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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

LITERATURA
BRASILEIRA
Textos literários
em meio eletrônico
Poesia reunida e
outros textos,
de Maura de Senna Pereira
____________________________________________________________________________________________________________________________
 
Edição de base:
Poesia reunida e
outros textos.
Org. de Lauro Junkes.
Florianópolis:
Academia Catarinense de Letras, 2004.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ÍNDICE
 
Cântaro de ternura
 
Poemas do meio-dia
 
Círculo sexto
 
País de Rosamor
 
A dríade e os dardos
 
Busco a palavra
 
Despoemas   
 
Cantiga de amiga
 
Poemas-estórias
 
Poema do pré-retorno
 
Os adereços
 
Demonstração: como evoluiu um poema
 
Entrevistas e textos para conhecer Maura
 
1. Discursos e entrevistas
 
2.
Poemas (verso e prosa)
 
3. Textos sobre pais e familiares
 
4. Sobre a mulher e o feminismo
 
5. Textos de catarinensismo
 
6. Outros textos
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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POEMA DO
PRÉ-RETORNO
 
 
Vento da noite,
ainda é cedo!
E nem lavrei a
terra agreste
 
Helena Kolody
 
 
... e nem sequer
plantei as campânulas vermelhas
para doá-las em
festa aos que deixam as prisões!
quanto mais quanto
mais as magnólias acesas
para iluminar as
multidões!
 
e eu que vivo
clamando
liberdade!
liberdade! para todas as gentes
nem sequer a mim
própria libertei
(que heranças são
estas que vincaram estas manchas
de algemas nos
pulsos
e correntes nos pés
não me deixando
derrubar com os companheiros
as barreiras que
impedem
a ventura
aventura
de viver?)
 
desatados atos,
adversos gestos,
impossíveis passos,
malogrados feitos
e eis a não liberta
e não conspurcada
e também a mãe
gorada
pois nenhuma
semente germinou em meu ventre
e assim não pude
legar a nenhum ser
(que talvez me
levasse viva a outras eras
onde já serão
verdades o que são quimeras)
e ardor de minha
carne e minha mente
 
em verso novo como
um jacinto abrindo
pudesse eu estas
coisas dizer
agora que me sinto
cada vez mais perto
do nada que era
antes de nascer
 
 
 
 
 
OS ADEREÇOS (Último Poema de
Maura)
 
 
No meu simples
ofício de cantar
tenho recebido
flores em profusão
e a flor é vida
e o ofertante um
irmão.
 
Alguns poucos
preferem mandar-me
pedras malignas
que eu nunca
cheguei a ver
pois não atingem o
alvo
e se estilhaçam no
chão.
 
Mas há que também
falar nos silêncios
que o silêncio é
nada
porém eis que
agradeço
pois cada um deles
deixa em meu peito
um inexistente
adereço.
inexistente
mas que eu vou
usando
para me acostumar
 
 
 
 
 
DEMONSTRAÇÃO: COMO
EVOLUIU UM POEMA
 
 
1a. Versão do Correio
do Povo (década 1930)
 

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Título: Jurerê-mirim
 
 
Ilha donosa onde eu
nasci,
De praias claras e
de curvas esbeltas
Amorosa e selvagem
como eu,
Mulher como eu!
 
Parece que sou
feita do teu barro,
Que tenho em mim
pedaços dos teus seios verdes!
Meu sonho se
impregnou da tua poesia,
Meu espírito da tua
rebelião
E, um dia, quero
que a tua fecundidade
pouse também em
minha carne
 
 
2a. Versão de Poemas
do meio-dia (1949)
 
Título: Ilha e
Mulher
 
 
Quando me deito nos
teus canteiros mornos,
não me basta o
pensamento quase bíblico
de que sou feita do
teu barro.
 
Meu corpo é o teu
imenso corpo de ilha
e minha alma invade
as tuas entranhas,
participando da tua
febre criadora.
Meu sangue é o
rasgão líquido dos teus rios,
a linfa nervosa das
tuas cachoeiras,
a água matuta das
tuas lagoas.
Plantas rebentam de
tuas carnes, de meus chãos,
e sinto-me
carregada da tua seiva e do teu pólen.
 
Quando me levanto,
a sacudir a tua poeira morena
e ungida com o
perfume de vinte lírios novos,
e mulher e terra
deixam de ser uma unidade pagã,
ainda sinto me
prender e me abraçar
e envolver,
implacável, a tua existência cósmica
o abraço varonil do
mar.
 
 
3a. Versão — de Busco
a Palavra (1985)
 
Título: Consubstanciação
 
 
Quando me deito nos
teus canteiros mornos,
Jurerê-mirim,
Isla de los Patos, Santa Catarina,
não me basta a
alegria telúrica
de ter nascido em
ti
nem o pensamento
quase bíblico
de que sou feita do
teu barro.
 
Meu corpo é o teu
imenso corpo de ilha
e meu sangue o
rasgão líquido dos teus rios
a linfa nervosa das
tuas cachoeiras
a água matuta das
tuas lagoas.
Plantas rebentam de
tuas carnes, de meus chãos
e sinto-me
carregada da tua seiva e do teu pólen
 
Quando me levanto
a sacudir a tua
poeira morena
e ungida com o
perfume de vinte lírios novos
e mulher e ilha
deixam de ser uma unidade pagã
ainda sinto me
prender e me abraçar
e envolver,
implacável, a tua existência cósmica
o abraço varonil do
mar.
 
 
 
 
 
 
ENTREVISTAS E
TEXTOS PARA CONHECER MAURA
 
 
 
1. DISCURSOS E
ENTREVISTAS
 
 
DISCURSO DE POSSE
NA ACL —  1930
 
Acadêmicos:
 
 

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Um dia — faz três


anos — quando a primavera celebrava a aleluia
panteísta dos seus esplendores e
o esplendor máximo das suas
rosas, a vossa voz ilustre, com inflexões inéditas,
chegou até ao
meu lar e até à minha sensibilidade:
 
— Vem para o parque
das nossas reflexões, assim como és,
enamorada das estrelas, trazendo, sobre o
ombro o cântaro moreno
do seu sonho de arte!
 
E eu venho para vós
com as mãos escorrendo a  emoção fraterna
que transborda da taça da minha
alma e com os olhos sorrindo um
poema de vaidade — a minha vaidade tímida de
ser a primeira
mulher que vem sonhar convosco, o deslumbramento do vosso
sonho.
 
Venho para vós
sentindo bem junto aos sábios a mentira deliciosa
da glória, sentindo bem junto
aos meus cabelos a ilusão efêmera de
uma coroa, numa comoção tanto maior quanto
é certo que,
pequena criatura (perdoai-me essa revelação de orgulho e de
mágoa)
tenho saboreado o pão e o vinho das amarguras e dos
sacrifícios, com a fronte
sempre iluminada pelas hosanas do meu
anseio de perfeição — desde que o destino
me deu o presente
irônico da orfandade numa noite bárbara de fevereiro, quando
eu
era menina e moça, mais criança do que mulher, e vivia as mais
belas horas
de esperança ingênua e de alegria garota, nesta mesma
Florianópolis de cuja
silhueta elegante e tranquila a minha alma é
tão grande amorosa. Nesta mesma
Florianópolis, que ouviu o canto
enternecido de minha mãe quando me embalava o
berço e onde o
meu espírito foi palpando as guirlandas da luz e da beleza, todo
feito de vivezas e de passividades e cheio até às bordas da tortura
faceira de
viver.
 
Mas a emoção
fraterna que escorre nas minhas mãos e a vaidade
tímida que sorri nos meus
olhos — não impedem que, lembrando
uma formosa imagem do divino Rabindranath
Tagore, eu vos conte
esta verdade simples, esta pequenina legenda da minha
garganta e
do meu espírito diante dos valores vossos: eu sou a hera frágil e
sonhadora que se recorta, para o mesmo gesto verde de esperança
e de ascensão,
ao carvalho robusto da vossa cultura e do vosso
pensamento.
 
Deixai-me agora
sonhar:
 
Eu edifiquei a
minha senda sobre um pedaço de serra ensolarada.
Estou sozinha com a minha arte
que é simples como eu própria,
cheia de falas de crianças, poemas de amor,
espumas de
pensamento. E a minha senda é de rosas. E o meu sonho é de fogo
e
mel e arde na minha testa e canta na minha boca. Mas em torno
de mim vela uma
multidão de lanças e de escudos, de elmos e de
broquéis. São os grandes méritos
varonis do meu patrono: é a sua
vontade construtora de homem, é o seu garbo
altaneiro de soldado,
é a sua erudição profunda de cientista, é o seu
apostolado sereno
de mestre.
 
Aquele que se
chamou Roberto Trompowsky e galgou o posto
supremo no exército e também o
marechalato dos conhecimentos
matemáticos na geração contemporânea, levou, por
certo, do sub-
consciente desta ilha verde apelos mágicos para mágicos triunfos.
 
Ah! não são os nossos
montes tão altos e tão imponentes, ao
mesmo tempo, na sua altura? Ele seria
assim.
 
Não são as nossas
paisagens e as nossas praias donas de um
sortilégio tão altruísta e de uma
beleza tão enfeitiçante? Assim
encantadora havia de ser a sua sabedoria.
 
Mas o talento e a
vontade completariam o milagre egrégio. O
talento que recebeu a lição batismal
de Augusto Comte e que teve o
culto apaixonado de Rui Barbosa. E a vontade,
aquela assombrosa
vontade de subir, de subir sempre, levando pelo braço robusto
o
tesouro da sua ciência, a olhar desassombradamente para o céu.
 
Esse gesto nobre e
atrevido de afirmar a vitória foi realizado, claro,
sem rebuços, ao começar
para ele a adolescência. Nos seus olhos
corria a ânsia arrogante de desvendar.
O seu tórax se dilatava,
nervoso e forte, enquanto pela ideia lhe dançavam
alvoroços
precoces de condor e de leão. E ele contemplava a sua cidade
meiga e
quieta, onde brincara e correra na sua bela inconsciência
de rapaz e onde
sentira, no cérebro eleito, as primeiras alegrias e
as primeiras inquietações.
Agora ia partir. Diante dele estava o seu
mestre devotado das primeiras letras,
a quem disse: "Só voltarei a
nossa Desterro com os bordados de
general".
 
Lá longe, na
vertigem da serra carioca, o seu coração era bem uma
arca de saudades. Mas só
com os bordados de general ele tomou
em visita, ao aconchego macio da
idolatrada Jurerê-Mirim.
 

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Depois de ter
traçado, com a pena fria e grave, os festejados
compêndios da sua didática e de
os ter oferecido, como um nababo
generoso, aos estudantes e aos estudiosos.
Depois de ter enchido
de artigos e conselhos técnicos as colunas das grandes
folhas
americanas. Depois de ser uma glória da pátria e do mundo e de
ser
honrado na Europa, através da sua polimorfa cultura, que
revestia de forma
altíssima o cumprimento de altíssimas
delegações, o nome do Brasil.
 
Mas depois ainda de
ter cumprido o ousado vaticínio, confirmou, na
grande cidade de São Sebastião,
da qual fizera o centro irradiador
do seu peregrino engenho, na rota de sábio
que escreve e que
ensina, que medita e que norteia, venerando e útil na sua
ansiedade, até que a morte o fez repousar no seu incognoscível
regaço.
 
Eu o imagino um
titã bronzeado e forte, trazendo no peito a audácia
de um farroupilha e a
maneira de um beneditino. Um titã bronzeado
e santo que saiu pelo mundo afora.
Antes, entrava num templo
pagão e era ungido pela mão invisível dos deuses. E
começou a
pisar o solo com os passos da sua bravura. E começou a nutrir,
iluminando. E para todos os caminheiros sedentos e famintos que
se acercavam,
dele erguia o púcaro cheio e dava a beber a água da
sua enorme fé positivista;
erguia o farnel repleto e dava a gustar as
frutas bravas e maduras das suas
meditações. Um dia ele tombou
como um jequitibá ancião e frondejante; mas, nos
seus olhos, na
hora última, devia brilhar, posto que morrente, o consolo de ter
envaidecido, pela fama que soubera conquistar, a terra pequenina e
radiosa em
que o seu berço balançara e a glória esbelta da sua
raça. E, perto dele,
inesgotáveis, estavam o farnel glorioso e o
púcaro imortal.
 
Assim eu o proclamo
um idealista.
 
Não o idealista
que, anunciando a renúncia e querendo a perfeição,
tem os olhos postos numa
vida além do mármore frio dos sepulcros
e da integração da carne morta na terra
frutificante.
 
Não o idealista
que, na expansão fascinante dos seus postulados
sociológicos, profetiza a
felicidade das agremiações humanas.
 
Não o idealista —
trovador que estampa os seus sonhos múltipios
em versos de renda e gaze ou que
sonoriza, num canto ardente,
gritos nômades, aflições coletivas, festas
patrióticas ou trombetas
de guerra.
 
Mas um idealista
diferente, que se debruçou para a vida feia e
decepcionante mas também
maravilhosa e marcou-a com a beleza
das especulações científicas e com o aprumo
das suas conclusões
exatas.
 
Um idealista assim:
pastor dos números, gineiro dos moços e poeta
que, no soneto do seu árido
trabalho mental, escreveu os
hemistíquios de gênio.
 
Deixai-me ainda
sonhar:
 
Eu edifiquei a
minha senda sobre um pedaço de serra ensolarada.
Estou sozinha com a minha
arte, que é simples como eu própria,
cheia de falas de crianças, poemas de
amor, espumas de
pensamento. E a minha tenda é de rosas. E o meu sonho é de fogo
e mel e arde na minha testa e canta na minha boca. Mas em torno
de mim vela uma
multidão de lanças e de escudos, de elmos e de
broquéis. São os grandes méritos
varonis do meu patrono: é a sua
vontade construtora de homem, é o seu garbo
altaneiro de soldado,
é a sua erudição profunda de cientista, é o seu
apostolado sereno
de mestre.
 
Antes de me virdes
saudar pela palavra cintilante e generosa do
acadêmico José Boiteux, permiti
que eu vos faça uma confissão:
 
Quando a paixão
pelas artes começou a florir na minha alma em
flor de adolescente, eu sonhei,
com a fantasia a galopar,
percorrendo num minuto os anos e os lustros, feita
uma princesa
louca, de tranças orgulhosas desmanchando-se aos ímpetos do
vento;
eu sonhei que havia ainda de entrar para a vossa
assembléia, numa noite assim,
abençoada pelas hóstias de ouro
das estrelas, com a minha cabeça toda branca e
toda gloriosa.
 
Deixai-me recordar
esse sonho, que eu repeli como um pecado e
que vejo realizado agora de um modo
diverso: porque, se trago a
lembrança vazia de louros fartos a tombarem-me pelo
vestido,
trago, no entanto, a minha mocidade. E, sentindo-a palpitar no meu
sangue e no meu coração de mulher, eu prometo, eu juro — aqui,
na companhia
aristocrática dos vossos espíritos — que, dominando
a formiguinha que tenho
sido, ah! hei de ser, mais do que nunca, a
cigarra ignorante e alada a cantar,
para a alma da minha terra e

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para a ilusão da minha vida; e cantar, escrava de


uma dor
obsidiante ou castelã de uma alegria jovem; e cantar, no encontro
de
mim mesma na simplicidade de um ritmo novo — o velho sonho
da beleza eterna!
 
 
 
Oração da Snha.
Maura de Senna Pereira
 
 
(República 26 de
março de 1930 —  oração pronunciada no dia 24
de março, domingo, em
Florianópolis, no Trapiche Municipal, na
cerimônia de entrega da Bandeira
confeccionada pela mulher
catarinense, ao Destroyer Santa Catarina.)
 
O Berço Histórico
dos barrigas-verdes, que tem dado à marinha de
guerra tão altas expressões de
erudição e bravura, sente hoje a
alegria embebedante da vossa visita, porque
vos abençoa o seu
nome sagrado e foi das mãos suaves das suas mulheres que
recebestes a vossa primeira bandeira —  para os arrojos e para os
surtos
que a sua visão inspira num egrégio e continuado domingo.
 
O berço histórico
dos barrigas-verdes, em que Anita Garibaldi
sonhou, como mulher e como heroína,
o seu sonho de amor e o seu
sonho de epopéia, sente hoje também o orgulho
encantado de
prolongar o gesto que batizou a sua fraternidade convosco.
 
Aqui, na
cidade-menina de Dias Velho, eu, pois, vos ofereço uma
nova bandeira em nome da
mulher catarinense, em nome daquela
que, seja na nossa Jurerê-mirim, adorada e
bonita, ingênua e
gloriosa, ilha enfeitada de espiritualidades quietas, ou nas
outras
ilhas catarinenses na terra esplêndida do nosso litoral ou na nossa
esplêndida terra serrana, seja cumprindo destinos singelos ou
opulentos, tem
sempre a mesma voz de todas as suas irmãs pela
raça e pela esperança, a mesma voz
enternecida e milagrosa que
plasma o coração dos homens, tece a virtude dos
lares e, no
sentido da sua glória suprema, canta junto dos berços...
 
E eu, a
representante da mulher catarinense nesta hora, trazendo
na minha alma a
tertúlia das suas emoções cívicas, a inteireza da
sua sinceridade no meu gesto,
na minha voz a expressão da sua
crença comovida na beleza do nosso devotamento
à beleza integral
da pátria, oferecendo-vos esta bandeira, em seu nome, bordada
por
mãos de renúncia e de piedade que vivem postas diante de Nossa
Senhora
—  sinto que a recebereis com todos os cânticos no
coração.
 
Na sua altanaria
sugestiva e no seu tamanho simbolismo tropical,
vejo-a desde já entre as águas
serenas ou revoltas e as bênçãos
profundas do sol ou os acenos de ouro das
estrelas, alongando as
vossas energias, aformoseando as vossas esperanças,
sendo a
grande musa dos vossos poemas de trabalho e de força, ó nobres
marinheiros do Brasil!
 
Confiando-a,
portanto, à vossa guarda e à vossa defesa, evelo o
sentimento coletivo da
feminilidade de Santa Catarina: servos do
seu encanto, haveis de endeusá-la num
culto de devoções perenes.
Ela, a bandeira generosa, dar-vos-á, como a sua
melhor graça,
como dá a todos os brasileiros de boa-vontade, através das
glórias
que recorda e dos apelos que encerra, o ânimo para aquelas
dinamizações
vitoriosas e puras que devem consolidar o esplendor
nacional e corresponder,
numa lealdade faceira, aos uivos de luz
que vivem na extensão morena e poderosa
do Brasil.
 
 
Uma poeta em corpo
a corpo com a vida
 
(Entrevista
concedida por Maura, no Rio de Janeiro, a Colaca
Grangeiro e Silveira de Souza.
Publicada em Cultura, Florianópolis:
FCC, julho/1990)
 
Maura de Senna
Pereira é a maior expressão feminina da poesia
catarinense. Talento reconhecido
por todos que acompanham a
produção literária no Estado, ela ocupa essa posição
há mais de
seis décadas, levada pela força de sua poesia, pelo brilhantismo na
atuação como jornalista, pela gana e coragem com que rompeu as
barreiras
conservadoras da sociedade da época em que viveu em
Florianópolis. Poderíamos apontar Maura, também, como uma das
pioneiras do feminismo em
Florianópolis, na década de 20. Quando
era possível às mulheres ainda um
inexpressivo e subalterno lugar
na sociedade, Maura, impulsionada pela
precocidade de seu talento
e também pelas necessidades econômicas da família,
era uma
mulher que tinha vez e voz.
 
"Fui uma moça
rebelde e uma menina sofredora", assim ela
sintetiza sua biografia. O
sofrimento e a inquietação plasmaram e
continuam ainda a marcar a personalidade
dessa que foi a primeira

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mulher a ingressar na Academia Catarinense de Letras e


uma das
acadêmicas pioneiras na América do Sul.
 
Quando mudou-se
para o Rio, Maura soube e pôde conduzir-se com
destemor e sabedoria, sendo uma
catarinense que se destacou nos
meios intelectuais da antiga Capital Federal,
pela beleza e
densidade de sua poesia e pela força marcante das reportagens e
colunas que publicava nos jornais cariocas, como Gazeta de
Notícias, A Noite,
Manhã e outros. Contemporânea de Graciliano
Ramos, Carlos Drummond de Andrade e
outros expoentes do
jornalismo e da literatura.
 
Devotada
infinitamente àquele que elegeu como grande amor de
sua vida —  o
professor e escritor Almeida Cousin —, Maura não
teve filhos e permanece
morando no Rio, num apartamento
localizado no Leblon. "Hoje eu não tenho
mais preocupações
econômicas, mas a nossa vida mudou totalmente depois que ele
sofreu o acidente". Maura se refere com angústia às dificuldades
 
que ela e seu amado
enfrentam desde 1978, quando Cousin foi
acidentado e, em consequência disso,
sofreu um derrame cerebral.
São outras temíveis contendas que a nossa valorosa
escritora
continua a travar. Com bravura. Ela não recua. E foi com muita
simpatia que ela e o professor Cousin receberam o escritor Silveira
de Souza e
a jornalista Colaca Grangeiro em sua casa. Eles
passaram quatro horas juntos,
pois foram também convidados para
um jantar no Real Astória, restaurante
familiar do casal e que fica
próximo do prédio onde moram. Aliás, junto dali
está também a
livraria e editora Taurus, onde Maura convive há muito tempo. É

que ela edita seus livros e também, com frequência, expõe nas
vitrines os
livros dos autores catarinenses que recebe.
 
Participante,
ativa, mulher bela e brilhante, Maura de Senna Pereira
construiu uma vida de
amor; uma vida que é, sem dúvida, uma
rara peça da poesia brasileira.
 
C —  No livro
do Lauro Junkes ele fala que "desde criança a Maura
manifestou, mesmo
antes de saber ler, gosto pelas estórias que sua
mãe sabia tão bem contar. E já
no curso primário suas composições
despertaram a atenção, revelando sempre
talento esclarecido.
Cursou a Escola Normal Catarinense e em seguida iniciou
dupla
carreira: do magistério e do jornalismo. Obteve com destaque, por
concurso, as cadeiras de Português e História na Escola
Complementar de
Florianópolis". Então, nós gostaríamos de voltar a
esse período e que você
falasse sobre ele.
 
M —  Ele
acentua ali que minha mãe sabia contar estórias. É
verdade, mas isso não influiu
na minha parte literária. Isso me
encantou como criança. Eu achava que ela, a
minha mãe, sabia
empolgar e encantar qualquer criança, porque não só ela
repetia
esses contos universais de Grimm e outros contos universais. Ela
inventava também. Ela sabia manejar com crianças, também com
cantigas. Mas era
só nessa parte. Minha mãe sabia encantar o
cérebro infantil. Tanto que eu a
chamava de minha adorável e
querida Sheherazade. Passou daí, nem ela nem meu
pai tiveram
influência.
 
Eu aprendi a ler em
15 dias e um dia uma colega chegou e disse:
"mamãe falou que tu tens o
diabo no corpo". Gente da Igreja
presbiteriana, onde eu lastimo ter sido
criada. Eu aprendi a ler
numa escola americana, que funcionava junto à igreja.
Eram
mulheres sádicas, as professoras. A diretora era uma americana
nata e as
professoras —  uma, a senhora do Laércio, D. Josefina. Vi
muita coisa que
ela fez com as crianças que não pagavam. Como eu
pagava, era diferente...
 
C — Tinha outro
tratamento?
 
M —  É. Bom,
porque em dois anos que eu passei lá eu fiz quatro.
Tanto que eu digo que fui
marcada e esta marca não me favoreceu.
A educação era rigorosa como já foi,
como às vezes ainda é, mas
sem aquelas coisas da antiguidade, de palmatória,
isso não havia
lá. Não havia mas machucavam bastante as crianças quando
pegavam
as crianças... Eu sei que eu entrei, o meu pai me
matriculou lá e tudo isso. E
o que era para comprar ele comprou e
eu levei. Me ensinavam com brinquedos,
pauzinhos, a gente
aprendia matemática assim. E olha, se aprendia muito bem
matemática!
 
Isso no começo, não
é? Depois eram aqueles cadernos. Havia dez
cadernos com problemas que só
engenheiros muitas vezes podiam
fazer. Era muito bom. Parece que elas tinham lá
um curso no
Mackenzie. Havia uma professora que eu achava inteligente, que
era
essa dona Josefina. Ela que ensinava a ler. A gente se reunia e
ela ia para a
pedra e fazia com letras de forma as letras —  primeiro
as vogais, depois
as consoantes, assim, as mais fáceis, as labiais...
Não sei qual era o método,
mas eu aprendi com facilidade. Meu pai

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costumava trazer as revistas para casa e


reunir a gente para ler as
histórias de Chiquinho e tudo isso...
 
"Eu me sentia
muito ligada à terra,
com os elementos da
Ilha.
Era com eles que eu
queria navegar".
 
C —  Mas as
composições despertaram a atenção. Já no curso
primário, não é?
 
M — Sim. Já no
curso primário.
 
C —  Como é
que era Florianópolis no seu tempo de aluna da Escola
Normal?
 
M —  Era uma
mentalidade lamentável! Professores não, tanto que
eu posso me orgulhar quando
me perguntam quantos cursos de
doutorado eu tenho. E eu digo assim: não, eu não
tenho nenhum
doutorado, mas eu fui aluna de Barreiros Filho, de Altino Flores,
de
Henrique Fontes e eles me ensinaram muito bem como ensinaram a
toda a classe.
Agora eu tinha essa inteligência aberta, esta
precocidade que eu tenho que
reconhecer. Eu era muito nova e já
tinha pensamentos que ninguém sabia que
pensamentos eram. Eu
não tinha coragem de dizer na frente do meu pai, da minha
mãe...
O conservadorismo era total. Eu me sentia muito ligada à terra,
parecia
assim que os elementos da ilha, era com eles que eu queria
navegar. Os humos, o
esperma dos bosques, a força do sol, tudo
isso. Eu tenho até um poema que eu
nem sei se publiquei, porque
era um pouco ousado. Em todo caso...
 
C —  E a Maura
era então mulher liberada, que vivia além daquela
época?
 
M —  Eu fui
liberada e fui além da época. Acontece que, apesar de
tudo isso, eu fui, por
exemplo, escolhida para a Academia
Catarinense de Letras, pela totalidade dos
membros. Não havia
ainda mulher na Academia e eles me escolheram. Eu não gosto
de
academias. Academia para mim é coisa liquidada. Academia não
existe. Eu te
disse logo, não foi? (Dirigindo-se para Silveira de
Souza).
 
C —  É, foi
sim. Eu recebi até um puxão de orelhas quando fui
candidato.
 
M: Não,
absolutamente! Isso não. Até agora você está bem,
compreende? Agora, para o
Hugo Mund Júnior, eu disse a ele: se
você quer, eu mando o voto, porque se
trata de Hugo Mund Júnior.
Mas você está pleiteando um cargo que você já
ultrapassou com os
seus livros. Eu ia até mandar para ele uma coisa que eu li
contra a
Academia Brasileira de Letras. Que é outra coisa! Agora, uma
grande
amiga, Nélida Pinon, entrou para a Academia, a terceira
mulher a ingressar. E
eu recebi de um fã, um critico que é cearense
mas está em Nilópolis, uma coisa
bonita. Todo enfeitado, dizendo:
"A terceira mulher na Academia depois da
Raquel e da Lygia". Ele
queria que eu me candidatasse. Então, quando eu
digo que sou
contra a Academia, eles dizem: "mas você é da Academia
Catarinense"... Mas eu não era gente, eu não era gente quando
entrei lá.
 
C —  Por quê?
 
M —  Eu era
muito nova. Tinha 18 anos quando fui eleita.
 
C —  Mas por
que a Academia resolveu escolher a Maura?
 
M —  Resolveu
escolher como uma glória. Não tinha mulher
nenhuma lá.
 
C: Ela não
pleiteou. O convite veio de lá.
 
M: Eu não pleiteei.
Nessa ocasião eu ainda não tinha livro
publicado. Eu já escrevia nos jornais,
porque começou com
composição no Grupo. Muito bonita, muito bonita! Foi pra mão
do
Diretor. Dizem até que chegou às mãos do Governador. Depois um
tio meu,
irmão de minha mãe, Júlio Régis, começou a publicar
muitas coisas minhas, até
cartas. E outros fatores, por exemplo,
começaram a sair coisas que eu escrevia,
em prosa, até na revista
Fon-Fon. Sabe como? o Mário Pope, um dos
diretores da revista,
era alto funcionário de um Ministério, foi pra
Florianópolis a serviço
e conheceu o que eu escrevia todos os dias —  uma
espécie de
soneto —, assinado na República, jornal do Adolfo Konder. Ih, meu
Deus, aí eu era criança à beça, nessa época do Adolfo!
 
C —  Seu
primeiro livro foi o Cântaro de Ternura?
 
M —  Cântaro
de Ternura, com capa do primeiro marido da Cecília
Meirelles. Foi, aliás,
muito doloroso. Duas coisas que para mim me

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

trouxeram a maior dor —  a


morte de meu irmão Carlos. Um rapaz
belíssimo, másculo, que morreu no mar. A
partir daí o mar, para
mim, perdeu o encanto. Isso não foi na nossa Ilha, mas
ao norte do
Estado. E outra, uma conversa que ouvi de meu pai. Eu era menina
e
estava gripada e ele falava de uma coisa que herdamos na família
—  muita
gente tuberculosa. Isso me entristecia muito porque,
quando a gente tinha
qualquer doença, já chamavam o médico e
pensavam que a gente ia morrer. E houve
muitas mortes na família,
causadas por essa doença. Minha mãe morreu de
pneumonia, meu
irmão Roberto, meu tio. Quando eu tenho uma gripe eu tenho
medo.
 
C —  Você teve
uma formação religiosa?
 
M —  Eu não
quero mais frisar esta história do nada. Porque eu digo
que sei que volto para
o nada, onde eu existia antes de nascer.
Ninguém é nada. Ninguém é... NADA.
Nasce, é uma criatura, e
quando morre, volta a ser aquilo que era antes de
nascer. No meu
poema do "Pré-Retorno", que está no Busco a Palavra,
eu falo sobre
isso. Aí também é religião. Agora eu sempre digo que o Deus
protestante é pior do que o Deus católico, porque, meu Deus, que
Deus ruim!
Aliás, eu também falo da Bíblia nos Poemas-Estórias:
Nascida em Santa Catarina nela estou plantada / E tenho ainda a
glória de amar e ser amada / Porque a
quem eu amo mais quero
ainda.../ Extremosos, mas infância triste / com
irmãozinhos mortos
e a Bíblia sempre em riste / Aprendi a ler quase brincando /
e logo
me puseram numa classe, num concurso!...
 
C —  E o que
levou você a sair de Florianópolis?
 
M —  É que
houve um erro. A gente é mulher, não é? E tem dessas
coisas... Coração... Eu
casei. E não foi um grande amor, mas eu
casei. Erro maior do que casar foi ter
ido para Porto Alegre.
 
C —  Então,
primeiro tu foste para Porto Alegre?
 
M —  Eu fui
para Porto Alegre, em virtude do casamento. Ele era
um sujeito que não
prestava. Mas, de qualquer forma, eu nem
queria casar com ele e nem ir para
Porto Alegre, mas... pensava...
também levada pelo sexo...
 
C —  Ele
chegou a Florianópolis com a Revolução de 30?
 
M —  Não,
depois. Ele se dizia amigo do general Ptolomeu e estava
de passagem. Ele já faleceu.
Ele não prestava e prejudicou a minha
família porque eu trabalhava para a
família. Criança, e eu já
trabalhava para a minha família. Ele estava longe de
ser o meu
tipo. Longe! Depois ele me contou que por ocasião de uma
manifestação
no 5 de julho, onde eu ia falar —  também porque eu
sempre falava —,
presidida pelo Nereu Ramos, ele leu o que
escrevi. E comentou: "mas esta
senhora aqui, como escreve bem!".
E responderam: não, não é uma senhora, é
uma moça, olha ela vai
passando lá"... Eu não dava a menor bola, mas
começou assim. Ele
olhou, gostou do tipo, procurou saber onde eu morava e
começou a
levar flores. Eu casei e não quis ir com ele para Porto Alegre. Ele
teve que assumir um cargo lá. Eu fui depois, para atender a minha
mãe que
dizia: "minha filha, eu não quero ter uma filha apartada"
(era como
chamavam a mulher que se separava). Agora, aquele
homem era um hipócrita, um
demônio de ciumento. Eu acho que
era doença. Ele funcionava com dois
revólveres. Sim, os revólveres
estiveram apontados para mim muitas vezes. Sabe
que quando eu
fui para lá eu percebia qualquer coisa, acho que algo profético
(eu
tenho dessas coisas) e não pedi exoneração. Eu era lente de
português e
história na Escola Complementar, fiz concurso e não
queria deixar um cargo que
me custou muito estudo. Mas ele fez
tudo para me tirar de lá e eu disse não,
exoneração não.
 
C —  Quantos
anos você ficou casada?
 
M —  Ah, muito
pouco tempo! Eu aproveitei a ausência dele e daí...
O Rio de Janeiro me fez
mudar por completo do que eu era em
Santa Catarina.
 
C —  Quando
foi o primeiro contato com o Cousin?
 
M —  Foi ainda
em Florianópolis. O Cousin era amigo de um parente
desse governador que morreu,
o Pedro Ivo. Ligado aí a um jornal,
tudo isso... Então ele me mandou o
Anacreonte por esse rapaz e eu
dei uma nota no jornal, que o Nereu Ramos me
dava esse espaço
aí. Todo domingo eu publicava literatura. Então dei também uma
notícia do livro com um elogio merecido. Depois eu mandei a ele o
Cântaro de
Ternura. Ele aí elogia e me diz assim: "Me mande o seu
retrato".
E publicou na capa da revista Vida Capixaba, que ele
dirigia. Era uma revista
social, muito bonita, lá de Vitória. Aí
quando eu recebi a revista, ele me
convidou para publicar trabalhos
e eu sempre digo que foi a página mais bonita
que ele já escreveu.

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Sobre a minha literatura, dizendo: "Tu que escreves,


excitas os
homens e estudos"...
 
O primeiro encontro
foram os dois retratos. No Rio nós nos
encontramos na Livraria José Olympio,
quando eu vim morar aqui.
Nesse dia ele ficou tão contente de me encontrar,
porque ele tinha
gostado muito do livro —  gostou mais do retrato, este
dormia com
ele, em cima da cabeça dele. Então ele gostou muito do encontro e
convidou-me para jantar. De vez em quando eu percebia que ele
estava me olhando.
Por que me olhas? Eu perguntei. "É enlevo,
surpresa". Eu disse: não
há mais surpresa, porque você já sabia
quem eu era. "Eu sabia que eras
lindíssima como tu és, mas não
sabia que eras uma menina". Menina? Eu,
menina, trabalhei para
meninos. Me olha bem. "Não, mas tu és muito criança
e tens um
jeito de falar... Eu que não sou comunicativo, que não sou
conversador, como tu tens graça.,." Diz ele, eu não lembro —  eu
guardei um pedaço do vestido que eu usava na ocasião, como
lembrança daquele
encontro —  que eu estava com um chapeuzinho
que me deixava com cara de
boneca. Eu já estava trabalhando,
fazendo reportagens quando nos encontramos.
Eu sempre quis ser
independente.
 
"Não gosto da
subliteratura. É preciso que haja a seiva da boa
literatura para eu aguentar".
 
C —  E como
você teve coragem de casar de novo?
 
M —  Casar de
novo? Unindo-me. Sem formalidade, Ele estava
livre, desquitado, eu não. 0
Nelson Carneiro sempre com muito
medo dos padres e das damas que têm dez, vinte
amantes, mas
não querem o divórcio, porque assim tá tão bom pra elas...Cousin:
Só muito depois é que veio aí o divórcio, muito malfeito, não
olhando para
essas circunstâncias todas.
 
Maura: Foi sempre
uma parte muito política. De qualquer forma,
precisa muita coragem. Mas todo
mundo respeitou. As minhas
irmãs diziam que eu tinha casado na Embaixada e eu
achava graça.
 
C —  Quando
chegou, você logo se integrou na vida intelectual do
Rio, ou foi
gradativamente?
 
M —  Foi
gradativamente, mas primeiro no meio jornalístico. Por
exemplo, meu
conhecimento com o Jorge de Lima foi jornalístico.
Eu tive idolatria pela
poesia do Jorge de Lima. Ele foi diretor da
Assembleia Legislativa e houve
exposição de livros femininos. Eu
tinha feito o meu primeiro Poemas do Meio-Dia
e levei para lá. Eu
levei fotógrafo, tirei uma fotografia dele e de aspectos da
exposição
e ele pegou o meu livro, que tinha uma forma diferente — 
reproduzia a letra da gente. E quando ele viu o meu livro, viu que
era poesia
moderna. O Jorge de Lima quis ficar. Isto foi uma honra
para mim. Então, eu o
conheci assim, nessas reuniões literárias,
porque a gente aqui no Rio tem
reuniões literárias boas, altas e tem
também da subliteratura —  são os
que mais trabalham. .. Eu não
gosto. Me sinto mal.
 
É preciso que haja
aquela seiva da boa literatura para eu aguentar,
Tem gente à beça aí, É a
Academia de Letras do Modesto Abreu, do
Estado do Rio de Janeiro. Ele fez o que
podia, não é? Ele me botou
como sócia honorária, o Cousin também. Agora de vez
em quando
ele fazia assim... me botou como efetiva. Eu disse: não, Modesto,
eu
pertenço à Academia Catarinense de Letras. Não farei como
Oliveira e Silva
—  porque eu nunca vi um sujeito mais descarado.
Eu, pessoalmente, me dou
muito bem com ele, mas houve uma
exposição de livros de autores juristas e
literatos —  "Entre a Toga e
a Lenda" —, e eu recebi o livro
dele. Olha, que ele entrou para a
Academia Catarinense de Letras, publicou
livros lá, casou com uma
catarinense e não tinha uma palavra na biografia dele,
feita por ele,
a respeito de Santa Catarina. E eu sempre o achei medíocre.
Aliás,
lendo numa ocasião um estudo, ele está catalogado como medíocre
e está
muito bem.
 
C —  Maura,
você sempre foi uma mulher assim, sem meias-
palavras?
 
M —  Bom,
procurava ser.
 
C —  Isso
dificulta as relações?
 
M —  Ah!
Dificulta e como dificulta! Tinha mulheres pavorosas,
muitas minhas amigas...
 
C —  Você
sentia o preconceito, no seu meio em Florianópolis, mais
por parte das
mulheres?
 
M —  Das
mulheres, mais. Desde os tempos da Escola Normal. A
respeito de quem se
sobressaía. Porque eu fiz o curso todo com
distinção.

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
C —  E aqui no
Rio?...
 
M —  Aqui no
Rio foi tudo muito bem. Eu fiz aquilo que eu quis.
Porque a época já era outra,
não é? Foi tudo muito bem. Aliás, eu
não pleiteei nada. Eu era convidada para
fazer parte das
sociedades. Eu sempre falei muito também, muito discurso, muita
palestra, muita iniciativa. Fiz muita coisa. Através do Centro
Catarinense e
através mesmo da literatura no Pen-Club e tudo isso.
O Pen-Club foi um dos meus
palcos. Quando cheguei aqui, um
grupo de escritores me ofereceu um almoço e me
convidou para ser
secretária da revista Esfera. Era uma revista de cultura e
arte muito
bem feita. E eu fiquei trabalhando ali e me dando com muita gente.
E, nesta revista, eu escrevi o poema "Quero ajudar a construir",
que
era um poema que o Drummond gostava muito.
 
Este foi o poema
que me abriu as portas, porque o Drummond ficou
entusiasmado, quando ele viu o
poema na Revista. E o Drummond
quis me conhecer. Então ele me disse:
"Olha, Maura, foi uma das
coisas que me agradaram imensamente. Seu poema
"Quero
ajudar". Eu quero ver se encontro poemas desse nível que eu
quero
fazer uma antologia sobre poesia social boa". Eu acho que ele não
era fanático. Ele entrou lá no Partido Comunista e depois se
decepcionou,
porque tem que se decepcionar. Eles aqui foram uma
coisa! Agora este que estava
disputando eleições, o Roberto Freire,
tem sido maravilhoso, mas eu não quero
participar mais da política.
 
"O amor
começou com ele, Cousin. Porque ele é o grande amor na
minha vida, na nossa
vida".
 
C -Você chegou a
pertencer ao Partido Comunista?
 
M —  Cheguei.
Depois eles erraram de tal forma que a gente
descobriu que o Stálin foi um
tirano, um dos piores... Ah! os
anarquistas, isto é, uma ala muito boa, muito
boa. Mas acabou
porque aquilo vinha da Espanha, da Itália. Eu li muitos livros
socialistas. A literatura toda.
 
C —  Você se
desligou quando do Partido?
 
M —  Não, eu
não cheguei a me desligar. Foi assim, suavemente,
acabando. Começou depois da
gente saber daquelas denúncias
todas a respeito da tirania do Stálin. Numa
ocasião, um poeta que é
critico, e estava lá no Partido, disse: "Maura, há
uma tarefa:
escrever sobre Stálin". Eu ouvi. É tarefa... Ele até parece
que não
falou mais nesta coisa. Mas eu não escrevi. E sei que, se eu
escrevesse
—  era para um concurso —  o meu poema ganhava. Um
poema a que dei o
título de "Morte e Eternidade". Não tem nada de
Stálin, está claro?
Porque aquilo foi um monstro. E ainda hoje estão
descobrindo coisas. De modo
que eu tive uma passagem que foi
desagradável. Mas é a experiência na vida,
sabe? Porque eu não
tenho nada do que me envergonhar. Eu perdi um livro — 
A
Socialização da medicina —  que foram reportagens publicadas no
Correio
do Povo, em Porto Alegre. Esse livro estava quase pronto e
foi apreendido por
problemas políticos, durante o Estado Novo.
Olha, eram reportagens tão
apreciadas que me chamavam de
doutora.
 
C —  O Parto
sem dor é um livro de reportagem também?
 
M —  Foram
seis reportagens que eu fiz quando a Maternidade
Clara Basbaum começou a
adotar. Aí eu assisti tudo, vi uma moça
entrar para a sala de parto e voltar
sorrindo. Tirei uma fotografia
dela. As reportagens foram feitas aqui no Rio,
na Noite.
 
C —  Em 64
você estava atuante no jornalismo aqui no Rio?
 
M —  E Cousin
também. Ele foi cassado, mas teve muita coragem.
 
Cousin: Foi uma das
minhas glórias, maior de todas. Não que eu
me metesse muito não. Eu ficava mais
com os comunistas. Lá um
tempo, me deram uma tarefa e eu não concordei com
aquilo e não
fiz. Maura: O Partido aqui foi uma coisa tremenda. Quem
participava, via. Não servia. Eu não aguentava.
 
C —  Uma
estrutura autoritária, você achava?
 
M — Não era só
autoritária, era desorientada, gente boba, muita
coisa. As mulheres piores, mas
os homens também. Por exemplo,
assim: há uma tarefa. "Hoje eu não posso,
eu vou jantar". "Ah!
Você janta?" Um cinismo! Antes mesmo de
saber de Stálin, eu já
estava decepcionada pela atuação dos comunistas. Na
hierarquia,
cheguei ao distrital.
 
C —  Maura, e
a questão do amor, que é fortíssima na sua poesia.
Fale um pouco dela.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

M —  O amor
sempre entrou em prosa de uma forma limitada. Era
uma mocinha catarinense que
tem um namorado —  a linha
romântica —, não propriamente romântica, mais
pra moderna, mas
sem ser poesia. Começou com ele, Cousin, porque ele é o grande
amor na minha vida, na nossa vida. Cousin: O primeiro encontro
foram os dois
retratos...
 
Maura: O paizola
(N.R.: referindo-se a Cousin) me achou tão
menininha, tão criancinha. Eu, que
tinha sustentado uma família,
ser criancinha? Ele sempre tem pena disso e diz
que esta é a
origem das minhas ideias  atribuladas, socialistas... Eu, com 17
anos, fui chefe de família. Imagine que eu era mocinha quando meu
pai morreu
antes de eu fazer a prática —  era uma etapa
pedagógica, após o término do
Curso Normal. Estava fazendo isso
quando ocorreu a morte dele. Súbita. De um
furúnculo que o
médico operou e infeccionou. E perdemos o pai de um momento
para outro. Minha mãe ia ter o nono filho. Ela tinha um filho por
ano. E
assim...
 
C —  Você era
a filha mais velha?
 
M —  Não. Eu
não fui a mais velha, eu fui a quinta.
 
C — E você se
sentiu então na responsabilidade de assumir a casa?
 
M —  Não, não
é que eu me sentisse, todos sentiam isso,
compreendeu? Não havia a menor
consideração para com o coração
de uma criança. Eu era uma criança! Não digo
que fossem os pais,
a família, que quisesse isso. E havia como que um riso
satisfeito da
parte da sociedade com o meu caso. Trabalhando para uma família.
Eu lecionava muito. Era professora de manhã, à tarde e à noite, no
Instituto
Comercial de Florianópolis, que meu pai tinha fundado.
Ganhava por aula e tinha
que dar aquele dinheiro à minha mãe.
Lecionava também na Escola Complementar.
 
Agora, na Academia
eu nunca trabalhei. Só uma vez. Uma única
vez. Eles me botaram lá. E eu tinha
dito que trabalhava, passava
noites, sessões penosas de estudo, que eu não
podia estar
frequentando, não tinha vestidos bonitos para ir às reuniões: que
eu andava até muito mal vestida. O Adolfo Konder, quando me
conheceu disse para
D. Isaura Lobo: "É uma garota extraordinária,
mas tão
mal-vestidinha..." E ela disse: "Ela trabalha para a família.
Quando
retarda aqui o pagamento, ela vai, aquela moça vai com os
homens para receber
um dinheiro. Ela fica na miséria". Até havia
mulheres que diziam: "Mas
todo mundo precisa..." Era assim. Mas
eu lembrava dos meus irmãos, tanto
que tenho ali "Arcanjo com
Fome", que foi algo que me ficou daqueles
tempos, sabe? A gente
não esquece. E, por isso, esta foi a causa de eu ter
simpatias pelo
comunismo. Antes, quando eu li a primeira vez um livro
socialista,
foi na época antes de casar...
 
C —  O que
aconteceu quando você leu?
 
M —  Quando eu
li "errado o homem que diante de um palmo de
terra disse pela primeira
vez: isto é meu". Eu me senti assim como
que batizada. E desde essa época
eu me tornei participante. Quanto
à Academia, eu respeito aquilo, estou lá, mas
nunca trabalhei pela
Academia. Diz aí o Lauro Junkes (N.R.: aponta para o Busco
a
Palavra), levado por uma informação do Theobaldo (N .R.:
Theobaldo Jamundá),
que eu trabalhei muito pela Academia.
Jamais, jamais. Nunca! Eu entrei lá,
muitas flores, muito elogio,
muita coisa levaram a publicar aqueles discursos.
Muito bem. Mas
os discursos foram lidos, não é? Eu falava até no meu pai. Na
noite
bárbara de fevereiro. Sim, porque eu estava com uma angústia
enorme.
 
De repente, entrou
a dor e aflições de todo o jeito na minha casa.
Eu não podia esquecer. Nesse
próximo livro, Arcanjo com Fome, eu
faço uma pequena história de Ondina, pois
eu gosto muito do nome
de Ondina, que eu queria para Florianópolis, como quis o
nosso
grande escritor... aquele de Canasvieiras... o Virgílio Várzea. Ele
queria, até datou para Cruz e Sousa: Ondina, data. Depois foi para
Hercílio
Luz, etc. Que eu também não gosto dele. Carmem Luz foi a
mulher mais linda que
eu já vi. E a família, aqueles rapazes todos
foram muito atenciosos comigo,
sabe? Mas o pai, o pai... Até um
cunhado dele —  o marido da irmã — 
cortou as relações com ele
(Hercílio Luz). Ele pedia que ela, D. Sinhá Pequena,
o perdoasse e
ela nunca perdoou, porque o marido dela havia sido fuzilado. Fez
ela muito bem. Porque foi Hercílio Luz, foi aquela política que
venceu com
Hercílio Luz que deu o nome de Florianópolis,
justamente do ditador que mandou
Moreira César para lá liquidar os
catarinenses. Eu como conheci morreram
fuzilados! O pai da Dona
Gillette…
 
C —  E você
tinha essa consciência política, no momento em que
vivia em Florianópolis?
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

M —  Eu tinha
imprecisa.
 
C —  Mas tinha
uma inquietação?
 
M —  Ah!
Inquietação eu tive sempre. Uma inquietação que me
levava a escrever, etc.
Então, os homens em geral e importantes — 
eram aqueles homens que
formavam a Academia, eram os mais
intelectualizados da época —, eles é que me
escolheram porque
liam as coisas minhas e elas não se limitavam a Santa
Catarina. Os
grandes de Santa Catarina sempre foram meus amigos. Tanto que
eles
é que tiveram a iniciativa. Eram homens. A Academia era de
homens. Eu conto
isso também num poema que aquela moça da
Universidade, a Zahidé (N.R: Zahidé
Muzart) que me pediu um
trabalho que fosse um depoimento e eu mandei em forma
de
versos: "Entre Jerônimos ilustres". Jerônimo Coelho, a rua onde eu
nasci e Jerônimo Monteiro, que eu acho que aqui eu vou morrer.
 
"Eu sonhava
porque eu era perseguida. Ah! Eu era perseguida lá".
 
C —  Maura,
você nunca tentou outras formas de escrever? A
ficção, por exemplo?
 
M —  A ficção.
Pois é, nesse próximo livro —  não é ficção, mas não
é só poesia —, é
prosa e verso, tem a Andarilha da Noite. Foi um
sonho que eu tive r-e-a-l.
Eu conto o sonho como eu tive. Esse
sonho vinha me perseguindo desde
Florianópolis. Sabe,
Florianópolis tem aquelas ruas bem estreitinhas e eu
sonhava
porque eu era perseguida. Ah! Eu era perseguida lá. Era, sem
dúvida.
Mas então vinha em forma de sonho. Eu percebia que era
uma interpretação da
minha vida. Era sempre noite, eu não sabia
quem era e andava por aquelas ruas e
virava esquinas e não sabia
que lugar era aquele. Era assim. Começou ali.
Depois acordava e
não pensava mais naquilo.
 
Agora este sonho
que eu tive há dois anos originou a Andarilha da
Noite. Eram aquelas ruas, as
casas fechadas, ligadas umas nas
outras, casas dos dois lados da rua estreita.
Eu andava, virava, era
outra rua; as casas a mesma coisa. E não encontrava
ninguém e
nem era possível, porque eu não sabia quem eu era, não tinha
identidade. E também não levava nada nas mãos e tinha a
sensação de toneladas.
Este sonho explica muito a minha vida. E,
de repente, me vejo numa praia
extensa e o mar, assim, da minha
altura, e eu fiquei com tanto medo e disse:
ah!, se eu pudesse
voltar para perto daquelas ruas, pra andar naquelas ruas! Eu

estava com saudades daquelas ruas e elas não podiam fazer nada
por mim.
 
E assim eu estava e
dizia: o mar vai me acabar. Isto era porque
meu irmão morreu no mar e esta é
minha maior dor na vida. Esse
foi nosso segundo luto; eu tive um desgosto muito
grande e ele
produziu o Cântaro de Ternura. Um vizinho nosso, muito nosso
amigo, chamado Ênio, ficou muito impressionado porque eu tive
nesse momento
meus primeiros arroubos de revolta. O que eu dizia
de Deus, da religião e da
dor que eu sofri! Eu não me conformava,
principalmente porque ele pediu
socorro. Então este rapaz —  foi o
rapaz de maior cultura de línguas que
eu já conheci —  ficou
compadecido e disse: "Maura, eu agora vou
procurar te visitar e
levar alguma coisa que te ajude porque você está de uma
forma
que eu estou compadecido, não sei o que fazer". E daí houve aquele
namoro, eu comecei a me sentir fascinada por aquele rapaz
inteligente e fraterno.
Foi justamente inspirada nele que saiu o
Cântaro de Ternura.
 
C -Maura, você
colaborou no jornal de Crispim Mira? Como ficou
Florianópolis depois da morte
dele?
 
M —  A morte
de Crispim Mira dividiu a cidade. Ele era um homem,
um jornalista do qual eu só
posso dizer que me abriu as portas do
jornal dele. Me dava uma seção. Primeiro
a seção —  "La Garçonne"
—  de mulheres. Ele procurou abrir um caminho. Falavam até muito
dele, mas como ele foi lá em casa me visitar
com a senhora dele...
depois até quis que eu lecionasse. A sociedade ficou
dividida. Eu me
correspondia com Dona Si, mãe daquele Coelhinho —  um dos
que
mataram Crispim Mira —, ela até foi muito nobre comigo, porque
finalmente
era mãe, não é? E eu fiquei do lado... A sociedade ficou
dividida. Você não
podia imaginar o que faziam.
 
Eu fiz um concurso
de história e português para a Escola
Complementar. O Barreiros Filho foi o meu
professor de português e
sabia, tinha certeza em tudo o que eu ia responder.
Havia muita
gente para assistir porque começaram a dizer que ninguém se
inscrevesse porque a cadeira ia ser minha, que o Adolfo Konder ia
me nomear e
não foi nada disso. Foi de acordo com as provas.
Diziam assim aquelas mulheres
que pensavam que eram alguma
coisa e hoje eu nem sei se lembram delas. Acredito
que muita
gente foi para torcer contra. O Aquiles Gallotti, que era o
presidente
da banca e o Barreiros Filho me disse umas três ou quatro vezes

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

"bravo" nas respostas da prova oral e ao final falou: "considero


esta
prova ótima e lhe dou distinção na prova escrita", que ele chamou
de
tratado de pontuação.
 
C —  Você
nunca se preocupou com a técnica da poesia?
 
M —  Sempre
foi moderna, não é? Numa entrevista ao Miguel Jorge,
de Goiás, onde ele me
perguntou qual era a melhor hora de eu
escrever um poema eu disse que não havia
hora. Meu processo é
mental. Eu penso, é assim, uma perseguição. O cérebro
sofre uma
perseguição. Ele é que trabalha. Às vezes, muitas vezes até
modifica
o título e tudo, mas em geral quando eu escrevo um
poema ele estava pronto.
Isso é de técnica. Quando no meu
primeiro poema em prosa, todo mundo achou
poesia. Eu tenho
agora o Sonho de Laísa Acordada, que é prosa com rima.
Rima sem
querer, mas em rima. E as rimas caem bem, sabe?
 
"Em geral
quando eu escrevo um poema ele estava pronto".
 
C —  Vamos
falar um pouco desta sua também precoce consciência
ecológica. Seria um amor à
terra, mas também com uma visão da
preservação ambiental. Seria algo mais
intuitivo ou este amor pela
natureza te levou mesmo a pensar nestas questões,
num tempo em
que isso não era uma preocupação?
 
M —  Este meu
amor à natureza foi o meu amor a Santa Catarina.
Nas suas formas, na parte
física de Santa Catarina, nos sumos, na
seiva, naquilo tudo que corre em Santa Catarina. Nos ventos, no sol
que brilha, que passa, foi o que me deu isto.
 
Cousin: Sem dúvida,
essa civilização nossa em 200 anos é capaz de
acabar com as reservas do
planeta. Estivemos muito perto de
acabar com a Terra, com aquele cavalinho lá
do Norte —  o Reagan.
 
Maura: A guerra nas
estrelas? Meu tema é outro: a paz entre os
homens e as estrelas. Isso era
derrogando com o Reagan. Guerra
nas estrelas.
 
C —  Você
poderia mencionar as suas preferências entre os poetas?
 
M —  Eu ponho
Jorge de Lima em primeiro lugar e no presente
Francisco Carvalho, o grande
cearense. Quando eu li eu disse:
Cousin, temos um poeta ao Norte. Foi num
Suplemento Literário de
Minas que li Francisco Carvalho.
 
Cousin: Jorge de
Lima foi um grande amigo nosso.
 
C —  Lorca,
por exemplo, ou Pound, que você cita uma epígrafe...
 
M —  E uma
obra notável aquele trabalho dele ABC da Poesia. Era
um homem muito
interessante. Falando na literatura, biografia,
tudo isso ele diz: os teus
poemas de um escritor são a sua
biografia. Não é preciso mais nada. Mais nada.
O resto, quando
dizem o resto não há sentido. Porque eu acho que tenho contado
a
minha vida nos poemas, nas coisas em prosa, em verso, coisas que
mostram a
tendência para o sonho. (Dirigindo-se para Silveira de
Souza:) Uma coisa que eu
agora estou ouvindo, você está falando e
me ocorre que pela primeira vez nós
conversamos assim. A nossa
relação tem sido, no máximo, pela abertura dos
trabalhos e o mais
é assim, superficial. Não assim tão profunda como hoje,
tanto que
para mim é uma festa. Essas coisas, esses momentos a gente deve
saber
valorizar. O entendimento, a comunicação, essa simpatia. E
como se a gente
bebesse um vinho da simpatia humana, do
entendimento...
 
 
 
 
 
A Saga de Maura
 
(Sobre um
questionário / entrevista do Prof. Giovanni Ricciardi, da
Universidade de Bari,
Itália, Maura de Senna Pereira presta um
depoimento nem sempre muito
confortante sobre sua formação e
seus caminhos pela poesia.)
 
 
Respondendo ao
excelente questionário que me enviou o professor
Giovanni Ricciardi, mestre de
literatura brasileira na Universidade
de Bari, na Itália, o que, antes de tudo,
me cumpre expandir é a
alegria de ver o mesmo demonstrar que literatura é coisa
séria. Por
outro lado, releio, medrosa, perguntas que me farão mergulhar na
minha dolorosa formação.
 
Membro de uma
família numerosa da classe média pobre, com
irmãozinhos mortos, e uma irmã
nascida defeituosa e falecida aos
dez anos, depois que, para seu tratamento,
meu pai houvesse

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

lançado mão de pequena reserva, com a qual sonhou construir


uma
casa. Não posso, pois, regozijar-me de uma infância feliz. Frisarei
ainda o
domínio completo da Bíblia na educação da família, pois
meu pai, antes do
casamento, se convertera ao protestantismo,
seguido de minha mãe, então sua
noiva, e vários membros da
família marcada pela tuberculose. Nossa mesa, porém,
durante a
vida de meu saudoso pai, foi sempre farta, graças ao duro trabalho
dele, exímio contador, ou guarda-livros, como então se dizia, e,
mais tarde,
nos últimos anos de sua vida, também mestre pioneiro
das ciências contábeis em
Florianópolis.
 
Numa carta que me
encantou, enviada de Roma a 20 de abril, o
prof. Giovanni Ricciardi afirma que
meu livro Busco a Palavra lhe
proporcionou a descoberta que fizera em 1989/90:
"Uma grande,
extraordinária poetisa". Palavras que tiveram o
significado de um
prêmio. Devo, pois, fazer emergir das origens o meu perfil,
os meus
verdes anos e as influências que marcaram meus primeiros
exercícios de
escritora.
 
Creio que, nesta
altura, posso afirmar que aprendi a ler em quinze
dias numa escola americana,
que funcionava em salas da Igreja
Protestante e que estava em vésperas de
encerrar suas atividades
em Santa Catarina. Quando meu pai me ouviu ler para os irmãos
menores a revista que ele trazia para casa todas as semanas e lia
para
nós — Tico-Tico —  foi uma surpresa. Foi então que eu soube
que
sabia ler. O meu aproveitamento era prodigioso. Em quatro ou
cinco meses subia
um ano. Nos boletins mensais, foi várias vezes
registrado 1° lugar na classe e
na escola. É, mas o ensino era
principalmente de matemática.
 
Não me lembro de
ter redigido nada nessa época. E, desde que
aprendi a ler, comecei a escrever
umas linhas para mim. Fiquei sem
aulas algum tempo e, nesse tempo, a leitura
diária da Bíblia foi
mais intensa. Certo domingo, um presbítero protestante que
chegara de São Paulo para ser diretor de grupo escolar em
Florianópolis,
professor Gustavo, ao ver meu desembaraço na
escola dominical (interpretações
bíblicas) me perguntou onde eu
estudava. Ao saber que estava sem aulas, pois
meu pai esperava a
volta da escola, cujos métodos achava ótimos, foi falar com
ele e
aconselhou-o a procurar um grupo escolar. O mais perto de nossa
casa era
o G.E. Lauro Muller, que ele dirigia.
 
Fui examinada,
acharam-me adiantadíssima e fui matriculada no
terceiro ano. Integrei-me num
instante. Poucos dias depois D. Rosa
mandou a classe fazer urna composição.
Tema: Uma boa ação. A
boa ação que louvei não foi uma esmola, não foi uma
obediência
bonita. Foi realizada por um soldado aliado que, ao ver um
camarada
tombar, correu para o companheiro caído e, enfrentando
as balas, suspendeu-o
nas costas fortes e conseguiu livrá-lo do
ataque tremendo dos
"boches". Aproveitei uma narração que ouvira
em casa de meu pai e
seus amigos, lembrando episódios da
primeira guerra mundial, em que haviam
torcido contra a
Alemanha. O importante foi o sucesso.
 
A professora levou
meu trabalho ao professor Arlindo. Este me
chamou ao gabinete e me fez
perguntas. "Não, não sei de nenhum
escritor na minha família. Mas meus
pais são muito inteligentes.
Meu pai lê muito, tem livros, estuda e minha mãe
sabe contar
estórias lindas". Ele me elogiou muito.
 
Depois eu soube que
a composição tinha chegado às mãos do
governador. Meu tio Júlio Régis, orador
em mais de uma Sociedade
Cultural e Recreativa no Sul do Estado, vibrou com o
sucesso e
quando voltou para casa me escrevia, eu respondia. Logo ele
começou a
publicar minhas cartinhas nos jornais do Sul, e depois,
os trabalhos redigidos
na escola. Assim, os "Textos Matinais", como
os chamei mais tarde num
poema, começaram a aparecer também
em Florianópolis.
 
Mas, nascida em
1909 na ilha de Santa Catarina, não posso gabar-
me de ter um
"mestre", alguém que me tivesse influenciado. Tio
Júlio descobriu a
expansão de uma inteligência que irrompia
precoce. Meu pai também gostava, mas
o que ele desejava era
minha formatura de professora. A respeito de escritos
meus
publicados, nada dizia. Em entrevista ao "Jornal de Letras" eu
disse,
há poucos anos, que aquele pequeno trabalho era para mim algo
profético.
 
Devo agora apontar
um mestre? Uma mestra? Ei-la: a Bíblia. De
fato, ela imperava. Em casa, na
educação rigorosa. No dever de lê-
la cada dia, estudá-la na escola dominical e,
para os mais crescidos,
à tarde dos domingos, nas sessões da Sociedade Juvenil,
a Bíblia!
Uma inegável influência, sim, mas não nas primeiras redações.
Ainda
me recordo de quando tirei o primeiro lugar num concurso
infantil de versículos
de cor. No poema "Fragmento de
Autobiografia", do livro Poemas-Estórias,
eu lembro: "Disse-os
tantos que me mandaram parar e deram-me, os pastores,
o

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

primeiro lugar. Prêmio maior e primeira decepção, outra Bíblia preta


com a
mesma história do povo Hebreu e seu Deus dos exércitos,
onde havia, é certo, a
poesia (que ninguém mata) e grandiosa
figura do Cristo.
 
Mas a este eles
mataram.
 
Bem; a poesia que
ninguém mata é a grandiosa figura do Cristo!
Eram os pináculos. A transcrição
acima mostra que a fé se acabara
ou, até, nunca existira a não ser nas
palavras. Antes lembrarei que,
na adolescência, meu nome já se expandira muito
não só nos
jornais da terra, mas em publicações dos estados próximos e em
revistas cariocas. Os expoentes intelectuais da terra eram meus
admiradores e
mandaram-me parabéns. E, numa noite do ano de
1927 (eles integravam a Academia
Catarinense de Letras, que era
só de homens) propuseram para sócia efetiva a
senhorita Maura de
Senna Pereira, autora de trabalhos literários de grande
valia.
 
A cerimônia da
posse foi a 30 de novembro de 1930. Eu escrevia
para algumas revistas do Rio e
recebia muitos convites. A querida
amiga escritora D. Acy Coelho, que morara em
Florianópolis e lera
meus primeiros trabalhos com estima e admiração, convidou-me
para hospedar-me em sua casa no Rio de Janeiro. Tratei de ir
durante as férias.
Foi um sucesso. Eu já tinha muitos admiradores e
a grande escritora que me
hospedou ajudou-me muito. Lá recebi
um convite lindo: fazer um recital no
Estúdio Nicolas. Eu ainda não
escrevia versos, mas tinha cem poemas em prosa
para um ainda
sonhado livro. Tive como patronos: Pascoal Carlos Magno, Mário
Poppe, um dos diretores da revista Fon-Fon, embaixador e
jornalista
Diniz Júnior, escritoras Maria Eugênia Celso e Acy Coelho
e a poetisa
Henriqueta Lisboa.
 
Foi uma noite
linda. Muita gente, muitas flores, crônica de Maria
Eugênia, publicada em sua
coluna diária e por ela lida apresentando
a "jovem e bela escritora
catarinense", entrevista a vários jornais e
fotos nas principais revistas,
sendo que Revista da Semana intitulou
o texto-legenda da foto
apresentada: "A princesinha das letras
catarinenses". Antes do meu
regresso (minha ausência foi de
apenas 22 dias), o jornal do governador Nereu
Ramos, que pouco
antes, em discursos, agradecera "a mulher catarinense,
que falou
pela boca peregrina desse talento pagão que é Maura de Senna
Pereira,
cujas mãos eu beijo". Me convidou para dar impressões
sobre meu trabalho.
Eu as dei e concluí: se alguma glória eu
consegui para o meu nome, ela não é
minha e, sim, da minha
estremecida terra. A luta começou naquela fase encantada
no Rio
de janeiro. Falei no recital no estúdio Nicolau, em que declamei
cerca
de vinte dos meus poemas em prosa. Muitos aplausos e, logo,
votos, sugestões de um livro.
 
A grande poetisa
Henriqueta Lisboa, que também patrocinava a
"festa" e gostara dos
meus poemas, acompanhou-me numa visita a
editoras. Concluí logo a
impossibilidade de qualquer contrato: os
preços eram altos para mim. Então,
Maura, vamos ver o que se
pode conseguir na terra. Henriqueta ficou com os
vinte poemas. A
vida era de muito trabalho, mas Henriqueta enviou a bela
ilustração
que o pintor Correalin fez para o meu então sonhado livro Cântaro
de Ternura, onde não pude incluir os cem poemas em prosa, mas
uma parte
deles apenas, e com muito sacrifício, que saiu pela
Editora Livraria Moderna
—  já entrávamos em 1931 e, no ano
anterior, eu fora empossada na Academia
Catarinense, sem livro
publicado, mas os poemas em prosa já mencionados no discurso.
 
Depois de Julho de
31, eu ficara noiva de um gaúcho que estava de
passagem na ilha. Depois de ler
um trabalho meu no Jornal Oficial,
aguardou uma comemoração programada para 3
de Julho, em que
falei, presidida pelo ilustre Nereu Ramos. Pediu a palavra,
dirigiu-se
a mim em primeiro lugar e falou muito bem. —  Parece que era o
único mérito dele. E houve o grande erro. Visita, flores, mentiras. O
noivado
não demorou, o Cântaro de Ternura estava para sair. E saiu
antes do
casamento em 12 de dezembro de 1931. Casamento
desastrado, mas o livro pingando
seiva, tocado pela exuberante
natureza de Jurerê-Mirim. Alegro-me em confessar
que a minha
terra catarinense, engravida as páginas do livro.
 
O lançamento foi
simples. Os Cântaros nas livrarias e nos jornais
com um novo retrato da
autora. E viajando para as mãos dos
amigos e colegas. Não havia ainda
"tardes de autógrafos", criadas
pelo querido "mercador de
livros" Carlos Ribeiro, que tanto me iria
distinguir. Foi um primeiro
livro muito festejado.
 
A curta estadia em Porto Alegre, onde fui morar, em virtude do
casamento, produziu o segundo e terceiro livros: Discursos
e A
Socialização da Medicina. A fase conjugal já estava no fim, pois não
pude mais prosseguir ao lado de um marido errado. Deixei-o e vim
um tempo para
Santa Catarina. A solução, porém, seria outra. Abri
um pequeno curso e dei
aulas para turmas que iam fazer concurso.

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Nessa época, despontaram os versos,


que publiquei em revistas e
suplementos.
 
Logo que foi
possível, viajei para o Rio a bordo do saudoso "Cari
Hoepke". Lá me
alojei numa excelente pensão familiar e comecei a
procurar trabalho como
jornalista. Não demorou muito e comecei a
entrevistar para A Manhã e
trabalhei na revista Vida, além de ser
secretária da revista Esfera,
mensário de cultura e arte. Uma tarde
mágica: encontrei um ilustre amigo na
livraria José Olimpio: sr.
Almeida Cousin, que me enviara para Florianópolis
seu grandioso
livro Itamonte.
 
Mandei-lhe o meu
pequeno Cântaro. Ele pediu meu retrato e
estampou-o na capa da revista
que dirigia em Vitória: Vida
Capixaba. Identidades descobertas, convidou-me
logo para jantar.
Novos encontros e, para resumir, tomou-se meu marido.
 
Ele trabalhava
muito e acabara de fazer um concurso magistral de
História e Literatura para o
Instituto de Educação do Rio. Passei a
morar no apartamento dele. Eram as
noites "amantes". O trabalho
literário prosseguiu. Agora, a poesia
estava desatada, com o tema
amor e a poesia social que surgia. Publiquei Poemas
do Meio-Dia,
pelo editor V.P Brumlich, numa original apresentação gráfica
iniciando a coleção.
 
Logo depois,
publiquei o livro de poesia Círculo Sexto também pelo
Simões. Este  teve
concorrida noite de autógrafos. Foi o meu
grande lançamento. Filas e filas de
escritores e amigos catarinenses
e cariocas. Flores e flores, orquídeas de meu
amor, que chegou
correndo das aulas em Niterói. Telefonemas de gente importante
que não podia comparecer. E, ainda, o gesto que
tanto me comoveu
do ex-professor e desembargador Henrique Fontes, ao meu lado,
à
mesa, sendo saudado pelo escritor e dono da livraria S. José, o
querido
Carlos Ribeiro. Registro nas colunas literárias e foto
expressiva em Gazeta
de Notícias, onde eu já trabalhava, e a
trabalhar continuei: jornalismo
entremeado de poesia.
 
Em 1962, em
Florianópolis, pelas edições do livro de arte, dirigidos
pelos queridos,
Silveira de Souza e Hugo Mund Júnior, saiu meu
cancioneiro País de Rosamor:
Edição de luxo, um primor a vida
nesse reino que apresento desde a minha
chegada a esse país de
sonho e amor. Não fiz lançamento. Tinha perdido a minha
maior
amiga, minha mãe, mas, embora de luto, integrei uma exposição
de
escritores aqui no Rio.
 
Na década de 70,
lancei Nós e o mundo, em 1971, crônicas,
resenhas e artigos publicados
em minha coluna da Gazeta de
Notícias, e A dríade e os dardos,
que ampliou o nome da poetisa e
foi tornado pelo escritor e professor Glauco
Rodrigues Corrêa "livro
texto para o estudo da poesia na UFSC".
Quanto aos últimos livros
(década de 80) são os seguintes: Despoemas
—  Rio, 1980; Cantiga
de Amiga —  Rio, 1981, traduzido para o
inglês; Verbo Solto
(palestras) —  1984; Poemas-Estórias,
1984 —  capa de Márcia
Cardeal; Sete Poemas de Amor — 
Florianópolis, 1985; Busco a
Palavra —  Fundação Catarinense de
Cultura, prefácio de Lauro
Junkes, 1985 —  livro com o qual a autora
conquistou a medalha
Anita Garibaldi e altos elogios da crítica. Capa de Márcia
Cardeal.
 
No próximo livro, a
sair talvez em 1990, A Andarilha da Noite — 
prosa e verso —
serão transcritos alguns artigos da crítica e
opiniões importantes de dois
mestres da literatura brasileira nos
Estados Unidos e Itália: profa. Terezinha
Pereira, então professora
na Universidade de Colorado, USA. e prof. Giovanni
Ricciardi,
professor na Universidade de Bari, na Itália. A autora faz parte de
várias autografias nacionais e participa de três internacionais.
 
 
 
 
 
 
 
ENTREVISTA
CONCEDIDA A MIGUEL JORGE
 
SUPLEMENTO CULTURAL
de O Popular —  Goiânia 31/12/1978
 
 
M.J. —  Para
você o que é poesia?
 
M.S.P —  Para
mim poesia é pensamento ou emoção ou ambos (um
centauro, como disse Ezra
Pound?) expressos com musicalidade.
 
M.J. —  De
quais temas ou problemas se alimenta a poeta Maura de
Senna?
 
M.S.P. —
Principalmente de temas sociais e existenciais.
 

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M.J. —  O
mundo está sendo envolvido por uma capa de vinil, se
materializando dia a dia,
e muitos poetas andam descrentes da
poesia. Você se filia a esta corrente?
 
M.S.P. —  Já
pensei assim, não só pelos motivos que você lembra,
mas também por ver a
supervalorização da prosa, principalmente
da ficção —  e a poesia cada vez
mais alienada, hermética, sem
vínculos com o povo. Cheguei até a solidarizar-me
com um editorial
nesse sentido, estampado num jornal sulista. Hoje não: a
poesia
começa a retornar às suas fontes e de novo acredito na sua
sobrevivência.
 
M.J. —  A
Maura jornalista é diferente da Maura poeta?
 
M.S.P. —  Sim,
é diferente. Jornalismo é profissão, que comecei a
exercer concomitantemente
com o magistério na Ilha de Santa
Catarina. Tempo dos verdes anos. No Rio tenho
sido só jornalista,
trabalhando em vários jornais e escrevendo o que me mandam
e,
às vezes, sugiro: crônicas, reportagens, artigos, tópicos, pesquisas,
comentários —  ligados ao fato, ao dia-a-dia. Fui secretária de
revista e
entrevistei muita gente, principalmente educadores
médicos e cientistas. Três
livros saíram dessa militância diária. No
exercido do jornalismo cheguei ao
colunismo literário e hoje faço
apenas resenhas de livros recebidos.
 
M.J. —  Seus
poemas nascem em algum momento especial, ou em
qualquer resto de tempo que lhe
sobra das atividades jornalísticas?
 
M-P. —  Meus
poemas nascem quando um pensamento quer ser
canto. Eu tenho de ter algo para
dizer e, se a palavra não estivesse
tão desacreditada, eu diria: mensagem. Meu
processo de criação é
totalmente mental. Quando ele aparece escruto, já estava
pronto.
Não há propriamente momento especial. Há períodos de explosão,
outros
de esterilidade. E há os cadernos e cadernos perdidos, já
que só existiram em
meu cérebro. Não grito e calo, não calo e
grito? —  assim inicio meu poema
"Escolha"; Ao final, optei pelo
grito, mas o silêncio, às vezes, pode
ser contundente como um
libelo.
 
M.J. —  Quanto
tempo levou escrevendo A Dríade e os Dardos?
 
M.S.P. —  Em
vários períodos, pois resultou da seleção de poemas
de livros publicados e de
outros que apareceram em antologias — 
além dos inéditos.
 
M.J. —  De
onde surgiu a ideia desse livro? E desse título?
 
M.S.P. —  Eu
anunciara Novos Poemas, inéditos. Mas os demais
livros estavam esgotados
e há, neles, alguns poemas que ilustres
colegas me dão a honra de não esquecer.
O crítico Fernando Góes,
por exemplo, me escreve que ficou feliz ao
encontrá-los em A
Dríade e os Dardos. Quanto ao título: a Dríade
é uma evocação de
Maura em flor solta nos bosques natais. Teresinka Pereira,
professora de literatura brasileira na Universidade de Colorado,
chama-a
"dádiva erótica". Em outro ponto do artigo, ela diz:
"Descobrimos a poeta libertando-se da sensação corporal e
alcançando o
nível cósmico do pensamento ultra-universal . E
descobrimos mais, achamos a
companheira que canta de mãos
dadas com o povo na rua buscando o pensamento do
mundo". É
quando, talvez, começam os Dardos...
 
M.J. —  A
poesia encontra seu caminho novamente? Existem
pessoas interessadas em
descobrir o mundo do poeta?
 
M.S.P. —  Sim,
encontra. Seu livro Inhumas é um exemplo. Sou
uma pessoa presa à minha
terra como uma planta e já abri uma
coletânea dedicada à Ilha de Santa Catarina
com este dístico:
Abraçada ao universo / tendo as raízes em ti. Por isso posso saudar
o canto belíssimo que você dedicou à cidade natal. "Todos
cantam
sua terra". Não, se todos cantassem sua terra —  de tal forma
o
regional o universal se tocam —  haveria um coro de paz. Quanto à
segunda pergunta: Não sei se há pessoas interessadas em
descobrir o mundo do
poeta, mas há poetas interessados em
descobrir o mundo que há de surgir — 
com amor, liberdade e
chances iguais para todos os seres humanos.
 
M.J. —  Seu
livro está tendo mercado?
 
M.S.P. —  Bem,
a distribuição é sempre precária, como se sabe.
Mas ele começa a aparecer nas
livrarias do Rio e de Florianópolis. E
a ser procurado. Agora, o lançamento (27
de julho) foi uma grande
tarde, promovida pela Associação Brasileira de
Imprensa, tendo eu
autografado por mais de três horas e vendido muito.
 
M.J. —  A
crítica tem-se manifestado?
 

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M.S.P. — Posso
dizer que me sinto satisfeita, e até emocionada,
com as manifestações que tenho
recebido —  em artigos, notas,
cartas, referências.
 
M.J. —  Quais
são seus planos para o futuro?
 
M.S.P. — 
Continuar autêntica.
 
M.J. —  Para
você o que é mais importante num poema?
 
M.S.P. —  Seus
dois elementos: a forma e o conteúdo.
 
M. J. — 
Finalmente , você está ligada de alguma maneira à
literatura feita em Goiás?
 
M.S.P. —  Há
muito tempo estou ligada à literatura de Goiás e
admiro a força gregária do
povo goiano, que se reflete nos seus
escritores. Conheci alguns em congressos
nacionais da classe em
Belo Horizonte e Porto Alegre. Entre eles, o grande Bernardo Élis e
minha fraterna amiga Amália Hermano Teixeira. Livros fui
recebendo e minha admiração aumentando. Ultimamente a ponte é
o Suplemento
Cultural que você edita, proporcionando cada semana
ao Brasil —  nas
suas páginas altas onde brilham as estrelas
goianas — uma festa de poemas e
contos, artigos, estudos. Devo
essa aproximação ao ensaísta Nelson de
Alcântara, pernambucano
que adora Goiás e curte os amigos. O Suplemento
Cultural é um
exemplo de trabalho sério e um curso permanente, que muito me
tem ensinado, merecendo de todos nós, leitores, aplausos e
agradecimentos.
 
 
 
 
MAURA DE SENNA
PEREIRA entrevistada por A Ponte
(Florianópolis, 3a semana de março de 1980)
 
 
AP —  De que
forma você participa da Literatura Catarinense?
 
MSP — Eu participo
da Literatura Catarinense pela minha
permanente ligação com a torra natal e
pela divulgação que tenho
feito dos seus valores. Ainda pela seiva que corre em
mim como em
uma planta, o que já me fez explodir naquele canto-epígrafe de
catarinense o cósmica: "abraçada ao universo / tendo as raízes em
ti".
 
AP — Quais as obras
que você já publicou e como o público recebeu
esses trabalhos?
 
MSP — Publiquei
cinco livros de poesia, um de discursos, outro de
crônicas e dois de
reportagens, um dos quais, O Parte Sem Dor foi
best-seller — e tenho
motivos para me sentir satisfeita com a
acolhida da crítica e do público. Devo
mencionar o cancioneiro
"Jurerê-Mirim" (cujos originais perdi em fase
— hélas — em fase
lutuosa de minha vida) e os vários volumes que podiam formar
as
centenas de trabalhos publicados na imprensa. Além, naturalmente,
dos livros
que não saíram do meu cérebro —  já ficando no protesto
do silêncio.
 
AP — Qual a
situação da crítica local diante de seu trabalhe?
 
MSP —  Muito
boa.
 
AP — Você achou
válida a experiência?
 
MSP —  Ser
autêntico é sempre válido.
 
AP —  Como
escritor você tenciona continuar trabalhando?
 
MSP — Vou responder
com uma frase do Maeterlinck:
"Pour reposer
nous avons l' éternité".
 
AP —  Qual o
principal objetivo do autor quando edita sua obra?
 
MSP —  Eu
diria que necessidade de comunicação — um truísmo,
portanto.
 
AP — Seus trabalhos
receberam influência de alguma corrente
crítica propriamente dita?
 
MSP — Devem ter
recebido, mas inconscientemente.
 
AP —  Quanto
tempo você vem atuando dentro da literatura?
 
MSP — O tempo em
que publiquei meus livros e em que forjei os
muitos não publicados.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

AP — Você acha mais


satisfatório editar sua obra aqui ou fora do
Estado?
 
MSP —  Eu
gostaria que todos os meus livros tivessem o timbro, a
chancela catarinense.
Mas tal só ocorreu com dois: o de estreia o
cancioneiro País do Rosamor.
 
AP —  Na sua
opinião, a literatura catarinense que se consome é
igual, inferior ou superior
à literatura feita nos maiores centros do
País?
 
MSP — A atual
literatura catarinense tem pontos altos em todos os
territórios — na ficção, no
ensaio, na poesia, na crítica —  que a
tornam merecedora do respeito
nacional. Inclui ainda a safra dos
novíssimos, que eu coloco entre os melhores
do Brasil.
 
AP —  Como
você está sentindo o movimento editorial catarinense
de agora?
 
MSP- Como um
movimento que se está impondo e que só precisa
ser melhor conhecido. Vemos as
numerosas obras publicadas pelo
Governo do Estado e vemos o dinamismo
(assombroso), a
coragem, a abrir caminhos de Odilon Lunardelli —  com seus
palácios de livros, seus êxitos editoriais, suas vitoriosas promoções
em favor
dos autores catarinenses. E surge, agora, em Blumenau, a
Editora Acadêmica, que
tem à frente o jovem poeta Oldemar Olsens
Jr. E que acaba de lançar a belíssima
antologia Outros catarinenses
escrevem assim.
 
AP —  Aponte
os valores mais expressivos da nossa literatura.
 
MSP —  Vou
pedir licença para endossar o "comercial" do Celestino
Sachet: Leiam
sua notável obra de pesquisa e história A Literatura
de Santa Catarina,
que tem magistral prefácio de Nereu Corrêa e
primorosa apresentação da Editora
Lunardelli. Nela desfilam
aqueles a quem, em artigos e resenha no meu longo
período de
colunista literária, e verbal eu epistolarmente tenho expressado
minha admiração. Não é preciso, pois, citá-los. Eles sabem.
 
AP —  Como
você define o seu último trabalho?
 
MSP —  Meu
último trabalho é A Dríade e os Dardos, que resultou
da seleção de três
livros de poesia e de inéditos. É, pois, uma
antologia, que me trouxe
referências e artigos elogiosos —  no Rio,
São Paulo, Santa Catarina,
outros estados e no estrangeiro. O
professor Glauco Rodrigues Corrêa escolheu-o
como livro-texto para
o estudo da poesia em suas aulas na Universidade Federal
de Santa
Catarina durante o ano de 1979 e recebi a homenagem de uma
plaquete em
que aparecem as "Primeiras opiniões". Como não
costumo concorrer a
prêmios, tendo embora troféus, diplomas,
distinções, medalhas —  tais
fatos têm para mim um alto
significado, sendo que, no primeiro caso, ainda
maior, por me vir o
"Prêmio" da terra natal.
 
AP —  Seu
depoimento rápido e objetivo sobre o ofício de escrever.
 
MSP — 
Escrever para mim é algo angustiante e voluptuoso.
Escrever é criar e não
concebo criar o vazio. A forma e o conteúdo
são igualmente importantes e, como
escriba, meu maior alvo (que
decerto jamais atingirei) seria, num dizer novo,
fazer soar a voz do
nosso tempo.
 
AP —  Como
você vê o atual movimento literário que renasce em
Santa Catarina?
 
MSP —  Com
euforia completa. Não só por ver nomes consagrados
aumentarem sua bagagem e seu
prestígio como ante a garra da
nova geração que, valentemente comandada por ela
mesma, dá
seu recado (brilhante) até mesmo em publicações mimeografadas a
álcool.
 
AP —  As
universidades de Santa Catarina insistem em prestigiar
autores de outros
Estados em seus concursos vestibulares,
enquanto nós achamos que elas deveriam
dar uma força total para
os nossos escritores. Como você se posicionaria, sendo
reitor de
uma das nossas universidades?
 
MSP —  Eu,
reitor? Ah, chamaria Santa Catarina —  e ela viria de
papoulas nos cabelos
e mãos muito lindas abrindo, sobre as
carteiras, livros de autores
catarinenses.
 
 
 
 
ENTREVISTA do Jornal
de Letras
(1° Caderno,
Rio, Novembro de 1976, p. 3)
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
Maura de Senna
Pereira nasceu sob o signo de Peixe, na Ilha de
Santa Catarina. Uma composição
no curso primário, aos onze anos,
marcou sua iniciação literária. Louvada pelas
professoras e lida em
tom de discurso pelo seu tio Júlio Régis, foi por este
publicada.
Dizia respeito a um combatente que, em plena batalha, vendo cair
um
companheiro, arrastou-se e conseguiu resgatá-lo.
 
— Não deixou de ser
uma profecia —  diz Maura. Gesto semelhante
ao de meu irmão Samuel.
 
Componente da FEB,
na dura conquista de Montese (tinha ele vinte
anos) ao ver tombar ferido um
esclarecedor do seu grupo
"penosamente rastejou até o ponto onde havia
caído o seu
camarada, o qual verificou já ser cadáver. Mesmo assim, arrastou o
corpo até um local abrigado, indiferente à chuva de projéteis que
caía em torno
de si" —  como reza o diploma que recebeu pelo seu
ato heroico,
juntamente com a Cruz de Combate de 1a classe.
 
Outros trabalhos da
menina-e-moça foram aparecendo na imprensa
e, muito jovem, Maura viu publicado
seu primeiro livro: Cântaro de
Ternura, poemas em prosa. Professora (formada pela Escola Normal
Catarinense, com vários cursos especializados,
e lente, por
concurso, das cadeiras de português e que iria também ser a sua
em Porto Alegre e, depois, aqui no Rio, onde reside há vários anos.
Publicações: além de
opúsculos, participações em antologias, dois
livros de reportagens, um de
discursos, outro de crônicas (o recente
Nós e o mundo), publicou mais
três livros de poemas: Poemas do
Meio-Dia, Círculo Sexto, País
de Rosamor.
 
— Lembro até,
Maura, de uns versos que fiz pra eles:
 
Maura de Senna
Pereira,
voz "Canto da
companheira"
gesto de pão, rosa
e paz:
quanto dás!
 
Redondilha de
ternura
humaníssima
frescura
tua "Rosa no
caminho".
 
Teu grito
"Circulo Sexto"
parábola de alma,
texto
gosto de trigo e de
vinho.
 
Em Terra Catarinense
Poesia perfil de
Anita
infinita
te pertence.
 
— Meu próximo livro
será A dríade e os dardos, titulo de uma de
minhas coletâneas de poemas, depois
do que pretendo escrever
somente em prosa.
 
— E prêmios,
medalhas, Maura?
 
— Não concorrer a
prêmios é um princípio meu. Entretanto, eu me
considero magnificamente premiada
com expressivas homenagens
que tenho recebido. Meu poema "Retrato de
Anita", por exemplo,
eu o disse por ocasião do inauguração da estátua da
heroína na
cidade catarinense de Laguna, a convite da Comissão Organizadora
e
do Governo Celso Ramos. Foi um dos momentos mais belos da
minha vida. Tenho,
também, muitas medalhas, entre as quais a
que, em solenidade do PEN Clube, me
entregou a Academia
Catarinense de Letras, onde ingressei na extrema juventude
e por
iniciativa da entidade. Todas me são caras, mas a que mais me
envaidece é
a medalha comemorativa dó centenário da Gazeta de
Notícias, porque idêntica e
ao mesmo tempo a recebeu Cousin —
precisamente na tarde de autógrafos de Nós e
mundo, quando mais
de cem amigos nos rodeavam na Livraria São José.
 
— Não quer contar
sobre seu novo livro?
 
— Nós e o mundo
inclui pequena parte das crônicas, resenhas e
artigos que publiquei na coluna
com o mesmo título, em Gazeta de
Notícias. Tratando de figuras, livros e
fatos, cuidei, na seleção, de
não repetir os temas. "Cosmorama variado e
policromo" — diz o
ilustre jornalista Barbosa Gonçalves, na apresentação
do livro, que
tem capa do pintor abstrato Ely Braga. Nas orelhas e nas últimas
páginas, transcrevi alguns dos valiosos louvores que tenho
recebido.
 
Sei, como um
agradecimento aos que a têm estimulado, e não por
ostentação. Em Nós e o mundo,
como já foi dito, não há
egocentrismo algum. E depois, me inteirei de que está
sendo muito
bem recebido.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

— Neste momento me
é grato lembrar as palavras do Presidente
Juscelino Kubischek na carta que me
enviou a 19 de julho: "O seu
mundo se compõe do mundo dos outros e neste
você se mostrou
inteligente, hábil e mais do que tudo com uma rara capacidade
de
criar e de escrever".
 
Maura sorri:
 
— Palavras que
conservo como um prêmio.
 
 
 
 
 
2. POEMAS
(Verso e Prosa)
 
 
 
Sobre os Cardos
 
 
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Vês, eu bem sei,
acima dos louros cabelos,
uma porção de
gabirobas louras.
Para alcançá-las
e sugar-lhes a
doçura,
tens que te apoiar
nos cardos duros
que circundam a
árvore esguia,
cujos frutos de
ouro
atiçam, meu menino,
a tua gula
nesta hora dourada
do meio-dia.
 
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Eles são maus, têm
espinhos
e irão ferir-te os
membros tenrinhos
e machucar teu
peitinho branco..
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Assim selvagens e
belos,
amparando teu fardo
gentil,
lembram esses
amigos da gente grande
em quem a gente não
cansa de confiar,
em suas almas
descansando,
inteiramente, a
alma,
mas que, no
entanto, nos ferem
com os espinhos
terríveis da sua traição,
fazendo destilar a
flux
o sangue sentido
das nossas lágrimas.
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Com os seus
espinhos traiçoeiros,
far-te-ão chorar.
Lembram esses
amigos da gente grande
em quem a gente não
cansa de confiar,
mas que, no
entanto, sem dó,
nossa pobre alma
confiante
vêm um dia atraiçoar.
 
(de Sup. d'0
Malho, sem data —  Acervo ACL)
 
 
 
Eternidade
 
 
Debruçada no balcão
ingênuo
da minha
fraternidade,
tenho palpado a
alma das criaturas
com a curiosa
comoção dos simples.
 
Tenho mergulhado
em sua pouca ou
imensa profundidade
a minha mão trêmula
e morna.
E os meus dedos,
tantas vezes que
nem sei,
se encolhem
arrepiados
com o frio desse
contato,
parecido com o frio
do campo-santo,
com a algidez das
cruzes
e dos carneiros
brancos.
 
Toda eu então,
no corpo e no
espírito,
vibro de lástima,

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

ó amigo, ó irmão,
ao pensar que tenho
de morrer um dia
e que não poderei
deixar como herança
esta minha incrível
vibratilidade
repartida
por todas as
criaturas vivas
que não têm alma.
 
Oh! eu bem sei
que a minha carne
se misturará à
terra brava,
e gostosamente,
e infantilmente,
toda eu palpito
numa pletora
inquieta de júbilo e de orgulho,
ao idear que
nutrirei raízes,
que subirei pelos
troncos molhada de seiva,
e, insinuando-me
aos rebentos, nos botões,
nas flores
tropicais ou nos frutos ácidos,
virei espirar
o grande sol da
minha terra.
 
Para uma sementeira
ardente
para um trabalho de
amor,
eu queria que
também ficasse
eterna no mundo,
benfazeja,
entusiasta, repartida,
a minha alma que
ama e que sonha.
 
Para onde irá ela?
para o infinito? para o nada?
Nada sei! Nada sei!
Sou uma cigarra
ignorante e uma leoa rebelde.
O que sei, o que
sinto, o que canto
é a minha pena, a
minha compaixão
de todos que não
vibram como eu,
que tenho o peito a
bater pela própria renúncia,
de todos que não
conhecem a purificação
no belo fogaréu de
um ideal...
 
Minha alma irá
desperdiçar-se
quando eu morrer
numa extinção
total?
 
Escuta, ó meu
amigo, ó meu irmão,
Eu gostaria de
ficar para sempre
na terra,
vendo os rosais que
sorrirem
nos jardins
floridos da minha psique
florindo em todos
os corações
que são caminhos
sem vegetação.
Eu gostaria de
ficar para sempre
na terra,
para uma
metempsicose coletiva,
não registrada
nunca em lendas nem em dogmas,
animando pelos séculos
fora,
com o meu generoso
calor,
todas as almas
polares, estéreis, geladas...
 
(Ai! pudesse eu em
todas elas saltar de amor!)
 
 
(Recorte de jornal
sem identificação —  Acervo ACL)
 
 
 
Vovô Índio
 
 
Vovô índio, hoje é
Natal,
tenho um pedido
para você
(Agora, sim, estou
à vontade)
 
Papá Noel não me
entendia,
vinha de longe,
cansado, friorento,
enquanto eu gozava
o verão do Brasil.
 
Por mais irmã que
eu seja de toda gente,
teria que tratá-lo
de senhor.
Que cerimônia, não
acha?
Uf! não tenho
jeito!
A você, amigo
velho,
eu trato
simplesmente de você.
Não faço graça,
Vovô Índio
de tanga colorida e
cocar esvoaçante,
abro-lhe aqui o meu
peito, nômade dos brasis,
primeiro
bandeirante!
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Borbulha no meu
corpo o seu sangue selvagem
e minha alma está
cheia
do seu ingênuo
panteísmo.
 
Planta tropical que
Guaraci abençoa,
minha raça possui a
seiva dos tupis,
dos que receberam,
fraternos, os marujos brancos
e viveram
deliciados do pindorama.
 
Compreendo toda o
seu entusiasmo
rude, místico e
pagão
(Pudera não!)
A nossa natureza
inspira os meus
pensamentos
e alegra os meus
sentidos.
 
Amo como você a
liberdade,
ó velho caçador, ó
sábio pajé!
Até parece que você
deixou o maior quinhão dessa
herança
à sua neta rebelde
do século vinte!
Por tudo isso, eu,
brasileirinha
que traz na pele
a quentura do sol
da manhã
e o perfume das
frutas do mato,
eu, filha de
Jurerê-mirim,
quero, no Natal,
Você!
 
Vovô Índio, quando
andar pelas terras do sul,
distribuindo
presentes.
Não faça como Papá
Noel,
não se esqueça de
mim!
 
 
(Especial para o Correio
do Povo sem data, acervo da ACL)
 
 
Ilha Verde
 
Porque nasci numa
ilha cheia de matas e de frutas,
de pássaros que são
deuses
e que cantam
como si a velha
alma de Orfeu
estivesse repartida
em suas gargantas,
é que eu tenho o
gosto alucinado da poesia
e o rito selvagem
do panteísmo.
 
Porque venho de uma
terra
toda orlada de
praias e de conchas,
onde as espumas se
esparralham
numa ânsia de
conquista
e donde os olhos da
gente se mergulham lá bem longe
é que eu tenho esta
vontade
de alcançar toda a
beleza,
de devassar todo o
infinito!
 
Porque pertenço a
uma raça de ilhéus sonhadores,
que revelam, no
sangue misturado,
a ascendência
nativa dos guaranis
continuada
pela dos marujos
conquistadores
e pela dos que
também plasmaram a raça,
com saudade talvez
das paisagens africanas,
é que eu tenho este
nomadismo aflito do pensamento
e, dentro da alma,
como uma flor
exótica num jardim igual,
esta esquisita
nostalgia...
 
Porque venho de uma
terra
que não quis
integrar-se a nenhuma outra,
num gesto rebelado
de independência,
é que sempre tenho
os olhos
dilatados de
entusiasmo
quando vejo
qualquer pátria
ou qualquer povo
querer ser livre!
 
Porque nasci numa
ilha cheia de matas e de frutas,
é que você encontrou
na minha arte e na minha boca
o sabor dos butiás
e o cheiro das
trepadeiras em flor...
 
Porque nasci numa
terra
sempre rodeada pelo
abraço verde do mar,
é que eu gosto
tanto
desse amor ciumento
de você

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(do jornal República
—  DOMINGO LITERÁRIO, 7 de agosto de
1932, p. 3 Não faço graça, Vovô Índio
de tanga colorida e cocar
esvoaçante abro-lhe aqui o meu peito, nômade dos
brasis, primeiro
bandeirante!)
 
 
 
Fada Madrinha
 
 
 
Eu
te quero
bem, minha
dourada imagi-
nação, porque,
dona de opulências
e
de requintes, tu me
tens
feito conhecer,
palpáveis e
gloriosos, todos os
minutos
bons que a
realidade avaramente
me negou. A saudade
dolorosa e
sagrada que me
deixaram os meus dias
inconscientes de
criança, a ironia e o de-
desencanto que
estão enchendo os meus dias
sofredores de
rapariga —  caem no olvido efe-
mero quando eu
obedeço à tua voz azul e visito
— feita uma rainha,
com o vestido de cauda da i-
lusão, arrastando
um séquito galhardo de paladinos
(todos os meus
sonhos de beleza realizados sob as
bênçãos do sol),
ouvindo, poderosa, a trombeta da
vitória, ouvindo,
escrava, a cítara da felicidade
— e visito as tuas
cidades e os teus jardins, os
teus parques e as
tuas grutas (tu és tão faus-
tosa e tão boa!)
Ah! eu bem sei que nun-
ca ninguém na terra
possui o triunfo
e a ternura que tu
me sabes dar e,
amparada pelo teu
feitiço, sugestio-
bada pela tua
mentira, eu me vou
vingando da verdade
perversa
das minhas horas...
Eu te
quero bem, minha
dour-
rada imaginação,
por-
que tu é a minha
fada — 
madrinha
e tão naba-
besca e
tão ir-
requieta! E tão
generosa! Que a ti eu devo todos
os deliciosos
prêmios que a realidade avara-
mente me negou!
 
(A Semana,
18 de setembro de 1930, p.1)
 
 
 
Canoinhas
 
 
Bendita Sejas tu,
Santa Cruz de Canoinhas,
pequena cidade
setentrional da minha terra,
assim toda cheinha
de rosas,
assim toda rodeada
de pinheirais.
 
Eu cheguei até a
tua beleza perfumada,
até os teus ares
frescos,
depois de haver
contemplado
enternecidamente
uma porção verde da
terra catarinense,
ainda virgem para
os meus olhos,
que a foram
acariciando
com a delícia de
dois sátiros felizes.
 
Ora o meu sonho era
alto como as serras do caminho,
ora a minha alma se
esticava, hipnotizada,
pelo rasgão líquido
dos rios.
Aqui, a mancha
negra das queimadas,
lá adiante, os
milharais prometendo as socas douradas.
Mas sempre o verde
faustoso
Dominando tudo com
os seus tons múltiplos.
Ah! na mata seivosa
que o ventre da
terra nos ofertou,
para nossa riqueza
e para nossa alegria,
eu revi,
surpreendida,
entre as outras
variações da cor predestinada,
aquele verde suave
do meu colar

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

e também o verde
carregado, pastoso, colérico,
que já vi lá longe,
no mar.
 
Quando cheguei até
a tua beleza perfumada,
até os teus ares
frescos,
eu vinha orgulhosa
da grandeza
panteísta do meu torrão.
 
Tu prolongaste o
meu orgulho,
ó bela milionária
do ouro verde,
ó toda jovem,
apertando-me num
grande abraço comovido
bem junto ao teu
coração.
E, a seguir,
ofereceste-te a meus olhos,
que continuaram na
sua orgia amorosa
de sátiros felizes.
 
Vi-te cheirinha de
flores...
Vi-te rodeada de
pinheiros...
Flores, sorrisos
policromos,
que representam
a candura
sorridente das tuas mulheres gentis!
Pinheiros, lanças
coroadas,
que simbolizam
a altivez vitoriosa
dos teus caboclos bravos!
 
Bendita seja tu,
Santa Cruz de Canoinhas,
pequena cidade
setentrional da minha terra,
assim toda
cheirinha de rosas,
assim toda rodeada
de pinheirais!
 
 
(do jornal República
—  DOMINGO LITERÁRIO, 13 DE NOVEMBRO
DE 1932. Também publicado em Brasil Feminino, Rio, n. 12, maio
de 1933 e assinado Maura de Sena Pereira Lamotte)
 
 
 
Canção de Guerra
 
 
Tu, que tens a
volúpia da combatividade.
num grau que ninguém
nunca ultrapassará,
de tão candente e
límpida,
é meu feroz
lutador!
 
Tu, que possuis
labaredas encarnadas na voz,
línguas de fogo na
palavra,
como si pudesses
com elas
incinerar depressa
o erro dos homens,
desde as intenções
que ressumam veneno
até a seta
envenenada
que se atira à
inocência e à justiça,
ó meu louco
sonhador!
 
Tu, que tens dardos
certeiros
nas frases tuas que
tanto querem a perfeição,
como si tivessem
reencarnadas em si
antigas figuras
bíblicas,
dardos contra o
sorriso dos estultos e dos ímpios,
contra os líderes
da opressão e os bastardos do
idealismo,
contra todas as
falsas bandeiras,
ó meu audacioso
pastor!
 
Fere também,
magoa, estraçalha,
queima,
fere sem piedade
a hidra da minha
inércia
e o monstro de cem
cabeças do meu medo,
para que eu,
dinâmica e audaz,
comece a combater
também,
pela palavra mais
meiga e mais convincente,
tudo quanto não
tenha a verdade da beleza
e a beleza da
verdade;
a combater, sim, a
combater,
em nome da religião
do bem
e do arrogante
pendão da liberdade!
 
Maura de Sena
Pereira Lamotte
 
(do jornal República
—  DOMINGO LITERÁRIO, 18 de dezembro de
1932)
 
 
 
Três Poemas em
Prosa

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Espera
 
  
Nada conheço, no
amor, que faça a gente padecer como a
ansiedade da espera.
 
Ah! si soubesses
quanto eu sofro quando te espero!
 
Faz poucos dias, ao
folhearmos uma revista elegante, sentados sob
o caramanchão todo florido de
ipomeias, os nossos olhos — os
meus quasi negros e os teus verdes como nunca --
pousaram numa
ilustração que te pareceu brejeira e a mim profunda: uma
encantadora mulherzinha toda de cor-de-rosa esperava o noivo a
olhar o relógio
com uma expressão de dívida e de ânsia.
 
Sorriste e viraste
a página, mas eu fiquei a pensar ainda muito
tempo na bela noivinha toda de
cor-de-rosa.
 
Ah! si soubesses
quanto eu sofro quando te espero! quando te
espero e já vais tardando!
 
A minha imaginação
louca e rica vai logo tecendo, como uma
aranha nervosa, a teia das minhas
derrotas: Imagino-te mentiroso
nas horas em que tu dizes que eu sou a ânfora
ideal da tua
esperança e da tua felicidade. Imagino-te perjuro e sonho com
traições tuas, com a morte do teu carinho, com o advento do teu
olvido.
 
Traço então
programas de alto orgulho e de tática feminina, para te
atrair novamente com a
meiguice luminosa dos meus olhos e
entregar-te depois a aliança num gesto
vingativo e mau.
 
Mas chegas, meu
infinito bem, e as tuas risadas e as tuas juras
sufocam, de tão poderosas, todos
os meus ressentimentos e todos
os meus devaneios despeitados. Tão bom quando te
chegas, mas
tão horrível quando eu te espero e já vais tardando, meu amor!
 
 
 
Repto da Minha
Vaidade
 
  
Neste mesmo
caminho, em que vamos os dois, apadrinhados pela
luz dourada desta manhã
catarinense, tu, a falares-me como um
irmão mais velho na tua vida áspera e
ilustre; eu, sorridente, no
meu grande chapéu de verão —  neste mesmo
caminho, que
importa que já tivesses andado ao lado de outras namoradas!
 
Eu sei que o meu
riso jovem e a minha compreensiva atenção à
consciência dos teus sonhos e das
tuas lutas, abafam a lembrança
enternecida que porventura guardes de passadas
entrevistas.
 
Nesse mesmo
caminho, em que vamos os dois, felizes pelo nosso
encontro e pela afinidade
sutil das nossas inteligências, que nos
está a parecer agora tão clara e tão
verdadeira —  neste mesmo
caminho, que importa que ainda venhas a andar ao
lado de outras
namoradas!
 
Eu sei que a minha
pequena figura de mulher será sempre maior
que o encanto e a beleza de
vindouras entrevistas.
 
Olhando e ouvindo
aquelas com quem passearás depois de mim,
uma tristeza funda se espalmará pela
tua alma e virá debruçar-se
nas janelas verdes dos teus olhos...
 
É que em nenhuma
encontrarás a inflexão humilde de minha voz — 
tão soberana que te guia
para o triunfo! Tão soberana que te rouba
o coração.
 
 
 
Delírio
 
 
O Eu sei que tu
estás passando diante do muro verde-malva da
minha casa.
 
Mas não posso ir
hoje encontrar contigo. Não me deixam. Estou
doente!
 
Mas não posso ir
hoje encontrar contigo. Não me deixam. Estou
doente!
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

No meu leito,
debato-me febril. E, perto de mim, o médico
desvelado prescreve repouso e as
enfermeiras carinhosas do meu
lar cercam-me de solicitude e convencem-me de que
devo ingerir
um remédio muito amargo para ficar boa depressa.
 
Eu choro e quero
sentar-me na cama e quero erguer-e como um
neném que não compreendesse a lógica
de todas as palavras que
dizem para seu bem. Eu sei que tu estás passando
diante do muro
verde-malva da minha casa.
 
E rebelo-me outra
vez contra tanto cuidado. Tenho quase ódio de
toda esta gente que assim me está
contrariando. Decididamente
são todos meus inimigos e o que querem é o meu mal.
 
Pois não veem mesmo
que eu estaria logo curada se pusesse
depressa sobre mim urna grande capa, se
calçasse minhas
pequeninas sandálias e fosse correndo, a machucar as flores do
jardim, para chegar mais depressa até o muro verde-malva? Pois
não veem mesmo!
 
Mas qual! Não me
deixam. Vou, pois, vingar-me: vou fechar meus
olhos e me fingir de morta...
 
 
 
(Especial para Revista
do Globo) —  sem data —  Acervo ACL
 
 
 
Miragem
 
 
Vesti a minha alma
de esperança, pus ao ombro um cântaro
dourado, correndo, com aquela ansiedade
com que em pequena eu
perseguia as borboletas, até a fonte em que cantava a
água da
alegria.
 
Fui correndo,
correndo, como uma doida.
 
Meus cabelos
escuros sentiam as carícias do ar perfumado da
manhã e meus olhos estavam
luminosos de esperança.
 
Tinham-me falado na
fonte da alegria e eu tinha pressa de encher o
meu cântaro.
 
Abençoei a vida
quando cheguei ao meu destino e vi correr, entre
flores do mato, a água por que
eu suspirava.
 
Cheguei até a fonte
a minha boca vermelha e bela com sofreguidão.
Depois, com os olhos luminosos de
esperança e meus cabelos
escuros sentindo as carícias do ar perfumado da manhã,
enchi
alegremente o cântaro dourado.
 
Voltei, então, para
minha casa, querendo cantar...
 
Mas a minha boca só
disse amarguras e os meus olhos se encheram
de lágrimas. Meus pés pisados e
meus sonhos bonitos estavam
tintos de sangue...
 
Foi então que eu
compreendi que havia enchido o meu cântaro de
dor...
 
 
 
(Recorte de Fon-Fon,
sem maior identificação Acervo ACL)
 
 
 
Cântico dos
Cânticos
 
 
Um dia, na alvorada
da vida, eu ergui a fronte para o céu. Pássaros
cantadores roçavam a seda
escura dos meus cabelos. Eu estava
vestida de sonho e, com a fronte, alcei
também os braços e quis,
num assomo de egoísmo, possuir todas as felicidades.
 
Os dias depois se
foram soltando do tempo, azuis ou incolores,
rubros ou lilases.
 
Hoje, ainda antes
do meio-dia, minha fronte está também erguida
para o céu. Ela é como um grito
de vitória e os meus braços
erguidos também são um sorriso de gratidão e de
bem-
aventurança.
 
Entretanto eu
sonhara com a glória... E a minha glória é tão
pequenina que não chegaria para
fazer uma só folha de louro que
enfeitasse a minha cabeça.

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
Entretanto, eu
sonhara com a ciência... E a ciência aqui está nestas
gotas míseras que eu
guardo na choncha das minhas mãos, sob o
desdém dos meus olhos e dos meus
lábios.
 
Entretanto eu
sonhara com o ouro... E o ouro vive a fugir do
alcance dos meus dedos, rolando
para as outras vidas, rindo de
mim ao longe.
 
Mas a minha fronte
levanta-se agradecida ante as bênçãos
douradas do sol e os meus braços estão
erguidos em ações de
graças rumando para lá das nuvens... É que eu sonhara
também
com o amor e ele veio ainda maior do que o reclamo do meu sonho
louco.
Ainda maior que toda a glória, que toda a ciência, que todo o
ouro do mundo. E
as outras felicidades da terra me parecem
mesquinhas diante da felicidade
desvairada do meu amor.
 
O meu amor
ultrapassa a altura atrevida das torres.
 
O meu amor me
protege como uma árvore de fronde recurvada e
densa.
 
O meu amor vive
badalando, badalando, badalando, como uma
imensa campânula que quisesse
eternizar os ritos da alegria.
 
O meu amor é tão
meu como um nenê que eu ninasse no meu
regaço dentro de um êxtase maternal.
 
O meu amor é tão
orgulhoso que eu me imagino abraçada ao ápice
de uma montanha desprezando lá de
cima todas as ambições e
todas as misérias da humanidade.
 
Muito maior do que
o amor visionado no sonho tagarela que eu
sonhei na alvorada da vida é este
amor quase incrível que há de
viver até mesmo quando baixar a noite e brilhar a
lua nova.
 
Por isso eu canto
antes do meio-dia.
 
 
Maura de Sena
Pereira Lamotte
 
(do jornal República
—  DOMINGO LITERÁRIO, 3 DE ABRIL DE 1932
R. 3)
 
 
 
Fonte de Castália
 
 
A tarde estava
triste como o meu coração e meus olhos
enlanguesciam como cisnes doentes.
 
Mas, de repente, eu
vi, eu escutei, eu tactei: uma sugestão
encantada.
 
Toda a minha
adolescência se encolheu num espanto gostoso.
 
E perguntava se
aquela grande insinuação vinha das campânulas
coloridas que até aí olhara com
desamor. Das campânulas coloridas
ou das nuvens vermelhas. Do aroma da terra,
bárbaro, pagão,
verde, que não a houvera nunca impressionado. Do aroma da terra
ou da minha própria imortalidade. A verdade é que havia um
letreiro diante da
minha alma:
 
"Passa com a
fronte alteada de sonhos. Sonhos de beleza. E deles
torna vassalos tua
garganta, teus lábios, teus dedos. Finge não
compreender o egoísmo do mundo e a
ironia do céu. Mas sorri para
ti mesma, pequenina e altaneira. As poucas
doçuras com que o
destino te brindar e as violentas tempestades que ele fizer
cair
sobre essa alma simples de criança, que carregarás sempre — 
nunca te
façam esquecer tua orgulhosa tarefa de entoar a melodia
mais humilde. Espalha a
ilusão. Mas, quando não fores deusa até o
ponto de enganares a ti e a todos com
a ebriez divina da alegria — 
arranca ensinamentos à tua mágoa, para depois
ser menos
imperfeito o teu caminho.
 
A tarde estava
alegre como o meu coração e meus olhos dançavam
como libélulas.
 
................................
 
Foi quando comecei
a cantar.
 
 
 
(do DOMINGO
LITERÁRIO —  República 14 de junho de 1931)
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
 
 
Legenda da Minha
Alma
 
 
Vivem dentro de mim
duas psiques, que eu carreguei sempre:
ontem com inconsciência, hoje com uma
alegria triste, com um ódio
feliz.
 
São assim as minhas
duas psiques:
 
Uma é simples e
mística, é resignada e quieta; a outra tem revoltas
e ceticismos, tem jeitos
nervosos e alados.
 
Uma é feita de
doçuras evangélicas e aceita a dor como uma
realidade que purifica e que
ilumina; a outra é feita de bravezas
iconoclastas e não compreende o martírio
agigantado que me
coube.
 
Uma se mostra
quando os meus olhos ficam amortecidos e
tristonhos e lembram a mansidão
bíblica das ovelhas; a outra
aparece quando os meus olhos ganham vivacidade de
sol e
lembram destinos coroados de rosas.
 
São assim as minhas
duas psiques:
 
Uma esculpe nos
meus lábios o grande sorriso doloroso de quem
nobremente renuncia; a outra
desenha palavras gulosas na minha
boca.
 
Urna vive recolhida
em timidez, adora a sombra e o silêncio; a
outra, louca e insatisfeita, adora
os ambientes festivos e as
glorificações alucinadas.
 
Urna obriga as
minhas mãos a traçarem o supremo feitiço do
perdão; a outra as deseja com
realizações altaneiras de orgulho e
de vingança.
 
São assim as minhas
duas psiques:
 
Uma sugere
tristezas de campo-santo, a outra alegrias de criança.
 
Uma tem atitudes de
monja, a outra vaidades de rainha.
 
Uma quer ser
humilde como uma pastora, a outra poderosa como
uma deusa.
 
Mas escuta bem e
eterniza na tua lembrança esta verdade boa:
ambas amam e sonham e se completam
no paradoxo harmonioso
do meu ser.
 
Eu as ofereço a ti,
ao culto do teu coração, à glória da tua vida!
 
 
 
(República,
19 de julho de 1931 DOMINGO LITERÁRIO P. 3,
também Fon-Fon)
 
 
 
 
 
3. TEXTOS SOBRE
PAIS E FAMILIARES
 
 
 
Minhas Avós
 
 
Mal conheci minha
bisavó Maria Inês, a quem sempre chamei de
avó da Praia de Fora, pois era
naquele bairro florianopolitano que
tinha ela a sua mansão. Dirigida já então
pelas netas que criara,
primas-irmãs de minha mãe. Fora uma matriarca, cuja
autoridade
não se discutia, mas que não se manifestava, no entanto, senão por
meios sutis. Lembro suas batas brancas, suas feições eclesiásticas,
seus olhos
fechados pelas cataratas. E quando acariciava minha
mão e, nela segura, me
levava para os manjares de sua mesa.
 
Angélica, a avó que
tinha nome de flor, morreu aos vinte e poucos
anos. Meu pai jamais a esqueceu.
Além de a idolatrar, aquela morte
arrebatou-lhe a infância. Certo dia — andava
eu pelos treze anos —
o surpreendi me fixando imensamente comovido. Ao ver meu
rosto
interrogativo, disse logo: Eu estou achando minha filha muito
parecida
com a mãe do papai. (Era como a denominávamos).
Carrego, pois, Angélica, a avó
que tinha nome de flor.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Mas eis vovó, a que


sempre assim foi chamada e que era mais doce
que os sumos ao seu pomar
biguaçuense. Filha de donos de
escravos, donos cruéis, tinha o apelido de Yayá
e os negros a
chamavam de anjo. Que anjo ela foi sempre. Nunca admitiu a
violência e era toda mansuetude e perdão. Conheci-a ainda com
fios de ouro nos
cabelos e os grandes olhos azuis na plenitude do
outono. (Aqueles olhos que
tanto choraram). Viu morrer tísico o
amado marido de trinta e sete anos,
enviuvou grávida e criou os
filhos em Florianópolis e depois em Biguaçu. Quando missionários
americanos estiveram por lá, foi um dos que se converteram ao
protestantismo. E membro da Igreja Presbiteriana permaneceu até
morrer, indo
aos cultos sempre de preto, chapéu e saltos altos, mui
cuidada sempre, dando a
todos uma agradável impressão de trato e
finura. Lia a Bíblia todos os dias e
quando eu, que entre aqueles
versículos me criei, mas que cedo comecei a
rebelar-me, quando eu
lhe dizia qualquer palavra irreligiosa, sua máxima reação
era olhar-
me com aquelas puras safiras atravessadas, exclamando: ó Maura!
 
Sofreu tremendos
golpes vendo morrer filhos e netos, mas a
lâmpada de sua fé jamais deixou de
arder. ("O Senhor o deu, o
Senhor o tirou. Bendito seja o nome do
Senhor".) Fazia tudo com
perfeição e milagres fazia com sua pequenina
renda para nos
alegrar. Nunca esquecerei minha aflição adolescente por não ter
vestido novo para dizer meu discurso de oradora da turma na
cerimônia de
formatura da Escola Normal. Foi quando uma fada
chamada Vovó me entregou aquele
divino corte cor-de-rosa. Nos
últimos anos parecia uma velhinha alemã a mãe de
minha mãe.
Que se chamava Benvinda — tão condizente com as ternas auras
que
derramava — de Azevedo Régis. Oh, quantas vezes a vi colocar
os óculos para
assinar seu nome querido. E inesquecível. Porque
sua lembrança será sempre bem
vinda.
 
 
 
(de Gazeta de
Notícias / Nós e o Mundo, Rio, 9-10/7/1972,
reproduzido no livro Nós e o
mundo, 1978, p. 124-125)
 
 
 
Uma Data, Dois
Cultos
 
 
Como poderia eu,
nesta data, não evocar aqueles de cujo amor
nasci? Ele, que desapareceu com a
metade da idade que
completaria hoje. E a que há cinco anos partiu neste mesmo
dia
outrora festivo, como se tivesse sido fechado um ciclo. Assim, de
ambos
falarei com a saudade e o orgulho de filha. Do homem belo,
íntegro e humano,
que teve sempre a palavra acatada mesmo pelos
mais velhos — desde os seus
verdes anos até à aurora da
maturidade, quando morreu. Do erudito e modesto
autodidata e do
mestre que tem seu nome numa escola técnica, homenagem que
ex-discípulos prestaram à sua memória. Daquele que jamais
mentiu, que nos deu
toda a sua ternura e oh, a quem não tive
tempo de dizer as cálidas palavras da
minha gratidão. Muito cedo o
perdemos; mas havia a presença daquela que fora a
sua bem-
amada — como que em parte suprindo a ausência dele.
Lembrando-o desde
os tempos em que nasceu o lindo amor que
duraria sempre e apontando todos os
dias seu exemplo como um
legado, a mãe heroica realizava o milagre de não
parecer ele jamais
um pai morto. Mãe heroica — e de uma grandeza que culminou
na
luta áspera da viuvez, diante da perda trágica de dois filhos em flor
e,
mais tarde, quando não mais puderam ver os olhos mais belos
que já vi (ó
heroína, ó estrela, como podias não enxergar se
iluminavas?) 30-4-67
 
 
 
(de Gazeta de
Notícias / Nós e o Mundo, Rio 01/05/1972,
reproduzido no livro Nós e o
mundo p. 115)
 
 
 
Meu Pai
 
 
Dia do Papa!... E
eu lembro aquela noite distante de fevereiro, em
que o luto marcou a minha
juventude nascente. Ah, não pudera
retribuir a mínima parcela do que recebera
em sacrifício e amor.
Não pudera conversar longamente com aquele espírito
lúcido e reto.
Nem sequer pudera mostrar-lhe completamente o meu coração.
Uma
infecção no rosto másculo e belo — arrebatou-lhe a vida.
Muitas lágrimas,
muitas, mas as lutas foram ainda mais
abundantes, pois era cheia de meninos a
casa órfã.
 
Houve, no entanto,
uma heroína: tua bem-amada, ó pai. Sob a asa
do seu insuperável amor materno,
teu filhos cresceram honrando
teu nome. E não parecias um pai morto, tanto eras
evocado com

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

aquelas palavras mágicas: teu pai. Elas traziam de novo a infância


e a ilusão da tua presença. Teu pai... Elas contavam a história
daquele amor
lindo de crianças que prosseguira no noivado e nas
bodas e que, depois, se abrira
em flor e fruto nos poucos lustros do
moribundo. Teu pai...
 
E, como por
encanto, revivia o homem íntegro e humano para nos
unir, inspirar e proteger
com o seu exemplo.
 
Um dia, porém, no
seu leito de agonia, a mãe heroica perguntou:
"Quantos dias faltam para o
aniversário de teu pai?" Faltavam
poucos e quando chegou a data outrora
festiva, ela partiu, como se
tivesse sido fechado um ciclo. Foi quando acabei
de te perder, meu
pai.
 
Não sei se será por
isso (pela força extraordinária de seu amor, de
certo modo não morreste
enquanto ela viveu) que a saudade que
tenho de tua face é, agora, maior. Maior
a dor de não ter tido
tempo de ajudar-te. Maior a gratidão. E, no dia de hoje,
mais viva a
lembrança dos meus verdes anos, mesclada ao pesar de não teres
ouvido dos lábios da menina as palavras maduras da minha
admiração e do meu
culto.
 
 
 
(Gazeta de
Notícias / Nós e o Mundo, Rio, 10/08/1069)
 
 
 
As Mil e Uma Noites
(Minha Mãe)
 
 
Minha mãe foi uma
Sheherazade. Tinha ela o dom de inventar
atraentes enredos, que deveriam ter
sido coligidos e onde
apareciam bichos e plantas, pessoas e símbolos, suas
geniais
criações de Anabela e Micaela, suas fadas boas e más, a realidade e
a
fantasia numa sábia combinação. Além da capacidade de
transmitir as coisas mais
vivas do nosso folclore, incluindo jogos e
cantigas, e de narrar como ninguém
os contos de Grimm,
Andersen, Perrault, deixando os pequenos ouvintes presos ao
fascínio da voz e do gesto e, ainda, ao movimento dos rasgados e
lindíssimos
olhos. Minha mãe foi uma Sheherazade.
 
 
(de Folhetim do Jornal
do Comércio, Rio, 29/10/1969, reproduzido
no livro Nós e o mundo, p.
135)
 
 
 
José de Senna
Pereira, Meu Pai
 
 
O professor José de
Senna Pereira, filho de Angélica (Bousfield) e
Joaquim de Senna Pereira,
pequenos fazendeiros em São Miguel,
nasceu no Desterro a 30 de abril de 1877. Era menino quando
perdeu sua mãe, a quem idolatrava e cuja memória reverenciou
sempre. Logo depois, seu pai o levava para a casa de um tio, no
Desterro, o
comerciante e político João Francisco Régis Junior. Teve
uma infância
amargurada. Maior, porém, que o volume das
provações sofridas era o valor
excepcional da sua inteligência e do
seu caráter, marcando desde cedo a
personalidade de José de
Senna Pereira. Trabalhava e estudava quanto podia,
tendo prestado
brilhantes exames no Liceu de Artes e Ofícios, ocasionalmente
assistidos por um oficial da Marinha de Guerra, que declarou
merecer aquele
pequeno gênio continuar seus estudos na Corte. Por
outro lado, um dos
examinadores, adversário político do seu tio,
atravessou a rua para felicitá-lo
calorosamente. Foi quando surgiu a
ideia de proporcionar ao adolescente a
escolha de uma carreira.
Ele, porém, num gesto inexcedível de generosidade e
dedicação
(mesclado talvez ao orgulho), respondeu que preferia continuar a
serviço de seu tio, tendo assumido aos quinze anos a
responsabilidade do
escritório da firma Régis & Cia. Tal opção ele a
cumpriu tão séria e
fielmente que, mesmo durante vários anos após
o falecimento do tio, prestou
assistência à família deste, o que lhe
custou lutas e sacrifícios sem conta e o
obrigou a prolongar o seu
noivado com a formosa prima Amélia Régis.
 
Autodidata e ledor
assíduo de tudo o que aparecia de melhor,
estudou línguas e adquiriu sólida
cultura. Escrevia com elegância e
correção (naquela caligrafia primorosa e
firme que teria, mais
tarde, seu filho Roberto), sendo, em sua juventude,
colaborador de
várias publicações e redator de "O Mercantil", cuja
coleção deve
existir em nossa Biblioteca Pública. O cimo, porém, do seu saber e
dos seus talentos estava no conhecimento das ciências contábeis,
que lhe vinha do
magistral exercício da profissão e da atualização
que procurava ter da árida
disciplina em que se tornou especialista
e autoridade máxima. Outro ponto que
não pode ser omitido: a

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

facilidade assombrosa de realizar operações mentais,


como se
possuísse um cérebroeletrônico. Via-se por isso constantemente
cercado
de consulentes e discípulos, tendo sido um dos fundadores
e diretores do Curso
Prático de Comércio, que mantinha um
jornalzinho, e, depois, do Instituto
Comercial de Florianópolis,
oficialmente reconhecido. Entre seus alunos diletos
figuram dois
irmãos: o professor José Joaquim Brasil — fundador da Escola
Técnica de Comércio, à qual deu o nome do mestre inesquecível,
eficientemente
dirigida pelo Dr. Rubens Victor da Silva e sua
excelente equipe — e o
ex-deputado federal Orlando Brasil, que
atribui todos os seus êxitos ao fato de
ter tido como orientador dos
seus primeiros passos ao professor Senna Pereira.
 
Não é possível
também deixar de mencionar sua conversão ao
protestantismo quando muito jovem.
Foi um dos fundadores da
Igreja Presbiteriana de Florianópolis, da qual se
tornou um dos mais
acatados membros e oficiais.
 
Seu casamento com
Amélia Régis de Senna Pereira, nascida no
Desterro a 1 de outubro de 1885,
filha de Francisco Carlos Ferreira
Régis, funcionário da Alfândega, cedo
falecido, e Benvinda de
Azevedo Régis (ela, minha mãe, rosa íntegra, iria
morrer em
Florianópolis no ano de 1962 e na mesma data natalícia do bem-
amado
companheiro) foi um exemplo e um hino de permanente
amor. Em pouco mais de 15
anos de matrimônio, tiveram doze
filhos, sem que lhe coubesse a alegria de conhecer
o mais novo
(Samuel), nascido cinco meses após seu falecimento prematuro.
Este
ocorreu a 9 de fevereiro de 1923, em consequência de um
furúnculo no rosto,
desastrosamente operado pelo Dr. Fritz
Goffergé. Pai extremoso, passaria pelo
desgosto de ver morrer três
dos seus filhos em tenra idade. Quatro outros
faleceram depois de
sua morte — dois em flor e tragicamente: Carlos,
telegrafista, braço
direito da mãe viúva, rapaz belíssimo, e Carmen, um botão
de
graça e inteligência. Mais tarde, no ano de 1963, em Porto Alegre,
desaparecia Roberto, jornalista profissional e redator dos anais da
Assembleia
Legislativa do Estado, e, em 1969, no Rio de Janeiro,
José de Senna Pereira
Filho, oficial da Marinha Mercante, que
recebeu o Diploma da Medalha de
Serviços de Guerra "pelos
valiosos serviços prestados ao País". Estão
vivos: Samuel, major do
Exército, que se distinguiu na FEB por seus atos de
bravura, tendo
recebido a Cruz de Combate de 1a. Classe; Ruth, viúva do
comerciante e proprietário Álvaro de Campos Lobo; Ilka, viúva do
engenheiro
civil Newton Valente Costa; Zaura, casada com o Dr.
Octavio Dupont, cientista
de renome internacional, e Maura, casada
com o Dr. José Coelho de Almeida
Cousin. O casal Senna Pereira
teria uma bela floração de nove netos — dos quais
o mais velho é
Mauro, engenheiro civil, filho de Roberto e sua esposa Olivia —
e 21
bisnetos, que vão de recém-nascidos a universitários.
 
Quanto aos seus
alunos, foram merecidamente destacados os
irmãos Brasil, que têm dado à sua
memória décadas de fidelidade.
Mas é justo reconhecer que todos reverenciavam o
grande mestre e
que, sob o impacto de sua morte, tiveram dois gestos
singularmente tocantes. Da casa em que morávamos, à Rua 24 de
Dezembro, depois
Crispim Mira, ao velho cemitério de então,
localizado onde hoje se situa a
cabeceira da Ponte, longo era o
trajeto, em que se incluíam ruas íngremes e
escorregadios morros.
Mas os comovidos alunos fizeram questão de, revezando-se,
carregarem eles mesmos o mestre morto, sem que, em nenhum
momento, houvesse o
auxílio do carro fúnebre que acompanhava o
cortejo. Depois, cotizaram-se para
lhe darem um túmulo.
 
Lembrarei também
que sentidas orações foram pronunciadas. Que
muitos foram os amigos — humildes
e eminentes — que choraram
conosco. E, entre as numerosas personalidades —
atônitas ante o
súbito desaparecimento daquele que foi chamado "cidadão
exemplaríssimo", "prodigioso cérebro", "expressão de
dignidade
humana" — não devo deixar de citar o Dr. José Boiteux, que
afirmou ter sido o morto insigne "um homem para quem os
números não tinham
segredos". Devo citá-lo em virtude da notável
coincidência de funcionar a
Escola Técnica de Comércio Senna
Pereira no mesmo prédio da Escola Básica José
Boiteux, vinculando
num só edifício os nomes de dois ilustres catarinenses.
 
O centenário do
nascimento do professor José de Senna Pereira é,
pois, uma data que extrapola o
âmbito familiar, merecendo ser
lembrada não só pelos seus descendentes, mas
também pelos seus
discípulos, pela Escola de que é o patrono, pelos seus conterrâneos,
pelo Estado, em honra de quem foi o modelar e incontestável
pioneiro do ensino
sistemático das ciências contábeis em Santa
Catarina.
 
Quanto a mim, tenho
a alegria de estar viva para exaltar seu
centenário. E a dor de não ter tido
tempo de lhe dizer quanto o
amei — e não ter ouvido meu pai dos lábios da
menina as palavras
maduras da minha gratidão e do meu culto.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
 
(de Centenário do
Professor José de Senna Pereira. Rio de Janeiro:
Editora Itambé, 1977, p. 5
 
 
 
 
Discurso de Maura
de Senna Pereira
 
 
Cumpre-me, antes de
tudo, agradecer ou — melhor —congratular-
me com a Escola Técnica de Comércio
Senna Pereira pela iniciativa
de comemorar o centenário de nascimento de seu
Patrono.
Agradecer ao brilhante corpo docente, destacando os gestos
inexcedíveis do diretor Rubens Victor da Silva, do padre Aquilino
dos Santos e
do vereador lçuriti Pereira da Silva. E louvar a
participação dos alunos: o
belíssimo discurso de Mário José Merizio
na noite comemorativa do centenário e
o convite com que me
honraram os diplomandos de 77 para paraninfar a solenidade
da
sua formatura. Sim, louvar a juventude, sem deixar de dizer que
ela, a
juventude, não é nenhum mérito: é, sim, um tesouro, que o
homem tem e perde.
Mas, enquanto o tem, ele é inestimável,
porque representa a vitalidade máxima
do ser humano e é a fase
das realizações, das conquistas, das empolgações, das
contestações, do desejo de rasgar caminhos e até de ascender às
estrelas. Só é,
entretanto, verdadeiramente luminosa e sadia
quando sabe também valorizar o
legado recebido das gerações
anteriores. É o que está demonstrando a turma dos
formandos da
Escola Técnica de Comércio Senna Pereira —  no ano do
centenário
do seu Patrono. Como o convite a mim dirigido tem o objetivo de
homenageá-lo,
será ele o meu tema.
 
Direi, pois, que,
sem pensar em brilho literário, mas apenas
inflamada de verdade e amor, tal
como aconteceu ao traçar a
biografia de meu Pai, vou refrisar, jovens
afilhados, o que, naquela
pequena página que dediquei à grande vida do
professor José de
Senna Pereira, deixei apenas entrever: sua dolorosa
iniciação. Esta
começou ao perder sua mãe, que morreu muito moça e a quem ele
jamais esqueceu. Lembro que, certa vez, o vi fixar-me
demoradamente enquanto
seus olhos verde-escuros se enchiam de
lágrimas. Ao perceber a interrogação no
meu rosto quase aflito,
explicou com a voz embargada: "É que estou achando
minha filha
muito parecida com a mãe do papai". Eu escreveria mais tarde:
"Carrego, pois, Angélica, a avó, que tinha nome de flor".
 
Penso que o amor à
terra do nascimento, nossa terra, vinculava-se
de certa forma àquele imenso
amor filial. Apesar de sua infinita
modéstia, o renome que conquistou mais
tarde como a maior
autoridade no árido território das ciências contábeis —
repercutiu.
Ele recebeu de poderosas firmas tentadoras propostas para
trabalhar
em São Paulo. Porém jamais aceitou. É que não deixaria
nunca a terra
catarinense, como se a ela, sagrada como o útero
materno, estivesse preso por
um invisível cordão umbilical. O fato é
que a perda da jovem mãe idolatrada
arrebatou-lhe também as
alegrias da infância. Levado pelo pai para casa alheia,
embora de
parentes muito próximos, teve de pagar o pão e ó teto com o
trabalho
duro de cada dia. Era apenas uma criança — e trabalhava
e estudava, e estudava
e trabalhava. Entretanto, ao prestar exames
no Liceu de Artes e Ofícios, foi
aquele assombro: distinções com
louvor em todas as disciplinas. Houve, até, um
dos examinadores
que afirmou "não mais perguntar porque mais não sabia".
(Foram
testemunhas dessa vitória paterna que a narraram a seus filhos).
Então
por que não o mandaram fazer um curso superior, como os
mestres deslumbrados
propuseram? Ao que eu sei, deixaram a
opção com ele. E, segundo penso, levado
pela altivez sem, dúvida,
tomada esta no seu mais alto sentido, escolheu
continuar a serviço
dos parentes, pagando o que lhe parecia dever com juros
talmúdicos e passando do trabalho em casa para o trabalho no
escritório da
firma do tio, aí substituindo, aos 15 anos, a um velho
guarda-livros.
 
Assim como a
adversidade não o impediu de demonstrar seu
incomum talento, não o impediu
também de se impor ao longo da
vida pela insuperável integridade.
 
Apreciando a moral
humana, acho que temos de destacar o que é
mutável do que é intangível. No
primeiro caso, os conceitos diferem
no tempo e no espaço, aceitos pelas
comunidades como parte de
sua estrutura. E, quando no mesmo lugar mudam, são
quase
sempre resultantes da queda de teorias caducas e, portanto,
imperativos
do próprio progresso. Há, porém, um substrato eterno,
um padrão intocável, que,
em qualquer época e lugar, não poderá
ser infringido. Não sei como meu Pai, que
seguia as normas rígidas
do seu tempo, veria as mudanças que se têm operado
ultimamente.
Era conservador e austero, sim, mas também profundamente
humano.
Sei mesmo que, para certa moça amiga, que teve todas

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

as portas fechadas, ele


abriu as nossas. Estais vendo que coloco
fatos assim no plano das coisas
mutáveis de que já falei.
 
De uma coisa,
porém, estou certa: ele jamais transigiria com
qualquer infração às virtudes
que, em qualquer tempo, constituem
a dignidade da pessoa humana. Como, aliás,
jamais transigiu e
autoridade tinha para assim proceder, pois foi um exemplo
vivo de
grandeza moral. Uma das faces dessa grandeza é a palavra, é o
jamais
faltar à verdade.
 
Um dia,
conversando, no Rio, com o eminente e saudoso almirante
Arnaldo Pinto da Luz,
que foi seu amigo, ele me disse: "Você sabe
que seu Pai não mentia? Ele
era um rapazinho e já os mais velhos o
respeitavam, porque tinham certeza de
que dos seus lábios só saía
a verdade".
 
Ah, se eu sabia!
Quantas vezes nos reuniu para contar a história da
machadinha de Washington!
 
E certa noite...
(Eu imagino quanto lhe custou violentar sua inata
fidalguia e sua desmedida
modéstia — mas compactuar com o erro,
aplaudir o que não era exato, omitir-se
num silêncio cúmplice —
isso nunca!) Certa noite, apareceu, no Instituto
Comercial, alguém
que hoje seria mostrado nas tevês. A sala estava cheia de
alunos,
mestres, convidados, curiosos — para apreciarem o fenômeno.
Depois de
algumas respostas demonstrativas de agilidade mental, o
teste maior: um dos
apresentadores convidou um assistente
qualquer para encher o amplo quadro negro
de parcelas, a fim de
que, instantaneamente, fosse efetuada a soma, O que foi
feito. Mas
também, no mesmíssimo instante, meu Pai mostrou que tinha
havido um
"engano", como disse delicadamente, e deu o algarismo
certo. O grande
homem reconheceu o erro e fez a emenda. A
sessão estava encerrada. E todos
puderam verificar que não era
preciso vir o gênio de fora, porque o gênio
estava, na terra, na sala,
na hora.
 
As vicissitudes por
que meu Pai passou, não se limitaram, porém,
infelizmente, à fase larval da sua
existência. Casado com a menina
que viu crescer, que adorou sempre, que foi a
sua única namorada,
teve uma vida conjugal imensamente feliz. Eu e meus irmãos
podemos dizer com orgulho que somos filhos do amor, de um
grande amor. Mas, aí,
a companheirinha da minha infância, Zaura,
(minha irmã mais nova tem o mesmo
nome) esteve doente vários
anos, em consequência de uma queda, em pequenina. A morte do
seu anjo enfermo e a dos dois louros arcanjos (ambos com o
mesmo nome
bíblico de Saul) o arrasaram. Ficou mais melancólico,
mais esquivo, mais
fechado, o rosto belo e másculo precocemente
envelhecido, mais desencantado,
embora, na sua ardente fé,
dizendo que se submetia ao que ele chamava de
vontade de Deus.
 
Dedicado apenas ao
trabalho e ao lar e aos seus cultos de
presbiteriano convicto — ele já era,
nessa altura, malgrado os
golpes recebidos, um gigante, a figura indispensável
para que algo
fosse criado na sua seara. Nossa casa vivia cheia de consulentes,
ele rodeado de alunos nas poucas horas de repouso, de pedidos
para resolver
difíceis problemas de matemática, de insistentes
solicitações...
 
Desse modo, dois
cursos comerciais surgiram: o Curso Prático de
Comércio e, depois, o Instituto
Comercial de Florianópolis, dos
quais foi um dos fundadores e diretores. Estava
completamente
atualizado, pois, em sua pequena e seccionada biblioteca, havia
Camões, Victor Hugo, Shakespeare, autores latinos, mas
principalmente obras
modernas de contabilidade em vários idiomas.
Começou, pois, a ensinar de modo
sistemático as ciências
contábeis, formando alunos que se tornaram mestres,
mestres que
criaram cursos. E ele, o pioneiro, recebia por vezes sugestões no
sentido de escrever um tratado. Sorria (o mesmo sorriso lindo de
Samuel) e
havia uma tácita aceitação da idéia, que as provações
mencionadas e a morte
prematura não permitiram realizar.
 
Mas espalhou
sementes e é o arquiteto — através dos seus alunos
mais chegados — do que
existe em Florianópolis na sua
especialidade. Eis que Orlando Brasil fundou a
Escola de Comércio
de Santa Catarina, que já teve uma fase oficial, e José
Joaquim
Brasil, com vários amigos idealistas, entre os quais o diretor Rubens
Victor da Silva, fundou esta Casa, cujo nome é uma homenagem ao
seu
incontestável pioneirismo.
 
Casa que é a Escola
Técnica de Comércio Senna Pereira e que
podemos considerar o tratado que ele
não escreveu. Que vai
completar um quarto de século no ano próximo e está,
pois,
consolidada. É uma árvore esplendidamente carregada de mil
frutos, em que
flui o suor fecundo do professor José de Senna
Pereira.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Vós sois, queridos


afilhados, alguns desses frutos. Ide e frutificai
também. E aceitai os meus
comovidos agradecimentos e parabéns
por estardes cultuando um verdadeiro homem
e um mestre
extraordinário que, em sua sofrida e curta existência, deu um
luminoso passo à frente. E que, tal como São Paulo, cujas epístolas
amava e
cujos ensinamentos seguia, "combateu o bom combate,
encerrou a carreira,
guardou a fé". E a "coroa da justiça" — recebe-
a também no reconhecimento
da posteridade.
 
 
 
(de Centenário do
Professor José de Senna Pereira. Rio de Janeiro:
Editora Itambé, 1977, p.
44-48. Parte foi reproduzida na crônica
"Retrato de meu pai" na Gazeta
de Notícias / Nós e o Mundo, Rio,
13-14/8/1978 como trecho do meu
discurso de paraninfa, em
dezembro do ano passado, na Escola Técnica de
Comércio, de
Florianópolis, que tem o nome de meu Pai").
 
 
 
 
 
 
 
4. SOBRE A MULHER E
O FEMINISMO
 
 
 
LIBERTAS MULIERIS
 
 
Neste dia em que no
coração nacional há a exultação fremente da
Liberdade, ergo a minha voz, que é
toda feita de esperança e
sonho, dirigindo-a às patrícias minhas e falando-lhes
um pouco da
independência que a parte feminina da humanidade precisa
usufruir.
 
Não prego a
emancipação absoluta da mulher. Jamais figurou nas
minhas aspirações feministas
princípio algum que fuja dos limites
do possível. Combate merecem as correntes
das que exageram, das
que exigem demasiado.
 
Precisamos
concordar em que incontáveis conquistas obtivemos
após a Conflagração Européia,
na qual nossas heroicas irmãs se
distinguiram pela coragem, pelo patriotismo,
pelo sacrifício.
 
Empolgou o mundo o
exemplo de valor extraordinário que
mostraram possuir as heroínas da guerra, e
cresceu assim em
todos os meios a influição da mulher.
 
E hoje se
multiplicam as ligas feministas e femininas nas nações
mais prósperas e
civilizadas. E as mulheres gozam direitos políticos,
têm interferência nos
negócios públicos, tratam cuidadosamente de
dispensar proteção e carinho à
mulher proletária...
 
E "a mais
casta e a mais sacrificada metade do gênero humano"
desperta da sonolência
milenária, soerguendo-se com inteligência e
nobreza, contrariando da mais
eloquente forma o conceito iníquo de
inferioridade intelectual que lhe atiraram
à face Schopenhauer e a
coorte numerosa e injusta formada por representantes do
sexo
oposto (o homem sempre nos temeu a emulação...).
 
E a mulher em todo
o mundo se agita na febre do trabalho mais
intenso, querendo somente cumprir
fiel e dignamente o destino que
lhe deu o Criador: o de ser a companheira do
homem, amorosa e
infatigável.
 
No Brasil há também
um grande movimento em prol dos magnos
interesses nossos. A independência pelo
trabalho já nos está sendo
assegurada. Não temos agora ingresso nas casas de
ensino
superior? Não se nos abrem as repartições públicas, mau grado o
escândalo que tal fugida do (ar causa aos espíritos estacionários,
impenitentes
tradicionalistas?
 
Mas convenhamos: No
comércio, no magistério, nas fábricas, não é
verdade que a mulher obtém
remuneração material inferior à que
recebe o homem? Não é verdade que as leis
sociais, estabelecidas e
elaboradas pelos homens, exigem muito da mulher
(cumpri-las com
orgulho, espontaneamente, é o nosso dever) enquanto concedem
ao
homem a maior e mais ampla liberdade?
 
E as leis do país,
às quais a mulher se tem que submeter, quem as
faz? E no lar? Existe por acaso
reciprocidade nos deveres conjugais?
 
Observa-se ou não,
pelo menos aqui no Brasil, o triste retrocesso
criado pelo fato de, na prática,
terem os homens sobre as mulheres

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direitos de vida e de morte? E os assassinos


de mulheres não são,
invariavelmente, absolvidos?
 
Será que nos não
ferem e nos não magoam tantas e tamanhas
injustiças? Penso, pois, que forçoso é
sejam incansáveis nossos
esforços no sentido de um dia, unidos homens e
mulheres na
solidariedade mais afetuosa e cordial, terem ambos deveres, mas
também ambos terem direitos.
 
Encorajo-me, então,
e digo que, considerando muitas vezes os
empecilhos que estorvam a marcha
natural das atividades
femininas, em busca dos direitos igualitários dos sexos,
acho-os,
infelizmente, representados por inúmeros defeitos nossos.
 
Os trajes imorais
que estão sendo preferidos pelas mulheres,
encontrando guarida em toda a parte,
constituem nota evidente em
nosso desfavor... Abusos e excessos de maquillage,
tornando-nos
máscaras... Mais preocupação com o luxo que com a instrução....
Mais egoísmo que altruísmo...
 
E o obstáculo
máximo, a meu ver: o de as mães não desviarem as
filhas do abismo das
frivolidades e apontarem a superioridade dos
filhos. Verdade amarga! É que não
triunfaremos sem que, no
recesso dos lares, as que têm as frontes aureoladas
com a coroa
augusta da maternidade encetem nobremente a verdadeira
campanha
feminista, que deve ser feminina antes de tudo.
 
Dos nossos
arraiais, patrícias minhas, urge que desapareçam estes
grande e sérios
defeitos.
 
Emancipemo-nos
deles, buscando a felicidade nossa e a de nossos
irmãos.
 
Soou, no Brasil,
para a mulher, a hora que proclama a Liberdade,
mas a Liberdade que nos oferece
a compreensão do nosso valor, do
nosso dever, do nosso direito, e que nos ergue
do atraso que nos
prostrou durante séculos e das vidas consagradas exclusivamente
a
futilidades mil, para a reivindicação dos ideais mais sãos e mais
nobres,
pelos quais sempre devemos propugnar.
 
Independer da
ignorância, da injustiça, do egoísmo —  deve ser a
suprema divisa do nosso
sonho, contemplando o porvir. Libertas!
 
 
 
Revista do centro
catarinense de letras,
ano 1, n.° 3 Florianópolis,
Setembro de 1925 (não tem paginação numerada).
 
 
 
PREPAREMO-NOS!
 
 
"Toda gente
sabe avaliar o poder, a influência benéfica que uma
mulher pura de talento
exerce num círculo proporcional ao seu
exemplo, aos seus prejudicados".
 
Nos tempos
hodiernos em que tanto se há submetido à crítica, à
análise e ao estudo o fato
de se querer o engrandecimento da
mulher pela compreensão cada vez mais nítida
e mais cabal do seu
doce e alto destino e pela conquista dos direitos
egoisticamente
usurpados pelo mais forte —  não admira que de quando em
quando, articulistas citem a frase agora tão divulgada e sempre tão
bela de
Napoleão, frase que é desejo preparação de mães para a
glória da França.
 
É que todos os que
anelam uma sociedade menos corrompida,
costumes mais sãos, a pureza do lar e a
grandeza da Pátria — 
sabem conscientemente que a resolução do problema
reside, em
grande parte, nas mãos da mulher, pertence às mães —  e daí o
invocarem,
com olhos cheios de fé na majestade e no poder de Eva,
o apelo do grande
general sonhador, atualizando-o, adaptando-o ao
Brasil querido,
 
Eu quando digo
mães, refiro-me a todos os seres femininos, por
isso que a mulher tem dentro de
Si, inato", como disse o escritor, o
instinto maternal. "Mães
espirituais", "mães de corações" —  é o
grito sincero que
desferem as gargantas das feministas brasileiras,
mulheres, de eleição,
ousadas, que merecem todo o apoio das suas
patrícias pelo devotamento e
desassombro com que idealizam
melhores dias para o Brasil, querendo esse
triunfo alcançado, num
surto esplêndido de corações e de inteligências, de amor
e de
sonho, pela coesão do esforço feminino, pelo extravasamento do
afeto da
cultura, da bondade infinita da Mulher.
 
Quando se agigantar
o número das mulheres virtuosas, cristãs,
puras, eruditas, inquebrantavelmente
abnegadas e heroínas na

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

"maternidade espiritual" e afetiva, mães pelo


amor incomensurável,
modelos pela vida incorruptível —  decrescerá, é lógico,
o número
considerável das mulheres frívolas, superficiais, mascaradas, sem
princípios, sem aspirações altruístas e grandes, sem consciência de
personalidade, mulheres que se sujeitam — quantas vezes e com
que deplorável e
ridículo servilismo! —  à exibição de trajos
amorais, espalhafatosos,
indecorosos, —  e então as sociedades se
purificarão no crisol do salutar
influxo moral e intelectual do coração
da Mulher, e para a Pátria deslizarão os
sonhados dias de mais
fraternidade, de mais progresso, de mais elevação, de
mais paz!
 
Incendeia-me a alma
a perspectiva de um futuro de luz, radiante e
a cooperar, voluntária e
diretamente, para a chegada da grande
época de uma sociedade mais perfeita,
unida no amor fraternal,
cheia de Cristianismo —  eu vejo, sublime, doce,
independente, a
Mulher.
 
Sonhemos um pouco,
irmãs e companheiras minhas, com um Brasil
de homens aptos e honestos, de
mulheres amorosas e sábias, e
pensemos que o nosso contingente, por menor que
seja, não será
inútil, não será posto de lado e o seu valor se cristalizará em
frutos
opimos, deliciosos, magníficos.
 
Mas não esqueçamos
que a auto-preparação da Mulher é
imprescindível; e, preparadas, educadas,
livres das peias que só
cultivam a ignorância; divorciadas de quaisquer
frivolidades que
tanto depõem contra a Mulher, aumentando o sorriso dos
ironistas,
dos céticos, dos indivíduos que não creem em nós; formando e
consolidando uma forte cadeia com os nossos esforços pela
moralidade, pela luz
intelectual, com os ideais que nos fraternizam
e nos exaltam — 
impor-nos-emos e venceremos e os nossos
irmãos aceitarão não com a má vontade
atual, mas satisfeitos,
reconhecidos, o concurso que lhes oferecemos para a
felicidade do
gênero humano e, falando mais particularmente, para a
prosperidade dos brasileiros.
 
E não haveremos
nós, ó Mulheres catarinenses, não nos haveremos
de enfileirar também, formando
ao lado da nobre e pequena
cruzada de brasileiras que surge no nosso Brasil,
alçando a bandeira
de um feminismo que suplica justiça e equidade, que quer e
deseja
beneficiar, com divisas que elevam e dignificam os corações, as
famílias, a Pátria?Não participaremos, ó irmãs, do tão grande
sonho?
 
 
Maura de Senna
Pereira
 (Da comissão
censora do C. C. de Letras)
 
 
 
(da Revista do
Centro Catarinense de Letras n. 2 —  Florianópolis,
Agosto MCXXV, p.
2.
 
 
 
 
 
OS SURTOS DO
FEMINISMO EM SANTA CATARINA
 
 
 
Fala ao Dia a
brilhante escritora catarinense MAURA DE SENNA
PEREIRA
 
  
Dentre as
organizações artístico-literárias que constituem a
moderna geração intelectual
catarinense, fulgura como astro da
primeira grandeza a inteligência varonil da
maviosa poetisa e
vibrante escritora Maura de Senna Pereira.
 
Quando de nossa
estadia na risonha capital do Estado vizinho,
tivemos a feliz oportunidade de
manter por momentos interessante
palestra com a ilustre patrícia. É essa
palestra que a seguir
reproduzimos, certos de que proporcionamos assim um grato
prazer
às nossas gentis leitoras.
 
Que diz do
feminismo em Santa Catarina?
 
Compreendedoras das
nossas aspirações e direitos, da nossa ânsia
indômita de emancipação integral,
infelizmente, temos poucas,
pouquíssimas, e, além disso, sem que hajam erguido
altivamente a
sua bandeira de centralização e direção. Mas o fato é que a
mulher
catarinense, consciente ou inconscientemente, avança, mormente
sob o
ponto de vista da emancipação econômica. Uma parte
considerável das novas
gerações femininas já se preocupa com a
aquisição libertadora de um meio de
vida, evitando assim o
amargor do parasitismo por ocasião das eventualidades. E
isso,

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afirmo com esperança e orgulho, já é alentador e nos dá direito de


forjarmos sonhos mais altos...
 
Quer então que a
mulher se baste a si mesma?
 
Oh! Sim. Este é o
desiderato máximo da nossa campanha. Em o
atingindo, a mulher se terá
reintegrado no seu próprio valor e, a
influição benéfica dessa conluista, ela a
conduzirá, generosa e
serena, até a primeira instituição social, o casamento,
que se fará
então pela necessidade da alma, do Amor verdadeiro, e não por
interesses comerciais, que o aviltam e degradam.
 
E nas diversas
profissões, poderá falar-nos algo da ação feminina
em sua terra?
 
Na palestra que fiz
a 27 do corrente, no Teatro Álvaro de Carvalho,
e que antes de 15 de outubro
será, na integrada, estampada na
República, gizei um ligeiro histórico dos
progressos femininos
nossos em vários ramos de trabalho intelectual. Tive então
a
oportunidade de citar alguns nomes mais salientes no magistério,
no
funcionalismo, nas artes, nos estudos, e, por último, no
comércio. É a elite
precursora —  pequena e vitoriosa —  que
derrama abundantes ondas de
estímulo na alma de todas as
mulheres de boa vontade.
 
Está satisfeita com
a remuneração que aqui se dá ao trabalho da
mulher?
 
Não, por isso que,
na quase totalidade de profissões em que
homens e mulheres exercem a mesma
atividade, não há
nivelamento nos ordenados que uns e outros recebem. Que
preconceito difícil de sepultar este que considera inferior o trabalho,
quando
é o nosso sexo quem o faz! Infelizmente, esta verdade
ainda está de pé;
continuamos a ser exploradas, pois parece
estarmos longe de atingir um dos
pontos fundamentais do nosso
programa: "a trabalho igual, igual
salário". A mulher cozinheira, a
mulher operária, a mulher empregada de
comércio e —  e que
formidável injustiça precisa de ser vergastada no
nosso magistério!
—  a mulher professora —  percebem menor
remuneração que o
homem pelas mesmas horas de trabalho idêntico. E as
lavadeiras,
as engomadeiras e as nossas rendeiras artistas —  como são
exploradas! Si não fora uma tarefa superior às minhas forças, eu há
muito teria
acendido a greve no meio dessas classes laboriosas e
escravizadas do meu sexo!
 
Dir-nos-á alguma
cousa sobre a mulher catarinense na literatura?
 
Referi-me também a
este ponto capital na minha palestra.
Delminda Silveira era a nossa criadora
única de páginas de arte e
de emoção.. Algumas organizações, porém, há poucos
anos,
estrearam na literatura, animadas do incentivo que lhes não
regatearam os
nossos intelectuais. E quero fazer justiça ao Centro
Catarinense de Letras,
aplaudindo, mais uma vez, o ingresso franco
que concedeu a estas poucas
torturadas do pensamento e
sensitivas da Beleza Eterna.
 
Bate-se também pela
concessão do voto à mulher?
 
Sou fervorosa
adepta dessa concessão, porque penso como o
senador Moniz Sodré, que escreveu:
 
"As mulheres
constituem a metade, pelo menos, da população de
um país. Se lhes impõem o
dever de obediência aos governantes e
lhes negam o direito de influírem na sua
escolha, elas são vítimas
de odiosa prepotência, porque é da essência do
próprio regime
democrático e representativo o princípio elementar e que as leis
devem ser feitas pelos delegados dos indivíduos a quem elas vão
ser aplicadas.
 
"Mas a
elevação cultural é a base para todas as reivindicações
sociais, civis e
políticas, e, por isso, é por ela que principalmente
me bato. Tanto é assim que
pretendo fazer alguma coisa de útil
neste sentido, na minha querida
Florianópolis. Permitam, já agora,
lhe declare o projeto de criação de um Club,
para a educação
intelectual e artística da mulher. Comunicando a ideia de
realizar
este árduo tentâmen a Maria Lacerda de Moura, a maior defensora
no
Brasil dos interesses sagrados da mulher e da criança —  tive o
grande e
doce conforto moral de receber para o meu sonho um
tanto audacioso o lindo
ritmo do seu admirável coração e o beijo
comovido da sua alma generosa. E daqui
a alguns meses —  quem
sabe? —  possa comunicar aos meus brilhantes
colegas e amigos
ilustres da causa que eu defendo imperfeita e zelosamente, a
realização desta minha esperança: a ereção de um estandarte
verde e magnífico,
santificado pelo batismo dos objetivos luminosos
—  amparadas no qual
venham sonhar as moças catarinenses...
Não me falta otimismo, e
"otimismo", como disse Marden, "é o
artífice do êxito".

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
  
(de República,
12/11/26 p. 4)
 
 
 
SEM TÍTULO
 
 
Agora que
aguardamos a discussão, no Senado, do projeto que
concede o direito do voto à
mulher brasileira, nesta hora em que as
entrevistas às folhas do país se
sucedem e em que lemos opiniões
favoráveis ou tradicionais, que o encaram sob
uma forma séria e
outras sob um sarcasmo velado, muitas vezes imbecil, pois não
é
verdade? —  não neguemos a significação e o valor que, para todos
os
espírito partidários do ingresso do elemento feminino no
ambiente político,
representa a publicidade da carta que o dr. Clovis
Bevilacqua escreveu ao dr.
Juvenal Lamartine.
 
O jurisconsulto
ilustre, consultado sobre o assunto, "que está na
ordem do dia", diz,
na sua epístola ao ilustre presidente do Rio
Grande do Norte, que, perante a
Constituição brasileira, não há
defesa para o raciocínio que procura profligar
a legítima aspiração
feminina em nossa Pátria: de eleger e de elegibilidade. Frisa ainda a
inteireza de cidadania, garantida à mulher, na carta constitucional,
e
que, na qualidade de cidadã, devera, pelo art. 70, ter o direito de
se alistar,
completa a maioridade.
 
Sempre surgem os
sofismas, não podemos negar, mas já tem sido
dito muitas vezes que, na vida
histórica dos povos, os grande ideais
e conquistas sofreram ápodos... e depois,
muito naturalmente,
entraram para o mundo das coisas consuetudinárias. Será
assim,
sem dúvida, com o concurso da mulher no largo âmbito intelectual
e com o
reconhecimento da sua idoneidade política, sobre a qual
acaba de expender o seu
voto o consagrado mestre, nessa valiosa
carta ao grande pioneiro do feminismo
político do Brasil, que falou
recentemente: "Não podemos mais adiar a hora
da participação
feminina em todas as questões de interesse coletivo".
 
 
 
SEM TÍTULO
 
 
Chegou, há dias, à
capital da República a primeira eleitora do Brasil,
senhorita Júlia Barbosa,
professora de matemática da Escola
Normal do Rio Grande do Norte. Logo que, na
terra da
extraordinária Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi sancionada a lei
que concedia à mulher o direito do voto, Juba Barbosa, que
pertence à elite
mental do seu pequeno e glorioso Estado, requereu
fosse o seu nome incluído no
alistamento eleitoral do município de
Natal. O despacho, que deferiu a petição,
firmado pelo dr. Xavier
Montenegro, juiz de direito da 1a. vara, é um estudo
precioso, com
argumentação irregrafável a favor da capacidade política da
mulher
brasileira em face da Constituição Republicana. Na sua, por todos
os
títulos, altíssima sentença, o dr. Xavier Montenegro (e basta-nos
comentar esse
único ponto) lembra a opinião dos constitucionalistas
Barbalho, Milton e Carlos
Maximiliano, que não admite seja
estendido à mulher o direito do sufrágio,
devido ao fato de, na
Assembleia Constituinte, não passarem as emendas que o
concediam. Lembra, porém, igualmente, o autorizado parecer do
muito ilustre dr.
Araújo Castro, que aponta como causa de tal
conclusão a tácita concessão de
prerrogativas políticas ao elemento
feminino, na carta constitucional. Tal
fato, que, seriamente, não
mais se pode negar, teve, há pouco, no Senado, em
palavra
memorável, uma confirmação sem rebuços e sem peias, de um
constituinte
que assistiu às discussões das aludidas emendas: o
senador Adolfo Gordo.
 
Falávamos, porém,
na chegada ao Rio da primeira eleitora
brasileira. Os elementos mais
representativos do feminismo carioca
fizeram-lhe honrosas homenagens, foi-lhe
oferecido um almoço,
saudando-a nessa ocasião a conhecida escritora e poeta
Ester
Ferreira Vianna, uma das mais bravas auxiliares de Bertha Luiz na
grande
obra da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.
 
 
(de República,
4/7/28)
 
 
 
 
SEM TÍTULO
 
 
Revista Feminina... Citemo-la como
um puro e clarividente veículo
das grandes aspirações da mulher brasileira, não
só das hodiernas,

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

relativamente à posse da emancipação econômica e à outorga


dos
direitos de cidadã, sendo também das doces e perenes,
relativamente aos
trabalhos domésticos, ao encanto de reinar,
plenificando-a de virtude e beleza,
na igreja toda branca do amor
—  que é o lar.
 
Revista Feminina... E, citando-a,
não esquecemos nem podemos
esquecer o nome aureolado de Virgilina de Sousa
Salles, irmã do
comediógrafo ilustre Cláudio de Sousa, que a fundou em 1914,
obedecendo ao impulso generoso e lúcido da sua individualidade,
nascida para os
sonhos bravos e para as onipotentes virtudes.
 
Morta essa
conspícua senhora quando tão alto e vitoriosamente
erguera a bandeira nova no
ambiente de penumbra e de miopia do
feminismo pátrio, uma continuadora surgiu
na pessoa de Avelina
Saltes, que o seu próprio sangue, o seu exemplo e o seu
amor nos
deram.
 
Revista Feminina.. Leiam-na todas
aquelas que amam e prezam a
sua cultura e a sua feminilidade.
 
  
(de República,
24/7/1928)
 
 
 
SEM TÍTULO
 
 
Feminismo é hoje
uma palavra muito explorada e muito adulterada
e de tal forma que, para algumas
visões, significa um movimento
que vem tirar à mulher o encanto máximo da sua
feminilidade(!) e
a consciência dos seus sagrados deveres no templo sagrado do
lar.
 
Isso seria um
monstruoso pecado.... melhor: uma impossibilidade!
 
Mas para tanto
talvez concorressem aqueles excessos e aquelas
violências (nada dignas de
imitação) das primeiras sufragistas
inglesas, lideradas pelo espírito agitado
de miss Panckurst, que foi
aliás um grande espírito.
 
As ideias, porém,
se foram depurando e atingiram o seu ambiente
de equilíbrio e serenidade; e
existam embora mulheres que acaso
professem à entrance o seu credo de
emancipação, estadeando
atitudes ridículas, a verdade é que o programa feminino
tem esta
formosa síntese: Bastar-se a mulher a si mesma, com o
conhecimento de
uma profissão compatível com a sua natureza,
para evitar os desgostos e as
humilhações da vida parasitária, mas
com o escudo de ser sempre mulher e a
glória altíssima de amar
sempre o seu lar.
 
Eis o que é
infinitamente elevado e que merece, por isso mesmo, o
respeito das almas
superiores.
 
 
(de República,
5/9/1928)
 
 
 
BENDITO TRABALHO DE
MÃES E DE PROFESSORAS
 
 
É a vós, alunos
desta escola que se destinam minhas palavras de
hoje.
 
É a vossa
inteligência e ao vosso coração de crianças, que as
professoras desta casa
andam enriquecendo e embelezando dia a
dia com a lição e com o conselho,
fazendo a um tempo trabalhos de
mães e de apóstolos —  que se destinam as
palavras que vos direi
neste dia que é o dia da escola.
 
Dentro dos
desencantos da vida eu vos quero contar —  aparecem
os traços fortes da
Beleza, enternecendo as criaturas: porque Deus
é o próprio seio da Beleza e
assim ela está destinada a viver
sempre, dourando os carinhos da terra e
enfeitando as horas do
homem.
 
E eu considero um
traço forte de Beleza e idealismo que fixou,
entre outros dias destacados por
uma significação, para o culto
comovido de nós outros —  o dia louro da
criança, o dia abençoado
do trabalho, o dia divino das mães.
 
E abençôo, por isso,
igualmente, fervorosamente o que estamos
celebrando por entre os encantos desta
radiosa manhã barriga-
verde o dia da escola!
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Porque nele se
exalta o trabalho silencioso e eloquente, porque é
simples e fecundo, daqueles
que trabalham a alma de borboleta da
infância com a religiosidade dos artistas,
dirigindo-a para as rotas
felizes do alfabeto e para os grandes sentimentos da
humanidade e
do patriotismo. Porque nele se exalta a casa que é o vosso segundo
lar e onde vos iniciais nas trabalhas à terra, nas adorações à luz, e
que vos
quer a todos criaturas que honrem a terra farta e generosa
sobre que caminhais
com um sonho na vossa fronte altaneira de
brasileiros.
 
Louvado seja, pois,
o grande dia da escola, da escola que vos
ensina todos os ritos do civismo e
todos os cânticos à Bandeira.
 
A esta que acaba de
ser hasteada, feita o alvo acarinhado dos
nossos olhares, repousando trêmula e
ofegante no azul do céu e
inspirando-nos lá da altura!
 
A esta em que
devemos ver o Brasil inteiro, abençoando-nos e
recebendo as bênçãos claras do
nosso amor ágil, nervoso, leal, puro
como nasceu, que tem na sua arca o ouro do
seu tesouro e tem no
seu cavalo a asa que Deus lhe deu.
 
 
(Discurso —
Florianópolis, A SEMANA, 31 de outubro de 1929, p. 1)
 
 
 
BRASIL FEMININO
 
 
Acaba de aparecer o
primeiro número de Brasil Feminino. Tal
acontecimento foi por certo a nota mais
espiritual do verão
brasileiro. Nascendo no Rio, a nova revista se destina a
todos os
lares de nossa magnífica pátria tropical.
 
Sua diretora é a
conhecida escritora e poetisa senhora Iveta
Ribeiro, um singular coração sempre
aberto em flor, a abraçar,
comovida, e a beijar, incansável, todas as nobres
causas e todas as
iniciativas que, por sua natureza, exigem os coeficientes da
coragem, da bondade e da inteligência.
 
Por certo, como
muito bem, sem pingos de vaidade e com a sua
gentil franqueza, dona lveta
assegura no pórtico da sua e nossa
revista, não cabe a ela a glória de ser a
primeira senhora brasileira
a fundar um magazine exclusivamente devotado aos
interesses
literários, artísticos, domésticos e sociais da mulher.
 
Sempre que se
exalta a obra de uma mulher que se acha à frente
de algum órgão jornalístico em
nosso imenso país, isto me parece
lembrar o nome da baiana Violante de Bivar,
findadora no século
passado do Jornal das Se horas, iniciadora por isso do
periodismo
feminino no Brasil e sobre a qual acaba de publicar um reparador e
formoso estudo bio-literário o ilustre Afonso Costa no seu livro
Poetas de
outro sexo.
 
Mas a primeira
revista dirigida por mulher sob o cuidado do sol
ardente do brasileiro foi
aquela que deve existir ainda hoje na
metrópole paulista e a que, depois de
fundá-la, a grande irmã do
acadêmico Cláudio de Sousa deu até a morte todo o
calor do seu
coração intrépido, cheio das diretrizes que lhe comunicou o grande
instante pós-guerra e cheio também do patriotismo atávico de suas
irmãs
bandeirantes. Falo na Revista Feminina.
 
Lembro depois Renascença
que, no mesmo glorioso S. Paulo, a
muito culta Maria Lacerda de Moura fundou há
dois lustros, com o
intuito largo de não só agasalhar a pena das Evas ilustres,
mas
também debaixo de uma bandeira de emancipação de classes e de
sexos,
realizar a confraternização espiritual americana. Vítima
talvez do seu arrojado
programa, Renascença teve uma vida de
poucos meses.
 
No Rio, "nesta
imensa cidade fútil", como escreve Mário Poppe, a
escritora Francisca de
Basto Cordeiro, que agora ocupa na
Academia Carioca de Letras a cadeira
patrocinada por Raul
Pompéia, fundou Única, já com um luzido corpo de
colaboradores e
ilustradores inteiramente feminino.
 
Morrera essa linda
revista como uma cigarra cansada do seu lindo
canto e eis que dona lveta
Ribeiro, sem medo das curvas e das
pedras do caminho, aparece agora, iluminada
e generosa, com
caravana das suas companheiras de sonho, a irradiar o seu
entusiasmo e a bravura simpática de sua iniciativa.
 
A ilustre senhora
visitou há pouco a Europa e animou-se com o
exemplo de idênticas realizações
naquelas plagas que são ainda o
feitiço para a gente de espírito em todo o
mundo.
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Dá-nos agora Brasil


Feminino.
 
Não é uma fanfarra
de guerra. Não quer a de resto impossível
odiosidade entre dois sexos que foram
feitos para se amarem e
compreenderem.
 
É uma obra serena
de amor e de civismo. Quer o intercâmbio das
mulheres cultas. Foi criada para
que se tenha no Brasil uma vitrine
mensal das possibilidades mentais e
realizações práticas da mulher,
na arte e no pensamento, no lar e na sociedade.
Será, como o
primeiro número demonstra, um encanto aromal para as moças e
para
as donas de casa e um delicado encantamento para as garotas
de escola. E, para
sua maior glória, em todas as suas páginas
flutuará o perfume do "eterno
feminino", indispensável à felicidade
do homem e à poesia da vida.
 
 
 
(Recorte não
identificado —  Acervo da ABL)
 
NOTA: Num
comentário sobre a revista, o jornal República
destacou: A diretora da
revista acaba de convidar a escritora sra.
Maura de Sena Pereira Lamote para
ser a representante de Brasil
Feminino no Estado de Santa Catarina.
 
 
AINDA REVISTA
BRASILEIRA
 
 
A vitoriosa revista
Brasil Feminino, que já está no seu sexto
número, o que eloquentemente atesta o
valor intelectual e a
fecunda teimosia da simpática jornalista patrícia d.
Iveta Ribeiro,
tomou a iniciativa de um concurso interessantíssimo e que está
despertando na imprensa do país comentários tais que valem por
um anúncio
unânime de vitória.
 
Trata-se da eleição
do maior poeta moço do Brasil. As bases do
concurso estão já lançadas e,
segundo elas, não poderão ser
votados os aedos que hajam atingido os quarenta
anos...
Mensalmente se têm realizado as apurações, sendo que a final e
decisiva
ocorrerá a trinta de setembro próximo.
 
O Eleito do Verso
terá muitas consagrações. As duas mais bonitas,
porém, serão os prêmios que lhe
oferecerá Brasil Feminino: a
edição luxuosa de uma obra inédita e o
título de maior poeta moço
do Brasil", em pergaminho, executado por uma
artista de renome.
Além de todos esses lauréis, lhe será dedicada uma festa
suntuosa
e lhe será aumentada, para glória sua, a ronda surda da inveja...
 
A bela revista, que
é aqui vendida na Livraria Pascoal Simone, tem
recebido votos de todas as
partes do Brasil: da terra castigada das
carnaúbas, das montanhas mineiras, do
sul cheio de lendas e de
bravuras, da pátria dos bandeirantes, do norte dos
botos e das
iaras...
 
As nossas
conterrâneas, e só elas, têm assim oportunidade de
mandar também o nome do seu
poeta mais lido e admirado (e bem
pode ser um catarinense), pois o
originalíssimo concurso só aceita,
o que o torna ainda mais interessante e
discutido, o voto feminino.
 
 
Maura de Sena
Pereira Lamott
 
(Recorte não
identificado, sem título —  Acervo ACL)
 
 
 
A NOVA MULHER
 
 
"Trabalhe,
peça ao homem o amor e não o pão cotidiano" — 
aconselhava Eleonora
Duse. E, quer queira ou não, a mulher
moderna estuda, trabalha, luta. Há que
firmar-se como pessoa
humana, tornar-se uma unidade econômica, um ser
participante.
Quantas vezes, porém, a mais áspera de suas lutas não é a que
trava pela sobrevivência, por um lugar ao sol, um posto, um
diploma, urna
carreira: é a que se processa dentro de si mesma.
Este apelo atávico, este coro
das avós-rainhas-do-lar, esta fala de
sereia que vem dos recessos do seu
próprio coração, este drama de
não estar desatada do passado e ter de jogar-se
na luta áspera dos
dias presentes — confio que ninguém analisou melhor do que
Alexandra Kolontai em seu livro "A Nova Mulher e a Moral Sexual".
Nessa abordagem e dentro da faixa do meu conhecimento, penso
que nem mesmo a
alcança Maria Lacerda de Moura, que tanto
marcou, empolgou, tumultuou com seus
livros a minha
adolescência (ao ponto de eu levar para o culto, em desafio, a
"Religião do Amor e da Beleza" em vez da Bíblia) e que foi, afinal,

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embora injustamente esquecida, a mais corajosa escritora brasileira


a tratar,
até hoje, da condição feminina.
 
Já li que a
expressão nova mulher nasceu dos movimentos do
Women's Lib. Não. Ela é
talvez contemporânea do término da
Primeira Guerra Mundial, época de que me
parece datar o livro da
Kolontai, que somente duas décadas depois chegou ao
Brasil. Foi
quando o li.
 
Quanto àquelas
vozes ancestrais, chamando para o comodismo e a
dependência, não há dúvida que
de mãe para filha se vão
atenuando e que a geração atual, a esse respeito, já
se encontra
quase ou totalmente libertada. Agora, a menina-e-moça já pode
curtir o seu preparo para a vida com a mesma naturalidade de um
rapaz. Adquirir
o "fluido imponderável que nutre o espírito e se
chama cultura"
(segundo Rose Marie Muraro, em vinte anos, a
partir da década de cinquenta, o
número de universitárias cresceu
dez vezes no Brasil) e saber que nasceu também
para exercer uma
profissão — tal como o companheiro homem. Poderá encontrar
contestações fora, mas não dentro de si mesma. Nova mulher?
Novíssima.
 
 
 
MATERNIDADE
 
 
Enquanto embalas
teu pequenino, esse baby rechonchudinho que é
a realização do velho sonho que
alimentaste a servir, embalando
teus filhinhos de brinquedo, as bruxas de pano
e as bonecas de
louça; enquanto embalas teu filho de verdade, teu bonequinho de
carne e osso —  pensas acaso, mãezinha jovem, para onde vais
dirigir seus
passos, quando ele começar a compreender?
 
Teu amor de mãe
ultrapassa com certeza o vaidoso amor de
embalar um bebê de verdade, que se
gerou em teu ventre moço e
suga o leite em teus seios de rosa, formosos e
fatos.
 
Teu amor de mãe vai
até essa almazinha que verás desabrochar,
entre surpresas e, quiçá, apreensões.
 
Um dia a vida to
arrebatará, ao nenê rechonchudinho de agora, que
nasceu da primavera da tua
carne, enquanto a primavera lá fora
intumescia de seiva os canteiros...
 
Precisas pensar em
tudo isso e não somente no canto lindo com
que embalas hoje teu bonequinho de
verdade.
 
Terás de orientar
seus passos por um caminho certo. Como irás
fazê-lo? Pensa bem...
 
Hoje todas as mães
conscientes têm seus queridos rebentos ante
uma encruzilhada séria: ou criá-los
dentro da mentalidade viciada
da época ou ensinar-lhes "a verdade nova da
vida"...
 
Não terás remorso
se o levares pela primeira estrada? Não serás
covarde para o encaminhares na
segunda?
 
Lembra-te também
que nos nossos dias falta trabalho e a fome uiva
e a opressão cresce e muitos,
infinitos seres ficam sem resposta
para os reclamos imperiosos da sua carne e
do seu espírito. Daí,
quem sabe, a "greve dos ventres"? O paradoxo de
muitas mulheres,
que seriam mães admiráveis, renunciarem conscientemente à
maternidade!
 
Mas por que estou
eu com tanta frase para teus ouvidos virgens de
tais palavras?
 
Além de tudo, devo
estar a falar-te uma língua difícil e estranha:
não me entendes.
 
Criarás o teu
filhinho como te criaram a ti, sem que a tua
consciência doa, sem o menor
protesto do teu eu, pobre eco desta
civilização que está nos seus últimos
bruxuleios.
 
Todavia és feliz e,
cansada de ouvir-me, sorris novamente para teu
nenezinho, cantando...
 
E eu invejo-te,
porque penso em como seria preocupada a minha
glória imensa se eu tivesse um
filhinho!
 
 
 
IRMÃZINHA
 
 

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Chegas ao quarto em
que eu sofro e vens consolar-me, irmãzinha.
Tua mão pequena, ativa e magra de
operária pousa em minha testa
ardente.
 
Que instante
milagroso de frescura!
 
Irmãzinha...
Deixa-me chamar-te assim, com esta fraternidade que
salta espontânea dos meus
lábios, pois, como as adoradas
irmãzinhas da minha carne, compreendeste a minha
ternura
humana.
 
E vens agora
oferecer-me a água pura do teu sorriso, o contato
fresco da tua mão e, pingando
ainda os diamantes líquidos da
fonte, este cacho agreste de flores novas. Que
cheiro bom de amor
a tua visita me trouxe!
 
Mas não te aflijas
com o meu novo martírio. Si a vida fosse mais
simples e mais justa, eu não
estaria aqui a suportá-lo, mas não te
aflijas. Sofrendo-o, esquecer-me-ei um
pouco da angústia máxima
que ensombreceu para sempre a minha alma de mulher.
Entretanto, irmãzinha, retém a minha pergunta na concha dos teus
ouvidos e
transmite-a aos nossos irmãos que encontrares na fábrica
e na rua: Eu
precisaria sofrer esta angústia máxima, bárbara e crua
e desapiedada, si a vida
fosse mais simples e mais justa!
 
 
(Recorte não
identificado —  República? —  Acervo da AC)
 
 
 
DIVÓRCIO E AMOR
 
 
Não é que eu queira
ser atrevida, mas a verdade é que não posso
acreditar que os antidivorcistas se
incomodem com a espantosa
quantidade de uniões ilegais que se verificam em
nossa metrópole
descontentes da não existência do instituto do divórcio.
 
O vínculo conjugal
permanece, só a morte opõe abaixo. Não
obstante essa permanência, o casal que
não é feliz, que
compreende que seu matrimônio foi um erro —  nem sempre
se
conforma, em nossos dias, em permanecer unido. As estatísticas
estão aí
mostrando quão grande o número de processos de
desquite, e há ainda —  e,
sem dúvida, estes constituem o maior
número —  os que não buscam a
separação legal e    os que não
conseguem pelo fato muito comum de um
dos cônjuges não
concordar com o desquite e, não sendo possível a obtenção do
amigável, a outra parte preferir não pleitear o litigioso e contentar-
se com a
simples separação. Porque a verdade é que, de qualquer
maneira, com desquite ou
sem ele, é sempre impossível o novo
matrimônio.
 
Mas o caso é que
este se processa assim mesmo, se não de direito,
pelo menos de fato, e como tal
vai sendo aos poucos reconhecido
—  não pela lei, está claro, mas pela
família e pela sociedade. Já
não há mais necessidade, por exemplo, de ir a
mulher com seu
novo marido até Niterói ou até São Paulo e, depois, dizer aos
parentes e amigos que foram casar no Uruguai. É que começa a
bastar a pequena e
natural participação: "Sabe que me casei de
novo". E está muito certo
o verbo, muito bem empregado; não é
nenhum eufemismo, nenhuma apropriação indébita,
já que não se
trata de uma aventura, de uma prevaricação, mas de uma união
firmada pelos sentimentos em que se devem basear os
matrimônios. De outra
maneira, este se vê na contingência de
tomá-lo. E não há direito mais justo,
mais digno, mais sagrado do
que o que temos à felicidade e ao amor.
 
Entretanto, a maior
parte dos casais em apreço procurariam, se
lhes fosse possível, a solução
legal. A ausência do divórcio, vejam
bem os que são contrários à medida, não
representa, porém, um
obstáculo a que se unam e procriem. Hoje não existe mais
o
estigma da filha natural e os frutos das novas uniões são, muitas
vezes,
filhos do amor, do grande amor, como deveriam ser todos os
seres humanos.
 
 
(de Diário de
Notícias / Nós e o Mundo, Rio 5/5/1959)
 
 
 
 
 
5. TEXTOS DE CATARINENSISMO
 
 
 
Santa Catarina minha terra

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Estar no verdor dos anos, trazendo ainda a
franja da adolescência;
passear os primeiros sonhos pelas mesmas ruas estreitas
e líricas
que haviam conhecido os passos de Cruz e Sousa; publicar os
primeiros
escritos nas pequenas folhas da terra; não ter outro valor
senão o da
autenticidade e ser de chofre visitada pela notícia de
que tivera o nome
apresentado e unanimemente aceito na
Academia Catarinense de Letras — eis o que
me cumpre desde logo
evocar, pois tais fatos constituem a gênese desta tarde.
Enfatizo a
iniciativa da entidade barriga-verde; e o ter ela, que congregava os
valores estaduais, buscado pela primeira vez uma pessoa do
"segundo
sexo" — logrou na época enorme repercussão. Lembrarei,
pois, aquela noite
em que, de cabelos longos soltos e longo vestido
branco, pelo braço de Nereu
Ramos e com flores ilhoas na mão,
penetrei no salão repleto do Palácio da
Assembleia Legislativa. Lá
me aguardava o verbo de José Artur Boiteux (que fora
grande
amigo de meu pai), inflamado como o de um cavaleiro andante, e lá
tentei
o elogio do patrono que para mim escolheram, inteiramente
destoante da pequena
recipiendária: o grande Roberto Trompowsky,
marechal, "scholar",
matemático. Foi uma bela noite sem dúvida,
mas, se a estou evocando, é porque a
ela se limitou a minha vida
acadêmica.
 
Muito cedo me voltei para sonhos e rumos
que empolgaram minha
juventude ardente e, em breve, se esvaziava de élan
o título que
em verdade não cheguei a ostentar. Minhas ausências da terra e os
prolongados recessos do cenáculo contribuíram para que aquele
meu posto não
tivesse exercício. Mas, nesta espécie de catarse,
devo acrescentar que, sendo
tão gregária e colocando acima de
tudo no contexto da existência a criatura
humana, não está para
mim no mesmo plano de estima a forma associativa habitual
— com
estatutos, atas, compromissos. Eis por que, embora admirando a
pertinácia
que mantém esta casa, apesar dos gentis convites que
recebi de vários dos seus
dirigentes, embora aqui tenha amigos
diletos e esteja aqui o meu bem-amado,
permaneci afastada deste
preclaro enlaçamento de academias estaduais.
 
Tal comportamento iria alterar-se quando
Othon d'Eça, o alto
prosador-poeta de Homens e Algas, hoje desaparecido
e então
presidente e restaurador da Academia Catarinense de Letras, ao
insistir
para que fizesse eu parte da delegação — onde já se
encontravam ilustres
conterrâneos — junto à Federação das
Academias de Letras do Brasil, apelou para
o meu amor à nossa
terra catarinense. Oh, a terra na qual me integrava, em
versos dos
tempos jovens, a ponto de, num ato de consubstanciação, me
sentir
carregada da sua seiva e do seu pólen; de em suas carnes
(ou em meus chãos)
nascerem as grumixamas que eu devorava e
os brincos-de-princesa que pendiam das
minhas orelhas. E em cujo
peito joguei este dístico dos tempos maduros: abraçada
ao universo
/ tendo as raízes em ti. Amor
naturalmente centrado na Jurerê-
Mirim natal com seu halo de praias e de
conchas. Lá onde o sol
nasce nas águas da Lagoa da Conceição, bíblicas como as
de
Genesareth, parecendo um deus resplandecente no primeiro dia da
criação. E
onde, ao fim da jornada, nos é dado o luminoso salário
de ver os tesouros do
rei Salomão entornados nos nossos poentes e
estriados com aqueles fúlgidos
lilases que fui buscar para os meus
crepúsculos no País de Rosamor.
 
Não é, no entanto, em virtude apenas das
belezas daquela terra e
daquele céu que pulsa o meu amor a Santa Catarina.
Também de
atos, vozes, ritmos, gestos que irromperam de tantos de seus
filhos,
forjando a maior porção de sua glória. Também de símbolos,
eventos, nomes
destinados à perenidade. Alguns citarei: Virgílio
Várzea e Victor Meireles;
Cruz e Sousa e Luiz Delfino; Lacerda
Coutinho e Araújo Figueiredo; Jerônimo
Coelho, que nos deu o
primeiro jornal, e, na mesma importante faixa, os nomes
exponenciais de Gustavo Lacerda, fundador da Associação Brasileira
de Imprensa,
de Oscar Rosas, Lucas Bainha, José Johanny,
Martinho Calado, Joe Collaço,
Crispim Mira, Diniz Júnior, Rubens de
Arruda Ramos; os historiadores Almeida
Coelho, Paulo José Miguel
de Brito, Afonso de Taunay, general José Vieira da
Rosa e os
laboriosos e íntegros irmãos Boiteux; a sábia jurisprudência do
conselheiro Manoel da Silva Mafra; as vozes humildes de Marcelino
Antônio
Dutra, o poeta do brejo, e João Rosa Júnior, o poeta cego;
o verbo do
Arcipreste Paiva, de Edmundo da Luz Pinto e, entre
outras incomuns eloquências,
a de um rapaz genial chamado Helio
Régis, que morreu aos vinte anos; o
polígrafo Henrique Fontes,
para quem eu gostava de me firmar como a sempre
discípula; o
regionalista Tito Carvalho, que foi ao mesmo tempo um dos nossos
mais completos homens de imprensa; os eminentes estadistas,
entre os quais
Adolfo Konder, que trouxe um sopro renovador ao
assumir o governo do Estado,
prestigiando os valores que surgiam
e erguendo a bandeira do catarinensismo;
Lauro Muller, que se
projetou no cenário político nacional durante as primeiras
décadas
republicanas, e Nereu Ramos, que iniciou, em 1930, a ascensão que
o levaria, em hora histórica do Brasil, à presidência da República;

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todos os que
lutaram e sofreram pela justiça e pela liberdade e —
ai! — o sangue de duzentos
fuzilados pingando na ilha de
Anhatomirim.
 
Lista-síntese que poderia bastar pela força
dos nomes e dos
significados. Contudo, não posso esquecer os não catarinenses
que
o foram entranhadamente, a todos reverenciando nos que Santa
Catarina ainda
pranteia — o arcebispo Joaquim Domingues de
Oliveira, que durante meio século
escreveu e pregou em língua
clássica, e o governador Jorge Lacerda, que teve
nos atos e nas
palavras a marca dos tempos novos — e Horácio Nunes Pires e José
Brazilício de Souza, que compuseram o Hino do Estado, cálido e
humanista,
exprimindo os melhores arroubos da alma do nosso
povo em estrofes como esta:
 
Não mais diferenças de sangues e
raças
Não mais regalias sem termo, fatais.
A força está toda do povo nas
massas.
Irmãos somos todos e todos iguais!
 
Impossível tampouco esquecer os vultos
femininos, tanto mais que,
ao recordá-los, surge logo a maior figura da
história barriga-verde,
Anita Garibaldi, que há pouco voltou à Laguna do seu
berço no
bronze de Antônio Caringi e lá está bela e jovem como era há mais
de
cem anos, quando partiu para a luta e para o amor. Surge, em
seguida, Amélia
Bainha, a heroína do mar, enquanto no território da
poesia se derramam os
versos de Delminda Silveira, que foi
também uma espécie de heroína na aquisição
de sua cultura, no
dedilhar de sua lira. Delminda, a dos Lises e Martírios
e Passos
Dolorosos, a quem conheci nos últimos anos de sua vida e que
teve
para mim ternuras de fada. Sua voz e a da misteriosa Semíramis
com seus
cantos assíduos nas páginas ilustres do Sul-Americano.
Quem era ela? Foi
só quando a fonte silenciou que tiveram todos a
resposta. Era Maria Carolina
Corcoroca de Souza, esposa daquele
mesmo José Brazilício, o dos muitos
talentos, que musicou nosso
vibrante "hino de estrelas e flores" e
foi mestre da mais adorável e
adorada Scheherazade, minha mãe, e daquele que
seria o
exemplaríssimo professor Senna Pereira, meu pai.
 
Chego, assim, aos vivos de várias gerações
— desde a de meus
fulgurantes mestres até à novíssima. Chego aos valores que lá
pontificam e aos tantos que transpuseram as fronteiras e estão
brilhando na
literatura, e nas artes nacionais, no mundo jurídico, na
esfera das pesquisas,
no púlpito e na cátedra ou, em setores vários,
participando das lutas e das
esperanças do Brasil.
 
Certo é que a estas facetas devo
restringir-me, não me cabendo,
aqui, ressaltar as mãos que impulsionam o
estadual progresso — no
fundo das minas, no alto das serras, em planuras e
vales, em
glebas e mares. Mas como excluir aquelas cujo labor desfolha
poesia,
borbulha folclore? Comparecem, por isso, as que modelam
os lindos e rústicos
objetos de palha e de cerâmica, vendo-se, entre
os últimos, os que
reconstituem, na magia do barro trabalhado, as
figuras todas do nosso
boi-de-mamão, um dos autos populares
mais ricos e movimentados de todo o País.
E as prodigiosas mãos
femininas que, de fios e de bilros, fazem surgir o claro
poema que
as avós açorianas ensinaram a tecer. Beleza de margaridas,
estrelas,
favos, trepadeiras, de múltiplos desenhos, de entrelaçados
pontos — naquelas
alvas peças, naquele tesouro branco. Que elas
criam — cada vez mais pobres e
cantando as trovas mais ternas do
nosso litoral. Eis uma delas:
 
Inveja só posso ter
Da luz clara do luar
Que faz rendas tão bonitas
Com a branca espuma do mar.
 
Neste apenas esguio recorte, eu quero, como
as rendeiras, exaltar
o grandioso e saúdo o mural que em breve começaremos a
apreciar
no primeiro volume da Enciclopédia Catarinense, trabalho
gigantesco que está realizando o almirante Carlos da Silveira
Carneiro.
Beirando a pré-história e o porvir, abarcará ele Santa
Catarina na sua
totalidade.
 
Santa Catarina, minha terra, em que estou
presa como uma planta
e à qual devo a honra desta hora. Não importa que, depois
de
vários anos meu nome aqui figurar, só hoje eu viesse tomar posse.
O que
importa é vermos a Academia Catarinense, presidida pelo
admirável ensaísta
Nereu Corrêa, entrar numa fase rasgadamente
moderna — promovendo concursos,
realizando currículos,
acendendo debates, publicando cadernos. O que importa é
sabermos que tal espírito renovador coincide com os propósitos do
nosso fidalgo
e ilustre presidente Cumplido Sant'Anna. O que
importa é estar sendo tão eu
mesma em ambiente acadêmico.
 
Tempo de agradecer, agora, à Federação das
Academias de Letras
do Brasil a oração que vai proferir o acadêmico Pizarro
Drummond.

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Suas palavras ainda mais me desvanecem porque, sobre serem a


voz
desta casa, partem de alguém que, entre outros títulos, é autor
de livros
primorosos pelo estilo, pela temática, pela interpretação e
que, jovem juiz,
está honrando a carreira que tem como ápice, no
Brasil deste momento, um grande
catarinense, o ministro Luiz
Gallotti, presidente do Supremo Tribunal Federal.
 
Tempo de agradecer a homenagem do belíssimo
curso de Regina
Lúcia Pimentel através de várias de suas alunas. Alunas
radiosas
que vão emprestar beleza a versos meus de vários períodos.
 
Tempo de agradecer esta esplêndida medalha,
atada nas cores da
bandeira catarinense, que deixou para entregar neste ato o
representante oficial da nossa Academia, escritor Almiro Caldeira.
Escritor,
quero frisar, que está utilizando com brilho, na sua
excelente obra ficcional,
episódios da nossa história ilhoa. Estas
insígnias e as expressões com que as
entregou o autor de Ao
Encontro da Manhã — revigoram minha posição de
delegada de
Santa Catarina e meu intento de bem e sempre projetá-la. Que eu
evoque, pois, neste momento, suas glórias mais inspiradoras: um
cisne negro e
uma rosa matuta — o poeta emparedado e a musa da
liberdade. Aquele cujos Broquéis,
Faróis, Evocações, Últimos
Sonetos deram ao mundo um dos seus maiores
simbolistas. E
aquela cujo próximo sesquicentenário eu quisera que trouxesse o
frêmito dos seus ideais ao coração de todas as gentes. Um negro e
uma matuta,
repito, para concluir com os nomes altíssimos de Cruz
e Sousa e de Anita
Garibaldi.
 
(Discurso pronunciado a 2 de dezembro de
1967 —
em sessão realizada no auditório do PEN Club, à
Avenida Nilo Peçanha 26,
13o andar —  Publicado no
Jornal do Comércio de 31/12/ 1967 — 
republicado
em Verbo solto p. 19-27)
 
 
 
Santa Catarina, minha terra
 
 
Depois de algum tempo de ausência, volto a
Florianópolis
precisamente neste ano do tricentenário de sua fundação e do
sesquicentenário de sua vida de cidade. Talvez fosse por isso que
novos
arranha-céus me pareceram um halo comemorativo. O
crescimento vertical que eles
significam e as avenidas que se
abrem, formando um apreciável binômio de
expansão, alteram sem
dúvida — sem lhe deformar a beleza, no entanto — a face
terna e
plácida que teve até há pouco a cidade onde nasci. E o coração algo
se
aperta, mas só um momento. O seguinte é para compreender e
saudar, pois era
apenas esse tônus de urbe moderna que estava
faltando para que Florianópolis —
localizada na maravilhosa Ilha de
Santa Catarina e culta capital de um Estado
adiantadíssimo —
pudesse assumir, em toda a plenitude, a sua destinação de
metrópole.
 
Se, nos meus verdes anos, lá residindo e
trabalhando, pude
colaborar no progresso intelectual da terra catarinense,
longe dela,
mas nela presa como uma planta (assim me defini num velho
poema)
não tenho cessado de cantar-lhe o meu amor É a minha
glória simples a não
alienação, a participação contínua embora
ausente. Por isso quando, na Academia
Catarinense de Letras, fui
saudada pelos eminentes confrades Nereu Corrêa, que
a renovou, e
Thebaldo Costa Jamundá, seu secretário-geral e presidente do
Conselho Estadual de Cultura, não sei o que mais me comoveu: se
as pétalas
(azuis?) que ambos jogaram sobre a Maura em flor do
Cântaro de Ternura ou
se o haverem ressaltado a minha humilde
fidelidade à terra natal. (A respeito
daquele primeiro livro, Almeida
Cousin, na mesma tarde saudado pelo admirável
contista Holdemar
de Menezes, presidente em exercício da Academia — 
revelou que,
por ocasião de seu aparecimento, estreava ele, em Vitória, com a
epopeia Itamonte e que, trocados os livros, vieram as primeiras
cartas
ligando em ponte lírica as duas ilhas. Publicando nota sobre
o fato, Jornal
de Letras intitulou-a "A ponte".)
 
Emoção semelhante eu teria ao ver
transmitida a entrevista que
concedi à TV Cultura, a convite de Darcy Lopes,
seu dinâmico
diretor-presidente e seu fundador após muitos anos de sonho
tenaz,
pertinácia, sacrifício. E catarinensismo, para usar a feliz
expressão que me
parece criada pelo grande e saudoso estadista
Adolfo Konder. Durante a
entrevista, a oportunidade de conhecer os
dignos companheiros de Darcy Lopes na
direção da TV Cultura, os
ágeis repórteres e apresentadores e as magníficas
instalações na
rua Bocaiuva e no morro da Cruz —  e, lá do alto,
contemplarem
todo o seu esplendor aquela que é três vezes centenária.
 
Florianópolis. Que poderia ser Ondina, como
queria o nosso
inolvidável marinhista Virgílio Várzea, e que —  desde sua
fundação
pelo paulista Dias Velho até os primeiros anos da República, quando

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meus pais eram crianças e meu bisavô Régis estava escondido em


consequência da
revolta de 93 —  se chamou Nossa Senhora do
Desterro.
 
Sob o antigo nome, ganhou ela monumento
através da recente e
notável obra do Dr. Oswaldo Rodrigues Cabral. Na
residência do
historiador e sua esposa (e inteligente colaboradora em muitas
pesquisas), rodeada de jardins e bosques onde vimos correr o
pequeno e
encantador Alexandre, a quem a obra é dedicada, eu e
meu marido fomos brindados
com os quatro volumes de Nossa
Senhora de Desterro. E o receber tal
presente em 73 — embora a
data do lançamento seja anterior — teve para mim um
sentido de
celebração. Neles, cada capítulo abordando um assunto, flui a
história da ilhoa vida, fixando costumes e fatos, estabelecendo
situações e
cotejos, ressuscitando gente, pingando autenticidade.
Resultado de profunda
erudição e de trinta anos de minuciosas
pesquisas para que tivéssemos retratos
desterrenses de todos os
tempos, o novo trabalho de Oswaldo Cabral enriquece a
vasta
bibliografia de autor, a literatura catarinense e a cultura brasileira. É
história e é crônica. Crônica lúdica, pitoresca, harmoniosa. Aliás, o
longo
título barroco e a declaração, na capa, de que fora a obra
publicada "com
todas as licenças necessárias, isto é: nenhumas",
até às últimas páginas,
que fixam os últimos dias em que a depois
Florianópolis se chamou Desterro, o
ilustre mestre é sempre o
humanista jovial que todos admiram.
 
Lembro que, ao final da tarde inesquecível,
quando deixamos a bela
casa da rua Esteves Júnior, não vimos o inigualável
poente Ilhéu,
onde mil pedrarias se derramam. Em compensação, carregávamos
um
tesouro concentrado em mil páginas — que estou saudando já
em tempo de natal,
mas ainda dentro deste ano comemorativo.
 
 
(de Tribuna da Imprensa. Rio, 19/12/1973)
 
 
Anita: primeiros passos de sua
glória
 
 
Nascida a 30 de agosto de 1819 no lugar
denominado Morrinhos,
em Santa Catarina, foi aos 20 anos que Ana Maria de Jesus Ribeiro,
filha de Bento Ribeiro da Silva, natural de Lajes, e da paulista
Maria
Antônia de Jesus, e mulher do sapateiro Manuel Duarte de Aguiar —
tomou o
nome sonoro e eterno de Anita Garibaldi. Foi aos vinte
anos que entrou para a
história, dando início ao último decênio de
sua vida, marcado de heroísmo e
amor. E essa fase inaugural — ela
a viveu em Santa Catarina. Passaria ao Rio Grande, onde conheceu
as longas e penosas caminhadas pela
coxilha em guerra e onde
nasceu Menotti, seu primeiro filho. (Menotti a quem
ela, enregelada
e puérpera, refugiando-se na mata, a cavalo, com a sua fabulosa
rapidez, salvou do ataque bestial dos legalistas). Passaria ao
Uruguai, onde
teve a dor de não poder lutar ao lado do marido
contra o tirano Rosas e, ao
mesmo tempo, a alegria de ninar seus
quatro filhos do amor. Passaria a Itália,
onde atuou sempre como o
primeiro legionário de Garibaldi e onde foi chamada
"a santa da
independência italiana, a mártir de Ravena" — e não
voltaria à terra
natal. Mas foi na terra natal, nos mares e nos chãos
catarinenses,
que ofereceu ao mundo os primeiros lances do seu heroísmo,
quando
contava vinte anos.
 
Para apreciá-los, é mister evocar a
República Catarinense,
proclamada a 29 de julho de 1839 ,na Câmara Municipal da
Laguna,
a cidade Juliana. Em artigo intitulado "Anita e a República",
que
escrevi há vários anos em A Gazeta, de Florianópolis, frisei eu no
tópico final: "Se outros fatores, portanto, não houvesse para que a
República Catarinense fosse festejada como um dos nossos maiores
acontecimentos
históricos, bastaria este, pelo colorido romântico e
pela expressão
revolucionária: Ana de Jesus Ribeiro seguindo o belo
corsário mazzinista,
integrando-se nos seus ideais e a seu lado
participando de lutas que foram
etapas do "pugilato milenar entre o
cativeiro e a liberdade".
 
O encontro
 
O belo corsário era Giuseppe Garibaldi,
partidário de Mazzini, o
teórico do liberalismo italiano; era Garibaldi,
condenado a morte em
sua terra, proscrito cheio de bravura e élan que,
refugiando-se no
Brasil, se tornara o chefe da esquadra farroupilha.
Descrevendo-o,
diz Brasil Gerson: "Era belo e forte como um atleta e as
melenas
alouradas, caindo-lhe até os ombros, davam-lhe a mais romântica
das
aparências".
 
Vitorioso em águas lagunenses, ei-lo agora,
no barco capitânea,
observando com um óculo de alcance assestado para uma
elevação
chamada Barra, o vulto airoso e jovem de uma filha da terra.
Encantado, toma um bote e tenta aproximar-se. E o primeiro
encontro acontece na
própria casa da moça encantadora: por sua

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vez, casada sem amor havia quatro


anos, vivia constantemente
pensando no marujo carregado de magnetismo que, a
bordo do
pequeno Seival, combatera e derrotara os navios imperiais.
 
"Estáticos e silenciosos nos olhávamos
mutuamente, como se já nos
tivéssemos conhecido antes... Cumprimentando-a por
fim, dizia-
lhe: Tu devi esser mia" — conta Garibaldi em suas Memórias. Anita
trazia então os pés morenos descalços e vestido de ganga azul,
numa visão comovedora de pobreza e de poesia. E aquelas palavras
ousadas, longe
de a ofenderem, deslumbraram-na, pois foi só então
que se sentiu noiva, pedida
em casamento, convidada para as
verdadeiras núpcias de sua vida. Ninguém sabe
como se desenrolou
o romance após aquela súbita e mútua constatação de que um
achara no outro o seu par na terra. O que se sabe é que, rompendo
laços sem
sentido para seu bravo e digno coração, Anita manifestou
a força de sua
personalidade e, desafiando preconceitos que
deveriam ser ferozes há cento e
tantos anos, realizou o seu
primeiro heroísmo. E, a 14 de outubro, deixava a
sua casa sem
crianças, o marido ébrio, o burgo atônito e, ao lado do seu herói,
chegava a bordo do Rio Pardo. Eram os primeiros passos na
grandiosa
carreira de Anita Garibaldi.
 
O marinheiro
 
Esse mesmo Rio Pardo (capitânea), o
histórico Seival e o Caçapava
rumaram a 20 de outubro para
Santos, pois o almirante farrapo
recebera ordem de fazer o corso aos barcos de
cabotagem.
Estranho cruzeiro em que Anita, no entanto, era uma desposada
feliz vendo seu bravo marujo fazer presas e, ao mesmo tempo,
sofrer a implacável
perseguição dos barcos imperiais. Perseguição
que leva Garibaldi a buscar
abrigo na enseada de Imbituba, onde se
prepara para o combate, construindo,
também em terra, uma
trincheira.
 
De carabina em punho, ao lado do marido,
Anita inaugura a sua
vida de guerreira. "No mais aceso dos combates —
narra o
historiador Henrique Boiteux na sua primorosa biografia "Anita
Garibaldi" — eis que, de repente, certeira bala, dando de encontro à
amurada
do Rio Pardo, fá-la em estilhaços, um dos quais arroja
Anita ao convés e
com ela dois marinheiros que ficaram estendidos
mortos. Ouviu-se um grito
geral, precipitando-se todos para erguê-
la; antes, porém, que a acudissem,
lépida levantou-se tinta de
sangue dos seus companheiros e seu único pensamento
foi o de
fazer novo apelo à bravura dos combatentes. Instada por todos e
muito
principalmente por Garibaldi para que se recolhesse à
coberta, respondeu:
"Sim, descerei, mas para buscar os covardes
que lá se foram
esconder." Diante de tanto desprendimento, de
tanto heroísmo, não mais
insistiu Garibaldi: entregou-a a seu
destino".
 
E o seu destino de marinheiro da República
foi lutar durante todo
aquele dia tremendo, 4 de novembro de 1839, até à
retirada dos
navios atacantes e prosseguir lutando na histórica batalha naval
da
Laguna, a 15 de novembro, que terminou com a derrota da
esquadrilha farrapa
e da República Juliana, precisamente cinquenta
anos antes da proclamação da
República no Brasil.
 
Como vou, apenas, situar Anita e apresentar
em síntese os lances
de sua bravura, recordarei que, para enfrentar os treze
navios
fortemente guarnecidos do capitão-de-mar-e-guerra Frederico
Mariath,
Garibaldi colocara em semicírculo seus poucos barcos e
lanchas. E preparou-se
para o combate desigual em que se bateram
com tanto heroísmo os defensores da
República Catarinense, a
começar por Anita. Esta, antes de ter início a grande
batalha,
deixara-a Garibaldi como comandante do Rio Pardo, enquanto ia
ele
inspecionar as baterias de terra e observar os movimentos da
esquadra
inimiga. E a batalha se inicia antes de seu regresso ao
barco. E é Anita quem
responde ao fogo do inimigo, para ele
voltando, com sua admirável presença de
espírito e seu destemor, o
canhão do Rio Pardo.
 
Naquele aceso combate, Garibaldi procura
salvar a companheira e,
no intuito de afastá-la da luta, manda-a a Canabarro,
pedindo
reforços e ordenando-lhe que ficasse em terra. Com aquela
ligeireza de gazela, de que fala Garibaldi em suas Memórias, tomou
Anita um bote e foi cumprir sua missão. Mas não ficou em terra.
Não mandou nenhum mensageiro com a resposta do general.
Levou-a ela em pessoa. E a resposta era uma negativa: não havia
reforços. E uma ordem: a retirada, salvando
armamentos e
munições. E, como todos os oficiais, com exceção do comandante--­
em-chefe,
haviam sido mortos na sangrenta batalha, coube a Anita
realizar o transporte,
enquanto Garibaldi incendiava os navios.
 
"Quando acabei a minha obra de
destruição — recorda ele — Anita
havia também concluído a sua de salvação.
Porém de que maneira,
ó meu Deus! Ela não fez menos de vinte viagens, passando
constantemente sob o fogo do inimigo. Em pé, à popa, no meio da

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metralha,
aparecia firme, calma e altiva como uma estátua de Palas
e Deus, que estendia
uma sua mão sobre mim, a protegia ao
mesmo tempo com a sombra dessa mão."
 
A fuga
 
Após a derrota, a retirada. A coluna a que
pertencia Garibaldi
empreende a áspera subida da serra com o propósito de
alcançar
Lajes, que caíra de novo em poder dos republicanos. Dois combates
se
travam com as forças legais. No de Santa Vitória, a 14 de
dezembro,
ganharam os revolucionários. Dele Anita não participou
como combatente. Foi
enfermeira, anjo, bálsamo, inspiração,
cuidando dos feridos, animando em seus
rudes combates aqueles
bravios centauros serranos. O segundo ocorreu no Campo
das
Forquilhas, já a 12 de janeiro de 1840, e nele os rebeldes foram
derrotados. Anita comandava uma guarda conduzindo munições,
quando é cercada de
surpresa por um esquadrão inimigo. Não se
rende, porém, nem tampouco foge à
luta. Uma bala atravessa-lhe o
chapéu e leva um cacho dos seus belos cabelos.
Outra bala abate-
lhe o cavalo. E só aí ela cai prisioneira. Mas nunca subiu tão
alto.
 
Corria, no acampamento, a notícia de que
Garibaldi morrera em
combate. Então, a altiva prisioneira pede permissão para ir ao
campo de batalha, juncado de cadáveres. Era noite e ei-la com uma
tocha na
mão, espiando um a um o rosto dos mortos. Devia ter a
face transtornada,
parecer uma figura de tragédia grega, lembrar
Antígone à procura do cadáver do
irmão. E, após a busca macabra,
uma certeza: seu guerreiro louro havia
escapado. E um
pensamento: ir-lhe ao encontro.
 
Anita empreendeu então sua fuga epopeica,
forjando um dos
momentos mais altos do heroísmo humano. Depois de rastejar, de
colar-se como uma sombra ao tronco dos pinheiros, descobre uma
casa onde é
acolhida e onde consegue um cavalo para sua marcha
de vinte léguas, que tal foi
a distância percorrida de Curitibanos a
Lajes, entre perigos e tempestades, com
o primeiro filho do amor
lhe palpitando nas entranhas, pela extraordinária
valquíria
catarinense.
 
Mulher e presença
 
Tendo tido sempre o encanto supremo da
juventude, pois que
morreu aos trinta anos incompletos, teve também Anita os
encantos todos da feminilidade: foi mulher ardentemente
apaixonada, verdadeira
mãe, dona de grandes olhos luminosos, de
um talhe delicado e harmonioso, de uma
graça agreste de bonina e
de negras madeixas que, desatando-se no ardor dos
combates,
fascinavam o próprio inimigo. Tudo isso, além de completas prendas
domésticas. Quanto a estas, em companhia de Garibaldi só lhe foi
dado
manifestar totalmente nos tempos de Montevidéu, no lar da
Rua do Portão, onde
criou seus meninos, cozinhou e varreu e onde,
para ajudar a manter uma casa em
que tantas vezes faltou lume —
fez rendas e crivos, claros poemas de fios de
luar, magos e brancos
como os sabem tecer as mãos de fada das rendeiras
catarinenses.
 
É, portanto, um ser maravilhosamente
feminino que vemos
manifestar uma coragem de que só é capaz o mais bravo dos
homens e, ao mesmo tempo, vemos a coragem de Anita irromper
do amor e voltar-se
contra a tirania nos dois hemisférios, tornando-
se fonte perene de inspiração.
 
Por isso não posso imaginar a heroína
parada no tempo em toda a
sua glória, mas estendendo pelas idades a sua
poderosa presença,
sempre ao lado, sempre companheira de todo aquele que, em
qualquer lugar e em qualquer época, luta e sofre pela justiça, pelo
humanismo e
pela liberdade.
 
 
(Uma das várias palestras
que a autora
proferiu no
Centro Catarinense. "Anita:
primeiros passos de sua
glória" foi repetida, a
pedido, na Associação
Brasileira de Relações
Humanas).
 
(de Verbo Solto)
 
 
 
 
6. OUTROS TEXTOS
 
 
 
Símbolos perfeitos

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Ao formoso coração de minha Mãe
 
 
É o segundo domingo do mês de maio —
consagrado à veneração
das Mães. Nasceu essa resolução tão sábia e tão justa da
forte
saudade de uma extremosa filha, quando lhe morreu a Mãe
querida.
 
Miss Anna Jarvys perdera o afago precioso,
o olhar doce, o conselho
sábio, a ternura valiosa —  todas as atrações,
enfim, que
circundavam o coração e a fronte de sua boa Mãe e que a
prendiam,
que a enlaçavam, suavemente, luminosamente,
perfumando-lhe a vida, dourando-lhe
as esperanças, embalando-lhe
os sonhos.
 
Seu coração padecia a agridoce emoção da
saudade... saudade da
convivência amiga deste ente amoroso e bom, que "Sofre
do mal se
o mal nos transfigura, Mas é luz quando feliz vivemos"
 
Suas amigas, sensibilizadas ante a
sinceridade da sua dor e a
pureza melancólica da sua saudade, idealizaram
homenagear a
memória perene de sua extremosa Mãe.
 
Mas, aquela pobre filha, ferida pelo acúleo
impiedoso da dor, sentiu
crescer e espraiar-se no seu peito a admiração por
todas as Mães e,
num assomo de ternura, de respeito, de amor por todas elas,
exprimiu o anelo de as ver partilhar também da justa homenagem
que à sua
extremosa Progenitora ia ser tributada.
 
Então foi consagrado o segundo domingo do
mês de maio à
veneração das Mães —  veneração que é como que uma coroa
espiritual com que, nesse dia, se lhes aureolam as frontes, as quais
a
maternidade superioriza e santifica, nimbando-as de fulgor
maravilhoso.
 
Flores brancas e rubras foram escolhidas
para símbolos...
 
E nesse domingo de maio, trazem ao peito
uma flor de pétalas
tristes, de brancura simbólica, aquelas cujas mães já
partiram para
o Além, deixando-lhes, inapagável, a lembrança da sua solicitude,
do seu carinho, do seu amor...
 
Usam, no peito, uma expressiva e álacre
flor vermelha os que ainda
possuem o regaço agasalhador de suas Mães muito
amadas e o
amparo firme do grande coração materno, que os ilumina e os
orienta
através da vida, cingindo-os com o ambiente puro do seu
amor santificado.
 
Assim, no dia das Mães, a ventura de uns e
a saudade de outros se
concretizam e se estampam nos matizes das flores
simbólicas...
 
A flor branca, nesse dia, guarda uma força
latente, recôndita,
misteriosa, que comove o secreto íntimo da alma... é bem a
revelação fiel de um coração maternal que não mais pulsa, de um
coração
sepultado que deixou na terra a sombra triste da saudade!
 
E todos nós que podemos ostentar, no peito,
flores vermelhas, pois
que ainda temos, ao nosso lado, com os meigos olhos
consoladores,
com o coração e a alma ressoantes de carícias —  as nossas
boas
Mães —  em cujo seio dormem os segredos miríficos de um amor
sublime
e brilham os vislumbres definidos dos sacrifícios inauditos,
—  tributemos
sempre ao sagrado ente que tanto amor nos vota a
justa veneração de um desmedido
afeto porque
 
"Conosco sofre e se gozamos , goza,
Com mágoa chora quando nós choramos,
Sorri contente quando nós sorrimos".
 
 
(de O Atalaia
—  Mensário da
Mocidade da
Igreja
Presbiteriana
de
Florianópolis e
órgão da
Classe
Organizada
  "Atalaia”, Ano
I, n. 3, maio
de 1924)
 
 
 
Salve!

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
Aos "Atalaias"
 
 
O dia 14 de julho que, para o mundo
civilizado, é o dia em que se
comemora e se festeja a Liberdade dos Povos, para
vós, em cada
ano que passa, é o mensageiro de um júbilo íntimo causado por
mais
uma luta que se vence, por mais um triunfo que se alcança,
por mais uma vitória
que se conquista.
 
E neste 14 de julho pela primeira vez,
experimentais o grato sabor
da vitória...
 
Nele comemorais o primeiro aniversário da
feliz organização da
vossa Classe e realizais, por isso, uma festa coletiva, em
regozijo a
esta festiva data realizando, também nos recolhos do coração, uma
festa individual, que é o símbolo da vossa unção pessoal e o
símbolo da vossa
gratidão a Deus!
 
A seara, em que labutais tão valorosamente,
é ampla e grande,
mas também amplos e grandes são os vossos horizontes, são os
vossos desejos, são os vossos ideais.
 
Continuamente se ventilam nobres planos e
alevantadas ideias no
simpático arraial da vossa Classe e certo vereis, no
efetivar-se a
pouco e pouco das aspirações que vos enchem de vida e
entusiasmo,
o sinal da assistência amparadora de Cristo e do
soerguimento espiritual da
Pátria, pois, por Cristo e pela Pátria, é
que vos bateis com denodo e firmeza,
é que lutais com ânimo e
confiança, visando demolir a torre dos vícios, dos
erros e dos
preconceitos, com a emancipação da mente pela pureza do
Cristianismo e com o despertamento das consciências e das almas
pelas verdades
claras e simples do evangelho.
 
Congratula-se fraternalmente o meu coração
com o vosso primeiro
ano de trabalho continuado e de gloriosa vida organizada e
a minha
modesta e obscura pena, para o vosso 14 de julho, traça, em festas
e
aplausos, um sincero e vibrante —  Salve!
 
 
(de O Atalaia, julho 1924)
 
 
 
 
Divino Crucificado
 
 
Aí estás, nessa grande e injustíssima cruz,
sofrendo o castigo que
te deram pelo crime do teu amor.
 
Puseram-te aí, de braços abertos sobre os
braços trevosos do
madeiro, com uma irônica e pérfida coroa de espinhos sobre a
tua
santa cabeça cacheada, com cinco chagas ressumando o mais
inocente e o mais
generosos dos sangues —  puseram-te aí para
castigarem o crime do teu
amor.
 
Mas que estranho crime esse que é assim
punido com a pena mais
tirânica da época?
 
O teu crime, ó Profeta de Nazaré, foi o de
teres amado
extraordinariamente os homens.
 
Sim! Foste médico: curaste cegos e
paralíticos e leprosos com a só
poderosa magia da tua sobrenatural
misericórdia.
 
Sim! Foste pastor: contaste as verdades
mais santas por meio das
mais formosas parábolas.
 
Sim! Foste mestre: ensinaste a bela utopia
da fraternidade humana,
ensinaste o perdão, a humildade, a doçura.
 
Sim! Foste milagre: andaste por sobre o mar
e multiplicaste os pães
e transformaste a água em vinho.
 
Sim! Foste bálsamo: e derramaste nos
corações o teu formidável
sermão da montanha.
 
Sim! Foste bênção: e acarinhaste as
criancinhas com palavras que
deveriam ser esculpidas na parede de todas as
escolas.
 
Sim! Foste tolerância suave: e bebeste do
cântaro estrangeiro da
mulher Samaritana.
 
Sim! Foste pão e foste luz e foste renúncia
e tiveste o gracioso
nimbo de todas as virtudes e ofereceste a água da vida e a
vida
eterna e, por isso, os homens apedrejaram-te e condenaram-te.

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
Aí estás, grande e venerado mártir,
sofrendo pelo divino pecado de
muito teres amado os pecadores.
 
Mas tu és hoje, no dia em que os homens
relembram o sagrado dia
da tua paixão, tu és hoje o mesmo Jesus de há dois mil
anos: tu és
o sumo Amor!
 
Vem, pois, ó divino crucificado, purificar
com o teu perdão e
proteger com a tua luz o homem de hoje que é o homem de
sempre: escravo das intemperanças e dos ódios, fraco e
mesquinho, dando-te por
certo a renovação da dor, que te
proporcionaram os teus irmãos de outrora.
 
Vem, pois, abençoá-lo com o teu doce olhar
e permite que todos
vejamos nessa desumana cruz, passem quantos séculos
passarem,
entre o digladiar das religiões e dos egoísmos, o símbolo do teu
augusto
martírio. Todos vejamos em ti, Senhor, com a cabeça a
dominar profanas
exegeses, aquele que mais nos amou, aquele que
foi o maior dos semeadores do
bem, aquele que trouxe na boca e
no coração o mais veemente sonho de que a
humanidade renasça
em fé e amor para a glória de Deus!
 
 
(de recorte de jornal não identificado,
provavelmente da década de
1920 —  Acervo da ACL)
 
 
 
Sem título
 
 
Neste violento choque de interesses, nesta
infindável marcha de
ambições e indefectível manancial de fundas amarguras, que
é a
Vida na sua nudez monstruosa e vetusta —  para aquele que sofre a
tortura amorosa de pensar e possui o sonho como um presente
irônico ou ingênuo
do céu, deve ser mil vezes bendito o encontro de
uma inteligência irmã, que
beije a sua inteligência em evolução, na
volúpia admirável da fraternidade,
expressando pela mesma
hermenêutica as leis perpétuas do destino humano e
cantando pelo
mesmo ideal a graça loura que vive exilada no seio das almas...
 
Mil vezes bendito! Porque recompensará,
como um oásis encantado
de estranhos frutos, os seus passos desamparados e
heroicos, que
pisaram, sozinhos, um solo misericordioso...
 
 
(República, 9 de outubro de 1928
—  p. 1)
 
 
 
O medo da saudade
 
 
Acredita, sim, Ruth, que ontem pelas
ave-marias, eu queimava o
belo álbum da minha meninice. Todo aquele volumoso
tesouro de
rimas e de lembranças, com a capa enfeitada pelo meu nome em
caracteres de ouro e as páginas cor-de-creme cheias de letras
amigas e votivas,
encabeçadas de cromos e de silhuetas,
 
todo aquele vivo e quase humano evangelho
de saudades eu fiz
morrer, ontem à tarde, por entre a beleza perversa das
línguas
vermelhas do fogo Vi arderem, loucas e submissas, todas aquelas
folhas
irmãs, que eu tantas vezes beijei e que estrelavam as
maiores amizades e os
melhores momentos da minha alma e da
minha vida de menina.
 
Vejo teus grandes olhos me recriminarem.
Oh! Eu sinto que foi
mesmo um sacrilégio que cometi, queimando aquelas velhas
páginas de sonho e de ventura, apressadamente, alucinadamente,
—  para
fugir à saudade à violenta saudade que vinha repousar
sempre no meu coração,
todas as vezes que eu folheava, com os
olhos trêmulos de lágrimas, o meu álbum
verde de menina.
 
E, ontem, quando a tarde caía, eu o tinha,
aberto, sobre os meus
joelhos. A nossa salinha estava cheia de perfume forte
dos jasmins-
do-cabo que dormiam, serenos e brancos, na jardineira. Ah! o
perfume já é um estranho, despertamento de saudade, só
comparável, nesse
destino, à música... E eu folheava, triste, o meu
estremecido missal de
recordações... Numa página, o retrato de
uma amiguinha morta... Noutra, o
bonito desenho que um dos
nossos irmãos traçara, cercado pelo aplauso trocista
de nós duas
—  lembras-te? —  num serão de primavera... Ainda que
outra, a
poesia que eu própria copiara numa tarde de Natal, quando a nossa
casa, cheia de ruído, festejava o dia extraordinário do "bebê divino
de
Nazaré"... Ah! que recordação viva, minha Ruth. Cheguei a ouvir
o barulho
festivo que enchia o nosso lar, o riso feliz das crianças,

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

alegres com os
presentes que o Papai Noel, o bom velhinho do
Natal, lhes pusera pela manhã nos
sapatinhos, a voz saudosa de
nosso pai conversando com os pequenos, e a voz
meiga de mamãe,
chamando-nos a todos para nos dar bombons... E fui folheando, e
fui revendo, cada vez mais triste... Adiante, encontrei as tuas letras
indecisas e já simpáticas, com uma dedicatória em que me deixavas
beijos e um
cromo representando um açafate de rosas... Nossos
irmãos e primos, nossos
vizinhos e colegas, todos aqueles que meu
coração elegera para o afeto, ali
deixaram uma lembrança
comovida...
 
E eu, minha Ruth, não pude mais... As
lágrimas que pingavam
abundantes dos meus olhos eram bem a canção líquida da
saudade
que aquelas páginas despertavam, porque me vinham falar de dias
despreocupados, de rostos desaparecidos, de corações que
cresceram, de almas
que mudaram... Fui então sacrílega! Queimei,
chorando, inteiramente, aquele
álbum garoto e querido do meu
passado —  para fugir à saudade, com medo da
saudade, dessa
espiritual visitante, toda embrulhada numa doçura que
flagela....
 
 
(de República, 23/10/1929)
 
 
 
Algumas atitudes da dor (Estudo)
 
 
— Quando eu sofro, abraço, cantando, a
minha cruz. Sofro com a
resignação bíblica dos santos e dos heróis. Sofro,
amesquinhado,
crente, humilde, com o coração cheio do pensamento evangélico de
que Deus quer que eu sofra para meu bem e minha perfeição. Sofro
com a garganta
afogada em ações de graças. Sofro com as mãos
postas, bendizendo a sabedoria do
céu. E a minha alma tem quasi a
unção dos tabernáculos. E o meu coração é bem
um órgão místico e
regozijante porque a minha dor submissa é a minha glória e a
minha vitória está na coroa de espinhos do meu martírio apostólico.
E a
religiosidade da minha atitude vai balsamizando as minhas
feridas encarnadas e
a minha dor já é alegria e paz.
 
— Quando eu sofro, a minha boca logo se
escancara para o grito
negro da maldição. E descreio e nego porque a minha
vingança
mísera é descrer e negar; Como um índio ferido em pleno tórax
bronzeado e desnudo, eu sinto nos meus olhos a dança da cólera
selvagem e o
tacape rude da minha religião se apruma logo para
ferir a fronte invisível ou
humana que criou a minha agonia. E no
meu blasfemo clamor pareço encarnar todos
os clamores abafados
de infinitas gerações de sofredores. A alegria que me
cerca fica
parecendo aos meus olhos uma ronda satânica que se apraz em
festejar
a inferioridade da minha desgraça e a dor que me cerca me
parece pequenina,
quasi imperceptível, ante as arquitetônicas
dimensões do que eu padeço, seja na
carne, na inteligência ou no
coração.
 
— Quando eu sofro, conto a todos, chorando,
a minha dor. Rogo a
misericórdia dos homens para a minha tristeza ou a minha
miséria
e não creio que, só raramente, ela seja sincera e desinteressada.
Rogo
para a minha angústia a atenção das criaturas e não creio
que, num olhar de
amor ao próximo, quasi sempre as criaturas
mascarem a ávida volúpia de ver o
próximo sofrer. E soluço, e
soluço... Corro até o gozo dos felizes, rojo-me aos
seus pés,
imploro as migalhas da sua compaixão. Não tenho pejo de inspirar
piedade. Não tenho vergonha de exibir as minhas chagas
sangrantes. E soluço, e
soluço...
 
— Quando eu sofro, finjo, diante dos homens
que me espiam e das
estrelas que me observam, finjo a calma dos fortes. Sofro
com
orgulho. Nem a passividade dos crentes, nem a blasfêmia dos
rebeldes, nem o
pranto dos simples. Sofro com orgulho. Escondo
avaramente as minhas dores
menores. E, quando elas vêm,
grandes e doídas como os vendavais, eu as
enfrento, bravo e
estoico, numa sobranceria quasi desafiante. Quando a maldade
humana. Ilimitada como os recursos da minha mentira orgulhosa,
se faz a espiã
dos meus sofrimentos, a áspera e terrível espiã
falsamente vestida de bondade,
ah! encontra-me, quieto, quieto,
sem lágrimas e sem gritos, e a minha calma
desconcerta-a e
afugenta-a. E, para os que me acreditavam um pobre derrotado,
eu
fico parecendo nada menos que um elegante sofredor ou um mortal
venturosamente insensível às desventuras que o visitam...
 
 
(de recorte de jornal não identificado
—  Acervo da ACL)
 
 
 
Tarde de Natal
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
A fixar, romântica, o ocaso de púrpura e de
ouro, Albemah espera...
Debruçada sobre o peitoril da janela ampla, enrola a
alma de
amorosa num longo soluço em que borboleteiam esperanças: nos
seios
trêmulos agita-se dolorosa ansiedade; relâmpagos de
angústia correm-lhe nos
olhos de negro esquisito, que os sonhos
ígneos agitam: é a noiva que crê na
palavra do Amor... A tarde de
Natal, estranhamente formosa, desmaia enrolada
numa clâmide
egrégia de ouro e de púrpura...
 
Albemah desce ao jardim, porque foi nele,
no meio da sua orgia de
cores e de perfumes, que Aurto lhe dissera adeus e a
tristeza alegre
destas palavras:
 
— Ama-me, Querida. Na tarde iluminada do
Natal, voltarei. Trarei
comigo glória e carinho e encontrarei em ti carinho e
beleza.
Voltarei na iluminada tarde de Natal. As nossas mocidades se
reunirão
para sempre e o nosso amor riscando de emoção as
nossas existências, de
sinceridade as nossas buscas, de luz as
nossas almas, ultrapassará os dias, os
meses, os anos; será a
vaidade das nossas vidas morenas e o orgulho dos nossos
cabelos
brancos, quando chegarmos ao nosso aquecido inverno com o
coração a
cantar... Ouves, Querida? Sê inteiramente minha,
gloriosamente minha: no teu
pensamento, no teu sorriso, na tua
saudade da minha voz, na comunhão com a
minha arte! Eu te levo
inteira, dentro em o hostiário egoístico e pagão das
minhas
esperanças!
 
Fremindo, transfigurada, ela ouvira tudo ao
seu poeta-deus, que
muitas vezes lhe abanou o lenço branco, até que desapareceu
de
todo na curva da estrada beira de sol, montado num cavalo
magnífico...
 
Desde esse instante de despedida e de
promessas, a vida de
Albemah foi a vida sacrílega da religiosa do amor:
enquanto suas
irmãs, de joelhos, pediam graças ao céu, ela, divinizada,
murmurava a oração divina —  as rimas excelsas que o seu artista
plasticizara, cantando a alegria e o universo...
 
No entanto, o afeto que a vivificava, de
estatura ciclópica na
lealdade e no vigor, resultara do encontro com Aurto na
festa
deliciosa em que o viu pela primeira vez, realizada num lar amigo,
próximo do bairro solitário em que ficava a sua casa e sorriam as
suas rosas e
fora marcado por bem poucas entrevistas...
 
Garimpeiro de beijos e de ritmos, num
relance, Aurto estudara
aquela esquisita psicologia de mulher e na vida de
Albemah, em
que o sonho boiava como um nenúfar de luz, acendra a primeira
chama
de amor, grande e pura. As palavras ardentes do adeus
encheram de lirismos
fortes a alma carinhosa da moça e, de dia e
de noite, mais Albemah se encadeava
no culto do seu poeta e ao
seu senhor, de beleza selvagem, gloriosa.
 
Chegou o Natal com o seu cortejo de
festins.
 
Na casa de Albemah, o mulherio esfalfa-se
em revestir de adornos
a árvore-símbolo, no preparo dos manjares, na compra dos
frutos e
dos presente. O velho pai, rejuvenescido com a algazarra juvenil
que
lhe fazem em torno, revê a companheira morta nos gestos
vivos e na voz e no
riso de cristal das filhas... Só Albemah procura
alhear-se da festa de Jesus e
festeja o Amor que lhe vem ao
encontro...
 
A tarde chega, iluminada... Albemah veste o
vestido maravilhoso
em que as suas mãos trabalharam dias a fio e, a arfar,
sorrindo com
lágrimas nos olhos, chega à janela florida de amores perfeitos,
verga o busto esplêndido e a sua cabeça bonita de linhas gregas
tem cintilações
de um lume imaterial. E espera, e espera... A tarde
desmaia, estranhamente
formosa, enrolada numa clâmide egrégia
de ouro e de púrpura e o poeta amado não
vem... Desce ao jardim,
ofegante, como para sentir a ilusão de que está mais
perto dele.
Debruça-se sobre o muro verde e espia. A estrada mostra-se
arrepiantemente nua, e melancolizam-na os últimos revérberos do
poente
extraordinário... Ninguém... Apoia então ambas as mãos à
radiosa fronte,
semicerra os olhos úmidos de pranto e longe de ser
açoitada pela desconfiança e
pelo ciúme, palpa visões trágicas: ora
imagina Aurto, mais bravo e mais belo
que nunca, dentro de um
cárcere, levado pela revolta sagrada das suas ideias;
ora o imagina
ao lado do leito materno, recebendo da anciã moribunda o último
beijo e o último conselho...
 
Mas o tropel vigoroso de dois corcéis, em
que vinha um par
elegante e moço, arrancou-a da sua torturada abstração. E, na
tarde iluminada do Natal, sem ser olhada uma vez sequer, Albemah
pôde ainda
reconhecer Aurto, que envolvia em olhares amorosos a
amazona, uma linda
mulher...
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
(República, 25 de dezembro de 1928,
p. 1)
 
 
 
Dia de Finados
 
 
Urna sagrada, que me lembras um berço e
guardas o grande sono
dos meus mortos; urna sagrada, deixa que eu te enfeite
com este
punhado de flores tristes, deixa que eu te faça bonita neste dia do
rito da saudade...
 
És tão pequena e, no entanto, dentro de ti,
dormem aconchegados
quatro dos meus máximos queridos:
 
Tu, companheira loura da minha infância,
princesinha mártir, que
sofreste heroica nos teus dez anos de vida, sempre a
sorrir, como
um anjo que desse aos homens a lição da renúncia silenciosa, da
dor quieta, do sacrifício tranquilo!
 
Vocês dois, que tantas vezes embalei num
grande desvelo de irmã
mais velha e com quem eu brincava, carinhosa e faceira,
ó meus
bonequinhos humanos!
 
Meu Pai, tu que a morte veio buscar numa
noite bárbara de
fevereiro, quando eu era menina-moça, mais criança do que
mulher, e vivia as mais belas horas de esperança ingênua e de
alegria garota!
Meu Pai, tu cujos lábios sinceros falaram para que
eu acreditasse no bem e
cujas mãos benditas trabalharam para que
eu tivesse pão!
 
Urna sagrada, que me lembras um berço e
guardas o grande sono
dos meus mortos, urna sagrada, deixa que eu te enfeite
com este
punhado de flores tristes, deixa que eu te faça bonita, neste dia do
rito da saudade.
 
 
(República, 2 de novembro de 1929 p.
1)
 
 
 
Carta de uma artista
 
 
Agradeço-lhe, meu amigo, o lindo ramo de
violetas que você me
enviou para que eu com ele enfeite os meus cabelos. E
agradeço-
lhe com o meu olhar mais doce e com o meu sorriso mais
emocionado,
porque o seu gesto e todos os cavalheirosos gestos
que você tem usado comigo
revelam não homenagens à artista,
mas à mulher, não àquela que passeia
festejada entre os seus
mármores e as suas idealizações, mas à que tem coração,
graça,
faceirice, juventude, fragilidade, todos os defeitos gentis e todos os
encantos vencedores do seu sexo.
 
Você há de estranhar as revelações sinceras
desta carta. E, já
agora, dir-lhe-ei também que todas as rosas e todos as
homenagens que uma fiandeira de beleza possa ambicionar, eu
tenho recebido na
minha fronte e na minha alma.
 
A glória é uma mentira que consola e ela
está entrelaçada à minha
arte e, augusta, forte, pomposa, vive beijando as
minhas estesias e
os meus minutos. Você bem sabe que eu não exagero,
afirmando-
lhe que me sinto bem satisfeita relativamente ao prestígio do meu
nome e à fascinação da minha espiritualidade. Mas, no meu
"atelier"
de escultora celebrada, eu sinto que a mulher vive a
invejar a artista.
 
Minha mãe, que é uma santa e a minha maior
admiradora, disse-
me um diz, porque com certeza sentiu solidão idealista da
minha
alma, ela que tanto compreende e adivinha a sua filhinha: —  Tuas
criações são tão formosas que te ultrapassaram e todos vivem a
Admirá-las,
esquecendo a criadora".
 
E eu sou infinitamente mulher. Mais mulher
do que tudo. Por isso
me confesso infinitamente agradecida a você, que
descobriu o
universo de ternuras que trago no veludo dos meus olhos negros.
Outros talvez o descobrissem também, mas penso que só você,
como frequentador
da minha casa desde que se tornou tão grande
amigo do meu irmão mais velho,
pôde descobri-lo em toda a
intensidade e em todo o colorido. E só você me
comunicou a sua
comovida impressão num galanteio nobre e audaz.
 
Obrigada, sim, meu amigo, porque para a
artista você teve frases
curtas de admiração. O verbalismo ardente, a palavra
consagradora, o pensamento apaixonado você os reservou para a
mulher. Para a
meridional esguia e morena, que você tem visto

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

longe dos salões, na


simplicidade de "toilettes" domésticas, regando
as dálias vermelhas
do seu jardim ou servindo-lhe o chá com as
suas mãos perfumadas.
 
Numa das últimas tardes, junto ao piano,
que eu dedilhava
distraída, você falou-me francamente do seu amor. Ouvindo-o,
renovou-se-me a certeza das afinidades que já descobrimos nos
nossos
temperamentos e você me fez pensar no encanto com que
amavam os amorosos, de
outrora, dando-me a ilusão faceira de que
era com os joelhos em terra que me
jurava as suas adorações de
homem superior.
 
Nada lhe respondi então. Eu não sei falar
nessas ocasiões
extremas, Meus olhos negros se mergulharam na contemplação das
glicínias encantadoras que nos espiavam da janela. Mas meu
coração batia
descompassadamente e eu creio que você não
duvidou, nem um instante, que ele
pertencesse já ao seu domínio
vitorioso e apaixonado.
 
Venha ver-me hoje à tarde com as suas
violetas maravilhosas entre
os meus cabelos e aceite o sorriso mais lindo e o coração
inteiro da
 
YARA
 
(da Revista do Globo)
 
(A SEMANA, 21 de agosto de 1930, p.
1.)
 
 
 
Conversa com o Ano Bom
 
 
Bom dia, Ano Bom! Você está olhando mesmo
para mim? Tanta
gente a cumprimentá-lo, a pedir-lhe felicidades e proteções,
que eu
estou com medo de que você não repare em mim, um pobre
rapazinho,
esfarrapado e descalço, que não tem pai nem mãe. Você
está olhando mesmo para
mim? Escute, eu também lhe peço que
me ajude, porque não sou preguiçoso, não! E
tenho, neste
coraçãozinho, que aqui está batendo, aconchegado à minha
camisinha
rota, um grande sonho de trabalhar de progredir, de
vencer... Faça o que lhe
estou pedindo, sim? O que lhe estou
pedindo, descoberto diante de você,
segurando a tremer o meu
velho chapéu nas minhas pobres mãos calejadas! O outro
Ano Bom
foi tão mau para mim! Oh! Você não imagina quanto chorei... Ele
bem
enxergava que meu pai já havia morrido e ainda se lembrou
de carregar a minha
mãezinha, que tinha uns cabelos louros e
compridos, tão lindos que você não tem
ideia!
 
Fiquei no mundo com meu irmão, um gurizinho
menor ainda do que
eu, franzino e doente. Nós dois moramos em casa de nossa
avozinha, na subida daquele morro, uma casa miserável porque ela
não tem
dinheiro nem tem ninguém por si. Mas repare, Ano Bom,
que eu não sou um guri
preguiçoso, nem travesso, nem perverso!
Está reparando, não é? Pois eu
trabalho, ali, naquela casa bonita,
de janelas altas, de manhã à noite. Faço
tudo quanto me mandam.
Mas ganho tão pouquinho! Ouça, Ano Bom, eu queria que
você
fosse meu camarada, que me ajudasse no meu sonho... Porque eu
desejo tanto
que o meu patrão me pague mais... Sabe para quê?
Para que, todos os dias, na
nossa casa, haja uma sopinha gostosa
e, todos os domingos, eu possa levar um
cartucho de bombons ao
meu irmãozinho. Ele gosta tanto de bombons! Você promete
ser
mais camarada, Ano Bom? Promete mesmo?
 
 
(República, 1 de janeiro de 1931, p.
1)
 
 
 
Salmo bárbaro
 
 
Terra, desde há muito, desde sempre, eu te
amo.
 
Dantes, era sem entender que eu te
estremecia e te gozava; mas,
depois, uma ternura fogosa e consciente começou a
saltar em meu
peito toda vez que eu, pelo sentido ou pelo sonho, me deliciava
em
ti, nos teus panoramas múltiplos, nas tuas curvas insolentes, nos
teus
espreguiçamentos lúbricos, na oferenda das tuas entranhas,
na tua pele negra,
ríspida e nua ou na túnica soberba das tuas
esmeraldas florais.
 
Hoje ninguém te ama com um amor maior que o
meu!
 
Gosto de pisar-te com pés descalços,
naquele gosto simples e
primitivo, naquele gosto inocente e bárbaro com que
sentiam o teu
contato em suas plantas bronzeadas os meus avós guaranis.

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

 
Palmilhando-te deleitosa e pagã, a dizer
estrofes desvairadas ao
vento, busco as flores que irrompem do teu seio
crioulo,
quotidianamente, e que ofereces, no orgulho materno da tua
fecundidade, às minhas narinas, aos meus lábios e aos meus olhos,
que são dois
faunos escuros e insaciáveis. Mordo-as, cheiro-as,
embriago-me no perfume
nervoso dos cravos, sonho à beleza
olímpica das magnólias, sorrio à vaidade
feminina das rosas, saúdo
o destino helênico dos girassóis e louca, louca de
paixão, enfeito-
me toda como uma noiva para o venturoso tormento do himeneu
com
os mais belos cachos dos botões de maio.
 
Outras vezes, com a desenvoltura de uma
bugra nova, procuro o
manjar silvestre das tuas raízes e das tuas frutas. Com
minhas mão
repletas, vou savorear o selvagem almoço perto das águas
brilhantes
de uma cachoeira, enquanto toda te aquece com seus
olhares sádicos de fogo o
teu namorado, o sol!
 
É ainda à sombra de tuas ramagens sivosas
que eu, solitária e
verdadeira, vibro na poesia mais espontânea do meu coração
e
grito no pensamento mais audacioso do meu cérebro: pareço-me à
cigarra que
salmeia nos teus jasmins cheirosos, pareço-me à leoa
que uiva na tua selva
rude.
 
Como não querer-te, amiga, se a tua
epiderme sonegada e heroica
se oferece a todos os homens para que sobre ela
todos tenham um
lar?
 
És convidativa, generosa, fraterna. Não te
escondes para ninguém,
não negas a ninguém os teus tesouros, numa lição cósmica
de
solidariedade.
 
Também és mestra e és doutora! Da cátedra
azulada das tuas
montanhas vem um convite pastoral a todas as raças para que
subam, até os píncaros do amor, da luz e da beleza.
 
Meu rito glorioso, ah!, não tem limites.
Surpreendo-me até a
semelhar contigo: tenho a submissão das tuas praias, a
rebeldia
das tuas ilhas, o ardor dos teus vulcões, o perfume das tuas searas,
a
suavidade das tuas areias e o anseio até pelos teus desertos e
pelos teus
precipícios, quando, no meio da multidão, eu me
encontro sozinha ou tenho à
frente os abismos negros da maldade
humana!
 
 
(de um recorte de Correio do Povo,
sem data —  Acervo da ACL)
 
 
 
Rústica
 
 
Quanta inveja me estás inspirando, pobre
rapariga, que assim
acolhes —  a sorrir embaraçadamente —  o grupo
cigarreante e
alegre que passeia pelos teus sítios verdes.
 
Olhando-te a figura simples de lavadeira
jovem do sertão, com a
tua saia de chita esmaecida e a blusa amorongada com
rasgões no
ombro, eu adivinho a tua história, a tua vida, o teu sonho.
 
Nasceste aqui mesmo, por estas terras de
costumes primitivos.
Sobre uma esteira de palha, à sombra das amoreiras
frondejantes,
brincaste em pequenina, enquanto as virações puras agitavam a
bela folhagem bravia do teu torrão.
 
Já crescidinha, corrias entre os canaviais
e ias espiar as queimadas
com as faces vermelhas de alegria e um alegre brilho
nos teus
olhos pretos. Na concha das tuas mãos matutas, bebeste a água
boa das
cachoeiras e, muitas vezes, chegaste até ela tua boca
rosada e saída como a
polpa granulosa das romãs.
 
Depois o tempo te fez rapariga e, desde
então, ao lado de tua mãe
e de tua irmã, entre pedras cinzentas e flores
silvestres, lavas...
lavas... E a fonte vai correndo e a tua garganta vai
cantando as
cantigas ingênuas do teu repertório sertanejo. E cantas,
sonhando... Mas é quando a noite baixa e o luar namora a
paisagem roceira, ao
som romântico dos violões, que mais se
encastela, no teu coração de mulher, a
esperança do príncipe
encantado... E ele virá um dia, completando a tua sina
modesta, ele
virá um dia na figura de um vigoroso trabalhador do arado ou de
um
tropeiro amoroso e forte.
 
Sim, minha selvagem amiguinha, eu penso que
adivinhei num
relance a tua existência inteira.
 
Forço-te agora a conversar, com perguntas
meigas, e, ouvindo a tua
linguagem errada, eu imagino como não deves ser feliz,
se vives

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

sem a volúpia de dizer frases bonitas e paradoxos brilhantes. Sem a


menor tortura no teu cérebro inculto e satisfeito. Sem a angústia
das grandes
ambições. Vivendo quase como uma planta ou como
uma rosa. Menos, infinitamente
menos sujeita ao egoísmo brutal
das criaturas. Longe, venturosamente longe da
elegante hipocrisia
dos salões. Vivendo quase como uma índia ou como uma corça.
 
Agora vou dizer-te adeus e vou regressar
com o meu grupo
cigarreante e alegre. Adeus, pequena lavadeira feliz! Eu
compreendi
toda a beleza da tua vida rústica. Mas o que não posso
compreender
são esses olhos espantados —  que me parecem
agora cheios de inveja
—  com que estás olhando a minha
civilização.
 
 
(República, 22 de março de 1931 p.
2)
 
 
 
Privilégios
 
 
Quando deres do teu farnel farto e do teu
púcaro cheio, nunca
esperes a paga, não calunies nunca a quem te não foi
grato...
 
Também não te lembres do "dai e
dar-se-vos-á" da promessa
daquele sonhador lírico das terras judaicas. Não
mova o teu gesto
de dar nenhuma esperança de galardão terreno, nem certeza da
bem-aventurança celeste.
 
Olha com mágoa a desigualdade das riquezas
e, quando deres aos
pobres os teus excessos, vê que é um privilégio dar...
 
Dá então sem alarde, sem publicidade; dá,
aproveitando o teu
privilégio, silenciosamente, com alegria humilhada...
 
 
(de recorte de jornal não identificado
—  Acervo da ACL)
 
 
 
Bandeira
 
 
Só aceito a bandeira do meu ideal: ela tem
o verde de todas as
matas da Serra; tem o amarelo do ouro que pertencerá a todos
os
que trabalham; tem o azul de um céu que sorrirá para todos os
homens e tem o
branco inspirador da paz que reinará numa nova
era. Estrelas? Ela não pode
caber todas (a terra é tão grande!) mas,
na cidade ou no campo, todos a
saudarão quando ela drapejar aos
ventos como um símbolo de fraternidade.
Corta-la-á um novo
dístico, um versinho novo criado no templo do coração
renovado da
humanidade. Por falar em coração, não será mesmo no coração de
uma
nova humanidade que a linda bandeira existirá? Na seda valida
da harmonia que
há de vir!
 
 
(de recorte de jornal não identificado
—  Acervo da ACL)
 
 
 
Ritmos e ideias
 
 
Um dos grandes sofrimentos humanos é
compreender que não
somos compreendidos. É ver erradamente interpretada uma
palavra, uma atitude, uma estética, uma doutrina, uma
consagração, e até, às
vezes, uma vida, e até, às vezes, uma
morte.
 
Falemos, porém, aqui, tão somente nessa
angústia, quando atinge
os artistas e os pensadores, aqueles que vivem para a
beleza e
aqueles que vivem para a verdade.
 
E, sem dúvida, o seu sofrimento maior
dentro da arte ou dentro do
pensamento.
 
Quando essa falsa interpretação fere
unicamente o detalhe, a
minúcia, a pequena curva ou a colunazinha branca de
nosso edifício
espiritual —  poderemos ainda dar-nos por felizes, pois que
são
raros os eleitos que se veem totalmente compreendidos até mesmo
por aqueles
que mais frequentemente os observam e que são os a
quem estão ligados — 
pelo sangue anímico da inspiração.
 
Mas, quando a incompreensão vem, de cheio,
atingir o trabalho
arquitetural desde os alicerces —  nossa dor é a dor
maior de nossa

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

vida intelectiva pois que vemos deformados aos olhos alheios o


labor que custa às vezes o preço das mais extraordinárias
renúncias.
 
E são pouquíssimos os que, diante de tanta
dor, não desertam,
levando na boca o berro viril da revolta ou aninhando no
peito o
pássaro solitário do tédio. Pouquíssimos os que não se perturbam
com
incompreensão alguma e continuam a trabalhar, a construir
como templários
iluminados do amanhã. Pouquíssimos os que vão
até a morte, artistas ou
pensadores que criaram algo de novo, de
revolucionário, de audaz —  numa
atitude vitriz de quem sabe que
as pedras involuntárias ou perversas da falsa
interpretação não
chegam à beleza da verdade nem à verdade da beleza.
 
(Especial para o "Jornal da
Noite")
 
(de recorte de jornal não identificado –
Acervo da ACL)
 
 
 
Quasi do outro lado
 
 
Era assim a carta daquele que ia
voluntariamente para a morte:
 
"Meu amigo, eu resolvi morrer! Cerrar
os olhos à realidade negra, à
realidade malvada que os fados e os homens me têm
feito palpar
todos os dias — e morrer! Cerrar os olhos à alegria gloriosa e
honesta que só tenho conhecido através do milagre incompleto e
torturante do
sonho — e morrer!
 
Imagino as interpretações que hão de cair
da boca miserável de
todos quantos me fizeram mal e da boca estulta dos que se
regalam com os acontecimentos mais ou menos sensacionais que
vêm aflorar ao seu
âmbito.
 
Tresloucado eu serei para a cômoda
observação de uns tantos e
serei um covarde para os que ignoram as esbeltas
acrobacias da
minha coragem ante as perfídias mais covardes, ante os assaltos
da
fome na minha pobre tenda, ante os assaltos da fome na minha
pobre alma.
 
Um tresloucado e um covarde... Que importa
se a mim mesmo,
conscientemente, atrevidamente, dou um rótulo oposto? Que
importa?
 
Meu amigo eu resolvi morrer! Ao defrontar,
– o que mesmo eu irei
defrontar daqui a alguns instantes? – ao defrontar o nada
ou a
eternidade, devo levar no rosto a marca pronunciada de todas as
decepções.
Mas ao meu olhar sem vida é impossível que não fique
vivendo a pena enorme de
desconhecer os encantos da vida..
 
Chego, pois, agora à razão precisa e
verdadeira do meu gesto
vitorioso de suicida: não é só a revolta de minhas
dores inauditas
que me leva à morte; é mais, muito mais, é infinitamente mais a
revolta de me terem sido negadas as belas delícias compensadoras,
das quais me
tornei digno, mais talvez que qualquer outro –
gritam-me todas as células,
todas as energias, as bravuras todas do
meu pensamento e do meu coração!
 
Sim! Coube-me apenas a taça do absinto. Os
favos de mel, como
forças vivas e perversas, fugiam ao reclamo de meus lábios
amargos para se enfileirarem mais apetecíveis ante a carícia
longínqua do meu
olhar... Esperar ainda? Mas eu sinto que se me
aniquilaram as possibilidades de
resistência e os clarões humanos
da esperança. E amo demasiado a beleza do meu
heroísmo
anônimo para não querer manchá-lo de lamentações ou de
fraquezas e,
por isso, a essa covardia ou a essa loucura, preferi a
beleza da renúncia
total.
 
Adeus, meu amigo! Vem tu ao menos velar com
fraterna
compreensão a minha carne ensanguentada e deixa que, para
consolo
único nesta hora final da minha existência exilada da
alegria, eu possa
repetir: meu amigo !"
 
 
(da REVISTA DO GLOBO —  Acervo
ACL)
 
 
 
 
Cântaro de reflexões:
 
 
 
Renúncia
 

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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira

Que ironia tremenda à ronda covarde do mal


está nas mãos que
tecem o bem, a misericórdia, a abnegação, a ternura, a coorte
toda
de perfeições que entremeiam de poesia o grande significado da
vida!
 
Mas há existências devotadas na expressão
absoluta e que tiveram
a vontade tocada pela luz das estrelas...
 
Essas... Oh! sem perscrutarmos razões
metafísicas, unicamente
impressionadas pela estatura moral desses valores de
renúncia –
sim, por que não seremos fascinados impenitentes de todos os
heroísmos? – adoremos o alto e o tocante e o envolvente destino
dessas
criaturas que despregaram os lábios da taça que lhes
poderia ter dado gotas de
felicidade, enchendo outras taças com
mel dos seus dons sagrados, para o riso,
o consolo e a bênção de
outros lábios...
 
Porque vidas puras assim, cheias da paixão
do bem e da harmonia
marcante da perfeição, formidáveis e multiformes na sua
glória útil,
divinas no segredo de aliviar a tortura alheia – devem ser para os
homens lições vivas de fraternidade, retentoras do grande sonho de
Deus...
 
 

 
A dor, certamente, paira em todos os cantos
da terra e agasalha-se
na clâmide viva da carne e esconde-se no vaso misterioso
das
almas...
 
No entanto, ela tem mil aspectos e castas:
é aparente ou sincera, é
frágil ou robusta, é plebeia ou ascende a heráldicas
transcendentais...
 
E as de existência mais admirável e bela
são as doces nobilíssimas,
as que se afidalgaram, as que se invulgarizaram,
presas, e contudo
livres para evolucionar em força e luz, à concha de um
coração que
conhece a gama de todas as angústias.
 
Admirável, sim, é a dor orgulhosa e grande,
que se não mostra,
recolhida em pudor, e que não chora, alteada em redenção.
Colorida de beleza, sim, é a dor, resignada, serena e forte como a
alma dos antigos
mártires cristãos —  menos para obedecer às
filosofias desencontradas dos
humanos do que por ter escutado, em
minutos perfeitos, como que a voz
sobrenatural da própria
perfeição: "Vence a geena do teu caminho".
 
E não será, acaso, muitas vezes, numa dor
assim, altiva e pura,
que o homem encontra o grande segredo das suas máximas
vitórias?
 
 
Beleza
 
Está toda salpicada de luzes dinâmicas a
ambição daquele que
somente quer dizer a beleza: de tudo e de si, da terra que
pisa e da
alma que retém, de todos os deslumbramentos que palpou na
virtude e
no espasmo do sonho...
 
Correm tão depressa os instantes, mas cada
um, na sua passagem,
deixa novas visões e polens novos à arte idolatrada do
verdadeiro
artista! E a aspiração deste, enroscada em sua alma como uma
serpente, vive lá com a delícia de quem tivera vencido deuses e
astros...
 
E o que sonha, é tão puro e tão belo: levar
à alma dos homens o
gesto e a mensagem das suas criações de iluminado — ideias
que
sejam cântaros de verdade e ritmos que lembrem bocas de beleza
selvagem e
gargantas de voz imaculada... Levar à alma dos
homens cálices cheios do sonho
coletivo das raças e do frêmito
individualista das consciências,
sonorizando-lhe todas as glórias
perfeitas e também as imperfeições bonitas ou
perversas que o eu
e a vida possuem.
 
 
Arrependimento
 
Como deve atravessar a alma do homem, vezes
muitas na hora fria
e matemática da reflexão, a sua própria crítica pelo que já
realizou:
pelo pensamento que despontou afoito, pela voz que profetizou
nervosa
ou macia, pelo sonho que tontamente sonhou finalidades
tontas e cambaleantes.
 
Oh! Sim! E o corolário fatal encastela-se
então na sua mente de
apóstolo arrependido, desolado do seu velho sonho: o
desejo de
palmilhar novamente a estrada que seus passos inexpertos

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violaram e
de cancionar outra esperança mais linda diante das
paisagens e das águas e dos
corações.
 
Sofrer outra vez a tortura dos dias que
foram? Embora! O passado
morto persegue-o com fúria e sarcasmo, berrando aos
seus ouvidos
o erro da crença que nutriu ou a derrota que finalizou o seu
trabalho sem clarividência e sem encanto.
 
Viver novamente, sim (pudesse ele!) eis a
ambição que lhe possui a
inteligência quando, nas horas que passaram, cantou os
sonhos e
os pensamentos que já o não atraem, ambição que tanto mais o
vence
quanto mais o vence a certeza de que, cantando-os, teve
mais entusiasmo do que
convicção, obedeceu mais às influências
que o mentorizaram do que à
determinação e à natureza da sua
própria índole.
 
 
Mentira
 
A resignação é uma bela cousa que os homens
aconselham uns aos
outros como pregadores rotineiros ou conscientes nas grandes
horas trágicas e até nos pequeninos desapontamentos da vida ...
 
Há, no entanto, no número dos resignados,
uma casta paradoxal:
são os que exteriorizam a linda felicidade dos vitoriosos
e mostram
na boca, que devera cantar o sonho negro da morte —  tanto há
provado a dor! —  e mostram na boca a vitória irônica de um
sorriso... Mas
que, dentro da alma, na razão de orgulhosos, no
carinho de ciumentos, guardam a
sua insatisfação, a sua
desesperança, a sua violenta tortura de viver que, embora
inisentadas, embora invisas gritam como as gargantas em
desespero e ardem como
as línguas vermelhas do fogo.
 
E, enquanto passam no mundo os verdadeiros
resignados, estes
passeiam entre os homens a grande mentira na sua resignação
de
rebeldes máximos...
 
Maura de Sena
Pereira Lamotte
 
(Esp. para a Revista do Globo)
 
 
 
Rezar...
 
 
Que poderia você, meu amigo, dizer-me de
mais confortador, na
hora inédita do nosso adeus, do que a promessa, grave e
encantadora a um tempo, de que havia de rezar sempre por mim?
 
Meu príncipe dos olhos verdes, meu pastor!
 
Você bem sabe que o nosso amor, o nosso
amor, cheio de ironia e
de sofrimento, é, mau grado tudo, uma grande rosa de macieza,
que eu, machucada e aflita, contemplo e conservo com o sagrado
enlevo da minha
feminilidade.
 
Mas você, igualmente, sabe que, para
suportar a dor dos espinhos
que me ferem e as berrantes ironias do nosso
maravilhoso amor,
preciso seria possuir uma fé muito grande, grande mesmo como
as
montanhas da minha terra, e que a que palpita entre as dúvidas de
treva do
meu insatisfeito coração é ainda menor do que as conchas
das minhas mãos...
Destas mãos cetinosas que você adora, destas
mãos que sonham, destas mãos que
dormem e que você quer
evangelicamente unidas na atitude religiosa da prece,
para que eu
sofra com mais doçura.
 
E foi, com certeza, para firmar na minha
alma, que tinha feito de
você o seu deus, a convicção dulcíssima da existência
de um
Senhor que escuta, para lá das nuvens, os rogos de todos os
pecadores,
que você me afirmou, no instante amoroso da nossa
despedida, que havia de rezar
sempre por mim...
 
Nesta hora, meu saudoso amigo, meu príncipe
de sorriso fidalgo,
em que eu sofro tanto, sozinha e heroica, lembrei-me, pois,
da sua
luminosa promessa, e uma grande paz encheu o meu pobre coração
de
mulher. Olhei, sim, o céu tão azul como nos mais lindos dias
desta incomparável
primavera em que nos amamos, e tive a faceira
e repousante ilusão de que você
estava rezando por mim e de que
a sua reza estava subindo ao céu e recebendo a
misericordiosa
resposta da boca misericordiosa de Deus...
 
 
(de Fon-Fon, 07/02/1931)
 
 
 

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Vi a casa onde tu nasceste


 
 
Vi a casa onde tu nasceste, vi a casa onde
tu crescente. Meus
olhos, muito enternecidos e muito abertos passearam desde o
portão até o fundo do quintal.
 
Tu estavas ao meu lado, guiando-me,
contando-me os contos
verdadeiros da tua infância, dos quais aquela casa e
aquele quintal
foram os cenários mais importantes.
 
Vi-te pequenino no berço. Sonhei contigo de
touca e sapatinhos de
lã, chorando nos joelhos maternos. Vi-te crescidinho a
correr, a
jogar bola e pião, a brigar e a sorrir. Sonho contigo de calça curta
e
cabecinha exposta ao vento e ao sol, trepando em árvores à
procura de ninhos
ou fazendo pandorgas de cores berrantes. Vi-te
na bela idade iniciadora em que
entraste para a primeira escola.
Sonhei contigo de lousa sobre a mesa, traçando
algarismos e letras,
copiando devagarinho as lições.
 
Eu via tudo isso, eu sonhava tudo isso,
quando me deste aquele
beijo lindo e cheio que eu não retribuí.
 
Naquele instante eu preferi beijar, com os
olhos molhados, os teus
pretos cabelos.
 
Naquele instante eu te adorei como si foras
o próprio garotinho com
que eu sonho tanto, o filho do meu amor, nosso amor!
 
 
(de recorte de jornal não identificado,
assinado por Maura de Sena
Pereira Lamotte —  Acervo da ACL)
 
 
 
Rosas coletivas
 
 
Não corte as rosas, vizinha, mão corte as
nossas rosas. Olhando
para todos os lados, com medo de que alguém a surpreenda,
uma
tesoura na mão trêmula, tenta colher as rosas, as nossas rosas. Oh,
mas
aqui estou eu, à janela, namorando o jardim minúsculo,
deslumbrada com estas
belas flores vermelhas, que são a sua
primeira oferenda. Tenta colher. Será
lindo, sim, mergulhar estas
estrelas de veludo e sangue na sua jarra de cristal
da Boêmia,
dourada e faiscante como um cálice real. Mas, depois, quando
fechar a
porta do apartamento, descer a escada e voltar ao jardim,
que é de todos nós,
vizinha, não sentirá um aperto no coração, ao
ver a nossa roseira sem flores,
verde e mutilada, verde e
despovoada da dádiva escarlate com que recompensou a
nossa
espera de tantos meses? Não pensará que roubou a si mesma
também?
 
Pense que nenhum de nós pode ter um jardim.
Podemos, apenas,
possuir nossos verdes precários, descendo do jarro da parede
ou
crescendo no jarro da janela. Motivo pelo qual nos reunimos um
dia, cheios
de saudades daqueles jardins fabulosos que rodeavam
as casas da nossa infância:
e depois da reunião, veio o jardineiro,
traçou como um geômetra e como um
taumaturgo estes canteiros
na terra escassa e começamos, desde então, a possuir
em comum
um canteiro. Oh, deveríamos ter dado uma festa quando abriram
estas
primeiras rosas. Contudo, não cessamos de olhá-las com
gratidão e amor: são
nossas, pertencem a todos nós. Mas a
nenhum de nós em particular, vizinha. Por
isso, vou dizer-lhe, agora
mesmo, que não me canso de admirar as nossas rosas.
Deterei,
assim, o seu gesto condenável. E ninguém será lesado. E as rosas
continuarão vivas no pé, em toda a sua beleza, para regalo dos
seus vinte
donos.
 
 
(de Gazeta de Notícias / Nós e o Mundo,
Rio, 27/4/1955)
 
 
 
Nós e o tempo
 
 
Quando ouvirem uma criança, um adolescente,
uma criatura muito
nova dizer que o ano passou depressa, desconfiem. Não pode
sentir
que o tempo corre quem está crescendo, desabrochando, em plena
faixa da
expansão. Fala assim numa inconsciente insinceridade, por
um natural espírito
de imitação, para impressionar, porque ouve os
mais velhos dizerem.
 
Estes, sim, estão sendo sinceros, pois
sentem realmente que os
natais e anos novos se sucedem com rapidez. E essa
sensação é

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um sinal (do grupo dos que chegam na hora devida) de que já não
é
mais primavera, embora em muitos pontos — o rosto jovem, o
corpo esbelto, o
coração arrebatado — possa prolongar-se o seu
brilho. Assim, o tempo é
implacável, as belas estações passam e,
após terem chegado e desaparecido as
cores ainda soberbas do
outono, virá o inverno, o declínio, o fim.
 
Há um sentido dramático em tudo isso,
marcado, porém, de uma
tal equidade o efêmero atingindo a todos inexoravelmente
— que a
atitude sábia será a aceitação. Equidade sem dúvida, porque não
tem
cabimento, por exemplo, alguém dizer que não teve juventude.
Correndo a vida,
todo ser humano tem, teve ou terá juventude.
Agora, se esta é triste ou alegre,
apagada ou gloriosa, dura ou feliz
— isso não é com o tempo: é com o homem.
 
 
(Gazeta de Notícias / Nós e o mundo,
Rio, 4-5/1/1976 — 
republicado em Nós e o Mundo p.17)
 
 
 
 
 

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