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idade da terra e outros escritos 3
A
Idade
da
Terra
e outros escritos
4
A idade da terra e outros escritos 5
Além da dor e do prazer
numa lâmina
a rã não ‐ a sua coxa
estremece torturada
o que não é, enerva‐se
impulsionada por não sei que para não sei onde
estremece sem ficar de pé, saltar ou gemer
magia que acolhe a morbidez asséptica dos enfermos
galvanizando quem não participa do talhe
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Sumário
Algumas palavras para se ler
A idade da terra
Roteiro
O caminho do mundo
O pó da águas
Hontem
Fragmentos dramáticos
O filho da costureira
A grande vó
Casal na cama
Caim
Farsa do quem quer amar
A festa
Natal sem crianças
Uma última noite sobre a terra
A idade da terra e outros escritos 7
Algumas palavras para ler
A idade da terra e outros escritos recolhe textos de ficção em verso e/ou em
prosa que se constituem em um especial caminho do autor em experimentar trilhas e
tradições expressivas de pouca ou nenhuma prática no Brasil.
Este especial caminho se faz parte a parte e pouco a pouco pela adoção de
estratégias de sentido que recuperam diversos tipos de memória que não as repetidas
impressas na coletânea do imediato liricamente descritivo. Se há algo que podemos
indicar como motivo básico e recorrente para o livro é a dilatação da memória pessoal,
ocasionando, também, o refinamento do instrumento lingüístico que capta e apresenta
essa dilatação.
Em virtude disso, o livro se divide em cinco partes: na primeira, A idade da
terra (1994), temos um conjunto de vinte e um poemas interrelacionados que se
movimentam no espaço‐tempo de uma mitologia sem data e sem nome, em remissão e
referência a estruturas intencionais de sobrevivência de certas situações fundamentais
irredutíveis e constantes. Cada poema funciona como um pequeno flash que retoma as
danças, as cenas, os lamentos e as canções dessa presença do passado.
A segunda parte desdobra e distende a primeira. Trata‐se de um poema dramático, sob
o título de O caminho do mundo (1994‐1996), que atualiza os atos de um grupo de
caminhantes que individualizam o trajeto originário dentro do pano de fundo oferecido
por A idade da Terra. A modernidade da gesta dos migrantes do amanhã sem rumo
complementa a antigüidade da grande noite dos tempos sem homens e sem razão. Uma
tribo covarde acampa na espera de sua ida para A Grande Cidade, o fim da labuta, o
sonho de todos nós.
A terceira parte reúne textos com mesclas de diversos gêneros, fruto de experiência
pessoal do autor de simulação de alteração dos estados imediatos da consciência.
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Procurou‐se transpor para o papel as imagens e as palavras que emergem da
simultaneidade pontual e intensa de um desnível ativo entre os meios de pensar e a
atividade de representar, com a finalidade de propor para o público a possibilidade ou
não do que acontece no entrechoque entre as capacidade de configurar e a realidade do
que se configura. Busca‐se compreender se o poético é anterior ou posterior à intenção
de expressar.
Já em Hontem, quarta parte de A idade da terra e outros escritos , temos alguns
textos antigos, de 1988, que constituem a base deste livro. São elaborações que
procuram romper com esquemas narrativos e prosaicos, atualizando estruturas
poéticas seja no ritmo, seja na linguagem. Temos aqui uma hesitação fundamental que
se encontra na adoção da perspectiva para apresentar os acontecimentos. Desde já, fica
a opção pela dramatização personificadora das emoções que ultrapassa a constância
objetiva do indivíduo e da sua consciência para preconizar o fluxo concreto de imagens
que difunde quem fala, para quem se fala e de quem se fala.
Finalmente, na quinta e última parte deste livros, Fragmentos dramáticos (1996),
saímos da opção expressiva revelada nos textos já escritos para procurar levar a palavra
dramática a se converter em roteiro teatral, em palavra‐cena. Monólogos e rascunhos de
peças oferecem as meditações e a escritura que se originam na tensão entre palavra
escrita e mundo vivido, dentro da qual quem vê e pensa e sonha toma cada vez mais
significado de si e da realidade na sensível orientação dos limites e horizontes da
palavra, raiz das distinções.
A idade da Terra e outros escritos são textos que pensam essas questões, sem
nenhuma metalinguagem ou arabescos explicativos.
Para Walter, Marcelo, Zuleica, Franklin, André, Onésio, Renato, Pirlimpsiquice, The Band e
os que anonimamente sabem a parte de cada um em minha vida, mesmo não sabendo a
minha em cada vida sua. Quando tudo acabou, a vertigem deu seu próprio golpe de volta à
mão que lhe fez cair, errando quem buscava tombar. Daí eu ri sem pausa, a verdadeira
festa.
A idade da terra e outros escritos 9
A idade da terra
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ROTEIRO
Manifesto
Pórtico Trágico.........................I
Redenção................................II
Vertigem................................III
Grafia do Dólmem........................IV
Antes do Nomear.........................V
O Sacrifício do Céu.....................VI
Hamartia................................VII
O Corpo do Mundo........................VIII
Último Ver..............................IX
Anunciação..............................X
Coro Agônico............................XI
Áspide .................................XII
Epitalâmio..............................XIII
Preparação do Plexo.....................XIV
Acolhimento.............................XV
Expectação..............................XVI
Sparagmós...............................XVII e XVIII
Complexo Satyricon......................XIX
O Circunvelante.........................XX
Epílogo ‐ Nós, Os Caminhantes...........XXI
A idade da terra e outros escritos 11
ARQUEOLOGIA DO SENSÍVEL
Render‐nos à transvisagem que recupera o mito
que nos reveste do que
funda o mundo
Ritos de paixão
estações fragmentárias da origem
imagens que relembram a memória das coisas
Por que não fazer do verso um acesso ao inexaurível?
Por que não traduzir no papel o sobrehumano esforço
de reencenar o drama primordial?
Sempre lágrimas, sempre descrições, nunca o impossível...
nunca expressar o imponderável
como se além de nós não se existisse
como se não fôssemos nós mesmos a razão da existência do indimensionável
Nós, os caminhantes
de barro os corpos e as almas
vivas modelações que nos escrevem
sombras nas ruínas da História
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I
Para longe
o mais breve traçar da vertigem
descerra o horizonte primeiro
e acena o inaugurar da mensagem
Nas grotas ainda cantam as águas
sobrelevam‐se as virtudes de um anoitecer
lá onde a espera é imensa
inertes
cegos
escrevemos as lápides do destino
A idade da terra e outros escritos 13
II
Riscado o céu para sempre
a terrível manhã último raiar
vociferam as raízes do horizonte
resguarda‐se o limite na atroz curvatura extrema
da qual se avista o termo do contemplar
um branco imenso
alva que lava fatal o infinito
cego o olhar na estrondosa dispersão
abrangência que incide sobre o limbo da esfera
imersos no ninho úmido das formas
em vão saciamos o desejo desses escritos nas pedras
vestígios indivisos de nós mesmos
picturas do possível
feitas da pele escoriada
eis a partição:
devolvidos ao solo
as arestas da verdade nos modelam o corpo
desterram o rosto
o mistério rasteja
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III
As excrescências da terra
se voltam para o alto
e não podem ascender
olham de soslaio o firmamento
elas
dispersas em seu diferenciar
olham o selvagem céu invertido
elas
de costas para o aclive
incineram a vontade acolhendo o úmido
antes que das solares partições
venham mãos insinceras que possam
sugerir o termo da angústia
A idade da terra e outros escritos 15
IV
Rígida mão que interrompe para acenar
une o virar dos olhos à busca da origem
a circunferência tomba em seu próprio eixo
no plano megalítico das diferenças
ante o qual dramatiza‐se o toque
baixamos o rosto
bafeja a terra em sua agonia
nasce um menir
apontando para onde as entranhas do mundo querem
ereto
mostra apenas o plástico ímpeto da finitude em se ultrapassar
teleologia às avessas
chuva de estrelas enlameadas de placenta
unha que fere e prolonga o limiar do úbere telúrico
vértice não mais
o movimento é ilusão de óptica
curva‐se o delimitante azul‐urânico
a retorcer‐se em cólica floral
vértebra digitada desfiladeiro desferido contra as nuvens
um dedo sem carnes
um sinal de pedra
culto ao que aparece sendo mais do que é
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V
A
o livro de A
de um a outro lado
sobrepuja‐se o interdito
na ronda primeva do tragar
punhos e lanças soçobram
nem adiante nem além mais
‐ aquém da vera necessidade
início e sempre
influxo delirante residual
a grande mensagem
escancarada a boca
A
o livro de A
a fenda só resgata o esforço
lança clave acima que golpeia o vórtice mineral do córtex originante
açoite
retorno da pele à cicatriz acontecida
declina a curva do bramido frente ao eco de seu viés
A idade da terra e outros escritos 17
VI
No medo das aves
o pacto antigo
que por um sortilégio
consagra a arrebatadora distância
ritos do amor
Amor tornando ausência
flechas quebradas ao pé do abismo
fogueiras eternas a arder indivisas crostas de sangue
o medo nosso das aves
espraia‐se entre as cinzas
no chão sem caminhos
galhos partidos ramos desfigurados
rosto e sombra de suspiro e espera
Ah...desmedida presença
asas incontáveis
asas esvoaçando o mundo
eclosão abrupta do silêncio pelo ruído
cegueira altissonante leveza incandescente
frágil magma que consome e devora as encostas do firmamento
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VII
Lançado o dardo
ele alcançará o alvo sem satisfazer o envio
o salto é detido no impulso
e o impulso prolonga‐se no arremesso
a todo lado que é lado nenhum
o vazio comprime o desejo na perspectiva
( agredido o rosto pelo vislumbre da repulsa )
vinga o arco sobre a seta
retroceder que abrange o possível
reverbério na acústica do paradoxo
imenso o alcance
dentro do que distende o pontiagudo olhar da procura
o que se realiza não passa do que se revigora
avança o amanhã na pressa de fazer‐se agora
eco dos tempos visos do profundo
o alvo nunca será atingido
vestimos as cores de uma comemoração
festeja
‐o olhar não pode nos guiar
o que se lançou foi a possibilidade última de redenção
A idade da terra e outros escritos 19
VIII
Cede a pele ao encontro da lâmina
acolhe a dor o espasmo redivivo
é ânsia de beijar a terra
o que nos lança para o sagrado
o grito maior
maior que a própria dor
é ferida exposta e sangrando
véspera inaugural da perpétua morte
No chão
sangue nas pedras
rígidas arestas das rugas e dobras do pó
a plástica vertente do dorso convulso
há de se erguer um monumento
que una terra e céu
um corpo entregue
reviravolta do baixo
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IX
Falta o ar mas sobra esforço
garras que avançam num vazio
alçam o salto antes do vôo
o longo suspiro confunde‐se com o pulso
penetrando na aflição maior e mais intensa
expande‐se o alento por busca e fuga
sobra a ânsia
a voz dos que erguem olhos aos céus
reverbera e arranha a mudez seca da garganta
A idade da terra e outros escritos 21
X
Do que se não vê senão pelos efeitos
obra de olhos dilatados na fúria para melhor ver
irrompe e subverte a manhã
incandescidas todas as vontades
no entre ‐ estar do desassossego
do que se não vê senão por medo e angústia
flutua na indecisão de sua valentia
perplexas as conformações
sobejam vácuo e vertigem
no gole acre da reversa viragem
estarrecidos diante
saudamos a chegada do que nos destrói e insufla o ânimo
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XI
Negra
negra bílis
ilusão memorial da concha enganando o mar
lembrança das aves que morrem antes e acima do próprio vôo
agudo pender frente ao inalcançável
incidência azul do pólen em sua dança
negra
negra bílis
perpassa a carne dilacerada o entrave sonoro da ausência
devemos ingerir o súbito
difundir o ranger de dentes
o futuro corrosivo sobre o cobre de nossos destinos
ausculta a brevidade da casa‐cova sobre as águas
negra
negra bílis
agouro
memória do alento desfeito no voraz da epiderme
A idade da terra e outros escritos 23
XII
Arrastar‐se entre o céu e a terra
é ocasião de compreender‐se no que dista
feito o sórdido movimento
anjos sem rostos brotam a cada revelação
o impulso de fazer‐se leve
perpetua a agonia diante da queda
é de pó o destino da morte
e dor a seiva que escorre no chão
o olhar sucumbe na gravidade
concórdia incerta
Mais lápides mais grades para o corpo
mais réquiens dia desesperador
as razões são íngremes
suspendem‐se as geometrias na concruz dos caminhos
atingida não a fenda e sim o talho
retesada não a boca e sim a pele
encolhe‐se a luz na envergadura de um precipício que expele suas entranhas
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XIII
Nas núpcias do céu e da terra
bodas fatais
as águas não habitam os ares
e os pássaros constroem seus ninhos nos tártaros
brilha não mais a luz
eclode sempre a mesma voz
grito fundador que inaugura o rodopio incessante
tomba o consorte e cumpre sua presença
avulta no mundo inesperada aparição
o agravo das almas insufla as amarras do padecer
vestidos velhos
rasga‐se a abóbada da potestade
e ergue‐se a novidade do disponível
Nas núpcias do céu e da terra
a espiralada convulsão das bodas fatais
fecunda a inverossímil volúpia
No viril vocifera a possessão do cerne e do pênsil
padece e goteja
as frinchas e as dobras do seu desvanecer
A idade da terra e outros escritos 25
XIV
Flor que se sua à outra
envolvem‐se as cerdas nas ramas suspensas
cílios nus entremeados de luminescências
a cada volver pulsa o golpe da despedida
suportar na frágil viragem
o ritmo das raízes sugando o céu
seiva que brota de fora a dentro
imergir
no esforço maior que a duração do encalço
sedosa intimidade que aguça a voragem febril
sagração do súbito
ígnea desolação pelo úmido
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XV
Goteja a pele
expondo os frutos de sua aspereza
entre dobra e outra
antes da continuidade que os pelos alardeiam
os riscos e os pontos do tecido
enroscam‐se e diversificam a fragilidade do vário
rude
a pele na indiferença sangüínea que forra seu ventre
por isso goteja
o suor na pele prepara o aconchego
A idade da terra e outros escritos 27
XVI
De mãos dadas
nas bodas
os velhos
sempre iguais na dor e na lacuna
pele rugosa cavada pela memória
arqueados
baús vivos
dobrando‐se sobre si mesmos
envergadura que suspende a queda
une princípio e fim
mãos nas mãos
vigor na lentidão
escondem o enigma do tempo e do espaço
encurtam distâncias
resolvendo a plenitude do horizonte
cair e não ainda
erguidos e nem tanto
vivos mas já prestes
mortos de fôlego baixo
nas bodas o que fazem ?
rugosa é a pele e a terra
veredas descontínuas que sustentam o vário
casca do eterno ulcerada pela seiva purgadora
os velhos estão de pé
hálitos sulfurosos que expelem a nostalgia do devir.
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XVII
Maya dança
a dança de Maya
véus que sopram os despojos das horas
e varrem o pó das trilhas sagradas
dança Maya
arma‐se do etéreo e traz‐nos os sons de outrora
molda os contornos da terra ‐ tablado do horizonte
fim da atmosfera
seus pés desfazem as formas do mundo
Dança Maya
a dança de Maya
retoma a figuração dos corpos torpes
pendendo e burilando o sacrifício antigo
cadências que suportam os ecos dos que se foram
o grito da dádiva
a voz é a mímica do canto
plumagem‐cena no ardor da terra
um apelo às fontes e aos ventos
que lavam e secam o sangue dos que já dançaram
véus de Maya
várias cores espectros do real
arrastando o ímpeto das veredas
Maya entregue a nós como dantes
a dança recupera a própria veste
cobre de pulsão os ossos do pacto
A idade da terra e outros escritos 29
XVIII
dança Maya
a dança de Maya
bodas da grande deusa assassinada
sobem e descem os golpes no corpo
e mais os ritmos de braços e pernas se articulam no dorso vertiginoso
graves
a sucessão do rito é uma escada espiralada
que oscila entre o vir a ser e o descer cisionário
cai a deusa e sobe o grito
rasga o céu mais longínquo
escurece o sol mais calcinante
a mesma voz se distorce junto do coral que a acompanha
todos celebram a fatalidade
as vestes uma a uma caem
e a deusa ergue‐se dançando
até debruçar‐se no chão em seu delírio agônico
desfigurada a face nua a pele ensangüentada
a deusa é sepultada com seus gritos
imolada em violência
boca e olhos abertos
voz que morre na língua surpreendida frente ao canto e à lástima
a dança de Maya
Maya dança
arrebatamento aos sulcos do pó
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XIX
Elevamos a voz sem encontrar alento
respiramos o suor da pele agonizante
flancos abertos do corpo na espera da noite
clama a grande deusa
e nós assassinos cantamos a dor que é nossa
visível não as cores mas a ferida
corrompe o derredor a extrema tortura
ainda celebramos a queda e o sangue
dor que medeia o acontecer da tribo
remorso que encena os ritos do após
cai a deusa e a terra se abre
o porvir da raça são as águas do abismo
eleitos
caminharão sob o teto das brenhas
elevamos a voz em uníssono com a mortalha
A idade da terra e outros escritos 31
XX
No sem caminho
regurgita‐se a plenitude às avessas
de um olhar mais adiante que retrocede na intenção
para fora e para trás
à excessiva voz
fonte e foz desses cantamanjares
pensar mais além é voltar‐se adentro
passo a passo no pleno
ira de menos
arremesso d'outro
estreita voz
padece e goteja a garganta extenuada
cacos de ar afligem nossos pés
num reclame por mais
pelo anônimo
reprimindo o ar
resta‐nos o lamento
que a cada instante brota das raízes do corpo
na extensão do sopro
distende‐se o lapso sustentando o vário
retesa‐se o corpo
confrange‐se circunscrito penar
aquece o ficto e o tálamo
nutrido pela mesma matéria que o envolve
‐ O QUE TORNA NUNCA FOI
MAS NOS ENCOBRE DE ANGÚSTIA
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XXI
Nu o rosto e anunciado o agouro.
Houve quem preparasse o caminho, espera lenta da intervenção, a comodidade eterna
pelo ausente.
Desde sempre, nunca atuaram.
Encontramos as ruínas.
Além demais para se chegar, perto ainda de se não fugir, o apenas.
Breve espalham‐se as águas debaixo de nós. Fim da noite e início de outro espairecer.
Sabemos que a crueldade nos alimenta e é preciso fazer o fogo. Não vemos nem
andamos ‐ só o querer.
Diante, já tangível, a espera encontra‐se, indevassável fronteira, limiar obnubilado.
Resta‐nos cifrar, delatar o que nos oprime. Concretizar em pedra a perdição,
testemunho cotidiano da imensa vacuidade que nos devora. Escribas do incessante
esforço contra a conspiração do mundo. Nós, os que cuspimos o mal, violenta possessão,
despedaçamento ritual do referir.
AFRONTAR A PRÓPRIA ALMA PARA DESPERTÁ‐LA
FIM DO ORGULHO DO SER
Cai estrela
bebe da tua cegueira
revolve‐se e rumoreja o amargo pó.
A idade da terra e outros escritos 33
O caminho do mundo
Prólogo
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Distantes de nós, sendo nossa própria alma, eis os caminhantes. Em pó e terra abatidos,
cumprem a angústia da visagem da espera. Breve, a noite acaba e chega o grande dia.
Adiante do acampamento, após a montanha esquecida, encontra‐se a cidade sagrada,
encoberta pelas matas e vozes dos que a desejam. Os caminhantes há tempo tiram de sua
relutância a permanência. O que aguardam, o que vêem, entre seus rituais e jogos de
guerra, quem os trouxe e os abandonou em tão desesperançada condição ? Nenhum
movimento, nenhum diálogo, todos sem nome e passado: eles são o sempre, um coro, o
último coro sobre o mundo, do qual se tem notícia. Não habitam em tendas, nem escrevem
nas paredes das cavernas. Não sofrem. Ninguém se ergueu e foi para longe, que longe é o
lugar em vivem ou parecem estar. Quando a palavra soou, há tempos atrás, foi Nibur
quem disse, foi Nibur quem partiu. Ele os feriu e deu‐lhes algo para lembrar. Não, Nibur
não poderia saber dessas coisas. Um caminhante ele não era. Nem um deus. Prossegue a
vigília, mas não é mais a mesma coisa esperar e prever. Ninguém morreu ainda mas é
preciso matar, para que as feridas nos corpos se fechem
Rumo à grande cidade marchamos, os pés na terra antes que o dia retorne. Além dos olhos
crescem as muralhas e não há nada que possamos fazer. Vestir o corpo, trazer a caça,
buscar água ‐ tudo chega ao fim.
O que vê
Eleva‐se o olhar com os ramos
suspenso o peso da terra erguida por entre as matas
De todos os lugares surge o negro‐verde silencioso
precipita‐se nos ares
parábola de costas às raízes
só o aparecer vário
Alongam‐se os corpos na expectação
e os pés somem diante das folhas caídas
na cabeça rosna um nascer
o que dista ataca os transeuntes
Rumor e ...
A idade da terra e outros escritos 35
Foi Nibur a origem a voz primeira.
nós o expulsamos após
Nibur é interdição totem e prédica
Longe da tribo subsiste
não mais na memória
Dia a dia
ritos da ausência obscurecem sua sombra
termos da desolação
Disse Nibur que a cidade sagrada não seria pisada
foi o verbo antigo
anterior à própria jornada
Nibur
os lábios a saliva negra agravando a terra
cresce sob os olhos
avulta e desaparece
Ele a voz
Resta‐nos o que no peito pulsa
esfregamos as mãos para afugentar o medo e o frio
A ida de Nibur deu‐nos o tempo e o lugar da angústia
Partiu‐se o desejo na véspera
ecoando pelo corpo as vozes de ninguém
Algo de nós se foi
e permanecem os motivos da espera
Dia a dia a grande roda
sentados reverenciamos ao que pertencemos
viver para a pendência eterna
extremando o acontecer dos homens
O que nos criou evadiu‐se
Nibur Nibur
o que nunca mais voltará
o que viu e disse
Nibur
o que lamentaremos
Os anéis
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De mãos em mãos as pedras
aquecem a polidez dos sentidos
na incessante busca e frustração
mãos vazias
braços pendentes
todos ao acaso da revelação
Eles rondam com a atenção das feras
para que as mãos se abram ao peso das pedras
ou a sangue cuspido no chão
Tremem
dor e gozo ao eternograndeoutro
Mãos vazias
braços enlaçados rumo ao destino de uma despedida
Entre a montanha e os ossos
Não
nunca a grande cidade
eleita pelos olhos como teto e afago
Longe de nós pertence a si
alheia
A distância sobrepõe‐se ao alcance
sobram futuridades
Grande fortaleza vazia e nua
outrora mata densa
jaz no nascedouro dos vales
Perto
um rio sem destino
Desabitadas
em imensas muralhas
a cidade sagrada esquece os que acampados não marcham
tantos são as ordens do impenetrável
A grande cidade torna e retorna entre o pó que os ventos lhe cospem
sua matéria sua casca
ao pé dos muros corpos de todas as tribos
com últimos suspiros e êxtases
A idade da terra e outros escritos 37
carnes doces e mais tragadas pela indiferença do que tudo vê e cala
Não
nunca a grande cidade
O vôo do círculo
Lá rezariam os que chegassem
aplacando a agonia que os iniciou na busca
vencendo a própria alma na súplica que não amanhece
Juntos aprenderiam a cantar
mais forte que o ódio das imprecações
um rosto só e a mesma pele
empoeiradas as vestes para que a dor fosse maior que a queda
Cumprirão o que deles se espera
Nós, os caminhantes
prenhes da verdade que nos saboreia e doma
perto do fim
antes que dia ou noite faça sua morada
antes que alguém nos chame pelo nome
que é de marcas no corpo e no chão a vida dos que se ajoelham
Delírios da tribo
I
Um deus nos toma e leva
mãos tremem
o ar pulsa e parte abrupto
a fala descompassa o corpo inteiro dentro de si
Pelo deus gememos acordados
e dormimos com as mesmas lembranças
acenos da presença que não está nem devém
O chão some aos pés
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e caminhamos afundando no próprio andar
‐ Lugar nenhum lugar nenhum só o regresso
alegra‐nos a vizinhança com o que nos tortura
só o abraço com a ruína trará o fôlego e a rotina
eis as artes e o canto
Prostrados ao infinito
olhos esvaziados do mim
comungamos a fome e a falta
repartimos a dor
inventamos a perversidade de ontem
Trazer o que jamais habitou conosco
paus e pedras desenham os ausentes
seca a vida ásperos os sentidos
o que não ajunta e espalha
II
Quem perde de vista o inimigo
aquece as mãos em retirada
ergue em volta de si as armas como despojos
e não pode mais saber a cor das idades e das aldeias
Em sua nova morada
cozinha e lava as vestes empoeiradas
antes das núpcias de sua filha e da chegada dos que partiram
gira a colher na cerâmica dentro da cova
mói o ímpeto das raízes
é o que podes fazer
III
Sobe ainda o calor das chamas
entre as pedras
contra o vento
abatidas
O chão e o rosto crepitam
deixando vivas
a espera e a noite
IV
A idade da terra e outros escritos 39
Ruiu a luz
sobre a terra já podem brotar os dias
a grande noite indefesa
galgada pelas reminiscências do amanhã
é pisada antes de seu grito negro apressar nossos cantos
Quem te cuidou que te receba e vista
com tão poucos lençóis há de sobrar carnes
Os olhos não cobiçam mais do que possuem
V
Andar mal é poder chegar
mesmo que se atinja o indesejado e o esquecido
é marcar os passos pelos pés próximos à queda sem olhos para registro e rastro
Cede o corpo à ausência do ver engolindo o que toca o ar
provocando a gula das pedras
Tenho uma mão dentro da perna e piso a face espalmada de minha íris
engolem‐me as sobras dos andrajos amarrotados e cuspidos
a caminho de ninguém
VI
No meio de céu veste‐se o visível de uma lembrança
que incorpora ainda mais o que os olhos alcançam
uma veste que paira sobre todos
imóvel
a única realidade do céu
ponto escuro que involui
e rapta quem ergue o rosto e abandona a terra
túnica numa histeria visceral
escondendo a gravidez realizada
na morte do macho e aborto do filho
veste que adorna o útero faminto
daquela que goza e dança quando cessa o dia
e zumbe o rancor dos que não podem mais arar
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VII
É na ausência dos dentes que se tem fome
lisa a boca escancarada e muda
esperando tragar o que lhe prepararam
espanto do silêncio de lábios em baba e pele
o que não come nem cozinha
Na boca aberta e vazia ecoa o hálito do esmoler
VIII
Os pés não correram leves
nem as mãos partiram‐se na queda
sobreestendido
o corpo vinga‐se da norma do ser
bramido e remissão
IX
Da viúva e não da repudiada foi a única voz
prenhe
sua nudez não se vê e alguém a fez ?
só os vestidos que nada deixam passar ou reter
só os vestidos roçam por cima das cabeças
nem o ventre entregue a sorte de um feto morto
nem as garras que arranham a face de quem ergue os olhos
apenas o grito e a mulher volatilizando‐se
A idade da terra e outros escritos 41
IX
Essa foi a guerra nossa gente
de madrugada o frio gritou
a fogueira sobrou como giro e escuridão
morremos sem lutar
Pobre de nós e sem cantores
os monstros não nos pisam grandes
No dia‐luz Nibur gritou
Nibur Nibur em sua montanha
Epílogo
Densa miragem que faz suar os corpos
perante o inexprimível
somente um grito de dor que rasga em alto e baixo o que nos faz ver
Desfigurado
o rosto amplia as entranhas do abismo
há um gosto de nuvens torturadas que se debate em cada canto
Os homens ainda não tombaram
nem nasceu o sol
Por baixo e acima de nós encontra‐se estranha soma de água e ar
indefinida memória longa dessa face que o peso da terra espanca
Nada vemos
apenas a pele acontece
em seus vincos e dobras distende‐se a verdade de uma consumação
Expostos
entregues além de nós mesmos
só nos resta esperar
esculturas às margens das trilhas dos que foram
nós
no tempo erguidos
suspensos entre o modelo e a massa
42
Mas sempre haverá o rosto expulso da vida no instante de sua aparição
emergência latente do intervalo
pendência extremada
momento oblíquo de um retorno inaugurador
Nibur falou
I
Da boca o grito
o grito habita o abismo sendo sua voz e seu corpo
um corpo no qual a voz é sua alma
uma voz que pulsa e se delata
O abismo expande‐se nessa dor
as entranhas consomem toda e qualquer profundidade
II
De manhã a flor se esgota em água
dispõem‐se ao que de cima vem
em cima dela cair por sobre
levam a noite inteira para dormir
e ainda querem mais que a luz do dia
pois de manhã a flor se esgota em ouro
pedindo pouco para acordar
para quem de longe lança seus olhos
para quem de perto crava‐lhe os dedos
um riso só para os dentes abertos da terra
pois de manhã a flor se esgota em unhas
nas mãos por beijos quatro pétalas
A idade da terra e outros escritos 43
na falta de uma noite aguda
na falta de um dia repetido
levam noite e dia para viver
os que nunca viveram sobre a terra
os que andam e colhem
esses que nunca brilharão
nem encontrarão o gozo da manhã
Eles são o jamais
III
Debaixo dessas roupas
debaixo dessas roupas
o que me desejam todos nós ?
debaixo dessas roupas
Com as mãos fiz essa cinta
no meio do corpo a coloquei
podem tocar as roupas
a cinta não ‐ a cinta cor de barro
IV
Atirem as pedras mas acertem
olhem para as pedras que eu piso
sobre suas cabeças cai o pó de meus pés
De um velho e estéril monte lanço minhas palavras
é preciso a altura para a voz chegar tão perto
eu que falava com ninguém
longe de minha garganta encurralada e cheia de terra
Atirem as pedras antes que o vento o faça
e devolvam as rezas
uma alma é o que grita
mesmo que só para os mortos
a pele merece o sangue e o azul de sua queda
44
Vejam
seus cabelos não se movem mais
e o braço é pedra que me aponta e pede
Eu que já fui embora para não voltar
V
Para que me servem essas cores
se a pele é negra como a de um homem
que traz caça e desejos iguais
Para que colares
se ergo a cabeça e volto os olhos
‐os mesmos talhes da faca ‐
e amarro as vestes na cintura
Avança para mim o que me toma
quando me descobre comum
( nunca mais outra vez o antes )
VI
Do mesmo tempo partiram e não chegaram
meus pés em seus pés antecederam
sempre para onde apressava o devir do território
casa círculo bagagem
o coro derradeiro do breve aceno
o sopro terra a terra cobrindo os rostos
a vigília para não partir
quebram as cerâmicas da previdência
queimam as vestes e os tabernáculos
novamente a luz tardou a vir
com estes homens há de faltar caminho
com essa gente o mato cresce e traga o mundo
A idade da terra e outros escritos 45
a colheita é maior que o transcurso
O pó das águas
46
#
as estrelas do céu
um pé já não se vê
ele
e o corpo estende as roupas
os farelos das mãos bebem o dia novo
os ombros não são a espiga mas o corte
Onde tem leite
onde tem leite
deitar como os cães aquecem a pele
quem pode sentir o corpo
que deita na cachoeira comum
e tira a roupa
e mergulha a face
O menino quer a água
o menino sabe nadar
o menino sua
as águas devolvem o suplício
para a água vir há o tronco
todos esqueceram dos avisos do céu
as mãos o falo a garganta
cantam a força de quem te leva
não é essa a areia desejada
a que rasga e mostra o sangue contido
ele nunca vai chorar nem ver os peixes
os girinos e as madames rodam em seu dorso
a árvore no chão
A idade da terra e outros escritos 47
a água em tudo
não é lavar nem promessa
Em uma tarde que já existiu
meu menino o rio amou
I
Não o rosto menor que as mãos e o passado
com pressa adiante encolhe‐se o outro cego brilho que derreteu de costas um dia o
único
um menino viu a mulher subir já no chão e não cede um centro mal riscado ele
a panela não cabe em si pulmão banguela mil olhos
um terno também alisa a boca da casa maior que os dentes
a queda engole a fome na curva da testa que chuta os cintos
À noite entrega‐se no escuro breve com atraso
à noite zumbe ele o primeiro nu suspira
o peso se cala ao lado com o chão pedindo ossos de adeus
morreu o ar entre dois abandonos
dorme mulher a boca no beijo de ontem logo mais
nas pernas esfria soluça e cheira
fora da carne sobre o piso longe em pé agora é água
a escada não sangra o eco somente tudo a dor o grito
mexeram as paralelas que mordem não elas
venha meu bem com meias relógio
suba
os seios empurram os botões da camisa branca
a veste a veste a mesma que menino tomou
II
48
ele ri ela chora
estes não longe dela
o canto as malas um ruído antigo de se esquecer
já vou já vou bem baixinho
lá lá confirma de cima em baixo a testa e o queixo riscando de novo o que ?
com quantas palavras uma a moça pára
o som maior que a luz o sempre
ali sob a voz nem a chuva escoa os que nascem calçados na lajota
vovô tinha uma cadeira que não girava
um empurrão espera marcar o taco contado com nome e número
vovô nunca viajou de avião para morrer no natal
um coração é mais que isso e morre
ele traz ela puxa
o vidro deixa de cobrir‐se de gente vidro de novo o vidro
ela não a boca entre batom e cuspe
calça suas chinelas de couro devagar
deixa o corpo sem beijos e espuma amassado que os dedos grandes um só na calvície
mais alto
rádio sem pilhas não esconde pisar o silêncio
mais alto o roteiro dela implora escuta pilastras paredes
aí mesmo um gesto o nariz dá um passo à frente dele vivo lê
as unhas entram na mão fechada que bate uma vez a última
ele disse
tinha rosto
vestiu sua brancura
virou e viu o revés
segurou o bolo do pijama azul com moedasdrágeas
sua língua dança já branca de se ver
amarra o casal íntimos de nós
prontos para marchar deixam o chão voltando
quem escondeu esses olhos atrás dos lábios
um bolso uma só perna
seus pais e agenda têm hálito e brilho
de uma vez calou‐se o grande homem
de novo a bagagem extraviou‐se
é dura a terra varrida
é quente a devora tão longa
A idade da terra e outros escritos 49
III
abaixo do céu e dentro do túnel
retorna o que vi para não esquecer
no concreto cinza doente
termina a pedra no risco negro que o carro vence antes que todos comam brancos
voando do chão
o teto se costura e aponta o que a roda não alcança já tonta
é mais que três é mais que um só e acaba e não cai
tenho medo de nunca mais dormir
a noite se espedaça fria e perto
esquecidas as dobras vomitam os bichos com dentes
eu juro eu juro que nunca mais vou contar
eu vi a moça deitar para não dormir
e meu pai com a boca na veia que salta
loiros eram os cabelos mas não o espanto
eu vi a água e o copo tremerem sobre o bidê
um quarto pequeno e sem portas e orações
eu rezei pelos nus
mamãe dormir em paz o meu pastor
e pude ver tv até tarde bem baixinho olhos vermelhos no mundo que pisca sem cor
e fui no frio com lâmpada dar de beber à garganta rouca de amanhã
e lambi o pé da tia nova velha que ronca eternamente
Dick Dick Dick a boca aberta no asfalto cedo
Dick Dick Dick seu cachorro sujo e bobalhão
vira essa coisa vermelha sem olhos prá lá e dorme
IV
a raiz aonde
a raiz se eu vi
inteira com terra e fios com terra
a terra ?
a raiz ?
puxa puxa puxa fim mais terra em baixo
fios direita esquerda e mais embaixo
acaba a raiz começa a planta ?
dedos prá lavar
rosto com olhos fora
tudo aqui na mão ?
por que as formigas não param de andar ?
mais fios pequenos escondidos sem e sem cheiro como a terra que só Dick come tosse
tosse
50
mais fios de outras raízes de outras plantas sem fim
mais terra no chão do quintal espera ex‐cal
a lata come mais que visita porca margarina mistura feijão com arroz boca areia óleo e
dente preto
mais preto é o alumínio que não cansa e engorda torto
raspa raspa a pedra a mãe das plantas dura cheia de raízes cristais cimento sem curva e
folha
noite dormir depois da espuma olhos fechados
debaixo da cama a planta escondida encolhe‐se no dia em que voou
V
ele precisou gritar meu nome
todos souberam ao sol se por
a última vez a caça com pedras
não o vento no rosto dos que escondem os pés
não os pêlos secos do hálito que escuta e cega
não a cobra‐terra parindo seu fogo molhado
a voz pára e espera em pé como a casa
lá fora olham porque é dia um rastro para o branco sem raízes
as paredes elas esqueceram de um ventre para o choro
em meio a si desejam no eterno quase mais que nascer
o breve corpo pintado nos golpes que roubam sua redondeza
sem pés sem mãos sem boca sem olhos
sobre o formigueiro já grãos outra terra pouca e nua
voam na noite a escura altura dos que deixam atrás o impulso que rasga a pele
porque ele pisa dois e um e no após separando metade acima e embaixo
esse não é seu lugar
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
hoje os que se erguem não voltarão
verei as promessas da terra roubada e presa
um homem cairá em volta do que não foi plantado e busca a luz
de costas para a porta sente o peso das carnes que já não lhe pertencem
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
A idade da terra e outros escritos 51
Por quem chora a folhagem que vê ?
por quem chora os quatro ‐ pés sem céu ?
por quem chora o monte‐ira somente ele ?
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Moebiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
tarde cheguei do longo amanhã
nosso luto será o ruído do silêncio
tua culpa será a vigília que cala
minha cama mudará a cada noite
VI
Outra a mesma cama de todas as noites
presa ao teto de um rosto sem sono
de costas para a noite que conta e escuta
lá fora elas passam com o peito cheio de vozes
agudas de tão frias chamando os homens para vê‐las
nas paredes da casa retratos no lugar de janelas
ninguém de novo soube dos passos longos pisando a escuridão calada de ontem
eu mesma oro pelas que andam na vigília nuas
as que esperam deles os braços em troca das cantigas
tirando‐as do chão para o barro batido da casa
‐onde quer que exista não sendo a minha‐
(nas mãos os terços pesam e sangram os corpos de quem corre)
um fogo sempre aceso nas panelas e nas carnes
a noite fugindo louca dos que não tem medo
os gritos ruindo as cercas perto da manhã
Eu a casada
pouco o ar para o amor e os dias
arrasto‐me entre as águas do rio e o suor de meus seios
vestida para cuidar nua para dormir
dizem que os caminhos morrem entre a cerca e a casa
e elas não podem queimar essa terra
e elas não podem roubar meus irmãos
fora de mim suas cabeças volteiam em busca
Eu as vejo como sombras loucas nas dobras do quarto
A órbita antiga de um céu que pisca
o céu no quarto guardando os rostos
aqui o homem
o único o que veio para sempre
dentro da noite choram e cantam em romaria
meu homem dorme já longe de mim
52
eu rezo em vez do consolo das vozes
elas cantam porque não podem rezar
chuva fina não traz calmaria
prá quem anda assim na escuridão
dos divinos dai‐nos os filhos de Maria
ou esconde a gente sobre o chão
que é pior sonhar acordado
que dar de frente com o diabo
oh mulher das noites infindas
me ensina a viver na solidão
oh mulher das perdidas iluminuras
trocai minha tristeza oh glória nas alturas
VII
I
Um salmo para outro desejo
que mesma é a boca que me esconde e prepara
eu que espero a vingança da carne
para sentir o seu amanhã sem memória
foi para bem longe mesmo que eu veja
e nunca mais será outra vez o antes
Um salmo para outro desejo
ao lado continuam a mexer‐se pernas
vigiar nu com as cobertas novamente
O choro caiu pelo suor
os olhos eles têm de ver
o retorno do que faz escorrer mais e ?
um golpe uma voz que leiloa um pouco de um breve suspiro
na parede chegam minhas mãos cansadas de buscar o toque
andando pelo som de quem sequer sabe meu nome
Um salmo para outro desejo
Sei também que posso ir
a casa a casa a casa depois ali igual
A idade da terra e outros escritos 53
por que se nem estou aqui se posso dobrar‐me entre as tábuas que vou tirar debaixo de
mim
rasgar os lençóis novos agora que tudo acabou com os pés arrastá‐los contra o colchão
cadáver do algodão que não serve para vestir}
com os travesseiros dois fazê‐los um amontoado em cima do outro um e em cima
sempre escada que cai entre dois que um não dois travesseiros e nenhuma cabeça}
deixar a coberta só o após uniu aqueceu deixar a coberta aquecendo vendo o quarto
preso quando e quando
erguer‐se para terminar com tudo que me pertence o que deixei antes de voltar na porta
batendo a casa e o piscar piscar trazer as roupas}
Esperar pelo sono adiado de ontem
pela noite de ontem a que não terminou
é preciso é necessário é
dormi fora de meu lado da cama
a roupa está pelo avesso
dói em mim um calor ‐ tatuagem ‐ resto
Um salmo para outro desejo
II
o banho esquece o esforço
que a noite sussurra e vence
mais lentas as mãos são as mesmas
na espuma que foge e não ama
deitado vê o perto vestir‐se de passos
crescer depois da coxa estendida
de uma vez os rostos encolhem‐se em queda antiga
quem se fez breve cresceu acima do após
não é chuva o dia novo em pé vestido
a chuva a chuva afogando
nessa noite outro o fogo
da que ri e dança entre os homens
acariciando
o ralo derrama‐se dentro e fora
entre os olhos do instante dentes dedilham as bocas
III
54
não é ela desde que a trouxe
antes mesmo atrás e atrás
o coração pulsa toda noite sem luzes
essa não é sua cama a do dia com rádio
os faróis passaram sem música
entre a porta você não está mais ali
a tia nunca tirou os óculos
o pai sempre viu tv
a mãe lava lava lava tanque
viajamos juntos nas férias
saio como vou dormir
mais mais doendo é breve
um só fugiu ele só conheço
de langerie esfrio‐me nas ruas
um beijo só eu posso eu devo
há tempo há tempo não me faça mal
ela aqui não faça o que já sei
minha cama acolhe uma mulher
minha boca abaixo o rosto escondido
não beijo ‐ falo e prossigo
sob as águas tenho sede e frio
esqueça não fui eu que arranhei tuas costas
uma voz sim o gemido não a fala
mais e mais rosto e cabeça não se encontram
vejo a boca não beijada aberta mais que os olhos
e um corpo caindo em mim o peso que não me olha
pele branca e lisa menino não me bate
como eu espera o fim que o outro encurte a pele
homem‐moça que não existia ou fugiu
paga meu preço adoça meu ventre
rápido eu estava aqui crescem as pernas
a lágrima não cai porque a garganta não deixa
eu te amo até agora me abrace teus seios em minhas mãos
o que era para ir ficou para sempre.
IV
A idade da terra e outros escritos 55
O escuro, peço, tudo mais sem luzes
deixe sua voz rouca e cansada agradecer minha inocência
teu corpo sem rumo e pesado desafiar minha força
de noite nada mostre que já não saiba
o beijo frio de quem seu homem foi o pai das filhas
as coxas amarelas e brilhantes que engoliram o resto de baixo
as peles secas nas mãos cansadas de prender as veias que não querem esse corpo
os pés sempre frios e brancos esquecidos da mulher viva com décadas
Ela não tinha rosto de se ver a pele
sem pêlos nem o branco que o vento faz brilhar ao sol
lisa a mulher morena e úmida um detalhe o querer
em pedaços acordar para ficar ou ir
que ficassem mesmo no escuro os dois juntos
voltou outras vezes voltaram
o primeira loucura namorava o moço confuso
batam em sua porta de madrugada o falo
o escuro, tudo mais sem luzes, o que ama sem ver
nunca mais a voz rouca e flácida
que nunca implorou para amar o rapaz
Desconhecidos de si mesmos entenderam
nus
que no escuro ninguém é pai
V
elas o levaram entre a casa e as gentes
os pés no mesmo sulco que do chão nos leva à casa
abertos os braços imóvel o corpo
grita o povo a voz do que cala e espera
sob o pó da estrada repetida
a terra sobe girando acima das cabeças
em frente leve é aquele que não sabe resistir
pele e sangue marcam a volta que o pé aterra
Nídia espera cantando nua
A filha de Nídia fala nossa língua
seus seios o frio das águas vivas
só os cabelos longos sabem que escondem a nuca
frio o vento não e suas pernas no corpo viverão
Nídia canta e me despe enquanto eu toco
ela é grande e não é mãe
Nídia fala fala muito sem gestos ruídos na boca
não pára de tocar a mulher que me joga para trás e frente
Nídia que vocês duas, mãe e filha, façam isso por mim
56
meus olhos viraram quando parei de pensar
segurei seu dorso mãos no esforço sentindo a carne quase a falar
sempre eu depois e só sem dormir o menino
te quero todo, garoto de olhos sem brilho
diz nova outra viva suas unhas junto de um abraço‐cartão‐flores
eu só queria a filha de Nídia, a cantora espanhola com rugas
eu não queria ninguém
outra lágrima em meus olhos flutuava no fim da carne contra carne
a mãe penteia os longos cabelos da filha que nem o mar encolhem e escurecem
com a cabeça em seu colo escuta o coração no ritmo do amor jovem não o pai
choro mãe, eles morrem primeiro. Já sou viúva de véspera ? O mar, prá longe, me leva pro
meu amor.
as mãos agora, erguendo a cabeça, o riso sem canção, só os olhos na menina que a faz
chorar, os caminhos da face preenchendo‐se de estranho calor, a mãe no dilúvio de um
choro sem gritos, o rosto coberto das lágrimas, um brilho sob o úmido, um azul imenso e
doloroso expulso do rosto. Mãe, mãe, não vá também, a noite acabou. A moça abraça o
corpo da mãe, espremendo os olhos que nunca mais se abrirão. Nídia (o ar para fora) e
frente ao espelho. Retorna a garota que migrou com os pais. Ela, novamente, Nídia, atrás
das coisas belas, o quarto onde cabe tudo. Sobrancelhas negras e grossas, indomável, a
capital do estado com cinemas e bailes, ela só. O primeiro, um pai, o único homem, a
cama sempre vazia. Agora pode ver, tudo aqui, todos eles, dizer não, o pai um eco, a
culpa nela como seu sexo. Está vendo, o rosto novo, as águas que limpam. Mãe, o mundo
dormiu tão depressa que não tenho sono. ( apalpa a mãe, chega ao rosto) Junto com ele
foi o passado. Mãe, estou cega, não posso te ver nova. Posso estar alegre, repartir o
milagre. Me leva pro mar, mãe, no frio das águas que murmuram.
Nídia morreu e ninguém sabe onde foi enterrada, a terra não queria tamanho mal de
esconder seu rosto. Antes, muito tempo depois, eu já era homem, meus olhos brilhavam
e sabia falar. Sabia dizer não a quem não queria e me confidenciar quando era preciso.
Nunca aprendi a cantar e troquei a garganta seca pela lágrima seca. Andando na noite,
alta escuridão reencontrei Nídia, a que amei, não a filha, de mesmo nome, Nídia ela
mesma.
todos partem mudos e a cama desarrumada
pressa para vestir o homem que a noite morde seus ouvidos
com meias cansado quase desistindo
esquecem de mim olhos nos seios o rosto de menina penteada
os cachos negros o batom os olhos piscam piscam piscam
não posso chorar nem que eu queira
‐Nídia, Nídia mais nova que antes eu já falo
‐Minha filha, cega, eu com seu rosto. Um amor tardio, sem amores para sempre.
‐Como ?
‐Você foi embora, ela sabia. Chorou a dor da mulher, ela uma menina. Ainda bem. Não
vai passar por isso. Meu rosto brilhou e a escuridão profunda cobriu a face dela. O mar,
ajude‐me, o mar, vamos levá‐la. Não me amou antes, mostre seu amor agora. (música)
A idade da terra e outros escritos 57
‐Nídia, ela dorme, longos cabelos, o mar pequeno.(ergue‐a) vou levá‐la. É fim de noite.
Quase madrugada. Espere aqui.
Seu corpo um corpo sustenta, meu e dela, seu rosto, o rosto da menina na mulher. Já não
vive mais, seus longos cabelos nem o vento(...). Anda, vai sobre as ondas, os cabelos do
mar, as águas que tudo (...) o mar e a mulher. Primeiro os pés, tornando o frio em
caminhada; as costas molhadas, um leito que descansa e embala; e a cabeça salga os
olhos vazios de uma promessa cumprida. Eu sou Nídia, que não nasci prá ser mãe.
Sempre jovem, luto ‐ minhas as razões. Morra sem saber que nunca te amei; saiba então
que nunca fui mãe. Em meu colo as mãos ela via, mas não meu rosto. Avança, meu amor,
sobre as águas. Ela não voltará. Eu ainda tenho um rosto jovem, um sorriso sem palavras.
‐(vira‐se) Canta, Nídia, canta uma canção de despedida para os amantes (a menina
levanta e sorri nos braços) mistura essa alegria com tua miséria. O mar nos lava e
separa. Aos pés, a margem. A areia não desiste, cobre esses pés como um rosto ilusório.
As águas, dissolve.
‐ Obrigado, mãe. Mesmo que os homens morram, as mães vão primeiro. De que matéria
fomos criados ? da areia, desmanchando‐se na praia, perto de seu mar. A areia, que as
águas não querem mais.
VI
eu tive cores no pescoço
rodei rodei longe dali
um copo dado uma mulher
a boca tapa a sua sede
se eu transformar tudo em líquido
eu recusei tirar a roupa
um louco cansa meu abraço
eu vi sua mãe de terno e sóbria
você com dois sabem piadas
um prato alisa os cabelos
as tias tem a calça suja
me beijam sem dobrar joelhos
elas sem sangue sabem dos quartos
eu gosto que me falem tanto
Nunca mais as vestidas
fora minha fome
nunca mais esse, o apenas
eu sigo a curta reta desses grãos
58
VIII
ela sabe que está só ontem
um rosto quem viu sem adeus
não pare nas escadas caindo
atrás a porta fechada por dentro
comida para a boca mais cega houve e pratos
assento na sala um só
espere sua vez o soluço no bolso
perto das chaves cobertas de lenços
ele quase cruza as pernas nunca
a moça do quadro falar dela
as cores a saia na cerca acima da baba do boi
em volta ali longe os ombros o fim
aplausos gargalham a escolha‐moldura o sim
em pé nada resta igual
as mãos se lançam com olhos‐marés
ela a única que saiu entrando
casa errada logo a rua assenta os passos
ele beija um pano‐sombra da parede
dentro e mais em vão atrás a queda o solo derrubar
perto nunca ela a mulher vestida
sempre ausente a mulher pintada
IX
A idade da terra e outros escritos 59
Não há porta mas eles batem e riem. A casa esquece a rua e varre a última desculpa que
foi sangue nos lábios ( quem jogou essas pedras que as levem / que vestida de sangue
ainda posso esperar / eles sempre voltam porque me amam). Só um caminho, lá fora. O
tapete perde seus fios antes do quarto. Dia e noite, a mesma cor dos tijolos suja a pele
dos que se vão.
E eu espero que eles venham, em pé, sem sair, encostada nesta porta. Um cigarro se
esfumaça e minha boca deixa de ser e o rosto e meu corpo e as vestes. Voei...
Em vão esmurram a porta. Penso dizer que não estou ali. Brinco em apertar beijinhos
entre os lábios e juntar o fora e o dentro. De noite, jogo dominó sozinha ( pare de jogar
com o diabo, grita a vovozinha, lavando os dentes que não são os seus no banheiro do
quintal).
Eu não sabia que tinha pernas porque corri descalça, nem sabia dos cabelos, até coçar as
feridas na cabeça. Eu tinha era pintas, um corpo inteiro de respingos, todo para se ver.
Sou daqui, nunca vou sair daqui...
///
X
Frankmot 1
em pé mesmo que não andem
um grito é menor que o disco
um carro olha a curva com dor e esqueçam
de pé o vidro com rótulo
para dizer os outros a face é uma palavra um bolso na camisa
redondo é o prato para lembrar
um olho come para dois mas um é negro
você gritou com susto o fim
a boca esconde os dentes dizendo que as mãos empurram os olhos entre a pele que se
dobra e esconde o rosto
rir
dos olhos caem dois braços que hesitam
uma cintura fina
o queixo sem covas
Nasceu de mãe conhecida
as boas novas correndo vestidas dos arranhões que escorrem para não voltar
Frankmot 2
Vou despir minha ignorância
Subir no ponto mais alto.
Gritar por necessidade
Ultrapassar a noção do tempo.
60
Aquele que não sabe procura suas vestes
além de si a montanha se cala
para chegar os pés não são o bastante
no chão caem mais que os apoios
ele verá que a voz não pertence à alma
e um louco rouba seu corpo tombado
Os céus só sabem do abismo sob os corpos
um grito é bastante para quem morre
sempre o frio molha a terra e ainda
os passos da neve são suas raízes secas
Os que caem deixem
O grito é veste do morto
sabem que não vão voltar
Frankmot 3
brincar de ser gente
cultivar o sagrado
sem arrepender de
seus pecados
caminhar por necessidade
ferir por prazer
rasgar a alma
calar o mar ,dominar
o medo provocar a morte
instinto sóbrio
respeitar o não dito
injetar agonia, manter a dignidade
As meninas não sabiam pintar as unhas
mas brincavam de pega ‐ maria
e eu descosturei as almofadas
arroz não cai sem as mãos
Nunca plantei
com olhos tristes joguei bola à tarde.
A idade da terra e outros escritos 61
O menor de todos bebe o sal das coisas
sua mãe reza o terço debaixo do guarda‐sol
no peito dele cabem as ondas, o mar e o fim
Apenas um balde vermelho
e as águas devolvem o que não podem guardar
Um velho conta o intervalo de sua dor
e o jornal cobre sua pele última
Os olhos estão fechados para o sol
o mar piora a pele exposta
Os que passam não querem as cores
mas areia gruda em seu corpo
é preciso que o azul vire vermelho
ela quis que os homens viessem
O mar é mais frio que o picolé que você compra
O milho verde dá butolismo
As estações voltam nos panfletos
Rubenmar
Coisas superficiais tocam fundo em mim
Como o dia a dia e o pôr‐do‐sol
Brigar para existir mais um dia
Querer sorrir por mais uma vez
Eu escuto as sombras e a esquina
quando arrasto a calça entre as coxas
aberta a porta a sala é menor que o tapete
a boca masca o gosto das bocas que passam
Vou gritar mais um pouco ali um quase
em frente ao que o suor foge dos cabelos
engordei no rosto de uma calça bege
um olho aquele e eu paro depois
Nas mãos o vento lembra que com olhos
sempre dois pés os meus a linha
eu acordei ? o cabelo cheira seco imóvel
nunca mais o som a janela a luz vestido como ontem
62
Hiltinhomar
nunca será a última vez
nem a primeira
estamos no mesmo caminho
e vamos nos encontrar sempre
no começo e the finale.
nosso ontem mancha as calças
eu faço contas na mesa alheia
os convidados mordem o que podem
a noiva vai dançar de branco
as taças sujam meus sapatos
a sobremesa sabe da toalha
as mãos tem garfos para a ave estúpida
aperte o botão o número três
acima dos homens com fivelas
entrem
o desenho não tem bordas
um rato pensa com a arma do bandido
a cama dorme com as vozes dessa química
eu não vi mulheres esquentarem um quarto que fuma
ninguém sabe que as cortinas tem canela fina
a magra que dança esquecendo a nudez
Dói ser folharoupa que não cai
sem cáries o vento é boca sem alô
alguém morreu vendo tv
mamãe diz isso mesmo
é bom quando é ruim
meus beijos amor uma água quente
eu vou dormir sem teu amor
A idade da terra e outros escritos 63
os meus amores passam
sabem de cor que terminaram
a roupa a camisa veste
meus dentes bebem só licor
eu levo meus sapatos
cadarço assim não me lavou
por menos de uma mesa
um vaso não fica em pé
depois da revenda
o preço da minha crença
espera a mão do comprador
que essa pouca cabeleira
faz frios prá quem tem medo
morde as sobras da pergunta
engole o que já passou
‐ de várias ‐
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
me abraça e eu de costas
é frio e ninguém me escuta
como dormir se tudo fala ?
dói o corpo das coisas
perto disso algo mais há
você dormiu ?
então dance...
64
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
tudo é igual de onde eu vejo
e nas mãos cabe tão pouco
que não posso oferecer mais nada
que um pouco, muito pouco mais ainda
e ainda menos
mas é tudo isso e menos
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
antes de mim eu já sabia
lendo as letras que eram loucas
e riram da minha régua
Eu que não sabia ler nem medir
mas deixava as unhas crescer
para tropeçar toda vez no tapete
que roubei da vizinha que se mudou
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
um pé com outro ainda
esqueceram a luz apagada
e eu cheguei tarde e entrei
um beijo as árvores agudas
não adianta ‐ eu entrei
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se você tropeça o chão é duro
e todos sabem da íntima queda
um aviso é nada para quem cai
o joelho sabe que a calça sua
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
O chão tem peles e ninguém escuta
eu dormiria porque ver é pior
o chão eu piso e quero mais
é preciso matar alguém
é logo ali, eu sei, mendigando verdades
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
ouço a música e danço
pouca é a voz e o espaço
sei que um dia meu sonhos não terão rostos
de férias desafiarei o mar e o guarda‐vidas
A idade da terra e outros escritos 65
a noite conta as mesas que deixo
os vasos são lábios caolhos
eu durmo num banheiro com tv
eles dançam com os pés nos discos
tudo é lento e eu vejo mais
essa voz que grita geme sem rapaz
muitos vieram deixando seus filhos depois
a boca se abre perto de um fio que cospe alta luz
Chegaram na caixa sem nome
mulheres perto de anúncios de papel
a voz nua da etiqueta branca
o baile começou na hora do jantar
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
quando quer, luta contra os lados
que caem no que se abriu e já se fecha
entende que a terra é um bicho que cava e explode
que suja e cansa a mão e não se rende, só a casa
Se os dedos ferem suas costas e rosto
sem gritar ela recobre a dor e a gargalha
cavar a terra é sepultar um desejo
é tão pouco o que se ergue fora
e querem mais
querem cavar as próprias mãos
entrar o mais perto de não mais sair
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
eles trouxeram pouco, nem os restos, nada que lembrasse um momento antes ou perto
de se carregar. Chegaram tão sós que nem suspeitei que não falavam, a porta já aberta,
todos ali ‐ a primeira vez. Eles andam, juntos, o homem e a mulher, a rua dentro da casa,
enorme a casa, sem passos e móveis. E tudo ficou assim, sem festas, sons e toques, a rua
debaixo do tapete que roubou a porta que vestiu‐se de negro‐fosco que olha sobre os
ombros do casal que anda sem parar. Os vivos voltaram para a morar sob o teto de
madeira da mesma madeira velha do chão da sala e quartos. Um golpe no telhado, uma
pedra do céu.
As manhãs, ninguém as viu ali
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
um dedo é olho que aponta perto
em frente toca ou fere ou sabe
e cinco dedos duas mãos um homem
todos que voam correm nadam nas manhãs
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‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
com dois pés aqueles nada será uma dor descalça
sem frio e sem ovos
voar é fingir‐se ‐ o céu abre a janela imóvel da próxima lua
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
outro colo o da praça
no fim da longa rua leve de sono sem feijão
vamos ver o que não pesa nas sacolas
os peixes roubam nosso lixo
tia velha se assusta com asas
nele esse verde que expulsa as folhas
é inverno de nuvens e espera
a terra esconde o andar da lata
silenciosa às bochechas e pipocas
é dia é dia
presentes
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
A voz veio no carimbo de limpa distração
o envelope cai na pressa de mostrar que não é leve aos rostos com silêncios da boca que
lê
fim frente e verso um ar que emenda sem linha com calor a roupa de agora
em pé rir a sede no plástico sem cor olhos abertos sua própria mão segura e teme
ninguém viu a boca partir‐se cheia
água água
morder só abre o que os dedos prendem
mandaram abriram
uma mulher, meu filho uma mulher está chegando
logo a carta me roubou a casa
logo a casa virou metade
e das sobras posso respirar
uma mulher, meu filho, uma mulher está chegando
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Sabe o que eu digo ? não, nunca fui disso. As mães trocavam ameaças prá existir, os pais
gritavam algo mais que as mães, os irmãos riam baixo entre os pés e mãos que não
arranham. Isso desde o início. Sabe por que não disse “ era cedo” ? tudo é muito, eu
entre bocas e pontapés, de um lado para outro, sem girar, nem gado nem brinquedo
porque não tinha fim. Sempre alguém antes de mim em qualquer parte. Sabe quando
A idade da terra e outros escritos 67
chove, as panelas na janela, a casa cega de tanta gente sem voz, muito mais lá fora que
ninguém viu ? Sabe nos domingos a mesma melhor roupa limpa, muita gente andando,
muito mais gente que os bichos, que na casa ? Eu, sabia, era a manhã, antes um pouco,
fria e úmida. Lá fora andar, ter braços prá esquecer. Sabe o que eu digo ? o após, eu
sabia do após. Ri a noite inteira, dormindo mais cedo, menti. E depois, mais à frente, eu
sabia. A terra, nossas meias em grãos. Eu rindo sem parar. Acordava antes de todos e
esperava. Não cansava dos adultos e dos irmãos. Sempre mais, a enxada mais alto que a
gargalhada, ela ali, no chão de lábios.
Surdo, eu via a mãe criar dentes na raiva, o pai me arrastar como o mato, aquele que, se
eu ria, não pude arrancar. Era de tarde, o sol mais vivo, eu nu em casa, círculo de mãos e
bocas, meu corpo, cravar a cor da noite nas chuvas.
E eu fui tempestade, com a rouquidão de um peito doente, com a luz de um lampião
desregulado. Noite na casa, com chuva e raios. Como as nuvens sem ossos voei contra o
teto, quente e escamoso. Um rio, em cima, de onde me lançaram, o ar ainda veste minha
carne. Um céu de culpa enxuga o esforço do plantio. O sangue planta a erosão imunda.
Eu sabia do após, antes do fim.
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
eles podem pedir, estender os braços, implorar dos homens e erguer seus olhos; uma
rua inteira para isso, em linha suas roupas, sua cor, um cheiro só. Deitados ou de
joelhos, sempre de frente e à vista permanecerão. Dia após dia ali, esse lugar, com esses
que já foram. Passam os dias, anos, o tempo perde para os que não cansam em sua
súplica. Morrerão em vão. Os filhos tomarão o suor dos pais e serão mais fracos e
numerosos. O que ouvimos daqui, daqui passamos...
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Um estranho em seu rosto na festa que não acaba
Uma pensão em uma cidade do interior
era preciso que ele fosse, que viesse, que saísse de seu lugar.
um tempo só, ninguém soube, tudo aconteceu.
entre homens, a voz é uma luz.
uma pensão em cidade interiorana
(Dono da pensão. fala falha, nos intervalos. (...) = risada nervosa)
‐ desculpe...vejo que alguns já chegaram...a luz não virá mais, somente pela manhã, quem
sabe...estamos presos, nossas sombras.. não há nada para fazer senão esperar . Vim não
só para avisar mas a companhia...seu quarto e as pessoas... e hoje é a última noite aqui,
sabemos. Tem um pouco daquela bebidinha mágica, o vício ? Bom.... Ninguém conhecia
isso. Remédio. É de se beber ? tanto faz.... é beber e falar, falar sem ter mais fim. Não sei
se incomodo meu hóspede. De minha parte, não há problema nenhum, a conta o senhor
pagou na chegada, tudo certinho, feito de antes, de primeira. Tudo para não mais; as
malas leves, a voz sumindo. Eu achei muito estranho mas o que fazer. Mulher grávida e
filhos grandes tenho. Muitas filhas, todas se quiser. Um estrangeiro, que não é visitante,
sem parentes por esses lugares. Turistas / rir.../ turista nessa cidade esquecida por tudo
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e todos. Um rapaz bem apessoado, educado por entre endereços de seus gestos pedir
um quarto de homem solteiro, o senhor sem mulher, sem amigos sozinho viajante. (a
gente pode ser isso tudo pro senhor, querendo...)
Deve ser bom largar suas coisas em um lugar e sair por aí ... não que eu considere isso
coisas de vagabundo. Mas o que tiraria de nós nem polícia nem ladrão ? temos só muita
gente bisbilhoteira, não é; veja todos aqui no chão; a vida aqui é comum, a gente sabe de
tudo; mesmas histórias e só há histórias para se contar e ouvir nessa cidade, isso prá se
fazer. E a gente, como feras, gosta de se aproximar do fogo gosta do que tem luz; um
estranho, um belo homem nessa cidade sem mulheres. Quem é você ? se pergunto não
importa; eu falo demais...
(Outro ‐ um que não cessa de rir, já ria antes) Com quem falamos, senhor luz ? chegou
agora, depois de tanto. Um diz adeus, aquele lembra das aves, as aves que voam com
um copo e pousam em pratos. Eu não quis caça porque era novo e não deixavam. Mas
eles foram de manhã, no meu sono. Regressaram com penas brancas e cinzas e com uma
arara sem peito. Para comer, a paciência ‐ sem as cabeças, os dentes eram cegos e a
fome não existia. Vi a manhã verde e revirada na sacola de uma voz que não me ouvia e
tinha a inumana face de um erro de pontaria.
Noutro espaço é de noite e os homens‐pais tinham medo. Tanto que me deixaram ir. As
redes não dormem nem fazem repousar. Um supermercado é fácil quando quem vem é
mais um que não me vê.
O nome do meu cachorro é Dick, Dick de cinema, de faroeste, um cachorro que morreu
correndo na frente da rua que eu ia atravessar. O nome do bicho é Dick. Enquanto
houver olhos, ninguém quer morrer...
Em frente de minha casa, uma fileira de terra brigava com o cimento. Sem árvores ‐ as
raízes. Plantava cenouras, mas breve a flor e o fruto. No muro da garagem o sol invade e
se esconde tapando seu rastro. Um dedo só sabia que o muro guardava seu centro. Na
terra larga sem plantas e profundidade viveriam a sobrevida que passa. Basta todo dia
comparar que um dia se pode. Para comer um instante comove o aço com gás. Fora eles
não há rostos. Verticais. As amarras do fogo, sempre de cabelo cortado que as pontas
dos dedos beijam a decapitação. Marcas na madeira. Cortes. as infinitas batalhas.
Quebram. Hoje não brinquei. Novos palitos, mesmos heróis. A mão conduz o que se
quer. São tantos e cada um é o que é.
Para o cemitério das formigas os fósforos estão em minha mão. O pai desce pela
garagem. O muro como recôncavo é o portão do carro. É sempre esquecido. Um fósforo
voa, não porque morre. Os palitos tornam e retornam, já não basta a caixa de fósforos, a
faca. Os palitos sempre são diferentes dos palitos. Para ser as histórias, precisam
modificar sua parte de cima. Com dois cortes de faca, ficam afiados, agudos, nus e calvos,
como se sempre apontassem. O que os diferenciam são os cortes horizontais na
madeira. Uma vez houve a cisão, e a festa. Nas guerras, no frio e no calor, o fósforo
rachou no meio ‐ a brincadeira é cruel. Por mais que se preservasse o fósforo quebrado,
outros chegavam, e os heróis. E veja a gloriosa mensagem: fazia mitologia com uma
coisa tão frágil, que não se movimentava senão em meus gestos, se os fizesse, uma ponte
entre nada e menos um pouco, uma hierarquia tão coerente como os cães e os anjos, um
agón tão infinito e potente como o de Homero, sem nunca o ter lido. Eles morriam e
retornavam. Pronto, sem mais. Ficou pendente o túmulo das formigas no muro. Vejam,
A idade da terra e outros escritos 69
duas coisas me impressionaram quando era criança; na verdade são três mas a primeira
não se relaciona com esta história. Dos insetos que voavam, eu tinha terror do zangão. O
elemento aéreo me interrogava ‐ era o medo. Outro, no túmulo de meu muro só havia
formigas e cortadas em partes, das quais eu esquecia. O importante não se dava na
morte, mas após. A forma da formiga me lembrava do zangão. Era preciso estar bem
morta para eu me aproximar. Mas o incrível é que o buraco do muro encobria as
carapaças mortas. Meus heróis de palito de fósforo não tinham rosto; meus sacrifícios
no túmulo também. Paganismo... Eu confiava nessa coisas que não falam e eu falava, e ,o
pior (não sei) eu desejava por eles. Nos palitos de fósforo e nas formigas não havia
mulheres.
( Outro ) é, foi buscar a roupa, não a que tinha, tinha deixado lá. Era, era dele, importava
sim, a roupa de um homem, de couro, uma cor, era a roupa dele e de mais ninguém. Se
me perguntam ‐ o talvez ‐eu digo, a jaqueta de couro, marrom até a cintura, era dele,
todos sabiam. Rapaz bom e asseado, mandou lavar. Não sai, ele em sua casa , nu sem a
roupa de couro, dia noite, a vida, mas a pele do homem é o que ele acredita. Sem ela, os
sonhos. Perigos, dores, mas vencia. Não a busca, pois já se tem. Demorava, a roupa era
demais e o relógio é surdo para os desejos. Em casa, longe de tudo, a vigília na distância,
ele o único inteiro naquele couro. Uma vez banhou‐se e os rios foram pouco, neles jogou
a roupa. De olhos fechados já sabia que além dos dedos, o cotovelo encaixa sua dobra.
Um homem e seu casaco. Frio e calor‐ o couro é prá evitar mas prá permitir. Com a
jaqueta de couro marrom sabia o clima e percebia as pessoas. Nunca ninguém viu esse
homem sem sua pele única.
Uma vez a mulher o quis, deitaram . Tirou a camisa esquecida debaixo, a calça debaixo
dos órgãos, a meia no fim dos pés ‐ ” homem, eu te quero. Eu te quero inteiro, e tudo, e
teu nu. Tira essa pele de boi que a noite tem várias luas” e nosso amigo falou: “minha
filha, eu sou mais velho que tu, eu quebro essas paredes, eu te faço torcer essa franja
que cabelo espetado quer a mão que apare. Mas eu não tiro esse casaco ”.
A mulher não quis. E era uma. Tinha trabalhado no arrozal, no cafés de beira de estrada,
uma mulher e tanto, em sua voz com resto de café na boca.
E ele me disse isso num desses rodízios de beira de estrada, me dizendo que buscava o
marrom sem brilho, a proteção das costas quando uma só vez tirou. De camioneiro tudo
se pode; mas andar sem carga há seis anos por um couro ?
Pois a dita, a recusada, não se vingou de um modo que só elas sabem, quando perdendo
prá algo que ninguém acha proveito ? pois a dita não embebedou um outro que lhe fez
promessas e carícias interrompidas pela ordenança dela que roubasse o casaco ?
Só um bêbado para aquilo. Que o homem era forte e diverso. E era noite com vento, e daí
vozes. Sem lua e sem carga uma parada para não dormir. A mulher no retrovisor , os
olhos evitando um dilúvio. O outro querendo sem saber o que queria e era noite sem
resposta. O corpo da china balançava no meio da pernas e o arrependimento bateu. Saiu
de seu quadrante passo a passo, com o peito branco e soluçante. Já o outro tomava a
pele largada, meio sem voz, aquela da mente. Se nosso mano velho chegar primeiro,
traça a dona do rodopio; se o rato antecipar a corte, o orgulho se ausenta e a vida pede a
morte.
Um casaco de couro, meu deus, e tanto sofrimento. A roupa não protege o homem, e a
nudez é sincera ?. O forte caminha confiante, que uma mulher vale mais que uma antiga
praga.
E quem é o rato ? ele sabe os caminhos. Prá fora, a confiança não tem pressa. Mas quem
pensa no tempo já não é desses confins.
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Vejamos: a nós tanta oferta, todas iguais nas vestes e na nudez, tanta opção sem
dificuldade e quanto raciocíonio. Imagine pensar o que melhor se adequa. Imagine
escolher para proteger‐se, e nem nos fazem mal
Um casaco e não a pele. Sujo ‐ o cheiro. O couro tem as cores de seu fim.
Tão perto, e ela não era a única. Bois, o céu nem é uma hipótese.
O rato chega. O desnudo também. Ele a quer, o corpo moreno, os longos cabelos, as mão
ásperas que vão aprender na cama, estranha cama de lata, longe do baro cru e invisível
ao sol que se ergue na casa.
Pouca luz entre as palhas e as paredes. Como ser doce nessa hora? Um homem vai voltar
para o presente, quente e viva, uma voz eu quero. Ser homem é ceder.
O dia esconde‐se lá fora , é verdade. nem ela, nem ele sabem. Cobrem‐se com a inveja do
rato. No canto da boca, a boca invade numa linha o rosto.
ela virá quando for preciso. A espera mudará em despedida daquele lugar e uma noite
de amor bem longe dali. As vozes em sua cabeça se confundem e são esquecidas pelo
inevitável. As coisas podem ser ditas, os homens se confessarem, os destinos criarem
francos despedaçados entre gestos e súplicas. Nada, porém, impede que ela venha, nada
impede que se deixe de esperá‐la. No quarto, as visitas são hóspedes de uma última
noite. Para lá vieram como o estrangeiro. Um encontro que não mais se repetirá.
Despojaram suas roupas e suas vidas. Cada voz em seu monodiálogo, tocando mais a
escuridão entre as paredes que a porta de saída, que a volta para a cidade em sua última
noite sobre a terra. Não se podia ver o teto, o chão substituía as cadeiras. Todos em
volta do estrangeiro, falando exasperadamente que é intensa e desesperada a fala dos
que vão. A verdade disseram, escondida por entre as simulações e os silêncios, palavras
feriram os ouvidos. O estrangeiro escutava calado prestando atenção na porta que a
qualquer momento se abriria. E ele , erguendo‐se de seu acampamento no hotel,
deixando à fogueira dos tempos os relatos dos homens, sorri serenamente para aquela
que na entrada do quarto lhe diz a única coisa importante nessa vida, a boca como um
golpe demorado que recolhe seu amante para outro quarto em outra cidade.: “Deixa tua
casa e me segue. Não é preciso mais a espera.Fecha os olhos para sempre e vê como é
quente minha mão. Eu sei onde toco e violo o corpo desejado. Faço tremerem os dentes
e os membros até a boca espumar sangue. Há uma outra noite que não tem fim, na qual
não se fala, apenas as o parto, o ventre .”
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Menino, ver é não saber. Nas mãos, a boca fica perto de tudo. E olha pra isso, os dedos
sempre estão ali, tanto e a mesma coisa . De noite não fica escuro, noite e essas coisas .
No jardim de infância tem a noite, a que vai nos olhos, as bruxas, pretas, pretas, pretas.
As asas do bicho de dia fazer voar e são tentação; de noite, não se vê nada, as asas
cresceram. De dia elas voam e se jogam feito presente; lembra quando cai nesse desejo;
a bruxa é a mulher que abre seu corpo mas não se vê menos ainda. É pouco, bem pouco
é só tocar e trazer às mãos. A borboleta voa mas tem tanta cor. Ela não chega perto da
gente. A bruxa provoca. Ela pára quieta como algo sem vida, uma pedra. Faz mal sim. No
escorregador, nos túneis, ela está lá. Uma borboleta já fala em sua bondade, por isso que
a gente gosta de não tocar mais de enfiá‐la num saco,socando até morrer. Já a bruxa, ela
não é viva nem tem olhos, tem sim.
A idade da terra e outros escritos 71
Em frente da praça o prédio de Manuel Loucura pegou fogo, quarto andar, correndo
tudo, não as pessoas, mas as coisas, era bom demais tudo se acabando e sua mãe e
Manuel sem fazer nada e a gente levando tudo, um pouco ali, um pouco depois sem
valia. Bom era o fogo e a novidade. Mas ele abriu o quarto e as bruxas voaram muito.
Tinha que se jogar no chão. Em frente à praça, no prédio mais alto e velho, com
madeiras quebradas sobre os pés, sem cores o grande lar de Manuel Maluco, o de
sempre, encurvado, com enormes casacos azuis, no frio e no calor, um prédio ninho das
bruxas que na areia molhada do parque em frente, escuras, tinham a pele fibrosa e
todos levavam as mãos sujas para o rosto cego prá sempre.
Era fácil o perigo. Manuel Maluco queimou o prédio, o parque areado era o jardim de
infâcia e para subir as escadas era preciso ser ninguém.
Manuel Maluco tinha mais roupas que o corpo. Era gordo porque sua mão era o mal na
boca que mandava. Os bois esqueceram a donzela que só amou uma vez e trouxe o
campo prá cidade.
Veja uma cama cheia de preparos para o corpo. Entre as tábuas e o colchão, a rouparia
pensa amenizar o toque. Mas não é assim porque o charque e não o boi, a dança e não a
faca ? Sempre um adiamento que depois se esquece. Se algo que se quer mais que
permaneça. Mas o tempo longo é breve e a vida inteira se destina por esse instante. Nem
passado nem futuro. Basta o aceite.
Vejamos: aquele boi eu vou matar, a parentada está chegando, a casa recebe todos. Um
boi é, são os golpes no sangradouro e pronto, é tudo logo tão depois. Depois disso, é só
resolver as coisas. O que fica prá remediar a gente faz.
E como se espantam as bruxas; o nome pouco diz. Só se sabe que é algo frágil e cega em
sua pelúcia que atrai. Aí que está: a bruxa depende do olhar e das mãos. Aquele
invertebrado voador, identificável, ignóbel e diminuto só existe querendo. Entretanto,
ele voa e pousa, e parece estar tão perto ou longe quanto queremos.
Um dia, em dos brinquedos do parque ( um cano grande de esgoto pintado, um caminho
para se abaixar e sair) eu peguei na bruxa preta, sem olhos, os pêlos sedosos, ela morta,
esse bicho. Não voou nem me mordeu, a coisa preta em minha mão, sem peso senão de
meu medo, um monte de folhas negras, nessa Porto Alegre escura de inverno, fria e
encasacada, onde só se vê os olhos e se imagina o corpo. Ali estava a bruxa, um grande e
assustador inseto, agonizante em minhas duas mãos. Peguei um pau e comecei a bater
nas asas abertas que se confrontavam com a areia branca do chão, forte muito forte
batia sem saber porque e sem parar. Muita areia voou e mais. Eu batia no bicho como
nunca bati em gente. Não era ódio. Só eu não queria ficar cego. E não parei de bater e a
bruxa não perdeu sua forma e voou e eu não via nada.
O que era aquilo ? um prédio que queimava, um maluco e sua mãe‐avó e eu não sei, a
areia branca em frente no chão, sempre molhada e meu jardim de infância, as marcas
negras de um olhar que escondia seu rosto.
Naquele dia eu corri por entre as chamas, entre rostos e portas, e parei no quarto mais
alto, sem ajudar ninguém, sem saber que eu era um menino de cinco anos, fuçando as
entranhas de um prédio que, entre suas gavetas e caras, implorava por morrer. Eu matei
a bruxa quando a vi da janela do quarto que pegava fogo.
Eu só percebi que as pessoas riam porque andavam. O rosto precisava dos pés e correr
era voltar com um presente para as crianças.
Meu nome era para ser Alexandre, nome grande, macedônico, nome que se impunha por
si. Se eu tivesse sido Alexandre, quanta coisa teria mudado, tanta diferença. Mas nem
todos me acompanharam, ainda bem que não , eu, Manuel Maluco...
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mostre as mãos para a câmera. (uma voz) Pior é não ver mas as mãos não fogem. Que
um cai, o rosto tem olhos fechados e as palmas sangrando. Quem pede cega este aí,
moeda maior que um rosto. Eu não vou mudar o teto; o pulo só diz que as mãos
esquecem das orelhas. Muito bem,
‐ duzentas abdominais. E contando. Junto com os pés, flexiona‐se o resto. Acima e
abaixo, ritmo, força. É impossível cair, apesar do chão tão próximo. Treinados, podem
repetir o movimento quando e sempre. (bate nas costas de alguém). Belo espécime,
igual nas idas e nas vindas, nada leva nem traz. A queda é inevitável; erguer‐se ninguém
esquece. Tudo pesa com o tempo ‐ a novidade não está no ato. Repetir é lembrar, é
esquecer. Primeiro você sobe e desce. De tanto subir e descer, olha para os demais e
compara . De início, desigualdades. Uns fogem do pó, outros, demoram acima. Só o
fôlego aumenta e desaparece. Para isso, lembrar dos escravos carregando as imensas
pedras para túmulos de reis que nem as rezas demorariam um dia; as descargas dos
navios ‐ não lhe pertencem o cansaço e a memória . Os depósitos, armazenar é
comprovar que,empacotados, os outros arderão imunes à ausência do que mendigam.
Daí novamente outra vez. Acima e abaixo. Sem prazer, sem nome, os mesmos. Logo logo
as distâncias ficam iguais e o esforço diminui. É preciso não pensar. Um corpo apenas, o
seu e depois nem isso. O impulso que não vai além. O tornar que não chega ao fim ‐ eis a
eternidade. No início, a novidade. Em seguida, o costume. Não temos pernas mas flexões,
nem braços, flexões. O abdomen é um desafio. Voar ? que loucura. Ferir‐se, por que ?
Mais rápido que todos vêem, todos pedem algo. Estamos perto, muito perto da total
suficiência. Nem precisaremos de platéia. As luzes se apagarão. O ginásio desaparecerá
entre as sombras. O treinador foi embora. Os atletas sumirão no silêncio. Mas você não
pode parar. Nova turma espera o exemplo. Acima e abaixo. O grito de dor ou de
pergunta a musculatura assimila. Eis o último guardião, aquele que lembra nossa razão
de viver. A sentinela, o modelo. Como era mesmo o nome dele....
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Não escuto as formigas, são mais rápidas que a voz; não escuto as folhas, são mais lentas
que as formigas. A formiga é uma planta que corre para enterrar seus mortos. Uma
planta é uma formiga enterrada que cresceu demais as asas. Homens são formigas pois
andam rápido e enterram seus mortos. Homens são folhas vivendo mortos voando
presos à terra. Comem para viver, alongam‐se na morte. Formigas, plantas e homens.
Plantem formigas que enterrarão os mortos. Plantem árvores que o vôo virá. Plantem
homens que os gritos serão pedidos. Os que colhem, calam e cantam ‐ não ouvem. Sobre
a terra esqueceram as covas abertas. Com atraso viram e já sabiam que uma formiga
não é árvore que não é homem. Uma formiga come as folhas que o homem planta. Isso
cansa o homem. Um menino brinca na terra. Cava um buraco que logo deixa e esquece.
A idade da terra e outros escritos 73
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Antes de mim eu não via a porta
aquela
As meias se arrastavam no chão
era preciso alguém falar
Um dia não fez sol para sempre
minhas sandálias diziam que você viria
e assim compreendi que nunca mais estaria só
Eu não era assim, a foto, a outra
nem foi assim que aconteceu, desse jeito, enquanto eu contava
ali não fiquei em casa
não sei, não vi, não quis por você
meus pés cocem eu vou rir e é só
um adeus é tudo meus pés, eu quero rir
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
O que move as coisas
se tudo cai e sangra
Não viram que eles viriam
Eles chegaram sem ninguém
Só na casa há luzes
a boca escura que devora os distantes
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
a velha foto de brim e chumbo
tão pesada em metades escondida
cedeu ao branco de suas costas sujas
Mão nenhuma dividiu meu rosto
que quase ri no erro da degola
ao meio a dobra roubou os olhos
dentro de um livro fora da sala
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Natal
todos vão morrer com seus presentes
cercados da demora dessa noite que sorri
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pouco a pouco a casa conta as partidas
Firmino ainda não casou com aquela
Odésio come terra com abacate
Penha, Marta e Antônia
rasgaram as cores para sentir o peso
pesaram as coisas para medir o afeto
comeram cedo com avós e netos
pijamas novos ajudam a dormir ?
o azul se afina no sono que não vem
as camas se contorcem sob o peso do interdito
o corredor avisa o fim da noite
Firmino fazia trovas
Odésio contava estórias
Penha, Marta, Antônia
ninguém dorme nessas camas velhas
as vestes dadas não seguram os corpos
há muita comida, meu deus, os cães lá fora
não é cedo e a luz está paga ?
(o galo lembra que a noite secou no calor da família
ninguém amou, correu ou bebeu)
vestiu‐se o céu com rostos sem bocas
Firmino pega às sete
Odésio volta pro hospital
Penha, Marta, Antônia
Os carros recolhem meninos sonolentos
a estrada vence a rua longe sem poeira
é dia quente fedendo bosta de galinha
‐ as uvas, esqueceram de levar as uvas...
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
eu vi as peças para esquecer, usá‐las quando preciso; ganhar, se o jogo desafiava, era
inteligente, perder cansado de ganhar e provocar reação. Jogar sozinho, um homem,
dois homens, todos ali vendo as regras sendo obedecidas. “ei, jogue essa aí, seu idiota,
essa mesma, seu merda estúpido”. Ah, se soltasse essa pedra, fácil prá mim, fácil. ”ei, ele
A idade da terra e outros escritos 75
me olha porque ? gosta de mim. Bicha. Pára de bater na mesa. Eu vi, jogou duas. Está
com o morto. Burro”
você embaralha, deixa sob a palma da mão o que você quer. Leve, círculos que não saem
do lugar. Deixe que ele pegue primeiro. Relações de confiança. Demore para jogar,
assobie, fale, não demonstre que não tem as peças, mova as peças, que estão nas mãos,
perto de ganhar não sorria, esconda o rosto mas ataque sempre, faça ruídos e erga a
cabeça para ver a desconsolação do perdedor. 28 peças, tudo está ali. Confie nas peças,
contradiga sua emoção, olhe como ele enche as mãos de peças enquanto você espera o
golpe de misericórdia. Um contra um, a melhor de todas. Sem duplas, só você, você joga
dominó sozinho. Um jogo não precisa de mais outro.
você viu as peças, viu mesmo, viu como são as mesmas, que são 28, sete para cada ? viu
as peças do parceiro e ajuda as peças ficar de pé. O importante não é ver as peças mas
entender como aquele joga. Vamos lá, desenvolva mais esse adversário, golpeando‐o,
faça‐o vivo, provoque‐o. Ele é jovem e assimila pelas perdas. Perde bastante no inícios
mas imita seu estilo. Era meio caipira e agora sabe quando você foge do jogo porque
não tem, quando blefa, ele sabe que você mente e mente igual a você. Tudo agora é
decidido nos últimos lances, no acaso das peças extras. Não há controle. Você não joga
com outro. O velho truque de sair com seis ele também faz. O velho truque de pôr duas
peças na sua vez, ele fez mais de uma vez. Aproveitar sua distração e colocar peças foras
de lugar ou ver as peças extras, tudo foi aprendido. Não há mais jogo, mais tédio.
Invente outras jogadas, inverta suas técnicas. Mesmo tendo a peça, não a coloque. Tendo
muitas de uma série, guarde‐ as. Não os truques, mas as jogadas, o inesperado. Você está
ganhando, varie o jogo e confunda o esperto, apontado seus truques. Você não faz
truque, joga e ganha. Mas logo ele assimila o novo estilo, faz as mesmas jogadas, é
agressivo com o mesmo repertório. Deixa tudo para o fim e espera o adversário mostrar
seu poder. Guarda, compra mesmo quando tem , não joga o dobrão, encurralando‐se
para obrigar o outro a jogar seu jogo. Foi o que você fez, não. Mas se ele faz, isso você já
sabe, ninguém ganha com a técnica agora. Todos flutuam no acaso. Cada uma marca seu
oponente, como se construíssem um muro intransponível que um tufão da sorte ou do
azar destruirá. Não há vitória mas tédio contínuo. Ganhar é sempre certo antes. Jogar
sozinho é ter o controle, é possibilitar esse domínio. Ei, deixe de zanzar de um lado para
outro. Há um só lado. Tudo é um jogo de um jogador e de um derrotado. Você sempre
terá as melhores peças pois você embaralha. Senão, troque as peças pelo canto da mão,
ele não está vendo. Se as deles forem muito boas, jogue para que perca, para que não
forme estratégias. Em perigo, deixe as peças dele cair, você viu sem querer,
principalmente quando esqueceu que viu. Mande no jogo, crie as situações mais
impossíveis, as alterações do poder do jogo mais inesperadas. Force tudo para quando a
trinca de ponta com dobrão fechando as pontas que o miserável não possui. Faça,
compara muito, mas antes, embaralhando, colha seis números de uma série. Seis? sim,
uma para ele cansar de perseguir. Mesmo assim, se perdeu o controle do jogo, nada está
perdido; faça com que ele desista, que faça um elogio à sua inteligência. Console‐o
dizendo que aprendeu com grandes mestres, que participou de torneios, que tem
conjunto de peças importados folheados a ouro, outros conjuntos pertencendo a
campeões famosos do passados, diga que viajou muito por causa de sua habilidade,
conhecendo países e mulheres, que dinheiro nunca foi problema, que escreveu livros
sobre o assunto, que realizou expedição arqueológica recuperando uma forma primitiva
bem remota das peças, perto de um mamute. Mostre, nos grandes momentos da
história, o jogo este presente em fatos e pessoas, sustentando guerras, reinos, filosofias,
amores e religiões. Demonstre o saber oculto dos movimentos das peças e o sentido
mistérico da peças. O tabuleiro bicolor, as peças bicolores, o sentido e a existência de
uma verdade que o próprio Cristo confessou em seu Sermão da Montanha. Que Platão
76
expressou na descrição de Atlântida, que os descobridores tomaram como mapa para as
viagens, que os astronautas viram lá da lua, que os genes copiaram em seu modelo de
forma, tudo isso em seu grande livro, um livro não, uma enciclopédia, 365 tomos de
1440 páginas da história do jogo.
E use modéstia, lembrando que tudo começou quando pequeno passava férias na casa
do avô, um grande jogador, famoso internacionalmente, cansado dos compromissos,
morando no interior de uma cidade do interior, desconhecido, violonista, boêmio,
mulato, rouco, manco que morreu rindo sem assustar. Não morreu, parou de assobiar.
Tinha um dedo grande maior que a mão, que os velhos diziam que era coisa de velhos,
um dedo que era um olho, o avô mais estranho, o avô um outro. Soube tanto da mística
que foi castigado com o imenso dedo, para que todos olhassem o bizarro antes de vê‐lo.
E disso ele morreu. O dedo foi crescendo, encurvando‐se para trás, levando o resto do
braço para as costas. Não podia mais tocar violão, nem segurar as pedras para jogar. Um
dia, o fim, o dedo sumiu e ele, abatido, desistiu de viver, riu e morreu.
Mas não antes esconder os segredos. Eu, o neto, jogava os dias e as noites com ele.
Jamais ganhei. As peças e a mesa eram maiores que o menino. A criança nunca triste e
imprevisível era a brincadeira do pai de sua mãe. Na verdade, não havia regras, o
netinho esquecia tudo e ria de perder na gargalhada do avô. ”Venha você, mas não
esqueça do menino” despedia‐se quase sem fôlego o grande jogador, assobiando a
mesma música sem melodia. Soprava fraco, mesmo enchendo as bochechas, zunindo um
som de cais distante ou do apito da chaleira. Um misto de hálito e cuspe impedia tanto o
cansaço como a concentração do menino. Logo após o fim da partida, o assobio
distendia‐se em imensa gargalhada. Todos riam, os dois no jogo do avô. Um dia, um dos
últimos, ficaram até tarde, façanha nova, fortes os dois na vitória e na derrota. O garoto
atrapalhado derrubava sempre suas peças ou acreditava que, se fosse no banheiro ou no
armazém, o vô não veria suas peças. Pior: ele mudaria as boas peças por podres. Esse foi
o mais longa dia da vida do neto do grande jogador. Tarde conversaram, não riram mas
palavras. “Ainda não avô, ainda não. Diz qual o segredo do jogo”. O avô não ri, perde o
sono; as mulheres em vão chamam seus companheiros. ” Café. Faça café prá nós. Sempre
bebo café jogando”. Essa era a única verdade. “Não veja minhas peças avô, já volto”. O
agudo da chaleira preenche a salinha simples dentro da cozinha . A desequilibrada mesa
de madeira entoalhada sente o peso do bule. Nada muda, o avô não perderá.
Acompanhando cada jogo, o neto ganha do avô na quantidade bebida do café. Termina a
noite, o bule e as esperanças do menino que acreditou no velho do grande dedo.
Arrastou‐se rindo para seu quarto com um sorriso no rosto, sem músicas e ruídos na
boca, tudo do tamanho da imensa noite escura cor de borra de café que cercava o
interior do interior.
Era uma despedida, um outro avô, uma outro criança, outro jogo. Meses depois, no
hospital chamou a todos, abençoou e riu diferentemente para cada um. Para mim, ficou
seus olhos negros daquela noite daquelas xícaras, da noite que não consegui dormir, da
cama pequena para quem crescia buscando fugir de uma luz, outra a que pisca em
frente de mim e no meu corpo, os dentes rangendo, o choro contido, para não acordar a
mãe e os outros. Como não ser senhor de mim mesmo, perder para meu corpo, ter algo
comigo, uma outra coisa em mim. Batia nas pernas, fazia promessas, odiava quem era,
mordia os lábios, fazia momentos mínimos como descargas imperceptíveis, imaginava
situações as mais diversas para não estar ali e tudo que imaginava reforçava o menino
(olhos duros) na noite que passou. Essa foi a primeira noite que não dormi, lutei comigo,
queria dormir para não errar em estar acordado com o novo dia. Um galo rompeu
minha clausura. “ Mãe, meus olhos estão duros ”, maldisse chorando. Do outro lado
desabou a maior gargalhada rouca, contínua e total que ouvi de alguém. Entre tosses,
ranger de camas, a madrugada dizia adeus. Todos começaram a gargalhar também.
A idade da terra e outros escritos 77
Após um beliscão, minha mãe seguia seu pai. A cama estava viva, creio que ria também ,
em suas molas e palhas. De todos os quartos, as vozes não tinham língua , perdendo‐se
na escuridão de garganta que expulsa um grito risonho escondido, com algo engasgado.
O grande jogador morreu e meus olhos não se fecharam. Na mesma mesa já sei como
evitar que as peças caiam. Assobiando, jogo sem parceiros comigo. A vó, bem noite,
aconselha ” Filho, jogar sozinho é jogar com Satanás”.
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
eu
que surjo nas madrugadas
entre os olhos de quem acorda e não me viu dormir
visto‐me com pressa de fazer‐me indigesto
carcaça espessa de ontem para a cama e o beijo
Um acaso
uma lembrança
os restos dos instantes que se pagam
eu novamente
sem bater a porta a luz vem em menor segredo que a fuga
uma manhã para rir lá fora de seu corpo
não volto mais prá casa
essa verdade não pode me abrir a porta
( Quando eu saía nas primeiras vezes
com a alma úmida sussurrava para ninguém ouvir
"eu estou morrendo, eu estou morrendo..."
lentamente
era assim que tudo se tornava sério
Hoje eu já nem sei mais o que aconteceu
se escutei aquela voz
se cheguei em casa)
Eu
que surjo nas madrugadas
escuto tuas histórias
em troca da noite sem sonhos
Eu
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
(...)deus comeu peixe estragado, peixe velho, que não pescou. deus não morreu não,
meus meninos, deus montou barraca na praia e vende pinga e milho verde (...)
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(...) jogue sua linha e esqueça, dê as costas prô mar. Você vai saber depois as razões e as
lembranças. Só mais tarde as kombis chegaram, levar você com os outros. Amanhã não
volte. A mulher dos peixes pode se aborrecer (...)
(...) um dia eu tive sede por todo o corpo, eu todo areia ao sol de meio dia, pisca‐ pisca
sem brilho com dó de mim. Tentei abrir a boca das águas entre as ondas que escondiam
sua boca ‐ coragem mordendo os pés de adeus. Então bebi o mar, o que não tinha, o que
me deram, o que não restou, o mar, gente, todinho aqui, ó, aqui dentro. Ai, meus lindos,
o mundo secou(...)
(...) ‐Vai o que, mano, algo prá cabeça, prás mãos , prôs pé ? Uns anel, umas correntinha,
colar ? Aí, mano, vai escolhendo, passa um gole aí da gelada. Um rei, viu, com essas coisa
nas mão. Cheio de prata e barbante. Olha que eu não vendo prá qualquer um... Fiz prá
você. Tem seu nome entre as pedra. Use um no nariz, num só, o da esquerda, saindo de
casa; outro lado depois, antes de dormir. Segura, mano, aspire bem fundo, até sentir seu
peso, o seu, o da sua vida sob o guarda‐sol. Ei mano, acorde ‐ a cerveja acabou (...)
(...) ‐ Amiga, amiga, qual dos dois, hein, qualquer dos dois mas que seja homem, desses
que cospem sujando a barba assim, com as mãos, só com uma, até o cotovelo, e arrastam
a gosma pela cara peluda, raiva e nojo após o beijo pago, aqui mesmo na praia, em pé,
amiga, amiga, como nós, assim boca a boca, só prá respirar nosso ontem (...)
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
Ouviram ? uma queda trouxe sangue sujo no brim lavado, elas, a que limpa e esconde.
Meu senhor ajoelhou‐se, soube que o homem tem partes, o baixo pesa e atrai, o rosto
não tem voz quando os degraus na cor viram dúvidas. Cair sempre, como antes...
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
(minutos parado, inerte) de joelhos, calvo, roupas brancas, descalços, mãos nas coxas.
Vazio nos olhos, nada que signifique algo, dor ou esperança, um homem que não foi
visto. que não sabe que há outros que não sabe que é homem, que não sabe se é o
primeiro. O corpo. Olhos abertos, inertes ele não é árvore nem meditação. Antes, bem
antes, não o vento ou o nada. Um corpo que não é conceito. Calvo e sem pensamentos,
nada esconde ou defende. Não diz não a nada. Não protesta não responde a coisa
alguma, antes não o há. Não é o último pilar no niilismo extremo da anomia pós‐
moderna, nem o Adão edênico, a nostalgia de um princípio. Nem deus nem homem. Nem
em pé nem sentado, seu entre‐estado não é agonia nem hesitação. Seu silêncio não é
punição ou incapacidade. Sem linguagem e sem sentido não provoca nem desiste. Não
anda, fala, nem normal nem excessivo. Roupas brancas como o rosto, rosto vestido de
corpo, cabeça no corpo vestido, sem fissuras e pontos de interrupção. Ele interior ali
naquele momento. Oposto a coisa nenhuma. Um rosto que poderia dar vida às emoções
mais diversas, um corpo que receberia as pessoas mais diversas, pés que levariam aos
lugares mais diversos. As mãos sobre as coxas, os pés sobre o chão, a roupa sobre o
corpo, a cabeça sobre seus ombros. Um homem e seus lentos e imperceptíveis
momentos se escondendo sobre nosso assombro e repulsa, se um engano o maior de
A idade da terra e outros escritos 79
todos agora diante de nós se fizesse entre nossa ilusão do que vemos e a verdade que
não percebemos. Em breves e estudados instantes, seus pés atrás empurrariam o
homem que permanece calado e imóvel, tão próximo de nós estaria, tão distante quase
em nós, um tempo curto ( outros entram e são iluminados. sete pessoas movimentos
frente, atrás e circular)
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
‐ a comida, vá, seu pia, é quase meio‐dia. Corra. vá de bicicleta. Lavou as viandas de
ontem? não, claro, já sabia. Como os espetos do churrasco, o carro no domingo, os
dentes toda noite, um banho e xampu nunca, esse cheiro... vá, seu pai, nós no almoço.
Não demore. Não é a fome‐ isso faz parte do dia. Antes de vir, veja se tudo está bem
tampado, se as carnes vieram. Arroz é promessa ou engano. Pára de biliscar os bifes, tire
os dedos da mistura. Você vai e volta. Só isso. Como da escola, todo dia, dormir às dez,
nada vai mudar, para seu bem.
‐ Doinha, a roupa doinha, a roupa que tudo se acaba.
‐Já vou, mulher, já fui.(bate na bunda do menino).Não aguenta ficar sem mim, comadre,
nesse quarto sem gente ?
‐ É e não: quando casei não tive vestido. Tão cedo fugida, roubada e esquecida. Um pai
aliviado, um moço corredor. Eram mesmas as roupas da fuga e da monotonia. Só o suor
era diferente porque mais úmido e velho. Nova ainda provo as roupas de minha filha,
minhas também. Veja, comadre, ninguém sabe quem é a que casa e a que volta sozinha
prá casa. Morre a mãe, os que ficam são órfãos ou viúvos. Vestir sempre é chamar a
mãe.
‐ Está sendo difícil, não, essas palavras, longas coisas ditas, lembranças, rejuveneceu.
Sua pele reluz a luz das noites com festas, com olhos de homens. A moça sem vassoura
na mão.
‐ Doinha, costureira de mão cheia, vestindo todas nós, cega a agulha que reúne todos
nós. Doinha, alguém nos escuta, você mulher com homem‐relógio e sem filhas. Sua
grande casa e só uma mulher.Cinco filhos que a terra abraça nas brigas e nos jogos.
Cinco dedos da mão que sempre diz adeus, eles lá fora. Nesse quartinho, remendos,
linhas e agulhas escondem o chão. Pequeno o lugar, um espelho, a máquina velha e
cadeiras. Aqui não se dorme ou come. Seminuas todas e nossas verdades, buscando o
que nos esconde e enfeita. Uma, um longo implorando a cama ruidosa; outra roubar a
imponência do padre; aquela vingar‐se do mesmo vestido. Todas aqui, eu uma noiva,
minha filha na cama com medo.
‐Tecidos e corpos, agulhas diferentes, minha amiga. Sempre nus os corpos. Teus seios
caem entre o negro jardim que circula o peito. É tarde demais a ofensa, errado o alvo do
cuspe.
‐ Um homem abre o portão e segue entre o jardirm. Entrará em casa sem dificuldades.
Come calado só e apressado. De costas e com olhos vendados sair ou entrar são a
mesma coisa.
‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐‐
O senhor em seu castelo
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Cena 1
conversam uma criada recém‐chegada e a governanta, a chefe das mulheres do castelo
‐já acordou o senhor delicadeza
‐ sim e não. Chega tarde, demora para dormir e faz barulhos antes, durante e depois
‐ dessa vez a que horas foi pro seu quarto ?
‐ nem sei , não lembro; o amor tem horas ?
‐amor ? minha filha, um bêbado não tem memória: mija fora do vaso, goza antes da hora.
E a confusão da manhã era mais de sua parte que dele. Veja você; tão nova, escondida
atrás das roupas de criada, que protegem os olhos de todos de um corpo que deve o seu
salário. Nova sim, risonha sim, um rosto que uma bebedeira engole com os membros
restantes. Aquecer, meu bem, forrar a cama de seu senhor com esses ossos
acamisolados, meu bem, é o que ele quer, é o que podes esperar. Recomponha‐se,
arrume sua roupa, melhore o rosto e cale‐se ‐ o dia é de trabalho não nos canse antes do
almoço‐ sabemos de tudo.
entram mais 10 mulheres que esquecem a nova criada
‐ estou rindo ? não, não se enganem. Nos últimos dois meses, além dos trabalhos
habituais, qual outro dever ?
‐ as roupas, costurar roupas para a festa. Fizemos tudo, vestidos, complementos,
perfumes. Tiramos de nosso dinheiro e economizamos nos serviços da casa. Noites sem
dormir, almoços excluídos de nossa vida, sem visitas, cartas, passeios, nós. Tecidos bons
e belos, todas nós diferentes, esperando esta manhã, compensando o cansaço pelo
sonho. Nós, nenhuma como as outras. A casa cheia, dançar, rir, os quartos lá cima longe
de nós. Visíveis, existentes ‐ a mulher nascendo sem medo.
‐ então está tudo pronto?
‐ tudo, senhora, e nós antes de tudo.
‐ Grandes meninas.Fizeram o impossível. Tudo agora terminou. Tragam os vestidos aqui
em minhas mãos.
‐ veja, senhora, as cores, o pano, as costuras. Pegue, puxe, teste as roupas mais perfeitas.
Não só toque como cheire. Cada uma inventou nova maciez do vento. De nossos cabelos,
fios escondidos misturam‐se com os tecidos. Uma gota de sangue tirada do queixo das
dez em água e mistério diluíram para os futuros matizes da face. Tome, senhora, nossos
panos , nossos corpos.
‐ Muito bem. Entreguem as roupas quase que ensaiando os passos e os jeitos da grande
noite. Continuem, andem como dança, escutem o velho piano sussurrando os mesmos e
antigos modos de fazer uma dama delirar a noite inteira. Lá embaixo, no grande salão
cabem todos que a sorte escolheu. De todos os lugares e línguas deixam seus negócios
uma vez por ano para vir ao baile sem nome. Esperam a descida pela escadaria de nosso
senhor e suas beldades. Ele, ferido de amor, prometeu nunca mais amar. Jamais saiu de
seu quarto. A escuridão usa como guia e guardião. Um coração ausente, uma voz divina‐
é o que lhe resta. No baile sem nome, na hora de sempre, desce ao meio da escada e
pára. Elas continuam. Em seguida, ele declama o maior poema de amor escrito até
aquele ano. Sua voz cala a casa. Os olhos se fecham. As mãos se soltam. Sobre as mesas
as taças se aquecem esquecidas. Silêncio. Uma voz que se avoluma e pesa. Todos baixam
as cabeças. De tristes passam a transtornados, não conseguindo esconder mais que as
lágrimas, agora se perdem em gritos de desespero. O chão se cobre de corpos que logo
se confundirão com nossos heróis mortos na emboscada na primeira guerra de outrora.
Nosso povo chegou para comemorar e vê os rostos dos mortos ainda ganindo de dor e
A idade da terra e outros escritos 81
medo. Embaixo os corpos dançam diferentemente e o poema não cessa. As unhas
crescem e desvestem o peito. As mãos golpeiam tudo que o sangue não encobriu. Jogam‐
se os possuídos de encontro a tudo que é inanimado na sala. Mesas, cadeiras paredes
transpassam os orgãos ainda vivos. Uma canção de amor e morte. Nova, inesperada.
Morreu nosso clã em traição. Morrem os que festejam. Eu subo as escadas com seus
vestidos. Jamais os verão. Nem festa nem homens. Volte para os quartinhos, voltem a
esperar sem sonhos. Uma nova canção, um novo destino.
Alguns instantes, a criada como que acordando, sozinha.
‐ não há jardins, só o castelo. Três andares, inúmeros salões e quartos. Não plantam, não
saem, não rezam, não lêem, não comem. A dor não chega‐ já está ali. Sei que é noite pelo
frio. Mais, lembrar mais... No andar do meio, dez mulheres costuram sem parar, no frio e
no calor. Com suas agulhas retêm o ar raro do palácio. Tagarelas essas agulhas que
trançam panos e mandam ruídos que alguns gemidinhos respondem. No terceiro andar
o senhor em trono sem coroa bebe nela sempre e rápido. Assim acordei, aos seus pés,
nua, com letras em meu corpo. Hoje vi o mal, a senhora, a que fala, ela, a palavra. Abaixo
ninguém chega, acima não se pode ir. Só a senhora sobe, só o senhor desce. Mas eu
posso ouvir (batem no portão, repetidamente)
‐ ei, a nova, a feia sem espelho, o que há ?
‐ seus vestidos querem vingança.
‐ você não entende. Sofrer, sofrer, sofrer.
‐ é o que estalam as agulhas ?
‐ eu já matei um homem; uma mulher é nada. Onze mulheres, ou doze, contando com
você, o que podem ? Montar um exército ? erguer um palácio? fazer uma festa (batem
mais forte)(escadas)
‐ Calem‐se. Mentirosas. Fui eu quem matei um homem, sou eu quem abre as portas...
Quem incomoda o dia deste castelo? (caem as portas, como se começasse a festa)
Cena 2
Numa choupana mulheres escolhem feijão
‐quantos olhos tem um porco ?
‐que pergunta, além de tola, fácil?
‐ responde então
‐dois, só dois, pronto?
‐ errou
(entra um homem)
‐ quem cegou os porcos, quem nos trouxe tamanha desgraça?
‐ eram porcos só isso
‐mas eram os porcos do senhor
‐Eu sou a amada do senhor. Hoje os porcos, amanhã...
‐Escutem todas vocês, testemunhem a verdade
‐Quero seu coração. Vou mudar seu interior como laranja que expulsa os gomos.
Escolho feijões pensando em homens que vão morrer em breve. Aqui estamos nós
amigas e o que somos ? eu sei que matar é saber. Vinha do palácio e um guarda forçou
minha intimidade. Vocês já sentiram um homem, ele inteiro retorcendo o corpo e o
orgulho de quem não sabe se defender. Nua, como os cães , ferida, sem ter nem a pele
para me cobrir vaguei. Do alto de seu palácio viu o senhor, viu e calou. Ceguei seus
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porcos que me lambiam e me acordavam, eu, a noiva .Vejam aqui (levanta a saia, mostra
sua nudez ) o que é isso para quererem tanto, para tanto nos levarem para outro lugar
para catar feijão... O que isso ? Vejam (fala com as outras mulheres), peguem, ergam as
saias, olhem o verdadeiro rosto escondido. Olhem, vocês não são porcos cegos. Saibam
que a mata limpou meu sangue e vai limpar mais uma vez (vira‐se e mata o homem que
cai)
‐(outra) Um homem, um homem sob nossos pés, um que faz tanta falta, um homem que
não se conta mais entre nós. (ficam em torno do morto, jogam os feijões em cima dele,
pegamos feijões de volta , tocam o morto, querem conhecer, cada uma conhece o morto
por suas partes)
‐(uma passa a mão na barba e entre suas pernas) não são tão melhores e diferentes. As
coisas estão só fora de lugar.
‐no chão não são tão grandes e não podem correr
‐(toca no peito do morto) é pior: além de trocados, falta o que temos em dobro
‐falava tão forte, com ordens que sua língua já engoliu
‐sujo, sempre sujo, vestido de remendos, remendos de homem (tiram sua roupa, a roupa
de um morto)
‐pés e mãos grandes que não sentem antes do toque que se torna dor.
‐pêlos, muitos, ele quase entre os bichos e as mulheres
‐essa é a melhor: valeu a pena matá‐lo. Encontramos os seios escondidos entre suas
pernas. Vergonha de ser lavagem para os cães.
‐ mas esses são protegidos por esse outro braço. Com dois nos seguram, com o terceiro
me surpreende, com os pés me planta na terra. Mas o que eu quero é seu coração (retira
o coração do peito). Só se mata um homem roubando‐lhe seu rosto cego que teme ser
descoberto.
Cena 3
O senhor de uma janela. seu quarto
‐posso rir vendo o que vi.(corre e joga‐se na cama. No chão vestidos. Cheira e delicia‐se
rindo das roupas íntimas na cama) mulheres.... a noiva do senhor, o dono do castelo.
Meu servo morrerá, ela não. A pele desenha seu nojo vomitando o que escorre em suas
pernas. Pegue‐as, violente‐a e tenha prazer, seu último gozo, homem, sua primeira
verdade, mulher. Hummm... que cheiro... ontem estava aqui nessa cama. Posso dizer que
seu perfume mudou, querida? ganhou de presente lá de sua tia distante, um odor mais
selvagem?( gargalha, pula na cama com as roupas íntimas, passando‐as em seu corpo,
jogando‐as ao ar, cheirando‐as. Pára de bruços, com uma roupa na mão e olha para o
chão, para as tantas roupas. Puxa uma a uma, rindo, olhos fixos. Depois se joga nas outras
, no chão e repete o que fez em cima da cama. Essas são suas falas que acompanham seus
gestos.Gargalha falando)
‐mulheres, mulheres, sempre mulheres, quantas e tanto. Passam a vida inteira entre a
linha, agulha e pano. Vestidas, podem receber seu homem no grande baile. Furam seus
dedos, duplicam seu trabalho, escondem‐se em imundos quartinhos. A dor e a miséria
são adiadas na troca de sonhos, receitas e retalhos. Um vestido para o corpo, um rosto
menos sujo acima, com olhos que engordam a mulher que se esconde nesses trapos
(começa a rasgar um por um os vestidos). Que lindo, minha dama, ficar melhor assim
A idade da terra e outros escritos 83
com essses decotes. Oh, meu amor vamos juntar essas peças, essas cores, essas damas
todas iguais. Como é frágil a mulher e seu vestido. (pega um e usa para limpar as
paredes; depois cospe) as manchas, elas somem ? lavando, podemos reutilizar, rasgando,
há conserto ?
Onde estão os que procuram pelas mulheres dos vestidos, ei você cinto,viu sua dona ?
onde estão essas que se esconderão atrás das roupas. Nem roupas , nem mulheres nem
nada, nem ninguém venham aqui, voltem não deixem que o vento as leve daqui...
(ele cai entre os retalhos e chora amargamente. coloca alguns em sua cintura)
‐ (imitando um servo) meu senhor, como esquecer as janelas abertas ? ela se foi (começa
a dançar) no baile logo depois de sua aparição na escada. Junto com seus passos, outros
deixavam o palácio, para sempre. Ao meio da escada parou o senhor do castelo não
encontrando sua senhora. Rasgou o poema anual e voltou‐se para os aposentos. Seu
choro calou a música e suas palavras não foram esquecidas. “Algo nos toma e leva
para nunca mais voltar. Impedidos de ir, ficamos. Um som entre as águas, algo
que não se fechou e engole o que resta”
Hontem
84
I
Disse que o cristal verte o brilho
enquanto o brilho de outrem verte no cristal
todos os cristais são comidas já provadas
e dessa refeição já enjoei
traga um livro de páginas em branco
em troca toma teu peso sem preço
vi um rosto após o outro canções atrás de canções
esmola por beijos
reluz ainda o cristal
Quebrem os espelhos
quebrem os espelhos
liberdade num copo dágua
liberdade num olhar que pisca
A idade da terra e outros escritos 85
II
Envolver‐se de capa sem náuseas
‐lagar sem extremos‐
é beber um copo de qualquer coisa
caco a caco
ser copo e pedir umidade
sem acreditar no olhar do fundo do vidro
Brilho
e todos brilham
e todos compram as capas
e todos bebem do mesmo copo
O minuete em lá sustenido
lá longe nu e sem sede
III
A‐
Erosão
Dentro de tua cárie entra‐se
preso aos números de acima
Os rios, amalgamamos sonhos vividos
na dor de afogar o mal das eras
que eras dentro de inúmeros
entrada de entrever‐se sem chuva
doirar de nervos na prisão da espera
recontando o chão que te entornou
B‐
Toquem a dedos suaves
o selvagem céu invertido
com mãos insinceras que possam
romper as cores do suicídio
Qual o tempo dessa desmedida ?
Quem pesará suas angústias ?
Toquem a dedos suaves
antes que das solares partições
86
venham mãos insinceras que possam
sugerir as dores da revelação.
C‐
Soma teu desespero a teus sapatos
e anda anda em círculos
assim qual liberdade
assim de joelhos pede perdão
a bebida dos anjos é seu pus
a balada dos homens o que eles pensam
Oh filhote de serpente com uma cadela
soma teu desespero e pede perdão
Centrado em si, perdido de si mesmo
olha as aves enlameando teu corpo
caminha ao revés dessas marcas
de nada mais valem os caminhos
Soma teu desespero a teus sapatos
e dança dança em círculos
trapezista e travesti da dor
A morte nunca te alcançará
pede perdão, meu filho, pede perdão
(morde, morde o antigo desejo de hoje)
D‐
No obscuro
tece a trama dos teus atos
envolve‐os sem que vejam
o suspenso enigma da desforra
Ontem uma pedra
hoje as muralhas‐assombros
No obscuro
queima a frouxa luz dos silêncios
alça mira em dois seios
prolonga teu corpo sobre o meu
Ontem uma pedra
hoje o deserto te pertence
o que podem os lençóis do cão
A idade da terra e outros escritos 87
IV
No princípio do mundo
não havia o mundo
mundo não acontecia
precipitava‐se em minha mão
No início no sem origem
orgia fez‐se origem
a origem em cada orgia
recendendo em minha mão
Lá distante mas sozinho
bebi até ao amanhecer
no amanhecer sozinho
e o copo caiu de minha mão
No princípio do mundo
festejei minha noite
morre um deus
e nasce o mundo
V
Há um jogo perigoso que brinco
sentado à sombra de aves cegas
todos estão de mãos dadas
é minha vez de jogar
Há um jogo perigoso que brinco
é minha vez de jogar
todos querem ver comigo
qual é a cara do azar
Há um jogo perigoso que brinco
qual a cara do azar não sei
todos vão saber os desejos do vencedor
todos comerão suas carnes
furarão seus olhos
comerão seus sonhos
Há vagas
há vagas no jogo perigoso que eu brinco
88
VI
no altar de minha casa habita uma deusa frágil e sem nome. Segura um bebê menor que
eu, uma criança órfã e sem rosto. O altar surge melhor quando ligo a luz. Todos os dias
as pessoas vêm e jogam moedas na caixinha, dizem palavras muitas, fora desse mundo,
em seus segredos. Eu, que tudo observo, faço as moedas brilharem mais que a luz do
fundo da caixa. O altar de minha casa é um cofre sem segredos no qual a mulher vigia
não sei o que. Não sabe do brilho das luzes, ela, em pé, sobre o escuro do cofre aberto.
Não sei como o menino não cai de seus braços. A postura da deusa impõe a falência dos
músculos. A cada instante parece que pode despencar com seu homem. De verdade ‐ ela
se balança, atordoada, a mulher. A cintura requebra, as roupas trançam o vazio do ar.
As mãos, somente as mãos continuam atadas, não muito firmes, ao dorso e ao menino.
Será que ninguém vê que a grande deusa dança, ébria e sorridente, falando sem parar,
cuspindo indecências, xingando o pai vagabundo que sumiu ? Ao invés de admoestar,
ela lança injúrias. Põe o menino num braço, ajeita o lenço na cabeça e pragueja com toda
a sua alma, invocando os demônios do céu e da terra para ajudar na vingança última.
Larga o filho no chão e esbraveja para os que foram embora mas voltarão dia após dia,
grita furiosa para os que não lhe ouvem e a olham como se fosse uma santa. Sim, ela
quer ajuda, quer os suados vinténs dos bolsos. Mais que isso: venderia o próprio corpo
para tê‐los, tudo em suas mãos, entre suas pernas. Ah, como gargalha ferozmente essa
prostituta desbocada, velha companheira dos vadios sem ninguém e sem meninos para
cuidar. Ela é a mãe e amante de todos nós. Foi quem primeiro nos deu o leite e recebeu
nosso esperma. Canta, mulher, grita entre teus peitos a dor do mundo, a nostalgia do
bem querer.
Algo nos impede de tomá‐la, e é esse menino que está no chão.‐ o de nariz e rostos sujos,
pele enlameada de seu parto obscuro. Ele, desde sempre, o escolhido, alvo mais que a
neve. É preciso matá‐lo, cortejá‐lo com nossos gestos e unhas, ele, já em nossas mãos...
VII
É calor a terra inteira. Desce o céu à terra na ânsia de fazer‐se ameno. Na dor dos olhos
que não se cansam de ver, há a espera de acenos de uma aurora dormente.
Ninguém dorme no dia ofuscante, ninguém por sono sem ter as peles em fogo e dor. É
por todos que estão por sobre a terra que se arde sem se ver. Todos se consomem para
não se destruírem. O calor habita a terra inteira, não os homens. A estes, é preciso que
não durmam.
Também se pode ver a face de Maria, a pura, desencantada na eterna secura, como ...
num tempo sem relva ? Seus gritos que ninguém escutou... Maria, a única que ainda vê o
futuro...
Lá, no horizonte, tudo deve ser do mesmo modo, senão não seria o após, o distante. É
porque é desse jeito, assim visto, que ele é horizonte. ( as almas... as almas
descosturadas, fechadas por dentro, fervendo). É calor a terra inteira, e os cães
esqueceram de grunhir seus ais.
Menos Maria, Maria sem tino, que vê pensando no que vê. Maria ledora de muitas
estórias, em voz alta, os passados dos velhos. Não aqui, Maria, não os heróis...
A idade da terra e outros escritos 89
Eu me sentei na sacada e revirei meu fôlego. Maria, não via nada que afugentasse minha
sede, essa, a única que tenho, desconhecida. Sei apenas que é quente em tudo o que se
vê ( as almas... as almas se perdendo no além, ali em frente, depois dos morros que
derreteram...)
Não, há noite, Maria, não há dia, sempre o mesmo esforço de ontem e logo mais. Só teu
canto é estéril porque mentiroso. O fim se fez, entre as roupas que estendem nosso suor
no varal dos condenados, da verdade na pele que se queimou. De nada adianta teus
gritos Maria, após as fábulas. Não dormimos não: estamos é mortos, morremos, Maria,
acredite. Onde, o sorriso na amplidão da vasta terra sem deleite ? para quem as águas e
as frutas ? Maria , estamos mortos e só queremos nos convencer disso. A plantação não
vingou, o gado se foi, a casa ruiu, os donos fugiram. Nós estamos aqui, sozinhos. Nós, os
donos da terra, os que recobrem os caminhos com os corpos sem ninguém. Nós, Maria,
em viva carne. Surdos e secos para tua voz, indispostos para o passado que nos cegou,
fora da música‐ só um vento gemendo perdido de si e sem poder ficar.
Pare, Maria, pare de chamar nossas almas, o engano acabou. É preciso que nos vejamos
mortos, Maria, mortos da mais pura e mortal morte, mortos com os vermes como
formigas pelo nariz e pela boca, mortos no cheiro de carniça antiga e atrasada, mortos
nos olhos sem ver, mortos demais para as canções e para o mar. Maria, estamos
verdadeiramente mortos, queremos estar mortos como tu mesma estás.
VIII
Cadência quase perfeita. Próximo a mim, aquele que me quer.
Ergo as mãos e elas, distantes, ensaiam o vigor do reter. Interrompo o alcance na
angústia do momento. Breves, os dedos multiplicam‐se em vertigem. Cada braço dilata‐
se em mensagem indecifrável e passageira.
Ainda mais uma vez as mãos e agora os olhos. Fazer ver acompanha melhor tomar. O
que me repulsa, apela pelo dorso, o meu, o que vesti.
No chão, a cama. Perto dela, o candelabro. Abro bem os olhos como se nunca os tivesse
em tamanho poder. Possuo violentamente a visão. Mais nítidos são os contornos do
corpo desfigurado. Entre as velas e os lençóis estico‐me, fazendo vibrar os ossos que
nunca vi. O esforço atenua o asco.
Sei apenas das grandes mãos que se arrastam e se derramam ao redor do corpo alheio
de si, o imenso dorso branco, branco doente, dor que urra e desfalece após surgir e que
divide o quarto comigo. Há movimentos. Espasmos intestinais desdobram a flácida pele.
Prolonga‐se a cama adiante. Só o tronco, dorso de ilha em tudo em volta, engolindo e
detendo sua investidura.
A massa informe me atrai. Viro‐me com sede e agarro a mesa próxima num abraço
órfão. Sopro em direção das velas e elas caem vagarosamente apagadas. Também em
pedaços sou abocanhado no fétido calor da garganta que me beija. Amantes, pele a pele,
na ronda do mais se perder. Abro mais os olhos e o quarto inteiro é sugado na saliva que
90
respira da criatura que sou eu também. A casa inteira imerge no sêmen do conúbio.
Fecundada está a aurora do mundo. Amanhã acordarei entre as velas e lençóis.
Cadência quase perfeita. Próxima a mim, a cama vazia.
IX
Prolonga‐se, inclusive, a incerta dor. Recobre o corpo, sendo sua roupa e canto. Brotam
as imagens. Ela, esperada ajuda, menos que o súbito. Só o ar a ir e voltar, volátil. Arfo
ignorando o calor da despedida. Prepara‐se o peito para expulsar‐me, marés furiosas
invadem o que lhes pertencem. Inclino‐me distante, pisando o chão com as costas.
Agravo o desvencilhar‐me por meio das escoriações. Vazio, o quarto que me sufoca. Não
me ergo nem posso ‐ de longe vem a voz ou parte dela. Nas narinas, breve passar do
alento. Não mais no quarto, não mais em mim. Morta para sempre, ela, esperada ajuda.
De tudo que poderia redimir‐me, desde a outra idade, de tudo que poderia fazer‐me até
o último dos séculos, o que resta ? Rasteiro, envolto nas filigranas do solo sujo, ensaio o
encontro final. Abro os braços além de mim e converto em paradoxo a gravidade dos
homens. Crucifico‐me na ânsia, sacrifício cruento para os que me querem. Estou numa
lâmina baça e esfumada,‐ dissecam a mensagem das entranhas. Não há novidade. A
pinça recolhe nervo e fibra indispostos à compreensão. Apenas ela, esperada ajuda,
sustenta‐me e atrai. Sou cena única, tabernáculo redivivo para uma multidão agitada
diante da revelação. Componho com meus despojos uma oferenda, a despedida
repentina. Graves são as horas na entrega voraz.
Habito o chão do meu quarto, preso à sorte que me cabe. Em cima da mesa, distante de
mim, as uvas apodrecem na cesta, esquecidas na palha velha da cesta velha. Murcham,
esgueirando‐se por entre o que lhes deu abrigo. A casca seca esconde seu gosto para as
bocas. No vazio do acolhimento íntimo, jaz lá fora o hálito da planta que entorpece, que
se procura. Dançam as criaturas em volta da morta sem terra, das uvas da raça. Dentro
da casca pulsa o desejado das gentes. Alheio às fronteiras e às romarias, efusivamente
dissipa‐se na fluidez vária de seu acontecer. Plasma carnudo, gole áspero que arranha a
garganta. É o desejado das gentes, envolto na véspera germinal. Mais e mais adentro, até
a morte da origem, onde vibra a outra, o escondido querer.
Escuto agora o término das vozes, eu, dilacerado e escandido. Um líquido jorrando em
um copo partido. Uvas podres, vinho sagrado. Ninguém seduziu a polpa misteriosa.
Escorre em minha pele o veneno das eras, as sobras do mundo.
X
As águas não virão antes do céu encolhido em sua agonia. Reluzem, de canto a canto, os
raios do que não é manhã. E eu, de costas para às luzes, ergo a mão e destrono a lua que
é menor que os dedos. Noite escura e costas úmidas, estrelas avisam o que chegará aos
olhos ‐ é possível imaginar formas no céu escuro. Sem nuvens, goteja a massa azul que
modela as esferas. Um rosto triste cruza os hemisférios, o que vejo, o que verei. Pele a
pele, renova‐se o insucesso. Eu choro com as carpideiras antigas, que já não podem mais
fingir a dor, a outra, a que não têm. Elas, as que contemplam somente, negros os
vestidos, entre panos rasgados e sujos dos que andaram, se arrastando indecisas,
raivosas, mulheres de má língua, mais vermelhas que o sangue dos que se foram ,
vivendo o tempo do fim.
A idade da terra e outros escritos 91
Escadas e cercanias aprisionam meus braços. Desço irresoluto um percurso sem guias,
por corrimãos cheios de ar. Largo o balé dos seios, segurando um pouco de vida em cada
haste. Aos lados, a escuridão sozinha, ela e só. Tudo vazio, o irrespirável. Sugo das vigas
o anteparo da queda. Grades imensas se espiralizam ‐ dar de frente a um grito imenso,
de prata ‐ reluzente ‐ fixidez. Era lá o embaixo, o meu além, e eu chegara. No meio do
caminho que terminou, asas inscritas, saias, o sexo. Em frente, creio, de se ler : “ Tanto e
quase ? um, aquele, não está”. Estanco ! na solidão do braço sem apoio. Pior que o
intervalo, o não poder andar. Queda ausente, preso ao que deixei atrás.
E vejo a luz doutra janela que morei, o quarto desejado e que já foi meu. Outro era meu
nome e novas as brincadeiras. Com palitos de fósforos contava a saga dos heróis da
tribo, rindo dos homens sempre vivos a morrer de novo, os deuses como meninos sem
fé. Acima dos agentes, um furo no muro, com areia branca, branca escorrendo que não
acabava mais, massa para os restos das formigas oferendas sacrificadas.‐ esculturas de
quitina. Um zangão cruza os ares, forçando‐me à reverência, meu medo antes da ferida.
Mais um pouco , no silêncio de minhas vozes de palitos queimados que voltam, memória
das coisas. Com as mãos, dia e dia, com as mãos... Alguém no escuro me sorri.
XI
Sempre, o desejo. Antes de meu nome, o já chamado. Eleito para a descoberta da
volúpia. Nada entre mim e ti, nem mesmo as vestes bastarão. Desnudadas, mais as
vestes que a pele, avanço rugindo até aos confins do ato, cercando a raivosa, a preciosa
dádiva. Por que o riso se breve rompe‐se a trama e a posse ? Os lábios não se tocam na
boca em que dentes falam mais alto; liqüefaz‐se a foz para receber ansiosamente sua
atribulação. O atrito inflexiona a fissão do plexo. Dentro de ti falarei tão claramente que
o pulsar de teu sangue e as carnes que não forem minhas hão de morrer moídas em seu
desespero. Chegou o tempo em que visitarei as mulheres para torná‐las brutas,
imundas, rodeadas da miséria dos tempos. Tu mesma tens em tuas entranhas os
escolhos do acaso. Densa é a dor que te acometeu. Mulheres, sempre elas. Impávidas na
vida, cativas no horror do fim. Eis aqui os despojos da guerra santa mais antiga que as
pedras e os rios. Nas mãos, o peito sôfrego, os olhos dilatados em vã procura, os braços
largados sem esperança e vigor. Um corpo quente e sem cores a não ser as que brotam
das feridas. Tu, mulher, que carrego pela última vez, não mais o padecer. Agita‐se
somente os cabelos, e teu corpo não pode se despedir ‐ a alma agora escorrega por entre
as nódoas e as cicatrizes. Abre‐se a mulher para perder a luz e receber o mal.
92
Eu vim dos negros lugares, distante mais que o dobre da pernas, o sem‐caminhos antes
de nós, aprisionado para o resto das eras, que o vindouro é mais intensamente. O
grande arco jaz nos confins da terra.
XII
Não era ainda a minha vez. Outra, a aparição. Tentado a agir, não fiz mais que repetir o
despropósito. Melhor: afastei‐me mais da iniciativa que da própria ação. Desde já, vejo‐
me envelhecer. Tudo é acompanhado por uma franja de intederminação e o
descompasso entre o alvo e a mira que dilata minha instância. Estou sentado, de costas
para a porta sempre aberta. Alguém entrará, um estranho em mim. Desfio as
recordações de que não lembro mais. Pelo quarto, eu, entre o sono e a vigília, passam
gélidos instantes acenando o vagar das coias. Trêmulas, as mãos tentam agarrar o que
se arrasta por cima do chão, abaixo de meus olhos fechados. Sinto o tempo de todas as
horas trilhar em minha frente a procissão do que não foi. São roupas sujas,
descosturadas, disformes. Roupas com corpos que existirão, retalhos que nunca serão
usados. Deitado, falta‐me o ar . Nenhum som, apenas o figurável. Trajes, um após outro,
misturando‐se, despencando e o carpete vazio. Perto de mim, a vitrine do incondicional.
A variedade me atribula. Então vejo‐me: a pele dependurada nos ossos e ossso, creio ,
cansados úmidos do incessante esforço de sustentar um corpo desnudo, um corpo que
não se vestiu. Pele que ofusca a visão, apartada do nexo, a não‐pele. As vestes, inúmeras,
esbarram em um pequeno vaso escondido no canto do quarto. Ultrapassam a oposição
das formas e nada derrubam. Nem poderiam: um vaso sem flores, a terra que fiquei de
buscar. Apenas água no pote. Levanto‐me, persigo as vestes e tudo desaparece. Agaixo‐
me na intenção de encontrar algo no chão. Tropeço no vazio das flores e encharco meus
pés. Sei que estou velho, irreversivelmente velho, a ponto de não mais saber do tempo.
Então me senti nu pela pirmeira ve antes de me ver. A pele escoriada, arranhões pelo
corpo , imensas manchas avermelhadas, nódoas. Um corpo nu e marcado. Frio, muito
frio. Este é meu instante derradeiro, vesti‐me antes da decisão. Eis a impossibilidade
extrema.
a casa enterrada no chão como a largaram lá há séculos, antes das coisas nascerem. Tinha
uma velhice antiga, daquela que não freqüenta álbuns de família ou museus. Era velha e
sem imagem. Vivia sob uma sombra que vinha de verdes folhagens, se erguiam ao redor.
Tudo crescia à sua volta para morrer sobre si. Perto da janela, uma mesa de madeira,
interiorana e sem detalhes, escrevo, mais velho que sou, cansado e só. Lá fora devem estar
as crianças, brincando na terra, de pés descalços. Joana fala para correrem para casa,
lavar as mãos e comer. Contraio a caneta entre meus dedos, e o plástico rígido cede e
escorre entre tinta e sangue. Um estrondo enorme, golpe que ecoa o turbilhão
indiferenciado atrás dele, uma batida que nada abala , os móveis dentro da casa, em seus
lugares. Erguem‐se os olhos diante do rosto e abrem‐se às razões do barulho. Dentro de
mim, dilatam‐se as carnes, exprimidas entre a raridade do corpo. Eu já escutara esses
colpes fraturando os tempos e as vontades. Era como se rasgassem uma cortina que
encobriria o horror espetaculoso após ela. Eu sbia que era a hora, a minha.
A idade da terra e outros escritos 93
XIII
O som, aquele som foi imenso. Grande estralo que fundou o mundo e de uma só vez.
Acordei‐ permanece a cama desarrumada. Nunca desci para ajudar .. a explosão logo
após. Um acidente... é como se batessem em minha porta, as mãos que restaram
implorando, mas não atendo. É tarde. Deixem recado. Algúem como eu, em ferragens e
desespero tragado.
Sempre o som, mais forte ainda, onda que se choca contra meu corpo , uma torrente de
ódio. De nada adianta minha ajuda : a fúria está solta e acompanhada. Devo continuar
aqui, indefeso em meu quarto. Muitos abriram suas janelas, todos eles, o barulho das
janelas, imenso, maior que muldidão falante, escureceu a noite e causou‐me dor, a que
não sentia. Tudo minha culpa, por isso me escondo, não deixem que cheguem, dei o
número errado, eu estava lá, eu não durmo, minha culpa , minha para sempre, aqui,
escondido. Vamos, alguém morre em minha frente, ajudem, me ajudem. . Ninguém sabe
mas eu já morro há um bom tempo...Somente a risadinha grotescaa, gemendo pelos
cantos do quarto, tomando o silêncio que se move fora de mim. Muito se perdeu e a
risadinha grotesca arranha sua garganta, o que não sei, nem encontrei, somente aquele
estampido enorme, a enorme garganta....
XIV
Mímesis(1988)
O rio que passa é seu eterno castigo de arrastar‐se pelo chão, sem nunca olhar para o
alto ( e nem existem céus ainda). Seu mover‐se constante pelo chão me lembra da
última vez que acordei. Era um ontem salgado, profundamente surdo e passei a
perguntar da dor que sorria na minha insônia. O rio me desassossega a vida, me faz
desaguar de resvalo no último copo que sempre é último até que seja outro mais. Tempo
eXtranho: não sei se chove, mas há tempo para isso.
O rio soou fundo na madrugada adentro para quem queria ouvir seus cantamanjares.
Triste é ouvir suas canções e não saber cantá‐las. Eu, pelo menos, no mais silencioso
arfar dos lábios, imito, borbulhando, gotas caídas cheias de penúrias e de pequenos
olhos sinceros. É necessário enganar o medo, antes que se quebre o brilho das águas.
Entramos onde se costumava sair, gentis esparros do bélico alarido. Caiam um a um à
nossa frente, milhões que não andavam conosco (sempre se deve mergulhar no orvalho
‐ colher, por mendigas, a aurora). A hora é precisa para a morte. Por força, por força
desejamos, por força o pé na porta na última cama a ser tomada, sem tempo algum de
sobremesa, por força na esfera macia que se usa demais. Batidas de maremotos nas
mesas pois quem sou, não me interessa: por força eu bebi todo o rio.
94
Luzes que eu quero ver teu rosto, luzes para quem ousa derramar medo no tapete. Darei
risadas as mais altas de minha enormidade, sem que tu me cales. Sombras de meu
universo descrito, se as tivesse...
Sente‐se aqui ao meu lado. Sentou. Que tremor esse seu... Nada disso: não precisa ser
assim. Eu, que já fui morto na vida que se pensou viver, te digo ‐ deixa acontecer. Toque
de leve o que vês, pois somente vês e mais nada. Tenho os sonhos mais lindos nas
madrugadas que quebram janelas de meu quarto e meu coração ( se já não o guardei na
gaveta) e tudo interessa mais que teu rubor desnecessário. Agora deita que o cansaço
ainda não é enorme mas será. Deita e toma o derredor que se esconde atrás do dorso,
dorso de ilha. Eu mesmo tenho navegado errante pelos confins das calçadas. Andando
muito pelo eterno desventurar dos segundos, tentando ser o primeiro a romper
chegadas...
Apaguei as luzes. Não, não tenhas medo: as luzes sempre estiveram cegas a nós. O mais
que importa é a porta aberta dos teus olhos e dos meus que já não querem sentir o
cadafalso. Abraça que é bom sentir o que se pensa sentir, o que se quer que seja feito
nessa noite imemorial. Fale bem alto dos outros que não passam de outros mais, outros
menos, e a jornada é longa, longa para quem não quer viajar. Isso, isso, meu bem, que
seja assim e talvez de outro jeito. Junto de mim estás: já é de graça o sorriso fácil e não
me recuso em pagar teu peso. Leves andam por gramas orvalhadas os passos
orvalhados de teu desvanecer. Vem que a hora é só uma e o ensaio terminou. Folha que
se sua à outra. É tempo de colheita, é tempo de morte no vento que intenta mentir
mentiras.
Ahhh..... de vento em sonho da melodia sombria, rompe o ar que não quis nunca ver. Se
tenho no peito a terra que me enamora, vagar por incertos caminhos me faz feliz. Inda
mais que eu me fiz oceano, sem nunca ter passado de inseto vulgar, corrompo o odor
que destoa cadáveres, inauguro o engano de um modo vazio.
Ahhh..... eu que quis apenas inundar‐me de muitos, esperando afogar‐me nas canções,
ouvi o desafino de meus instrumentos, ouvi o espelho me dizer adeus.
Ahhh.... o rio que passa, verdadeiramente passa, e não eu. Antes fosse, mas não o seria,
antes assim do que nada. Eu, porém, fico e somente espero saber nadar um dia.
A idade da terra e outros escritos 95
Fragmentos Dramáticos
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O filho da costureira
Monólogo experimental e terapêutico
Para Willian
A idade da terra e outros escritos 97
Cenário em penumbra e gélido com vários manequins sem cabeça e bem vestidos, como
noivas de luto, as mãos arrumadas para abraçar, inclinadas, de frente para a platéia, para
acolher um corpo ‐ nem do noivo, nem do filho. Caem rendas no palco. Alguém sentado
atrás dos manequins, em uma cadeira de balanço. De início, apenas o ranger da cadeira.
Após, uma risada que continua sonoramente tomando conta do espaço até que o ruído de
um corpo que cai se faz ouvir. Som surdo e forte. Silêncio.
‐(com voz rouca, forçada) Todos sabem, garoto, todos aqui sabem, não é mesmo ? Não
adianta mais se esconder ou fingir de morto. Saia já daí, meu filho, o filho da mamãe. Sai
de perto dela, dessa que nunca mais vai voltar (ergue‐se e fica atrás da cadeira,
segurando‐a, movimentando‐a. Voz adocicada e familiar). Você está aí, eu sei , não está ?
o queridinho ... vem prá cá, pertinho, tenho umas roupinhas prá você, roupinhas prá
provar, que não são suas, uns vestidos de festa que você não vai usar, umas blusas para
o próximo inverno, um calor para outro corpo, um inverno que você não vai ver, aqui,
sozinho e com frio, trancado dentro de casa até mamãe voltar (sai de trás da cadeira e
caminha entre os manequins. Voz irritada com desejo fazer mal a alguém). Você está aí,
não é mesmo? em alguma das roupas que a costureira fez para todos nós e não
entregou. No fim do ano, há tanto tempo, éramos jovens e queríamos casar. A cidade era
menor que nossos sonhos, moços e moças escondendo seus rostos para que a dor e o
choro os matassem mais rápido. Maldita a mulher, maldita a costureira, que se vingou
de todos nós na grande festa. (voz outra como elogiando a qualidade de alguém). Dona
Juraci tem bom gosto, vestiu a cidade inteira, desde quando não sei. Encobriu os corpos
de todos desde sempre e continuará a cobri‐los até o fim. (a voz de ira, novamente).Dona
Juraci, Dona Juraci, sabemos que está em casa. O medo do filho escutamos, o menino
seu, sem pai e sem amor. Nós sabemos que dormiu com os homens de nossas mães,
sabemos os que dormiram com Dona Juraci, sabemos de tudo há muito tempo atrás.
Queremos que faça as nossas roupas. Depois disso, vamos embora. As roupas para a
festa queremos, o último pedido, as roupas mais lindas, doze vestidos para os jovens
que querem casar no próximo ano. Maldita, maldita mulher, a única costureira dessa
cidade, dona Juraci, a amante de nossos pais, Dona Juraci, que mediu e apalpou todos
corpos de homens e mulheres, moços e velhos. Todos os que respiram foram por ela
vestidos e tocados, e somente ela nos viu nus. Dona Juraci, maldita, abre essa porta,
esconde teu filho, costura nossas vestes, pare de dormir (ruído de um corpo que cai, forte
e surdo). Você está aí, garoto, não é mesmo ? menino mau, malvado, que espiava os que
iam para o quarto de sua mãe, os que iam pelas roupas ou não (começa a andar por
entre os manequins e sacudi‐los). Menino mau, bisbilhoteiro, aos sábados à tarde, em dia
sem sol, andado pelos corredores da casa, os gritos da mãe... “mãe, mãe, abre a porta,
abre a porta, mãe. Mãe. Estão matando minha mãe. Não me deixe aqui, no escuro, eu não
tenho irmãos. Abre a porta, você não pode morrer “ (sonora gargalhada como antes).
Menino mau e burro, sua mãe estava costurando, fazendo roupa para fora, mexendo as
cadeiras, a enorme anca, a cama rasgando o chão, o teto girando de prazer também,
fazendo um filho, mais um menino mau e burro (gargalhada). E nós, maldita, em nossas
tardes de espera, o grande dia se aproximando e ainda nus. De todas as cores os olhos te
deram a luz, de todas os panos as mãos te deram o dom. Doze almas esperam a noite
fatal na qual brilharão mais que as lâmpadas das bodas, doze almas esperam o
assombro do mundo parando de dançar para nos ver acima do jantar e da orquestra. As
mães com seus maridos largarão os passos das danças batendo palmas em seus
sorrisos. Os olhos nunca mais se fecharão ‐ engastados em nós, serão as bijuterias, os
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diamantes, colares e brincos para nossas almas vestidas que não gemem mais. As doze
almas aguardam, dona Juraci, que deixe de morrer na cama para cumprir outra a sua
obrigação (Arranca e rasga a roupa de um manequim). Essa roupa não, é de mulher,
mãe, essa eu não visto, é de mulher morta, de mulher sem filhos e sem marido. As
solteiras deviam morrer, elas sempre ficaram sem ninguém, os enormes olhos
rodopiando entre os cômodos de uma casa vazia, os corredores e as paredes sendo
engolidos pelo chão, tudo, enfim, deixando de ser , para virar sepultura sem jardim, para
a mulher que não teve filhos e, se os teve, perdeu enquanto tudo caia, enquanto eles não
vinham, quando as carnes se escondiam nas velhas roupas das sombras da noite, dois
olhos enormes vendo as coisas em volta terem peso e suor. Não mãe, não vou provar a
roupa dos mortos, as que vestem os nus para sempre, com cheiro de terra quando
chove, um medo dos raios, de não ver mais o sol e o dia que nasce. Não me bata mais,
mãe, traga seus homens que eu deixo, mas não me dê o luto, o luto que não é meu (
Gargalhada. Ergue‐se, tonto, tropeçando entre os manequins que caem, em cólera, os olhos
saltando da face, gritando). Ela, a louca ‐ de ferro e náusea o seu rosto, a que nos levou e
trouxe primeiro, longe daqui para que viéssemos. Um altar em cada casa, um espelho
em cada penteadeira. Não a louca, a que não ama e nos quis ‐ louca, muito louca na noite
em que acusava nos chamando pelo nome. Se o ar um deus nos roubasse, mesmo assim
tudo seria inútil, inútil fugir dela, para onde... Louca, louca, louca e tão nossa, os dedos
já sem carnes, as unhas com os restos das peles dos corpos que devorou. Bebe de tua
boca o teu retiro imediato, a prisão que te faz retornar‐ ela, a louca, a que odeia as
crianças correndo pelas ruas, a que nunca mais vai dormir a não ser por cansaço, de
tamanha dor, da dor maior que existe, entre as loucas a maior, a maior loucura, e ela, a
louca, sabe disso melhor ( muda a voz, como “cansada”, chorando) que eu, em busca de
seu filho, o que não pôde ter, os que morreram antes do parto, em seu ventre , sob as
águas, lavando‐se as mãos apalpando seu sexo esquecido, no banheiro, as portas
fechadas, frias e fortes as águas, na cabeça de um corpo que cai em sua tontura, na fria e
dura pedra do chão. Cabeça partida num sonho bom, que cego ficou para o resto da vida
maldita, Dona Juraci morta para sempre ainda menina, nua entre o úmido do corpo e o
úmido do banho. Frio e calor. Demais até para ela, a louca, para o menino sem mãe, para
o filho da costureira (levanta‐se e puxa um manequim que sai arrastando. Voz de procura
com ira). Você está aí, não é mesmo ? onde estão as roupas, menino, as que eram para
nos vestir, as que sua mãe fez para nós, as doze almas ? Somos mais de uma para cada
dia, sem descanso e moramos perto. Menino mau e sem ninguém, escondido entre os
soluços de uma infância que te roubaram. Lá fora, não, brincar com os que eram mais
fortes que tu mesmo e sabiam falar. Não tinham as mãos furadas das agulhas que tua
mãe te obrigava segurar, nem tinham roupas feitas de sobras de outras roupas. Eles
poderiam dormir e ter filhos e comer e se lavar sem medo, sem ouvir a casa rangendo a
noite inteira na costura e no amor que é segredo e mentira. Um mais forte que tu, lá na
rua, tiraria tuas calças mostrando o resto do corpo cheio de manchas e rasuras, um
menino sem serventia, mau, nem menino, nem menina, carregando de um lado para o
outro o que de manhã virão buscar. Não toque nisso, tire as mãos do tecido, não chore,
tome essa agulhada, não respire, não exista, não me olhe, não tenha a própria raiva,
menino mau e burro (gargalhada). Um dia, ela achou teus escritos, debaixo da mesma
cama, a cama das visitas que não pagam, o cheiro dos que não vão nascer nas cobertas e
nos móveis. Um papel, com a letra do filho da costureira, confessando seu ódio por
Juraci, sua mãe, debaixo da cama, um eu te odeio escrito de várias maneiras, com restos
de panos que em sua curta vidinha sem porquê recolhia do chão e do lixo. Eu te odeio
com letras recortadas do tergal, do linho e da lã. Eu te odeio colorido, com letras dos
mais variados tipos e tamanhos. Eu te odeio colado no papel rasgado que embalaria
nossas encomendas (pára de arrastar o manequim, ajoelha‐se como se falasse com ele,
A idade da terra e outros escritos 99
espancando‐o). Ah... na cama de ferro com grades te fizeram mulher e mãe, na casa dos
loucos acima e abaixo, antes e atrás. Mulher miúda e arqueada, como se quisesse cair
sem poder, deixando as bonecas vestidinhas junto com a criança que se foi, que ficou
brincando com os insetos no jardim. Tome, mulher, tome o que a vida pode te dar ‐ um
momento intenso e único com gosto de sangue e vício, a redenção na carne pela dor,
essa mão espalmada que descobre as entranhas de tua alma debaixo do que os pêlos
puxam prá si. Roda o mundo em teu altar, um filho virá da que não teve homem, só os
loucos , as doze almas querendo os frutos da promessa antes que a comida do jantar
esfrie e os convidados voltem para os armários. Um filho virá relembrar que não há
lugar algum como este, uma cidade que se diz nova ano após ano, novos casais para que
hajam novos casais, nova a vida em cada olhar que se despede ao fim do baile, da
consagração de nossos favores, a festa da raça que não pede perdão. Roda o mundo e
caem as vestes, os homens sentem que são manequins vestidos pelas mãos de outrem,
as mulheres encontram sua nudez no plástico de loja de sua cara‐corpo‐vitrine. Aí estala
a dança de verdade , tudo caindo brutalmente no chão frio dos que apagam a memória
das coisas e sabem que não existem mais (levanta‐se e anda por entre os manequins
caídos. voz de procura ). Por isso, é preciso encontrar o filho da costureira em cada canto
dessa sala, o menino curioso e burro que viu sem saber o que via, que viu a mãe perder‐
se em seu eterno trabalho, os esposos encontrarem seu prazer espúrio, os jovens da
cidade trancados no ímpeto de sua investida. Ah, a louca, em ferro e panos costurada,
menor que o menino que te odeia. Ele, o louco, que esperou teu sangue escorrer em suas
próprias mãos de filho, que rasgou os panos e o medo e te fez breve o banho último. O
celerado, o que não pode com as gentes, menino mau que não gosta dos bichos, que
come a terra que os outros pisaram (como se fugisse de algo por entre os manequins,
escondendo‐se, alternando as falas e os sentimentos de perseguidor e perseguido).Você
está aí, eu sei, não é mesmo ? as doze almas, os doze vestidos, os doze casamentos... eles
chegaram, nos viemos, eu vejo, eu vejo... Acorde, mamãe, pare de moer seu triunfo, as
encomendas, a grande festa... Diz, prá mim, fala comigo, garoto, você acreditava que não
entraríamos em sua casa, revirando os quartos, os homens de nossas mães
surpreendidos (gargalhada. procurando juntar e erguer os manequins). Me ajudem, me
ajudem... Mãe, eles vieram, não fui eu quem fiz isso, não os trouxe, não te matei, não
levei todos para meu quarto sozinho e vazio (choro miúdo. Ele veste‐se com uma das
roupas dos manequins, largando‐os e se dirigindo para a cadeira de balanço. Silêncio.
ruído de um corpo que cai, surdo e pesado. É mais frio que antes. Vestido com as roupas
rasgadas, ele se balança na cadeira, fazendo ninar um dos manequins sem braço, o que lhe
caiu durante os movimentos anteriores. sussurra entre os lábios fechados uma canção de
ninar sem palavras e desconhecida mas infantil). Dorme, querido, dorme filho que nunca
quis ter. Esquece que estamos aqui para nunca mais sair, presos a esta fantástica visão
que nos toma e leva. Triste é ouvir canções e não saber cantá‐las... E eu nunca quis ser
mãe. Eu poderia beijar teu corpo se ele não estivesse tão frio, me doem os lábios, dói o
corpo inteiro ainda, é o que lembro, é o que chega em meus olhos, o último momento, as
tuas mãos a tesoura, alguém não vive mais. Só não sei se foi antes ou de depois de você
nascer, da noite de amor, antes de mim. Eu não era para ser ela, a que veste os homens,
a que tem uma casa com pouca luz. Eu queria ser uma estrela, famosa, com dentes
brancos, brancos e morrer mais jovem do que nasci e sem dor e filhos. Eu queria ser a
que chega tarde e está em todos os lugares. Clara, Clara, Clara demais. Aí veio o corpo, e
a vida e a tesoura (silêncio). Clara ainda está chamando, não meu nome, ela somente, a
que nunca voltará. Quando Clara não voltou, os galos passaram a gritar nas madrugadas
sem pessoa. Na grande cidade, sem festas e canções, galos em soluço de condenados,
eles existem, escondidos entre os que pedem pão, menos Clara, a que queríamos
escutar. Os galos, loucos, marcam o fim da noite novamente outra, e Clara não chega,
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eles sabem. Não posso dormir, Clara virá, eu sei mais que todos, o dia nascendo entre os
gritos das aves e o silêncio de Clara. Clara chamando, ela, viva, com palavras, mulher de
se ver e pegar jamais. Quem escuta o coro da aves não sabe que voltei, que nunca saí
daqui, que Clara sou eu, no fim das coisas, sujas as razões e o golpe para que eu caia.
Não, eu não quero ser mãe, ser Juraci das roupas e filhos do suor dos filhos, da dor dos
filhos, dos homens‐filhos que vão embora, que correm pelas ruas longe de mim. Por isso
eu te matei, mamãe querida, a dos lábios das outras, a que beijava mulheres, em sua
loucura. Tudo, mãe, tudo prá ser feito, menos as mulheres, beijá‐las, medir seus corpos ,
ver o que não se pode ver , a visão fantástica erguendo‐se por entre o cansaço dos olhos
que não dormem, os meus, os teus, eu, o filho da costureira (nova voz, agora de falar de
si, o que sabe de si mesmo, o que se afirma de si, para se despedir). Um homem pode, mãe,
pode muito, pode até deixar de viver, pode, sim senhor, um homem pode escutar os
passos, conhecer o rosto de quem geme, a boca de quem foge, o cheiro de quem não
chegou ( joga o manequim no chão e tira uma tesoura golpeando‐o violentamente). Não
vai haver mais festa nenhuma, senão a distribuição de nossas culpas, não vai mais haver
filho ou mãe, tudo acabou. Leve contigo essas marcas, essas agulhadas, as mesmas, as
que sabes fazer muito bem, as que entram dentro da gente e não saem , mãe, só as doze
almas indo uma após outra, caindo, loucas pelo chão da casa, pelas ruas , pelas estradas,
tropeçando em si mesmas, em uma corrida para ver quem chega antes do sol nascer, a
algum lugar. Todos nus, como nossos ossos, com nossos ossos frios e pesados de um
corpo que cai já não sei desde quando, desde mim, desde ontem, agora mesmo caindo,
no imenso azul sem margens de um olhar que se fecha. Toma, mãe, leve contigo a
mulher que nunca me quis, a única, a amada, a solidão sem pele e gosto. Montada em
seu cavalo branco em uma praça, nua, correndo, os homens e as mulheres fechados em
suas vidas vendo tudo e gritando ” lá vai a louca sem filhos e sem razão, vai embora pro
mal das eras.” ( em off, ruído da cadeira gemendo, contínuo, outro de um corpo que cai,
surdo e pesado. Após, seguem o de uma madeira se partindo, o de um tronco caindo sobre
um chão, o de uma pedra caindo nágua, de uma folha de papel que se rasga, de um tecido
que se rasga, de farelos , de farelos, enquanto cai também o ato, jogando fora as roupas
que não são suas. Vozes em off pré‐gravadas pelo mesmo ator, lamentam e comentam, em
gargalhadas: )
‐Sabe quem morreu:
‐ Não .Quem ?
‐ Dona Juraci (mais gargalhadas)
‐ De novo ? ela já estava morta (risadas)
‐ Deve ter sido obra do filho, aquele mesmo menino maluco e sem pai .
‐ Ninguém ainda descobriu quem era o pai do filho da costureira? (risadas)
‐ Nem vão. Acho que todos nós temos um remendo dela guardadinho...(risadas)
‐ Menino burro e doente (alternar entre as falas, risadas, as vozes sumindo pouco a pouco
uma após si.)
‐ Os holandeses têm brinquedos
‐ Sofrer por antecipação
‐ O Garçom é jovem
‐ Oito dias, oito dias me escutem bem
‐ A loucura é a normalidade dos atos aberrantes
‐ A falibilidade é estranha para a platéia
‐ Um homem só
‐ Resta‐nos muito pouco
‐ Leve é o berço para quem dorme ...
A idade da terra e outros escritos 101
A grande vó
Uma cama imensa com muitas roupas de cama, com todos os aparatos de uma cama
patriarcal da qual os panos brancos e rendados vão para o chão e do chão se erguem para
os céus, tomando o cenário inteiro, cama alta, da qual se pode ver em baixo bacias de
metal cheias de água, cama como se dela tudo viesse, o quarto inteiro. Iluminação‐cenário
que realça sombras e luzes no fundo formando uma aura violeta cercando a cama; entre
os imensos travesseiros, a vó dorme excessivamente maquiada, pálida, rugas, mas
maquiada de prostituta . Gargalhada imensa e infindável misturando sua voz rouca de
velha, sua voz de vó que é o que se espera dela, de morta, de agonia da morta, a morte bem
viva falando por entre os desafios da respiração que divide seu espaço com o riso
espalhafatoso; nada de movimentos de braços ‐ o corpo ergue‐se só no peito chamuscado
de riso e falta de ar. A vó gargalha e chora um pouco; após alterna um choro fininho por
entre suas risadas. O papel da vó deve ser feito por um homem com mãos peludas. Entra a
netinha. Fica um pouco mais à frente da imensa cama tendo uma roupa de normalista. A
vó permanece em sua agonia risonha coberta pelos lençóis até o meio do corpo , entre os
travesseiros altos. Na frente da cama deve haver um meio fio, uma calçada, um desnível no
qual ela se senta e balança as pernas. Algumas vezes ela vira os olhos para trás, para onde
está a cama e a avó; seu olhar é de quem já morreu; entre seu vestidinho curto e meias
cumpridas, o rosto sempre o mesmo, só a voz alterna sua realidade emocional; ela é uma
boneca, um corpo sem alma. Sua fala deverá mostrar isso, como seu olhar já o faz.
‐‐ o coletor de imagens já vai passar. Dentro do seu saco cabem todas as coisas do
mundo. Ele vai andando e recolhendo tudo que vê. Dá muito trabalho ser coletor de
imagens, tirar da terra o que as pessoas não querem mais ou esqueceram por aí. O saco
volta e meia rasga e o chão volta a encher‐se de coisas como antes. Eu fico aqui
esperando sua passagem, torcendo para que caia algo de bom, algo de diferente, algo
para a saúde de vovó, algo para o jardineiro que não janta com a gente. Acho que ele tem
vergonha, acho que ele é o vovô que sumiu e nunca mais deixou de sumir lá dentro da
casa do jardineiro que de dia e de noite não pára de ter luzes piscando piscando
piscando e eu não sei o que tem lá. O coletor de imagens podia passar e desligar a casa
ou levar a casa com ele e levar o jardineiro e deixar vovô para que essa velha que não
consegue dormir pare de me atirar travesseiros e me deixe em paz. Sua respiração
vazada em sangue e catarro sou eu que tenho de recolher; de nada adiantam as bacias
espalhadas em todos os lados da cama; sempre esbarro em uma quando tenho de
limpar o quarto, sempre, a minha vida inteira presa aqui limpando a sujeira de vovó, a
102
que não tem ninguém, a que o mundo deixou aqui prá mim, vinda pelo rasgão do saco
do coletor de imagens.
entra um menino de calças curtas e meias e suspensórios e chapeuzinho; senta‐se do lado
dela, balança os pés do mesmo modo. Torna seus olhos para trás da mesma maneira. Após
fica calado como ela e faz os mesmo gestos . Ajoelhasse no chão como se jogasse bolinha
de gude e arrastasse como se se arrastasse em uma guerra.
‐ eu sou Alomar, o último herói da grande cidade desconhecida. Tenho em meu corpo
mais tiros, os tiros de todas as guerras, de todas as guerras, que eu participei de todas as
guerras. Uma louca vontade de voltar para casa quando tudo terminar Só posso ficar do
lado de fora de casa esperando chegar a noite para voltar, ficar aqui atirando essas
bolinhas umas nas outras até elas irem embora para sempre buscar outras para amanhã
de manhã. Não posso dormir‐ preciso vigiar o retorno dos que se foram. Ver se voltam
inimigos ou amigos, eu Alomar, o último herói da grande cidade desconhecida; tenho
mais feridas em meu corpo que as feridas todas de todas as guerras que participei, eu
que participei de todas as guerras.(Ergue‐se,salta,tropeça e cai, sangue desce da boca; a
menina olha para ele e a fala dela move‐se em irritação sem alterar o resto do rosto)
‐ vovó, até aqui a senhora me persegue; não vou limpar mais nada; e não adianta se
fingir de menino: a senhora é mulher e velha, velha mesmo; nunca mais vai andar e ter
dentes. Recolha seus dentes e pare de fazer sujeira. Aqui fora não pode, é o caminho do
coletor de imagens. Recolha seus dentes, sua velha porca e imunda que faz a cama
parecer o esgoto da rua. Sua velha louca e sem graça que vai morrer logo logo logo.
‐ Eu não sou sua vó. Eu sou Alomar, o último guerreiro da grande cidade, aquele que
protege o ninho das aves e sabe onde as formigas enterraram seus mortos. Estou ferido,
venho de uma grande batalha e você deve me socorrer.
começa a rir, a menina, como sua vó e continua a rir. A vó movimenta‐se na cama, para
melhor ver e falar, cessa seu ritual que passa para a menina. Quando uma falar a outra
retoma o ritual de risos e lágrimas.
‐ Meus netinhos, venham com vovó; tenho doces, seios doces e um amor imenso debaixo
dos lençóis. Há tanto tempo não recebo ninguém ... Que cheiro horrível empesteia a casa
vindo daí de fora. Venham se esconder do velho que corta as folhas e compra garrafas.
Venham para as minhas bacias, para meu corpo sempre quente nessa cama.
‐ Agora tenho duas vós, duas vós porcas, loucas e fedorentas. A vozinha de lá dentro e a
vozinha de cá fora. Mais trabalho para uma menininha brincando de casinha com duas
velhas, sem ter tempo para as bonecas
‐ E eu com duas mulheres e tanto ferimento sem ajuda, e ferido mortalmente.
‐ Venham meus netinhos...(uma imensa tosse da vó, imitada agora por todos, todos que
tossem e mudam de posição, como procurando ar, girando, como brincando de roda.
Sentam‐se. A vó volta para sua cama. As cianças‐boneco conversam.)
‐Seu nome é qual mesmo ?
‐Alomar, o último...(as interrupções se fazem na menina e no menino agora de mãos dadas
como em uma dança de roda Quando um toma a voz, puxa as mãos do outro para si)
‐tá, tá eu sei, não precisa repetir isso de novo, esse nome engraçado e ridículo, nome que
não é de gente da sua idade. De onde você aprendeu essa canção e essas mentiras todas,
você que é uma criança como eu ?
A idade da terra e outros escritos 103
‐Afaste‐se donzela e bruxa, a quem devo matar e salvar. Para longe de mim esses feitiços
e esses cuidados. Você está enfeitiçada, marcada por sua própria mágica. Se não
estivesse tão ferido, mortalmente ferido eu...
‐tá, tá, tá, tá, eu sei: ergueria sua espada, você de cima de um cavalo de bolinhas de gude
e (movimenta‐se como se galopasse num terreno baldio) e marcaria para sempre meu
rosto de menina com as unhas de suas mãos...
‐ Quem te ensinou tal linguagem que pereça de modo terrível. Os encantos das
profundezas não podem atingir Elomar, o guardião da grande cidade, o último...
‐ tá,tá,tá tá, vamos brincar, vamos atrás do coletor de imagens, o que nos abraça e conta
histórias sempre as mesmas estórias que nunca consigo lembrar, que é forte em sua voz
e leve em abraços, o que pode nos levar de volta de onde viemos, há tanto tempo, o que
pode nos salvar, nós , presos entre a rua e a casa.
‐Posso levar meus brinquedos ?
‐ Mas é claro que não. O coletor de imagens virá buscar . Sempre levou os brinquedos, é
assim que ele brinca com a gente. (uma sombra de mãos aparece uma concha de mãos,
mãos ‐ pomba que voam e caem em vôo rasante sobre as crianças. Que se jogam no chão
assustadas, em seus rostos de mortos. No vôo das mãos‐pomba eles se movimentam como
se estivessem sendo levados, sequetradas pelas ciaturas das sombras, vagando sobre um
mar escuro e infinito. Gritam por socorro, se alvoroçam em seus ais, frágeis crianças no
berço de quem é maior que eles, a vingança dos adultos, a verdade do dia. Fala a vó)
‐ Até quando esperar, meus os cuidados e as histórias. Fiz o mundo nascer em seus
ouvidos e os sonhos e os dias. Apaguei a luz da escuridão, ergui os céus de uma nova
manhã. Em minha cozinha fabriquei o bom calor das tardes de chuva que não acabavam
mais. Minhas as histórias, o que poderia ter acontecido, o que foi, fins e inícios, os sons
dos ventos, quem chorou primeiro.(Levanta‐se e olha para o público, alheia às crianças
em seus sofrimento.) Estas foram as redes que no futuro iria levantar sobre a terra.
(imita cianças em sua voz)“então era assim, vovozinha, o mal “ ”Conta de novo prá mim,
vovó, conta mais uma vez “ “de novo, de novo” E sempre o sim, um pouco de mim em
cada boca, partes de mim estraçalhadas em cada pedido. Oraram como eu ensinei,
acreditaram no que eu disse, escutaram meu passado, perderam‐se por minha causa.
Meus meninos, estou aqui para contar a última estória. Eu não era vóvo, eu fugi bem
pequena da casa, sem ninguém, uma menina sem pai nem mãe, uma vó, a que sabe bem
falar, dedos ágeis, gorda, sempre o bem gordo e redondo, como biscoitos da vóvo, como
as histórias que se acabam. Vovó era o Mal debaixo das camas, o olhar de dentro dos
armários, o amiguinho que se foi, o parente que não veio, a carta que não chegou, a
primeira surra, um beliscão. Vovó não veio mais. E encontrei vocês em minha porta,
embrulhados em jornal‐ alguém esqueceu disso. Agora é noite para sempre, vocês mais
pertos que minha cama longe. Cresceram bem, e não é preciso gritar: eu estou
aqui.(grito maior ainda, ragando o teatro inteiro, rasgando a propria escuridão que os os
embala. Forte luz que desabasobre o palco, lançando os meninos para longe, fazendo cair
a vovó no chão, apavorada, agora a vovó‐menina primeira. Entra um velho com chpéu de
velho e umsaco nas cotas, um velho com um imenso peso nas costas, assoviando uma
canção de ninar desconhecida, a melodia de uma canção de ninar que acorda. Ele cruza o
palco e se situa diante dos meninos e fala.)
‐ Pronto ? já podemos voltar para casa ? Eu não demorei muito, não ? Quem são vocês ?
‐ Eu sou Alomar, o guardião da grande cidadade. Tenho...
‐‐Tá tá, tá, tá, tá. Chega, menino bobo, parece aquela velha que eu me esqueci qual o
nome. E o senhor, não parece vovó, mais pergunta muito. Estamos esperando al’gume,
esperando a hora de voltar para casa, eu e meu irmão
104
‐ Mas ainda é cedo. A noite acabou de ir embora. Não é dia, mas alguem se lembrará de
trazê‐lo. O que fazem aqui tão tarde.
‐ Prepare‐se, senhor dragão misterioso e corcunda. Respoda: onde está o coletor de
imagens, por que você o comeu e nos quer devorá agora, se puder escapar de nossa
emboscada ?
‐ Isso mesmo. O que têm nesse enorme saco, um velho com duas costas, um velho sem
dentes, com cara de minha vovó, outro velho porco e doente para eu cuidar, uma
menina que eu sou, volte outro dia.
‐ Vocês não sabem ? há muito perigo, por isso sempre dormimos cedo, sempre os
colocamos dentro de casa na cama. Nunca fiquem debaixo das cobertas, ou das camas,
Deixamos muitas coisas pelos quartos que podem ferir. Os caminhos já foram feitos, os
quartos distribuídos. Batam nas portas, lavem os dentes, falem baixo, algúem não gosta
de vocês, não sabemos porque, as crianças, porque vieram.. A casa, ela sempre esteve
ali, quan...( enquanto falava, a vovó levantou‐se e o empurrou, fazendo cair e abrir o saco
de suas costas. Dele caem sujeira, fotos rasgadas, penas, animais de brinquedo, cavalos e
cães, e um banquinho. A crianças choram. O velho toma o banquinho e se senta, toma as
crianças no colo como se fossem dois bonecos e ele um ventríloco. A vó vai para trás do
velho e acaricia suas costas, escutando com muito prazer cada estória que se segue, rindo,
e chorando. Fala o menino)
‐ Eu vim depois, eu sabia. Nunca andei de pôneis, mas todos andaram Era preciso que eu
disesse a verdade, que eu andei de pônei também, o cavalo‐menino, que não fala e
obedece, eu em cima dele, pelos campos que vi na tv, um menino‐homem em seu cavalo‐
menino, o menino agora dizendo o que deve ser: eu andei de pônei, meus amigos, eu
andei mesmo, como vocês, nós todos , uma manada de pôneis pelas pradarias verdes,
verdes, muita grama, todos correndo, o imenso mar de grama de se não ver o fim, meus
amigos. Daí paramos na casa da tia Quêda, irmã de papai, a tia em sua velha casa do
campo, sem luz, só o lampião cheiro‐ruim e a longa noite sem olhos, os rostos dos
barulhos. No escuro brilhava uma jóia rara, um relógio como eu nunca vi, meu relógio,
agora era meu, não de tia Quêda, eu sei,. Eu trouxe o relógio, eu vim de pônei branco. O
meu relógio que melhor via na escuridão, do quarto de tia Queda no sono de todo
mundo. Meu relogio prometia coisas parta mim, se o levasse dali, daquela casa, meu
relógio falava e ria e era doce e leve em minhas mãos, lá do quarto de tia Quêda, quando
as históiras cessrão e todod foram dormi. O relógio me prometia o que eu sonhava e eu
via em seu rosto de vidro refletido não o tempo passando mas os desejos, não o pônei,
agora eu quero outras coisas, mais e mais, a minha tv do relógio, o meu rosto que sorria ,
o meu relógio que precisava levar. Levantei na escuridão e peguei o relógio do quarto de
tia Quêda, correndo sem olhar para trás, casa à fora, na noite de muitas estrelas. Perto
do rio joguei o relógio, de manhã buscar, mas esquci. Tia Quêda morreu sem seu relógio,
nas férias é bom pescar...(é interrompido pela menina que se levanta)
‐ tá, tá, tá, tá, tá... garoto mentiroso, o herói da grande cidade. Me ajuda aqui. Vamos
levar o avô e a velha pra dentro.
‐ (o coletor de imagens) Já é tarde, meninos, e ainda os armários não foram fechados.
Olhem para para dentro, no fundo do quarto, vejam o que as portas e as gavetas
escondem, vejam as roupas em sua vida de escuridão. É o medo, meninos, é o medo. E
ele sempre virá. Eu recolho o que jogam fora de dia mas volto de noite para trazer tudo
de volta. Tudo aqui se faz, não fica perdido. Os homens não descansam enquanto não
rencontram seus brinquedos. Eu trago tudo para vocês, não se preocupem. Nem precisa
me chamar. Cruzo as ruas, entro nas casas, e faço ver o que se escondeu.
(a velha, indo em direção das crianças apavoradas) ‐ Venham meus netinhos. As camas já
estão prontas e eu tenho sede. Venham comigo cuidar da sede da vovó. Em meus braços
A idade da terra e outros escritos 105
os sonhos serão belos. Eu não durmo pensando no corpo de vocês. Mesmo que eu
espere, vocês crescerão, os dois netinhos para vovó.
(o coletor de imagens se aproxima das duas crianças e da vovó, completando um cerco de
feras que rondam quem nada lhes deve) Contem tudo antes da cama, deixem tudo aqui
para mim. eu preciso de tudo antes dos sonhos. Eu quero é o dia, o dia que me tomaram,
sujando os caminhos com esses abandonos. O lixo do mundo caindo da mãos das
crianças . O que seria para os olhos agora é pisado por todos nós que não vemos como o
chão de uma criança é muito, é demais. Me devolvam, garotos, me devolvam o que eu
trouxe de volta.
(a vó se aproxima mais, fechando o cerco, empurrando os meninos e grita mais
intensamente)‐ Vamos dormir, que ainda é cedo, vamos dormir antes que alguém o faça.
Venham para cama, que eu vou contar umas histórias, os terríveis casos de doenças e
mortes, a noite é longa corredor adentro.
‐(série de frases como confissões enquanto o menino e a menina são arrastados de cena)
Eu juro que não foi eu, eu vi o menino expiando a tia linda de corpo branco como as
águas só os pêlos fazendo a novidande, banhando‐se como ninguém outra o fez. O corpo
branco escorrendo por entre o vão das paredes de madeira, um olho só para tudo aquilo
‐ eu juro que rezei tudo como devia, um pouco só a menos, alguns salmos a dever, outro
dia, no dia seguinte, neste não no próximo repetir as palavras escritas, no silêncio alto
de minha cabeça
‐ eu juro que não fiz isso, isso tudo não, mas aquilo foi quase idéia minha, a deixar os
meninos caírem do berço, contar seus movimentos, saber que bastaria eu olhar para o
lado para vir a queda, meus olhos para uma lado que sabia o que havia por ali.
‐ Mas meu era o ódio, chegar cedo em casa e ninguém. Quebrei as janelas e saí correndo
pela garagem dizendo e perseguindo o ladão que quebrou as janelas, tão iguais eu e ele
em nossa corrida Ninguém nos viu só as janelas quebradas no chão.
Casal na cama
Diálogo minimalista sem ninguém
106
Ato I
Uma cama, um bidê com bacias com água. Toca o relógio. Os dois , homem e mulher, viram
de lado, em posições opostas. Estavam longe, ficam mais ainda. Demora. Ela acorda e diz
que vai fazer café, como sempre. Ele a puxa para si e diz:
‐ Hoje é domingo, Ellen, domingo.
‐ Por que você pôs o relógio para despertar ? São seis da manhã. Por que me acordar
seis da manhã de um domingo ?
‐ Você acha que eu planejei tudo isso ?
‐ Claro que não, mas por que acordar tão cedo ?
‐ Eu pus o despertador desse jeito, fui eu.
‐ Não entendi .
‐ São seis horas e três minutos. Eu acertei o despertador para as seis no domingo.
‐ Me largue, me deixe.
‐ Calma.
‐ Não fale nada. Vou fazer café agora mesmo. Hoje não é domingo. Você fez isso ano
passado. Uma manhã , quase noite, no inverno, Mary descobriu tudo enquanto você ria
até o almoço debaixo das cobertas.
‐ Ellen, agora é diferente. Não vou trabalhar. É cedo. É domingo. Acordamos. Esqueça o
café.
‐ O café ? Nunca. O café me leva longe daqui. Sabe, quando casamos eu não suportava
café. Água escura, doce e quente. Aprendi a fazer café para sair do quarto.
‐ Café e relógio. Os tempos. Há vinte e cinco anos casamos. Pus o despertador para
conversarmos, não para o café.
‐ Mas eu não faço café para nós dois. Eu sinto frio e só percebo quando acordo. Mais frio
à noite, antes de dormir, antes de rezar. O dia inteiro ando com o peso das lãs. Muito frio
em tantos anos.
‐ Ellen, ainda é cedo. Dois, os filhos, Ellen, demoram para acordar...
‐ Você dorme, é só isso. Nem relógio, nem meus gritos, nem a queda do céu adiantarão.
Não há ninguém nesse quarto além de nós. Não há casa, filhos, outros.
‐ Paul e Beth acordaram. escute o teto se mexendo, os ruídos.
‐ Volte a dormir, querido. Nós não temos filhos, nunca poderemos. A cama é de molas, as
paredes de madeira. Sua tosse expulsou os vizinhos. Eu fiquei desde o início.
‐ Ellen, é cedo. Viemos ver o dia nascer, a nova vida. Os meninos não vão rir do que
fazemos.
‐ Cale‐se, doutor, como todo dia, quando sai e volta, visita as casas, escuta as gentes,
corre a cidade e me traz somente roupas, roupas sujas, as mesmas pedindo água e meus
braços, as roupas dos outros que aumentam o vazio da casa, roupas que não quero, sem
corpos, roupas de liquidação, sujas e rasgadas, para que tantas roupas, tantas, entre o
médico e a mulher.
‐ Mas hoje é domingo, Ellen. Não vou trabalhar. Ninguém morre num domingo. As dores
sabem se calar.
‐ Eu não, doutor, que durmo doente, que não posso mais dormir.
‐ Como ? e os sonhos ?
‐ Sonho de dia, além das paredes, fora da casa, Ellen‐menina.
‐ Nossa filha ia se chamar...
‐ Cale‐se, homem, cale‐se. Não há ninguém, todos se foram. Você visita os mortos para
ter certeza disso...
A idade da terra e outros escritos 107
‐ Não grite, Ellen, eu sinto que eles nos ouvem. O teto é baixo. Estão tão perto como esta
coberta.
‐ Doutor, doutor ‐saia desse quarto e vá ver seus mortos. Hoje não é domingo. Eu
arrumei o despertador como sempre, todo dia, antes do fim da madrugada...
‐ Espere, Ellen, deixa ver se eu entendo. Você está querendo dizer que não sei onde
estou , que nossos filhos, que meu trabalho e sua vida...
‐ ( ela faz gestos com as mãos e com os lábios que tudo acabou)
‐ Repete a última parte...
‐( refaz os mesmos gestos)
‐ De novo ?
‐ (refaz os mesmo gestos)
‐ O que é isso ?
‐ É quando tudo acaba, quando ... eu não sei falar...
‐ (ele retoma os gestos dela)
‐ Não é assim. É pior que isso...
‐ Faz prá mim.
‐ ( ela fica de pé na cama, pula imitando um pássaro, batendo as asas, pulando muito alto
e forte, da boca zumbindo “cego não escuta a mulher que chama ”repetidamente com seu
vôo, até cansar. Ele a segue, imitando‐a, até que ambos cansem juntos, ofegantes).
‐ O café, Ellen, você ia fazer o café...
‐ O que ? Ah, o café... Eu já vou, já vou, como sempre. Deixa só o frio passar.
‐ ( ele joga a coberta sobre si, reclamando do calor.) Que calor, Ellen, quanto pano sobre
nós. (tira a camisa do pijama. Ela fecha os olhos e grita:)
‐ Não...
‐ Desculpe, Ellen, (traz a coberta para o mesmo lugar) mas pare de ajuntar toda essa
roupa sobre nós.
‐ Prá baixo, da cama, homem, prá baixo, da cama, de castigo.
‐ Eu vou, eu tô indo, calma...(ficam em posição invertida ela no mesmo lugar ele para
baixo, como uma carta de baralho)
‐ Hoje é domingo, doutor, um dia diferente. O casal se separa, os cães não se coçam,
todos vão comer galinha assada.
‐ (rindo) Ellen, Ellen, Vinte cinco anos... com frio ?
‐ Sempre.
‐ Eu sei a cura.
‐ O café, não é mesmo ? (ergue‐se e ele a puxa de volta)
‐ Fique. Sem barulho, senão os meninos...
‐ De novo...(ele inverte seu lugar na cama. Ficam frente a frente, mas em cantos opostos) o
que é isso?
‐ Teus pés, vem.
‐ Para que ?
‐Teus pés nos meus.
‐ Mas hoje é domingo.
‐ Quieta. Empurra, força, vamos, assim (jogo de força, como se pedalassem com os pés, os
movimentos debaixo da coberta, as risadas, uma brincadeira infantil. Continuam a
brincadeira enquanto falam)
‐ Lembra quando nos vimos pela primeira vez, Ellen ?
‐ Fala, fala. Com o frio eu não escuto, eu não lembro de nada. Conta prá mim (olhos
fechados. Ela com gemidos)
‐ Minha Ellen e eu no parque. Escorregador, balanço, areia. Nossos meninos para o
parque aos domingos, nós mesmos, brincamos mais que todos, giramos juntos, os pés
pisando a terra. ”Não largue, Ellen, as duas mãos, as duas mãos”. E o mundo girando sem
108
parar, girando muito, não é mesmo , Ellen ? Eles em volta de nós, a roda imensa, ruidosa,
a maior aliança que já existiu. (vão falando e aumentando o movimento dos pés)
‐ Eu tinha medo, e minha saia era curta, do mesmo pano das bonecas. Eu tinha medo de
ficar sem roupa, o sutiã branco, a calcinha com bordados. Eu não escolhi isso, nadinha,
mesmo que ficassem por baixo da roupa. Imagine uma mulher quase‐zebra, uma toalha
de jantar velha, para o café sem visitas...( na fala dela os movimentos diminuem até que
ao fim tudo pára de repente e eles se entreolham. Ele a toma pelos ombros, sacode e diz:)
‐ Aí veio o frio, não é Ellen ?
‐ Foi, doutor, desse jeito ( Silêncio. Ela esmorecida em seus braços, rodando a cabeça em
gemidos. Após, abre os olhos, grandes olhos agora como se tudo voltasse ao tempo de
antes, mas sabendo do atraso. Ergue‐se e o chama:) Vamos, doutor, levante já. Já são seis
e meia. Levante, hoje é domingo, não ? Estamos vivos (toca‐se)? Estamos com sono e é
só. (batem na porta firme e forte. A porta ecoa ruidosa. Entreolham‐se assustados, como
crianças em noite de histórias más. Escondem‐se debaixo das cobertas. Batem de novo e
mais forte ainda mais .Eles tremem e se assustam, os que se esconderam. A cada batida a
iluminação projeta‐se mais forte e treme também. Ainda debaixo das cobertas conversam
:)
‐ (ele)Viu, eu não te disse, eles sabem de nós, eles vêem os meninos, não dormem não.
Também, com tanto barulho, tanta conversa, parecendo como desconhecidos que se
perderam em uma noite sem ninguém...Parece que estamos lá fora...
‐Ninguém bate só duas vezes. Isso não está certo. Nós somos dois e não nos damos
bem.( apaga‐se a luz no palco )
‐ Ah é, quantas vezes o relógio tocou ?
‐ Não sei. Lembro apenas que abri os olhos e desliguei.
‐ Viu ? Com quantos pés na praça brincamos ?
‐ Dois meus, dois teus .
‐ Com quantos pés cansamos teu frio ?
‐ Dois meus, dois teus.
‐ Quantas vezes bateram na porta ( Batem duas vezes mais intensamente que das outras
vezes. Ele sai das cobertas por uns instante e logo volta para onde saiu. Ela grita
apavorada com voz de adolescente:)
‐ É meu pai, é meu pai, vá embora, doutor, a febre passou...(Silêncio. Um tempo. Ele cai no
chão. Volta a luz. Ela com peruca de cabelos longos e branco. Ele pergunta:)
‐ Onde dói, minha filha, onde dói que eu não agüento ver tamanha dor...
‐ Calma, homem, calma ( ela se vira de bruços, o rosto para o público) Eu disse que era
difícil...
‐ Tanto assim ? e no escuro, como se fosse amante aqui embaixo da cama, tudo ao
contrário...
‐ Cale‐se, filho de minha irmã, cale‐se. Acendi a luz sem pressa. Fique aí embaixo,
empurrando o colchão, me imaginando nua...
‐ E a doença, e a mulher que cheira a urina, trazendo a morte ? Um dia eu mordo a
espuma todinha aí em cima, como se estivesse aí , do seu lado...( no bidê, ao lado da
cama muita água da qual ela bebe abundantemente, derramando‐se pelo corpo inteiro.
Joga a água do jarro em sua boca que é pequena para guardar o que deforma sua
maquiagem. Lança a água para fora em seus gemidos surdos e estancados, a luta da água
com a garganta. Inicia‐se um debate verbal entre ela e ele, intenso a cada instante)
‐ (ele) Não me provoque sua velha,. Eu quero a sujeira de teu corpo.
‐ Mais, mais, mais...
‐ Me deixe, não me deixe aqui dormindo...
‐ Mais, mais, mais...
‐ Sou só um médico, mulher, não sei quando isso acaba...
A idade da terra e outros escritos 109
‐ Mais, mais, mais...
‐ Somos três, e alguém nos quer longe daqui, longe de nós mesmos...
‐ Mais, aperte, mais, morda mais essa espuma tua carne, quase nós dois.( a cama cai em
cima dele. Um grito sufocado. Ela sai da cama e olha para ele. Ele continua oculto pelo
móvel) Alguém gritou, eu sei. Existem os meninos, estão vivos ? (abraça um travesseiro.
Muda a voz, como se menina fosse). Não me lembro de ser mãe, de enjoar e ter desejos.
Quando bateram na porta, era cedo, muito cedo. Eu tinha febre e o quarto era úmido.
Uma cama só para mim, me diziam, um quarto só para mim. Eu era menor que tudo e
nem sabia correr...(silêncio) Febre, muita febre depois, febre em tudo que via em volta
de mim. Dois dias mais tarde parei de gritar e ver o mundo perdido , cansado de girar. Aí
ele veio, o médico. Bateu na porta e entrou dentro de mim. Disse que não havia mais
ninguém, deu‐me um copo de café, olhou seu relógio e partiu não sei por onde.(senta‐se
cansada em cima da cama) Doente ele, um médico, o homem com pragas ( fala baixinho,
docemente, como se rezasse, palavras sem sentido que vão diminuindo, junto com a luz no
palco.)
Ato II
( Luz.O mesmo cenário da primeira cena. O intervalo é curtíssimo, quase de imediato todos
retornam ao placo. A cama arrumada. Toca o relógio como antes. O casal novamente em
seus lugares como no primeiro ato. As reticências indicam voz ofegante e cansada)
‐ Ellen, hoje não é domingo ?
‐ (ri)
‐ (alegre) Ellen, é isso mesmo : hoje é domingo, não ?
‐ (ri)
‐ (ri) É isso mesmo, ontem os Saubers vieram jantar conosco. Em seguida, vimos tv até
às duas ...Ora, merecemos mais da manhã, não é mesmo ?
‐ (ri)
‐ (sério) Ellen, você acordou ?
‐ (ri)
‐ Ellen, pare de brincar. Eu te conheço. Não sabe disfarçar. Logo logo já vai correndo
fazer café.
‐ (ri)
‐ (ri igual)
‐ (ri)
‐ (ri pensando...)
‐(ri)
‐ (Volta a dormir, vira‐se de lado. Ela fica sentada agora na cama como se risse, o riso
estancado na face imóvel, no silêncio mais imóvel que sua face. Ela tem os olhos
assustados. A fixidez e o tempo.) ‐ Eu sempre soube, desde menino ‐ ela tinha morrido.
Meu pai me disse para não casar. Mas como ? ela ainda era viva, os vestidos de crochê,
correndo sem parar. Minha janela de frente à sua. Ela morreu bem cedo, fugindo do sol.
Morreu com as sombras, comeu‐as todas num adeus em fim de tarde, pequeno ponto de
se não ver mais, quando fugiu daqui, longe, bem longe, para fora das janelas e da casa.
Ele era menino, eu depois, dois dias, marido e mulher. Nunca seu corpo viu a terra que a
descansaria. Temos dois filhos, no andar de cima. Ela é escandalosa, veste‐se
assanhadamente e saber fazer café. Dormir não é problema, mesmo que o relógio nos
110
acorde. Eu a prendo nessa cama, nesse quarto, com esse homem que já não é mais, que
nunca soube o que era o corpo, debaixo dos lençóis. Tudo é frio como a pressa de
acordar...Eu não sei de onde ela tira essas coisas, essa vida que não entendo, essas
manhãs de domingo que eu escuto surgir madrugada passo a passo...( duas batidas na
porta. Depois mais duas, como antes. Ela desata a rir)
‐ Fale, Ellen, eu quero rir também, me conte...
‐ ( responde entre risos)Você é mulher, é mãe sem ser avó
‐ Ellen, Ellen mais, mais, Ellen...
‐ Sua barba é limalha de ferro
‐ (ri)Ellen, mais, fale mais...
‐ Já sei porque sinto frio.
‐ Isso, Ellen, essa é a verdade...
‐ Então você sabe ?...
‐ Sempre fui eu, sempre soube, irmã...
‐ Foi você quem morreu...
‐ Sim, irmã, desde sempre.
‐ A praga existiu ?
‐ Existe ainda, amor, está em toda parte, vendo com nossos olhos, os que nos
emprestaram..
‐ Os vivos, onde ? Aqui? Onde ? ...
‐ Só você, Ellen, viva nessa cama, ou quem sabe ...
‐ Mas hoje é domingo. Ainda é muito cedo...
‐ Não é mais , Ellen, poderia ter sido cedo, há muito tempo atrás. Não mais, Ellen, a
menina do olhar, nunca mulher, sem ninguém, esperando que lhe cantem músicas, que
lhe peguem pela mão, entre os risos sem dentes dos que não chegaram, não vieram, não
partiram para cá.( novamente as batidas na porta, como antes. Duas e mais duas)
‐ (desespero) Eu vou fazer café...
‐ Para quem, Ellen, para nós ? O frio acabou, você bebeu tudo que tinha no mundo, aqui
no quarto. Só a sede, não o frio. Não mais, Ellen, nunca mais será outra vez o antes‐ eu
escuto tudo isso, toda vez que acordo com você, na mesma violência do relógio que nos
expulsa de onde não estamos...
‐ Eu vou fazer café...
‐ Cale‐se, Ellen, me deixa somente abrir a porta ...
‐ Não, não temos filhos(Ele se levanta em direção à porta ou ao que parece ser um lugar
de saída ou entrada)...
‐ Nem poderíamos. Venha, abra essa porta...
‐ A doença vai entrar...
‐ Abra a porta, por favor, para mim...
‐ É tarde, é tarde para nós...(apagam‐se as luzes. Uma demora como para se respirar)
‐ (...)
Caim
A idade da terra e outros escritos 111
Diálogo primeiro
Passa alguém alto, vestido de imensas roupas negras caindo por seu corpo. Varre o chão,
ao som de músicas de Wagner, distorcidas. Cabeça baixa, lentamente concentrado em seu
balé‐trabalho, ele cruza espiraladamente o palco, até sentar‐se em uma cadeira que está
no meio. A música diminui gradativamente enquanto ele se aproxima e se senta na
cadeira. Ao pé dela aproxima‐se alguém que se arrasta, um suplicante, entre seus gemidos
e choros, até que depõe sua cabeça no colo do homem de roupas negras que continua
olhando para o infinito, em uma fome pelos limites de deus. Após alguns instantes, coloca
suas mãos sobre a cabeça do suplicante, vestido todo em andrajos, a mão para trás,
segurando uma faca, um mendigo dos tempos, em busca de calma para seu breve mas
intenso desespero. As mãos pesam, sufocando o gemido do que chegou depois. É hora de
tudo começar.
‐(acaricia mecanicamente os cabelos de quem tem em seus joelhos, prá guardar a
distância e a impossibilidade de compaixão). Teu nome é Caim, e não outro. Único a
nascer, Caim somente e para sempre. O menino que cruzou a terra e ainda vive.
‐ Eu venho pedir perdão, pai. Perdão é pouco, eu sei de tudo. Peço assim mesmo, como
todos pedem.
‐ Cabelos úmidos...o suor de quem viaja. A minha roupa se molha de teus caminhos ‐
tanto esforço para continuar a sede.
‐ Pai, me escuta, já que não posso mostrar meu rosto. Eu vou fazer, não há outra maneira
de ser Caim.
‐ Mesmo úmidos, teus cabelos ferem, areia que sangra os pés dos que andam muito.
Pesada é tua cabeça em mim. Mesmo sentado, não há outra maneira senão esperar que
o encontro seja breve.
‐ Nada adianta, nem minha presença aqui ‐ sou desconhecido para quem não me ouve
ou vê. Tenho as mãos mais ágeis e o corpo não se entrega fácil. Um pai é menos que isso,
menos ainda que sua cegueira, fechado por dentro e por fora, sem ninguém senão o
dever, sem culpa para quem não viveu nem matou. Um pai é menos, muito menos que o
cabo da faca, faca velha e sem fio, um pai nem tem nome. Escuta, homem, eu trago as
boas novas, a nova era da libertação.
‐ Um menino que corre, para longe, à noite...é sinal que pode voltar. Mesmo que tudo
deixe de ser o que é, a casa continua aberta e uma luz sempre acesa brilha dentro dela,
deixando ver a espera e os lençóis.
‐ Cale‐se, pai, cale‐se. Eu preciso que me escutem, antes que tudo aconteça.
‐ Antes, eu lembro, sei bem que o suor no corpo é véspera da luta. Alguém virá nos dizer
o que já aguardávamos, nós, prostrados ao infinito, implorando que um deus viesse e
jantasse conosco, o calor das chamas na madeira abatida, carregada, desfeita em
pedaços pelas mãos dos que podiam, a madeira no chão nas costas e nas mãos, entregue
a nós, para que houvesse comida e abrigo.
‐ (começa a riscar a faca no chão, em um movimento rítmico no qual a luz diminui e se
pode ver e escutar o arranhar belicoso das faíscas no chão, no seu movimento de um arco
que gira) Ah, histórias de velhos, dos que morreram sem serem mortos, não sentiram o
que os metais do mundo rasgam e torturam ...fracos, os velhos com medo de algo mais
profundo e que brilha nos olhos.
‐ A noite inteira, ao som das brasas, esperávamos que a noite nos devolvesse o que
partiu, os moços em sua bravia luta contra as trevas e o mato. Arranhados seriam pelas
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raízes retorcidas e pelos galhos pendentes. Caminhando para nenhum lugar, em sua
cegueira escondida e muda, facilmente cairiam pelo chão, doentes e feridos, com os
rostos marcados pela unhas e garras do que buscam atingir e não sabem, envoltos numa
noite pesada, e sem amanhã, um frio na alma, afogados, respirando baixo com o pó da
terra no rosto que sangra. Eu apenas diria : voltem...
‐ Pai, não há como perceber que eu sou mais forte, que me ergo( levanta‐se com a faca.
Luz forte projeta sua sombra maior que ele mesmo) e me agiganto, enquanto os pés
imóveis e a cabeça curvada de um velho esperam que de um golpe só a voz que afugenta
os monstros e põe a corrrer assassinos horrorizados ? Uma faca, pai, uma faca que
brilha e esquece da luz, uma faca enterrada no peito daquele que se assentou e perdeu
seu lugar aqui.
‐ Teu nome é Caim, sempre o mesmo para onde teu corpo fizer morada. Eternamente
preso à tua mão que não entendes, rápido e tanto que não olhas para trás, uma multidão
te espera, não eu. É preciso ser maior que um jovem , maior que uma faca para que os
homens possam acordar. Teu cabelo ainda é suor, mal chegou aquele que se foi, o
ladrão das madrugadas, um corpo sem filhos e sem dor.
‐ Pai, é pouco o que tenho em tua frente, com a voz que traz o fim e fará o velho cair sem
vida ?
‐ Enxugue o suor, que lágrimas não há. Um rosto em pele pálida e vazia, um livro a
surgir, uma mulher o dirá. (Ergue‐se, rasga parte de suas vestes e entrega um pano para o
rapaz que afasta de si o presente com a faca que atinge a mão do pai. Este fita o jovem
com olhar de ira e cólera que um assassino requer. Ao mesmo tempo, ao lançar o braço
par trás, fugindo da faca, abre os dois braços como uma fera que se prepara para o
encanço fatal)
‐ Caim, sempre Caim, eu posso ver o rosto do que não nem olha( o filho deixa cair a faca
e dá uns passos para trás) mas não posso escutar tua volúpia medrosa por entre os
dentes que tremem junto com o corpo, engolindo o resto ou o quase de uma provocação
que obrigaria outra resposta. Caim, sem faca, sem ninguém, sem pai que proteja. O
matador sem vestes ?( puxa e rasga as roupas do jovem) O matador de rosto espancado ?
( um tapa lança o jovem para longe que cai e se arrasta sem sair do lugar) O que vejo eu,
o que escuto ? A morte caída no chão, sem dentes, faminta de casa e roupa para que a
vista , a coitadinha, a morte‐mulher... mulherzinha... fraca e sem dor como o ciúme. Caim
é a morte jovem, a que mora na cabeça e precisa de facas, a que vem quando a vigília
dorme, quando o calor da vida inteira esquece de sentir a brisa de um mar sem luz se
aproximando de repente. Caim não pode matar, Caim‐morte é mulher sem filhos, a
prostituta paga que foge da cama. Uma jovem nua que rouba para comer com o bolso
cheio de esmolas. Ah imensa raiva de fazer‐se vivo, de acordar contra o ínfimo que se
estilhaça na janela. (Diminui o ímpeto, recolhe a faca no chão, colocando na cintura e
pega a vassoura perto da cadeira ). Varrer, varrer , a vida inteira. O chão, e olhos no chão.
Limpar daqui essa nova raça que impregna os pés dos que traçam os caminhos. Um dia
virá em que o pai vencerá o tempo. Sentado em sua cadeira, dormindo com as imagens
que vierem, ele saberá dizer que boa é a multidão apagando a fogueira, não havendo
ninguém mais para esperar, que as casas se fechem com os homens por dentro, que a
noite seja somente noite, escura e vazia lá fora, longe de nós. ( mais devagar e cansado,
ele fala, enquanto o filho ergue‐se, arrastando‐se rumo ao pai que está de costas, irado o
filho, limpado seu sangue derramado com as mãos) Caim não virá jantar conosco, beijar o
rosto da mãe e fazer as preces. Caim terminou com as cinzas da fog...( O filho rouba a
faca, cravando‐a‐ nas costas do Pai. Um imenso grito, seguido pelo voltar de olhos do pai
para o filho, como se assustado estivesse não pelo que vê mas pelo que sente, a morte
entranhada. O rosto desfigura‐se em um imenso lament,o em gritos que o fazem contorcer.
Em pé, o filho permanece gélido vendo cair o gigante último a ser vencido).
A idade da terra e outros escritos 113
‐ (após alguns instantes , fala) Pai, que já não és, eu vim pedir perdão, Pai, um filho, as
mãos com o nosso sangue, juntos os dois, nós, afinal. (em ritmo de fábula, de conto de
fada) O tempo comeu uma erva má e vomitou seu espectro. Em seguida, correu atrás da
fonte que cega a chaga, mas a água secou. Correu atrás das mulheres que lavavam as
roupas e elas tinham partido. Desesperado, o tempo pediu chuva e um raio dos céus o
matou para sempre. No lugar em que o raio caiu, uma planta nasceu e ataca os que por
ali passam , pela terra adubada pelo tempo, assassinado que foi pelo céus e pela terra.
Eu comi desse fruto e nasci, entre as folhas dessa planta florescendo. Uma mulher a flor
tomou e me colocou junto de seus cabelos, perto do beijo que um homem roubaria de
sua boca. Entre o suspiro da mulher e fôlego do homem, surgi no ardor dos corpos,
maresia das águas mornas, restos de animais expulsos dessas águas, areia‐carcaças. (
aproxima‐se do pai, abaixa‐se, senta no chão e coloca a cabeça do pai morto em seu colo,
acariciando os cabelos de quem não mais respira, Caim com os olhos em frente, para cima,
longe de si) E eu era o que partia deles, escorrendo pelas peles em arrepio e ausência, o
inominável do desejo, o que se sobrepõe à névoa e à carniça, o menino bom tão
sonhado, o menino das horas em que o sono vem, ele, o futuro da casa, a canção
revestida de espera e amargura. (olhando para o pai, como não fizera antes) Eu demoro,
Pai, eu demoro para vir e me criar, eu me perco nos caminhos que não conheço, eu
preciso me erguer antes que me esqueçam. Um homem virá, pai, e não eu, com a mulher
nos braços, e não a faca e o sangue. Ele fará a fogueira e fechará a porta. Nós, aqui fora,
saberemos ouvir o grito das feras e o calor das plantas esperando o dia cravar‐se no céu.
( músicas de Wagner, novamente. Escuridão quente e abafada).
Farsa do quem quer amar
Saloom. Um salão de baile, antigo, fumaça dos cigarros.Começa a tocar a música que está
no fim da peça, todos estalando os dedos , o baixo fazendo tudo dançar, a banda dançando
mais que tudo e todos, o que dá o tom burlesco‐sério da peça... Quando os atores se
movimentarem, cessa a música. Em frente, à esquerda de quem vê, enorme bacia de latão
para banho e com água, vestidos, saias e roupa de cama jogados pelo chão em volta. Nela,
um homem vestido de noivo espera a chegada da que não virá, fixamente olhando para a
platéia que some em seus olhos. Após alguns instantes, entram três mulheres velhas
chorando, um coral de vozes sem sentido empurrando uma cama ruidosa com uma mulher
desfalecida, os braços pendendo, um êxtase, adereçada para dormir, sem cobertas. A cama
pára ao centro no fundo da cena. As velhas ficam atrás da cama como se vigiassem a
mulher. Falam entre si sem dialogar, falam, revezam‐se falando em uma Homília, fala‐
leitura com temor, voz das sombras ruborizadas
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1‐com você morta, eu poderia sair sem medo, olhar nos olhos dos que me
conhecem, comprar novas roupas, um cheiro, um novo cheiro para o corpo que ainda
vive...
2‐roupas, minha filha, vista‐se, fique dentro da casa, dentro de sua mãe, a que
chora com os hinos para o deus do inverno e do livro de muitas folhas...
3‐ quando eu era menina, um homem bom me contou estórias em seu colo
amargo e nunca mais precisei escovar os dentes, ou gritar. Minhas poucas mãos
menores que a cor branca da pele sem amanhã cuspiram o suor do moço que me viu
sorrir e agora eu durmo outra vez...
4‐ eles chegaram tarde, vindo de todos os lugares, como antes; alheios a nós,
elas, trazendo mais bocas que rostos, não tinham rostos mesmo, não queriam ver, eles
ali, em volta do sangue, a menina, aquela, a que lhes pertencia, elas não viram, todos em
volta da morta, que não gritava mais a vida saindo entre as rasgadas vestes...(ele começa
a recolher os panos que estão em volta e faz parecer que as lava, maior o ruído da águas
florescendo para fora de sua banheira e do barulho da fricção da roupa contra roupa que
a limpeza)
5‐ eu mesma não viria até aqui se soubesse as razões, tamanha confusão sem
respostas, só as gentes, e é noite lá fora, perto daqui. Eu mesma pediria que todos
voltassem para suas casas, que deixasse a rua pronta para o dia que abre os lares e
esconde os que se amavam. Ninguém comigo, ninguém com força para erguer‐me das
madeiras sujas e envelhecidas dessa casa vazia e nua...
6‐ foi ciúme, uma incerta mão que retornava a pedir, saindo de suas sombras.
Hoje ou nunca, ninguém, a decisão. Algo nos toma e leva, como antes, meninos a matar
passarinhos porquê. A mira feita, a ave que voa, inveja da mão que atira coisas. Meninos
novamente, com medo da mata alta, esquecem atrás a pequena carne de ninguém.. Foi
?( começam a lentamente girar a cama. Ao mesmo tempo ele fala, com voz cansada e
ofegante, sentado na bacia, os braços em volta da lata, um corpo descansado para uma
voz tensa, fala olhando fixamente em frente, os lábios acompanhando e mordendo o rigor
de uma voz que sabe de uma redenção, que não tem um passado com o qual hesitar)
‐eu poderia ter feito tudo diferente, mas estava só, seus amigos eram meus e não
havia ninguém para me escutar. Sem o que dizer, tudo ficou mais fácil e coube em mim.
Um pouco demais prá mim, pequeno e tanto , minhas unhas já cortadas, de meias meus
passos da cor das raízes. Poder gritar eu podia, esperar até isso, dentro de mim você
muito, muito mesmo para mim, muito de sua pele ‐ eu corto devagar‐ muito de seus
dentes ‐ eu trouxe todos‐ muito de seu sexo ‐ eu beijei prá lembrar. O céu, amor, vire os
olhos, há tempo o céu era pesado demais, longe de se pegar , não me deram mais. Era
somente eu agora vendo que o céu tem cores, que você não disse nada. Nem esse
segredo, amor, nem essa vida minha ficou contigo. Eu dizia que ia chegar e num abraço,
quando chegava, já estávamos lá dentro do quarto de sua mãe suados, amanhã outra
vez, adeus, todas as tardes, domingo, todos iam rezar menos nós. Era só o que eu sabia, a
sua casa de sua mãe, ali mesmo quando um homem te levou entorpecer, não eu. Eu vim
buscá‐lo em teu corpo, tirá‐lo de você, todos eles, os que vieram antes e há pouco. Você
nunca me ouviu que era preciso esperar. Com calma, as carnes se partem melhor, veja
como eu devolvo o rosto de menina, sem dor e sem vontade. Eu beijo teu sexo até
encontrar você de novo criança sozinha outra vez, sem mais ninguém...(fala o grupo das
mulheres, ainda girando a cama, arrastando seus pés , marcas do esforço e da passagem
das horas)
7‐ eu só queria rir, correr lá fora sem mais parar, os olhos em mim, em meu
corpo desfazendo‐se no ar que se arrebenta em meus cabelos que um dia cortei. Pintei
A idade da terra e outros escritos 115
das cores de um pôr do sol, o céu avermelhado de sangue eterno, fechado o olho do
mundo para o mundo
8‐ quem corre por entre às águas senão ela, a de muitas pernas e coxas, entregue
ao bem fazer do que não espera nem colhe ? Totalmente fora de si, quase a cair no chão
de tão exposta, e nada guarda porque nada tem. Gasta mais que suas posses e ainda
quer mais. Na noite justa, recebeu sua parte e devolveu os empréstimos. Um dia
agonizante para nós é muito, nós que passamos a vida a olhar, o apenas.
9‐ a fumaça nos trouxe aqui e eu não te amo. O cheiro das águas no ar, nosso
banho, nossa casa que acordamos já sonhamos. Eu não preciso dizer o que deves fazer.
Mesmo assim eu mando. Tire sua roupa junto com a minha, limpe o chão da casa,
cuidado com esse santo lugar.
10‐ já podemos ver melhor, em volta dela, a garota do olhar num corpo tornado
selvagem, a vertigem da fumaça, os pulmões vazios e sangrando. Ela trouxe todos para
si e em volta dela vemos, eles, ainda cada um em volta dela para melhor ver, para levar
um pouco dela para si, como antes.
11‐ somos as amigas da morta, ela , a de muitos amigos, no centro da multidão,
viemos levá‐la, para que descanse de sua busca, para que retorne. Alguém a esperou,
que dissesse sim, que fosse embora de uma vez, não hoje.
12‐ o chão é imundo, das cores de uma tarde que morre, que põe medo nos
homens que não querem agir. Abram espaço para que ela saiba do fim das coisas (pára
de girar. Mesma posição do começo da peça. Ele afunda nas águas e torna e retorna,,entre
espaços prolongados de submersão, cada vez voltando e alterando seu rosto para um
terror estampado, imóvel e absorto e incontido, para uma maquiagem que se desfaz. A
mulher da cama fala)
‐ Com você morta, eu teria as palavras de volta, o rádio desligado, não as
músicas, não as música, por favor. Eu não sei dançar e todos riem, nada me leva ou traz,
eu aqui a teu lado. As vezes eu gostaria que você morresse só um pouquinho para ver
como é. Com você morta, por alguns momentos não haveria mais dúvidas, só a certeza
de você sempre aqui. Eu poderia sair de casa, conversar com as pessoas, saber que há
dia e noite, e tudo é mesmo e outro outra vez. Não mais a vigília cansada, o padecimento
voluntário, o ocaso, eu, por dentro de dentro de minhas roupas sem calor, a desistência
imensa nessas águas, um banho, limpar‐me todo( gargalha enquanto repuxa suas roupas
como se se banhasse); ás águas dos céus, rir para as nuvens, ver que nada se abaterá
sobre minha cabeça, que o chão é para sempre, que posso andar, que você vai estar me
esperando. As ruas, ninguém mais rindo de mim. Aí eu dançaria, sem precisar olhar para
portas e me esconder. Fora os meus olhos pequenos diante do grande mundo que me
levou prá longe e tanto e quero voltar. Com você morta eu me sentaria na rua, olharia
para cima e nunca mais tropeçar em minha própria condição.( elas em uníssono e
desencontradas sentenciam até o fim da fala seguinte, a dele)
13‐ o cheiro de bocas, bocas gemendo
14‐ bocas em bocas fumando seus ais
15‐ ontem outra vez bem antes demais
16‐ cheiro de bocas, as bocas queimando
17‐ gemem o cheiro que fumam nas bocas
18 fumam nas bocas o qu’ não volta atrás
‐( ele cai da bacia e começa a limpar o chão, secar o chão, com as roupas que
lavava. Ela fuma na cama observado seu servo. Elas observam o homem e a mulher ) Por
aqui, é por aqui, eu digo, sigam‐me, tudo vai acontecer. Eu não sabia antes, mas eu vi.
Sigam‐me, um pouco à distância, cuidado em que pisam, o chão é áspero para quem
foge. Sob seus pés eu me pertenço, tornando breve o peso da queda. Um barulho que
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afugenta os demais mostra quem se despediu. Por aqui, meus amigos, não há o que
temer. Um por um, minha fome ingeriu e envolveu. Eu lavo as sobras que me pertencem
como as cinzas e a faca. Nunca mais será outra vez o antes. Era o dia último, o da
despedida para não ser. Em meu quarto espera a noiva, a de antiga viva voz. A porta
aberta como sempre, não mais as mães e as rezas. A cama nova para um novo tempo. Eu
tremendo como uma virgem com febre e desejo. Próxima a mim a que me toma e
devora. Até que as palavras cumpram o fim: “não meu, amor, eu te liberto para sempre.
Alguém me espera e é preciso fugir, fugir para não encontrar. Eu quero os caminhos,
hoje não o repouso não. Fumar lá fora, adiante. Deixe‐me, eu tenho minhas mãos e não
olho para trás. Nunca o aqui”. (elas voltam ao tom primeiro, enquanto ela se ergue na
cama, abaixa‐se para vê‐lo, sem nenhum sentimento)
19‐ as mulheres, apenas, escutem, são as mulheres que nos tornam homens. Se
quiser eu posso ser maravilhoso...
20 ‐ flores, meu amor, para quem cheira e fuma. Beijos, minha morta, um céu é
pouco para quem se foi...
21‐ durma, vê como é quente um novo berço para a que se diz mulher e é
carregada pelos braços.
22‐ no meio da grande festa tombou de tanto girar, atingida no jogo de luzes dos
olhos, do escuro.
23‐ e chorou muito a culpa para todos que não entendiam, a culpa para os que
não sabiam que a brincadeira não era para se acabar
24‐ um grito na cama, os olhos virando, o mundo deixando de estar a seus
pés.Um grito nu que brilha e esquece, tanto gritos, uma multidão que grita dentro e fora
dela, a cama que geme entre úmida fumaça
(ele começa a rasgar suas roupas de noiva. Ela retorna à sua situação de inicio de
peça. Elas se dividem. Viram a cama em lateral , duas ficam em situação contrária, puxam
para si seu lado da cama enquanto que uma , no fundo do palco , brinca de pular corda
sem haver, olhando para o que ele faz. Ela fala)
‐ eu soube que era noivo, que não me pertencia mais. E aceitei, disse o sim, antes
de tudo, até querer morrer. Antes , você foi embora, e tudo era a mesma coisa. Contei
prá eles, queria amigos , queria você comigo, uma má palavra para te envolver como um
beijo que eu não dava. Quando acordava você já partia, sem adeus, uma trama, a sagrada
provocação. Eu fiz de tudo para te avisar que nada adiantava, que não havia mais
mundo, que eu não era daqui. O menino estranho que não brincava de correr para ver
os que se escondiam nos aniversários, ei, o que você está fazendo aqui na festa que não
é sua e vá embora. Daí tranquei‐me por dentro com uma faca, um travesseiro e uma dor
que não sei quando termina, se é agora ou depois.( Ele vai deitar‐se na cama com ela.
Abraçam‐se, ele no peito da mulher que, como se fosse uma mãe, acolhe seu filho ,ninando‐
o, olhando para frente como se já não existisse, como se nada existisse. Ao mesmo tempo
dessa cena, elas voltam para seu lugar e observam tudo como antes.Falam fumando como
num bordel, as piteiras e cigarretes)
25‐ volte para seu país, você que nunca nos deu nada
26‐ tome esses cortes para mostrar que um corpo é mais que uma ausência
27‐ não há dor para quem não ama, e nem amor para quem não vive
28‐ Na hora do gozo, sabe que as carnes estremecem torturadas, um delírio que
nos mostra que estamos aqui
29‐ vejam todos, sigam‐me, vejam o encontro dos que se desconhecem (fala
consigo: mas alguém soube que o amor acaba antes de haver)
30‐ a criança nunca está só, nem brinca mais, a mulher de plástico que perdeu a
cabeça e foi trocada por outra mais mastigável
A idade da terra e outros escritos 117
31‐ gorda verdade, gorda e do peso de um céu gordo e barulhento, peidando e
esporrando acima de nós, a festa derradeira
32‐ um grito é pouco, menos que o cheiro da baba de cinza que escorre da bacia
de latão furada, a barca dos homens, a descrença das mulheres. A vida girou e girou e
nos trouxe os mortos, os que não cabem mais em si, o desencontro maior. (começam a
empurrar a cama, dando uma volta no palco até voltarem para seu lugar de partida e
sairem de cena para sempre. O passeio burlesco se faz dançando e cantando a seguinte
música ‐em estilo fox trot‐, enquanto o casal sorri e se despede da platéia ao passo que
brinca e briga com uma faca, entre indas e vindas:
Alguém é sempre bobo de alguém
quando amor não há entre os dois
um dia me passaram para trás
vejam só o que houve depois
(...)
A festa
Quase escuridão de só se escutar passos. Grupo de pessoas entram conversando
com copos de bebida nas mãos, vestidos para uma festa a rigor. Aos poucos notamos que
essas roupas só aparentam essa formalidade. À medida em que as luzes aumentam,
tornam mais claros os disparates de combinações das roupas e dos homens. Sapatos de
cores e tipos diferentes e misturados, andares desajeitados e trôpegos, cores que não se
ajustam, pessoas que se desconhecem, uma festa ? Se há, me levem...
A encenação se marcará por grupos que dialogam entre o burburinho agora
tornado ritmo e cenário. O que importa são os conjuntos e não quem deles participa. Todos
exageradamente se encontram em emoções que resguardam uma profunda melancolia
entre a luminosidade dos rostos que sorriem. Os risos são momentos entre as falas, os
gestos de quem não tem nada a dizer, ou poderiam. Geme a platéia em palco , como se se
arrastasse para viver em sua baixa voz de escuta. Os grupos se aproximam bisbilhoteiros
sem sair de seus lugares, mudam de espaço, andam pelo salão como brincadeira de roda,
sem troca de companheiros. Todos na festa vão ficar como entraram ‐ mendigos em
andrajos, a sede que não cessa, uma noite a mais que se foi.
A
Grupo 1
‐ eu não trouxe os convites
‐ e eu, pior, nem sabia onde era (riem)
‐ menos, amigos, menos nos olhos e tenho medo (riem)
‐ o que pode acontecer em uma festa, tudo menos faltar bebida ? (riem)
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‐ menos amigos , pelo menos estamos aqui (riem)
Grupo 2
‐ de quem é a casa, minha é que não (riem)
‐ ops, deixei cair o copo ‐ está vazio mesmo (riem)
‐ se quiser te trago outro, não é meu mesmo (riem
‐ vamos todos então beber até cair... mais copos(riem)
‐ se quiserem, amigos, eu caio junto com os copos (riem)
Grupo 3
‐ se notaram bem, aqui não há mulheres e eu gosto de loiras ?
‐ porque escolher: há bebida a vontade, para todos os gostos (riem)
‐ uma mulher, seja loira ou não, tem olhos ‐ é o que não entendo(riem)
‐ então bebe, e vê se entende menos ainda(riem)
‐ mas elas têm olhos, eu juro que têm(riem)
B
Grupo 1
‐ sei que nos olham, amigos, sei que não nos conhecem (riem)
‐ claro, estamos em todas festas, e juntos (riem)
‐ sempre nós, noite inteiras, primeiros, e últimos a sair
‐ eles nos conhecem como nós os conhecemos(riem)
‐ sempre nós, até o que dia se acabe(riem)
Grupo 2
‐ viram, aquele moça, ali, com um rapaz
‐ um casal, é isso que você quer dizer, um casal ? (riem)
‐ A que derramou bebida em sua roupa e agora dança melhor ?
‐ a que amou de uma vez os namorados e os amigos perdidos em seus olhos ?
‐ a que fechava os olhos para escutar as músicas, as músicas , as músicas...
Grupo 3
‐ se te dissesse que tenho fome, vamos, amigos, longe daqui
‐ espera, elas nos olham sem piedade, nos conhecem, nos conhecem
‐ eu vou buscar bebida, trago bebida para todos
‐ espera, elas nos querem mais que a festa
‐ eu vou buscar bebida ‐ ainda é cedo para lembrar ( Música repetitiva,
psicodélica, um ritmo que não há, como um carro enguiçado, como um ensaio ruim.
Começam a dançar todos, presos em si, de olhos nos outros)
C
Grupo 1
‐ quem me trouxe, e quem me deu um beijo, eu sinto
‐ dança, amigo, antes que a musica termine
‐ eu não quero ir embora, ouviram, não me deixem voltar para casa
‐ mais bebida, meu copo se quebrou de tão seco
‐ não deixem que me levem, não deixem que eu vá
Grupo 2
‐ Se estou só, não sei, não pergunte, não vá embora, volte depois
A idade da terra e outros escritos 119
‐ onde vou dormir, alguém me diga, onde vou ficar quando o dia vem
‐ Amigos, não quero mais beber, está quente, quero algo mais, sonho e
pensamento
‐ o banheiro fica onde, eu não sei onde fico, eu não sou daqui, só mais um pouco,
esperem
‐ Amigos, algo prá cabeça, por favor, eu tenho que pensar e dormir, mais, muito
mais
Grupo 3
‐você é muito bonita, sensível, nem me escuta
‐ vamos dormir juntos, eu bebi muito
‐ eu vi, estão nos procurado, por isso aumentaram a música
‐ aumenta essa merda de música, aumenta essa merda
‐ eu vi, alguém não deixa de nos ver
(a música aumenta seu peso e ritmo e mesmice. Todos dançam pulando, pulam
como se quisessem tocar o teto, como se estivessem com um peso nos pés amarrados)
D
Grupo 1
‐ que, alegria, vocês sabem, como é bom estar aqui (riem)
‐ eu vou dormir com a loira, depois quando tudo acabar(riem
‐ mais bebida, mais uma ida ao banheiro, mais fumaça na sala, mais, eu quero
mais(riem)
‐eu, tô suado, cara, eu, lavado em minhas calças, eu tomei banho de mim(riem)
‐ mais bebida, cara, mais fumaça, aumenta essa merda
Grupo 2
‐ eu tô cansado, mas não vou parar, todos dançam e é fácil
‐ desse jeito, a festa não acaba e eu não quero voltar prá casa hoje
‐ não me pegue por enquanto, deixa que tá combinado, tudo combinado
‐ ei cara, deixa ver , deixa ver se me agüenta de verdade, deixa que eu falo
‐ não me pegue, volta mais tarde, agora não, cara, agora não
Grupo 3
‐ e se eu gritasse, hein, se gritasse bem alto contra o teto que me beija
‐ Ninguém te quer, meu amigo, ninguém te quer de verdade
‐ sei que muitos vieram por minha causa, muitos estão aqui comigo
‐ e seu gritasse, hein, para aquela ali, a que tem olhos, de se ver
‐ sei que muitos vieram comigo, aqui, em toda parte que gira (estão em
movimento de salto e rapidez no máximo de sua aceleração que continua no violento
quadro seguinte. O cansaço aparece aparente)
E
Grupo 1
‐ ninguém me bate não, não chega perto, sai daí, cara
‐ eu quero mais que tudo vire merda, muita merda
‐ bebida não dá mais não, muita pouca bebida, mais coisas, mais coisas
‐ tá passando bem cara, tudo bem, os pensamentos na ordem ?
‐ bebida não dá mais prá mim, cara, mais coisas, outras, dessas aí
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Grupo 2
‐ e se alguém tirasse a roupa, só prá começar, nuazinha, essa doida, louca assim
‐ levanta essa merda, som pequeno, filete de música a gente não quer não
‐ eu preciso falar com alguém, é tarde, é preciso, me escutem, só um pouco
‐ tira essa roupa, gatinha, um corpo só numa noite com gás, essa doida, louca
mesmo
‐ eu preciso que me escutem, um pouco, aumente o som dessa merda
Grupo 3
‐eles sabem, eu te disse, olham para aqui, os grupos se fecham, vão nos engolir
‐ mais bebida, calma, mais bebida, eu encho teu corpo, almas úmidas até ao
amanhã
‐ minhas mãos arrastaram mais beijos longos, a música misturada dentro de nós
‐ eu tô demais, cara, eu tô como nunca, tipo assim, tô pelado, saca aí, tudo nu
‐ minhas mãos arrastaram tudo em volta, longos beijos que não são para sempre.
(fim da música, de repente. Aumenta um pouco a luz. Todos se olham e caem no chão )
F
Grupo 1
‐ quando será a festa, a que nunca houve, a grande noite, me convidaram ?
‐ Um tempo houve, e eu bem sabia, vir aqui mesmo, eu sabia que viria aqui,
nunca te disseram ?
‐ todos vinham, e eu já sabia, a festa nos olhos de quem quer vir, bebida e rumo
‐ pisar o chão, mover o corpo, beber sem sede, beijar sem ver
‐ todos vinham, eu já não disse, o louco pouco tempo que temos
( espalham‐se como em rodas de contos, e monólogos são acompanhados com
graciosidade e atenção, como se contassem estórias infantis e como se quem os escutasse
crianças fossem, ao som da voz de quem nos transpõe, a fantasia esquecida)
‐ (ri) uma vez, e nem poderia ser diferente, era quando entrei na festa. Nunca
antes : essa era a primeira e única vez, eu lá dentro, a calça fora de tom, o andar fora do
ritmo, os olhos rindo mais que meu rosto já escondidos no olhar pendendo pesado para
baixo, com presa, após revirar os lados pelos cantinhos. Um jovem, meus amigos,
andando pelos extremos da sala, um jovem que andou a noite inteira nos buracos vazios
da multidão que lhe dava as costas. Ninguém achava que ele estaria lá, o de poucos
gestos, roupas de lã no colégio, um suor escorrendo, o calor indo embora, os olhos
tristes de quem não nada sabe. Avisem para ele que hoje não é escola, mandem que ele
tire essa roupa de colégio, que hoje é sábado na casa de seus conhecidos, a rua inteira
aqui, as muitas ruas aqui, os caminhos, para que ele pare de andar e olhe, e veja os olhos
pulando por entre as caras aberta, a luz de mil cores misturando‐se com o gosto amargo
da cerveja, os pés lisos e ligeiros e o céu, só o céu que nos espera. Sai da escuridão, meu
jovem, fala, que ninguém se escuta, mexe o corpo para dizer que está vivo, senão te
pisamos, toca na mulher, sente as carnes muitas dentro de um vestido raro e leve para
que a tomem e levem, veja as carnes pedindo ar, boca na boca os corpos se conhecendo
e indo embora, uma outra vez agora não, talvez nunca em outro lugar, só o agora, o
apenas, meu irmão. Você viu tudo isso em teus olhos e a desejou mais que os retratos
das revistas, foi em direção a ela, ensaiando um balançado no corpo, um sorriso maroto
na cara, a cabeça deixando de contemplar o chão que todos deixam e esquecem. Olhos
firmes à frente, somente a frente, ela, os cabelos escorrendo pelo grande corpo, em pé à
sua frente, o jovem com todas as suas mãos prontas, quase correndo, entre sua trôpega
dança e os outros que se abraçam e se cruzam na sala, correndo atrás de outras
mulheres. Ela ergue‐se mais e mais enquanto ele corrige seus movimentos e pára. Pára e
A idade da terra e outros escritos 121
baixa os olhos, no meio da grande festa, todos esbarrando nele. A multidão entre você,
meu jovem, e a mulher, a multidão levando‐a embora, para frente, para bem longe.
Adeus, meu amigo, volte para a escola, não saia na rua, não venha em meu baile. Em
acreditei que você viesse conosco, que bebesse nossas bebidas, que comesse o que
comemos, nós todos juntos aqui, até que o dia nos canse e dele fujamos como os animais
fogem do fogo. Não podemos esperar a noite inteira. A vida escapa por entre as mãos
vazias de não mais possuir. Erga os braços, cara, olhe o que tem em tuas mãos, o que
tem aí para ficar contigo e contar pros outros. Quem vai te ouvir, que estórias nos dará o
que parou no meio da festa , os outros levando a sua fêmea, os outros tendo seu prazer ?
Não volte, mais, nunca mais. Teu lugar não é aqui, tua vida está em outra parte. A festa
acabou mais uma vez.( aumenta as luzes, todos se comportam como se estivessem em uma
lamentação fúnebre, acompanhando quem fala)
‐ eu falei para que não viessem, para que não me trouxessem, que não
trouxessem os seus. E agora, meus amigos, o que diremos nós, como explicar o que
aconteceu, a covardia suprema acontecida ? Como explicar o término das coisas, o chão
vestido com nossos corpos, cansados aqui, a bagagem imensa de não poder se carregar ?
Quem nos trouxe, quem nos enviou para aqui, por que viemos se era demais o preço a
pagar e devemos o pouco que não temos, o muito que deveremos tomar emprestado,
nós, amigos, os sem razão, fracos demais para entender o que houve, as mãos pendendo
agora, os olhos cansados de nós, as pernas pesadas, muito longe demais para a volta, a
longa volta.(Toma alguém caído no chão, o dono do monólogo anterior). É certo que
estamos vivos, mortos seria uma vitória, o amanhã sem lembrança na ferida aberta e
sangrando de não se curar. Era só fazer os curativos, retirar as sujeiras, raspar o lugar,
abrir espaço entre as carnes e as peles, e tampar tudo bem firme, com ira bruta,
xingando os que nos abandonam, que escolheram o melhor caminho entre as fendas da
terra, o olhos que nunca mais vão abrir, bater nesse corpo (bate, eis a ira) para que
mesmo morto grite sua culpa, fuja de seu medo e me agrida, um tapa no rosto, o rosto
vermelho, a dor que não sangra, o vermelhão subindo o corpo inteiro até que haja
pensamento e o silêncio de quem sabe, escuta e aceita. Eu falei para que não viessem, e
vindo, para que não se entregassem. Eram pequenos, eles, sempre rindo, a casa que não
nos pertence, as luzes que não são nossas. A música alta, eu falei, a música muito alta,
pouca a luz por entre os homens, brilhantes as roupas da mulheres, suor e bebida nos
afogando, até não mais se respirar, o que ? (olhando para a platéia, personificando com
gestos o homem do qual fala). É aqui que um coração bate, não mais o seu, o vai e vem
rápido e exposto, um peito que se abre projetando‐se longe de si. É agora que o coração
não mais te pertence e dança assustado com medo de olhar atrás. Pula e dança sem
freios, fazendo o corpo inteiro ecoar a multidão da sala. A qualquer momento a queda
virá; breve, o sangue das carnes rasgadas cobrirão de imundície o chão pisado por
todos, um grito surgindo baixinho por entre a boca que baba sangue, o homem sem
coração cambaleando vigorosamente. É agora que um coração bate, torna e retorna para
seu dono, o que viu a cor inteira de seu desassossego, que pode saber como é longa a
espera por quem foi. Seu coração não deixará que caia e ele poderá rir, por alguns
instantes. Mas logo lembra apenas do que sentiu sem saber, a quase queda, o breve
aceno , o frágil fôlego, a vertigem que trespassa. Então, beberá mais no copo dos outros,
zumbido a música mais alta, escravo do ritmo que não é seu. Mais e mais grita para que
o coração se seja roubado de novo, o medo de não ser vencido pela verdade do desejo.
Mais e mais a garganta um lago, a dança que expulsa e devora, o teto ‐ a realidade
última. Eu falei para que não viessem, agora é tarde demais. Estamos aqui cansados,
sede e fome, esperando a noite próxima, esperando os novos amigos, os que vierem
para não mais voltar. Venham todos ( começam a erguer‐se os outros rumo ao que fala,
gemendo seus ais, recuperando as frases dos grupos), eu disse, tragam seus corações,
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sintam o peso de um coração, a podridão do sangue que só um coração tem. Venham
amigos, dancem conosco a verdadeira festa, saiam de suas casas frias e sem vida. Aqui
haverá gritos e violência, misturaremos nossas carnes, rasgaremos a face encarcerada
do mim. É tarde demais para fugir, escutem o chão moer os ossos, as roupas de muitas
cores. Vejam o peso da canção de despedida. Eis a festa que não acaba, eis a
festa...(Máximo de luz como se todos ficassem cegos, luz branca contra a platéia, como se
partisse do alto da montanha de corpos da festa)
Natal sem crianças
1 ato
Um sala de estar antiga, tapete, mesa, sofás, abajur, silêncio.
Atrás uma escadaria espiralada sem fim.Um pinheirinho derrubado no chão.
Pedaços pacotes de presentes por todos os lados. Começa o grande diálogo. Três velhos em
sua noite anual de encontro. Os três amigos.
Torga‐ esse é o tempo do mundo, amigos, a filosofia dos dentes cariados.
Sebastião‐ digamos que eu entenda essas palavras, mas antes eu vou rir..
Robson‐ amigos, vamos escutar antes de rir, vamos aguardar alguns momentos,
calado nosso espanto.
Torga‐ obrigado, eu sou grato a todos que têm dentes...
Sebastião‐ de novo, não, chega, não me faça rir, que loucura esse senhor, e nós
aqui reunidos tarde da noite. Eu bem sabia que esse encontro era importante. Agora
vejo porque. Nosso amigo enlouqueceu. Nos tira de nossas casas, insistindo com suas
ociocidades. Isso já dura demais. Me desculpem, mas tenho mais o que fazer.
Torga‐ sente‐se e tenha paciência, agora sou eu quem afirmo. O caso é sério, as
pessoas vão saber depois. Nós aqui, bem antes , nessa sala, alheios a tudo, cercados por
paredes que nem nos escutam, nem nos olham pois tudo acabou. Era uma noite e fomos
jovens, um natal há muito tempo, amigos, um pacto. Casados, a única traição, casados.
Agora me escutem. Tudo é tão simples. Mais difícil é me explicar, exigir que confiem em
mim, que me dêem ouvidos. Sebastião, quanto tempo eu perdi com tua confissão, a
esposa inconfiável, metida em roupas pequenas em casa e a longa fala fora dela. Uma
mulher fora de si, não para casar, mas tudo foi assim, um desejo para um surdo
pensamento. Sebastião tirou a mulher ainda menina de sua família, a menina que
trabalhava nas casas, o sorriso amarelado de quem não tem passado, só olhos se
A idade da terra e outros escritos 123
esgueirando entre as janelas querendo vida. Pegar pacotes, trazê‐los, mais mãos para
outras que não são as suas, nem os pacotes. A balconista de bom olhar, de bem se ver,
ela mesma, a menina detrás do balcão, entre o mundo com homens tantos e lá fora, só
um balcão, um impulso.
Sebastião‐ Chega. Não vou agüentar mais essas acusações. Não foi culpa minha.
Eu não queria nada, eu entrei ali por acaso, nem lembro o nome da loja, eu tinha de
levar algumas coisas, uns pedidos de minha mulher, a que não que não voltou para casa,
essa não, a outra. Chega. Dentes, dentes cariados, o que tem a ver os dentes com meus
segredos ?
Robson ‐ Calma, amigos, calma. Se alguém quer ser escutado, se alguém quer
ouvir que se narre outra história, que se conte outra coisa. Eu mesmo emendo tudo com
um fato, e não uma suposição. Eu também entrei naquela loja e vi a menina, a sua futura
segunda mulher, Sebastião. Esperei que ela mesma me atendesse, os vestidos seus com
cara de embrulho, o rosto, o rosto sim, um presente dos melhores. Não sei se seu rosto
se parecia com alguma daquelas belezas do cinema, ou se o cinema a havia descoberto e
esquecido ali, escondendo‐ a de todos. Mas ela destoava de tudo, ela quem deveria
estar nas prateleiras. Pedi uma camisa, perguntando sua opinião que não veio. Uma
mulher sem gosto , uma mulher só o sorriso, os dentes brancos muito brancos, uma
camisa , eu queria agora uma camisa. Ela trouxe todas, que neguei, uma após outra,
todas as camisas da loja, o balcão amontoado, os fregueses reclamando, e eu pedindo
mais, despindo a loja inteira, não me cabendo mais em tanto pedidos. E eu pedia que a
mandassem buscar mais mercadoria, que ela me servisse todas, a loja vazia, eu e ela ali.
Sebastião‐ Mas que atrevimento. Dois amigos e minha mulher. Eu não a quis
como balconista, como desejada balconista de uma lojinha qualquer. Eu dei‐lhe uma
casa, a que sempre desejou. Eu sabia que ela não queria a loja mas outra coisa, que não
queria mais ser vista, queria se defender. Uma casa para onde voltar e nunca sair, com
quartos e não um longo balcão‐prisão, uma casa para Maria, a desejada das gentes,
dentro de algo que queria, longe dos pedidos. Maria, nome de santa, da mãe de nosso
Jesus, um homem sem mulheres, um homem com todas elas, em volta de si, servindo e
sendo servidas, um outro sentimento, o amor e a água fresca e os pães para a boca.
Comer e beber debaixo da sombra das mulheres, as de muitos vestidos, as de roupas
coloridas e lenços na cabeça de muitos cabelos. Uma mulher para mim, Maria, a mulher
para a casa dela, a que eu dei.
Torga‐ mas tudo isso é pouco e pouco, amigos, uma mulher que nos toma e leva,
um corpo para se lembrar e esquecer. O sorriso nos lábios, não a boca, um sorriso nos
lábios , não o rosto, um sorriso nos lábios, os dentes. É desses que eu falo. Se nosso
amigo Robson cobiçou a mulher sabendo que era ou não a mulher de nosso Sebastião, e
se soube e continuou vendo a loja, e a casa e Sebastião, o que havia no sorriso, os dentes
do sorriso cravados em nosso amigo Robson, o que haveria senão o brilho cego de uma
lâmina já dentro de si, do corpo de Robson, de seu sexo, uma boca com dentes, muitos ,
os muitos desejos que sustentam uma visão ? E Sebastião, o de tantos pudores, velhos e
já sem dentes, um homem escorrendo entre sua baba de caçador, de tinhoso
descansado, alheio a si em sua casa , sozinho em sua casa, um pacote comprado prá
presente, um sorriso dentado percorrendo sua casa vária, o interior da casa de um
homem sem dentes, a boca banguela, a alma sem dentes, o sorriso moço de uma mulher
com seus dentes todos, e muitos, e fortes e vivos, mordendo tudo que se encontra em
sua frente, sem sangue e hálito ruim, a moça abocanhando o escuro banguela e rançoso
de um homem casavazia.
Robson‐ Eu não acredito que viemos aqui, como das outras vezes, nos
curvarmos às suas invencionices, de um dia mais iluminado pela voz do grande Torga,
um homem sem mulheres e sem casa e sem sorrisos. Hoje é natal, seu Torga, lembra‐se
124
? Lembre das promessas feitas, as que obrigados fomos a fazer em nome de uma
amizade que hoje eu não entendo.
Sebastião‐ Sim lembra, seu velho louco , lembra de nós pequenos e o pecado em
nós e a salvação pelo grande Torga. Nós, tremendo entre nós mesmos, escondidos do
mundo, nos preparando para tomá‐lo e o grande Torga, carro fúnebre e covarde, nos
impedindo de viver: ”não, amigos, promessa. Nunca, as mulheres, essas impossíveis,
nunca nenhum de nós dará seu coração roubado para não sofrer. O sofrimento, não,
acreditem, amar uma mulher é dividir‐se , é deixar de ser alguém, caminho sem volta. As
mulheres nos roubam, assaltam. Fechar os olhos ante o contato indesejado.”
Robson‐ Isso mesmo, eu lembro muito bem. O medo terrível para sempre. E eu
tinha tanta vida, tanto futuro, não agora mais, o tempo acabou e estou fora do tempo.
Um natal sem netos, uma vida sem amores. Estes são nossos presentes. As meninas
vinham e passavam, e eu por dentro gemendo, em minha mão presas as dobras da
camisa amassada contra meu corpo. As mãos suadas e os olhos em lágrimas escondidas
‐ era tudo água, eu era todo inteiro em minha pele que se expunha, florescendo em água,
todo após mim, dádiva, um céu, celeste dádiva, o céu em mim e eu regando minhas
vontades, fluindo vitralmente por entre os vãos da pele úmida , para alguém beber, para
banhar, para lavar outro corpo com meu corpo, paixão oceano em busca de foz.
Sebastião‐ E corríamos atrás das mulheres
Robson‐ Todas, todas...
Sebastião ‐ e queríamos todas
Robson‐ mulheres, mulheres
Sebastião‐ e o tempo era longo
Robson‐ a vida, a vida
Sebastião‐ e não acabava
Robson‐ o tempo, o tempo
Sebastião‐ as mulheres...
Robson‐ todas, todas
Torga ‐ (rindo e com raiva) Mas tudo isso é pouco e pouco, eu já disse, amigos.
Parecem meninas brincando em seus jogos de falsa vergonha, antecipando as amarras
da casa que seriam nossa verdade e destruição. Tão lindas, as roupas limpas, no rosto
um sorriso, imitando, não as mães, mas as criadas, fazendo e refazendo o serviço de
servo, agindo como servo, subjulgando‐se, humilhando‐se com bonecos de plástico para
depois , aprendido com os mortos, modelar os vivos. Em seus jogos, as mulheres
preparam o mundo nosso, o que perderemos. Treinadas, sabem desde antes que um
boneco não sofre, mesmo que caia de seus braços, o barulho de um oco imóvel caindo
num chão indiferente. Por isso, podem ter uma casa inteira de bonecos de plástico com
olhos que não vêem, com pernas que não vão a lugar algum, com braços presos no corpo
preso, apenas bonecos e papai ausente, papai trabalhando para mamãe... Idiotas, deixem
as cantigas de roda, é hora de lembrar o que realmente é. Minha primeira vez era noite,
e sempre foi assim, uma noite sem cores, uma cegueira que me levava, eu despido de
mim, para a casa, as luzes vermelhas de uma rua de casinhas, as luzes que morriam
entre a noite maior que isso tudo‐ impossível não ir.
Sebastião‐ Dessa parte eu gosto, a primeira vez
Robson‐ é, a primeira vez de Torga...
Torga‐ (imita os trejeitos da prostituta, de uma prostituta grávida) Ei, garoto,
vem fazer um baby comigo, vem ?
Sebastião ‐ (os dois parecendo meninos) E você foi, Torga, foi mesmo ?
Robson‐ que coragem, que coragem...
Torga‐ as casinhas guardavam em si verdadeiros labirintos de novos e infinitos
quartinhos, um após outro. Entrei numa delas e esperei a minha vez, uma cerveja para
A idade da terra e outros escritos 125
repousar, logo mais a cama e a dor na cama. Entre o bar e a multidão de camas, havia
uma cortina de plástico de muitas cores, rodando e brilhando entre as músicas que se
tocavam no bar para os corpos treinarem o suor fora deles. A cortina de muitas cores
dançava por entre o vai e vem de homens e mulheres que por ela passavam sorrindo e
voltavam distantes. Quando foi minha fez, passei por ela devagar, a moça, a minha
escolhida, com a mão na minha me puxando, os plásticos passando em meu rosto,
pesando, sujando‐me com os muitos corpos que por ali passaram, eu, de olhos fechados,
para não ver, escutando a cortina de muitas cores se abrindo sobre mim
Sebastião‐ Mas eu quero é saber da mulher, Torga, como ela era, conte de novo
prá nós ...
Robson‐ Nos desculpe amigo, nós só queremos a mulher, a puta grávida ...
Torga‐ Claro, amigos, eu também (riem). E eu estava lá dentro, em um dos
quartinhos, ela já nua, por entre seus lábios roxos e olhar imóvel, longe dali dizendo prá
tudo ser rápido, o leite prás crianças de Deus, os filhos dos outros dentro de si e um a
mais chegando. Eu mesmo tirei minha roupa e corri para o banheiro no corredor, nojo
de estar nu, a primeira vez, nu para alguém que não me via mas riu com raiva. Agora um
quartinho menor e mais sujo, o único refúgio, o barulho das águas no vaso, eu puxando
mais e mais águas contra a voz da que me chama, vem prá cá, sem medo, fazer um baby,
mas me paga logo e faz tudo.
Sebastião‐ no banheiro, Torga, não entendo por que um banheiro e o quarto
vazio
Robson‐ não me diga que você ...
Torga‐ a merda rapazes, e muita, muita bosta para aquele lugar, tudo saindo
pelas frestas da porta fechada, entupindo o corredor, invadindo os quartos, os amantes
em fuga, a falta de pagamento, merda em tudo, de não se querer ver...
(os dois outros fazem o papel dos amantes, os que se amariam de verdade,
dançando burlescamente)
‐ Sebastião‐ Mas Torga, meu homem de merda, seu bosta, endurece essa merda
‐ Robson‐ menino mau e feio, pinto pequeno e mole, branco, branco demais, a
merda branca tomando conta de tudo, sem cheiro mas pegajosa, preguenta,
‐ Sebastião‐ onde está o teu piupiu, teu negocinho de fazer xixi
‐ Robson‐ cadê o homem que estava aqui, eu queria um dentro de mim
‐ Sebastião‐ Cagão de merda, Torga seu cagão, vem prá cama, menino
‐ Robson‐Pega meus seios
‐ Sebastião‐ aperta minha bunda
‐ Robson‐ eu cuspo em ti, nessa sua cara sem lágrima
‐ Sebastião‐ eu gargalho por ti, nessa boca de silêncios
‐ (em conjunto girando em volta de Torga, xingando‐o, provocando‐o ‐ bichinha,
mulherzinha, pintinho da mamãe ... Ele ergue‐se em fúria, os dois outros caem para trás;
Torga grita e fala:)
‐ Torga‐ Isso é horrível (As mãos no rosto como se chorasse. Uma demora. Ergue‐
se com o rosto feliz, de uma felicidade que não lhe pertence como se zombasse, também de
si mesmo). Horrível mesmo, não é mulherzinhas (fala para seus amigos que se
entreolham e começam a rir e a seguir o seu conto burlesco de si próprio). Horrível,
saindo de calças nas mãos, tropeçando entre as paredes, no rosto estampado que não
conseguiu nada com a dona grávida, que ficou com seu dinheiro e carteira, enquanto ela
chorou por alguns instantes em seu colo, amaldiçoando a terrível vida que levava, os
homens de todos os lugares, a casa pequena, a cama estreita, o corpo precisando conter
tudo, o choro em suas pernas escorrendo, pregando‐se na minha pele branca, à luz baixa
e pobre de um prostíbulo de merda, interiorano, as mãos na cabeça daquela que
deixava, a sua mulher, a que ama agora, irmã de sua dor, nus para quem, as cortinas
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brilhantes e ruidosas ficando para trás, eu juro que voltarei prá te tirar daqui... eu juro
(pára em olhar visionário, um recordação que lhe seqüestra daqui)
Sebastião‐ Desculpe, Torga, acho que você ainda a ama.
Torga‐ Quem ?
Robson‐ você, Torga, você ama ?
Torga‐ Quem ?
(conversam entre si, os amigos) Sebastião‐ Tudo parece como antes, lembra ?
Robson‐ é mesmo, era melhor não ter deixado que ele falasse
Sebastião‐ São as datas, o calendário nos incomoda, as festas não são para
sempre
Robson‐ e nos aqui, como antes, escutando Torga, o das histórias que partiram ,
mais uma vez
Sebastião ‐ Logo ele vai falar de seu grande amor, da pianista de igreja
Robson‐ (ri) aquela da mesma cidade , aquela de nome engraçado (riem)
Sebastião‐ Essa mesma (riem)(Torga se aproxima deles para ouvi‐los, com o
mesmo rosto desfigurado da felicidade que não é sua. Pontua o diálogo com gestos
esclarecedores, e confirmações pela cabeça, ao mesmo tempo que parece ver o que contam
seus amigos)
Robson‐ mas qual era mesmo o nome dela?
Sebastião‐ Jucimére (riem)
Robson‐ Repete prá mim
Sebastião‐ Jucimére, meu amigo e com acento (riem) foi assim mesmo que eu vi
naquela carta
Robson‐ O bilhete de despedida, ao modo de nunca nos veremos, você não me
amou, tipicamente Torga ?
Sebastião‐ Esse mesmo, nosso herói e seus humores excessivos
Robson‐ quem colocaria um nome tão estúpido em alguém ?
Sebastião‐ Somente seu pai,(Torga imita agressivamente o pai da moça, o andar
duro e o olhar interesseiro, ) aquele estúpido, o Zé bonitinho, engomado em sua Igreja,
vamos rezar todos, um marido rico para minha filha, a pianista da igreja, Deus com
todos nós menos com Torga, o que sabia músicas, o que tocava violão, o que vem de
longe passar férias com sua vó, minha filha não, Torga, minha filha não, a Jucimére.
Robson‐ por isso na igreja se encontravam às escondidas, os beijos,(Torga fica
amorosamente escutando) atrás da porta, as mãos dentro dos bolsos, os olhos fechados,
o tempo que se foi, sempre tirar férias, os poemas, as músicas, nunca mais as músicas,
eu odeio músicas, eu odeio as músicas.
Sebastião‐ Jucimére nunca acabou, as mãos brancas e macias, os cabelos loiros
escorrendo pelo rosto de olhos azuis que viam, a mulher com um olhar e via. Beijando,
dois corpos a morrer, o medo e o desejo de ter medo, olhos fechados, eles se beijando
dentro do olhar, os olhos que tecem suas línguas, enroscando‐se, de se sentir e pegar, o
azul profundo no negro em volta a adormecer, a ensinar que um homem pode, o amor, o
amor dentro deles, dentro de Torga, Jucimére, para sempre bem aqui (os braços no
peito), de olhos fechados piscando esse amor
Robson‐ o nome estranho já dizia de si
Sebastião‐ ela não era daqui, eu sabia
Robson‐ ao contrário, Torga é que não era , estava de férias
Sebastião‐ o beijo acabou, Torga, o beijo acabou
Robson‐ Torga acorde, a noite é longa, precisamos de você conosco, não nos
deixe, você gosta de nós ?
Sebastião‐ Torga, Jucimére casou e tem dois filhos. Trabalha numa loja e vende
coisas aos homens.
A idade da terra e outros escritos 127
Robson‐ Eu a vi também, é balconista... Me desculpe Torga. Você sabe... eu
Sebastião‐ Você tanto tempo aí sentado...
Torga‐ (ele olhava todos, como se acordasse de seu sonho, como se voltasse para
nós) . Chega. Essa é a filosofia dos dentes cariados: eles, grandes em sua boca, até que
caiam um a um e não podemos fazer nada. Não era preciso saber de coisa alguma antes,
os dentes deixarão, após, a boca lisa, escancarada e nua. E de quem serão os dentes,
meus amigos, de quem serão os dentes (gargalha, repetindo essa pergunta final) ?
2 Ato
Uma mesa de jantar. Robson e Sebastião assentados, vestidos de capuchinhos,
posição de reverência e oração. Uma enorme panela em frente cheia de areia e pedras. Os
pratos a frente de cada um. Torga serve a ceia, falando o enorme monólogo de Torga,
como se fosse uma velha de aspecto muito terrível, os gestos irados, tudo estremecendo em
seus atos, ele em maquiagem de velha.
Torga‐ Comam amigos, o prazer de comer. Este é o meu corpo e minha vida, em
troca dos sonhos. Na verdade só houve uma, a mulher. Comam suas partes, as sobras, a
que amei. Só houve Ana, um único mês, o amor que não acaba. Ana dos longos cabelos
negros e pele morena, uma menina ainda, que sabia as músicas, que lia o que os homens
escreveram. Por isso, era Ana, o coração em suas mãos, dos que dela se aproximavam. A
bruxa de longos cabelos, colhendo de nós o que lhe pertence. Por onde andará Ana, suas
vestes deixando os ombros nus, o sol em seu corpo ? Um mês, Ana, a mulher da
promessa, aquela que tirou de mim as palavras, que me fez confessar. Porque tudo foi
de repente, logo a cama e eu já era outro pela primeira vez, sem as cortinas de muitas
cores e o medo da nudez, eu era outro contigo dentro de mim, sem me sentir
estrangeiro, a primeira vez rir na cama e dizer o amor, o amor que chegou para não
mais sair. Comam os restos, amigos, comam o que de Ana ficou, quando subiu as escadas
e me encontrou na porta, meu sorriso sumindo no adeus que escutei e que soube dela
tragar. Comam suas partes moídas entre minhas mãos que antes sabiam dos beijos, da
mulher em seu prazer que escutei.
Depois foi tudo outro, sentir o peso delas sobre mim, os olhos sempre abertos,
para o lado, para fora da cama, quase caindo da cama, quase longe dali, onde não estive.
O corpo pesando em cima, e eu sentido algo longínquo se aproximando, morrendo fora,
e eu fechava os olhos, não mais para confessar, agora não, mas para pedir, implorar para
que vão embora, que não me vejam assim, que não me toquem, deixem‐me aqui, no
quarto sozinho, as lágrimas nos olhos, deixem sentir o que é o adeus, o que é o sempre,
que tudo não é mais, e eu não sabia. Como podia esperar que Ana se fosse, que o mês
cumprisse seus dias, os que nunca contei. O que tenho por entre as mãos escorrendo, o
que sirvo para estes pratos, o que lhes dou, meus amigos, o que vejo cair nos pratos... O
barulho surdo e rouco de um corpo que cai, sem voz, o que dizer. Ana se foi, seus
cabelos nas costas, cegos no após, o vento longe dali, uma mulher que anda, que não
pára, Ana maior que tudo, pequenos meus olhos para tanto calar.
Eu lhe comprei um livro de dobraduras, como tornar viva a folha do papel
escrever na matéria os movimentos das coisas, dobraduras . Eu lhe fiz poemas sem
sujeito, o que sentia com gesto e sons, cravando‐se na página branca, poemas. Eu lhe dei
uma bebida com champanhe e mais álcool, blue lagun, para que ela me escutasse em
seus delírios ‐ sonhos de mulher, bebida. Eu li para ela um livro de muitas páginas sobre
128
um peregrino que encontrou seu país natal, o pródigo com lembraças, livro. Tudo para
que ela ficasse, para que não deixasse de vir. A porta sempre aberta, e eu esperando o
fim do dia, seu abraço me levando para dentro dela, todos os dias, os trinta, dia a dia.
No meio do mês fiz anos, um aniversário, e eu era um presente para Ana, minha
vida até ali era toda dela, em seus cabelos depositadas minhas imagens, as longas noites
sem ninguém, tudo para ela, Ana, minha mulher. Em uma longa mesa comemos todas as
carnes, e sempre havia mais fome, só as carnes querendo, só as carnes entre os dentes
que nada deixavam fugir da boca, os dentes suspirando por mais , carnes entre sorrisos,
eu e Ana. E a ergui com todas as minhas forças, vendo o ar, eu já com os pés em cima da
mesa, eu a tirei desse mundo, Ana comigo mais que todas, meu corpo em paz, dormir e
sonhar.
Mas ela subiu as escadas e o longe se fez aqui, e não havia outro lugar mais onde
eu ficasse, não havia senão olhos em toda parte, olhos sem rosto, nenhum lugar para se
fugir, eu sem Ana era o peregrino sem pais natal, a página em branco esvoaçando sem
palavras e formas, o vazio das sombras dos postes. Ana, a de muitos sorrisos, não me
voltou mais seu rosto.
Então eu dormi em todas as camas, nas casas de mais cortinas de muitas cores
melhor, quanto mais sujo e fedido o quartinho, eu precisava. Ver todas de muitas caras,
todas podres, e sem dentes, o hálito ruim, o corpo de dobraduras mal feitas, as palavras
sem sentido, boca suja e ruim, mulheres que paguei. Vê‐las em cima de mim dançar e rir
em sua dança que pesa, o prazer e o fingir mas sempre as bocas escancaradas e lisas, o
gemido das putas, sempre o filho na barriga, sempre escondendo algo de mim, sempre
preparando o amanhã sem memória. As putas, cagando em cima de mim, a grande
merda, a bosta que eu sei , e eu rijo sem ninguém, fala alguma coisa, branquinho, meu
homem mudo e durinho, pelo amor deus, fala com sua putinha de merda, essa merda
mesmo, essas que tem rosto e boca careados, os dentes careados, um a um dentro delas,
o beijo apodrecendo, lambendo suas feridas... As pedras, meus amigos, as pedras, e o
resto mais. Comam, meus amigos, este é meu corpo, este é meu sangue , a boa dádiva do
que viveu. (os dois se erguem ainda escondidos em seues capuzes. Vão em direção de
Torga e tiram a colher de sua mãos. Ficam atrás dele por alguns instantes e tiram cada
um seu capus. Percebe‐se a maquiagem que desfigura seus rostos, como se fossem velhos,
um marrom cinzento escorrendo em suas faces. As bocas com dentes podres, escorrendo
baba suja e enegricida de suas bocas. Uma risada distante presa nos trapos dessa
maquiagem desses ex‐rostos. Torga depõe seu rosto na mesa, como se chorasse)
Robson‐ O que fazer com as mãos, essas que pendem e não alcançam paz.
Sebastião‐ Algo de nós se foi e sabemos bem.
Robson‐ mas ainda podemos lembrar
Sebastião‐ é a única coisa a fazer
Robson‐ quando éramos crianças, brincando de esconde‐esconde, na casa de
Torga, perto do morro, juntos nos encontramos, todos alheios a nós.
Sebastião‐ e vimos a luz de uma estrela , o único olho do céu a nos sorrir,
ninguém viu, a estrela inteira para nós, nos achou em nossos segredos. Uma só luz, o
céu, sobre nossas cabeças.(Torga ergue‐se e olha para a mesa desarrumada. Enquanto
seus amigos falam, ele recolhe o que está em cima da mesa, o fim da festa)
Robson‐ era a balconista, uma mulher distante para nossos braços, pouco o
gesto impossível esforço.
Sebastião‐ todos nós vimos a mesma mulher, o olho branco e vivo a nos dizer
adeus, a mostrar como a terra é longe do céu
Robson‐ O morro em nossa frente, subir e buscar quem parte, quem nos diz
adeus, não é mesmo, Torga, essa foi sua idéia ?
A idade da terra e outros escritos 129
Sebastião‐ Mas como, meninos, seguir uma mulher que partiu, um desejo só
nosso, outra brincadeira, outro jogo, brincar de pique‐pega, correr atrás, mudar o perto,
trazer o longe para nós ?
Robson‐ O céu é uma bancada que não perdoa, que não perde uma aposta e não
nos quer...
Sebastião‐ Deixa disso, deixa as reclamações para Torga, o que ama demais e já
partiu.
Robson‐ Mas e as promessas ? Aquela noite fizemos o pacto, para sempre, nunca
as mulheres, nunca o céu para sempre...
Sebastião‐ e mentimos.(Abraça o amigo e segue Torga, que já está saindo de
cena) Tínhamos é medo de olhar para cima e ver que tudo se acaba, que nos chamam
para dentro de casa, que a noite acabou e a estrela se foi. Noite seguinte, nós lá fora,
perseguindo estrelas, atrás daquela que nunca mais brilhou, e se voltou, não estávamos
ali, ou já éramos grandes, outras estrelas nos olhos e no coração, em outras cidades, em
outras casas, outros amigos, algo para se fazer. O morro ficou para trás, e nunca mais
podemos nos esconder. O céu noturno foi engolido pelo brilho de nossos passos
apressados sabendo onde ir e como chegar ‐ foi o que nos ensinaram. Mentimos, culpa
do medo. Torga continuou a perseguir estrelas em suas lágrimas, em seu céu sem
ningúem.
Robson‐ E o que ouvimos, um homem e suas mulheres, sua dor de homem em
meio a nós ? E sua primeira vez, e seu primeiro amor e seu maior amor, eis a verdade
que não se adia, eis a verdade em sua boca
Sebastião‐ Palavras, meu amigo, palavras sem dentes, dentes e mais nada, tudo
se esvaindo pelos cantos dos lábios, um veneno muito antigo, o resto de um sangue nas
gengivas nuas e já sem vida, negra bebida para quem quiser se fartar... O que houve, o
que aconteceu não importa, ele precisa de ouvidos , uma vida banguela quer se escutar,
quando as palavras não ecoam mais a garganta de um homem sem fome, sem um chão
para andar. Recolha tudo (empurra Torga, como se ele fosse um empregado, um mendigo
recolhendo ), Torga, para que eu não pise nessas sobras...
Uma última noite sobre a terra
diálogo futuro
Cenário lunar‐surrealista.A sombra de uma Terra luzente e aos pedaços pode ser vista.
Entre destroços de metais retorcidos, eles conversam, dois sobreviventes, cansados, o ar
raro e as palavras ofegantes. Sentados.
‐ eles virão nos buscar, tenho certeza, não podem fazer outra coisa, eles virão nos
buscar, eu creio.
130
‐ cale‐se rapaz‐ escute e veja quando tudo acaba. Essa é uma noite maravilhosa, a grande
noite, era prá estar acostumado, aqui, comigo.
‐ não podem fazer outra coisa, estamos perto, tão perto que já escuto os passos, eles
chegando prá nos buscar, gente asssim como nós, que também busca. Saímos de nosso
lugar, uma vez há tanto tempo...
‐ (ri) e você sabe por que viemos parar aqui, neste mundo que se acabou ?
‐ eu tinha filhos, dois, sem mulher, uma casa enorme, cheia de gritos e tropeços. Mamãe
cozinhava o cheiro em todos os lugares, eu brincava lá fora...
‐(o que riu aproxima‐se e o sacode) acorde, não morra ainda, não me deixe aqui...
‐ eu tinha uma bicicleta cor de laranja e eu era mais rápido que todos, pudia correr que
ninguém me pegava ”pai, por que mamãe não volta e arruma nossa cama, dormir,
dormir, mamãe (gestos de apagar a luz em quarto de criança)dole uma, dole uma e dole
três, a luz do quarto escuro apagada...”
‐ (Ergue‐se e começa a correr) Viu, olhe pra mim, eu corro melhor do que você, eu
sempre corri mais, eu chegava na frente, mesmo chovendo, o chão caindo para os lados,
a terra lisa como a cabeça de um homem velho, eu corria sem respirar nada, só os olhos
crescendo, de olhos fechados eu, e nada vendo, só correr mais rápido que a chuva,
fugindo da chuva, brincando de não‐me‐pega suado e úmido, eu, o que corria‐ (olha e ri
desatinadamente. O corredor pára seu percurso em zigue‐zague em torno do amigo, ele,
seu satélite). O quê , rir do que, o que há para rir, seu idiota
‐ (pára de rir surpreso) Eu não entendo, eu...
( dirigi‐se o corredor para o amigo , as mãos na garganta dele, esganando‐o)‐ Não era
para ser assim, meu bom amigo, todo esse tempo aqui. Sempre me deu vontade de fazer
isso, de te levar de volta para as duas filhas, para teus pais, um passado goela adentro,
seu louco, seu terrível louco. Matar alguém seria a última coisa a fazer nesse mundo sem
homens, sem ninguém para falar. Antes de viajar , em vida outra vida, eu sempre quis
fazer isso.(tira as mãos do rapaz, já desmaido no chão, e conversa com ele , como se ele o
escutasse). Matar alguém seria a razão de uma vida, um sentido, sabe. Quando vejo o
olhar do quase morto implorando para que eu desista, um homem redimido de sua
miséria, de seus planos, um homem nascendo em minhas mãos quentes, e eu vendo
tudo, matar eu mesmo, eu mesmo vendo tudo, o corpo caido pesado contra o chão, para
se encontrar com uma escuridão enorme, o seu caminho, o que encontro, a cara no chão,
minhas as mãos em sua morte. (enquanto falava, o outro começa a se recuperar,
empurrando‐o para um lado, com os pés. Ergue‐se)
‐ louco você, só pode ser esta a explicação, como conseguimos viver tanto juntos... Qual é
seu nome mesmo ?
‐ não durma rapaz, não durma, saiba que sempre estou por perto, como sua calças,
dentro de você, as suas cuecas, tão perto de você, como seu sexo, corpo, muito mais
perto ainda, vendo com teus olhos de medo, o pavor, amigo, o pavor crescendo em tua
frente, dentro, lá dentro, fazendo tremer essa cabeça que pensa muito e muito.
‐ Você está doente . É o mal da lua. Chegamos até aqui e o que nos resta Fomos até o
limite do mundo, o que fazer mais. Fugimos de tudo, as pessoas e as coisas atrás,
perdemos o que ficava em volta. Longe de tudo o que importa , nada mais pode nos
atingir.
‐ Cale‐se ou eu te mato, meu doce amigo...
‐ (senta‐se no chão, o desconsolo final) Desista, o que podemos fazer, senão escutar um
ao outro. O que não foi feito, as palavras mastigadas pelo medo de que fossem
escutadas. cada um como um pequeno mundo dando voltas...
‐ Cale‐se ou eu te arrebento (pega um dos destroços, uma barra de ferro retorcido. Em pé,
desfia o amigo). Vem, prá mim, cara, diz o que você está pensando, fala mais, o sangue
escorrendo pelo chão, as palavras que ningúem escutará.
A idade da terra e outros escritos 131
‐ Você está doente, ainda não entendeu isso ? Sente‐se aqui do meu lado, Conte algumas
de suas histórias. Você têm um passado, há algo para lembrar ?
‐ Desgraçado (bate com o ferro em seu compnheiro de abismo, já arremessado para o
lado, sangrando )
‐ Ah, o mal da lua, eu me lembro bem, as noites olhando para o céu que não se mexia, as
estrelas passando por nós, um mundo que nunca houve, sempre mais adiante.
‐ Desgraçado (Novamente o atinge, lançando o amigo mais para longe, mais perto da
imagem do Planeta Terra . Mas agora é diferente. Ao bater,‐o que fará outra vez‐ olha o
amigo caído e hesita em se aproximar dele, como os animais ao se aproximar do fogo)
‐ e viajei por tantos lugares, vi tantos rostos, ri de tantas coisas, uma junto da outra,
todas em minha frente, perto de mim, aquela noite menino com a lua para mim...
‐ Desgraçado ( Novamente o atinge. Volta correndo para perto da nave, abraçando‐a)
‐ e agora estamos aqui. Tenho certeza que estamos sós, e que não adianta pensar em
voltar.
‐ Surpreendido. Deixa a barra de aço cair). Mas você disse aqueles viriam, que breve tudo
voltaria a ser como antes. De novo para casa, poderíamos pensar em novas viagens,
novos mundos, um novo pensamento cada momento, sempre mais, sempre à frente,
mais que os passos, ir até à raiz da luz e beber de uma água tão fria que faz cócegas na
boca( começa a rir, fazendo os gestos imaginasdo que estaria em um cachoeira, jogando
as águas sobre si)
‐ Você está doente, meu amigo, uma grande doença. Perto de casa, eu via você, seus
jeitos estranhos, o menino do cobertor. Eu ja sabi de tudo isso, sabia como tudo
acabaria...
‐ (fala dando volta nos dentroços, segurando‐se nas baras de ferro retorcidas, os macacos
em suas jaulas). Não me lembre disso, você prometeu nunca mais contar. Por isso
fugimos, estamos aqui.
‐ Eles não virão. Deixe que eu conte a história do menino do cobertor. Estamos sós,
ninguém vai nos escutar. Não há como nos escutar.
‐ Eu te odeio, cara, por tudo o que você fez, eu te odeio. Você sempre mentiu para mim,
sempre a mesma coisa, o mais velho, o que podia dormir até tarde.Você brincava com
meu rosto enquanto eu dormia., os arranhões e as manchas em meu rosto no outro dia,
a cara sempre espetada e suja. Eu parecia sua mulher, uma menina fraca e doente por
sua causa.
‐ Não chore meu irmão, ninguém vai ouvir mesmo. Lembra que eu sei como fazer o fogo
pairar em minha mão, lembra ?
‐ Seu desgraçado, mesmo que eu não possa xingar meu próprio irmão xingar, eu te
odeio, você sempre soube de tudo...
‐ (aproxima‐se da nave. Dela pinga o resto do combustível.. Põe em uma mão um pouco,
risca um fósro e acende. Brincadeira de irmãos ‐ assutar um com o álcool na mão. Se
aproxima do irmão apavorado). Cala a boca seu moleque, monte de estrume, magricelo,
o menino do cobertor, doente, doente, o mal da lua em você. Acorde de noite, veja seu
pulmão caçando o resto da respiração miúda. Quem será que vai morrer...
‐ (Tosse, tosse muito em seu pavor) Não me queime, eu falo tudo, eu escondo o que você
quiser, eu abraço, pego em teu corpo. Tira esse fogo de mim. Vai dormir, irmão, vai
dormir...
(apaga o fogo com a outra mão. Um tapa em sua própria mão)‐ Eu sempre tive nojo de
você. (dá as costas para o irmão e caminha em frente, para a lateral esquerda do palco. O
outro chora) Eu vim primeiro, apanhei muito. Em minhas costas aprenderam a te tratar
melhor. Um dia, quem está’dormindo na cama dos pais ? Quem, senão o menino sempre
doente, que tomou o ar da noite, porque eu tinha deixado a janela aberta, o que tinha
caído do berço porque eu não cuidei direito. Agora sempre ali na cama dos pais, sob o
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acolchoado rosa e grosso, o calor da vida em seu corp inteiro. O menino doente com
muita vida...
‐ Mas eu não sabia de nada. Era calor e só havia um quarto e todos estavam lá. Acho que
esperavam algo, e eu também esperava. Debaixo das cobertas eu queria sempre a visita
nova, o parente que viesse. Eu sei que alguém viria, para que as bocas se abrissem, rir
ou falar, alguma coisa naquela quarto com todos nós...
‐ Você não sabe de nada, meu irmão, você e sua doença. Ninguém veio, ninguém virá nos
buscar. Ficamos os anos naquela casa, eu te cuidando, eu preso ao menino do cobertor.
Dia e noite debaixo das cobertas, o suor mais que tudo em todos os lugares. O cheio
terrível do menino doente que não se se sufocava. A respiração longa de nunca acabar.
Nunca mais dormir...
‐(toma um saco dos dejetos dos destroços e sai a andar pelo cenácio circumlunar. Segura
uma barra de ferro). Debaixo das cobertas, debaixo das cobertas. Andando pelas ruas
debaixo das cobertas, debaixo das cobertas. Os olhos em cada rosto, debaixo das
cobertas, debaixo das cobertas. Onde ir, debaixo das cobertas, debaixo das cobertas...
Nada em minha frente, debaixo das cobertas, debaixo das cobertas...
‐(ironizando, batendo palmas) Sim debaixo das cobertas, debaixo das cobertas, decober
das baixertas, decober das baixertas, decober das baixertas, decober...(recebe um golpe
de quem em torno dele girou. Cai morto, um barulho imenso em sua queda)
‐(ri) te enganei, não é mano, te enganei direitinho, não é ? (ri) Um dia eu sairia da
cobertas, viu ?(ri) Olha, não tô mais doente. Eu brincava.(ri) Não acredita ? (pega no
morto,vai arrumando suas roupas, limpando o sangue e arrasta‐o para a nave enquanto
fala). Lembra uma vez, você dormindo, o beliche, eu embaixo, eu acordei mais cedo,
esperei o dia ainda não chegar e gritei, gritei bastante alto e você caiu no chão.
Engraçado você chorando de dor, o sangue em tudo, girando e girando de dor, as mãos
no joelho, um pião maluco, a dor imensa... Você girando de dor prá mim ? Lembra seu
dinheiro escondido que eu sabia, a viagem com os amigos que não houve, a busca do
dinheiro perdido agora por minha conta queimando no quintal ? Lembra o combinado,
você chegar tarde, eu esperar com a porta e a chave da porta . Mas onde está a chave,
onde está, meu irmão, eu estou no quarto, alguém batendo na porta, um choro pequeno
em segredo sabendo o que vai acontecer. Lembra eu doente, eu doente em meu coberto
de lã, o suor pelo rosto, eu não deixando você dormir, eu com forminhas de gelo debaixo
do cobertor, eu querendo trazer a doença prá tudo, prá o nosso quarto, você ali do meu
lado, não dormir até que eu queira. Lembra eu rasgar minha pele, pedaços do corpo
guardados em caixinhas de fósforo, dizer que você me batia, os meninos com medo de
você, você do meu lado até quando eu queira. Lembra não ver tv até tarde, eu vendo
você vendo tv até tarde, eu contar prá mamãe, você apanhar tanto que criou ódio da tv
da mãe e de mim e fugiu de casa ? Era o mal da lua... E na tv passando O planeta dos
macacos ( pára de puxar o cadáver e imita um macaco em volta de seu irmão e em volta
da nave, gritando os nomes dos personagens do filme ‐ Cornelius, Zira, D. Zaios, Ursus.
Após , arrasta seu irmão para fora de cena . Momentos depois, cai o planeta Terra.