz não cai sem as mãos 
Nunca plantei  
com olhos tristes joguei bola à tarde. 
A idade da terra e outros escritos  61  

 
O menor de todos bebe o sal das coisas 
sua mãe reza o terço debaixo do guarda‐sol 
no peito dele cabem as ondas, o mar e o fim 
Apenas um balde vermelho 
e as águas devolvem o que não podem guardar 
 
 
Um velho conta o intervalo de sua dor 
e o jornal cobre sua pele última 
Os olhos estão fechados para o sol 
o mar piora a pele exposta 
 
 
 
Os que passam não querem as cores 
mas areia gruda em seu corpo 
é preciso que o azul vire vermelho 
ela quis que os homens viessem 
 
 
O mar é mais frio que o picolé que você compra 
O milho verde dá butolismo 
As estações voltam nos panfletos 
 
 
 
 
 
Rubenmar 
 
 
Coisas superficiais tocam fundo em mim 
Como o dia a dia e o pôr‐do‐sol 
Brigar para existir mais um dia 
Querer sorrir por mais uma vez 
 
 
Eu escuto as sombras e a esquina 
quando arrasto a calça entre as coxas 
aberta a porta    a sala é menor que o tapete 
a boca masca o gosto das bocas que passam 
Vou gritar mais um pouco ali   um quase 
em frente ao que o suor foge dos cabelos 
engordei no rosto de uma calça bege 
um olho aquele e eu paro depois 
Nas mãos o vento lembra que com olhos 
sempre dois pés os meus   a linha 
eu acordei ?  o cabelo cheira seco imóvel 
nunca mais o som    a janela    a luz  vestido como ontem 
 
  62  

 
 
 
 
 
Hiltinhomar 
 
 
nunca será a última vez  
nem a primeira  
estamos no mesmo caminho 
e vamos nos encontrar sempre 
no começo e the finale. 
 
 
nosso ontem mancha as calças 
eu faço contas na mesa alheia 
os convidados mordem o que podem 
a noiva vai dançar de branco 
as taças sujam meus sapatos 
 
 
a sobremesa sabe da toalha 
as mãos tem garfos para a ave estúpida 
aperte o botão    o número três 
acima dos homens com fivelas 
 
 
entrem  
o desenho não tem bordas 
um rato pensa com a arma do bandido 
a cama dorme com as vozes dessa química 
eu não vi mulheres esquentarem um quarto que fuma 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ninguém sabe que as cortinas tem canela fina 
a magra que dança esquecendo a nudez 
Dói ser folharoupa que não cai 
sem cáries o vento é boca sem alô 
alguém morreu vendo tv 
mamãe diz  isso mesmo 
é bom quando é ruim 
meus beijos    amor    uma água quente 
eu vou dormir sem teu amor 
A idade da terra e outros escritos  63  

 
os meus amores passam 
sabem de cor que terminaram 
a roupa    a camisa veste 
meus dentes bebem só licor 
eu levo meus sapatos 
cadarço assim não me lavou 
por menos de uma mesa 
um vaso não fica em pé 
depois da revenda 
o preço da minha crença 
espera a mão do comprador 
que essa pouca cabeleira 
faz frios prá quem tem medo 
 
morde as sobras da pergunta 
engole o que já passou 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                ‐ de várias ‐ 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
 
me abraça e eu de costas 
é frio e ninguém me escuta 
como dormir se tudo fala ? 
dói o corpo das coisas 
perto disso algo mais há 
você dormiu ?  
então dance... 
 
  64  

‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
tudo é igual de onde eu vejo 
e nas mãos cabe tão pouco 
que não posso oferecer mais nada 
que um pouco, muito pouco mais ainda 
e ainda menos 
mas é tudo isso e menos 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
antes de mim eu já sabia 
lendo as letras que eram loucas 
e riram da minha régua 
Eu que não sabia ler nem medir 
mas deixava as unhas crescer 
para tropeçar toda vez no tapete 
que roubei da vizinha que se mudou 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
um pé com outro ainda 
esqueceram a luz apagada 
e eu cheguei tarde e entrei 
um beijo as árvores agudas 
não adianta ‐ eu entrei 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
 
 
 
se você tropeça o chão é duro 
e todos sabem da íntima queda 
um aviso é nada para quem cai 
o joelho sabe que a calça sua 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
O chão tem peles e ninguém escuta 
eu dormiria porque ver é pior 
o chão eu piso e quero mais 
é preciso matar alguém 
é logo ali, eu sei, mendigando verdades 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
ouço a música e danço 
pouca é a voz e o espaço 
sei que um dia meu sonhos não terão rostos 
de férias desafiarei o mar e o guarda‐vidas 
A idade da terra e outros escritos  65  

 
a noite conta as mesas que deixo 
os vasos são lábios caolhos 
eu durmo num banheiro com tv 
eles dançam com os pés nos discos 
 
tudo é lento e eu vejo mais 
essa voz que grita geme sem rapaz 
muitos vieram deixando seus filhos depois 
a boca se abre perto de um fio que cospe alta luz 
 
Chegaram na caixa sem nome 
mulheres perto de anúncios de papel 
a voz nua da etiqueta branca 
o baile começou na hora do jantar 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
quando quer, luta contra os lados 
que caem no que se abriu e já se fecha 
 
entende que a terra é um bicho que cava e explode 
que suja e cansa a mão e não se rende, só a casa 
Se os dedos ferem suas costas e rosto 
sem gritar ela recobre a dor e a gargalha 
 
cavar a terra é sepultar um desejo 
é tão pouco o que se ergue fora 
e querem mais  
querem cavar as próprias mãos 
entrar o mais perto de não mais sair 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
eles trouxeram pouco, nem os restos, nada que lembrasse um momento antes ou perto 
de se carregar. Chegaram tão sós que nem suspeitei que não falavam, a porta já aberta, 
todos ali ‐ a primeira vez. Eles andam, juntos, o homem e a mulher, a rua dentro da casa, 
enorme a casa, sem passos e móveis. E tudo ficou assim, sem festas, sons e toques, a rua 
debaixo  do  tapete  que  roubou  a  porta  que  vestiu‐se  de  negro‐fosco  que  olha  sobre  os 
ombros  do  casal  que  anda  sem  parar.  Os  vivos  voltaram  para  a  morar  sob  o  teto  de 
madeira da mesma madeira velha do chão da sala e quartos. Um golpe no telhado, uma 
pedra do céu. 
As manhãs, ninguém as viu ali 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
 
um dedo é olho que aponta perto 
em frente toca ou fere ou sabe  
e cinco dedos duas mãos um homem 
todos que voam correm   nadam nas manhãs 
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com dois pés aqueles nada será uma dor descalça 
sem frio e sem ovos 
voar é fingir‐se  ‐ o céu abre a janela imóvel da próxima lua 
 
 
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outro colo o da praça 
no fim da longa rua leve de sono sem feijão 
vamos ver o que não pesa nas sacolas 
os peixes roubam nosso lixo 
tia velha  se assusta com asas  
nele esse verde que expulsa as folhas 
é inverno de nuvens e espera 
a terra esconde o andar da lata 
silenciosa às bochechas e pipocas 
é dia  é dia  
presentes  
 
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A voz veio no carimbo de limpa distração 
o envelope cai na pressa de mostrar que não é leve aos rostos com silêncios da boca que 
lê 
fim frente e verso um ar que emenda sem linha com calor a roupa de agora 
em pé rir a sede no plástico sem cor olhos abertos sua própria mão segura e teme 
ninguém viu a boca partir‐se cheia 
água água  
morder só abre o que os dedos prendem  
mandaram  abriram 
uma mulher, meu  filho uma mulher está chegando 
logo a carta me roubou a casa 
logo a casa virou metade 
e das sobras posso respirar 
 
uma mulher, meu filho, uma mulher está chegando 
 
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Sabe o que eu digo ? não, nunca fui disso. As mães trocavam ameaças prá existir, os pais 
gritavam  algo  mais  que  as  mães,  os  irmãos  riam  baixo  entre  os  pés  e  mãos  que  não 
arranham.  Isso  desde  o  início.  Sabe  por  que  não  disse  “  era  cedo”  ?  tudo  é  muito,  eu 
entre  bocas  e  pontapés,  de  um  lado  para  outro,  sem  girar,  nem  gado  nem  brinquedo 
porque  não  tinha  fim.  Sempre  alguém  antes  de  mim  em  qualquer  parte.  Sabe  quando 
A idade da terra e outros escritos  67  

chove, as panelas na janela, a casa cega de tanta gente sem voz, muito mais lá fora que 
ninguém viu ? Sabe nos domingos a mesma melhor roupa limpa, muita gente andando, 
muito mais gente que os bichos, que na casa ? Eu, sabia, era a manhã, antes um pouco, 
fria  e  úmida.  Lá  fora  andar,  ter  braços  prá  esquecer.  Sabe  o  que  eu  digo  ?  o  após,  eu 
sabia do após. Ri a noite inteira, dormindo mais cedo, menti. E depois, mais à frente, eu 
sabia.  A  terra,  nossas  meias  em  grãos.  Eu  rindo  sem  parar.  Acordava  antes  de  todos  e 
esperava. Não cansava dos adultos e dos irmãos. Sempre mais, a enxada mais alto que a 
gargalhada, ela ali, no chão de lábios.   
Surdo, eu via a mãe criar dentes na raiva, o pai me arrastar como o mato, aquele que, se 
eu ria, não pude arrancar. Era de tarde, o sol mais vivo, eu nu em casa, círculo de mãos e 
bocas, meu corpo, cravar a cor da noite nas chuvas. 
E  eu  fui  tempestade,  com  a  rouquidão  de  um  peito  doente,  com  a  luz  de  um  lampião 
desregulado. Noite na casa, com chuva e raios. Como as nuvens sem ossos voei contra o 
teto, quente e escamoso. Um rio, em cima, de onde me lançaram, o ar ainda veste minha 
carne. Um céu de culpa enxuga o esforço do plantio. O sangue planta a erosão imunda. 
Eu sabia do após, antes do fim. 
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eles  podem  pedir,  estender  os  braços,  implorar  dos  homens  e  erguer  seus  olhos;  uma 
rua  inteira  para  isso,  em  linha  suas  roupas,  sua  cor,  um  cheiro  só.  Deitados  ou  de 
joelhos, sempre de frente e à vista permanecerão. Dia após dia ali, esse lugar, com esses 
que  já  foram.  Passam  os  dias,  anos,  o  tempo  perde  para  os  que  não  cansam    em  sua 
súplica.  Morrerão  em  vão.  Os  filhos  tomarão  o  suor  dos  pais  e  serão  mais  fracos  e 
numerosos. O que ouvimos daqui, daqui passamos...  
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Um estranho em seu rosto na festa que não acaba 
 
Uma pensão em uma cidade do interior 
 
era preciso que ele fosse, que viesse, que saísse de seu lugar. 
um tempo só, ninguém soube, tudo aconteceu. 
entre homens, a voz é uma luz. 
uma pensão em cidade interiorana 
 
(Dono da pensão. fala falha, nos intervalos. (...)  =  risada nervosa) 
 
‐ desculpe...vejo que alguns já chegaram...a luz não virá mais, somente pela manhã, quem 
sabe...estamos presos, nossas sombras.. não há nada para fazer senão esperar . Vim não 
só para avisar mas a companhia...seu quarto e as pessoas... e hoje é  a última noite aqui, 
sabemos. Tem um pouco daquela bebidinha mágica, o vício ? Bom.... Ninguém conhecia 
isso. Remédio. É de se beber ? tanto faz....  é beber e falar, falar sem ter mais fim. Não sei 
se incomodo meu hóspede. De minha parte, não há problema nenhum, a conta o senhor 
pagou  na  chegada,  tudo  certinho,  feito  de  antes,  de  primeira.  Tudo  para  não  mais;  as 
malas leves, a voz sumindo. Eu achei muito estranho mas o que fazer. Mulher grávida e 
filhos grandes tenho. Muitas filhas, todas se quiser. Um estrangeiro, que não é visitante, 
sem parentes por esses lugares. Turistas / rir.../ turista nessa cidade esquecida por tudo 
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e  todos.  Um  rapaz  bem  apessoado,  educado  por  entre  endereços  de  seus  gestos  pedir 
um  quarto  de  homem  solteiro,  o  senhor   sem  mulher,  sem  amigos  sozinho  viajante.  (a 
gente pode ser isso tudo pro senhor, querendo...) 
Deve ser bom largar suas coisas em um lugar e sair por aí ...  não que eu considere isso 
coisas de vagabundo. Mas o que tiraria de nós nem polícia nem ladrão ? temos  só muita 
gente bisbilhoteira, não é; veja todos aqui no chão;  a vida aqui é comum, a gente sabe de 
tudo; mesmas histórias e só há histórias para se contar e ouvir nessa cidade,  isso prá se 
fazer.  E  a  gente,  como  feras,  gosta  de  se  aproximar  do  fogo    gosta  do  que  tem  luz;  um 
estranho, um belo homem nessa cidade sem mulheres. Quem é você  ? se pergunto não 
importa; eu falo demais... 
 
(Outro ‐ um que não cessa de rir, já ria antes)  Com quem falamos, senhor luz ? chegou 
agora,  depois  de  tanto.  Um  diz  adeus,  aquele  lembra    das  aves,  as  aves  que  voam  com 
um copo e pousam em pratos. Eu não quis caça porque era novo e não deixavam. Mas 
eles foram de manhã, no meu sono. Regressaram com penas brancas e cinzas e com uma 
arara  sem  peito.  Para  comer,  a  paciência  ‐  sem  as  cabeças,  os  dentes  eram  cegos  e  a 
fome não existia. Vi a manhã  verde e revirada na sacola de uma voz que não me ouvia e 
tinha a inumana face de um erro de pontaria. 
 
Noutro espaço é de noite e os homens‐pais tinham medo. Tanto que me deixaram ir.  As 
redes não dormem nem fazem repousar. Um supermercado é fácil quando quem vem é 
mais um que não me vê. 
O nome do meu cachorro é Dick, Dick de cinema, de faroeste, um cachorro que morreu 
correndo  na  frente  da  rua  que  eu  ia  atravessar.  O  nome  do  bicho  é  Dick.  Enquanto 
houver olhos, ninguém quer morrer... 
 
 
 
 
Em frente de minha casa, uma fileira de terra brigava com o cimento. Sem árvores ‐ as 
raízes. Plantava cenouras, mas breve a flor e o fruto. No muro da garagem o sol invade e 
se esconde tapando seu rastro. Um dedo só sabia que o muro guardava seu centro. Na 
terra larga sem plantas e profundidade viveriam a sobrevida que passa. Basta todo dia 
comparar que um dia se pode. Para comer um instante comove o aço com gás. Fora eles 
não  há  rostos.  Verticais.  As  amarras  do  fogo,  sempre  de  cabelo  cortado  que  as  pontas 
dos  dedos  beijam  a  decapitação.  Marcas  na  madeira.  Cortes.  as  infinitas  batalhas. 
Quebram.  Hoje  não  brinquei.  Novos  palitos,  mesmos  heróis.  A  mão  conduz  o  que  se 
quer. São tantos e cada um é o que é.  
Para  o  cemitério  das  formigas  os  fósforos  estão  em  minha  mão.  O  pai  desce  pela 
garagem. O muro como recôncavo é o portão do carro. É sempre esquecido. Um fósforo 
voa, não porque morre. Os palitos tornam e retornam, já não basta a caixa de fósforos, a 
faca.  Os  palitos  sempre  são  diferentes  dos  palitos.  Para  ser  as  histórias,  precisam 
modificar sua parte de cima. Com dois cortes de faca, ficam afiados, agudos, nus e calvos, 
como  se  sempre  apontassem.  O  que  os  diferenciam  são  os  cortes    horizontais  na 
madeira.  Uma  vez  houve  a  cisão,  e  a  festa.  Nas  guerras,  no  frio  e  no  calor,  o  fósforo 
rachou no meio ‐  a brincadeira é cruel. Por mais que se preservasse o fósforo quebrado, 
outros  chegavam,  e  os  heróis.  E  veja  a  gloriosa  mensagem:  fazia  mitologia  com  uma 
coisa tão frágil, que não se movimentava senão em meus gestos, se os fizesse, uma ponte 
entre nada e menos um pouco, uma hierarquia tão coerente como os cães e os anjos, um 
agón  tão  infinito  e  potente  como  o  de  Homero,  sem  nunca  o  ter  lido.    Eles  morriam  e 
retornavam. Pronto, sem mais. Ficou  pendente o túmulo das formigas no muro. Vejam, 
A idade da terra e outros escritos  69  

duas coisas me impressionaram quando era criança; na verdade são três mas a primeira 
não se relaciona com esta história. Dos insetos que voavam, eu tinha terror do zangão. O 
elemento aéreo me interrogava ‐ era o medo. Outro, no túmulo de meu muro só havia 
formigas  e  cortadas  em  partes,  das  quais  eu  esquecia.  O  importante  não  se  dava  na 
morte,  mas  após.  A  forma  da  formiga  me  lembrava  do  zangão.  Era  preciso  estar  bem  
morta  para  eu  me  aproximar.  Mas  o  incrível  é  que  o  buraco  do  muro  encobria  as 
carapaças  mortas.  Meus  heróis  de  palito  de  fósforo  não  tinham  rosto;  meus  sacrifícios 
no túmulo também. Paganismo... Eu confiava nessa coisas que não falam e eu falava, e ,o 
pior  (não  sei)  eu  desejava  por  eles.  Nos  palitos  de  fósforo  e  nas  formigas  não  havia 
mulheres. 
 
( Outro ) é, foi buscar a roupa, não a que tinha, tinha deixado lá. Era, era dele, importava 
sim, a roupa de um homem, de couro, uma cor, era a roupa dele e de mais ninguém. Se 
me  perguntam  ‐  o  talvez  ‐eu  digo,  a  jaqueta  de  couro,  marrom  até  a  cintura,  era  dele, 
todos sabiam. Rapaz bom e asseado, mandou lavar. Não sai, ele em sua casa , nu sem a 
roupa de couro, dia noite, a vida, mas a pele do homem é o que ele acredita. Sem ela, os 
sonhos. Perigos, dores, mas vencia. Não a busca, pois já se tem. Demorava, a roupa era 
demais e o relógio é surdo para os desejos. Em casa, longe de tudo, a vigília na distância, 
ele o único inteiro naquele couro. Uma vez banhou‐se e os rios foram pouco, neles jogou 
a roupa. De olhos fechados já sabia que além dos dedos, o cotovelo encaixa sua dobra.  
Um  homem  e  seu  casaco.  Frio  e  calor‐  o  couro  é  prá  evitar  mas  prá  permitir.  Com  a 
jaqueta de couro marrom sabia o clima e percebia as pessoas. Nunca ninguém viu esse 
homem sem sua pele única. 
Uma vez a mulher o quis, deitaram . Tirou a camisa esquecida debaixo, a calça debaixo 
dos órgãos, a meia no fim dos pés ‐  ” homem, eu te quero. Eu te quero inteiro, e tudo, e 
teu nu. Tira essa pele de boi que a noite tem várias luas”  e nosso amigo falou:  “minha 
filha,  eu  sou  mais  velho  que  tu,  eu  quebro  essas  paredes,  eu  te  faço  torcer  essa  franja 
que cabelo espetado quer a mão que apare. Mas eu não tiro esse casaco ”. 
A mulher não quis. E era uma. Tinha trabalhado no arrozal, no cafés de beira de estrada, 
uma mulher e tanto, em sua voz com resto de café na boca. 
E ele me disse isso num desses rodízios de beira de estrada, me dizendo que buscava o 
marrom sem brilho, a proteção das costas quando uma só vez tirou. De camioneiro tudo 
se pode; mas andar sem carga há seis anos por um couro ? 
Pois a dita, a recusada, não se vingou de um modo que só elas sabem, quando perdendo 
prá algo que ninguém acha proveito ?  pois a dita não embebedou um outro que lhe fez 
promessas e carícias interrompidas pela ordenança dela que roubasse o casaco ? 
Só um bêbado para aquilo. Que o homem era forte e diverso. E era noite com vento, e daí 
vozes.  Sem  lua  e  sem  carga  uma  parada  para  não  dormir.  A  mulher  no  retrovisor  ,  os 
olhos  evitando  um  dilúvio.  O  outro  querendo  sem  saber  o  que  queria  e  era  noite  sem 
resposta. O corpo da china balançava no meio da pernas e o arrependimento bateu. Saiu 
de  seu  quadrante  passo  a  passo,  com  o  peito  branco  e  soluçante.  Já  o  outro  tomava  a 
pele  largada,  meio  sem  voz,  aquela  da  mente.  Se  nosso  mano  velho  chegar  primeiro, 
traça a dona do rodopio; se o rato antecipar a corte, o orgulho se ausenta e a vida pede a 
morte. 
Um casaco de couro, meu deus, e tanto sofrimento. A roupa não protege o homem, e a 
nudez é sincera ?. O forte caminha confiante, que uma mulher vale mais que uma antiga 
praga. 
E quem é o rato ? ele sabe os caminhos. Prá fora, a confiança não tem pressa. Mas quem 
pensa no tempo já não é desses confins. 
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Vejamos:  a  nós  tanta  oferta,  todas  iguais  nas  vestes  e  na  nudez,  tanta  opção  sem 
dificuldade  e  quanto  raciocíonio.  Imagine  pensar  o  que  melhor  se  adequa.  Imagine 
escolher para proteger‐se,  e nem nos fazem mal 
Um casaco e  não a pele. Sujo ‐ o cheiro. O couro tem as cores de seu fim. 
Tão perto, e ela não era a única. Bois,  o céu nem é uma hipótese. 
O rato chega. O desnudo também. Ele a quer, o corpo moreno, os longos cabelos, as mão 
ásperas que vão aprender na cama, estranha cama de lata, longe do baro cru e invisível 
ao sol que se ergue na casa. 
Pouca luz entre as palhas e as paredes. Como ser doce nessa hora? Um homem vai voltar 
para o presente, quente e viva, uma voz eu quero. Ser homem é ceder. 
O dia esconde‐se lá fora , é verdade. nem ela, nem ele sabem. Cobrem‐se com a inveja do 
rato. No canto da boca, a boca invade numa linha o rosto. 
 
 
ela virá quando for preciso. A espera mudará em despedida daquele lugar e uma noite 
de  amor  bem  longe  dali.  As  vozes  em  sua  cabeça  se  confundem  e  são  esquecidas  pelo 
inevitável.  As  coisas  podem  ser  ditas,  os  homens  se  confessarem,  os  destinos  criarem 
francos despedaçados entre gestos e súplicas. Nada, porém, impede que ela venha, nada 
impede  que  se  deixe  de  esperá‐la.  No  quarto,  as  visitas  são  hóspedes  de  uma  última 
noite.  Para  lá  vieram  como  o  estrangeiro.  Um  encontro  que  não  mais  se  repetirá. 
Despojaram  suas  roupas  e  suas  vidas.  Cada  voz  em  seu  monodiálogo,  tocando  mais  a 
escuridão entre as paredes que a porta de saída, que a volta para a cidade em sua última 
noite  sobre  a  terra.  Não  se  podia  ver  o  teto,  o  chão  substituía  as  cadeiras.  Todos  em 
volta  do  estrangeiro,  falando  exasperadamente  que  é  intensa  e  desesperada  a  fala  dos 
que vão. A verdade disseram, escondida por entre as simulações e os silêncios, palavras 
feriram  os  ouvidos.  O  estrangeiro  escutava  calado  prestando  atenção  na  porta  que  a 
qualquer  momento  se  abriria.  E  ele  ,  erguendo‐se  de  seu  acampamento  no  hotel, 
deixando à fogueira dos tempos os relatos dos homens, sorri serenamente para aquela 
que na entrada do quarto lhe diz a única coisa importante nessa vida, a boca como um 
golpe demorado que recolhe seu amante para outro quarto em outra cidade.: “Deixa tua 
casa e me segue. Não é preciso mais a espera.Fecha os olhos para sempre e vê como é 
quente minha mão. Eu sei onde toco e violo o corpo desejado. Faço tremerem os dentes 
e os membros até a boca espumar sangue. Há uma outra noite que não tem fim, na qual 
não se fala, apenas as o parto, o ventre .” 
 
 
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Menino, ver é não saber. Nas mãos, a boca fica perto de tudo. E olha pra isso, os dedos 
sempre estão ali, tanto e a mesma coisa .  De noite não fica escuro, noite e essas coisas . 
No jardim de infância tem a noite, a que vai nos olhos, as bruxas, pretas, pretas, pretas. 
As  asas  do  bicho  de  dia  fazer  voar  e  são  tentação;  de  noite,  não  se  vê  nada,  as  asas 
cresceram. De dia elas voam e se jogam feito presente; lembra quando cai nesse desejo; 
a bruxa é a mulher que abre seu corpo mas não se vê menos ainda. É pouco, bem pouco 
é só tocar e trazer às mãos. A borboleta voa mas tem tanta cor. Ela não chega perto da 
gente. A bruxa provoca. Ela pára quieta como algo sem vida, uma pedra. Faz mal sim. No 
escorregador, nos túneis, ela está lá. Uma borboleta já fala em sua bondade, por isso que 
a gente gosta de não tocar mais de enfiá‐la num saco,socando  até morrer. Já a bruxa, ela 
não é viva nem tem olhos, tem sim. 
A idade da terra e outros escritos  71  

Em  frente  da  praça  o  prédio  de  Manuel  Loucura  pegou  fogo,  quarto  andar,  correndo 
tudo,  não  as  pessoas,  mas  as  coisas,  era  bom  demais  tudo  se  acabando  e  sua  mãe  e 
Manuel  sem  fazer  nada  e  a  gente  levando  tudo,  um  pouco  ali,  um  pouco  depois  sem 
valia.  Bom  era  o  fogo  e  a  novidade.  Mas  ele  abriu  o  quarto  e  as  bruxas  voaram  muito. 
Tinha  que  se  jogar  no  chão.  Em  frente  à  praça,  no  prédio  mais  alto  e  velho,  com 
madeiras  quebradas  sobre  os  pés,  sem  cores    o  grande  lar  de  Manuel  Maluco,  o  de 
sempre, encurvado, com enormes casacos azuis, no frio e no calor, um prédio ninho das 
bruxas  que  na  areia  molhada  do  parque  em  frente,  escuras,  tinham  a  pele  fibrosa  e 
todos levavam as mãos sujas para o rosto cego prá sempre. 
Era  fácil  o  perigo.  Manuel  Maluco  queimou  o  prédio,  o  parque  areado  era  o  jardim  de 
infâcia e para subir as escadas era preciso ser ninguém. 
Manuel Maluco tinha mais roupas que o corpo. Era gordo porque sua mão era o mal na 
boca  que  mandava.  Os  bois  esqueceram  a  donzela  que  só  amou  uma  vez  e  trouxe  o 
campo prá cidade. 
Veja uma cama cheia de preparos para o corpo. Entre as tábuas e o colchão, a rouparia 
pensa amenizar o toque. Mas não é assim porque o charque e não o boi, a dança e não a 
faca  ?  Sempre  um  adiamento  que  depois  se  esquece.  Se  algo  que  se  quer  mais  que 
permaneça. Mas o tempo longo é breve e a vida inteira se destina por esse instante. Nem 
passado nem futuro. Basta o aceite. 
Vejamos: aquele boi eu vou matar, a parentada está chegando, a casa recebe todos. Um 
boi é, são os golpes no sangradouro e pronto, é tudo logo tão depois. Depois disso, é só 
resolver as coisas. O que fica prá remediar a gente faz. 
E como se espantam as bruxas; o nome pouco diz. Só se sabe que é algo frágil e cega em 
sua  pelúcia  que  atrai.  Aí  que  está:  a  bruxa  depende  do  olhar  e  das  mãos.  Aquele 
invertebrado  voador,  identificável,  ignóbel  e  diminuto  só  existe  querendo.  Entretanto, 
ele voa e pousa, e parece estar tão perto ou longe quanto queremos.  
Um dia, em dos brinquedos do parque ( um cano grande de esgoto pintado, um caminho 
para se abaixar e sair) eu peguei na bruxa preta, sem olhos, os pêlos sedosos, ela morta, 
esse bicho. Não voou nem me mordeu, a coisa preta em minha mão, sem peso senão de 
meu  medo,  um  monte  de  folhas  negras,  nessa  Porto  Alegre  escura  de  inverno,  fria  e 
encasacada, onde só se vê os olhos e se imagina o corpo. Ali estava a bruxa, um grande e 
assustador inseto, agonizante em minhas duas mãos. Peguei um pau e comecei a bater 
nas  asas  abertas  que  se  confrontavam  com  a  areia  branca  do  chão,  forte  muito  forte 
batia sem saber porque e sem parar. Muita areia voou e mais. Eu batia no bicho como 
nunca bati em gente. Não era ódio. Só eu não queria ficar cego. E não parei de bater e a 
bruxa não perdeu sua forma e  voou e eu não via nada. 
O que era aquilo ? um prédio que queimava, um maluco e sua mãe‐avó e eu não sei, a 
areia  branca  em  frente  no  chão,  sempre  molhada  e  meu  jardim  de  infância,  as  marcas 
negras de um olhar que escondia seu rosto. 
Naquele dia eu corri por entre as chamas, entre rostos e portas, e parei no quarto mais 
alto, sem ajudar ninguém, sem saber que eu era um menino de cinco anos, fuçando as 
entranhas de um prédio que, entre suas gavetas e caras, implorava por morrer. Eu matei 
a bruxa  quando a vi da janela do quarto que pegava fogo. 
Eu só percebi que as pessoas riam porque andavam. O rosto precisava dos pés e correr 
era voltar com um presente para as crianças. 
Meu nome era para ser Alexandre, nome grande, macedônico, nome que se impunha por 
si.  Se  eu  tivesse  sido  Alexandre,  quanta  coisa  teria  mudado,  tanta  diferença.  Mas  nem 
todos me acompanharam, ainda bem que não , eu, Manuel Maluco... 
 
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mostre as mãos para a câmera. (uma voz) Pior é não ver mas as mãos não fogem. Que 
um  cai,  o  rosto  tem  olhos  fechados  e  as  palmas  sangrando.  Quem  pede  cega  este  aí, 
moeda  maior  que  um  rosto.  Eu  não  vou  mudar  o  teto;  o  pulo  só  diz  que  as  mãos 
esquecem das orelhas. Muito bem,  
‐  duzentas  abdominais.  E  contando.  Junto  com  os  pés,  flexiona‐se  o  resto.  Acima  e 
abaixo,  ritmo,  força.  É  impossível  cair,  apesar  do  chão  tão  próximo.  Treinados,  podem 
repetir  o  movimento  quando  e  sempre.  (bate  nas  costas  de  alguém).  Belo  espécime, 
igual nas idas e nas vindas, nada leva nem traz. A queda é inevitável; erguer‐se ninguém 
esquece.  Tudo  pesa  com  o  tempo  ‐  a  novidade  não  está  no  ato.  Repetir  é  lembrar,  é 
esquecer.  Primeiro  você  sobe  e  desce.  De  tanto  subir  e  descer,  olha  para  os  demais  e 
compara  .  De  início,  desigualdades.  Uns  fogem  do  pó,  outros,  demoram  acima.  Só  o 
fôlego  aumenta  e  desaparece.  Para  isso,  lembrar  dos  escravos  carregando  as  imensas 
pedras  para  túmulos  de  reis  que  nem  as  rezas  demorariam  um  dia;  as  descargas  dos 
navios  ‐  não  lhe  pertencem  o  cansaço  e  a  memória  .  Os  depósitos,  armazenar  é 
comprovar que,empacotados, os outros arderão imunes à ausência do que mendigam. 
Daí novamente outra vez. Acima e abaixo. Sem prazer, sem nome, os mesmos. Logo logo 
as distâncias ficam iguais e o esforço diminui. É preciso não pensar. Um corpo apenas, o 
seu e depois nem isso. O impulso que não vai além. O tornar que não chega ao fim ‐ eis a 
eternidade. No início, a novidade. Em seguida, o costume. Não temos pernas mas flexões, 
nem  braços,  flexões.  O  abdomen    é  um  desafio.  Voar  ?  que  loucura.  Ferir‐se,  por  que  ? 
Mais  rápido  que  todos  vêem,  todos  pedem  algo.  Estamos  perto,  muito  perto  da  total 
suficiência. Nem precisaremos de platéia. As luzes se apagarão. O ginásio desaparecerá 
entre as sombras. O treinador foi embora. Os atletas sumirão no silêncio. Mas você não 
pode  parar.  Nova  turma  espera  o  exemplo.  Acima  e  abaixo.  O  grito  de  dor  ou  de 
pergunta a musculatura assimila. Eis o último guardião, aquele que lembra nossa razão 
de viver. A sentinela, o modelo. Como era mesmo o nome dele.... 
 
 
 
 
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Não escuto as formigas, são mais rápidas que a voz; não escuto as folhas, são mais lentas 
que  as  formigas.  A  formiga  é  uma  planta  que  corre  para  enterrar  seus  mortos.  Uma 
planta é uma formiga enterrada que cresceu demais as asas. Homens são formigas pois 
andam  rápido  e  enterram  seus  mortos.  Homens  são  folhas  vivendo  mortos  voando 
presos  à  terra.  Comem  para  viver,  alongam‐se  na  morte.  Formigas,  plantas  e  homens. 
Plantem  formigas  que  enterrarão  os  mortos.  Plantem  árvores  que  o  vôo  virá.  Plantem 
homens que os gritos serão pedidos. Os que colhem, calam e cantam ‐ não ouvem. Sobre 
a  terra  esqueceram  as  covas  abertas.  Com  atraso  viram  e  já  sabiam  que  uma  formiga 
não é árvore que não é homem. Uma formiga come as folhas que o homem planta. Isso 
cansa o homem. Um menino brinca na terra. Cava um buraco que logo deixa e esquece.  
A idade da terra e outros escritos  73  

 
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Antes de mim eu não via a porta  
aquela 
As meias se arrastavam no chão 
era preciso alguém falar 
Um dia não fez sol para sempre 
minhas sandálias diziam que você viria 
e assim compreendi que nunca mais estaria só 
 
 
Eu não era assim, a foto, a outra 
nem foi assim que aconteceu, desse jeito, enquanto eu contava 
ali não fiquei em casa 
não sei, não vi, não quis por você 
meus pés cocem eu vou rir e é só  
um adeus é tudo   meus pés, eu quero rir 
 
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O que move as coisas 
se tudo cai e sangra 
Não viram que eles viriam 
Eles chegaram sem ninguém  
Só na casa há luzes 
a boca escura que devora os distantes 
 
 
 
 
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a velha foto de brim e chumbo 
tão pesada em metades escondida 
cedeu ao branco de suas costas sujas 
Mão nenhuma dividiu meu rosto 
que quase ri no erro da degola 
ao meio    a dobra roubou os olhos 
dentro de um livro    fora da sala 
 
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Natal 
 
todos vão morrer com seus presentes 
cercados da demora dessa noite que sorri 
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pouco a pouco a casa conta as partidas 
 
Firmino ainda não casou com aquela 
Odésio come terra com abacate 
Penha, Marta e Antônia  
 
rasgaram as cores para sentir o peso 
pesaram as coisas para medir o afeto 
comeram cedo com avós e netos 
pijamas novos ajudam a dormir ? 
 
o azul se afina no sono que não vem 
as camas se contorcem sob o peso do interdito 
 
o corredor avisa o fim da noite 
 
Firmino fazia trovas 
Odésio contava estórias 
Penha, Marta, Antônia 
 
ninguém dorme nessas camas velhas 
as vestes dadas não seguram os corpos 
há muita comida, meu deus, os cães lá fora  
não é cedo e a luz está paga ? 
 
 
 
 
 
 
(o galo lembra que a noite secou no calor da família 
ninguém amou, correu ou bebeu) 
 
vestiu‐se o céu com rostos sem bocas 
 
Firmino pega às sete 
Odésio volta pro hospital 
Penha, Marta, Antônia 
 
Os carros recolhem meninos sonolentos 
a estrada vence a rua     longe sem poeira 
é dia quente fedendo bosta de galinha 
‐ as uvas, esqueceram de levar as uvas... 
 
 
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eu  vi  as  peças  para  esquecer,  usá‐las  quando  preciso;  ganhar,  se  o  jogo  desafiava,  era 
inteligente,  perder  cansado  de  ganhar  e  provocar  reação.  Jogar  sozinho,  um  homem, 
dois homens, todos ali vendo as regras sendo obedecidas. “ei, jogue essa aí, seu idiota, 
essa mesma, seu merda estúpido”. Ah, se soltasse essa pedra, fácil prá mim, fácil. ”ei, ele 
A idade da terra e outros escritos  75  

me  olha  porque  ?  gosta  de  mim.  Bicha.  Pára  de  bater  na  mesa.  Eu  vi,  jogou  duas.  Está 
com o morto. Burro” 
você embaralha, deixa sob a palma da mão o que você quer. Leve, círculos que não saem 
do  lugar.  Deixe  que  ele  pegue  primeiro.  Relações  de  confiança.  Demore  para  jogar, 
assobie, fale, não demonstre que não tem as peças, mova as peças, que estão nas mãos, 
perto  de  ganhar  não  sorria,  esconda  o  rosto  mas  ataque  sempre,  faça  ruídos  e  erga  a 
cabeça para ver a desconsolação do perdedor. 28 peças, tudo está ali. Confie nas peças, 
contradiga sua emoção, olhe como ele enche as mãos de peças enquanto você espera o 
golpe de misericórdia. Um contra um, a melhor de todas. Sem duplas, só você, você joga 
dominó sozinho. Um jogo não precisa de mais outro. 
você viu as peças, viu  mesmo, viu como são as mesmas, que são 28, sete para cada ? viu 
as peças do parceiro e ajuda as peças ficar de pé. O importante não é ver as peças mas 
entender  como  aquele  joga.  Vamos  lá,  desenvolva  mais  esse  adversário,  golpeando‐o, 
faça‐o vivo, provoque‐o. Ele é jovem e assimila pelas perdas. Perde bastante no inícios 
mas    imita  seu  estilo.  Era  meio  caipira  e  agora  sabe  quando  você  foge  do  jogo  porque 
não  tem,  quando  blefa,  ele  sabe  que  você  mente  e  mente  igual  a  você.  Tudo  agora  é 
decidido nos últimos lances, no acaso das peças extras. Não há controle. Você não joga 
com outro. O velho truque de sair com seis ele também faz. O velho truque de pôr duas 
peças na sua vez, ele fez mais de uma vez. Aproveitar sua distração e colocar peças foras 
de  lugar  ou  ver  as  peças  extras,  tudo  foi  aprendido.  Não  há  mais  jogo,  mais  tédio. 
Invente outras jogadas, inverta suas técnicas. Mesmo tendo a peça, não a coloque. Tendo 
muitas de uma série, guarde‐ as. Não os truques, mas as jogadas, o inesperado. Você está 
ganhando,  varie  o  jogo  e  confunda  o  esperto,  apontado  seus  truques.  Você  não  faz 
truque,  joga  e  ganha.  Mas  logo  ele  assimila  o  novo  estilo,  faz  as  mesmas  jogadas,  é 
agressivo com o mesmo repertório. Deixa tudo para o fim e espera o adversário mostrar 
seu  poder.  Guarda,  compra  mesmo  quando  tem  ,  não  joga  o  dobrão,  encurralando‐se 
para obrigar o outro a jogar seu jogo. Foi o que você fez, não. Mas se ele faz, isso você já 
sabe, ninguém ganha com a técnica agora. Todos flutuam no acaso. Cada uma marca seu 
oponente, como se construíssem um muro intransponível que um tufão da sorte ou do 
azar  destruirá.  Não  há  vitória  mas  tédio  contínuo.  Ganhar  é  sempre  certo  antes.  Jogar 
sozinho é ter o controle, é possibilitar esse domínio. Ei, deixe de zanzar de um lado para 
outro. Há um só lado. Tudo é um jogo de um jogador e de um derrotado. Você sempre 
terá as melhores peças pois você embaralha. Senão, troque as peças  pelo canto da mão, 
ele  não  está  vendo.  Se  as  deles  forem  muito  boas,  jogue  para  que  perca,  para  que  não 
forme  estratégias.  Em  perigo,  deixe  as  peças  dele  cair,  você  viu  sem  querer, 
principalmente  quando  esqueceu  que  viu.  Mande  no  jogo,  crie  as  situações  mais 
impossíveis, as alterações do poder do jogo mais inesperadas. Force tudo para quando a 
trinca  de  ponta  com  dobrão  fechando  as  pontas  que  o  miserável  não  possui.  Faça, 
compara muito, mas antes, embaralhando, colha seis números de uma série. Seis? sim, 
uma para ele cansar de perseguir. Mesmo assim, se perdeu o controle do jogo, nada está 
perdido;  faça  com  que  ele  desista,  que  faça  um  elogio  à  sua  inteligência.  Console‐o 
dizendo  que  aprendeu  com  grandes  mestres,  que  participou  de  torneios,  que  tem 
conjunto  de  peças  importados  folheados  a  ouro,  outros  conjuntos  pertencendo  a 
campeões  famosos  do  passados,  diga  que  viajou  muito  por  causa  de  sua  habilidade, 
conhecendo  países  e  mulheres,  que  dinheiro  nunca  foi  problema,  que  escreveu  livros 
sobre o assunto, que realizou expedição arqueológica recuperando uma forma primitiva 
bem  remota  das  peças,  perto  de  um  mamute.  Mostre,  nos  grandes  momentos  da 
história, o jogo este presente em fatos e pessoas, sustentando guerras, reinos, filosofias, 
amores  e  religiões.  Demonstre  o  saber  oculto  dos  movimentos  das  peças  e  o  sentido 
mistérico  da  peças.  O  tabuleiro  bicolor,  as  peças  bicolores,  o  sentido  e  a  existência  de 
uma verdade que o próprio Cristo confessou em seu Sermão da Montanha. Que Platão 
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expressou na descrição de Atlântida, que os descobridores tomaram como mapa para as 
viagens, que os astronautas viram lá da lua, que os genes copiaram em seu modelo de 
forma,  tudo  isso  em  seu  grande  livro,  um  livro  não,  uma  enciclopédia,  365  tomos  de 
1440 páginas da história do jogo. 
E use modéstia, lembrando que tudo começou quando pequeno passava férias na casa 
do  avô,  um  grande  jogador,  famoso  internacionalmente,  cansado  dos  compromissos, 
morando  no  interior  de  uma  cidade  do  interior,  desconhecido,  violonista,  boêmio, 
mulato, rouco, manco que morreu rindo sem assustar. Não morreu, parou de assobiar. 
Tinha um dedo grande maior que a mão, que os velhos diziam que era coisa de velhos, 
um dedo que era um olho, o avô mais estranho, o avô um outro. Soube tanto da mística 
que foi castigado com o imenso dedo, para que todos olhassem o bizarro antes de vê‐lo. 
E disso ele morreu. O dedo foi crescendo, encurvando‐se para trás, levando o resto do 
braço para as costas. Não podia mais tocar violão, nem segurar as pedras para jogar. Um 
dia, o fim, o dedo sumiu e ele, abatido, desistiu de viver, riu e morreu. 
Mas  não  antes  esconder  os  segredos.  Eu,  o  neto,    jogava  os  dias  e  as  noites  com  ele. 
Jamais ganhei. As peças e a mesa eram maiores que o menino. A criança nunca triste e 
imprevisível  era  a  brincadeira  do  pai  de  sua  mãe.  Na  verdade,  não  havia  regras,  o 
netinho  esquecia  tudo  e  ria  de  perder  na  gargalhada  do  avô.  ”Venha  você,  mas  não 
esqueça  do  menino”  despedia‐se  quase  sem  fôlego  o  grande  jogador,  assobiando  a 
mesma música sem melodia. Soprava fraco, mesmo enchendo as bochechas, zunindo um 
som de cais distante ou do apito da chaleira. Um misto de hálito e cuspe impedia tanto o 
cansaço  como  a  concentração  do  menino.  Logo  após  o  fim  da  partida,  o  assobio 
distendia‐se em imensa gargalhada. Todos riam, os dois no jogo do avô. Um dia, um dos 
últimos, ficaram até tarde, façanha nova, fortes os dois na vitória e na derrota. O garoto 
atrapalhado derrubava sempre suas peças ou acreditava que, se fosse no banheiro ou no 
armazém, o vô não veria suas peças. Pior: ele mudaria as boas peças por podres. Esse foi 
o mais longa dia da vida do neto do grande jogador. Tarde conversaram, não riram mas 
palavras. “Ainda não avô, ainda não. Diz qual o segredo do jogo”. O avô não ri, perde o 
sono; as mulheres em vão chamam seus companheiros. ” Café. Faça café prá nós. Sempre 
bebo café jogando”. Essa era a única verdade. “Não veja minhas peças avô, já volto”. O 
agudo da chaleira preenche a salinha simples dentro da cozinha . A desequilibrada mesa 
de  madeira  entoalhada  sente  o  peso  do  bule.  Nada  muda,  o  avô  não  perderá. 
Acompanhando cada jogo, o neto ganha do avô na quantidade bebida do café. Termina a 
noite,  o  bule  e  as  esperanças  do  menino  que  acreditou  no  velho  do  grande  dedo. 
Arrastou‐se  rindo  para  seu  quarto  com  um  sorriso  no  rosto,  sem  músicas  e  ruídos  na 
boca,  tudo  do  tamanho  da  imensa  noite  escura  cor  de  borra  de  café  que  cercava  o 
interior do interior. 
Era  uma  despedida,  um  outro  avô,  uma  outro  criança,  outro  jogo.  Meses  depois,  no 
hospital chamou a todos, abençoou e riu diferentemente para cada um. Para mim, ficou 
seus olhos negros daquela noite daquelas xícaras, da noite que não consegui dormir, da 
cama  pequena  para  quem  crescia  buscando  fugir  de  uma  luz,  outra  a  que  pisca  em 
frente de mim e no meu corpo, os dentes rangendo, o choro contido, para não acordar a 
mãe e os outros. Como não ser senhor de mim mesmo, perder para meu corpo, ter algo 
comigo, uma outra coisa em mim. Batia nas pernas, fazia promessas, odiava quem era, 
mordia  os  lábios,  fazia  momentos  mínimos  como  descargas  imperceptíveis,  imaginava 
situações as mais diversas para não estar ali e tudo que imaginava reforçava o menino 
(olhos duros) na noite que passou. Essa foi a primeira noite que não dormi, lutei comigo, 
queria  dormir  para  não  errar  em  estar  acordado  com  o  novo  dia.  Um  galo  rompeu 
minha  clausura.  “  Mãe,  meus  olhos  estão  duros  ”,  maldisse  chorando.  Do  outro  lado 
desabou  a  maior  gargalhada  rouca,  contínua  e  total  que  ouvi  de  alguém.  Entre  tosses, 
ranger  de  camas,  a  madrugada  dizia  adeus.  Todos  começaram  a    gargalhar  também. 
A idade da terra e outros escritos  77  

Após um beliscão, minha mãe seguia seu pai. A cama estava viva, creio que ria também , 
em suas molas e palhas. De todos os quartos, as vozes não tinham língua , perdendo‐se 
na escuridão de garganta que expulsa um grito risonho escondido, com algo engasgado. 
O  grande  jogador  morreu  e  meus  olhos  não  se  fecharam.  Na  mesma  mesa  já  sei  como 
evitar  que  as  peças  caiam.  Assobiando,  jogo  sem  parceiros  comigo.  A  vó,  bem  noite, 
aconselha  ” Filho, jogar sozinho é jogar com Satanás”. 
 
 
 
 
 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
eu  
que surjo nas madrugadas 
entre os olhos de quem acorda e não me viu dormir 
visto‐me  com pressa de fazer‐me indigesto 
carcaça espessa de ontem para a cama e o beijo  
Um  acaso 
uma lembrança 
os restos dos instantes que se pagam 
eu                                 novamente 
 
sem bater a porta a luz vem em menor segredo que a fuga 
uma manhã para rir lá fora de seu corpo  
não volto mais prá casa 
essa verdade não pode me abrir a porta 
 
( Quando eu saía nas primeiras vezes  
com a alma úmida  sussurrava para ninguém ouvir 
"eu estou morrendo, eu estou morrendo..." 
lentamente 
era assim que tudo se tornava sério 
Hoje eu já nem sei mais o que aconteceu 
se escutei aquela voz  
se cheguei em casa) 
 
Eu 
que surjo nas madrugadas 
escuto tuas histórias 
em troca da noite sem sonhos 
 
 
 
Eu  
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
(...)deus  comeu  peixe  estragado,  peixe  velho,  que  não  pescou.  deus  não  morreu  não, 
meus meninos, deus montou barraca na praia e vende pinga e milho verde (...) 
  78  

 
(...) jogue sua linha e esqueça, dê as costas prô mar. Você vai saber depois as razões e as 
lembranças. Só mais tarde as kombis chegaram, levar você com os outros. Amanhã não 
volte. A mulher dos peixes pode se aborrecer (...) 
 
(...) um dia eu tive sede por todo o corpo, eu todo areia ao sol de meio dia, pisca‐ pisca 
sem brilho com dó de mim. Tentei abrir a boca das águas entre as ondas que escondiam 
sua boca ‐ coragem mordendo os pés de adeus. Então bebi o mar, o que não tinha, o que 
me deram, o que não restou, o mar, gente, todinho aqui, ó, aqui dentro. Ai, meus lindos, 
o mundo secou(...) 
 
(...) ‐Vai o que, mano, algo prá cabeça, prás mãos , prôs pé ?  Uns anel, umas correntinha, 
colar ? Aí, mano, vai escolhendo, passa um gole aí da gelada. Um rei, viu, com essas coisa 
nas mão. Cheio de prata e barbante. Olha que eu não vendo prá qualquer um... Fiz prá 
você. Tem seu nome entre as pedra. Use um no nariz, num só, o da esquerda, saindo de 
casa; outro lado depois, antes de dormir. Segura, mano, aspire bem fundo, até sentir seu 
peso, o seu, o da sua vida sob o guarda‐sol. Ei mano, acorde ‐ a cerveja acabou (...) 
 
(...) ‐ Amiga, amiga, qual dos dois, hein, qualquer dos dois mas que seja homem, desses 
que cospem sujando a barba assim, com as mãos, só com uma, até o cotovelo, e arrastam 
a gosma pela cara peluda, raiva e nojo após o beijo pago, aqui mesmo na praia, em pé, 
amiga, amiga, como nós, assim boca a boca, só prá respirar nosso ontem (...) 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
Ouviram ? uma queda trouxe sangue sujo no brim lavado, elas, a que limpa e esconde. 
Meu  senhor  ajoelhou‐se,  soube  que  o  homem  tem  partes,  o  baixo  pesa  e  atrai,  o  rosto 
não tem voz quando os degraus na cor viram dúvidas. Cair sempre, como antes... 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
 
 
 
(minutos  parado,  inerte)  de  joelhos,  calvo,  roupas  brancas,  descalços,  mãos  nas  coxas. 
Vazio  nos  olhos,  nada  que  signifique  algo,  dor  ou  esperança,  um  homem  que  não  foi 
visto.  que  não  sabe  que  há  outros  que  não  sabe  que  é  homem,  que  não  sabe  se  é  o 
primeiro.  O  corpo.  Olhos  abertos,  inertes  ele  não  é  árvore  nem  meditação.  Antes,  bem 
antes, não o vento ou o nada. Um corpo que não é conceito. Calvo e sem pensamentos, 
nada  esconde  ou  defende.  Não  diz  não  a  nada.  Não  protesta  não  responde  a  coisa 
alguma,  antes  não  o  há.  Não  é  o  último  pilar  no  niilismo  extremo  da  anomia  pós‐
moderna, nem o Adão edênico, a nostalgia de um princípio. Nem deus nem homem. Nem 
em  pé  nem  sentado,  seu  entre‐estado  não  é  agonia  nem  hesitação.  Seu  silêncio  não  é 
punição  ou  incapacidade.  Sem  linguagem  e  sem  sentido  não  provoca  nem  desiste.  Não 
anda,  fala,  nem  normal  nem  excessivo.  Roupas  brancas  como  o  rosto,  rosto  vestido  de 
corpo,  cabeça  no  corpo  vestido,  sem  fissuras  e  pontos  de  interrupção.  Ele  interior  ali 
naquele momento. Oposto a coisa nenhuma. Um rosto que poderia dar vida às emoções 
mais diversas, um corpo que receberia as pessoas mais diversas, pés que levariam aos 
lugares  mais  diversos.  As  mãos  sobre  as  coxas,  os  pés  sobre  o  chão,  a  roupa  sobre  o 
corpo,  a  cabeça  sobre  seus  ombros.  Um  homem  e  seus  lentos  e  imperceptíveis 
momentos  se  escondendo  sobre  nosso  assombro  e  repulsa,  se  um  engano  o  maior  de 
A idade da terra e outros escritos  79  

todos agora diante de nós se fizesse entre nossa ilusão do que vemos e a verdade que 
não  percebemos.  Em  breves  e  estudados  instantes,  seus  pés  atrás  empurrariam  o 
homem que permanece calado e imóvel, tão próximo de nós estaria, tão distante quase 
em  nós,  um  tempo  curto  (  outros  entram  e  são  iluminados.  sete  pessoas  movimentos 
frente, atrás e circular) 
 
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
‐  a  comida,  vá,  seu  pia,  é  quase  meio‐dia.  Corra.  vá  de  bicicleta.  Lavou  as  viandas  de 
ontem?  não,  claro,  já  sabia.  Como  os  espetos  do  churrasco,  o  carro  no  domingo,  os 
dentes  toda  noite,  um  banho  e  xampu  nunca,  esse  cheiro...  vá,  seu  pai,  nós  no  almoço. 
Não  demore.  Não  é  a  fome‐  isso  faz  parte  do  dia.  Antes  de  vir,  veja  se  tudo  está  bem 
tampado, se as carnes vieram. Arroz é promessa ou engano. Pára de biliscar os bifes, tire 
os dedos da mistura. Você vai e volta. Só isso. Como da escola, todo dia, dormir às dez, 
nada vai mudar, para seu bem. 
‐ Doinha, a roupa doinha, a roupa que tudo se acaba. 
‐Já vou, mulher, já fui.(bate na bunda do menino).Não aguenta ficar sem mim, comadre, 
nesse quarto sem gente ? 
‐ É e não: quando casei não tive vestido. Tão cedo fugida, roubada e esquecida. Um pai 
aliviado, um moço corredor. Eram mesmas as roupas da fuga e da monotonia. Só o suor 
era  diferente  porque  mais  úmido  e  velho.  Nova  ainda  provo  as  roupas  de  minha  filha, 
minhas também. Veja, comadre, ninguém sabe quem é a que casa e a que volta sozinha 
prá  casa.  Morre  a  mãe,  os  que  ficam  são  órfãos  ou  viúvos.  Vestir    sempre  é  chamar  a 
mãe. 
‐    Está  sendo  difícil,  não,  essas  palavras,  longas  coisas  ditas,  lembranças,  rejuveneceu. 
Sua pele reluz a luz das noites com festas, com olhos de homens. A moça sem vassoura 
na mão. 
‐  Doinha,  costureira  de  mão  cheia,  vestindo  todas  nós,  cega  a  agulha  que  reúne  todos 
nós.  Doinha,  alguém  nos  escuta,  você  mulher  com  homem‐relógio  e  sem  filhas.  Sua 
grande  casa  e  só  uma  mulher.Cinco  filhos  que  a  terra  abraça  nas  brigas  e  nos  jogos. 
Cinco  dedos  da  mão  que  sempre  diz  adeus,  eles  lá  fora.  Nesse  quartinho,  remendos, 
linhas  e  agulhas  escondem  o  chão.  Pequeno  o  lugar,  um  espelho,  a  máquina  velha  e 
cadeiras.  Aqui  não  se  dorme  ou  come.  Seminuas  todas  e  nossas  verdades,  buscando  o 
que  nos  esconde  e  enfeita.  Uma,  um  longo  implorando  a  cama  ruidosa;  outra  roubar  a 
imponência  do  padre;  aquela  vingar‐se  do  mesmo  vestido.  Todas  aqui,  eu  uma  noiva, 
minha filha na cama com medo. 
‐Tecidos  e  corpos,  agulhas  diferentes,  minha  amiga.  Sempre  nus  os  corpos.  Teus  seios 
caem entre  o negro jardim que circula o peito. É tarde demais a ofensa, errado o alvo do 
cuspe. 
‐ Um homem abre o portão e segue entre o jardirm. Entrará em casa sem dificuldades. 
Come  calado  só  e  apressado.  De  costas  e  com  olhos  vendados  sair  ou  entrar  são  a 
mesma coisa.  
 
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐ 
 
O senhor em seu castelo  
 
 
 
  80  

Cena 1 
 
conversam uma criada recém‐chegada e a governanta, a chefe das mulheres do castelo 
 
‐já acordou o senhor delicadeza 
‐ sim e não. Chega tarde, demora para dormir e faz barulhos antes, durante e depois 
‐ dessa vez a que horas foi pro seu quarto ? 
‐ nem sei , não lembro; o amor tem horas ? 
‐amor ? minha filha, um bêbado não tem memória: mija fora do vaso, goza antes da hora. 
E a confusão da manhã era mais de sua parte que dele. Veja você; tão nova, escondida 
atrás das roupas de criada, que protegem os olhos de todos de um corpo que deve o seu 
salário.  Nova  sim,  risonha  sim,  um  rosto  que  uma  bebedeira  engole  com  os  membros 
restantes.  Aquecer,  meu  bem,  forrar  a  cama  de  seu  senhor  com  esses  ossos 
acamisolados,  meu  bem,  é  o  que  ele  quer,  é  o  que  podes  esperar.  Recomponha‐se, 
arrume sua roupa, melhore o rosto e cale‐se  ‐ o dia é de trabalho não nos canse antes do 
almoço‐ sabemos de tudo. 
 
entram mais 10 mulheres que esquecem a nova criada 
 
‐  estou  rindo  ?  não,  não  se  enganem.  Nos  últimos  dois  meses,  além  dos  trabalhos 
habituais, qual outro dever ? 
‐  as  roupas,  costurar  roupas  para  a  festa.  Fizemos  tudo,  vestidos,  complementos, 
perfumes. Tiramos de nosso dinheiro e economizamos nos serviços da casa. Noites sem 
dormir, almoços excluídos de nossa vida, sem visitas, cartas, passeios, nós. Tecidos bons 
e  belos,  todas  nós  diferentes,  esperando  esta  manhã,  compensando  o  cansaço  pelo 
sonho. Nós, nenhuma como as outras. A casa cheia, dançar, rir, os quartos lá cima longe 
de nós. Visíveis, existentes ‐ a mulher nascendo sem medo. 
‐ então está tudo pronto? 
‐ tudo, senhora, e nós antes de tudo. 
‐ Grandes meninas.Fizeram o impossível. Tudo agora terminou. Tragam os vestidos aqui 
em minhas mãos. 
‐ veja, senhora, as cores, o pano, as costuras. Pegue, puxe, teste as roupas mais perfeitas. 
Não só toque como cheire. Cada uma inventou nova maciez do vento. De nossos cabelos, 
fios escondidos misturam‐se com os tecidos. Uma gota de sangue tirada do queixo das 
dez em água e mistério diluíram para os futuros matizes da face. Tome, senhora, nossos 
panos , nossos corpos. 
‐ Muito bem. Entreguem as roupas quase que ensaiando os passos e os jeitos da grande 
noite. Continuem, andem como dança, escutem o velho piano sussurrando os mesmos e 
antigos modos de fazer uma dama delirar a noite inteira. Lá embaixo, no grande salão 
cabem todos que a sorte escolheu. De todos os lugares e línguas deixam seus negócios 
uma vez por ano para vir ao baile sem nome. Esperam a descida pela escadaria de nosso 
senhor e suas beldades. Ele, ferido de amor, prometeu nunca mais amar. Jamais saiu de 
seu quarto. A escuridão usa como guia e guardião. Um coração ausente, uma voz divina‐ 
é  o  que  lhe  resta.  No  baile  sem  nome,  na  hora  de  sempre,  desce  ao  meio  da  escada  e 
pára.  Elas  continuam.  Em  seguida,  ele  declama  o  maior  poema  de  amor  escrito  até 
aquele ano. Sua voz  cala a casa. Os olhos se fecham. As mãos se soltam. Sobre as mesas 
as taças se aquecem esquecidas. Silêncio. Uma voz que se avoluma e pesa. Todos baixam 
as  cabeças.  De  tristes  passam  a  transtornados,  não  conseguindo  esconder  mais  que  as 
lágrimas, agora se perdem em gritos de desespero. O chão se cobre de corpos que logo 
se confundirão com nossos heróis mortos na emboscada na primeira guerra de outrora.  
Nosso povo chegou para comemorar e vê os rostos dos mortos ainda ganindo de dor e 
A idade da terra e outros escritos  81  

medo.  Embaixo  os  corpos  dançam  diferentemente    e  o  poema  não  cessa.  As  unhas 
crescem e desvestem o peito. As mãos golpeiam tudo que o sangue não encobriu. Jogam‐
se  os  possuídos  de  encontro  a  tudo  que  é  inanimado  na  sala.  Mesas,  cadeiras  paredes 
transpassam  os  orgãos  ainda  vivos.  Uma  canção  de  amor  e  morte.  Nova,  inesperada. 
Morreu  nosso  clã  em  traição.  Morrem  os  que  festejam.  Eu  subo  as  escadas  com  seus 
vestidos.  Jamais  os  verão.  Nem  festa  nem  homens.  Volte  para  os  quartinhos,  voltem  a 
esperar sem sonhos. Uma nova canção, um novo destino. 
 
Alguns instantes, a criada como que acordando, sozinha. 
 
‐ não há jardins, só o castelo. Três andares, inúmeros salões e quartos. Não plantam, não 
saem, não rezam, não lêem, não comem. A dor não chega‐ já está ali. Sei que é noite pelo 
frio. Mais, lembrar mais... No andar do meio, dez mulheres costuram sem parar, no frio e 
no  calor.  Com  suas  agulhas  retêm  o  ar  raro  do  palácio.  Tagarelas  essas  agulhas  que 
trançam panos e mandam ruídos que alguns gemidinhos respondem. No terceiro andar 
o senhor  em trono sem coroa bebe nela sempre e rápido. Assim acordei, aos seus pés, 
nua, com letras em meu corpo. Hoje vi o mal, a senhora, a que fala, ela, a palavra. Abaixo 
ninguém  chega,  acima  não  se  pode  ir.  Só  a  senhora  sobe,  só  o  senhor  desce.  Mas  eu 
posso ouvir (batem no portão, repetidamente) 
‐ ei, a nova, a feia sem espelho, o que há ?  
‐ seus vestidos querem vingança. 
‐ você não entende. Sofrer, sofrer, sofrer. 
‐ é o que estalam as agulhas ? 
‐  eu  já  matei  um  homem;  uma  mulher  é  nada.  Onze  mulheres,  ou  doze,  contando  com 
você, o que podem ? Montar um exército ? erguer um palácio?  fazer uma festa (batem 
mais forte)(escadas) 
‐  Calem‐se.  Mentirosas.  Fui  eu  quem  matei  um  homem,  sou  eu  quem  abre  as  portas... 
Quem incomoda o dia deste castelo?  (caem as portas, como se começasse a festa) 
 
 
Cena 2 
 
Numa choupana mulheres escolhem feijão 
 
‐quantos olhos tem um porco ? 
‐que pergunta, além de tola, fácil? 
‐ responde então 
‐dois, só dois, pronto? 
‐ errou 
(entra um homem) 
‐ quem cegou os porcos, quem nos trouxe tamanha desgraça? 
‐ eram porcos só isso 
‐mas eram os porcos do senhor 
‐Eu sou a amada do senhor. Hoje os porcos, amanhã... 
‐Escutem todas vocês, testemunhem a verdade 
‐Quero  seu  coração.  Vou  mudar  seu  interior  como  laranja  que  expulsa  os  gomos. 
Escolho  feijões  pensando  em  homens  que  vão  morrer  em  breve.  Aqui  estamos  nós 
amigas e o que somos ? eu sei que matar é saber. Vinha do palácio e um guarda forçou 
minha  intimidade.  Vocês  já  sentiram    um  homem,  ele  inteiro  retorcendo  o  corpo  e  o 
orgulho de quem não sabe se defender. Nua, como os cães , ferida, sem ter nem a pele 
para  me  cobrir  vaguei.  Do  alto  de  seu  palácio  viu  o  senhor,  viu  e  calou.  Ceguei  seus 
  82  

porcos que me lambiam e me acordavam, eu, a noiva .Vejam aqui (levanta a saia, mostra 
sua nudez ) o que é isso para quererem tanto, para tanto nos levarem para outro lugar 
para catar feijão... O que isso ?  Vejam (fala com as outras mulheres), peguem, ergam as 
saias, olhem o verdadeiro rosto escondido. Olhem, vocês não são porcos cegos. Saibam 
que a mata limpou meu sangue e  vai limpar mais uma vez (vira‐se e mata o homem que 
cai) 
‐(outra) Um homem, um homem sob nossos pés, um que faz tanta falta, um homem que 
não  se  conta  mais  entre  nós.  (ficam  em  torno  do  morto,  jogam  os  feijões  em  cima  dele, 
pegamos feijões de volta , tocam o morto,  querem conhecer, cada uma conhece o morto 
por suas partes) 
‐(uma passa a mão na barba e entre suas pernas) não são tão melhores e diferentes. As 
coisas estão só fora de lugar. 
‐no chão não são tão grandes e não podem correr 
‐(toca no peito do morto) é pior:  além de trocados, falta o que temos em dobro 
‐falava tão forte, com ordens que sua língua já engoliu 
‐sujo, sempre sujo, vestido de remendos, remendos de homem (tiram sua roupa, a roupa 
de um morto) 
‐pés e mãos grandes que não sentem antes do toque que se torna dor. 
‐pêlos, muitos,  ele quase entre os bichos e as mulheres 
‐essa  é  a  melhor:    valeu  a  pena  matá‐lo.  Encontramos  os  seios  escondidos  entre  suas 
pernas. Vergonha de ser lavagem para os cães. 
‐ mas esses são protegidos por esse outro braço. Com dois nos seguram, com o terceiro 
me surpreende, com os pés me planta na terra. Mas o que eu quero é seu coração (retira 
o  coração  do  peito).  Só  se  mata  um  homem  roubando‐lhe  seu  rosto  cego  que  teme  ser 
descoberto. 
 
 
 
Cena 3 
 
O senhor de uma janela. seu quarto 
 
‐posso rir vendo o que vi.(corre e joga‐se na cama. No chão vestidos. Cheira e delicia‐se 
rindo  das  roupas  íntimas  na  cama)    mulheres....  a  noiva  do  senhor,  o  dono  do  castelo. 
Meu servo morrerá, ela não. A pele desenha seu nojo vomitando o que escorre em suas 
pernas.  Pegue‐as,  violente‐a  e  tenha  prazer,  seu  último  gozo,  homem,  sua  primeira 
verdade, mulher. Hummm... que cheiro... ontem estava aqui nessa cama. Posso dizer que 
seu perfume mudou, querida? ganhou de presente lá de sua tia distante, um odor mais 
selvagem?(  gargalha,  pula  na  cama  com  as  roupas  íntimas,  passando‐as  em  seu  corpo, 
jogando‐as  ao  ar,  cheirando‐as.  Pára  de  bruços,  com  uma  roupa  na  mão  e  olha  para  o 
chão, para as tantas roupas. Puxa uma a uma, rindo, olhos fixos. Depois se joga nas outras 
, no chão e repete o que fez em cima da cama. Essas são suas falas que acompanham seus 
gestos.Gargalha falando)  
 
 
‐mulheres,  mulheres,  sempre  mulheres,  quantas  e  tanto.  Passam  a  vida  inteira  entre  a 
linha, agulha e pano. Vestidas, podem receber seu homem no grande baile. Furam seus 
dedos, duplicam seu trabalho, escondem‐se em imundos quartinhos. A dor e a miséria 
são adiadas na troca de sonhos, receitas e retalhos. Um vestido para o corpo, um rosto 
menos  sujo  acima,  com  olhos  que  engordam  a  mulher  que  se  esconde  nesses  trapos 
(começa  a  rasgar  um  por  um  os  vestidos).  Que  lindo,  minha  dama,  ficar  melhor  assim 
A idade da terra e outros escritos  83  

com essses decotes. Oh, meu amor vamos juntar essas peças, essas cores, essas damas 
todas  iguais.  Como  é  frágil  a  mulher  e  seu  vestido.  (pega  um  e  usa  para  limpar  as 
paredes;  depois cospe) as manchas, elas somem ? lavando, podemos reutilizar, rasgando, 
há conserto ? 
Onde estão os que procuram pelas mulheres dos vestidos, ei você cinto,viu sua dona ?  
onde estão essas que se esconderão atrás das roupas. Nem roupas , nem mulheres nem 
nada, nem ninguém venham aqui, voltem não deixem que o vento as leve daqui... 
(ele cai entre os retalhos e chora amargamente. coloca alguns em sua cintura) 
‐ (imitando um servo) meu senhor, como esquecer as janelas abertas  ? ela se foi (começa 
a dançar) no baile logo depois de sua aparição na escada. Junto com seus passos, outros 
deixavam  o  palácio,  para  sempre.  Ao  meio  da  escada  parou  o  senhor  do  castelo  não 
encontrando  sua  senhora.  Rasgou  o  poema  anual  e  voltou‐se  para  os  aposentos.  Seu 
choro  calou  a  música  e  suas  palavras  não  foram  esquecidas.  “Algo  nos  toma  e  leva 
para  nunca  mais  voltar.  Impedidos  de  ir,  ficamos.    Um  som  entre  as  águas,  algo 
que não se fechou e engole o que resta” 
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Hontem 
 
 
 
  84  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
Disse que o cristal verte o brilho 
enquanto o brilho de outrem verte no cristal 
todos os cristais são comidas já provadas 
e dessa refeição já enjoei 
traga um livro de páginas em branco 
em troca toma teu peso sem preço 
vi um rosto após o outro canções atrás de canções 
esmola por beijos 
reluz ainda o cristal 
Quebrem os espelhos 
quebrem os espelhos 
liberdade num copo dágua 
liberdade num olhar que pisca 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  85  

II 
 
Envolver‐se de capa sem náuseas 
‐lagar sem extremos‐ 
é beber um copo de qualquer coisa 
caco a caco 
ser copo e pedir umidade 
sem acreditar no olhar do fundo do vidro 
Brilho 
e todos brilham 
e todos compram as capas 
e todos bebem do mesmo copo 
O minuete em lá sustenido 
lá longe nu e sem sede 
 
 
 
 
 
 
 
III 
 
 
A‐ 
 
 
Erosão 
 
 
Dentro de tua cárie entra‐se 
preso aos números de acima 
Os rios, amalgamamos sonhos vividos 
na dor de afogar o mal das eras 
que eras dentro de inúmeros 
entrada de entrever‐se sem chuva 
doirar de nervos na prisão da espera 
recontando o chão que te entornou 
 
 
B‐ 
 
Toquem a dedos suaves 
o selvagem céu invertido 
com mãos insinceras que possam 
romper as cores do suicídio 
Qual o tempo dessa desmedida ? 
Quem pesará suas angústias ?  
 
Toquem a dedos suaves 
antes que das solares partições 
  86  

venham mãos insinceras que possam 
sugerir as dores da revelação. 
 
 
C‐ 
 
Soma teu desespero a teus sapatos 
e anda anda em círculos 
assim qual liberdade 
assim de joelhos pede perdão 
 
a bebida dos anjos é seu pus 
a balada dos homens o que eles pensam 
Oh filhote de serpente com uma cadela 
soma teu desespero e pede perdão 
 
 
 
 
Centrado em si, perdido de si mesmo 
olha as aves enlameando teu corpo 
caminha ao revés dessas marcas 
de nada mais valem os caminhos 
 
Soma teu desespero a teus sapatos 
e dança dança em círculos 
trapezista e travesti da dor 
A morte nunca te alcançará 
pede perdão, meu filho, pede perdão 
 
(morde, morde o antigo desejo de hoje) 
 
D‐ 
 
No obscuro 
tece a trama dos teus atos 
envolve‐os sem que vejam 
o suspenso enigma da desforra 
 
Ontem uma pedra 
hoje as muralhas‐assombros 
No obscuro 
queima a frouxa luz dos silêncios 
alça mira em dois seios 
prolonga teu corpo sobre o meu 
 
Ontem uma pedra 
hoje o deserto te pertence 
 
o que podem os lençóis do cão 
 
A idade da terra e outros escritos  87  

 
IV 
 
 
No princípio do mundo 
não havia o mundo 
mundo não acontecia 
precipitava‐se em minha mão 
 
No início   no sem origem  
orgia fez‐se origem 
a origem em cada orgia 
recendendo em minha mão 
 
Lá distante mas sozinho 
bebi até ao amanhecer 
no amanhecer sozinho 
e o copo caiu de minha mão 
 
No princípio do mundo 
festejei minha noite 
morre um deus 
e nasce o mundo 
 
 
 
 
 

 
 
Há um jogo perigoso que brinco 
sentado à sombra de aves cegas 
todos estão de mãos dadas 
é minha vez de jogar 
 
Há um jogo perigoso que brinco 
é minha vez de jogar 
todos querem ver comigo 
qual é a cara do azar 
 
Há um jogo perigoso que brinco 
qual a cara do azar não sei 
todos vão saber os desejos do vencedor 
todos comerão suas carnes 
furarão seus olhos 
comerão seus sonhos 
Há vagas  
há vagas no jogo perigoso que eu brinco 
 
 
  88  

VI 
 
 
no altar de minha casa habita uma deusa frágil e sem nome. Segura um bebê menor que 
eu, uma criança órfã e sem rosto. O altar surge melhor quando ligo a luz. Todos os dias 
as pessoas vêm e jogam moedas na caixinha, dizem palavras muitas, fora desse mundo, 
em  seus  segredos.  Eu,  que  tudo  observo,  faço  as  moedas  brilharem  mais  que  a  luz  do 
fundo da caixa. O altar de minha casa é um cofre sem segredos no qual a mulher vigia 
não sei o que. Não sabe do brilho das luzes, ela, em pé, sobre o escuro do cofre aberto. 
Não sei como o menino não cai de seus braços. A postura da deusa impõe a falência dos 
músculos. A cada instante parece que pode despencar com seu homem. De verdade ‐ ela 
se balança, atordoada, a mulher.  A cintura requebra, as roupas trançam o vazio do ar. 
As mãos, somente as mãos continuam atadas, não muito firmes, ao dorso e ao menino. 
Será que ninguém vê que a grande deusa dança, ébria e sorridente, falando sem parar, 
cuspindo  indecências,  xingando  o  pai  vagabundo  que  sumiu  ?  Ao  invés  de  admoestar, 
ela lança injúrias. Põe o menino num braço, ajeita o lenço na cabeça e pragueja com toda 
a  sua  alma,  invocando  os  demônios  do  céu  e  da  terra  para  ajudar  na  vingança  última. 
Larga o filho no chão e esbraveja para os que foram embora mas voltarão dia após dia, 
grita  furiosa  para  os  que  não  lhe  ouvem  e  a  olham  como  se  fosse  uma  santa.  Sim,  ela 
quer ajuda, quer os suados vinténs dos bolsos. Mais que isso: venderia o próprio corpo 
para tê‐los, tudo em suas mãos, entre suas pernas. Ah, como gargalha ferozmente essa 
prostituta desbocada, velha companheira dos vadios sem ninguém e sem meninos para 
cuidar. Ela é a mãe e amante de todos nós. Foi quem primeiro nos deu o leite e recebeu  
nosso  esperma.  Canta,  mulher,  grita  entre  teus  peitos  a  dor  do  mundo,  a  nostalgia  do 
bem querer. 
Algo nos impede de tomá‐la, e é esse menino que está no chão.‐ o de nariz e rostos sujos, 
pele  enlameada  de  seu  parto  obscuro.  Ele,  desde  sempre,  o  escolhido,  alvo  mais  que  a 
neve. É preciso matá‐lo, cortejá‐lo com nossos gestos e unhas, ele, já em nossas mãos... 
 
 
 
 
VII 
 
 
 
É calor a terra inteira. Desce o céu à terra na ânsia de fazer‐se ameno. Na dor dos olhos 
que não se cansam de ver, há a espera de acenos de uma aurora dormente. 
Ninguém dorme no dia ofuscante, ninguém por sono sem ter as peles em fogo e dor. É 
por todos que estão por sobre a terra que se arde sem se ver. Todos se consomem para 
não se destruírem. O calor habita a terra inteira, não os homens. A estes, é preciso que 
não durmam. 
Também  se  pode  ver  a  face  de  Maria,  a  pura,  desencantada  na  eterna  secura,  como  ... 
num tempo sem relva ? Seus gritos que ninguém escutou... Maria, a única que ainda vê o 
futuro... 
Lá,  no  horizonte,  tudo  deve  ser  do  mesmo  modo,  senão  não  seria  o  após,  o  distante.  É 
porque  é  desse  jeito,  assim  visto,  que  ele  é  horizonte.  (  as  almas...  as  almas 
descosturadas,  fechadas  por  dentro,  fervendo).  É  calor  a  terra  inteira,  e  os  cães 
esqueceram de grunhir seus ais. 
Menos  Maria,  Maria  sem  tino,  que  vê  pensando  no  que  vê.  Maria  ledora  de  muitas 
estórias, em voz alta, os passados dos velhos. Não aqui, Maria, não os heróis... 
A idade da terra e outros escritos  89  

Eu me sentei na sacada e revirei meu fôlego. Maria, não via nada que afugentasse minha 
sede, essa, a única que tenho, desconhecida. Sei apenas que é quente em tudo o que se 
vê  (  as  almas...  as  almas  se  perdendo  no  além,  ali  em  frente,  depois  dos  morros  que 
derreteram...) 
Não, há noite, Maria, não há dia, sempre o mesmo esforço de ontem e logo mais. Só teu 
canto é estéril porque mentiroso. O fim se fez, entre as roupas que estendem nosso suor 
no  varal  dos  condenados,  da  verdade  na  pele  que  se  queimou.  De  nada  adianta  teus 
gritos Maria, após as fábulas. Não dormimos não: estamos é  mortos, morremos, Maria, 
acredite. Onde, o sorriso na amplidão da vasta terra sem deleite ? para quem as águas e 
as frutas ? Maria , estamos mortos e só queremos nos convencer disso. A plantação não 
vingou, o gado se foi, a casa ruiu, os donos fugiram. Nós estamos aqui, sozinhos. Nós, os 
donos da terra, os que recobrem os caminhos com os corpos sem ninguém. Nós, Maria, 
em viva carne. Surdos e secos para tua voz, indispostos para o passado que nos cegou, 
fora da música‐ só um vento gemendo perdido de si e sem poder ficar.  
Pare, Maria, pare de chamar nossas almas, o engano acabou. É preciso que nos vejamos 
mortos,  Maria,  mortos  da  mais  pura  e  mortal  morte,  mortos  com  os  vermes  como 
formigas pelo nariz e pela boca, mortos no cheiro de carniça antiga e atrasada, mortos 
nos  olhos  sem  ver,  mortos  demais  para  as  canções  e  para  o  mar.  Maria,  estamos 
verdadeiramente mortos, queremos estar mortos como tu mesma estás. 
 
 
 
 
 
 
 
 
VIII 
 
 
 
Cadência quase perfeita. Próximo a mim, aquele que me quer.  
Ergo  as  mãos  e  elas,  distantes,  ensaiam  o  vigor  do  reter.  Interrompo  o  alcance  na 
angústia do momento. Breves, os dedos multiplicam‐se em vertigem. Cada braço dilata‐
se em mensagem indecifrável e passageira. 
Ainda  mais  uma  vez  as  mãos  e  agora  os  olhos.  Fazer  ver  acompanha  melhor  tomar.  O 
que me repulsa, apela pelo dorso, o meu, o que vesti. 
No chão, a cama. Perto dela, o candelabro. Abro bem os olhos como se nunca os tivesse 
em  tamanho  poder.  Possuo  violentamente  a  visão.  Mais  nítidos  são  os  contornos  do 
corpo  desfigurado.  Entre  as  velas  e  os  lençóis  estico‐me,  fazendo  vibrar  os  ossos  que 
nunca vi. O esforço atenua o asco.  
Sei apenas das grandes mãos que se arrastam e se derramam ao redor do corpo alheio 
de si, o imenso dorso branco, branco doente, dor que urra e desfalece após surgir e que 
divide o quarto comigo. Há movimentos. Espasmos intestinais desdobram a flácida pele. 
Prolonga‐se  a  cama  adiante.  Só  o  tronco,  dorso  de  ilha  em  tudo  em  volta,  engolindo  e 
detendo sua investidura.  
A  massa  informe  me  atrai.  Viro‐me  com  sede  e  agarro  a  mesa  próxima  num  abraço 
órfão.  Sopro  em  direção  das  velas  e  elas  caem  vagarosamente  apagadas.  Também  em 
pedaços sou abocanhado no fétido calor da garganta que me beija. Amantes, pele a pele, 
na ronda do mais se perder. Abro mais os olhos e o quarto inteiro é sugado na saliva que 
  90  

respira  da  criatura  que  sou  eu  também.  A  casa  inteira  imerge  no  sêmen  do  conúbio. 
Fecundada está a aurora do mundo. Amanhã acordarei entre as velas e lençóis.  
Cadência quase perfeita. Próxima a mim, a cama vazia. 
 
 
IX 
 
 
Prolonga‐se, inclusive, a incerta dor. Recobre o corpo, sendo sua roupa e canto. Brotam 
as  imagens.  Ela,  esperada  ajuda,  menos  que  o  súbito.  Só  o  ar  a  ir  e  voltar,  volátil.  Arfo 
ignorando  o  calor  da  despedida.  Prepara‐se  o  peito  para  expulsar‐me,  marés  furiosas 
invadem  o  que  lhes  pertencem.  Inclino‐me  distante,  pisando  o  chão  com  as  costas. 
Agravo o desvencilhar‐me por meio das escoriações. Vazio, o quarto que me sufoca. Não 
me  ergo  nem  posso  ‐  de  longe  vem  a  voz  ou  parte  dela.  Nas  narinas,  breve  passar  do 
alento. Não mais no quarto, não mais em mim. Morta para sempre, ela, esperada ajuda.  
De tudo que poderia redimir‐me, desde a outra idade, de tudo que poderia fazer‐me até 
o último dos séculos, o que resta ? Rasteiro, envolto nas filigranas do solo sujo, ensaio o 
encontro  final.  Abro  os  braços  além  de  mim  e  converto  em  paradoxo  a  gravidade  dos 
homens. Crucifico‐me na ânsia, sacrifício cruento para os que me querem. Estou numa 
lâmina  baça  e  esfumada,‐  dissecam  a  mensagem  das  entranhas.  Não  há  novidade.  A 
pinça  recolhe  nervo  e  fibra  indispostos  à  compreensão.  Apenas  ela,  esperada  ajuda, 
sustenta‐me  e  atrai.  Sou  cena  única,  tabernáculo  redivivo  para  uma  multidão  agitada 
diante  da  revelação.  Componho  com  meus  despojos  uma  oferenda,  a  despedida 
repentina. Graves são as horas na entrega voraz. 
Habito o chão do meu quarto, preso à sorte que me cabe. Em cima da mesa, distante de 
mim, as uvas apodrecem na cesta, esquecidas na palha velha da cesta velha. Murcham, 
esgueirando‐se por entre o que lhes deu abrigo. A casca seca esconde seu gosto para as 
bocas. No vazio do acolhimento íntimo, jaz lá fora o hálito da planta que entorpece, que 
se procura. Dançam as criaturas em volta da morta sem terra, das uvas da raça. Dentro 
da casca pulsa o desejado das gentes. Alheio às fronteiras e às romarias, efusivamente 
dissipa‐se na fluidez vária de seu acontecer. Plasma carnudo, gole áspero que arranha a 
garganta. É o desejado das gentes, envolto na véspera germinal. Mais e mais adentro, até 
a morte da origem, onde vibra a outra, o escondido querer. 
Escuto agora o término das vozes, eu, dilacerado e escandido. Um líquido jorrando em 
um  copo  partido.  Uvas  podres,  vinho  sagrado.      Ninguém  seduziu  a  polpa    misteriosa. 
Escorre em minha pele o veneno das eras, as sobras do mundo. 
 
 

 
 
As águas não virão antes do céu encolhido em sua agonia. Reluzem, de canto a canto, os 
raios do que não é manhã. E eu, de costas para às luzes, ergo a mão e destrono a lua que 
é menor que os dedos. Noite escura e costas úmidas, estrelas avisam o que chegará aos 
olhos ‐ é possível imaginar formas no céu escuro. Sem nuvens, goteja a massa azul que 
modela as esferas. Um rosto triste cruza os hemisférios, o que vejo, o que verei. Pele a 
pele, renova‐se o insucesso. Eu choro com as carpideiras antigas, que já não podem mais 
fingir  a  dor,  a  outra,  a  que  não  têm.  Elas,  as  que  contemplam  somente,  negros  os 
vestidos,  entre  panos  rasgados  e  sujos  dos  que  andaram,  se  arrastando  indecisas, 
raivosas,  mulheres  de  má  língua,  mais  vermelhas  que  o  sangue  dos  que  se  foram  , 
vivendo o tempo do fim. 
A idade da terra e outros escritos  91  

Escadas e cercanias aprisionam meus braços. Desço irresoluto um percurso sem guias, 
por corrimãos cheios de ar. Largo o balé dos seios, segurando um pouco de vida em cada 
haste. Aos lados, a escuridão sozinha, ela e só. Tudo vazio, o irrespirável. Sugo das vigas 
o anteparo da queda. Grades imensas se espiralizam ‐ dar de frente a um grito imenso, 
de  prata  ‐  reluzente  ‐  fixidez.  Era  lá  o  embaixo,  o  meu  além,  e  eu  chegara.  No  meio  do 
caminho que terminou, asas inscritas, saias, o sexo. Em frente, creio, de se ler : “ Tanto e 
quase  ?  um,  aquele,  não  está”.  Estanco  !  na  solidão  do  braço  sem  apoio.  Pior  que  o 
intervalo, o não poder andar. Queda ausente, preso ao que deixei atrás.  
E vejo a luz doutra janela que morei, o quarto desejado e que já foi meu. Outro era meu  
nome  e  novas  as  brincadeiras.  Com  palitos  de  fósforos  contava  a  saga  dos  heróis  da 
tribo, rindo dos homens sempre vivos a morrer de novo, os deuses como meninos sem 
fé. Acima dos agentes, um furo no muro, com areia branca, branca escorrendo que não 
acabava mais, massa para os restos das formigas oferendas sacrificadas.‐ esculturas de 
quitina. Um zangão cruza os ares, forçando‐me à reverência, meu medo antes da ferida. 
Mais um pouco , no silêncio de minhas vozes de palitos queimados que voltam, memória 
das coisas. Com as mãos, dia e dia, com as mãos... Alguém no escuro me sorri. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
XI 
 
 
 
Sempre,  o  desejo.  Antes  de  meu  nome,  o  já  chamado.  Eleito  para  a  descoberta  da 
volúpia.  Nada  entre  mim  e  ti,  nem  mesmo  as  vestes  bastarão.  Desnudadas,  mais  as 
vestes que a pele, avanço rugindo até aos confins do ato, cercando a raivosa, a preciosa 
dádiva. Por que o riso se breve rompe‐se a trama e a posse ? Os lábios não se tocam na 
boca  em  que  dentes  falam  mais  alto;  liqüefaz‐se  a  foz  para  receber  ansiosamente  sua 
atribulação. O atrito inflexiona  a fissão do plexo. Dentro de ti falarei tão claramente que 
o pulsar de teu sangue e as carnes que não forem minhas hão de morrer moídas em seu 
desespero.  Chegou  o  tempo  em  que  visitarei  as  mulheres  para  torná‐las  brutas, 
imundas,  rodeadas  da  miséria  dos  tempos.  Tu  mesma  tens  em  tuas  entranhas  os 
escolhos do acaso. Densa é a dor que te acometeu. Mulheres, sempre elas. Impávidas na 
vida, cativas no horror do fim. Eis aqui os despojos da guerra santa mais antiga que as 
pedras e os rios. Nas mãos, o peito sôfrego, os olhos dilatados em vã procura, os braços 
largados sem esperança e vigor. Um corpo quente  e sem cores a não ser as que brotam 
das  feridas.  Tu,  mulher,  que  carrego  pela  última  vez,  não  mais  o  padecer.  Agita‐se 
somente os cabelos, e teu corpo não pode se despedir ‐ a alma agora escorrega por entre 
as nódoas e as cicatrizes. Abre‐se a mulher para perder a luz e receber o mal.  
  92  

Eu vim dos negros lugares, distante mais que o dobre da pernas, o sem‐caminhos antes 
de  nós,  aprisionado  para  o  resto  das  eras,  que  o  vindouro  é  mais  intensamente.  O 
grande arco jaz nos confins da terra. 
 
 
 
 
XII 
 
 
 
 
Não era ainda a minha vez. Outra, a aparição. Tentado a agir, não fiz mais que repetir o 
despropósito. Melhor: afastei‐me mais da iniciativa que da própria ação. Desde já, vejo‐
me  envelhecer.  Tudo  é  acompanhado  por  uma  franja  de  intederminação  e  o 
descompasso entre o alvo e a mira que dilata minha instância. Estou sentado, de costas 
para  a  porta  sempre  aberta.  Alguém  entrará,  um  estranho  em  mim.  Desfio  as 
recordações  de  que  não  lembro  mais.  Pelo  quarto,  eu,  entre  o  sono  e  a  vigília,  passam 
gélidos instantes acenando o vagar das coias. Trêmulas, as mãos tentam agarrar o que 
se arrasta por cima do chão, abaixo de meus olhos fechados. Sinto o tempo de todas as 
horas  trilhar  em  minha  frente  a  procissão  do  que  não  foi.  São  roupas  sujas, 
descosturadas,  disformes.  Roupas  com  corpos  que  existirão,  retalhos  que  nunca  serão 
usados. Deitado, falta‐me o ar . Nenhum som, apenas o figurável. Trajes, um após outro, 
misturando‐se, despencando e o carpete vazio. Perto de mim, a vitrine do incondicional. 
A variedade me atribula. Então vejo‐me: a pele dependurada nos ossos e ossso, creio , 
cansados úmidos do incessante esforço de sustentar um corpo desnudo, um corpo que 
não se vestiu. Pele que ofusca a visão, apartada do nexo, a não‐pele. As vestes, inúmeras, 
esbarram em um pequeno vaso escondido no canto do quarto. Ultrapassam a oposição 
das formas e nada derrubam. Nem poderiam: um vaso sem flores, a terra que fiquei de 
buscar. Apenas água no pote. Levanto‐me, persigo as vestes e tudo desaparece. Agaixo‐
me na intenção de encontrar algo no chão. Tropeço no vazio das flores e encharco meus 
pés. Sei que estou velho, irreversivelmente velho, a ponto de não mais saber do tempo.  
Então  me  senti  nu  pela  pirmeira  ve  antes  de  me  ver.  A  pele  escoriada,  arranhões  pelo 
corpo  ,  imensas  manchas  avermelhadas,  nódoas.  Um  corpo  nu  e  marcado.  Frio,  muito 
frio.  Este  é  meu  instante  derradeiro,  vesti‐me  antes  da  decisão.  Eis  a  impossibilidade 
extrema. 
 
a casa enterrada no chão como a largaram lá há séculos, antes das coisas nascerem. Tinha 
uma velhice antiga, daquela que não freqüenta álbuns de família ou museus. Era velha e 
sem imagem. Vivia sob uma sombra  que vinha de verdes folhagens,  se erguiam ao redor. 
Tudo  crescia  à  sua  volta  para  morrer  sobre  si.  Perto  da  janela,  uma  mesa  de  madeira, 
interiorana e sem detalhes, escrevo, mais velho que sou, cansado e só. Lá fora devem estar 
as  crianças,  brincando  na  terra,  de  pés  descalços.  Joana  fala  para  correrem  para  casa, 
lavar  as  mãos  e  comer.  Contraio  a  caneta  entre  meus  dedos,  e  o  plástico    rígido  cede  e 
escorre  entre  tinta  e  sangue.  Um  estrondo  enorme,  golpe  que  ecoa  o  turbilhão 
indiferenciado atrás dele, uma batida que nada abala , os móveis dentro da casa, em seus 
lugares. Erguem‐se os olhos  diante do rosto e abrem‐se às razões do barulho. Dentro de 
mim,  dilatam‐se  as  carnes,  exprimidas  entre  a  raridade  do  corpo.  Eu  já  escutara  esses 
colpes    fraturando  os  tempos  e  as  vontades.  Era  como  se  rasgassem  uma  cortina  que 
encobriria o horror espetaculoso após ela. Eu sbia que era a hora, a minha. 
 
A idade da terra e outros escritos  93  

 
 
 
 
XIII 
 
 
 
O  som,  aquele  som  foi  imenso.  Grande  estralo  que  fundou  o  mundo  e  de  uma  só  vez. 
Acordei‐  permanece  a  cama  desarrumada.  Nunca  desci  para  ajudar  ..  a  explosão  logo 
após.  Um  acidente...  é  como  se  batessem  em  minha  porta,  as  mãos  que  restaram 
implorando, mas não atendo. É tarde. Deixem recado. Algúem como eu, em ferragens e 
desespero tragado. 
Sempre o som, mais forte ainda, onda que se choca contra meu corpo , uma torrente de 
ódio.  De  nada  adianta  minha  ajuda  :  a  fúria  está  solta  e  acompanhada.  Devo  continuar 
aqui,  indefeso  em  meu  quarto.  Muitos  abriram  suas  janelas,  todos  eles,  o  barulho  das 
janelas, imenso, maior que muldidão falante, escureceu a noite e causou‐me dor, a que 
não  sentia.  Tudo  minha  culpa,  por  isso  me  escondo,  não  deixem  que  cheguem,  dei  o 
número  errado,  eu  estava  lá,  eu  não  durmo,  minha  culpa  ,  minha  para  sempre,  aqui, 
escondido.  Vamos, alguém morre em minha frente, ajudem, me ajudem. . Ninguém sabe 
mas  eu  já  morro  há  um  bom  tempo...Somente  a  risadinha  grotescaa,  gemendo  pelos 
cantos  do  quarto,  tomando  o  silêncio  que  se  move  fora  de  mim.  Muito  se  perdeu    e  a 
risadinha grotesca arranha sua garganta, o que não sei, nem encontrei, somente aquele 
estampido enorme, a enorme garganta....  
 
 
 
 
 
 
XIV 
 
 
Mímesis(1988) 
 
O  rio  que  passa  é  seu  eterno  castigo  de  arrastar‐se  pelo  chão,  sem  nunca  olhar  para  o 
alto  (  e  nem  existem  céus  ainda).  Seu  mover‐se  constante  pelo  chão  me  lembra  da 
última  vez  que  acordei.  Era  um  ontem  salgado,  profundamente  surdo  e  passei  a 
perguntar  da  dor  que  sorria  na  minha  insônia.  O  rio  me  desassossega  a  vida,  me  faz 
desaguar de resvalo no último copo que sempre é último até que seja outro mais. Tempo 
eXtranho: não sei se chove, mas há tempo para isso.  
O  rio  soou  fundo  na  madrugada  adentro  para  quem  queria  ouvir  seus  cantamanjares. 
Triste  é  ouvir  suas  canções  e  não  saber  cantá‐las.  Eu,  pelo  menos,  no  mais  silencioso 
arfar  dos  lábios,  imito,  borbulhando,  gotas  caídas  cheias  de  penúrias  e  de  pequenos 
olhos sinceros. É necessário enganar o medo, antes que se quebre o brilho das águas. 
Entramos onde se costumava sair, gentis esparros do bélico alarido. Caiam um a um à 
nossa frente, milhões que não andavam conosco (sempre se deve mergulhar no orvalho 
‐  colher,  por  mendigas,  a  aurora).  A  hora  é  precisa  para  a  morte.  Por  força,  por  força 
desejamos, por força o pé na porta na última cama a ser tomada, sem tempo algum de 
sobremesa,  por  força  na  esfera  macia  que  se  usa  demais.  Batidas  de  maremotos  nas 
mesas pois quem sou, não me interessa: por força eu bebi todo o rio. 
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Luzes que eu quero ver teu rosto, luzes para quem ousa derramar medo no tapete. Darei 
risadas  as  mais  altas  de  minha  enormidade,  sem  que  tu  me  cales.  Sombras  de  meu 
universo descrito, se as tivesse... 
Sente‐se  aqui  ao  meu  lado.  Sentou.  Que  tremor  esse  seu...  Nada  disso:  não  precisa  ser 
assim. Eu, que já fui morto na vida que se pensou viver, te digo ‐ deixa acontecer. Toque 
de  leve  o  que  vês,  pois  somente  vês  e  mais  nada.  Tenho  os  sonhos  mais  lindos  nas 
madrugadas que quebram janelas de meu quarto e meu coração ( se já não o guardei na 
gaveta)  e  tudo  interessa  mais  que  teu  rubor  desnecessário.  Agora  deita  que  o  cansaço 
ainda não é enorme mas será. Deita e toma o derredor que se esconde atrás do dorso, 
dorso  de  ilha.  Eu  mesmo  tenho  navegado  errante  pelos  confins  das  calçadas.  Andando 
muito  pelo  eterno  desventurar  dos  segundos,  tentando  ser  o  primeiro  a  romper 
chegadas... 
Apaguei as luzes. Não, não tenhas medo: as luzes sempre estiveram cegas a nós. O mais 
que  importa  é  a  porta  aberta  dos  teus  olhos  e  dos  meus  que  já  não  querem  sentir  o 
cadafalso.  Abraça  que  é  bom  sentir  o  que  se  pensa  sentir,  o  que  se  quer  que  seja  feito 
nessa noite imemorial. Fale bem alto dos outros que não passam de outros mais, outros 
menos, e a jornada é longa, longa para quem não quer  viajar. Isso, isso, meu bem, que 
seja assim e talvez de outro jeito. Junto de mim estás: já é de graça o sorriso fácil e não 
me  recuso  em  pagar  teu  peso.  Leves  andam  por  gramas  orvalhadas  os  passos 
orvalhados de teu desvanecer. Vem que a hora é só uma e o ensaio terminou. Folha que 
se  sua  à  outra.  É  tempo  de  colheita,  é  tempo  de  morte  no  vento  que  intenta  mentir 
mentiras. 
Ahhh..... de vento em sonho da melodia sombria, rompe o ar que não quis nunca ver. Se 
tenho no peito a terra que me enamora, vagar por incertos caminhos me faz feliz. Inda 
mais  que  eu  me  fiz  oceano,  sem  nunca  ter  passado  de  inseto  vulgar,  corrompo  o  odor 
que destoa cadáveres, inauguro o engano de um modo vazio. 
Ahhh.....  eu  que  quis  apenas  inundar‐me  de  muitos,  esperando  afogar‐me  nas  canções, 
ouvi o desafino de meus instrumentos, ouvi o espelho me dizer adeus. 
Ahhh.... o rio que passa, verdadeiramente passa, e não eu. Antes fosse, mas não o seria, 
antes assim do que nada. Eu, porém, fico e somente espero saber nadar um dia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
A idade da terra e outros escritos  95  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fragmentos Dramáticos 
 
 
 
 
 
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O filho da costureira 
 
 
Monólogo experimental e terapêutico 
 
Para Willian 
 
A idade da terra e outros escritos  97  

Cenário  em  penumbra  e  gélido  com  vários  manequins  sem  cabeça  e  bem  vestidos,  como 
noivas de luto, as mãos arrumadas para abraçar, inclinadas, de frente para a platéia, para 
acolher  um  corpo  ‐  nem  do  noivo,  nem  do  filho.  Caem  rendas  no  palco.  Alguém  sentado 
atrás dos manequins, em uma cadeira de balanço. De início, apenas o ranger da cadeira. 
Após, uma risada que continua sonoramente tomando conta do espaço até que o ruído de 
um corpo que cai se faz ouvir. Som surdo e forte. Silêncio. 
 
 
 
 
‐(com voz rouca, forçada) Todos sabem, garoto, todos aqui sabem, não é mesmo ? Não 
adianta mais se esconder ou fingir de morto. Saia já daí, meu filho, o filho da mamãe. Sai 
de  perto  dela,  dessa  que  nunca  mais  vai  voltar  (ergue‐se  e  fica  atrás  da  cadeira, 
segurando‐a, movimentando‐a. Voz adocicada e familiar). Você está aí, eu sei , não está ?  
o  queridinho  ...  vem  prá  cá,  pertinho,  tenho  umas  roupinhas  prá  você,  roupinhas  prá 
provar,  que não são suas, uns vestidos de festa que você não vai usar, umas blusas para 
o próximo inverno, um calor para outro corpo, um inverno que você não vai ver, aqui, 
sozinho e com frio, trancado dentro de casa até mamãe voltar (sai de trás da cadeira e 
caminha entre os manequins. Voz irritada com desejo fazer mal a alguém). Você está aí, 
não  é  mesmo?    em  alguma  das  roupas  que  a  costureira  fez  para  todos  nós  e  não 
entregou. No fim do ano, há tanto tempo, éramos jovens e queríamos casar. A cidade era 
menor  que  nossos  sonhos,  moços  e  moças  escondendo  seus  rostos  para  que  a  dor  e  o 
choro os matassem mais rápido. Maldita a mulher, maldita a costureira, que se vingou 
de todos nós na grande festa. (voz outra como elogiando a qualidade de alguém). Dona 
Juraci tem bom gosto, vestiu a cidade inteira, desde quando não sei. Encobriu os corpos 
de todos desde sempre e continuará a cobri‐los até o fim. (a voz de ira, novamente).Dona 
Juraci,  Dona  Juraci,  sabemos  que  está  em  casa.  O  medo  do  filho  escutamos,  o  menino 
seu,  sem  pai  e  sem  amor.  Nós  sabemos  que  dormiu  com  os  homens  de  nossas  mães, 
sabemos  os  que  dormiram  com  Dona  Juraci,  sabemos  de  tudo  há  muito  tempo  atrás. 
Queremos  que  faça  as  nossas  roupas.  Depois  disso,  vamos  embora.  As  roupas  para  a 
festa  queremos,  o  último  pedido,  as  roupas  mais  lindas,  doze  vestidos  para  os  jovens 
que  querem  casar  no  próximo  ano.  Maldita,  maldita  mulher,  a  única  costureira  dessa 
cidade,  dona  Juraci,  a  amante  de  nossos  pais,  Dona  Juraci,  que  mediu  e  apalpou  todos 
corpos  de  homens  e  mulheres,  moços  e  velhos.  Todos  os  que  respiram  foram  por  ela 
vestidos  e  tocados,  e  somente  ela  nos  viu  nus.  Dona  Juraci,  maldita,  abre  essa  porta, 
esconde teu filho, costura nossas vestes, pare de dormir (ruído de um corpo que cai, forte 
e surdo). Você está aí, garoto, não é mesmo ? menino mau, malvado, que espiava os que 
iam  para  o  quarto  de  sua  mãe,  os  que  iam  pelas  roupas  ou  não  (começa  a  andar  por 
entre os manequins e sacudi‐los). Menino mau, bisbilhoteiro, aos sábados à tarde, em dia 
sem  sol,  andado  pelos  corredores  da  casa,  os  gritos  da  mãe...  “mãe,  mãe,  abre  a  porta, 
abre a porta, mãe. Mãe. Estão matando minha mãe. Não me deixe aqui, no escuro, eu não 
tenho  irmãos.  Abre  a  porta,  você  não  pode  morrer  “  (sonora  gargalhada  como  antes). 
Menino mau e burro, sua mãe estava costurando, fazendo roupa para fora, mexendo as 
cadeiras,  a  enorme  anca,  a  cama  rasgando  o  chão,  o  teto  girando  de  prazer  também, 
fazendo um filho, mais um menino mau e burro (gargalhada). E nós, maldita, em nossas 
tardes de espera, o grande dia se aproximando e ainda nus. De todas as cores os olhos te 
deram  a  luz,  de  todas  os  panos  as  mãos  te  deram  o  dom.  Doze  almas  esperam  a  noite 
fatal  na  qual  brilharão  mais  que  as  lâmpadas  das  bodas,  doze  almas  esperam  o 
assombro do mundo parando de dançar para nos ver acima do jantar e da orquestra. As 
mães  com  seus  maridos  largarão  os  passos  das  danças  batendo  palmas  em  seus 
sorrisos.  Os  olhos  nunca  mais  se  fecharão  ‐  engastados  em  nós,  serão  as  bijuterias,  os 
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diamantes, colares e brincos para nossas almas vestidas que não gemem mais. As doze 
almas  aguardam,  dona  Juraci,  que  deixe  de  morrer  na  cama  para  cumprir  outra  a  sua 
obrigação  (Arranca  e  rasga  a  roupa  de  um  manequim).  Essa  roupa  não,  é  de  mulher, 
mãe,  essa  eu  não  visto,  é  de  mulher  morta,  de  mulher  sem  filhos  e  sem  marido.  As 
solteiras  deviam  morrer,  elas  sempre  ficaram  sem  ninguém,  os  enormes  olhos 
rodopiando  entre  os  cômodos  de  uma  casa  vazia,  os  corredores  e  as  paredes  sendo 
engolidos pelo chão, tudo, enfim, deixando de ser , para virar sepultura sem jardim, para 
a mulher que não teve filhos e, se os teve, perdeu enquanto tudo caia, enquanto eles não 
vinham,  quando  as  carnes  se  escondiam  nas  velhas  roupas  das  sombras  da  noite,  dois 
olhos enormes vendo as coisas em volta terem peso e suor. Não mãe, não vou provar a 
roupa  dos  mortos,  as  que  vestem  os  nus  para  sempre,  com  cheiro  de  terra  quando 
chove, um medo dos raios, de não ver mais o sol e o dia que nasce. Não me bata mais, 
mãe,  traga  seus  homens  que  eu  deixo,  mas  não  me  dê  o  luto,  o  luto  que  não  é  meu  ( 
Gargalhada. Ergue‐se, tonto, tropeçando entre os manequins que caem, em cólera, os olhos 
saltando da face, gritando). Ela, a louca ‐ de ferro e náusea o seu rosto, a que nos levou e 
trouxe  primeiro,  longe  daqui  para  que  viéssemos.  Um  altar  em  cada  casa,  um  espelho 
em cada penteadeira. Não a louca, a que não ama e nos quis ‐ louca, muito louca na noite 
em que acusava nos chamando pelo nome. Se o ar um deus nos roubasse, mesmo assim 
tudo seria inútil, inútil fugir dela, para onde...  Louca, louca, louca e tão nossa, os dedos 
já  sem  carnes,  as  unhas  com  os  restos  das  peles  dos  corpos  que  devorou.  Bebe  de  tua 
boca  o  teu  retiro  imediato,  a  prisão  que  te  faz  retornar‐  ela,  a  louca,  a  que  odeia  as 
crianças  correndo  pelas  ruas,  a  que  nunca  mais  vai  dormir  a  não  ser    por  cansaço,  de 
tamanha dor, da dor maior que existe, entre as loucas a maior, a maior loucura, e ela, a 
louca, sabe disso melhor ( muda a voz, como “cansada”, chorando) que eu, em busca de 
seu filho, o que não pôde ter, os que morreram antes do parto, em seu ventre , sob as 
águas,  lavando‐se  as  mãos  apalpando  seu  sexo  esquecido,  no  banheiro,  as  portas 
fechadas, frias e fortes as águas, na cabeça de um corpo que cai em sua tontura, na fria e 
dura pedra do chão. Cabeça partida num sonho bom, que cego ficou para o resto da vida 
maldita, Dona Juraci morta para sempre ainda menina, nua entre o úmido do corpo e o 
úmido do banho. Frio e calor. Demais até para ela, a louca, para o menino sem mãe, para 
o filho da costureira (levanta‐se e puxa um manequim que sai arrastando. Voz de procura 
com ira). Você está aí, não é mesmo ? onde estão as roupas, menino, as que eram para 
nos vestir, as que sua mãe fez para nós, as doze almas ? Somos mais de uma para cada 
dia,  sem  descanso  e  moramos  perto.  Menino  mau  e  sem  ninguém,  escondido  entre  os 
soluços  de  uma  infância  que  te  roubaram.  Lá  fora,  não,  brincar  com  os  que  eram  mais 
fortes  que  tu  mesmo  e  sabiam  falar.  Não  tinham  as  mãos  furadas  das  agulhas  que  tua 
mãe  te  obrigava  segurar,  nem  tinham  roupas  feitas  de  sobras  de  outras  roupas.  Eles 
poderiam dormir e ter filhos e comer e se lavar sem medo, sem ouvir a casa rangendo a 
noite inteira na costura e no amor que é segredo e mentira. Um mais forte que tu, lá na 
rua,  tiraria  tuas  calças  mostrando  o  resto  do  corpo  cheio  de  manchas  e  rasuras,  um 
menino  sem  serventia,  mau,  nem  menino,  nem  menina,  carregando  de  um  lado  para  o 
outro o que de manhã virão buscar. Não toque nisso, tire as mãos do tecido, não chore, 
tome  essa  agulhada,  não  respire,  não  exista,  não  me  olhe,  não  tenha  a  própria  raiva, 
menino mau e burro (gargalhada). Um dia, ela achou teus escritos, debaixo da mesma 
cama, a cama das visitas que não pagam, o cheiro dos que não vão nascer nas cobertas e 
nos  móveis.  Um  papel,  com  a  letra  do  filho  da  costureira,  confessando  seu  ódio  por 
Juraci, sua mãe, debaixo da cama, um eu te odeio escrito de várias maneiras, com restos 
de panos que em sua curta vidinha sem porquê recolhia do chão e do lixo. Eu te odeio 
com  letras  recortadas  do  tergal,  do    linho  e  da  lã.  Eu  te  odeio  colorido,  com  letras  dos 
mais  variados  tipos  e  tamanhos.  Eu  te  odeio  colado  no  papel  rasgado  que  embalaria 
nossas  encomendas  (pára  de  arrastar  o  manequim,  ajoelha‐se  como  se  falasse  com  ele, 
A idade da terra e outros escritos  99  

espancando‐o). Ah... na cama de ferro com grades te fizeram mulher e mãe, na casa dos 
loucos  acima  e  abaixo,  antes  e  atrás.  Mulher  miúda  e  arqueada,  como  se  quisesse  cair 
sem  poder,  deixando  as  bonecas  vestidinhas  junto  com  a  criança  que  se  foi,  que  ficou 
brincando com os insetos no jardim. Tome, mulher, tome o que a vida pode te dar ‐ um 
momento  intenso  e  único  com  gosto  de  sangue  e  vício,  a  redenção  na  carne  pela  dor, 
essa  mão  espalmada  que  descobre  as  entranhas  de  tua  alma  debaixo  do  que  os  pêlos 
puxam prá si. Roda o mundo em teu altar, um filho virá da que não teve homem, só os 
loucos  ,  as  doze  almas  querendo  os  frutos  da  promessa  antes  que  a  comida  do  jantar 
esfrie  e  os  convidados  voltem  para  os  armários.  Um  filho  virá  relembrar  que  não  há 
lugar algum como este, uma cidade que se diz nova ano após ano, novos casais para que 
hajam  novos  casais,  nova  a  vida  em  cada  olhar  que  se  despede  ao  fim  do  baile,  da 
consagração  de  nossos  favores,  a  festa  da  raça  que  não  pede  perdão.  Roda  o  mundo  e 
caem as vestes, os homens sentem que são manequins vestidos pelas mãos de outrem, 
as mulheres encontram sua nudez no plástico de loja de sua cara‐corpo‐vitrine. Aí estala 
a dança de verdade , tudo caindo brutalmente no chão frio dos que apagam a memória 
das  coisas  e  sabem  que  não  existem  mais  (levanta‐se  e  anda  por  entre  os  manequins 
caídos. voz de procura ). Por isso, é preciso encontrar o filho da costureira em cada canto 
dessa sala, o menino curioso e burro que viu sem saber o que via, que viu a mãe perder‐
se  em  seu  eterno  trabalho,  os  esposos  encontrarem  seu  prazer  espúrio,  os  jovens  da 
cidade  trancados  no  ímpeto  de  sua  investida.  Ah,  a  louca,  em  ferro  e  panos  costurada, 
menor que o menino que te odeia. Ele, o louco, que esperou teu sangue escorrer em suas 
próprias mãos de filho, que rasgou os panos e o medo e te fez breve o banho último. O 
celerado,  o  que  não  pode  com  as  gentes,  menino  mau  que  não  gosta  dos  bichos,  que 
come  a  terra  que  os  outros  pisaram  (como  se  fugisse  de  algo  por  entre  os  manequins, 
escondendo‐se,  alternando  as  falas  e  os  sentimentos  de  perseguidor  e  perseguido).Você 
está aí, eu sei, não é mesmo ? as doze almas, os doze vestidos, os doze casamentos... eles 
chegaram,  nos  viemos,  eu  vejo,  eu  vejo...  Acorde,  mamãe,  pare  de  moer  seu  triunfo,  as 
encomendas, a grande festa... Diz, prá mim, fala comigo, garoto, você acreditava que não 
entraríamos  em  sua  casa,  revirando  os  quartos,  os  homens  de  nossas  mães 
surpreendidos (gargalhada. procurando juntar e erguer os manequins).  Me ajudem, me 
ajudem...  Mãe,  eles  vieram,  não  fui  eu  quem  fiz  isso,  não  os  trouxe,  não  te  matei,  não 
levei  todos  para  meu  quarto  sozinho  e  vazio  (choro  miúdo.  Ele  veste‐se  com  uma  das 
roupas  dos  manequins,  largando‐os  e  se  dirigindo  para  a  cadeira  de  balanço.  Silêncio. 
ruído de um corpo que cai, surdo e pesado. É mais frio que antes. Vestido com as roupas 
rasgadas, ele se balança na cadeira, fazendo ninar um dos manequins sem braço, o que lhe 
caiu durante os movimentos anteriores. sussurra entre os lábios fechados uma canção de 
ninar sem palavras e desconhecida mas infantil). Dorme, querido, dorme filho que nunca 
quis ter. Esquece que estamos aqui para nunca mais sair, presos a esta fantástica visão 
que nos toma e leva. Triste é ouvir canções e não saber cantá‐las... E eu nunca quis ser 
mãe. Eu poderia beijar teu corpo se ele não estivesse tão frio, me doem os lábios, dói o 
corpo inteiro ainda, é o que lembro, é o que chega em meus olhos, o último momento, as 
tuas mãos a tesoura, alguém não vive mais. Só não sei se foi antes ou de depois de você 
nascer, da noite de amor, antes de mim. Eu não era para ser ela, a que veste os homens, 
a  que  tem  uma  casa  com  pouca  luz.  Eu  queria  ser  uma  estrela,  famosa,  com  dentes 
brancos, brancos e morrer mais jovem do que nasci e sem dor e filhos. Eu queria ser a 
que chega tarde e está em todos os lugares. Clara, Clara, Clara demais. Aí veio o corpo, e  
a vida e a tesoura (silêncio). Clara ainda está chamando, não meu nome, ela somente, a 
que nunca voltará. Quando Clara não voltou, os galos passaram a gritar nas madrugadas 
sem  pessoa.  Na  grande  cidade,  sem  festas  e  canções,  galos  em  soluço  de  condenados, 
eles  existem,  escondidos  entre  os  que  pedem  pão,  menos  Clara,  a  que  queríamos 
escutar.  Os  galos,  loucos,  marcam  o  fim  da  noite  novamente  outra,  e  Clara  não  chega, 
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eles sabem.  Não posso dormir, Clara virá, eu sei mais que todos, o dia nascendo entre os 
gritos das aves e o silêncio de Clara. Clara chamando, ela, viva, com palavras, mulher de 
se  ver  e  pegar  jamais.  Quem  escuta  o  coro  da  aves  não  sabe  que  voltei,  que  nunca  saí 
daqui,  que  Clara  sou  eu,  no  fim  das  coisas,  sujas  as  razões  e  o  golpe  para  que  eu  caia. 
Não, eu não quero ser mãe, ser Juraci das roupas e filhos do suor dos filhos, da dor dos 
filhos, dos homens‐filhos que vão embora, que correm pelas ruas longe de mim. Por isso 
eu  te  matei,  mamãe  querida,  a  dos  lábios  das  outras,  a  que  beijava  mulheres,  em  sua 
loucura. Tudo, mãe, tudo prá ser feito, menos as  mulheres, beijá‐las, medir seus corpos , 
ver o que não se pode ver , a visão fantástica erguendo‐se por entre o cansaço dos olhos 
que não dormem, os meus, os teus, eu, o filho da costureira (nova voz, agora de falar de 
si, o que sabe de si mesmo, o que se afirma de si, para se despedir). Um homem pode, mãe, 
pode  muito,  pode  até  deixar  de  viver,  pode,  sim  senhor,  um  homem  pode  escutar  os 
passos,  conhecer  o  rosto  de  quem  geme,  a  boca  de  quem  foge,  o  cheiro  de  quem  não 
chegou ( joga o manequim no chão e tira uma tesoura golpeando‐o violentamente). Não 
vai haver mais festa nenhuma, senão a distribuição de nossas culpas, não vai mais haver 
filho  ou  mãe,  tudo  acabou.  Leve  contigo  essas  marcas,  essas  agulhadas,  as  mesmas,  as 
que sabes fazer muito bem, as que entram dentro da gente e não saem , mãe, só as doze 
almas indo uma após outra, caindo, loucas pelo chão da casa, pelas ruas , pelas estradas, 
tropeçando em si mesmas, em uma corrida para ver quem chega antes do sol nascer, a 
algum  lugar.  Todos  nus,  como  nossos  ossos,  com  nossos  ossos  frios  e  pesados  de  um 
corpo que cai já não sei desde quando, desde mim, desde ontem, agora mesmo caindo, 
no  imenso  azul  sem  margens  de  um  olhar  que  se  fecha.  Toma,  mãe,  leve  contigo  a 
mulher  que  nunca  me  quis,  a  única,  a  amada,  a  solidão  sem  pele  e  gosto.  Montada  em 
seu cavalo branco em uma praça, nua, correndo, os homens e as mulheres fechados em 
suas vidas vendo tudo e gritando  ” lá vai a louca sem filhos e sem razão,  vai embora pro 
mal das eras.” ( em off, ruído da cadeira gemendo, contínuo, outro de um corpo que cai, 
surdo e pesado. Após, seguem o de uma madeira se partindo, o de um tronco caindo sobre 
um chão, o de uma pedra caindo nágua, de uma folha de papel que se rasga, de um tecido 
que se rasga, de farelos , de farelos, enquanto cai também o ato, jogando fora as roupas 
que não são suas. Vozes em off pré‐gravadas pelo mesmo ator, lamentam e comentam, em 
gargalhadas: ) 
‐Sabe quem morreu:  
‐ Não .Quem ?  
‐ Dona Juraci (mais gargalhadas)  
‐ De novo ? ela já estava morta (risadas)  
‐ Deve ter sido obra do filho, aquele mesmo menino maluco e sem pai . 
‐ Ninguém ainda descobriu quem era o pai do filho da costureira? (risadas) 
‐ Nem vão. Acho que todos nós temos um remendo dela guardadinho...(risadas) 
‐ Menino burro e doente (alternar entre as falas, risadas, as vozes sumindo pouco a pouco 
uma após si.)  
‐ Os holandeses têm brinquedos 
‐ Sofrer por antecipação  
‐ O Garçom é jovem  
‐ Oito dias, oito dias me escutem bem 
‐ A loucura é a normalidade dos atos aberrantes  
‐ A falibilidade é estranha para a platéia 
‐ Um homem só  
‐ Resta‐nos muito pouco  
‐ Leve é o berço para quem dorme ... 
 
 
A idade da terra e outros escritos  101  

 
 
 
 
 
A grande vó 
 
 
 
 
 
Uma  cama  imensa  com  muitas  roupas  de  cama,  com  todos  os  aparatos  de  uma  cama 
patriarcal da qual os panos brancos e rendados vão para o chão e do chão se erguem para 
os  céus,  tomando  o  cenário  inteiro,  cama  alta,  da  qual  se  pode  ver  em  baixo  bacias  de 
metal cheias de água, cama como se dela tudo viesse, o quarto inteiro. Iluminação‐cenário  
que realça sombras e luzes no fundo formando uma aura violeta cercando a cama; entre 
os  imensos  travesseiros,  a  vó  dorme  excessivamente  maquiada,  pálida,  rugas,  mas 
maquiada  de  prostituta  .  Gargalhada  imensa  e  infindável  misturando  sua  voz  rouca  de 
velha, sua voz de vó que é o que se espera dela, de morta, de agonia da morta, a morte bem 
viva  falando  por  entre  os  desafios  da  respiração  que  divide  seu  espaço  com  o  riso 
espalhafatoso; nada de movimentos de braços ‐ o corpo ergue‐se só no peito chamuscado 
de riso e falta de ar. A vó gargalha e chora um pouco; após alterna um choro fininho por 
entre suas risadas. O papel da vó deve ser feito por um homem com mãos peludas. Entra a 
netinha. Fica um pouco mais à frente da imensa cama tendo uma roupa de normalista. A 
vó permanece em sua agonia risonha coberta pelos lençóis até o meio do corpo , entre os 
travesseiros altos. Na frente da cama deve haver um meio fio, uma calçada, um desnível no 
qual ela se senta e balança as pernas. Algumas vezes ela vira os olhos para trás, para onde 
está  a  cama  e  a  avó;  seu  olhar  é  de  quem  já  morreu;  entre  seu  vestidinho  curto  e  meias 
cumpridas, o rosto sempre o mesmo, só a voz alterna sua realidade emocional;  ela é uma 
boneca, um corpo sem alma. Sua fala deverá mostrar isso, como seu olhar já o faz. 
 
‐‐  o  coletor  de  imagens  já  vai  passar.  Dentro  do  seu  saco  cabem  todas  as  coisas  do 
mundo.  Ele  vai  andando  e  recolhendo  tudo  que  vê.  Dá  muito  trabalho  ser  coletor  de 
imagens, tirar da terra o que as pessoas não querem mais ou esqueceram por aí. O saco 
volta  e  meia  rasga  e  o  chão  volta  a  encher‐se  de  coisas  como  antes.  Eu  fico  aqui 
esperando  sua  passagem,  torcendo  para  que  caia  algo  de  bom,  algo  de  diferente,  algo 
para a saúde de vovó, algo para o jardineiro que não janta com a gente. Acho que ele tem 
vergonha, acho que ele é o vovô que sumiu e nunca mais deixou de sumir lá dentro da 
casa  do  jardineiro  que  de  dia  e  de  noite  não  pára  de  ter  luzes  piscando  piscando 
piscando e eu não sei o que tem lá. O coletor de imagens podia passar e desligar a casa 
ou levar a casa com ele e levar o jardineiro e deixar vovô para que essa velha que não 
consegue  dormir  pare  de  me  atirar  travesseiros  e  me  deixe  em  paz.  Sua  respiração 
vazada em sangue e catarro sou eu que tenho de recolher; de nada adiantam as bacias 
espalhadas  em  todos  os  lados  da  cama;  sempre  esbarro  em  uma  quando  tenho  de 
limpar o quarto, sempre, a minha vida inteira presa aqui limpando a sujeira de vovó, a 
  102  

que não tem ninguém, a que o mundo deixou aqui prá mim, vinda pelo rasgão do saco 
do coletor de imagens.  
 
entra um menino de calças curtas e meias e suspensórios e chapeuzinho; senta‐se do lado 
dela, balança os pés do mesmo modo. Torna seus olhos para trás da mesma maneira. Após 
fica calado  como ela e faz os mesmo gestos . Ajoelhasse no chão como se jogasse bolinha 
de gude e arrastasse como se se arrastasse em uma guerra. 
 
‐  eu  sou  Alomar,  o  último  herói  da  grande  cidade  desconhecida.  Tenho  em  meu  corpo 
mais tiros, os tiros de todas as guerras, de todas as guerras, que eu participei de todas as 
guerras. Uma louca vontade de voltar para casa quando tudo terminar Só posso ficar do 
lado  de  fora  de  casa  esperando  chegar  a  noite  para  voltar,  ficar  aqui  atirando  essas 
bolinhas umas nas outras até elas irem embora para sempre buscar outras para amanhã 
de manhã. Não posso dormir‐ preciso vigiar o retorno dos que se foram. Ver se voltam 
inimigos  ou  amigos,    eu  Alomar,  o  último  herói  da  grande  cidade  desconhecida;  tenho 
mais feridas em meu corpo que as feridas todas de todas as guerras que participei, eu 
que participei de todas as guerras.(Ergue‐se,salta,tropeça e cai, sangue desce da boca; a 
menina olha para ele e a fala dela move‐se em irritação sem alterar o resto do rosto) 
‐  vovó,  até  aqui  a  senhora  me  persegue;  não  vou  limpar  mais  nada;  e  não  adianta  se 
fingir de menino: a senhora é mulher e velha, velha mesmo; nunca mais vai andar e ter 
dentes. Recolha seus dentes e pare de fazer sujeira. Aqui fora não pode, é o caminho do 
coletor  de  imagens.  Recolha  seus  dentes,  sua  velha  porca  e  imunda  que  faz  a  cama 
parecer o esgoto da rua. Sua velha louca e sem graça que vai morrer logo logo logo. 
‐  Eu  não  sou  sua  vó.  Eu  sou  Alomar,  o  último  guerreiro  da  grande  cidade,  aquele  que 
protege o ninho das aves e sabe onde as formigas enterraram seus mortos. Estou ferido, 
venho de uma grande batalha e você deve me socorrer. 
 
começa a rir, a menina, como sua vó e continua a rir. A vó movimenta‐se na cama, para 
melhor  ver  e  falar,  cessa  seu  ritual  que  passa  para  a  menina.  Quando  uma  falar  a  outra 
retoma o ritual de risos e lágrimas. 
 
‐ Meus netinhos, venham com vovó; tenho doces, seios doces e um amor imenso debaixo 
dos lençóis. Há tanto tempo não recebo ninguém ... Que cheiro horrível empesteia a casa 
vindo daí de fora. Venham se esconder do velho que corta as folhas e compra garrafas. 
Venham para as minhas bacias, para meu corpo sempre quente nessa cama. 
‐ Agora tenho duas vós, duas vós porcas, loucas e fedorentas. A vozinha de lá dentro e a 
vozinha de cá fora. Mais trabalho para uma menininha brincando de casinha com duas 
velhas, sem ter tempo para as bonecas 
‐ E eu com duas mulheres e tanto ferimento sem ajuda, e ferido mortalmente. 
‐ Venham meus netinhos...(uma imensa tosse da vó,  imitada agora por todos, todos  que  
tossem  e  mudam  de  posição,  como  procurando  ar,  girando,  como  brincando  de  roda. 
Sentam‐se. A vó volta para sua cama. As cianças‐boneco conversam.) 
 
‐Seu nome é qual mesmo ? 
‐Alomar, o último...(as interrupções se fazem na menina e no menino agora de mãos dadas 
como em uma dança de roda Quando um toma a voz, puxa as mãos do outro para si) 
‐tá, tá eu sei, não precisa repetir isso de novo, esse nome engraçado e ridículo, nome que 
não é de gente da sua idade. De onde você aprendeu essa canção e essas mentiras todas, 
você que é uma criança como eu ? 
A idade da terra e outros escritos  103  

‐Afaste‐se donzela e bruxa, a quem devo matar e salvar. Para longe de mim esses feitiços 
e  esses  cuidados.  Você  está  enfeitiçada,  marcada  por  sua  própria  mágica.  Se  não 
estivesse tão ferido, mortalmente ferido eu... 
‐tá, tá, tá, tá, eu sei: ergueria sua espada, você de cima de um cavalo de bolinhas de gude 
e  (movimenta‐se  como  se  galopasse  num  terreno  baldio)  e  marcaria  para  sempre  meu 
rosto de menina com as unhas de suas mãos... 
‐  Quem  te  ensinou  tal  linguagem  que  pereça  de  modo  terrível.  Os  encantos  das 
profundezas não podem atingir Elomar, o guardião da grande cidade, o último... 
‐ tá,tá,tá tá, vamos brincar, vamos atrás do coletor de imagens, o que nos abraça e conta 
histórias sempre as mesmas estórias que nunca consigo lembrar, que é forte em sua voz 
e leve em abraços, o que pode nos levar de volta de onde viemos, há tanto tempo, o que 
pode nos salvar, nós , presos entre a rua e a casa. 
‐Posso levar meus brinquedos ?  
‐ Mas é claro que não. O coletor de imagens virá buscar . Sempre levou os brinquedos, é 
assim que ele brinca com a gente. (uma sombra de mãos aparece uma concha de mãos, 
mãos ‐ pomba que voam e caem em vôo rasante sobre as crianças. Que se jogam no chão 
assustadas, em seus rostos de mortos. No vôo das mãos‐pomba eles se movimentam como 
se  estivessem  sendo  levados,  sequetradas  pelas  ciaturas  das  sombras,  vagando  sobre  um 
mar  escuro  e  infinito.  Gritam  por  socorro,  se  alvoroçam  em  seus  ais,  frágeis  crianças  no 
berço de quem é maior que eles, a vingança dos adultos, a verdade do dia. Fala a vó) 
‐  Até  quando  esperar,  meus  os  cuidados  e  as  histórias.  Fiz  o  mundo  nascer  em  seus 
ouvidos  e  os  sonhos  e  os  dias.  Apaguei  a  luz  da  escuridão,  ergui  os  céus  de  uma  nova 
manhã. Em minha cozinha fabriquei o bom calor das tardes de chuva que não acabavam 
mais. Minhas as histórias, o que poderia ter acontecido, o que foi, fins e inícios, os sons 
dos ventos, quem chorou primeiro.(Levanta‐se e olha para o público, alheia às crianças 
em  seus  sofrimento.)  Estas  foram  as  redes  que  no  futuro  iria  levantar  sobre  a  terra. 
(imita cianças em sua voz)“então era assim, vovozinha, o mal “ ”Conta de novo prá mim, 
vovó, conta mais uma vez “ “de novo, de novo” E sempre o sim, um pouco de mim em 
cada  boca,  partes  de  mim  estraçalhadas  em  cada  pedido.  Oraram  como  eu  ensinei, 
acreditaram  no  que  eu  disse,  escutaram  meu  passado,  perderam‐se  por  minha  causa. 
Meus  meninos,  estou  aqui  para  contar  a  última  estória.  Eu  não  era  vóvo,  eu  fugi  bem 
pequena da casa,  sem ninguém, uma menina sem pai nem mãe, uma vó, a que sabe bem 
falar, dedos ágeis, gorda, sempre o bem gordo e redondo, como biscoitos da vóvo, como 
as  histórias  que  se  acabam.  Vovó  era  o  Mal  debaixo  das  camas,  o  olhar  de  dentro  dos 
armários,  o  amiguinho  que  se  foi,  o  parente  que  não  veio,  a  carta  que  não  chegou,  a 
primeira  surra,  um  beliscão.  Vovó  não  veio  mais.  E  encontrei  vocês  em  minha  porta, 
embrulhados em jornal‐ alguém esqueceu disso. Agora é noite para sempre, vocês mais 
pertos  que  minha  cama  longe.  Cresceram  bem,  e  não  é  preciso  gritar:  eu  estou 
aqui.(grito maior ainda, ragando o teatro inteiro, rasgando a propria escuridão que os  os 
embala. Forte luz que desabasobre o palco, lançando os meninos para longe, fazendo cair 
a vovó no chão, apavorada, agora a vovó‐menina primeira. Entra um velho com chpéu de 
velho  e  umsaco  nas  cotas,  um  velho  com  um  imenso  peso  nas  costas,  assoviando  uma 
canção de ninar desconhecida, a melodia de uma canção de  ninar que acorda. Ele cruza o 
palco e se situa diante dos meninos e fala.) 
‐ Pronto ? já podemos voltar para casa ? Eu não demorei muito, não ? Quem são vocês ? 
‐ Eu sou Alomar, o guardião da grande cidadade. Tenho... 
‐‐Tá  tá,  tá,  tá,  tá.  Chega,  menino  bobo,  parece  aquela  velha  que  eu  me  esqueci  qual  o 
nome. E o senhor, não parece vovó, mais pergunta muito. Estamos esperando al’gume, 
esperando a hora de voltar para casa, eu e meu irmão 
  104  

‐ Mas ainda é cedo. A noite acabou de ir embora. Não é dia, mas alguem se lembrará de  
trazê‐lo. O que fazem aqui tão tarde. 
‐  Prepare‐se,  senhor  dragão  misterioso  e  corcunda.  Respoda:  onde  está  o  coletor  de 
imagens,  por  que  você  o  comeu  e  nos  quer  devorá  agora,  se  puder  escapar  de  nossa 
emboscada ? 
‐ Isso mesmo. O que têm nesse enorme saco, um velho com duas costas, um velho sem 
dentes,  com  cara  de  minha  vovó,  outro  velho  porco  e  doente  para  eu  cuidar,  uma 
menina que eu sou, volte outro dia. 
‐  Vocês  não  sabem  ?  há  muito  perigo,  por  isso  sempre  dormimos  cedo,  sempre  os 
colocamos dentro de casa na cama. Nunca fiquem debaixo das cobertas, ou das camas, 
Deixamos muitas coisas pelos quartos que podem ferir. Os caminhos já foram feitos, os 
quartos distribuídos. Batam nas portas, lavem os dentes, falem baixo, algúem não gosta 
de  vocês,  não  sabemos  porque,  as  crianças,  porque  vieram..  A  casa,  ela  sempre  esteve 
ali,  quan...( enquanto falava, a vovó levantou‐se e o empurrou, fazendo cair e abrir o saco 
de suas costas. Dele caem sujeira, fotos rasgadas, penas, animais de brinquedo, cavalos e 
cães, e um banquinho. A crianças choram. O velho toma o banquinho e se senta, toma as 
crianças no colo como se fossem dois bonecos e ele um  ventríloco. A vó vai para trás do 
velho e acaricia suas costas, escutando com muito prazer cada estória que se segue, rindo, 
e chorando. Fala o menino)  
‐ Eu vim depois, eu sabia. Nunca andei de pôneis, mas todos andaram Era preciso que eu 
disesse  a  verdade,  que  eu  andei  de  pônei  também,  o  cavalo‐menino,  que  não  fala  e 
obedece, eu em cima dele, pelos campos que vi na tv, um menino‐homem em seu cavalo‐
menino,  o  menino  agora  dizendo  o  que  deve  ser:  eu  andei  de  pônei,  meus  amigos,  eu 
andei  mesmo,  como  vocês,  nós  todos  ,  uma  manada  de  pôneis  pelas  pradarias  verdes, 
verdes, muita grama, todos correndo, o imenso mar de grama de se não ver o fim, meus 
amigos.  Daí  paramos  na  casa  da  tia  Quêda,  irmã  de  papai,  a  tia  em  sua  velha  casa  do 
campo,  sem  luz,  só  o  lampião  cheiro‐ruim  e  a  longa  noite  sem  olhos,  os  rostos  dos 
barulhos. No escuro brilhava uma jóia rara, um relógio como eu nunca vi, meu relógio, 
agora era meu, não de tia Quêda, eu sei,. Eu trouxe o relógio, eu vim de pônei branco. O 
meu  relógio  que  melhor  via  na  escuridão,  do  quarto  de  tia  Queda  no  sono  de  todo 
mundo.  Meu  relogio  prometia  coisas  parta  mim,  se  o  levasse  dali,  daquela  casa,  meu 
relógio falava e ria e era doce  e leve em minhas mãos, lá do quarto de tia Quêda, quando 
as históiras cessrão e todod foram dormi. O relógio me prometia o que eu sonhava e eu 
via em seu rosto de vidro refletido não o tempo passando mas os desejos, não o pônei, 
agora eu quero outras coisas, mais e mais, a minha tv do relógio, o meu rosto que sorria , 
o meu relógio que precisava levar. Levantei na escuridão e peguei o relógio do quarto de 
tia Quêda, correndo sem olhar para trás, casa à fora, na noite de muitas estrelas. Perto 
do rio joguei o relógio, de manhã buscar, mas esquci. Tia Quêda morreu sem seu relógio, 
nas férias é bom pescar...(é interrompido pela menina que se levanta) 
‐  tá,  tá,  tá,  tá,  tá...  garoto  mentiroso,  o  herói  da  grande  cidade.  Me  ajuda  aqui.  Vamos 
levar o avô e a velha pra dentro. 
‐  (o  coletor  de  imagens)  Já  é  tarde,  meninos,  e  ainda  os  armários  não  foram  fechados. 
Olhem  para  para  dentro,  no  fundo  do  quarto,  vejam  o  que  as  portas  e  as  gavetas 
escondem, vejam as roupas em sua vida de escuridão. É o medo, meninos, é o medo. E 
ele sempre virá. Eu recolho o que jogam fora de dia mas volto de noite para trazer tudo 
de  volta.  Tudo  aqui  se  faz,  não  fica  perdido.  Os  homens  não  descansam  enquanto  não 
rencontram seus brinquedos. Eu trago tudo para vocês, não se preocupem. Nem precisa 
me chamar. Cruzo as ruas, entro nas casas, e faço ver o que se escondeu. 
(a velha, indo em direção das crianças apavoradas) ‐ Venham meus netinhos. As camas já 
estão prontas e eu tenho sede. Venham comigo cuidar da sede da vovó. Em meus braços 
A idade da terra e outros escritos  105  

os  sonhos  serão  belos.  Eu    não  durmo  pensando  no  corpo  de  vocês.  Mesmo  que  eu 
espere, vocês crescerão, os dois netinhos para vovó. 
(o coletor de imagens se aproxima das duas crianças e da vovó, completando um cerco de 
feras que rondam quem nada lhes deve) Contem tudo antes da cama, deixem tudo aqui 
para mim. eu preciso de tudo antes dos sonhos. Eu quero é o dia, o dia que me tomaram, 
sujando  os  caminhos  com  esses  abandonos.  O  lixo  do  mundo  caindo  da  mãos  das 
crianças . O que seria para os olhos agora é pisado por todos nós que não vemos como o 
chão  de  uma  criança  é  muito,  é  demais.  Me  devolvam,  garotos,  me  devolvam  o  que  eu 
trouxe de volta. 
(a  vó  se  aproxima  mais,  fechando  o  cerco,  empurrando  os  meninos  e  grita  mais 
intensamente)‐ Vamos dormir, que ainda é cedo, vamos dormir antes que alguém o faça. 
Venham  para  cama,  que  eu  vou  contar  umas  histórias,  os  terríveis  casos  de  doenças  e 
mortes, a noite é longa corredor adentro. 
‐(série de frases como confissões enquanto o menino e a menina são arrastados de cena) 
Eu  juro  que  não  foi  eu,  eu  vi  o  menino  expiando  a  tia  linda  de  corpo  branco  como  as 
águas só os pêlos fazendo a novidande, banhando‐se como ninguém outra o fez. O corpo 
branco escorrendo por entre o vão das paredes de madeira, um olho só para tudo aquilo 
‐ eu juro que rezei tudo como devia, um pouco só a menos, alguns salmos a dever, outro 
dia, no dia seguinte, neste não no próximo repetir as palavras escritas, no silêncio alto 
de minha cabeça 
‐  eu  juro  que  não  fiz  isso,  isso  tudo  não,  mas  aquilo  foi  quase  idéia  minha,  a  deixar  os 
meninos caírem do berço, contar seus movimentos, saber que bastaria eu olhar para o 
lado para vir a queda, meus olhos para uma lado que sabia o que havia por ali. 
‐ Mas meu era o ódio, chegar cedo em casa e ninguém. Quebrei as janelas e saí correndo 
pela garagem dizendo e perseguindo o ladão que quebrou as janelas, tão iguais eu e ele 
em nossa corrida Ninguém nos viu só as janelas quebradas no chão. 
 

 
 
 
 
 
Casal na cama 
 
 
 
 
Diálogo minimalista sem ninguém 
 
 
  106  

Ato I 
 
Uma cama, um bidê com bacias com água. Toca o relógio. Os dois , homem e mulher, viram 
de lado, em posições opostas. Estavam longe, ficam mais ainda. Demora. Ela acorda e diz 
que vai fazer café, como sempre. Ele a puxa para si e diz: 
 
 
‐ Hoje é domingo, Ellen, domingo. 
‐  Por  que  você  pôs  o  relógio  para  despertar  ?  São  seis  da  manhã.  Por  que  me  acordar 
seis da manhã de um domingo ? 
‐ Você acha que eu planejei tudo isso ? 
‐ Claro que não, mas por que acordar tão cedo ? 
‐ Eu pus o despertador desse jeito, fui eu. 
‐ Não entendi . 
‐ São seis horas e três minutos. Eu acertei o despertador para as seis no domingo. 
‐ Me largue, me deixe. 
‐ Calma. 
‐  Não  fale  nada.  Vou  fazer  café  agora  mesmo.  Hoje  não  é  domingo.  Você  fez  isso  ano 
passado. Uma manhã , quase noite, no inverno, Mary descobriu tudo enquanto você ria 
até o almoço debaixo das cobertas. 
‐ Ellen, agora é diferente. Não vou trabalhar. É cedo. É domingo. Acordamos. Esqueça o 
café. 
‐  O  café  ?  Nunca.  O  café  me  leva  longe  daqui.  Sabe,  quando  casamos  eu  não  suportava 
café. Água escura, doce e quente. Aprendi a fazer café para sair do quarto. 
‐  Café  e  relógio.  Os  tempos.  Há  vinte  e  cinco  anos  casamos.  Pus  o  despertador  para 
conversarmos, não para o café. 
‐ Mas eu não faço café para nós dois. Eu sinto frio e só percebo quando acordo. Mais frio 
à noite, antes de dormir, antes de rezar. O dia inteiro ando com o peso das lãs. Muito frio 
em tantos anos. 
‐ Ellen, ainda é cedo. Dois, os filhos, Ellen, demoram para acordar... 
‐ Você dorme, é só isso. Nem relógio, nem meus gritos, nem a queda do céu adiantarão. 
Não há ninguém nesse quarto além de nós. Não há casa, filhos, outros. 
‐ Paul e Beth acordaram. escute o teto se mexendo, os ruídos. 
‐ Volte a dormir, querido. Nós não temos filhos, nunca poderemos. A cama é de molas, as 
paredes de madeira. Sua tosse expulsou os vizinhos. Eu fiquei desde o início. 
‐  Ellen,  é  cedo.  Viemos  ver  o  dia  nascer,  a  nova  vida.  Os  meninos  não  vão  rir  do  que 
fazemos. 
‐  Cale‐se,  doutor,  como  todo  dia,  quando  sai  e  volta,  visita  as  casas,  escuta  as  gentes, 
corre a cidade e me traz somente roupas, roupas sujas, as mesmas pedindo água e meus 
braços, as roupas dos outros que aumentam o vazio da casa, roupas que não quero, sem 
corpos, roupas de liquidação, sujas e rasgadas, para que tantas roupas, tantas, entre  o 
médico e a mulher. 
‐ Mas hoje é domingo, Ellen. Não vou trabalhar. Ninguém morre num domingo. As dores 
sabem se calar. 
‐ Eu não, doutor, que durmo doente, que não posso mais dormir. 
‐ Como ? e os sonhos ? 
‐ Sonho de dia, além das paredes, fora da casa, Ellen‐menina. 
‐ Nossa filha ia se chamar... 
‐ Cale‐se, homem, cale‐se. Não há ninguém, todos se foram. Você visita os mortos para 
ter certeza disso... 
A idade da terra e outros escritos  107  

‐ Não grite, Ellen, eu sinto que eles nos ouvem. O teto é baixo. Estão tão perto como esta 
coberta.  
‐  Doutor,  doutor  ‐saia  desse  quarto  e  vá  ver  seus  mortos.  Hoje  não  é  domingo.  Eu 
arrumei o despertador como sempre, todo dia, antes do fim da madrugada... 
‐  Espere,  Ellen,  deixa  ver  se  eu  entendo.  Você  está  querendo  dizer  que  não  sei  onde 
estou , que nossos filhos, que meu trabalho e sua vida... 
‐ ( ela faz gestos com as mãos e com os lábios que tudo acabou) 
‐ Repete a última parte... 
‐( refaz os mesmos gestos) 
‐ De novo ? 
‐ (refaz os mesmo gestos) 
‐ O que é isso ? 
‐ É quando tudo acaba, quando ... eu não sei falar... 
‐ (ele retoma os gestos dela) 
‐ Não é assim. É pior  que isso... 
‐ Faz prá mim. 
‐ ( ela fica de pé na cama, pula imitando um pássaro, batendo as asas, pulando muito alto 
e forte, da boca zumbindo “cego não escuta a mulher que chama ”repetidamente com seu 
vôo, até cansar. Ele a segue, imitando‐a, até que ambos cansem juntos, ofegantes). 
‐ O café, Ellen, você ia fazer o café... 
‐ O que ? Ah, o café... Eu já vou, já vou, como sempre. Deixa só o frio passar. 
‐ ( ele joga a coberta sobre si, reclamando do calor.) Que calor, Ellen, quanto pano sobre 
nós. (tira a camisa do pijama. Ela fecha os olhos e grita:) 
‐ Não... 
‐  Desculpe,  Ellen,  (traz  a  coberta  para  o  mesmo  lugar)  mas  pare  de  ajuntar  toda  essa 
roupa sobre nós. 
‐ Prá baixo, da cama, homem, prá baixo, da cama, de castigo. 
‐  Eu  vou,  eu  tô  indo,  calma...(ficam  em  posição  invertida  ela  no  mesmo  lugar  ele  para 
baixo, como uma carta de baralho) 
‐  Hoje  é  domingo,  doutor,  um  dia  diferente.  O  casal  se  separa,  os  cães  não  se  coçam, 
todos vão comer galinha assada. 
‐ (rindo) Ellen, Ellen, Vinte cinco anos... com frio ?  
‐ Sempre. 
‐ Eu sei a cura. 
‐ O café, não é mesmo ? (ergue‐se e ele a puxa de volta) 
‐ Fique. Sem barulho, senão os meninos... 
‐ De novo...(ele inverte seu lugar na cama. Ficam frente a frente, mas em cantos opostos) o 
que é isso? 
‐ Teus pés, vem. 
‐ Para que ?  
‐Teus pés nos meus. 
‐ Mas hoje é domingo. 
‐ Quieta. Empurra, força, vamos, assim (jogo de força, como se pedalassem com os pés, os 
movimentos  debaixo  da  coberta,  as  risadas,  uma  brincadeira  infantil.  Continuam  a 
brincadeira enquanto falam) 
‐ Lembra quando nos vimos pela primeira vez, Ellen ? 
‐  Fala,  fala.  Com  o  frio  eu  não  escuto,  eu  não  lembro  de  nada.  Conta  prá  mim  (olhos 
fechados. Ela com gemidos) 
‐  Minha  Ellen  e  eu  no  parque.  Escorregador,  balanço,  areia.  Nossos  meninos  para  o 
parque  aos  domingos,  nós  mesmos,  brincamos  mais  que  todos,  giramos  juntos,  os  pés 
pisando a terra. ”Não largue, Ellen, as duas mãos, as duas mãos”. E o mundo girando sem 
  108  

parar, girando muito, não é mesmo , Ellen ? Eles em volta de nós, a roda imensa, ruidosa, 
a maior aliança que já existiu. (vão falando e aumentando o movimento dos pés) 
‐ Eu tinha medo, e minha saia era curta, do mesmo pano das bonecas. Eu tinha medo de 
ficar sem roupa, o sutiã branco, a calcinha com bordados. Eu não escolhi isso, nadinha, 
mesmo que ficassem por baixo da roupa. Imagine uma mulher quase‐zebra, uma toalha 
de jantar velha, para o café sem visitas...( na fala dela os movimentos diminuem até que 
ao fim tudo pára de repente e eles se entreolham. Ele a toma pelos ombros, sacode e diz:) 
‐ Aí veio o frio, não é Ellen ? 
‐ Foi, doutor, desse jeito ( Silêncio. Ela esmorecida em seus braços, rodando a cabeça em 
gemidos.  Após,  abre  os  olhos,  grandes  olhos  agora  como  se  tudo  voltasse  ao  tempo  de 
antes, mas sabendo do atraso. Ergue‐se e o chama:) Vamos, doutor, levante já. Já são seis 
e meia. Levante, hoje é domingo, não ? Estamos vivos (toca‐se)? Estamos com sono e é 
só. (batem na porta firme e forte. A porta ecoa ruidosa. Entreolham‐se assustados, como 
crianças  em  noite  de  histórias  más.  Escondem‐se  debaixo  das  cobertas.  Batem  de  novo  e 
mais forte ainda mais .Eles tremem e se assustam, os que se esconderam. A cada batida a 
iluminação projeta‐se mais forte e treme também. Ainda debaixo das cobertas conversam 
:) 
‐ (ele)Viu, eu não te disse, eles sabem de nós, eles vêem os meninos, não dormem não. 
Também,  com  tanto  barulho,  tanta  conversa,  parecendo  como  desconhecidos  que  se 
perderam em uma noite sem ninguém...Parece que estamos lá fora... 
‐Ninguém  bate  só  duas  vezes.  Isso  não  está  certo.  Nós  somos  dois  e  não  nos  damos 
bem.( apaga‐se a luz no palco )  
‐ Ah é, quantas vezes o relógio tocou ? 
‐ Não sei. Lembro apenas que abri os olhos e desliguei. 
‐ Viu ? Com quantos pés na praça brincamos ?  
‐ Dois meus, dois teus . 
‐ Com quantos pés cansamos teu frio ? 
‐ Dois meus, dois teus. 
‐ Quantas vezes bateram na porta ( Batem duas vezes mais intensamente que das outras 
vezes.  Ele  sai  das  cobertas    por  uns  instante  e  logo  volta  para  onde  saiu.  Ela  grita 
apavorada com voz de adolescente:) 
‐ É meu pai, é meu pai, vá embora, doutor, a febre passou...(Silêncio. Um tempo. Ele cai no 
chão. Volta a luz. Ela com peruca de cabelos longos e branco. Ele pergunta:) 
‐ Onde dói, minha filha, onde dói que eu não agüento ver tamanha dor... 
‐ Calma, homem, calma ( ela se vira de bruços, o rosto para o público) Eu disse que era 
difícil... 
‐  Tanto  assim  ?  e  no  escuro,  como  se  fosse  amante  aqui  embaixo  da  cama,  tudo  ao 
contrário... 
‐  Cale‐se,  filho  de  minha  irmã,  cale‐se.  Acendi  a  luz  sem  pressa.  Fique  aí  embaixo, 
empurrando o colchão, me imaginando nua... 
‐  E  a  doença,  e  a  mulher  que  cheira  a  urina,  trazendo  a  morte  ?  Um  dia  eu  mordo  a 
espuma  todinha  aí  em  cima,  como  se  estivesse  aí  ,  do  seu  lado...(  no  bidê,  ao  lado  da 
cama  muita  água  da  qual  ela  bebe  abundantemente,  derramando‐se  pelo  corpo  inteiro. 
Joga  a  água  do  jarro  em  sua  boca  que  é  pequena  para  guardar  o  que  deforma  sua 
maquiagem. Lança a água para fora em seus gemidos surdos e estancados, a luta da água 
com a garganta. Inicia‐se um debate verbal entre ela e ele, intenso a cada instante) 
‐ (ele) Não me provoque sua velha,. Eu quero a sujeira de teu corpo. 
‐ Mais, mais, mais... 
‐ Me deixe, não me deixe aqui dormindo... 
‐ Mais, mais, mais... 
‐ Sou só um médico, mulher, não sei quando isso acaba... 
A idade da terra e outros escritos  109  

‐ Mais, mais, mais... 
‐ Somos três, e alguém nos quer longe daqui, longe de nós mesmos... 
‐ Mais, aperte,  mais, morda mais essa espuma tua carne, quase nós dois.( a cama cai em 
cima  dele.  Um  grito  sufocado.  Ela  sai  da  cama  e  olha  para  ele.  Ele  continua  oculto  pelo 
móvel) Alguém gritou, eu sei. Existem os meninos, estão vivos ? (abraça um travesseiro. 
Muda a voz, como se menina fosse). Não me lembro de ser mãe, de enjoar e ter desejos. 
Quando  bateram  na  porta,  era  cedo,  muito  cedo.  Eu  tinha  febre  e  o  quarto  era  úmido. 
Uma cama só para mim, me diziam, um quarto só para mim. Eu era menor que tudo e 
nem sabia correr...(silêncio) Febre, muita febre depois, febre em tudo que via em volta 
de mim. Dois dias mais tarde parei de gritar e ver o mundo perdido , cansado de girar. Aí 
ele  veio,  o  médico.  Bateu  na  porta  e  entrou  dentro  de  mim.  Disse  que  não  havia  mais 
ninguém, deu‐me um copo de café, olhou seu relógio e partiu não sei por onde.(senta‐se 
cansada em cima da cama) Doente ele, um médico, o homem com pragas ( fala baixinho, 
docemente, como se rezasse, palavras sem sentido que vão diminuindo, junto com a luz no 
palco.) 
 
 
 
Ato II 
 
 
( Luz.O mesmo cenário da primeira cena. O intervalo é curtíssimo, quase de imediato todos 
retornam ao placo. A cama arrumada. Toca o relógio como antes. O casal novamente em 
seus lugares como no primeiro ato. As reticências indicam voz ofegante e cansada) 
 
‐ Ellen, hoje não é domingo ?  
‐ (ri) 
‐ (alegre) Ellen, é isso mesmo : hoje é domingo, não ?  
‐ (ri) 
‐ (ri) É isso mesmo, ontem os Saubers vieram jantar conosco. Em seguida, vimos tv até 
às duas ...Ora, merecemos mais da manhã, não é mesmo ?  
‐ (ri) 
‐ (sério) Ellen, você acordou ?  
‐ (ri)  
‐  Ellen,  pare  de  brincar.  Eu  te  conheço.  Não  sabe  disfarçar.  Logo  logo  já  vai  correndo 
fazer café. 
‐ (ri) 
‐ (ri igual) 
‐ (ri)  
‐ (ri pensando...) 
‐(ri) 
‐  (Volta  a  dormir,  vira‐se  de  lado.  Ela  fica  sentada  agora  na  cama  como  se  risse,  o  riso 
estancado  na  face  imóvel,  no  silêncio  mais  imóvel  que  sua  face.  Ela  tem  os  olhos 
assustados. A fixidez e o tempo.) ‐ Eu sempre soube, desde menino ‐ ela tinha morrido. 
Meu pai me disse para não casar. Mas como ? ela ainda era viva, os vestidos de crochê, 
correndo sem parar. Minha janela de frente à sua. Ela morreu bem cedo, fugindo do sol. 
Morreu com as sombras, comeu‐as todas num adeus em fim de tarde, pequeno ponto de 
se não ver mais, quando fugiu daqui, longe, bem longe, para fora das janelas e da casa. 
Ele era menino, eu depois, dois dias, marido e mulher. Nunca seu corpo viu a terra que a 
descansaria.  Temos  dois  filhos,  no  andar  de  cima.  Ela  é  escandalosa,  veste‐se 
assanhadamente  e  saber  fazer  café.  Dormir  não  é  problema,  mesmo  que  o  relógio  nos 
  110  

acorde. Eu a prendo nessa cama, nesse quarto, com esse homem que já não é mais, que 
nunca  soube  o  que  era  o  corpo,  debaixo  dos  lençóis.  Tudo  é  frio  como  a  pressa  de 
acordar...Eu  não  sei  de  onde  ela  tira  essas  coisas,  essa  vida  que  não  entendo,  essas 
manhãs  de  domingo  que  eu  escuto  surgir  madrugada  passo  a  passo...(  duas  batidas  na 
porta. Depois mais duas, como antes. Ela desata a rir) 
‐ Fale, Ellen, eu quero rir também, me conte... 
‐ ( responde entre risos)Você é mulher, é mãe sem ser avó  
‐ Ellen, Ellen mais, mais, Ellen... 
‐ Sua barba é limalha de ferro 
‐ (ri)Ellen, mais, fale mais... 
‐ Já sei porque sinto frio. 
‐ Isso, Ellen, essa é a verdade... 
‐ Então você sabe ?... 
‐ Sempre fui eu, sempre soube, irmã... 
‐ Foi você quem morreu... 
‐ Sim, irmã, desde sempre. 
‐ A praga existiu ?  
‐  Existe  ainda,  amor,  está  em  toda  parte,  vendo  com  nossos    olhos,  os  que  nos 
emprestaram.. 
‐ Os vivos, onde ? Aqui? Onde ? ... 
‐ Só você, Ellen, viva nessa cama, ou quem sabe ... 
‐ Mas hoje é domingo. Ainda é muito cedo... 
‐  Não  é  mais  ,  Ellen,  poderia  ter  sido  cedo,  há  muito  tempo  atrás.  Não  mais,  Ellen,  a 
menina do olhar, nunca mulher, sem ninguém, esperando que lhe cantem músicas, que 
lhe peguem pela mão, entre os risos sem dentes dos que não chegaram, não vieram, não 
partiram para cá.( novamente as batidas na porta, como antes. Duas e mais duas) 
‐ (desespero) Eu vou fazer café... 
‐ Para quem, Ellen, para nós ? O frio acabou, você bebeu tudo que tinha no mundo, aqui 
no quarto. Só a sede, não o frio. Não mais, Ellen, nunca mais será outra vez o antes‐ eu 
escuto tudo isso, toda vez que acordo com você, na mesma violência do relógio que nos 
expulsa de onde não estamos... 
‐ Eu vou fazer café... 
‐ Cale‐se, Ellen, me deixa somente abrir a porta ... 
‐ Não, não temos filhos(Ele se levanta em direção à porta ou ao que parece ser um lugar 
de saída ou entrada)... 
‐ Nem poderíamos. Venha, abra essa porta... 
‐ A doença vai entrar... 
‐ Abra a porta, por favor, para mim... 
‐ É tarde, é tarde para nós...(apagam‐se as luzes. Uma demora como para se respirar)  
‐ (...) 
 
 
 
 
 
 
 
 

Caim 
 
A idade da terra e outros escritos  111  

 
 
Diálogo primeiro 
 
Passa alguém alto, vestido de imensas roupas negras caindo por seu corpo. Varre o chão, 
ao som de músicas de Wagner, distorcidas. Cabeça baixa, lentamente concentrado em seu 
balé‐trabalho, ele cruza espiraladamente o palco, até sentar‐se em uma cadeira que está 
no  meio.  A  música  diminui  gradativamente  enquanto  ele  se  aproxima  e  se  senta  na 
cadeira. Ao pé dela aproxima‐se alguém que se arrasta, um suplicante, entre seus gemidos 
e  choros,  até  que  depõe  sua  cabeça  no  colo  do  homem  de  roupas  negras  que  continua 
olhando para o infinito, em uma fome pelos limites de deus. Após alguns instantes, coloca 
suas  mãos  sobre  a  cabeça  do  suplicante,  vestido    todo  em  andrajos,  a  mão  para  trás, 
segurando  uma  faca,  um  mendigo  dos  tempos,  em  busca  de  calma  para  seu  breve  mas 
intenso  desespero.  As  mãos  pesam,  sufocando  o  gemido  do  que  chegou  depois.  É  hora  de 
tudo começar. 
 
 
‐(acaricia  mecanicamente  os  cabelos  de  quem  tem  em  seus  joelhos,  prá  guardar  a 
distância  e  a  impossibilidade  de  compaixão).  Teu  nome  é  Caim,  e  não  outro.  Único  a 
nascer, Caim somente e para sempre. O menino que cruzou a terra e ainda vive. 
‐ Eu venho pedir perdão, pai. Perdão é pouco, eu sei de tudo. Peço assim mesmo, como 
todos pedem. 
‐  Cabelos  úmidos...o  suor  de  quem  viaja.  A  minha  roupa  se  molha  de  teus  caminhos  ‐ 
tanto esforço para continuar a sede. 
‐ Pai, me escuta, já que não posso mostrar meu rosto. Eu vou fazer, não há outra maneira 
de ser Caim.  
‐  Mesmo  úmidos,  teus  cabelos  ferem,  areia  que  sangra  os  pés  dos  que  andam  muito. 
Pesada é tua cabeça em mim. Mesmo sentado, não há outra maneira senão esperar que 
o encontro seja breve. 
‐ Nada adianta, nem minha presença aqui ‐ sou desconhecido para quem não me ouve 
ou vê. Tenho as mãos mais ágeis e o corpo não se entrega fácil. Um pai é menos que isso, 
menos  ainda  que  sua  cegueira,  fechado  por  dentro  e  por  fora,  sem  ninguém  senão  o 
dever, sem culpa para quem não viveu nem matou. Um pai é menos, muito menos que o 
cabo  da  faca,  faca  velha  e  sem  fio,  um  pai  nem  tem  nome.  Escuta,  homem,  eu  trago  as 
boas novas, a nova era da libertação. 
‐  Um  menino  que  corre,  para  longe,  à  noite...é  sinal  que  pode  voltar.  Mesmo  que  tudo 
deixe de ser o que é, a casa continua aberta e uma luz sempre acesa brilha dentro dela, 
deixando ver a espera e os lençóis. 
‐ Cale‐se, pai, cale‐se. Eu preciso que me escutem, antes que tudo aconteça. 
‐ Antes, eu lembro, sei bem que o suor no corpo é véspera da luta. Alguém virá nos dizer 
o  que  já  aguardávamos,  nós,  prostrados  ao  infinito,  implorando  que  um  deus  viesse  e 
jantasse  conosco,  o  calor  das  chamas  na  madeira  abatida,  carregada,  desfeita  em 
pedaços pelas mãos dos que podiam, a madeira no chão nas costas e nas mãos, entregue 
a nós, para que houvesse comida e abrigo. 
‐  (começa  a  riscar  a  faca  no  chão,  em  um  movimento  rítmico  no  qual  a  luz  diminui  e  se 
pode ver e escutar o arranhar belicoso das faíscas no chão, no seu movimento de um arco 
que gira) Ah, histórias de velhos, dos que morreram sem serem mortos, não sentiram o 
que os metais do mundo rasgam e torturam  ...fracos, os velhos com medo de algo mais 
profundo e que brilha nos olhos. 
‐  A  noite  inteira,  ao  som  das  brasas,  esperávamos  que  a  noite  nos  devolvesse  o  que 
partiu, os moços em sua bravia luta contra as trevas e o mato. Arranhados seriam pelas 
  112  

raízes  retorcidas  e  pelos  galhos  pendentes.  Caminhando  para  nenhum  lugar,  em  sua 
cegueira  escondida  e  muda,  facilmente  cairiam  pelo  chão,  doentes  e  feridos,  com  os 
rostos marcados pela unhas e garras do que buscam atingir e não sabem, envoltos numa 
noite pesada, e sem amanhã, um frio na alma, afogados, respirando baixo com o pó da 
terra no rosto que sangra. Eu apenas diria : voltem... 
‐ Pai, não há como perceber que eu sou mais forte, que me ergo( levanta‐se com a faca. 
Luz  forte  projeta  sua  sombra  maior  que  ele  mesmo)  e  me  agiganto,  enquanto  os  pés  
imóveis e a cabeça curvada de um velho esperam que de um golpe só a voz que afugenta 
os  monstros  e  põe  a  corrrer  assassinos  horrorizados  ?  Uma  faca,  pai,  uma  faca  que 
brilha e esquece da luz, uma faca enterrada no peito daquele que se assentou e perdeu 
seu lugar aqui. 
‐  Teu  nome  é  Caim,  sempre  o  mesmo  para  onde  teu  corpo  fizer  morada.  Eternamente 
preso à tua mão que não entendes, rápido e tanto que não olhas para trás, uma multidão 
te espera, não eu. É preciso ser maior que um jovem , maior que uma faca para que os 
homens  possam  acordar.  Teu  cabelo  ainda  é  suor,  mal  chegou  aquele  que  se  foi,  o  
ladrão das madrugadas, um corpo sem filhos e sem dor. 
‐ Pai, é pouco o que tenho em tua frente, com a voz que traz o fim e fará o velho cair sem 
vida ? 
‐  Enxugue  o  suor,  que  lágrimas  não  há.  Um  rosto  em  pele  pálida  e  vazia,  um  livro  a 
surgir, uma mulher o dirá. (Ergue‐se, rasga parte de suas vestes e entrega um pano para o 
rapaz  que  afasta  de  si  o  presente  com  a  faca  que  atinge  a  mão  do  pai.  Este  fita  o  jovem 
com  olhar  de  ira  e  cólera  que  um  assassino  requer.  Ao  mesmo  tempo,  ao  lançar  o  braço 
par  trás,  fugindo  da  faca,  abre  os  dois  braços  como  uma  fera  que  se  prepara  para  o 
encanço fatal) 
‐ Caim, sempre Caim, eu posso ver o rosto do que não nem olha( o filho deixa cair a faca 
e  dá  uns  passos  para  trás)  mas  não  posso  escutar  tua  volúpia  medrosa  por  entre  os 
dentes que tremem junto com o corpo, engolindo o resto ou o quase de uma provocação 
que  obrigaria  outra  resposta.  Caim,  sem  faca,  sem  ninguém,  sem  pai  que  proteja.  O 
matador sem vestes ?( puxa e rasga as roupas do jovem) O matador de rosto espancado ?  
( um tapa lança o jovem para longe que cai e se arrasta sem sair do lugar) O que vejo eu, 
o que escuto ? A morte caída no chão, sem dentes, faminta de casa e roupa para que a 
vista , a coitadinha, a morte‐mulher... mulherzinha... fraca e sem dor como o ciúme. Caim 
é  a  morte  jovem,  a  que  mora  na  cabeça  e  precisa  de  facas,  a  que  vem  quando  a  vigília 
dorme, quando o calor da vida inteira esquece de sentir a brisa de um mar sem luz se 
aproximando  de  repente.  Caim  não  pode  matar,  Caim‐morte  é  mulher  sem  filhos,  a 
prostituta  paga  que  foge  da  cama.  Uma  jovem  nua  que  rouba  para  comer  com  o  bolso 
cheio de esmolas. Ah  imensa raiva de fazer‐se vivo, de acordar contra o ínfimo que se 
estilhaça  na  janela.  (Diminui  o  ímpeto,  recolhe  a  faca  no  chão,  colocando  na  cintura  e 
pega a vassoura perto da cadeira ). Varrer, varrer , a vida inteira. O chão, e olhos no chão. 
Limpar daqui essa nova raça que impregna os pés dos que traçam os caminhos. Um dia 
virá em que o pai vencerá o tempo. Sentado em sua cadeira, dormindo com as imagens 
que  vierem,  ele  saberá  dizer  que  boa  é  a  multidão  apagando  a  fogueira,  não  havendo 
ninguém  mais  para  esperar,  que  as  casas  se  fechem  com  os  homens  por  dentro,  que  a 
noite seja somente noite, escura e vazia lá fora, longe de nós. ( mais devagar e cansado, 
ele fala, enquanto o filho ergue‐se, arrastando‐se rumo ao pai que está de costas, irado o 
filho, limpado seu sangue derramado com as mãos) Caim não virá jantar conosco, beijar o 
rosto  da  mãe  e  fazer  as  preces.  Caim  terminou  com  as  cinzas  da  fog...(  O  filho  rouba  a 
faca, cravando‐a‐ nas costas do Pai. Um imenso grito, seguido pelo voltar de olhos do pai 
para  o  filho,  como  se  assustado  estivesse  não  pelo  que  vê  mas  pelo  que  sente,  a  morte 
entranhada. O rosto desfigura‐se em um imenso lament,o em gritos que o fazem contorcer. 
Em pé, o filho permanece gélido vendo cair o gigante último a ser vencido). 
A idade da terra e outros escritos  113  

‐ (após alguns instantes , fala) Pai, que já não és, eu vim pedir perdão, Pai, um filho, as 
mãos  com  o  nosso  sangue,  juntos  os  dois,  nós,  afinal.  (em  ritmo  de  fábula,  de  conto  de 
fada) O tempo comeu uma erva má e vomitou seu espectro. Em seguida, correu atrás da 
fonte  que  cega  a  chaga,  mas  a  água  secou.  Correu  atrás  das  mulheres  que  lavavam  as 
roupas e elas tinham partido. Desesperado, o tempo pediu chuva e um raio dos céus o 
matou para sempre. No lugar em que o raio caiu, uma planta nasceu e ataca os que por 
ali passam , pela terra adubada pelo tempo, assassinado que foi pelo céus e pela terra. 
Eu comi desse fruto e nasci, entre as folhas dessa planta florescendo. Uma mulher a flor 
tomou e me colocou junto de seus cabelos, perto do beijo que um homem roubaria de 
sua  boca.  Entre  o  suspiro  da  mulher  e  fôlego  do  homem,  surgi  no  ardor  dos  corpos, 
maresia  das  águas  mornas,  restos  de  animais  expulsos  dessas  águas,  areia‐carcaças.  ( 
aproxima‐se do pai, abaixa‐se, senta no chão e coloca a cabeça do pai morto em seu colo, 
acariciando os cabelos de quem não mais respira, Caim com os olhos em frente, para cima, 
longe de si) E eu era o que partia deles, escorrendo pelas peles em arrepio e ausência, o 
inominável  do  desejo,  o  que  se  sobrepõe  à  névoa  e  à  carniça,  o  menino  bom  tão 
sonhado,  o  menino  das  horas  em  que  o  sono  vem,  ele,  o  futuro  da  casa,  a  canção 
revestida de espera e amargura. (olhando para o pai, como não fizera antes) Eu demoro, 
Pai,  eu  demoro  para  vir  e  me  criar,  eu  me  perco  nos  caminhos  que  não  conheço,  eu 
preciso me erguer antes que me esqueçam. Um homem virá, pai, e não eu, com a mulher 
nos braços, e não a faca e o sangue. Ele fará a fogueira e fechará a porta. Nós, aqui fora, 
saberemos ouvir o grito das feras e o calor das plantas esperando o dia cravar‐se no céu. 
( músicas de Wagner, novamente. Escuridão quente e abafada). 
 
 
 
 
 

 
 
Farsa do quem quer amar 
 
 
Saloom. Um salão de baile, antigo, fumaça dos cigarros.Começa a tocar a música que está 
no fim da peça, todos estalando os dedos , o baixo fazendo tudo dançar, a banda dançando 
mais  que  tudo  e  todos,  o  que  dá  o  tom  burlesco‐sério  da  peça...  Quando  os  atores  se 
movimentarem, cessa a música. Em frente, à esquerda de quem vê, enorme bacia de latão 
para banho e com água, vestidos, saias e roupa de cama jogados pelo chão em volta. Nela, 
um homem vestido de noivo espera a chegada da que não virá, fixamente olhando para a 
platéia  que  some  em  seus  olhos.  Após  alguns  instantes,  entram  três  mulheres  velhas 
chorando, um coral de vozes sem sentido empurrando uma cama ruidosa com uma mulher 
desfalecida, os braços pendendo, um êxtase, adereçada para dormir, sem cobertas. A cama 
pára  ao  centro  no  fundo  da  cena.  As  velhas  ficam  atrás  da  cama  como  se  vigiassem  a 
mulher.  Falam  entre  si  sem  dialogar,  falam,  revezam‐se  falando  em  uma  Homília,  fala‐
leitura com temor, voz das sombras ruborizadas 
 
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1‐com  você  morta,  eu  poderia  sair  sem  medo,  olhar  nos  olhos  dos  que  me 
conhecem,  comprar  novas  roupas,  um  cheiro,  um  novo  cheiro  para  o  corpo  que  ainda 
vive... 
2‐roupas,  minha  filha,  vista‐se,  fique  dentro  da  casa,  dentro  de  sua  mãe,  a  que 
chora com os hinos para o deus do inverno e do livro de muitas folhas... 
3‐  quando  eu  era  menina,  um  homem  bom  me  contou  estórias  em  seu  colo 
amargo  e  nunca  mais  precisei  escovar  os  dentes,  ou  gritar.  Minhas  poucas  mãos 
menores  que  a  cor  branca  da  pele  sem  amanhã  cuspiram  o  suor  do  moço  que  me  viu 
sorrir e agora eu durmo outra vez... 
4‐  eles  chegaram  tarde,  vindo  de  todos  os  lugares,  como  antes;  alheios  a  nós, 
elas, trazendo mais bocas que rostos, não tinham rostos mesmo, não queriam ver, eles 
ali, em volta do sangue, a menina, aquela, a que lhes pertencia, elas não viram, todos em 
volta da morta, que não gritava mais a vida saindo entre as rasgadas vestes...(ele começa 
a recolher os panos que estão em volta e faz parecer que as lava, maior o ruído da águas 
florescendo para fora de sua banheira  e do barulho da fricção da roupa contra roupa que 
a limpeza) 
5‐  eu  mesma  não  viria  até  aqui  se  soubesse  as  razões,  tamanha  confusão  sem 
respostas,  só  as  gentes,  e  é  noite  lá  fora,  perto  daqui.  Eu  mesma  pediria  que  todos 
voltassem  para  suas  casas,  que  deixasse  a  rua  pronta  para  o  dia  que  abre  os  lares  e 
esconde  os  que  se  amavam.  Ninguém  comigo,  ninguém  com  força  para  erguer‐me  das 
madeiras sujas e envelhecidas dessa casa vazia e nua... 
6‐  foi  ciúme,  uma  incerta  mão  que  retornava  a  pedir,  saindo  de  suas  sombras. 
Hoje ou nunca, ninguém, a decisão. Algo nos toma e leva, como antes, meninos a matar 
passarinhos porquê. A mira feita, a ave que voa, inveja da mão que atira coisas. Meninos 
novamente, com medo da mata alta, esquecem atrás a pequena carne de ninguém.. Foi 
?(  começam  a  lentamente  girar  a  cama.  Ao  mesmo  tempo  ele  fala,  com  voz  cansada    e 
ofegante,  sentado  na  bacia,  os  braços  em  volta  da  lata,  um  corpo  descansado  para  uma 
voz tensa, fala olhando fixamente em frente, os lábios acompanhando e mordendo o rigor 
de uma voz que sabe de uma redenção, que não tem um passado com o qual hesitar) 
‐eu poderia ter feito tudo diferente, mas estava só, seus amigos eram meus e não 
havia ninguém para me escutar. Sem o que dizer, tudo ficou mais fácil e coube em mim. 
Um pouco demais prá mim, pequeno e tanto , minhas unhas já cortadas, de meias meus 
passos  da  cor  das  raízes.  Poder  gritar  eu  podia,  esperar  até  isso,  dentro  de  mim  você 
muito,  muito  mesmo  para  mim,  muito  de  sua  pele  ‐  eu  corto  devagar‐  muito  de  seus 
dentes ‐ eu trouxe todos‐ muito de seu sexo ‐ eu beijei prá lembrar. O céu, amor, vire os 
olhos, há tempo o céu era pesado demais, longe de se pegar , não me deram mais. Era 
somente  eu  agora  vendo  que  o  céu  tem  cores,  que  você  não  disse  nada.  Nem  esse 
segredo, amor, nem essa vida minha ficou contigo. Eu dizia que ia chegar e num abraço, 
quando  chegava,  já  estávamos  lá  dentro  do  quarto  de  sua  mãe  suados,    amanhã  outra 
vez, adeus, todas as tardes, domingo, todos iam rezar menos nós. Era só o que eu sabia, a 
sua casa de sua mãe, ali mesmo quando um homem te levou entorpecer, não eu. Eu vim 
buscá‐lo em teu corpo, tirá‐lo de você, todos eles, os que vieram antes e há pouco. Você 
nunca me ouviu que era preciso esperar. Com calma, as carnes se partem melhor, veja 
como  eu  devolvo  o  rosto  de  menina,  sem  dor  e  sem  vontade.  Eu  beijo  teu  sexo  até 
encontrar você de novo criança sozinha outra vez, sem mais ninguém...(fala o grupo das 
mulheres, ainda girando a cama, arrastando seus pés , marcas do esforço e da passagem 
das horas) 
7‐  eu  só  queria  rir,  correr  lá  fora  sem  mais  parar,  os  olhos  em  mim,  em  meu 
corpo desfazendo‐se no ar que se arrebenta em meus cabelos que um dia cortei. Pintei 
A idade da terra e outros escritos  115  

das  cores  de  um  pôr  do  sol,  o  céu  avermelhado  de  sangue  eterno,  fechado  o  olho  do 
mundo para o mundo 
8‐ quem corre por entre às águas senão ela, a de muitas pernas e coxas, entregue 
ao bem fazer do que não espera nem colhe ? Totalmente fora de si, quase a cair no chão 
de  tão  exposta,  e  nada  guarda  porque  nada  tem.  Gasta  mais  que  suas  posses  e  ainda 
quer  mais.  Na  noite  justa,  recebeu  sua  parte  e  devolveu  os  empréstimos.  Um  dia 
agonizante para nós é muito, nós que passamos a vida a olhar, o apenas. 
9‐  a  fumaça  nos  trouxe  aqui  e  eu  não  te  amo.  O  cheiro  das  águas    no  ar,  nosso 
banho, nossa casa que acordamos já sonhamos. Eu não preciso dizer o que deves fazer. 
Mesmo  assim  eu  mando.  Tire  sua  roupa  junto  com  a  minha,  limpe  o  chão  da  casa,  
cuidado com esse santo lugar. 
10‐ já podemos ver melhor, em volta dela, a garota do olhar num corpo tornado 
selvagem, a vertigem da fumaça, os pulmões vazios e sangrando. Ela trouxe todos para 
si e em volta dela vemos, eles, ainda cada um em volta dela para melhor ver, para levar 
um pouco dela para si, como antes. 
11‐ somos as amigas da morta, ela , a de muitos amigos, no centro da multidão, 
viemos  levá‐la,  para  que  descanse  de  sua  busca,  para  que  retorne.  Alguém  a  esperou, 
que dissesse sim, que fosse embora de uma vez, não hoje.  
12‐  o  chão  é  imundo,  das  cores  de  uma  tarde  que  morre,  que  põe  medo  nos 
homens que não querem agir. Abram espaço para que ela saiba do fim das coisas (pára 
de girar.  Mesma posição do começo da peça. Ele afunda nas águas e torna e retorna,,entre 
espaços  prolongados  de  submersão,  cada  vez  voltando  e  alterando  seu  rosto  para  um 
terror  estampado,  imóvel  e  absorto  e  incontido,  para  uma  maquiagem  que  se  desfaz.  A 
mulher da cama fala) 
‐  Com  você  morta,  eu  teria  as  palavras  de  volta,  o  rádio  desligado,  não  as 
músicas, não as música, por favor. Eu não sei dançar e todos riem, nada me leva ou traz, 
eu aqui a teu lado. As vezes eu gostaria que você morresse só um pouquinho para ver 
como é. Com você morta, por alguns momentos não haveria mais dúvidas, só a certeza 
de você sempre aqui. Eu poderia sair de casa, conversar com as pessoas, saber que há 
dia e noite, e tudo é mesmo e outro outra vez. Não mais a vigília cansada, o padecimento 
voluntário, o ocaso, eu, por dentro de dentro de minhas roupas sem calor, a desistência 
imensa nessas águas, um banho, limpar‐me todo( gargalha enquanto repuxa suas roupas 
como  se  se  banhasse);  ás  águas  dos  céus,  rir  para  as  nuvens,  ver  que  nada  se  abaterá 
sobre minha cabeça, que o chão é para sempre, que posso andar, que você vai estar me 
esperando. As ruas, ninguém mais rindo de mim. Aí eu dançaria, sem precisar olhar para 
portas  e  me  esconder.  Fora  os  meus  olhos  pequenos  diante  do  grande  mundo  que  me 
levou prá longe e tanto e quero voltar. Com você morta eu me sentaria na rua, olharia 
para  cima  e  nunca  mais  tropeçar  em  minha  própria  condição.(  elas  em  uníssono  e 
desencontradas sentenciam até o fim da fala seguinte, a dele) 
13‐ o cheiro de bocas, bocas gemendo 
14‐ bocas em bocas fumando seus ais 
15‐ ontem outra vez bem antes demais 
16‐ cheiro de bocas, as bocas queimando 
17‐ gemem o cheiro que fumam nas bocas 
18 fumam nas bocas o qu’ não volta atrás 
 
‐(  ele  cai  da  bacia  e  começa  a  limpar  o  chão,  secar  o  chão,  com  as  roupas  que 
lavava. Ela fuma na cama observado seu servo. Elas observam o homem e a mulher ) Por 
aqui,  é  por  aqui,  eu  digo,  sigam‐me,  tudo  vai  acontecer.  Eu  não  sabia  antes,  mas  eu  vi. 
Sigam‐me,  um  pouco  à  distância,  cuidado  em  que  pisam,  o  chão  é  áspero  para  quem 
foge.  Sob  seus  pés  eu  me  pertenço,  tornando  breve  o  peso  da  queda.  Um  barulho  que 
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afugenta  os  demais  mostra  quem  se  despediu.  Por  aqui,  meus  amigos,  não  há  o  que 
temer. Um por um, minha fome ingeriu e envolveu. Eu lavo as sobras que me pertencem 
como  as  cinzas  e  a  faca.  Nunca  mais  será  outra  vez  o  antes.  Era  o  dia  último,  o  da 
despedida  para  não  ser.  Em  meu  quarto  espera  a  noiva,  a  de  antiga  viva  voz.  A  porta 
aberta como sempre, não mais as mães e as rezas. A cama nova para um novo tempo. Eu 
tremendo  como  uma  virgem  com  febre  e  desejo.  Próxima  a  mim  a  que  me  toma  e 
devora. Até que as palavras cumpram o fim: “não meu, amor, eu te liberto para sempre. 
Alguém  me  espera  e  é  preciso  fugir,  fugir  para  não  encontrar.  Eu  quero  os  caminhos, 
hoje não o repouso não. Fumar lá fora, adiante. Deixe‐me, eu tenho minhas mãos e não 
olho  para  trás.  Nunca  o  aqui”.  (elas  voltam  ao  tom  primeiro,  enquanto  ela  se  ergue  na 
cama, abaixa‐se para vê‐lo, sem nenhum sentimento) 
19‐ as mulheres, apenas, escutem, são as mulheres que nos tornam homens. Se 
quiser eu posso ser maravilhoso... 
20 ‐ flores, meu amor, para quem cheira e fuma. Beijos, minha morta, um céu é 
pouco para quem se foi... 
21‐  durma,  vê  como  é  quente  um  novo  berço  para  a  que  se  diz  mulher  e  é 
carregada pelos braços. 
22‐ no meio da grande festa tombou de tanto girar, atingida no jogo de luzes dos 
olhos, do escuro.  
23‐ e chorou muito a culpa para todos que não entendiam, a culpa para os  que 
não sabiam que a brincadeira não era para se acabar 
24‐  um  grito  na  cama,  os  olhos  virando,  o  mundo  deixando  de  estar  a  seus 
pés.Um grito nu que brilha e esquece, tanto gritos, uma multidão que grita dentro e fora 
dela, a cama que geme entre úmida fumaça 
(ele começa a rasgar suas roupas de noiva. Ela retorna à sua situação de inicio de 
peça. Elas se dividem. Viram a cama em lateral , duas ficam em situação contrária, puxam 
para si seu lado da cama enquanto que uma , no fundo do palco , brinca de pular corda 
sem haver, olhando para o que ele faz. Ela fala) 
‐ eu soube que era noivo, que não me pertencia mais. E aceitei, disse o sim, antes 
de  tudo,  até  querer  morrer.  Antes  ,  você  foi  embora,  e  tudo  era  a  mesma  coisa.  Contei 
prá eles, queria amigos , queria você comigo, uma má palavra para te envolver como um 
beijo que eu não dava. Quando acordava você já partia, sem adeus, uma trama, a sagrada 
provocação.  Eu  fiz  de  tudo  para  te  avisar  que  nada  adiantava,  que  não  havia  mais 
mundo, que eu não era daqui. O menino estranho que não brincava de correr para ver 
os que se escondiam nos aniversários, ei, o que você está fazendo aqui na festa que não 
é sua e vá embora. Daí tranquei‐me por dentro com uma faca, um travesseiro e uma dor 
que  não  sei  quando  termina,  se  é  agora  ou  depois.(  Ele  vai  deitar‐se  na  cama  com  ela. 
Abraçam‐se, ele no peito da mulher que, como se fosse uma mãe, acolhe seu filho ,ninando‐
o, olhando para frente como se já não existisse, como se nada existisse. Ao mesmo tempo 
dessa cena, elas voltam para seu lugar e observam tudo como antes.Falam fumando como 
num bordel, as piteiras e cigarretes) 
25‐ volte para seu país, você que nunca nos deu nada 
26‐ tome esses cortes para mostrar que um corpo é mais que uma ausência 
27‐ não há dor para quem não ama, e nem amor para quem não vive 
28‐ Na hora do gozo, sabe que as carnes estremecem torturadas, um delírio que 
nos mostra que estamos aqui 
29‐  vejam  todos,  sigam‐me,  vejam  o  encontro  dos  que  se  desconhecem  (fala 
consigo: mas alguém soube que o amor acaba antes de haver) 
30‐ a criança nunca está só, nem brinca mais, a mulher de plástico que perdeu a 
cabeça e foi trocada por outra mais mastigável 
A idade da terra e outros escritos  117  

31‐ gorda verdade, gorda e do peso de um céu gordo e barulhento, peidando e 
esporrando acima de nós, a festa derradeira 
32‐ um grito é pouco, menos que o cheiro da baba de cinza que escorre da bacia 
de latão furada, a barca dos homens, a descrença das mulheres. A vida girou e girou e 
nos trouxe os mortos, os que não cabem mais em si, o desencontro maior. (começam a 
empurrar  a  cama,  dando  uma  volta  no  palco  até  voltarem  para  seu  lugar  de  partida  e 
sairem  de  cena  para  sempre.  O  passeio  burlesco  se  faz  dançando  e  cantando  a  seguinte 
música  ‐em  estilo    fox  trot‐,  enquanto  o  casal  sorri  e  se  despede  da  platéia  ao  passo  que 
brinca e briga com uma faca,  entre indas e vindas: 
 
Alguém é sempre bobo de alguém 
quando amor não há entre os dois 
um dia me passaram para trás 
vejam só o que houve depois 
 
(...) 
 
 
 
 
 
 
 

A festa 
 
 
 
 
Quase  escuridão  de  só  se  escutar  passos.  Grupo  de  pessoas  entram  conversando 
com copos de bebida nas mãos, vestidos para uma festa a rigor. Aos poucos notamos que 
essas  roupas  só  aparentam  essa  formalidade.    À  medida  em  que  as  luzes  aumentam, 
tornam  mais  claros  os  disparates  de  combinações  das  roupas  e  dos  homens.  Sapatos  de 
cores  e  tipos  diferentes  e  misturados,  andares  desajeitados  e  trôpegos,  cores  que  não  se 
ajustam, pessoas que se desconhecem, uma festa ? Se há, me levem... 
A  encenação  se  marcará  por  grupos  que  dialogam  entre  o  burburinho  agora 
tornado ritmo e cenário. O que importa são os conjuntos e não quem deles participa. Todos 
exageradamente  se  encontram  em  emoções  que  resguardam  uma  profunda  melancolia 
entre  a  luminosidade  dos  rostos  que  sorriem.  Os  risos  são  momentos  entre  as  falas,  os 
gestos de quem não tem  nada a dizer, ou poderiam. Geme a platéia em palco , como se se 
arrastasse para viver em sua baixa voz de escuta. Os grupos se aproximam bisbilhoteiros 
sem sair de seus lugares, mudam de espaço, andam pelo salão como brincadeira de roda, 
sem  troca  de  companheiros.  Todos  na  festa  vão  ficar  como  entraram  ‐    mendigos  em 
andrajos, a sede que não cessa, uma noite a mais que se foi. 
 

Grupo 1 
‐  eu não trouxe os convites 
‐ e eu, pior, nem sabia onde era (riem) 
‐ menos, amigos, menos  nos olhos e tenho medo (riem) 
‐ o que pode acontecer em uma festa, tudo menos faltar bebida ? (riem) 
  118  

‐ menos amigos , pelo menos estamos aqui (riem) 
 
Grupo 2 
‐ de quem é a casa, minha é que não (riem) 
‐ ops, deixei cair o copo ‐ está vazio mesmo (riem) 
‐ se quiser te trago outro, não é meu mesmo (riem 
‐ vamos todos então beber até cair... mais copos(riem) 
‐ se quiserem, amigos, eu caio junto com os copos (riem) 
 
Grupo 3 
‐ se notaram bem, aqui não há mulheres e eu gosto de loiras ? 
‐ porque escolher:  há bebida a vontade, para todos os gostos (riem) 
‐ uma mulher, seja loira ou não, tem olhos ‐ é o que não entendo(riem) 
‐ então bebe, e vê se entende menos ainda(riem) 
‐ mas elas têm olhos, eu juro que têm(riem) 
 
 

Grupo 1 
‐ sei que nos olham, amigos, sei que não nos conhecem (riem) 
‐ claro, estamos em todas festas, e juntos (riem) 
‐ sempre nós, noite inteiras, primeiros, e últimos a sair  
‐ eles nos conhecem como nós os conhecemos(riem) 
‐ sempre nós, até o que dia se acabe(riem) 
 
Grupo 2 
‐ viram, aquele moça, ali, com um rapaz 
‐ um casal, é isso que você quer dizer, um casal ? (riem) 
‐ A que derramou bebida em sua roupa e agora dança melhor ? 
‐ a que amou de uma vez os namorados e os amigos perdidos em seus olhos ? 
‐ a que fechava os olhos para escutar as músicas, as músicas , as músicas... 
 
Grupo 3 
‐ se te dissesse que tenho fome, vamos, amigos, longe daqui 
‐ espera, elas nos olham sem piedade, nos conhecem, nos conhecem 
‐ eu vou buscar bebida, trago bebida para todos 
‐ espera, elas nos querem mais que a festa 
‐  eu  vou  buscar  bebida  ‐  ainda  é  cedo  para  lembrar  (  Música  repetitiva, 
psicodélica,  um  ritmo  que  não  há,  como  um  carro  enguiçado,  como  um  ensaio  ruim. 
Começam a dançar todos, presos em si,  de olhos nos outros) 
 

Grupo 1 
‐ quem me trouxe, e quem me deu um beijo, eu sinto 
‐ dança, amigo, antes que a musica termine 
‐ eu não quero ir embora, ouviram, não me deixem voltar para casa 
‐ mais bebida, meu copo se quebrou de tão seco 
‐ não deixem que me levem, não deixem que eu vá 
 
Grupo 2 
‐ Se estou só, não sei, não pergunte, não vá embora, volte depois 
A idade da terra e outros escritos  119  

‐ onde vou dormir, alguém me diga, onde vou ficar quando o dia vem  
‐  Amigos,  não  quero  mais  beber,  está  quente,  quero  algo  mais,  sonho  e 
pensamento  
‐ o banheiro fica onde, eu não sei onde fico, eu não sou daqui, só mais um pouco, 
esperem 
‐ Amigos, algo prá cabeça, por favor, eu tenho que pensar e dormir, mais, muito 
mais 
 
Grupo 3 
‐você é muito bonita, sensível, nem me escuta 
‐ vamos dormir juntos, eu bebi muito 
‐  eu vi, estão nos procurado, por isso aumentaram a música 
‐ aumenta essa merda de música, aumenta essa merda 
‐ eu vi, alguém não deixa de nos ver 
(a  música  aumenta  seu  peso  e  ritmo  e  mesmice.  Todos  dançam  pulando,  pulam 
como se quisessem tocar o teto, como se estivessem com um peso nos pés amarrados) 
 

Grupo 1 
‐ que, alegria, vocês sabem, como é bom estar aqui (riem) 
‐ eu vou dormir com a loira, depois quando tudo acabar(riem 
‐  mais  bebida,  mais  uma  ida  ao  banheiro,  mais  fumaça  na  sala,  mais,  eu  quero 
mais(riem)  
‐eu, tô suado, cara, eu, lavado em minhas calças, eu tomei banho de mim(riem) 
‐ mais bebida, cara, mais fumaça, aumenta essa merda 
 
Grupo 2 
 
‐ eu tô cansado, mas não vou parar, todos dançam e é fácil 
‐ desse jeito, a festa não acaba e eu não quero voltar prá casa hoje 
‐ não me pegue por enquanto, deixa que tá combinado, tudo combinado 
‐ ei cara, deixa ver , deixa ver se me agüenta de verdade, deixa que eu falo 
‐ não me pegue, volta mais tarde, agora não, cara, agora não 
 
Grupo 3 
‐ e se eu gritasse, hein, se gritasse bem alto contra o teto que me beija 
‐ Ninguém te quer, meu amigo, ninguém te quer de verdade 
‐ sei que muitos vieram por minha causa, muitos estão aqui comigo 
‐ e seu gritasse, hein, para aquela ali, a que tem olhos, de se ver  
‐  sei  que  muitos  vieram  comigo,  aqui,  em  toda  parte  que  gira  (estão  em 
movimento  de  salto  e  rapidez  no  máximo  de  sua  aceleração  que  continua  no  violento 
quadro seguinte. O cansaço aparece aparente) 
 

Grupo 1 
‐ ninguém me bate não, não chega perto, sai daí, cara 
‐ eu quero mais que tudo vire merda, muita merda 
‐ bebida não dá mais não, muita pouca bebida, mais coisas, mais coisas 
‐ tá passando bem cara, tudo bem, os pensamentos na ordem ? 
‐ bebida não dá mais prá mim, cara, mais coisas, outras, dessas aí 
 
  120  

Grupo 2 
‐ e se alguém tirasse a roupa, só prá começar, nuazinha, essa doida, louca assim 
‐ levanta essa merda, som pequeno, filete de música a gente não quer não 
‐ eu preciso falar com alguém, é tarde, é preciso, me escutem, só um pouco 
‐  tira  essa  roupa,  gatinha,  um  corpo  só  numa  noite  com  gás,  essa  doida,  louca 
mesmo 
‐ eu preciso que me escutem, um pouco, aumente o som dessa merda 
 
Grupo 3 
‐eles sabem, eu te disse, olham para aqui, os grupos se fecham, vão nos engolir 
‐  mais  bebida,  calma,  mais  bebida,  eu  encho  teu  corpo,  almas  úmidas  até  ao 
amanhã  
‐ minhas mãos arrastaram mais beijos longos, a música misturada dentro de nós 
‐ eu tô demais, cara, eu tô como nunca, tipo assim, tô pelado, saca aí, tudo nu 
‐ minhas mãos arrastaram tudo em volta, longos beijos que não são para sempre. 
(fim da música, de repente. Aumenta um pouco a luz.  Todos se olham e caem no chão ) 
 

Grupo 1 
‐ quando será a festa, a que nunca houve, a grande noite, me convidaram ? 
‐  Um  tempo  houve,  e  eu  bem  sabia,  vir  aqui  mesmo,  eu  sabia  que  viria  aqui, 
nunca te disseram ? 
‐ todos vinham, e eu já sabia, a festa nos olhos de quem quer vir, bebida e rumo 
‐ pisar o chão, mover o corpo, beber sem sede, beijar sem ver 
‐ todos vinham, eu já não disse, o louco pouco tempo que temos 
(  espalham‐se  como  em  rodas  de  contos,  e  monólogos  são  acompanhados  com 
graciosidade e atenção, como se contassem estórias infantis e como se quem os escutasse 
crianças fossem, ao som da voz de quem nos transpõe, a fantasia esquecida) 
‐  (ri)  uma  vez,  e  nem  poderia  ser  diferente,  era  quando  entrei  na  festa.  Nunca 
antes : essa era a primeira e única vez, eu lá dentro, a calça fora de tom, o andar fora do 
ritmo, os olhos rindo mais que meu rosto já escondidos no olhar pendendo pesado para 
baixo,  com  presa,  após  revirar  os  lados  pelos  cantinhos.  Um  jovem,  meus  amigos, 
andando pelos extremos da sala, um jovem que andou a noite inteira nos buracos vazios 
da  multidão  que  lhe  dava  as  costas.  Ninguém  achava  que  ele  estaria  lá,  o  de  poucos 
gestos,  roupas  de  lã  no  colégio,  um  suor  escorrendo,  o  calor  indo  embora,  os  olhos 
tristes de quem não nada sabe. Avisem para ele que hoje não é escola, mandem que ele 
tire essa roupa de colégio, que hoje é sábado na casa de seus conhecidos, a rua inteira 
aqui, as muitas ruas aqui, os caminhos, para que ele pare de andar e olhe, e veja os olhos 
pulando por entre as caras aberta, a luz de mil cores misturando‐se com o gosto amargo 
da cerveja, os pés lisos e ligeiros e o céu, só o céu que nos espera. Sai da escuridão, meu 
jovem,  fala,  que  ninguém  se  escuta,  mexe  o  corpo  para  dizer  que  está  vivo,  senão  te 
pisamos, toca na mulher, sente as carnes muitas dentro de um vestido raro e leve para 
que a tomem e levem, veja as carnes pedindo ar, boca na boca os corpos se conhecendo 
e  indo  embora,  uma  outra  vez  agora  não,  talvez  nunca  em  outro  lugar,  só  o  agora,  o 
apenas, meu irmão. Você viu tudo isso em teus olhos e a desejou mais que os retratos 
das revistas, foi em direção a ela, ensaiando um balançado no corpo, um sorriso maroto 
na cara, a cabeça deixando de contemplar o chão que todos deixam e esquecem. Olhos 
firmes à frente, somente a frente, ela, os cabelos escorrendo pelo grande corpo, em pé à 
sua frente, o jovem com todas as suas mãos prontas, quase correndo, entre sua trôpega 
dança  e  os  outros  que  se  abraçam  e  se  cruzam  na  sala,  correndo  atrás  de  outras 
mulheres. Ela ergue‐se mais e mais enquanto ele corrige seus movimentos e pára. Pára e 
A idade da terra e outros escritos  121  

baixa os olhos, no meio da grande festa, todos esbarrando nele. A multidão entre você, 
meu  jovem,  e  a  mulher,  a  multidão  levando‐a  embora,  para  frente,  para  bem  longe. 
Adeus,  meu  amigo,  volte  para  a  escola,  não  saia  na  rua,  não  venha  em  meu  baile.  Em 
acreditei  que  você  viesse  conosco,  que  bebesse  nossas  bebidas,  que  comesse  o  que 
comemos, nós todos juntos aqui, até que o dia nos canse e dele fujamos como os animais 
fogem  do  fogo.  Não  podemos  esperar  a  noite  inteira.  A  vida  escapa  por  entre  as  mãos 
vazias  de  não  mais  possuir.  Erga  os  braços,  cara,  olhe  o  que  tem  em  tuas  mãos,  o  que 
tem aí para ficar contigo e contar pros outros. Quem vai te ouvir, que estórias nos dará o 
que parou no meio da festa , os outros levando a sua fêmea, os outros tendo seu prazer ? 
Não volte, mais, nunca mais. Teu lugar não é aqui, tua vida está em outra parte. A festa 
acabou mais uma vez.( aumenta as luzes, todos se comportam como se estivessem em uma 
lamentação fúnebre, acompanhando quem fala) 
‐  eu  falei  para  que  não  viessem,  para  que  não  me  trouxessem,  que  não 
trouxessem  os  seus.  E  agora,  meus  amigos,  o  que  diremos  nós,  como  explicar  o  que 
aconteceu, a covardia suprema acontecida ? Como explicar o término das coisas, o chão 
vestido com nossos corpos, cansados aqui, a bagagem imensa de não poder se carregar ? 
Quem nos trouxe, quem nos enviou para aqui, por que viemos se era demais o preço a 
pagar  e  devemos  o  pouco  que  não  temos,  o  muito  que  deveremos  tomar  emprestado, 
nós, amigos, os sem razão, fracos demais para entender o que houve, as mãos pendendo 
agora, os olhos cansados de nós, as pernas pesadas, muito longe demais para a volta, a 
longa  volta.(Toma  alguém  caído  no  chão,  o  dono  do  monólogo  anterior).  É  certo  que 
estamos  vivos,  mortos  seria  uma  vitória,  o  amanhã  sem  lembrança  na  ferida  aberta  e 
sangrando de não se curar. Era só fazer os curativos, retirar as sujeiras, raspar o lugar, 
abrir  espaço  entre  as  carnes  e  as  peles,  e  tampar  tudo  bem  firme,  com  ira  bruta, 
xingando os que nos abandonam, que escolheram o melhor caminho entre as fendas da 
terra,  o  olhos  que  nunca  mais  vão  abrir,  bater  nesse  corpo  (bate,  eis  a  ira)  para  que 
mesmo morto grite sua culpa, fuja de seu medo e me agrida, um tapa no rosto, o rosto 
vermelho,  a  dor  que  não  sangra,  o  vermelhão  subindo  o  corpo  inteiro  até  que  haja 
pensamento e o silêncio de quem sabe, escuta e aceita. Eu falei para que não viessem, e 
vindo, para que não se entregassem. Eram pequenos, eles, sempre rindo, a casa que não 
nos pertence, as luzes que não são nossas. A música alta, eu falei, a música muito alta, 
pouca a luz por entre os homens, brilhantes as roupas da mulheres, suor e bebida nos 
afogando, até não mais se respirar, o que ? (olhando para a platéia, personificando com 
gestos o homem do qual fala). É aqui que um coração bate, não mais o seu, o vai e vem 
rápido e exposto, um peito que se abre projetando‐se longe de si. É agora que o coração 
não  mais  te  pertence  e  dança  assustado  com  medo  de  olhar  atrás.  Pula  e  dança  sem 
freios, fazendo o corpo inteiro ecoar a multidão da sala. A qualquer momento a queda 
virá;  breve,  o  sangue  das  carnes  rasgadas  cobrirão  de  imundície  o  chão  pisado  por 
todos,  um  grito  surgindo  baixinho  por  entre  a  boca  que  baba  sangue,  o  homem  sem 
coração cambaleando vigorosamente. É agora que um coração bate, torna e retorna para 
seu  dono,  o  que  viu  a  cor  inteira  de  seu  desassossego,  que  pode  saber  como  é  longa  a 
espera  por  quem  foi.  Seu  coração  não  deixará  que  caia  e  ele  poderá  rir,  por  alguns 
instantes.  Mas  logo  lembra  apenas  do  que  sentiu  sem  saber,  a  quase  queda,  o  breve 
aceno , o frágil fôlego, a vertigem que trespassa. Então, beberá mais no copo dos outros, 
zumbido a música mais alta, escravo do ritmo que não é seu. Mais e mais grita para que 
o coração se seja roubado de novo, o medo de não ser vencido pela verdade do desejo. 
Mais  e  mais  a  garganta  um  lago,  a  dança  que  expulsa  e  devora,  o  teto  ‐  a  realidade 
última.  Eu  falei  para  que  não  viessem,  agora  é  tarde  demais.  Estamos  aqui  cansados, 
sede  e  fome,  esperando  a  noite  próxima,  esperando  os  novos  amigos,  os  que  vierem 
para não mais voltar. Venham todos  ( começam a erguer‐se os outros rumo ao que fala, 
gemendo  seus  ais,  recuperando  as  frases  dos  grupos),  eu  disse,  tragam  seus  corações, 
  122  

sintam  o  peso  de  um  coração,  a  podridão  do  sangue  que  só  um  coração  tem.  Venham 
amigos, dancem conosco a verdadeira festa, saiam de suas casas frias e sem vida. Aqui 
haverá  gritos  e  violência,  misturaremos  nossas  carnes,  rasgaremos  a  face  encarcerada 
do mim. É tarde demais para fugir, escutem o chão moer os ossos, as roupas de muitas 
cores.  Vejam  o  peso  da  canção  de  despedida.  Eis  a  festa  que  não  acaba,  eis  a 
festa...(Máximo de luz como se todos ficassem cegos, luz branca contra a platéia, como se 
partisse do alto da montanha de corpos da festa) 

 
 
 
Natal sem crianças 
 
 
1 ato 
 
Um sala de estar antiga, tapete, mesa, sofás, abajur, silêncio. 
Atrás  uma  escadaria  espiralada  sem  fim.Um  pinheirinho  derrubado  no  chão. 
Pedaços pacotes de presentes por todos os lados. Começa o grande diálogo. Três velhos em 
sua noite anual de encontro. Os três amigos. 
 
 
Torga‐ esse é o tempo do mundo, amigos, a filosofia dos dentes cariados.  
Sebastião‐ digamos que eu entenda essas palavras, mas antes eu vou rir.. 
Robson‐ amigos, vamos escutar antes de rir, vamos aguardar alguns momentos, 
calado nosso espanto. 
Torga‐ obrigado, eu sou grato a todos que têm dentes... 
Sebastião‐ de novo, não, chega, não me faça rir, que loucura esse senhor, e nós 
aqui  reunidos  tarde  da  noite.  Eu  bem  sabia  que  esse  encontro  era  importante.  Agora 
vejo  porque.  Nosso  amigo  enlouqueceu.  Nos  tira  de  nossas  casas,  insistindo  com  suas 
ociocidades. Isso já dura demais. Me desculpem, mas tenho mais o que fazer. 
Torga‐ sente‐se e tenha paciência, agora sou eu quem afirmo. O caso é sério, as 
pessoas vão saber depois. Nós aqui, bem antes , nessa sala, alheios a tudo, cercados por 
paredes que nem nos escutam, nem nos olham pois tudo acabou. Era uma noite e fomos 
jovens,  um  natal  há  muito  tempo,  amigos,  um  pacto.  Casados,  a  única  traição,  casados. 
Agora me escutem. Tudo é tão simples. Mais difícil é me explicar, exigir que confiem em 
mim,  que  me  dêem  ouvidos.  Sebastião,  quanto  tempo  eu  perdi  com  tua  confissão,  a 
esposa  inconfiável,  metida  em  roupas  pequenas  em  casa  e  a  longa  fala  fora  dela.  Uma 
mulher  fora  de  si,  não  para  casar,  mas  tudo  foi  assim,  um  desejo  para  um  surdo 
pensamento.  Sebastião  tirou  a  mulher  ainda  menina  de  sua  família,  a  menina  que 
trabalhava  nas  casas,  o  sorriso  amarelado  de  quem  não  tem  passado,  só  olhos  se 
A idade da terra e outros escritos  123  

esgueirando  entre  as  janelas  querendo  vida.  Pegar  pacotes,  trazê‐los,  mais  mãos  para 
outras que não são as suas, nem os pacotes. A balconista de bom olhar, de bem se ver, 
ela mesma, a menina detrás do balcão, entre o mundo com homens tantos e lá fora, só 
um balcão, um impulso. 
Sebastião‐ Chega. Não vou agüentar mais essas acusações. Não foi culpa minha. 
Eu  não  queria  nada,  eu  entrei  ali  por  acaso,  nem  lembro  o  nome  da  loja,  eu  tinha  de 
levar algumas coisas, uns pedidos de minha mulher, a que não que não voltou para casa, 
essa não, a outra. Chega. Dentes, dentes cariados, o que tem a ver os dentes com meus 
segredos ? 
Robson  ‐  Calma,  amigos,  calma.  Se  alguém  quer  ser  escutado,  se  alguém  quer 
ouvir que se narre outra história, que se conte outra coisa. Eu mesmo emendo tudo com 
um fato, e não uma suposição. Eu também entrei naquela loja e vi a menina, a sua futura 
segunda mulher, Sebastião. Esperei que ela mesma me atendesse, os vestidos seus com 
cara de embrulho, o rosto, o rosto sim, um presente dos melhores. Não sei se seu rosto 
se parecia com alguma daquelas belezas do cinema, ou se o cinema a havia descoberto e 
esquecido  ali,  escondendo‐  a  de  todos.  Mas  ela  destoava    de  tudo,    ela  quem  deveria 
estar  nas  prateleiras.  Pedi  uma  camisa,  perguntando  sua  opinião  que  não  veio.  Uma 
mulher  sem  gosto  ,  uma  mulher  só  o  sorriso,  os  dentes  brancos  muito  brancos,  uma 
camisa  ,  eu  queria  agora  uma  camisa.  Ela  trouxe  todas,  que  neguei,  uma  após  outra, 
todas  as  camisas  da  loja,  o  balcão  amontoado,  os  fregueses  reclamando,  e  eu  pedindo 
mais, despindo a loja inteira, não me cabendo mais em tanto pedidos. E eu pedia que a 
mandassem buscar mais mercadoria, que ela me servisse todas, a loja vazia, eu e ela ali.  
Sebastião‐  Mas  que  atrevimento.  Dois  amigos  e  minha  mulher.  Eu  não  a  quis 
como  balconista,  como  desejada  balconista  de  uma  lojinha  qualquer.  Eu  dei‐lhe  uma 
casa, a que sempre desejou. Eu sabia que ela não queria a loja mas outra coisa, que não 
queria mais ser vista, queria se defender. Uma casa para onde voltar e nunca sair, com 
quartos  e  não  um  longo  balcão‐prisão,  uma  casa  para  Maria,  a  desejada  das  gentes, 
dentro  de  algo  que  queria,  longe  dos  pedidos.  Maria,  nome  de  santa,  da  mãe  de  nosso 
Jesus, um homem sem mulheres, um homem com todas elas, em volta de si, servindo e 
sendo  servidas,  um  outro  sentimento,  o  amor  e  a  água  fresca  e  os  pães  para  a  boca. 
Comer  e  beber  debaixo  da  sombra  das  mulheres,  as  de  muitos  vestidos,  as  de  roupas 
coloridas e lenços na cabeça de muitos cabelos. Uma mulher para mim, Maria, a mulher 
para a casa dela, a que eu dei. 
Torga‐ mas tudo isso é pouco e pouco, amigos, uma mulher que nos toma e leva, 
um corpo para se lembrar e esquecer. O sorriso nos lábios, não a boca, um sorriso nos 
lábios  ,  não  o  rosto,  um  sorriso  nos  lábios,  os  dentes.  É  desses  que  eu  falo.  Se  nosso 
amigo Robson cobiçou a mulher sabendo que era ou não a mulher de nosso Sebastião, e 
se soube e continuou vendo a loja, e a casa e Sebastião, o que havia no sorriso, os dentes 
do sorriso cravados em nosso amigo Robson, o que haveria senão o brilho cego de uma 
lâmina já dentro de si, do corpo de Robson, de seu sexo, uma boca com dentes, muitos , 
os muitos desejos que sustentam uma visão ? E Sebastião, o de tantos pudores, velhos e 
já  sem  dentes,  um  homem  escorrendo  entre  sua  baba  de  caçador,  de  tinhoso 
descansado,  alheio  a  si  em  sua  casa  ,  sozinho  em  sua  casa,  um  pacote  comprado  prá 
presente,  um  sorriso  dentado  percorrendo  sua  casa  vária,  o  interior  da  casa  de  um 
homem sem dentes, a boca banguela, a alma sem dentes, o sorriso moço de uma mulher 
com  seus  dentes  todos,  e  muitos,  e  fortes  e  vivos,  mordendo  tudo  que  se  encontra  em 
sua frente, sem sangue e hálito ruim, a moça abocanhando o escuro banguela e rançoso 
de um homem casavazia. 
Robson‐  Eu  não  acredito  que  viemos  aqui,  como  das  outras  vezes,  nos 
curvarmos às suas invencionices, de um dia mais iluminado pela voz do grande Torga, 
um homem sem mulheres e sem casa e sem sorrisos. Hoje é natal, seu Torga, lembra‐se 
  124  

?  Lembre  das  promessas  feitas,  as  que  obrigados  fomos  a  fazer  em  nome  de  uma 
amizade que hoje eu não entendo.  
Sebastião‐ Sim lembra, seu velho louco , lembra de nós pequenos e o pecado em 
nós  e  a  salvação  pelo  grande  Torga.  Nós,  tremendo  entre  nós  mesmos,  escondidos  do 
mundo,  nos  preparando  para  tomá‐lo  e  o  grande  Torga,  carro  fúnebre  e  covarde,  nos 
impedindo  de  viver:  ”não,  amigos,  promessa.  Nunca,  as  mulheres,  essas  impossíveis, 
nunca  nenhum  de  nós  dará  seu  coração  roubado  para  não  sofrer.  O  sofrimento,  não, 
acreditem, amar uma mulher é dividir‐se , é deixar de ser alguém, caminho sem volta. As 
mulheres nos roubam, assaltam. Fechar os olhos ante o contato indesejado.” 
Robson‐ Isso mesmo, eu lembro muito bem. O medo terrível para sempre. E eu 
tinha  tanta  vida,  tanto  futuro,  não  agora  mais,  o  tempo  acabou  e  estou  fora  do  tempo. 
Um  natal  sem  netos,  uma  vida  sem  amores.  Estes  são  nossos  presentes.  As  meninas 
vinham  e  passavam,  e  eu  por  dentro  gemendo,  em  minha  mão  presas  as  dobras  da 
camisa amassada contra meu corpo. As mãos suadas e os olhos em lágrimas escondidas 
‐ era tudo água, eu era todo inteiro em minha pele que se expunha, florescendo em água, 
todo  após  mim,  dádiva,  um  céu,  celeste  dádiva,  o  céu  em  mim  e  eu  regando  minhas 
vontades, fluindo vitralmente por entre os vãos da pele úmida , para alguém beber, para 
banhar, para lavar outro corpo com meu corpo, paixão oceano em busca de foz. 
Sebastião‐ E corríamos atrás das mulheres 
Robson‐ Todas, todas... 
Sebastião ‐ e queríamos todas 
Robson‐ mulheres, mulheres 
Sebastião‐ e o tempo era longo 
Robson‐ a vida, a vida 
Sebastião‐ e não acabava 
Robson‐ o tempo, o tempo 
Sebastião‐ as mulheres... 
Robson‐ todas, todas 
Torga ‐ (rindo e com raiva) Mas tudo isso é pouco e pouco, eu já disse, amigos. 
Parecem meninas brincando em seus jogos de falsa vergonha, antecipando as amarras 
da casa que seriam nossa verdade e destruição. Tão lindas, as roupas limpas, no rosto 
um  sorriso,  imitando,  não  as  mães,  mas  as  criadas,  fazendo  e  refazendo  o  serviço  de 
servo, agindo como servo, subjulgando‐se, humilhando‐se com bonecos de plástico para 
depois  ,  aprendido  com  os  mortos,  modelar  os  vivos.  Em  seus  jogos,  as  mulheres 
preparam  o  mundo  nosso,  o  que  perderemos.  Treinadas,  sabem  desde  antes  que  um 
boneco não sofre, mesmo que caia de seus braços, o barulho de um oco imóvel caindo 
num chão indiferente. Por isso, podem ter uma casa inteira de bonecos de plástico com 
olhos que não vêem, com pernas que não vão a lugar algum, com braços presos no corpo 
preso, apenas bonecos e papai ausente, papai trabalhando para mamãe... Idiotas, deixem 
as cantigas de roda, é hora de lembrar o que realmente é. Minha primeira vez era noite, 
e  sempre  foi  assim,  uma  noite  sem  cores,  uma  cegueira  que  me  levava,  eu  despido  de 
mim,  para  a  casa,  as  luzes  vermelhas  de  uma  rua  de  casinhas,  as  luzes  que  morriam 
entre a noite maior que isso tudo‐ impossível não ir.  
Sebastião‐ Dessa parte eu gosto, a primeira vez 
Robson‐ é, a primeira vez de Torga... 
Torga‐      (imita  os  trejeitos  da  prostituta,  de  uma  prostituta  grávida)  Ei,  garoto, 
vem fazer um baby comigo, vem ? 
Sebastião ‐ (os dois parecendo meninos) E você foi, Torga, foi mesmo ? 
Robson‐ que coragem, que coragem... 
Torga‐ as casinhas guardavam em si verdadeiros labirintos de novos e infinitos 
quartinhos, um após outro. Entrei numa delas e esperei a minha vez, uma cerveja para 
A idade da terra e outros escritos  125  

repousar, logo mais a cama e a dor na cama. Entre o bar e a multidão de camas, havia 
uma cortina de plástico de muitas cores, rodando e brilhando entre as músicas que se 
tocavam  no  bar  para  os  corpos  treinarem  o  suor  fora  deles.  A  cortina  de  muitas  cores 
dançava por entre o vai e vem de homens e mulheres que por ela passavam sorrindo e 
voltavam  distantes.  Quando  foi  minha  fez,  passei  por  ela  devagar,  a  moça,  a  minha 
escolhida,  com  a  mão  na  minha  me  puxando,  os  plásticos  passando  em  meu  rosto, 
pesando, sujando‐me com os muitos corpos que por ali passaram, eu, de olhos fechados, 
para não ver, escutando a cortina de muitas cores se abrindo sobre mim 
Sebastião‐ Mas eu quero é saber da mulher, Torga, como ela era, conte de novo 
prá nós ... 
Robson‐ Nos desculpe amigo, nós só queremos a mulher, a puta grávida ... 
Torga‐  Claro,  amigos,  eu  também  (riem).  E  eu  estava  lá  dentro,  em  um  dos 
quartinhos, ela já nua, por entre seus lábios roxos e olhar imóvel, longe dali dizendo prá 
tudo ser rápido, o leite prás crianças de Deus, os filhos dos outros dentro de si e um a 
mais chegando. Eu mesmo tirei minha roupa e corri para o banheiro no corredor, nojo 
de estar nu, a primeira vez, nu para alguém que não me via mas riu com raiva. Agora um 
quartinho menor e mais sujo, o único refúgio, o barulho das águas no vaso, eu puxando 
mais e mais águas contra a voz da que me chama, vem prá cá, sem medo, fazer um baby, 
mas me paga logo e faz tudo.  
Sebastião‐  no  banheiro,  Torga,  não  entendo  por  que  um  banheiro  e  o  quarto 
vazio 
Robson‐ não me diga que você ... 
Torga‐  a  merda  rapazes,  e  muita,  muita  bosta  para  aquele  lugar,  tudo  saindo 
pelas frestas da porta fechada, entupindo o corredor, invadindo os quartos, os amantes 
em fuga, a falta de pagamento, merda em tudo, de não se querer ver...   
(os  dois  outros  fazem  o  papel  dos  amantes,  os  que  se  amariam  de  verdade, 
dançando burlescamente) 
‐ Sebastião‐ Mas Torga, meu homem de merda, seu bosta, endurece essa merda 
‐  Robson‐  menino  mau  e  feio,  pinto  pequeno  e  mole,  branco,  branco  demais,  a 
merda branca tomando conta de tudo, sem cheiro mas pegajosa, preguenta, 
‐ Sebastião‐ onde está o teu piupiu, teu negocinho de fazer xixi 
‐ Robson‐ cadê o homem que estava aqui, eu queria um dentro de mim 
‐ Sebastião‐ Cagão de merda, Torga seu cagão, vem prá cama, menino 
‐ Robson‐Pega meus seios 
‐ Sebastião‐ aperta minha bunda 
‐ Robson‐ eu cuspo em ti, nessa sua cara sem lágrima 
‐ Sebastião‐ eu gargalho por ti, nessa boca de silêncios 
‐  (em  conjunto  girando  em  volta  de  Torga,  xingando‐o,  provocando‐o  ‐  bichinha, 
mulherzinha, pintinho da mamãe ... Ele ergue‐se em fúria, os dois outros caem para trás; 
Torga grita e fala:) 
‐ Torga‐ Isso é horrível (As mãos no rosto como se chorasse. Uma demora. Ergue‐
se com o rosto feliz, de uma felicidade que não lhe pertence como se zombasse, também de 
si  mesmo).  Horrível  mesmo,  não  é  mulherzinhas  (fala  para  seus  amigos  que  se 
entreolham  e  começam  a  rir  e  a  seguir  o  seu  conto  burlesco  de  si  próprio).  Horrível, 
saindo  de  calças  nas  mãos,  tropeçando  entre  as  paredes,  no  rosto  estampado  que  não 
conseguiu nada com a dona grávida, que ficou com seu dinheiro e carteira, enquanto ela 
chorou  por  alguns  instantes  em  seu  colo,  amaldiçoando  a  terrível  vida  que  levava,  os 
homens de todos os lugares, a casa pequena, a cama estreita, o corpo precisando conter 
tudo, o choro em suas pernas escorrendo, pregando‐se na minha pele branca, à luz baixa 
e  pobre  de  um  prostíbulo  de  merda,  interiorano,  as  mãos  na  cabeça  daquela  que 
deixava,  a  sua  mulher,  a  que  ama  agora,  irmã  de  sua  dor,  nus  para  quem,  as  cortinas 
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brilhantes e ruidosas ficando para trás, eu juro que voltarei prá te tirar daqui... eu juro 
(pára em olhar visionário, um recordação que lhe seqüestra daqui) 
Sebastião‐ Desculpe, Torga, acho que você ainda  a ama. 
Torga‐ Quem ? 
Robson‐ você, Torga, você ama ? 
Torga‐ Quem ? 
(conversam entre si, os amigos) Sebastião‐ Tudo parece como antes, lembra ? 
Robson‐ é mesmo, era melhor não ter deixado que ele falasse 
Sebastião‐  São  as  datas,  o  calendário  nos  incomoda,  as  festas  não  são  para 
sempre 
Robson‐ e nos aqui, como antes, escutando Torga, o das histórias que partiram , 
mais uma vez 
Sebastião ‐ Logo ele vai falar de seu grande amor, da pianista de igreja 
Robson‐ (ri) aquela da mesma cidade , aquela de nome engraçado (riem) 
Sebastião‐  Essa  mesma  (riem)(Torga  se  aproxima  deles  para  ouvi‐los,  com  o 
mesmo  rosto  desfigurado  da  felicidade  que  não  é  sua.  Pontua  o  diálogo  com  gestos 
esclarecedores, e confirmações pela cabeça, ao mesmo tempo que parece ver o que contam 
seus amigos) 
Robson‐ mas qual era mesmo o nome dela? 
Sebastião‐ Jucimére (riem) 
Robson‐ Repete prá mim 
Sebastião‐ Jucimére, meu amigo e com acento (riem) foi assim mesmo que eu vi 
naquela carta 
Robson‐ O bilhete de despedida,  ao modo de nunca nos veremos, você não me 
amou, tipicamente Torga ? 
Sebastião‐ Esse mesmo, nosso herói e seus humores excessivos 
Robson‐ quem colocaria um nome tão estúpido em alguém ? 
Sebastião‐ Somente seu pai,(Torga imita agressivamente o pai da moça, o andar 
duro e o olhar interesseiro, ) aquele estúpido, o Zé bonitinho, engomado em sua Igreja, 
vamos  rezar  todos,  um  marido  rico  para  minha  filha,  a  pianista  da  igreja,  Deus  com 
todos  nós  menos  com  Torga,  o  que  sabia  músicas,  o  que  tocava  violão,  o  que  vem  de 
longe passar férias com sua vó, minha filha não, Torga, minha filha não, a Jucimére.  
Robson‐ por isso na igreja se encontravam às escondidas, os beijos,(Torga fica 
amorosamente escutando) atrás da porta, as mãos dentro dos bolsos, os olhos fechados, 
o tempo que se foi, sempre tirar férias, os poemas, as músicas, nunca mais as músicas, 
eu odeio músicas, eu odeio as músicas. 
Sebastião‐ Jucimére nunca acabou, as mãos brancas e macias, os cabelos loiros 
escorrendo pelo rosto de olhos azuis que viam, a mulher com um olhar e via. Beijando, 
dois corpos a morrer, o medo e o desejo de ter medo, olhos fechados, eles se beijando 
dentro do olhar, os olhos que tecem suas línguas, enroscando‐se, de se sentir e pegar, o 
azul profundo no negro em volta a adormecer, a ensinar que um homem pode, o amor, o 
amor  dentro  deles,  dentro  de  Torga,  Jucimére,  para  sempre  bem  aqui  (os  braços  no 
peito), de olhos fechados piscando esse amor 
Robson‐ o nome estranho já dizia de si 
Sebastião‐ ela não era daqui, eu sabia 
Robson‐ ao contrário, Torga é que não era , estava de férias 
Sebastião‐ o beijo acabou, Torga, o beijo acabou 
Robson‐  Torga  acorde,  a  noite  é  longa,  precisamos  de  você  conosco,  não  nos 
deixe, você gosta de nós ? 
Sebastião‐ Torga, Jucimére casou e tem dois filhos. Trabalha numa loja e vende 
coisas aos homens. 
A idade da terra e outros escritos  127  

Robson‐ Eu a vi também, é balconista... Me desculpe Torga. Você sabe... eu 
Sebastião‐ Você tanto tempo aí sentado... 
Torga‐ (ele olhava todos, como se acordasse de seu sonho, como se voltasse para 
nós) . Chega. Essa é a filosofia dos dentes cariados:  eles, grandes em sua boca, até que 
caiam um a um e não podemos fazer nada. Não era preciso saber de coisa alguma antes, 
os  dentes  deixarão,  após,  a  boca  lisa,  escancarada  e  nua.  E  de  quem  serão  os  dentes, 
meus amigos, de quem serão os dentes (gargalha, repetindo essa pergunta final) ? 
 
 

2 Ato 
 
 
Uma  mesa  de  jantar.  Robson  e  Sebastião  assentados,  vestidos  de  capuchinhos, 
posição de reverência e oração. Uma enorme panela em frente cheia de areia e pedras. Os 
pratos  a  frente  de  cada  um.  Torga  serve  a  ceia,  falando  o    enorme  monólogo  de  Torga, 
como se fosse uma velha de aspecto muito terrível, os gestos irados, tudo estremecendo em 
seus atos, ele em maquiagem de velha. 
 
Torga‐ Comam amigos, o prazer de comer. Este é o meu corpo e minha vida, em 
troca dos sonhos. Na verdade só houve uma, a mulher. Comam suas partes, as sobras, a 
que amei. Só houve Ana, um único mês, o amor que não acaba. Ana dos longos cabelos 
negros e pele morena, uma menina ainda, que sabia as músicas, que lia o que os homens 
escreveram. Por isso, era Ana, o coração em suas mãos, dos que dela se aproximavam. A 
bruxa de longos cabelos, colhendo de nós o que lhe pertence. Por onde andará Ana, suas 
vestes  deixando  os  ombros  nus,  o  sol  em  seu  corpo  ?  Um  mês,  Ana,  a  mulher  da 
promessa, aquela que tirou de mim as palavras, que me fez confessar. Porque tudo foi 
de repente, logo a cama e eu já era outro pela primeira vez, sem as cortinas de muitas 
cores  e  o  medo  da  nudez,  eu  era  outro  contigo  dentro  de  mim,  sem  me  sentir 
estrangeiro,  a  primeira  vez  rir  na  cama  e  dizer  o  amor,  o  amor  que  chegou  para  não 
mais sair. Comam os restos, amigos, comam o que de Ana ficou, quando subiu as escadas 
e me encontrou na porta, meu sorriso sumindo no adeus que escutei e que soube dela 
tragar. Comam suas partes moídas entre minhas mãos que antes sabiam dos beijos, da 
mulher em seu prazer que escutei. 
Depois foi tudo outro, sentir o peso delas sobre mim, os olhos sempre abertos, 
para o lado, para fora da cama, quase caindo da cama, quase longe dali, onde não estive. 
O corpo pesando em cima, e eu sentido algo longínquo se aproximando, morrendo fora, 
e eu fechava os olhos, não mais para confessar, agora não, mas para pedir, implorar para  
que  vão  embora,  que  não  me  vejam  assim,  que  não  me  toquem,  deixem‐me  aqui,  no 
quarto sozinho, as lágrimas nos olhos, deixem sentir o que é o adeus, o que é o sempre, 
que tudo não é mais, e eu não sabia. Como podia esperar que Ana se fosse, que o mês 
cumprisse seus dias, os que nunca contei. O que tenho por entre as mãos escorrendo, o 
que sirvo para estes pratos, o que lhes dou, meus amigos, o que vejo cair nos pratos... O 
barulho  surdo  e  rouco  de  um  corpo  que  cai,  sem  voz,  o  que  dizer.  Ana  se  foi,  seus 
cabelos  nas  costas,  cegos  no  após,  o  vento  longe  dali,  uma  mulher  que  anda,  que  não 
pára, Ana maior que tudo, pequenos meus olhos para tanto calar.  
Eu  lhe  comprei  um  livro  de  dobraduras,  como  tornar  viva  a  folha  do  papel 
escrever  na  matéria  os  movimentos  das  coisas,  dobraduras  .  Eu  lhe  fiz  poemas  sem 
sujeito, o que sentia com gesto e sons, cravando‐se na página branca, poemas. Eu lhe dei 
uma  bebida  com  champanhe  e  mais  álcool,  blue  lagun,  para  que  ela  me  escutasse  em 
seus delírios ‐ sonhos de mulher, bebida. Eu li para ela um livro de muitas páginas sobre 
  128  

um peregrino que encontrou seu país natal, o pródigo com lembraças, livro. Tudo para 
que ela ficasse, para que não deixasse de vir. A porta sempre aberta, e eu esperando o 
fim do dia, seu abraço me levando para dentro dela, todos os dias, os trinta, dia a dia.  
No meio do mês fiz anos, um aniversário, e eu era um presente para Ana, minha 
vida até ali era toda dela, em seus cabelos depositadas minhas imagens, as longas noites 
sem ninguém, tudo para ela, Ana, minha mulher. Em uma longa mesa comemos todas as 
carnes, e sempre havia mais fome, só as carnes querendo, só as carnes entre os dentes 
que nada deixavam fugir da boca, os dentes suspirando por mais , carnes entre sorrisos, 
eu e Ana. E a ergui com todas as minhas forças, vendo o ar, eu já com os pés em cima da 
mesa, eu a tirei desse mundo, Ana comigo mais que todas, meu corpo em paz, dormir e 
sonhar. 
Mas ela subiu as escadas e o longe se fez aqui, e não havia outro lugar mais onde 
eu ficasse, não havia senão olhos em toda parte, olhos sem rosto, nenhum lugar para se 
fugir, eu sem Ana era o peregrino sem pais natal, a página em branco esvoaçando sem 
palavras  e  formas,  o  vazio  das  sombras  dos  postes.  Ana,  a  de  muitos  sorrisos,  não  me 
voltou mais seu rosto. 
Então eu dormi em todas as camas, nas casas de mais cortinas de muitas cores 
melhor, quanto mais sujo e fedido o quartinho, eu precisava. Ver todas de muitas caras, 
todas podres, e sem dentes, o hálito ruim, o corpo de dobraduras mal feitas, as palavras 
sem sentido, boca suja e ruim, mulheres que paguei. Vê‐las em cima de mim dançar e rir 
em sua dança que pesa, o prazer e o fingir mas sempre as bocas escancaradas e lisas, o 
gemido das putas, sempre o filho na barriga, sempre escondendo algo de mim, sempre 
preparando  o  amanhã  sem  memória.  As  putas,  cagando  em  cima  de  mim,  a  grande 
merda, a bosta que eu sei , e eu rijo sem ninguém, fala alguma coisa, branquinho, meu 
homem  mudo  e  durinho,  pelo  amor  deus,  fala  com  sua  putinha  de  merda,  essa  merda 
mesmo, essas que tem rosto e boca careados, os dentes careados, um a um dentro delas, 
o  beijo  apodrecendo,  lambendo  suas  feridas...  As  pedras,  meus  amigos,  as  pedras,  e  o 
resto mais. Comam, meus amigos, este é meu corpo, este é meu sangue , a boa dádiva do 
que  viveu.  (os  dois  se  erguem  ainda  escondidos  em  seues  capuzes.  Vão  em  direção  de 
Torga  e  tiram  a  colher  de  sua  mãos.  Ficam  atrás  dele  por  alguns  instantes  e  tiram  cada 
um seu capus. Percebe‐se a maquiagem que desfigura seus rostos, como se fossem velhos, 
um  marrom  cinzento  escorrendo  em  suas  faces.  As  bocas  com  dentes  podres,  escorrendo 
baba  suja  e  enegricida  de  suas  bocas.  Uma  risada  distante  presa  nos  trapos  dessa 
maquiagem desses ex‐rostos. Torga depõe seu rosto na mesa, como se chorasse) 
Robson‐ O que fazer com as mãos, essas que pendem e não alcançam paz. 
Sebastião‐ Algo de nós se foi e sabemos bem. 
Robson‐ mas ainda podemos lembrar 
Sebastião‐ é a única coisa a fazer 
Robson‐  quando  éramos  crianças,  brincando  de  esconde‐esconde,  na  casa  de 
Torga, perto do morro, juntos nos encontramos, todos alheios a nós. 
Sebastião‐  e  vimos  a  luz  de  uma  estrela  ,  o  único  olho  do  céu  a  nos  sorrir, 
ninguém  viu,  a  estrela  inteira  para  nós,  nos  achou  em  nossos  segredos.  Uma  só  luz,  o 
céu,  sobre  nossas  cabeças.(Torga  ergue‐se  e  olha  para  a  mesa  desarrumada.  Enquanto 
seus amigos falam, ele recolhe o que está em cima da mesa, o fim da festa) 
Robson‐  era  a  balconista,  uma  mulher  distante  para  nossos  braços,  pouco  o 
gesto impossível esforço. 
Sebastião‐ todos nós vimos a mesma mulher, o olho branco e vivo a nos dizer 
adeus, a mostrar como a terra é longe do céu 
Robson‐  O  morro  em  nossa  frente,  subir  e  buscar  quem  parte,  quem  nos  diz 
adeus, não é mesmo, Torga, essa foi sua idéia ? 
A idade da terra e outros escritos  129  

Sebastião‐  Mas  como,  meninos,  seguir  uma  mulher  que  partiu,  um  desejo  só 
nosso, outra brincadeira, outro jogo, brincar de pique‐pega, correr atrás, mudar o perto, 
trazer o longe para nós ? 
Robson‐ O céu é uma bancada que não perdoa, que não perde uma aposta e não 
nos quer... 
Sebastião‐ Deixa disso, deixa as reclamações para Torga, o que ama demais e já 
partiu.  
Robson‐ Mas e as promessas ? Aquela noite fizemos o pacto, para sempre, nunca 
as mulheres, nunca o céu para sempre... 
Sebastião‐  e  mentimos.(Abraça  o  amigo  e  segue  Torga,    que  já  está  saindo  de 
cena)  Tínhamos  é  medo  de  olhar  para  cima  e  ver  que  tudo  se  acaba,  que  nos  chamam 
para  dentro  de  casa,  que  a  noite  acabou  e  a  estrela  se  foi.  Noite  seguinte,  nós  lá  fora, 
perseguindo estrelas, atrás daquela que nunca mais brilhou, e se voltou, não estávamos 
ali, ou já éramos grandes, outras estrelas nos olhos e no coração, em outras cidades, em 
outras  casas,  outros  amigos,  algo  para  se  fazer.  O  morro  ficou  para  trás,  e  nunca  mais 
podemos  nos  esconder.  O  céu  noturno  foi  engolido  pelo  brilho  de  nossos  passos 
apressados sabendo onde ir e como chegar ‐ foi o que nos ensinaram. Mentimos, culpa 
do  medo.  Torga  continuou  a  perseguir  estrelas  em  suas  lágrimas,  em  seu  céu  sem 
ningúem. 
Robson‐ E o que ouvimos, um homem e suas mulheres, sua dor de homem em 
meio a nós ? E sua primeira vez, e seu primeiro amor e seu maior amor, eis a verdade 
que não se adia, eis a verdade em sua boca 
Sebastião‐ Palavras, meu amigo, palavras sem dentes, dentes e mais nada, tudo 
se esvaindo pelos cantos dos lábios, um veneno muito antigo, o resto de um sangue nas 
gengivas nuas e já sem vida, negra bebida para quem quiser se fartar... O que houve, o 
que aconteceu não importa, ele precisa de ouvidos , uma vida banguela quer se escutar, 
quando as palavras não ecoam mais a garganta de um homem sem fome, sem um chão 
para andar. Recolha tudo (empurra Torga, como se ele fosse um empregado, um mendigo 
recolhendo ), Torga, para que eu não pise nessas sobras...  
 
 
 
 
 
 
 

Uma última noite sobre a terra 
 
diálogo futuro 
 
 
 
Cenário lunar‐surrealista.A sombra de uma Terra luzente e aos pedaços pode ser vista. 
Entre destroços de metais retorcidos, eles conversam, dois sobreviventes, cansados, o ar 
raro e as palavras ofegantes. Sentados. 
 
 
‐  eles  virão  nos  buscar,  tenho  certeza,  não  podem  fazer  outra  coisa,  eles  virão  nos 
buscar, eu creio. 
  130  

‐ cale‐se rapaz‐ escute e veja quando tudo acaba. Essa é uma noite maravilhosa, a grande 
noite, era prá estar acostumado, aqui, comigo. 
‐  não  podem  fazer  outra  coisa,  estamos  perto,  tão  perto  que  já  escuto  os  passos,  eles 
chegando prá nos buscar, gente asssim como nós, que também busca. Saímos de nosso 
lugar, uma vez há tanto tempo... 
‐ (ri) e você sabe por que viemos parar aqui, neste mundo que se acabou ? 
‐ eu tinha filhos, dois, sem mulher, uma casa enorme,  cheia de gritos e tropeços. Mamãe 
cozinhava o cheiro em todos os lugares, eu brincava lá fora... 
‐(o que riu aproxima‐se e o sacode) acorde, não morra ainda, não me deixe aqui... 
‐ eu tinha uma bicicleta cor de laranja e eu era mais rápido que todos, pudia correr que 
ninguém  me  pegava    ”pai,  por  que  mamãe  não  volta  e  arruma  nossa  cama,  dormir, 
dormir, mamãe (gestos de apagar a luz em quarto de criança)dole uma, dole uma e dole 
três, a luz do quarto escuro apagada...” 
‐  (Ergue‐se  e  começa  a  correr)  Viu,  olhe  pra  mim,  eu  corro  melhor  do  que  você,  eu 
sempre corri mais, eu chegava na frente, mesmo chovendo, o chão caindo para os lados, 
a terra lisa como a cabeça de um homem velho, eu corria sem respirar nada, só os olhos 
crescendo,  de  olhos  fechados  eu,  e  nada  vendo,  só  correr  mais  rápido  que  a  chuva, 
fugindo da chuva, brincando de não‐me‐pega suado e úmido, eu, o que corria‐ (olha e ri 
desatinadamente.  O  corredor  pára  seu  percurso  em  zigue‐zague  em  torno  do  amigo,  ele, 
seu satélite). O quê , rir do que, o que há para rir, seu idiota 
‐ (pára de rir surpreso) Eu não entendo, eu... 
(  dirigi‐se  o  corredor  para  o  amigo  ,  as  mãos  na  garganta  dele,  esganando‐o)‐  Não  era 
para ser assim, meu bom amigo, todo esse tempo aqui. Sempre me deu vontade de fazer 
isso, de te levar de volta para as duas filhas, para teus pais, um passado goela adentro, 
seu louco, seu terrível louco. Matar alguém seria a última coisa a fazer nesse mundo sem 
homens, sem ninguém para falar. Antes de viajar , em vida outra vida, eu sempre quis 
fazer isso.(tira as mãos do rapaz, já desmaido no chão, e conversa com ele , como se ele o 
escutasse).  Matar  alguém  seria  a  razão  de  uma  vida,  um  sentido,  sabe.  Quando  vejo  o 
olhar  do  quase  morto  implorando  para  que  eu  desista,  um  homem  redimido  de  sua 
miséria,  de  seus  planos,  um  homem  nascendo  em  minhas  mãos  quentes,  e  eu  vendo 
tudo, matar eu mesmo, eu mesmo vendo tudo, o corpo caido pesado contra o chão, para 
se encontrar com uma escuridão enorme, o seu caminho, o que encontro, a cara no chão, 
minhas  as  mãos  em  sua  morte.  (enquanto  falava,  o  outro  começa  a  se  recuperar, 
empurrando‐o para um lado, com os pés. Ergue‐se) 
‐ louco você, só pode ser esta a explicação, como conseguimos viver tanto juntos... Qual é 
seu nome mesmo ? 
‐  não  durma  rapaz,  não  durma,  saiba  que  sempre  estou  por  perto,  como  sua  calças, 
dentro  de  você,  as  suas  cuecas,  tão  perto  de  você,  como  seu  sexo,  corpo,  muito  mais 
perto ainda, vendo com teus olhos de medo, o pavor, amigo, o pavor crescendo em tua 
frente, dentro, lá dentro, fazendo tremer essa cabeça que pensa muito e muito. 
‐  Você  está  doente  .  É  o  mal  da  lua.  Chegamos  até  aqui  e  o  que  nos  resta  Fomos  até  o 
limite  do  mundo,  o  que  fazer  mais.  Fugimos  de  tudo,  as  pessoas  e  as  coisas  atrás, 
perdemos  o  que  ficava  em  volta.  Longe  de  tudo  o  que  importa  ,  nada  mais  pode  nos 
atingir. 
‐ Cale‐se ou eu te mato, meu doce amigo... 
‐ (senta‐se no chão, o desconsolo final) Desista, o que podemos fazer, senão escutar um 
ao  outro.  O  que  não  foi  feito,  as  palavras  mastigadas  pelo  medo  de  que  fossem 
escutadas. cada um como um pequeno mundo dando voltas... 
‐ Cale‐se ou eu te arrebento (pega um dos destroços, uma barra de ferro retorcido. Em pé, 
desfia o amigo). Vem, prá mim, cara, diz o que você está pensando, fala mais, o sangue 
escorrendo pelo chão, as palavras que ningúem escutará. 
A idade da terra e outros escritos  131  

‐ Você está doente, ainda não entendeu isso ? Sente‐se aqui do meu lado, Conte algumas 
de suas histórias. Você têm um passado, há algo para lembrar ? 
‐  Desgraçado  (bate  com  o  ferro  em  seu  compnheiro  de  abismo,  já  arremessado  para  o 
lado, sangrando )  
‐ Ah, o mal da lua, eu me lembro bem, as noites olhando para o céu que não se mexia, as 
estrelas passando por nós, um mundo que nunca houve, sempre mais adiante. 
‐  Desgraçado  (Novamente  o  atinge,  lançando  o  amigo  mais  para  longe,  mais  perto  da 
imagem do Planeta Terra . Mas agora é diferente. Ao bater,‐o que fará outra vez‐ olha o 
amigo caído e hesita em se aproximar dele, como os animais ao se aproximar do fogo) 
‐  e  viajei  por  tantos  lugares,  vi  tantos  rostos,  ri  de  tantas  coisas,  uma  junto  da  outra, 
todas em minha frente, perto de mim, aquela noite menino com a lua para mim... 
‐ Desgraçado ( Novamente o atinge. Volta correndo para perto da nave, abraçando‐a) 
‐  e  agora  estamos  aqui.  Tenho  certeza  que  estamos  sós,  e  que  não  adianta  pensar  em 
voltar.  
‐ Surpreendido. Deixa a barra de aço cair). Mas você disse aqueles viriam, que breve tudo 
voltaria  a  ser  como  antes.  De  novo  para  casa,  poderíamos  pensar  em  novas  viagens, 
novos  mundos,  um  novo  pensamento  cada  momento,  sempre  mais,  sempre  à  frente, 
mais que os passos, ir até à raiz da luz e beber de uma água tão fria que faz cócegas na 
boca( começa a rir, fazendo os gestos imaginasdo que estaria em um cachoeira, jogando 
as águas sobre si) 
‐  Você  está  doente,  meu  amigo,  uma  grande  doença.  Perto  de  casa,  eu  via  você,  seus 
jeitos  estranhos,  o  menino  do  cobertor.  Eu  ja  sabi  de  tudo  isso,  sabia  como  tudo 
acabaria... 
‐ (fala dando volta nos dentroços, segurando‐se nas baras de ferro retorcidas, os macacos 
em  suas  jaulas).  Não  me  lembre  disso,  você  prometeu  nunca  mais  contar.  Por  isso 
fugimos, estamos aqui. 
‐  Eles  não  virão.  Deixe  que  eu  conte  a  história  do  menino  do  cobertor.  Estamos  sós, 
ninguém vai nos escutar. Não há como nos escutar. 
‐ Eu te odeio, cara, por tudo o que você fez, eu te odeio. Você sempre mentiu para mim, 
sempre  a  mesma  coisa,  o  mais  velho,  o  que  podia  dormir  até  tarde.Você  brincava  com 
meu rosto enquanto eu dormia., os arranhões e as manchas em meu rosto no outro dia, 
a cara sempre espetada e suja. Eu parecia sua mulher, uma menina fraca e doente por 
sua causa. 
‐ Não chore meu irmão, ninguém vai ouvir mesmo. Lembra que eu sei como fazer o fogo 
pairar em minha mão, lembra ? 
‐  Seu  desgraçado,  mesmo  que  eu  não  possa  xingar  meu  próprio  irmão  xingar,  eu  te 
odeio, você sempre soube de tudo... 
‐ (aproxima‐se da nave. Dela pinga o resto do combustível.. Põe em uma mão um pouco, 
risca  um  fósro  e  acende.  Brincadeira  de  irmãos  ‐  assutar  um  com  o  álcool  na  mão.  Se 
aproxima do irmão apavorado). Cala a boca seu moleque, monte de estrume, magricelo, 
o menino do cobertor, doente, doente, o mal da lua em você. Acorde de noite, veja seu 
pulmão caçando o resto da respiração miúda. Quem será que vai morrer...  
‐ (Tosse, tosse muito em seu pavor) Não me queime, eu falo tudo, eu escondo o que você 
quiser,  eu  abraço,  pego  em  teu  corpo.  Tira  esse  fogo  de  mim.  Vai  dormir,  irmão,  vai 
dormir... 
(apaga o fogo com a outra mão. Um tapa em sua própria mão)‐ Eu sempre tive nojo de 
você. (dá as costas para o irmão e caminha em frente, para a lateral esquerda  do palco. O 
outro chora) Eu vim primeiro, apanhei muito. Em minhas costas aprenderam a te tratar 
melhor. Um dia, quem está’dormindo na cama dos pais ? Quem, senão o menino sempre 
doente,  que  tomou  o  ar  da  noite,  porque  eu  tinha  deixado  a  janela  aberta,  o  que  tinha 
caído do berço porque eu não cuidei direito. Agora sempre ali na cama dos pais, sob o 
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acolchoado  rosa  e  grosso,  o  calor  da  vida  em  seu  corp  inteiro.  O  menino  doente  com 
muita vida... 
‐ Mas eu não sabia de nada. Era calor e só havia um quarto e todos estavam lá. Acho que 
esperavam algo, e eu também esperava. Debaixo das cobertas eu queria sempre a visita 
nova, o parente que viesse. Eu sei que alguém viria, para que as bocas se abrissem, rir 
ou falar, alguma coisa naquela quarto com todos nós... 
‐ Você não sabe de nada, meu irmão, você e sua doença. Ninguém veio, ninguém virá nos 
buscar. Ficamos os anos naquela casa, eu te cuidando, eu preso ao menino do cobertor. 
Dia  e  noite  debaixo  das  cobertas,  o  suor  mais  que  tudo  em  todos  os  lugares.  O  cheio 
terrível do menino doente que não se se sufocava. A respiração longa de nunca acabar. 
Nunca mais dormir...   
‐(toma um saco dos dejetos dos destroços e sai a andar pelo cenácio circumlunar. Segura 
uma  barra  de  ferro).  Debaixo  das  cobertas,  debaixo  das  cobertas.  Andando  pelas  ruas 
debaixo  das  cobertas,  debaixo  das  cobertas.  Os  olhos  em  cada  rosto,  debaixo  das 
cobertas,  debaixo  das  cobertas.  Onde  ir,  debaixo  das  cobertas,  debaixo  das  cobertas... 
Nada em minha frente, debaixo das cobertas, debaixo das cobertas... 
‐(ironizando, batendo palmas) Sim debaixo das cobertas, debaixo das cobertas, decober 
das baixertas, decober das baixertas, decober das baixertas, decober...(recebe um golpe 
de quem em torno dele girou. Cai morto, um barulho imenso em sua queda) 
‐(ri)  te  enganei,  não  é  mano,  te  enganei  direitinho,  não  é  ?  (ri)  Um  dia  eu  sairia  da 
cobertas,  viu  ?(ri)  Olha,  não  tô  mais  doente.  Eu  brincava.(ri)  Não  acredita  ?  (pega  no 
morto,vai arrumando suas roupas, limpando o sangue e arrasta‐o para a nave enquanto 
fala).  Lembra  uma  vez,  você  dormindo,  o  beliche,  eu  embaixo,  eu  acordei  mais  cedo, 
esperei  o  dia  ainda  não  chegar  e  gritei,  gritei  bastante  alto  e  você  caiu  no  chão. 
Engraçado você chorando de dor, o sangue em tudo, girando e girando de dor, as mãos 
no joelho, um pião maluco, a dor imensa... Você girando de dor prá mim ? Lembra seu 
dinheiro  escondido  que  eu  sabia,  a  viagem  com  os  amigos  que  não  houve,  a  busca  do 
dinheiro perdido agora por minha conta queimando no quintal ? Lembra o combinado, 
você chegar tarde, eu esperar com a porta e a chave da porta . Mas onde está a chave, 
onde está, meu irmão, eu estou no quarto, alguém batendo na porta, um choro pequeno 
em segredo sabendo o que vai acontecer. Lembra eu doente, eu doente em meu coberto 
de lã, o suor pelo rosto, eu não deixando você dormir, eu com forminhas de gelo debaixo 
do cobertor, eu querendo trazer a doença prá tudo, prá o nosso quarto, você ali do meu 
lado,  não  dormir  até  que  eu  queira.  Lembra  eu  rasgar  minha  pele,  pedaços  do  corpo 
guardados em caixinhas de fósforo, dizer que você me batia, os meninos com medo de 
você,  você  do  meu  lado  até  quando  eu  queira.  Lembra  não  ver  tv  até  tarde,  eu  vendo 
você vendo tv até tarde, eu contar prá mamãe, você apanhar tanto que  criou ódio da tv 
da mãe e de mim  e fugiu de casa ?  Era o mal da lua... E na tv passando O planeta dos 
macacos ( pára de puxar o cadáver e imita um macaco em volta de seu irmão e em volta 
da  nave,  gritando  os  nomes  dos  personagens  do  filme  ‐  Cornelius,  Zira,  D.  Zaios,  Ursus. 
Após , arrasta seu irmão para fora de cena . Momentos depois, cai o planeta Terra.  
 

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