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LITERATURA
BRASILEIRA
Textos literários
em meio eletrônico
Poesia reunida e
outros textos,
de Maura de Senna Pereira
____________________________________________________________________________________________________________________________
Edição de base:
Poesia reunida e
outros textos.
Org. de Lauro Junkes.
Florianópolis:
Academia Catarinense de Letras, 2004.
ÍNDICE
Cântaro de ternura
Poemas do meio-dia
Círculo sexto
País de Rosamor
A dríade e os dardos
Busco a palavra
Despoemas
Cantiga de amiga
Poemas-estórias
Poema do pré-retorno
Os adereços
Demonstração: como evoluiu um poema
Entrevistas e textos para conhecer Maura
1. Discursos e entrevistas
2.
Poemas (verso e prosa)
3. Textos sobre pais e familiares
4. Sobre a mulher e o feminismo
5. Textos de catarinensismo
6. Outros textos
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POEMA DO
PRÉ-RETORNO
Vento da noite,
ainda é cedo!
E nem lavrei a
terra agreste
Helena Kolody
... e nem sequer
plantei as campânulas vermelhas
para doá-las em
festa aos que deixam as prisões!
quanto mais quanto
mais as magnólias acesas
para iluminar as
multidões!
e eu que vivo
clamando
liberdade!
liberdade! para todas as gentes
nem sequer a mim
própria libertei
(que heranças são
estas que vincaram estas manchas
de algemas nos
pulsos
e correntes nos pés
não me deixando
derrubar com os companheiros
as barreiras que
impedem
a ventura
aventura
de viver?)
desatados atos,
adversos gestos,
impossíveis passos,
malogrados feitos
e eis a não liberta
e não conspurcada
e também a mãe
gorada
pois nenhuma
semente germinou em meu ventre
e assim não pude
legar a nenhum ser
(que talvez me
levasse viva a outras eras
onde já serão
verdades o que são quimeras)
e ardor de minha
carne e minha mente
em verso novo como
um jacinto abrindo
pudesse eu estas
coisas dizer
agora que me sinto
cada vez mais perto
do nada que era
antes de nascer
OS ADEREÇOS (Último Poema de
Maura)
No meu simples
ofício de cantar
tenho recebido
flores em profusão
e a flor é vida
e o ofertante um
irmão.
Alguns poucos
preferem mandar-me
pedras malignas
que eu nunca
cheguei a ver
pois não atingem o
alvo
e se estilhaçam no
chão.
Mas há que também
falar nos silêncios
que o silêncio é
nada
porém eis que
agradeço
pois cada um deles
deixa em meu peito
um inexistente
adereço.
inexistente
mas que eu vou
usando
para me acostumar
DEMONSTRAÇÃO: COMO
EVOLUIU UM POEMA
1a. Versão do Correio
do Povo (década 1930)
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Título: Jurerê-mirim
Ilha donosa onde eu
nasci,
De praias claras e
de curvas esbeltas
Amorosa e selvagem
como eu,
Mulher como eu!
Parece que sou
feita do teu barro,
Que tenho em mim
pedaços dos teus seios verdes!
Meu sonho se
impregnou da tua poesia,
Meu espírito da tua
rebelião
E, um dia, quero
que a tua fecundidade
pouse também em
minha carne
2a. Versão de Poemas
do meio-dia (1949)
Título: Ilha e
Mulher
Quando me deito nos
teus canteiros mornos,
não me basta o
pensamento quase bíblico
de que sou feita do
teu barro.
Meu corpo é o teu
imenso corpo de ilha
e minha alma invade
as tuas entranhas,
participando da tua
febre criadora.
Meu sangue é o
rasgão líquido dos teus rios,
a linfa nervosa das
tuas cachoeiras,
a água matuta das
tuas lagoas.
Plantas rebentam de
tuas carnes, de meus chãos,
e sinto-me
carregada da tua seiva e do teu pólen.
Quando me levanto,
a sacudir a tua poeira morena
e ungida com o
perfume de vinte lírios novos,
e mulher e terra
deixam de ser uma unidade pagã,
ainda sinto me
prender e me abraçar
e envolver,
implacável, a tua existência cósmica
o abraço varonil do
mar.
3a. Versão — de Busco
a Palavra (1985)
Título: Consubstanciação
Quando me deito nos
teus canteiros mornos,
Jurerê-mirim,
Isla de los Patos, Santa Catarina,
não me basta a
alegria telúrica
de ter nascido em
ti
nem o pensamento
quase bíblico
de que sou feita do
teu barro.
Meu corpo é o teu
imenso corpo de ilha
e meu sangue o
rasgão líquido dos teus rios
a linfa nervosa das
tuas cachoeiras
a água matuta das
tuas lagoas.
Plantas rebentam de
tuas carnes, de meus chãos
e sinto-me
carregada da tua seiva e do teu pólen
Quando me levanto
a sacudir a tua
poeira morena
e ungida com o
perfume de vinte lírios novos
e mulher e ilha
deixam de ser uma unidade pagã
ainda sinto me
prender e me abraçar
e envolver,
implacável, a tua existência cósmica
o abraço varonil do
mar.
ENTREVISTAS E
TEXTOS PARA CONHECER MAURA
1. DISCURSOS E
ENTREVISTAS
DISCURSO DE POSSE
NA ACL — 1930
Acadêmicos:
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Depois de ter
traçado, com a pena fria e grave, os festejados
compêndios da sua didática e de
os ter oferecido, como um nababo
generoso, aos estudantes e aos estudiosos.
Depois de ter enchido
de artigos e conselhos técnicos as colunas das grandes
folhas
americanas. Depois de ser uma glória da pátria e do mundo e de
ser
honrado na Europa, através da sua polimorfa cultura, que
revestia de forma
altíssima o cumprimento de altíssimas
delegações, o nome do Brasil.
Mas depois ainda de
ter cumprido o ousado vaticínio, confirmou, na
grande cidade de São Sebastião,
da qual fizera o centro irradiador
do seu peregrino engenho, na rota de sábio
que escreve e que
ensina, que medita e que norteia, venerando e útil na sua
ansiedade, até que a morte o fez repousar no seu incognoscível
regaço.
Eu o imagino um
titã bronzeado e forte, trazendo no peito a audácia
de um farroupilha e a
maneira de um beneditino. Um titã bronzeado
e santo que saiu pelo mundo afora.
Antes, entrava num templo
pagão e era ungido pela mão invisível dos deuses. E
começou a
pisar o solo com os passos da sua bravura. E começou a nutrir,
iluminando. E para todos os caminheiros sedentos e famintos que
se acercavam,
dele erguia o púcaro cheio e dava a beber a água da
sua enorme fé positivista;
erguia o farnel repleto e dava a gustar as
frutas bravas e maduras das suas
meditações. Um dia ele tombou
como um jequitibá ancião e frondejante; mas, nos
seus olhos, na
hora última, devia brilhar, posto que morrente, o consolo de ter
envaidecido, pela fama que soubera conquistar, a terra pequenina e
radiosa em
que o seu berço balançara e a glória esbelta da sua
raça. E, perto dele,
inesgotáveis, estavam o farnel glorioso e o
púcaro imortal.
Assim eu o proclamo
um idealista.
Não o idealista
que, anunciando a renúncia e querendo a perfeição,
tem os olhos postos numa
vida além do mármore frio dos sepulcros
e da integração da carne morta na terra
frutificante.
Não o idealista
que, na expansão fascinante dos seus postulados
sociológicos, profetiza a
felicidade das agremiações humanas.
Não o idealista —
trovador que estampa os seus sonhos múltipios
em versos de renda e gaze ou que
sonoriza, num canto ardente,
gritos nômades, aflições coletivas, festas
patrióticas ou trombetas
de guerra.
Mas um idealista
diferente, que se debruçou para a vida feia e
decepcionante mas também
maravilhosa e marcou-a com a beleza
das especulações científicas e com o aprumo
das suas conclusões
exatas.
Um idealista assim:
pastor dos números, gineiro dos moços e poeta
que, no soneto do seu árido
trabalho mental, escreveu os
hemistíquios de gênio.
Deixai-me ainda
sonhar:
Eu edifiquei a
minha senda sobre um pedaço de serra ensolarada.
Estou sozinha com a minha
arte, que é simples como eu própria,
cheia de falas de crianças, poemas de
amor, espumas de
pensamento. E a minha tenda é de rosas. E o meu sonho é de fogo
e mel e arde na minha testa e canta na minha boca. Mas em torno
de mim vela uma
multidão de lanças e de escudos, de elmos e de
broquéis. São os grandes méritos
varonis do meu patrono: é a sua
vontade construtora de homem, é o seu garbo
altaneiro de soldado,
é a sua erudição profunda de cientista, é o seu
apostolado sereno
de mestre.
Antes de me virdes
saudar pela palavra cintilante e generosa do
acadêmico José Boiteux, permiti
que eu vos faça uma confissão:
Quando a paixão
pelas artes começou a florir na minha alma em
flor de adolescente, eu sonhei,
com a fantasia a galopar,
percorrendo num minuto os anos e os lustros, feita
uma princesa
louca, de tranças orgulhosas desmanchando-se aos ímpetos do
vento;
eu sonhei que havia ainda de entrar para a vossa
assembléia, numa noite assim,
abençoada pelas hóstias de ouro
das estrelas, com a minha cabeça toda branca e
toda gloriosa.
Deixai-me recordar
esse sonho, que eu repeli como um pecado e
que vejo realizado agora de um modo
diverso: porque, se trago a
lembrança vazia de louros fartos a tombarem-me pelo
vestido,
trago, no entanto, a minha mocidade. E, sentindo-a palpitar no meu
sangue e no meu coração de mulher, eu prometo, eu juro — aqui,
na companhia
aristocrática dos vossos espíritos — que, dominando
a formiguinha que tenho
sido, ah! hei de ser, mais do que nunca, a
cigarra ignorante e alada a cantar,
para a alma da minha terra e
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C — E aqui no
Rio?...
M — Aqui no
Rio foi tudo muito bem. Eu fiz aquilo que eu quis.
Porque a época já era outra,
não é? Foi tudo muito bem. Aliás, eu
não pleiteei nada. Eu era convidada para
fazer parte das
sociedades. Eu sempre falei muito também, muito discurso, muita
palestra, muita iniciativa. Fiz muita coisa. Através do Centro
Catarinense e
através mesmo da literatura no Pen-Club e tudo isso.
O Pen-Club foi um dos meus
palcos. Quando cheguei aqui, um
grupo de escritores me ofereceu um almoço e me
convidou para ser
secretária da revista Esfera. Era uma revista de cultura e
arte muito
bem feita. E eu fiquei trabalhando ali e me dando com muita gente.
E, nesta revista, eu escrevi o poema "Quero ajudar a construir",
que
era um poema que o Drummond gostava muito.
Este foi o poema
que me abriu as portas, porque o Drummond ficou
entusiasmado, quando ele viu o
poema na Revista. E o Drummond
quis me conhecer. Então ele me disse:
"Olha, Maura, foi uma das
coisas que me agradaram imensamente. Seu poema
"Quero
ajudar". Eu quero ver se encontro poemas desse nível que eu
quero
fazer uma antologia sobre poesia social boa". Eu acho que ele não
era fanático. Ele entrou lá no Partido Comunista e depois se
decepcionou,
porque tem que se decepcionar. Eles aqui foram uma
coisa! Agora este que estava
disputando eleições, o Roberto Freire,
tem sido maravilhoso, mas eu não quero
participar mais da política.
"O amor
começou com ele, Cousin. Porque ele é o grande amor na
minha vida, na nossa
vida".
C -Você chegou a
pertencer ao Partido Comunista?
M — Cheguei.
Depois eles erraram de tal forma que a gente
descobriu que o Stálin foi um
tirano, um dos piores... Ah! os
anarquistas, isto é, uma ala muito boa, muito
boa. Mas acabou
porque aquilo vinha da Espanha, da Itália. Eu li muitos livros
socialistas. A literatura toda.
C — Você se
desligou quando do Partido?
M — Não, eu
não cheguei a me desligar. Foi assim, suavemente,
acabando. Começou depois da
gente saber daquelas denúncias
todas a respeito da tirania do Stálin. Numa
ocasião, um poeta que é
critico, e estava lá no Partido, disse: "Maura, há
uma tarefa:
escrever sobre Stálin". Eu ouvi. É tarefa... Ele até parece
que não
falou mais nesta coisa. Mas eu não escrevi. E sei que, se eu
escrevesse
— era para um concurso — o meu poema ganhava. Um
poema a que dei o
título de "Morte e Eternidade". Não tem nada de
Stálin, está claro?
Porque aquilo foi um monstro. E ainda hoje estão
descobrindo coisas. De modo
que eu tive uma passagem que foi
desagradável. Mas é a experiência na vida,
sabe? Porque eu não
tenho nada do que me envergonhar. Eu perdi um livro —
A
Socialização da medicina — que foram reportagens publicadas no
Correio
do Povo, em Porto Alegre. Esse livro estava quase pronto e
foi apreendido por
problemas políticos, durante o Estado Novo.
Olha, eram reportagens tão
apreciadas que me chamavam de
doutora.
C — O Parto
sem dor é um livro de reportagem também?
M — Foram
seis reportagens que eu fiz quando a Maternidade
Clara Basbaum começou a
adotar. Aí eu assisti tudo, vi uma moça
entrar para a sala de parto e voltar
sorrindo. Tirei uma fotografia
dela. As reportagens foram feitas aqui no Rio,
na Noite.
C — Em 64
você estava atuante no jornalismo aqui no Rio?
M — E Cousin
também. Ele foi cassado, mas teve muita coragem.
Cousin: Foi uma das
minhas glórias, maior de todas. Não que eu
me metesse muito não. Eu ficava mais
com os comunistas. Lá um
tempo, me deram uma tarefa e eu não concordei com
aquilo e não
fiz. Maura: O Partido aqui foi uma coisa tremenda. Quem
participava, via. Não servia. Eu não aguentava.
C — Uma
estrutura autoritária, você achava?
M — Não era só
autoritária, era desorientada, gente boba, muita
coisa. As mulheres piores, mas
os homens também. Por exemplo,
assim: há uma tarefa. "Hoje eu não posso,
eu vou jantar". "Ah!
Você janta?" Um cinismo! Antes mesmo de
saber de Stálin, eu já
estava decepcionada pela atuação dos comunistas. Na
hierarquia,
cheguei ao distrital.
C — Maura, e
a questão do amor, que é fortíssima na sua poesia.
Fale um pouco dela.
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M — O amor
sempre entrou em prosa de uma forma limitada. Era
uma mocinha catarinense que
tem um namorado — a linha
romântica —, não propriamente romântica, mais
pra moderna, mas
sem ser poesia. Começou com ele, Cousin, porque ele é o grande
amor na minha vida, na nossa vida. Cousin: O primeiro encontro
foram os dois
retratos...
Maura: O paizola
(N.R.: referindo-se a Cousin) me achou tão
menininha, tão criancinha. Eu, que
tinha sustentado uma família,
ser criancinha? Ele sempre tem pena disso e diz
que esta é a
origem das minhas ideias atribuladas, socialistas... Eu, com 17
anos, fui chefe de família. Imagine que eu era mocinha quando meu
pai morreu
antes de eu fazer a prática — era uma etapa
pedagógica, após o término do
Curso Normal. Estava fazendo isso
quando ocorreu a morte dele. Súbita. De um
furúnculo que o
médico operou e infeccionou. E perdemos o pai de um momento
para outro. Minha mãe ia ter o nono filho. Ela tinha um filho por
ano. E
assim...
C — Você era
a filha mais velha?
M — Não. Eu
não fui a mais velha, eu fui a quinta.
C — E você se
sentiu então na responsabilidade de assumir a casa?
M — Não, não
é que eu me sentisse, todos sentiam isso,
compreendeu? Não havia a menor
consideração para com o coração
de uma criança. Eu era uma criança! Não digo
que fossem os pais,
a família, que quisesse isso. E havia como que um riso
satisfeito da
parte da sociedade com o meu caso. Trabalhando para uma família.
Eu lecionava muito. Era professora de manhã, à tarde e à noite, no
Instituto
Comercial de Florianópolis, que meu pai tinha fundado.
Ganhava por aula e tinha
que dar aquele dinheiro à minha mãe.
Lecionava também na Escola Complementar.
Agora, na Academia
eu nunca trabalhei. Só uma vez. Uma única
vez. Eles me botaram lá. E eu tinha
dito que trabalhava, passava
noites, sessões penosas de estudo, que eu não
podia estar
frequentando, não tinha vestidos bonitos para ir às reuniões: que
eu andava até muito mal vestida. O Adolfo Konder, quando me
conheceu disse para
D. Isaura Lobo: "É uma garota extraordinária,
mas tão
mal-vestidinha..." E ela disse: "Ela trabalha para a família.
Quando
retarda aqui o pagamento, ela vai, aquela moça vai com os
homens para receber
um dinheiro. Ela fica na miséria". Até havia
mulheres que diziam: "Mas
todo mundo precisa..." Era assim. Mas
eu lembrava dos meus irmãos, tanto
que tenho ali "Arcanjo com
Fome", que foi algo que me ficou daqueles
tempos, sabe? A gente
não esquece. E, por isso, esta foi a causa de eu ter
simpatias pelo
comunismo. Antes, quando eu li a primeira vez um livro
socialista,
foi na época antes de casar...
C — O que
aconteceu quando você leu?
M — Quando eu
li "errado o homem que diante de um palmo de
terra disse pela primeira
vez: isto é meu". Eu me senti assim como
que batizada. E desde essa época
eu me tornei participante. Quanto
à Academia, eu respeito aquilo, estou lá, mas
nunca trabalhei pela
Academia. Diz aí o Lauro Junkes (N.R.: aponta para o Busco
a
Palavra), levado por uma informação do Theobaldo (N .R.:
Theobaldo Jamundá),
que eu trabalhei muito pela Academia.
Jamais, jamais. Nunca! Eu entrei lá,
muitas flores, muito elogio,
muita coisa levaram a publicar aqueles discursos.
Muito bem. Mas
os discursos foram lidos, não é? Eu falava até no meu pai. Na
noite
bárbara de fevereiro. Sim, porque eu estava com uma angústia
enorme.
De repente, entrou
a dor e aflições de todo o jeito na minha casa.
Eu não podia esquecer. Nesse
próximo livro, Arcanjo com Fome, eu
faço uma pequena história de Ondina, pois
eu gosto muito do nome
de Ondina, que eu queria para Florianópolis, como quis o
nosso
grande escritor... aquele de Canasvieiras... o Virgílio Várzea. Ele
queria, até datou para Cruz e Sousa: Ondina, data. Depois foi para
Hercílio
Luz, etc. Que eu também não gosto dele. Carmem Luz foi a
mulher mais linda que
eu já vi. E a família, aqueles rapazes todos
foram muito atenciosos comigo,
sabe? Mas o pai, o pai... Até um
cunhado dele — o marido da irmã —
cortou as relações com ele
(Hercílio Luz). Ele pedia que ela, D. Sinhá Pequena,
o perdoasse e
ela nunca perdoou, porque o marido dela havia sido fuzilado. Fez
ela muito bem. Porque foi Hercílio Luz, foi aquela política que
venceu com
Hercílio Luz que deu o nome de Florianópolis,
justamente do ditador que mandou
Moreira César para lá liquidar os
catarinenses. Eu como conheci morreram
fuzilados! O pai da Dona
Gillette…
C — E você
tinha essa consciência política, no momento em que
vivia em Florianópolis?
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M — Eu tinha
imprecisa.
C — Mas tinha
uma inquietação?
M — Ah!
Inquietação eu tive sempre. Uma inquietação que me
levava a escrever, etc.
Então, os homens em geral e importantes —
eram aqueles homens que
formavam a Academia, eram os mais
intelectualizados da época —, eles é que me
escolheram porque
liam as coisas minhas e elas não se limitavam a Santa
Catarina. Os
grandes de Santa Catarina sempre foram meus amigos. Tanto que
eles
é que tiveram a iniciativa. Eram homens. A Academia era de
homens. Eu conto
isso também num poema que aquela moça da
Universidade, a Zahidé (N.R: Zahidé
Muzart) que me pediu um
trabalho que fosse um depoimento e eu mandei em forma
de
versos: "Entre Jerônimos ilustres". Jerônimo Coelho, a rua onde eu
nasci e Jerônimo Monteiro, que eu acho que aqui eu vou morrer.
"Eu sonhava
porque eu era perseguida. Ah! Eu era perseguida lá".
C — Maura,
você nunca tentou outras formas de escrever? A
ficção, por exemplo?
M — A ficção.
Pois é, nesse próximo livro — não é ficção, mas não
é só poesia —, é
prosa e verso, tem a Andarilha da Noite. Foi um
sonho que eu tive r-e-a-l.
Eu conto o sonho como eu tive. Esse
sonho vinha me perseguindo desde
Florianópolis. Sabe,
Florianópolis tem aquelas ruas bem estreitinhas e eu
sonhava
porque eu era perseguida. Ah! Eu era perseguida lá. Era, sem
dúvida.
Mas então vinha em forma de sonho. Eu percebia que era
uma interpretação da
minha vida. Era sempre noite, eu não sabia
quem era e andava por aquelas ruas e
virava esquinas e não sabia
que lugar era aquele. Era assim. Começou ali.
Depois acordava e
não pensava mais naquilo.
Agora este sonho
que eu tive há dois anos originou a Andarilha da
Noite. Eram aquelas ruas, as
casas fechadas, ligadas umas nas
outras, casas dos dois lados da rua estreita.
Eu andava, virava, era
outra rua; as casas a mesma coisa. E não encontrava
ninguém e
nem era possível, porque eu não sabia quem eu era, não tinha
identidade. E também não levava nada nas mãos e tinha a
sensação de toneladas.
Este sonho explica muito a minha vida. E,
de repente, me vejo numa praia
extensa e o mar, assim, da minha
altura, e eu fiquei com tanto medo e disse:
ah!, se eu pudesse
voltar para perto daquelas ruas, pra andar naquelas ruas! Eu
já
estava com saudades daquelas ruas e elas não podiam fazer nada
por mim.
E assim eu estava e
dizia: o mar vai me acabar. Isto era porque
meu irmão morreu no mar e esta é
minha maior dor na vida. Esse
foi nosso segundo luto; eu tive um desgosto muito
grande e ele
produziu o Cântaro de Ternura. Um vizinho nosso, muito nosso
amigo, chamado Ênio, ficou muito impressionado porque eu tive
nesse momento
meus primeiros arroubos de revolta. O que eu dizia
de Deus, da religião e da
dor que eu sofri! Eu não me conformava,
principalmente porque ele pediu
socorro. Então este rapaz — foi o
rapaz de maior cultura de línguas que
eu já conheci — ficou
compadecido e disse: "Maura, eu agora vou
procurar te visitar e
levar alguma coisa que te ajude porque você está de uma
forma
que eu estou compadecido, não sei o que fazer". E daí houve aquele
namoro, eu comecei a me sentir fascinada por aquele rapaz
inteligente e fraterno.
Foi justamente inspirada nele que saiu o
Cântaro de Ternura.
C -Maura, você
colaborou no jornal de Crispim Mira? Como ficou
Florianópolis depois da morte
dele?
M — A morte
de Crispim Mira dividiu a cidade. Ele era um homem,
um jornalista do qual eu só
posso dizer que me abriu as portas do
jornal dele. Me dava uma seção. Primeiro
a seção — "La Garçonne"
— de mulheres. Ele procurou abrir um caminho. Falavam até muito
dele, mas como ele foi lá em casa me visitar
com a senhora dele...
depois até quis que eu lecionasse. A sociedade ficou
dividida. Eu me
correspondia com Dona Si, mãe daquele Coelhinho — um dos
que
mataram Crispim Mira —, ela até foi muito nobre comigo, porque
finalmente
era mãe, não é? E eu fiquei do lado... A sociedade ficou
dividida. Você não
podia imaginar o que faziam.
Eu fiz um concurso
de história e português para a Escola
Complementar. O Barreiros Filho foi o meu
professor de português e
sabia, tinha certeza em tudo o que eu ia responder.
Havia muita
gente para assistir porque começaram a dizer que ninguém se
inscrevesse porque a cadeira ia ser minha, que o Adolfo Konder ia
me nomear e
não foi nada disso. Foi de acordo com as provas.
Diziam assim aquelas mulheres
que pensavam que eram alguma
coisa e hoje eu nem sei se lembram delas. Acredito
que muita
gente foi para torcer contra. O Aquiles Gallotti, que era o
presidente
da banca e o Barreiros Filho me disse umas três ou quatro vezes
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
M.J. — O
mundo está sendo envolvido por uma capa de vinil, se
materializando dia a dia,
e muitos poetas andam descrentes da
poesia. Você se filia a esta corrente?
M.S.P. — Já
pensei assim, não só pelos motivos que você lembra,
mas também por ver a
supervalorização da prosa, principalmente
da ficção — e a poesia cada vez
mais alienada, hermética, sem
vínculos com o povo. Cheguei até a solidarizar-me
com um editorial
nesse sentido, estampado num jornal sulista. Hoje não: a
poesia
começa a retornar às suas fontes e de novo acredito na sua
sobrevivência.
M.J. — A
Maura jornalista é diferente da Maura poeta?
M.S.P. — Sim,
é diferente. Jornalismo é profissão, que comecei a
exercer concomitantemente
com o magistério na Ilha de Santa
Catarina. Tempo dos verdes anos. No Rio tenho
sido só jornalista,
trabalhando em vários jornais e escrevendo o que me mandam
e,
às vezes, sugiro: crônicas, reportagens, artigos, tópicos, pesquisas,
comentários — ligados ao fato, ao dia-a-dia. Fui secretária de
revista e
entrevistei muita gente, principalmente educadores
médicos e cientistas. Três
livros saíram dessa militância diária. No
exercido do jornalismo cheguei ao
colunismo literário e hoje faço
apenas resenhas de livros recebidos.
M.J. — Seus
poemas nascem em algum momento especial, ou em
qualquer resto de tempo que lhe
sobra das atividades jornalísticas?
M-P. — Meus
poemas nascem quando um pensamento quer ser
canto. Eu tenho de ter algo para
dizer e, se a palavra não estivesse
tão desacreditada, eu diria: mensagem. Meu
processo de criação é
totalmente mental. Quando ele aparece escruto, já estava
pronto.
Não há propriamente momento especial. Há períodos de explosão,
outros
de esterilidade. E há os cadernos e cadernos perdidos, já
que só existiram em
meu cérebro. Não grito e calo, não calo e
grito? — assim inicio meu poema
"Escolha"; Ao final, optei pelo
grito, mas o silêncio, às vezes, pode
ser contundente como um
libelo.
M.J. — Quanto
tempo levou escrevendo A Dríade e os Dardos?
M.S.P. — Em
vários períodos, pois resultou da seleção de poemas
de livros publicados e de
outros que apareceram em antologias —
além dos inéditos.
M.J. — De
onde surgiu a ideia desse livro? E desse título?
M.S.P. — Eu
anunciara Novos Poemas, inéditos. Mas os demais
livros estavam esgotados
e há, neles, alguns poemas que ilustres
colegas me dão a honra de não esquecer.
O crítico Fernando Góes,
por exemplo, me escreve que ficou feliz ao
encontrá-los em A
Dríade e os Dardos. Quanto ao título: a Dríade
é uma evocação de
Maura em flor solta nos bosques natais. Teresinka Pereira,
professora de literatura brasileira na Universidade de Colorado,
chama-a
"dádiva erótica". Em outro ponto do artigo, ela diz:
"Descobrimos a poeta libertando-se da sensação corporal e
alcançando o
nível cósmico do pensamento ultra-universal . E
descobrimos mais, achamos a
companheira que canta de mãos
dadas com o povo na rua buscando o pensamento do
mundo". É
quando, talvez, começam os Dardos...
M.J. — A
poesia encontra seu caminho novamente? Existem
pessoas interessadas em
descobrir o mundo do poeta?
M.S.P. — Sim,
encontra. Seu livro Inhumas é um exemplo. Sou
uma pessoa presa à minha
terra como uma planta e já abri uma
coletânea dedicada à Ilha de Santa Catarina
com este dístico:
Abraçada ao universo / tendo as raízes em ti. Por isso posso saudar
o canto belíssimo que você dedicou à cidade natal. "Todos
cantam
sua terra". Não, se todos cantassem sua terra — de tal forma
o
regional o universal se tocam — haveria um coro de paz. Quanto à
segunda pergunta: Não sei se há pessoas interessadas em
descobrir o mundo do
poeta, mas há poetas interessados em
descobrir o mundo que há de surgir —
com amor, liberdade e
chances iguais para todos os seres humanos.
M.J. — Seu
livro está tendo mercado?
M.S.P. — Bem,
a distribuição é sempre precária, como se sabe.
Mas ele começa a aparecer nas
livrarias do Rio e de Florianópolis. E
a ser procurado. Agora, o lançamento (27
de julho) foi uma grande
tarde, promovida pela Associação Brasileira de
Imprensa, tendo eu
autografado por mais de três horas e vendido muito.
M.J. — A
crítica tem-se manifestado?
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M.S.P. — Posso
dizer que me sinto satisfeita, e até emocionada,
com as manifestações que tenho
recebido — em artigos, notas,
cartas, referências.
M.J. — Quais
são seus planos para o futuro?
M.S.P. —
Continuar autêntica.
M.J. — Para
você o que é mais importante num poema?
M.S.P. — Seus
dois elementos: a forma e o conteúdo.
M. J. —
Finalmente , você está ligada de alguma maneira à
literatura feita em Goiás?
M.S.P. — Há
muito tempo estou ligada à literatura de Goiás e
admiro a força gregária do
povo goiano, que se reflete nos seus
escritores. Conheci alguns em congressos
nacionais da classe em
Belo Horizonte e Porto Alegre. Entre eles, o grande Bernardo Élis e
minha fraterna amiga Amália Hermano Teixeira. Livros fui
recebendo e minha admiração aumentando. Ultimamente a ponte é
o Suplemento
Cultural que você edita, proporcionando cada semana
ao Brasil — nas
suas páginas altas onde brilham as estrelas
goianas — uma festa de poemas e
contos, artigos, estudos. Devo
essa aproximação ao ensaísta Nelson de
Alcântara, pernambucano
que adora Goiás e curte os amigos. O Suplemento
Cultural é um
exemplo de trabalho sério e um curso permanente, que muito me
tem ensinado, merecendo de todos nós, leitores, aplausos e
agradecimentos.
MAURA DE SENNA
PEREIRA entrevistada por A Ponte
(Florianópolis, 3a semana de março de 1980)
AP — De que
forma você participa da Literatura Catarinense?
MSP — Eu participo
da Literatura Catarinense pela minha
permanente ligação com a torra natal e
pela divulgação que tenho
feito dos seus valores. Ainda pela seiva que corre em
mim como em
uma planta, o que já me fez explodir naquele canto-epígrafe de
catarinense o cósmica: "abraçada ao universo / tendo as raízes em
ti".
AP — Quais as obras
que você já publicou e como o público recebeu
esses trabalhos?
MSP — Publiquei
cinco livros de poesia, um de discursos, outro de
crônicas e dois de
reportagens, um dos quais, O Parte Sem Dor foi
best-seller — e tenho
motivos para me sentir satisfeita com a
acolhida da crítica e do público. Devo
mencionar o cancioneiro
"Jurerê-Mirim" (cujos originais perdi em fase
— hélas — em fase
lutuosa de minha vida) e os vários volumes que podiam formar
as
centenas de trabalhos publicados na imprensa. Além, naturalmente,
dos livros
que não saíram do meu cérebro — já ficando no protesto
do silêncio.
AP — Qual a
situação da crítica local diante de seu trabalhe?
MSP — Muito
boa.
AP — Você achou
válida a experiência?
MSP — Ser
autêntico é sempre válido.
AP — Como
escritor você tenciona continuar trabalhando?
MSP — Vou responder
com uma frase do Maeterlinck:
"Pour reposer
nous avons l' éternité".
AP — Qual o
principal objetivo do autor quando edita sua obra?
MSP — Eu
diria que necessidade de comunicação — um truísmo,
portanto.
AP — Seus trabalhos
receberam influência de alguma corrente
crítica propriamente dita?
MSP — Devem ter
recebido, mas inconscientemente.
AP — Quanto
tempo você vem atuando dentro da literatura?
MSP — O tempo em
que publiquei meus livros e em que forjei os
muitos não publicados.
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Maura de Senna
Pereira nasceu sob o signo de Peixe, na Ilha de
Santa Catarina. Uma composição
no curso primário, aos onze anos,
marcou sua iniciação literária. Louvada pelas
professoras e lida em
tom de discurso pelo seu tio Júlio Régis, foi por este
publicada.
Dizia respeito a um combatente que, em plena batalha, vendo cair
um
companheiro, arrastou-se e conseguiu resgatá-lo.
— Não deixou de ser
uma profecia — diz Maura. Gesto semelhante
ao de meu irmão Samuel.
Componente da FEB,
na dura conquista de Montese (tinha ele vinte
anos) ao ver tombar ferido um
esclarecedor do seu grupo
"penosamente rastejou até o ponto onde havia
caído o seu
camarada, o qual verificou já ser cadáver. Mesmo assim, arrastou o
corpo até um local abrigado, indiferente à chuva de projéteis que
caía em torno
de si" — como reza o diploma que recebeu pelo seu
ato heroico,
juntamente com a Cruz de Combate de 1a classe.
Outros trabalhos da
menina-e-moça foram aparecendo na imprensa
e, muito jovem, Maura viu publicado
seu primeiro livro: Cântaro de
Ternura, poemas em prosa. Professora (formada pela Escola Normal
Catarinense, com vários cursos especializados,
e lente, por
concurso, das cadeiras de português e que iria também ser a sua
em Porto Alegre e, depois, aqui no Rio, onde reside há vários anos.
Publicações: além de
opúsculos, participações em antologias, dois
livros de reportagens, um de
discursos, outro de crônicas (o recente
Nós e o mundo), publicou mais
três livros de poemas: Poemas do
Meio-Dia, Círculo Sexto, País
de Rosamor.
— Lembro até,
Maura, de uns versos que fiz pra eles:
Maura de Senna
Pereira,
voz "Canto da
companheira"
gesto de pão, rosa
e paz:
quanto dás!
Redondilha de
ternura
humaníssima
frescura
tua "Rosa no
caminho".
Teu grito
"Circulo Sexto"
parábola de alma,
texto
gosto de trigo e de
vinho.
Em Terra Catarinense
Poesia perfil de
Anita
infinita
te pertence.
— Meu próximo livro
será A dríade e os dardos, titulo de uma de
minhas coletâneas de poemas, depois
do que pretendo escrever
somente em prosa.
— E prêmios,
medalhas, Maura?
— Não concorrer a
prêmios é um princípio meu. Entretanto, eu me
considero magnificamente premiada
com expressivas homenagens
que tenho recebido. Meu poema "Retrato de
Anita", por exemplo,
eu o disse por ocasião do inauguração da estátua da
heroína na
cidade catarinense de Laguna, a convite da Comissão Organizadora
e
do Governo Celso Ramos. Foi um dos momentos mais belos da
minha vida. Tenho,
também, muitas medalhas, entre as quais a
que, em solenidade do PEN Clube, me
entregou a Academia
Catarinense de Letras, onde ingressei na extrema juventude
e por
iniciativa da entidade. Todas me são caras, mas a que mais me
envaidece é
a medalha comemorativa dó centenário da Gazeta de
Notícias, porque idêntica e
ao mesmo tempo a recebeu Cousin —
precisamente na tarde de autógrafos de Nós e
mundo, quando mais
de cem amigos nos rodeavam na Livraria São José.
— Não quer contar
sobre seu novo livro?
— Nós e o mundo
inclui pequena parte das crônicas, resenhas e
artigos que publiquei na coluna
com o mesmo título, em Gazeta de
Notícias. Tratando de figuras, livros e
fatos, cuidei, na seleção, de
não repetir os temas. "Cosmorama variado e
policromo" — diz o
ilustre jornalista Barbosa Gonçalves, na apresentação
do livro, que
tem capa do pintor abstrato Ely Braga. Nas orelhas e nas últimas
páginas, transcrevi alguns dos valiosos louvores que tenho
recebido.
Sei, como um
agradecimento aos que a têm estimulado, e não por
ostentação. Em Nós e o mundo,
como já foi dito, não há
egocentrismo algum. E depois, me inteirei de que está
sendo muito
bem recebido.
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— Neste momento me
é grato lembrar as palavras do Presidente
Juscelino Kubischek na carta que me
enviou a 19 de julho: "O seu
mundo se compõe do mundo dos outros e neste
você se mostrou
inteligente, hábil e mais do que tudo com uma rara capacidade
de
criar e de escrever".
Maura sorri:
— Palavras que
conservo como um prêmio.
2. POEMAS
(Verso e Prosa)
Sobre os Cardos
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Vês, eu bem sei,
acima dos louros cabelos,
uma porção de
gabirobas louras.
Para alcançá-las
e sugar-lhes a
doçura,
tens que te apoiar
nos cardos duros
que circundam a
árvore esguia,
cujos frutos de
ouro
atiçam, meu menino,
a tua gula
nesta hora dourada
do meio-dia.
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Eles são maus, têm
espinhos
e irão ferir-te os
membros tenrinhos
e machucar teu
peitinho branco..
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Assim selvagens e
belos,
amparando teu fardo
gentil,
lembram esses
amigos da gente grande
em quem a gente não
cansa de confiar,
em suas almas
descansando,
inteiramente, a
alma,
mas que, no
entanto, nos ferem
com os espinhos
terríveis da sua traição,
fazendo destilar a
flux
o sangue sentido
das nossas lágrimas.
Pequenino, meu
pequenino,
não te debruces
sobre os cardos.
Com os seus
espinhos traiçoeiros,
far-te-ão chorar.
Lembram esses
amigos da gente grande
em quem a gente não
cansa de confiar,
mas que, no
entanto, sem dó,
nossa pobre alma
confiante
vêm um dia atraiçoar.
(de Sup. d'0
Malho, sem data — Acervo ACL)
Eternidade
Debruçada no balcão
ingênuo
da minha
fraternidade,
tenho palpado a
alma das criaturas
com a curiosa
comoção dos simples.
Tenho mergulhado
em sua pouca ou
imensa profundidade
a minha mão trêmula
e morna.
E os meus dedos,
tantas vezes que
nem sei,
se encolhem
arrepiados
com o frio desse
contato,
parecido com o frio
do campo-santo,
com a algidez das
cruzes
e dos carneiros
brancos.
Toda eu então,
no corpo e no
espírito,
vibro de lástima,
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ó amigo, ó irmão,
ao pensar que tenho
de morrer um dia
e que não poderei
deixar como herança
esta minha incrível
vibratilidade
repartida
por todas as
criaturas vivas
que não têm alma.
Oh! eu bem sei
que a minha carne
se misturará à
terra brava,
e gostosamente,
e infantilmente,
toda eu palpito
numa pletora
inquieta de júbilo e de orgulho,
ao idear que
nutrirei raízes,
que subirei pelos
troncos molhada de seiva,
e, insinuando-me
aos rebentos, nos botões,
nas flores
tropicais ou nos frutos ácidos,
virei espirar
o grande sol da
minha terra.
Para uma sementeira
ardente
para um trabalho de
amor,
eu queria que
também ficasse
eterna no mundo,
benfazeja,
entusiasta, repartida,
a minha alma que
ama e que sonha.
Para onde irá ela?
para o infinito? para o nada?
Nada sei! Nada sei!
Sou uma cigarra
ignorante e uma leoa rebelde.
O que sei, o que
sinto, o que canto
é a minha pena, a
minha compaixão
de todos que não
vibram como eu,
que tenho o peito a
bater pela própria renúncia,
de todos que não
conhecem a purificação
no belo fogaréu de
um ideal...
Minha alma irá
desperdiçar-se
quando eu morrer
numa extinção
total?
Escuta, ó meu
amigo, ó meu irmão,
Eu gostaria de
ficar para sempre
na terra,
vendo os rosais que
sorrirem
nos jardins
floridos da minha psique
florindo em todos
os corações
que são caminhos
sem vegetação.
Eu gostaria de
ficar para sempre
na terra,
para uma
metempsicose coletiva,
não registrada
nunca em lendas nem em dogmas,
animando pelos séculos
fora,
com o meu generoso
calor,
todas as almas
polares, estéreis, geladas...
(Ai! pudesse eu em
todas elas saltar de amor!)
(Recorte de jornal
sem identificação — Acervo ACL)
Vovô Índio
Vovô índio, hoje é
Natal,
tenho um pedido
para você
(Agora, sim, estou
à vontade)
Papá Noel não me
entendia,
vinha de longe,
cansado, friorento,
enquanto eu gozava
o verão do Brasil.
Por mais irmã que
eu seja de toda gente,
teria que tratá-lo
de senhor.
Que cerimônia, não
acha?
Uf! não tenho
jeito!
A você, amigo
velho,
eu trato
simplesmente de você.
Não faço graça,
Vovô Índio
de tanga colorida e
cocar esvoaçante,
abro-lhe aqui o meu
peito, nômade dos brasis,
primeiro
bandeirante!
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Borbulha no meu
corpo o seu sangue selvagem
e minha alma está
cheia
do seu ingênuo
panteísmo.
Planta tropical que
Guaraci abençoa,
minha raça possui a
seiva dos tupis,
dos que receberam,
fraternos, os marujos brancos
e viveram
deliciados do pindorama.
Compreendo toda o
seu entusiasmo
rude, místico e
pagão
(Pudera não!)
A nossa natureza
inspira os meus
pensamentos
e alegra os meus
sentidos.
Amo como você a
liberdade,
ó velho caçador, ó
sábio pajé!
Até parece que você
deixou o maior quinhão dessa
herança
à sua neta rebelde
do século vinte!
Por tudo isso, eu,
brasileirinha
que traz na pele
a quentura do sol
da manhã
e o perfume das
frutas do mato,
eu, filha de
Jurerê-mirim,
quero, no Natal,
Você!
Vovô Índio, quando
andar pelas terras do sul,
distribuindo
presentes.
Não faça como Papá
Noel,
não se esqueça de
mim!
(Especial para o Correio
do Povo sem data, acervo da ACL)
Ilha Verde
Porque nasci numa
ilha cheia de matas e de frutas,
de pássaros que são
deuses
e que cantam
como si a velha
alma de Orfeu
estivesse repartida
em suas gargantas,
é que eu tenho o
gosto alucinado da poesia
e o rito selvagem
do panteísmo.
Porque venho de uma
terra
toda orlada de
praias e de conchas,
onde as espumas se
esparralham
numa ânsia de
conquista
e donde os olhos da
gente se mergulham lá bem longe
é que eu tenho esta
vontade
de alcançar toda a
beleza,
de devassar todo o
infinito!
Porque pertenço a
uma raça de ilhéus sonhadores,
que revelam, no
sangue misturado,
a ascendência
nativa dos guaranis
continuada
pela dos marujos
conquistadores
e pela dos que
também plasmaram a raça,
com saudade talvez
das paisagens africanas,
é que eu tenho este
nomadismo aflito do pensamento
e, dentro da alma,
como uma flor
exótica num jardim igual,
esta esquisita
nostalgia...
Porque venho de uma
terra
que não quis
integrar-se a nenhuma outra,
num gesto rebelado
de independência,
é que sempre tenho
os olhos
dilatados de
entusiasmo
quando vejo
qualquer pátria
ou qualquer povo
querer ser livre!
Porque nasci numa
ilha cheia de matas e de frutas,
é que você encontrou
na minha arte e na minha boca
o sabor dos butiás
e o cheiro das
trepadeiras em flor...
Porque nasci numa
terra
sempre rodeada pelo
abraço verde do mar,
é que eu gosto
tanto
desse amor ciumento
de você
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(do jornal República
— DOMINGO LITERÁRIO, 7 de agosto de
1932, p. 3 Não faço graça, Vovô Índio
de tanga colorida e cocar
esvoaçante abro-lhe aqui o meu peito, nômade dos
brasis, primeiro
bandeirante!)
Fada Madrinha
Eu
te quero
bem, minha
dourada imagi-
nação, porque,
dona de opulências
e
de requintes, tu me
tens
feito conhecer,
palpáveis e
gloriosos, todos os
minutos
bons que a
realidade avaramente
me negou. A saudade
dolorosa e
sagrada que me
deixaram os meus dias
inconscientes de
criança, a ironia e o de-
desencanto que
estão enchendo os meus dias
sofredores de
rapariga — caem no olvido efe-
mero quando eu
obedeço à tua voz azul e visito
— feita uma rainha,
com o vestido de cauda da i-
lusão, arrastando
um séquito galhardo de paladinos
(todos os meus
sonhos de beleza realizados sob as
bênçãos do sol),
ouvindo, poderosa, a trombeta da
vitória, ouvindo,
escrava, a cítara da felicidade
— e visito as tuas
cidades e os teus jardins, os
teus parques e as
tuas grutas (tu és tão faus-
tosa e tão boa!)
Ah! eu bem sei que nun-
ca ninguém na terra
possui o triunfo
e a ternura que tu
me sabes dar e,
amparada pelo teu
feitiço, sugestio-
bada pela tua
mentira, eu me vou
vingando da verdade
perversa
das minhas horas...
Eu te
quero bem, minha
dour-
rada imaginação,
por-
que tu é a minha
fada —
madrinha
e tão naba-
besca e
tão ir-
requieta! E tão
generosa! Que a ti eu devo todos
os deliciosos
prêmios que a realidade avara-
mente me negou!
(A Semana,
18 de setembro de 1930, p.1)
Canoinhas
Bendita Sejas tu,
Santa Cruz de Canoinhas,
pequena cidade
setentrional da minha terra,
assim toda cheinha
de rosas,
assim toda rodeada
de pinheirais.
Eu cheguei até a
tua beleza perfumada,
até os teus ares
frescos,
depois de haver
contemplado
enternecidamente
uma porção verde da
terra catarinense,
ainda virgem para
os meus olhos,
que a foram
acariciando
com a delícia de
dois sátiros felizes.
Ora o meu sonho era
alto como as serras do caminho,
ora a minha alma se
esticava, hipnotizada,
pelo rasgão líquido
dos rios.
Aqui, a mancha
negra das queimadas,
lá adiante, os
milharais prometendo as socas douradas.
Mas sempre o verde
faustoso
Dominando tudo com
os seus tons múltiplos.
Ah! na mata seivosa
que o ventre da
terra nos ofertou,
para nossa riqueza
e para nossa alegria,
eu revi,
surpreendida,
entre as outras
variações da cor predestinada,
aquele verde suave
do meu colar
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e também o verde
carregado, pastoso, colérico,
que já vi lá longe,
no mar.
Quando cheguei até
a tua beleza perfumada,
até os teus ares
frescos,
eu vinha orgulhosa
da grandeza
panteísta do meu torrão.
Tu prolongaste o
meu orgulho,
ó bela milionária
do ouro verde,
ó toda jovem,
apertando-me num
grande abraço comovido
bem junto ao teu
coração.
E, a seguir,
ofereceste-te a meus olhos,
que continuaram na
sua orgia amorosa
de sátiros felizes.
Vi-te cheirinha de
flores...
Vi-te rodeada de
pinheiros...
Flores, sorrisos
policromos,
que representam
a candura
sorridente das tuas mulheres gentis!
Pinheiros, lanças
coroadas,
que simbolizam
a altivez vitoriosa
dos teus caboclos bravos!
Bendita seja tu,
Santa Cruz de Canoinhas,
pequena cidade
setentrional da minha terra,
assim toda
cheirinha de rosas,
assim toda rodeada
de pinheirais!
(do jornal República
— DOMINGO LITERÁRIO, 13 DE NOVEMBRO
DE 1932. Também publicado em Brasil Feminino, Rio, n. 12, maio
de 1933 e assinado Maura de Sena Pereira Lamotte)
Canção de Guerra
Tu, que tens a
volúpia da combatividade.
num grau que ninguém
nunca ultrapassará,
de tão candente e
límpida,
é meu feroz
lutador!
Tu, que possuis
labaredas encarnadas na voz,
línguas de fogo na
palavra,
como si pudesses
com elas
incinerar depressa
o erro dos homens,
desde as intenções
que ressumam veneno
até a seta
envenenada
que se atira à
inocência e à justiça,
ó meu louco
sonhador!
Tu, que tens dardos
certeiros
nas frases tuas que
tanto querem a perfeição,
como si tivessem
reencarnadas em si
antigas figuras
bíblicas,
dardos contra o
sorriso dos estultos e dos ímpios,
contra os líderes
da opressão e os bastardos do
idealismo,
contra todas as
falsas bandeiras,
ó meu audacioso
pastor!
Fere também,
magoa, estraçalha,
queima,
fere sem piedade
a hidra da minha
inércia
e o monstro de cem
cabeças do meu medo,
para que eu,
dinâmica e audaz,
comece a combater
também,
pela palavra mais
meiga e mais convincente,
tudo quanto não
tenha a verdade da beleza
e a beleza da
verdade;
a combater, sim, a
combater,
em nome da religião
do bem
e do arrogante
pendão da liberdade!
Maura de Sena
Pereira Lamotte
(do jornal República
— DOMINGO LITERÁRIO, 18 de dezembro de
1932)
Três Poemas em
Prosa
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Espera
Nada conheço, no
amor, que faça a gente padecer como a
ansiedade da espera.
Ah! si soubesses
quanto eu sofro quando te espero!
Faz poucos dias, ao
folhearmos uma revista elegante, sentados sob
o caramanchão todo florido de
ipomeias, os nossos olhos — os
meus quasi negros e os teus verdes como nunca --
pousaram numa
ilustração que te pareceu brejeira e a mim profunda: uma
encantadora mulherzinha toda de cor-de-rosa esperava o noivo a
olhar o relógio
com uma expressão de dívida e de ânsia.
Sorriste e viraste
a página, mas eu fiquei a pensar ainda muito
tempo na bela noivinha toda de
cor-de-rosa.
Ah! si soubesses
quanto eu sofro quando te espero! quando te
espero e já vais tardando!
A minha imaginação
louca e rica vai logo tecendo, como uma
aranha nervosa, a teia das minhas
derrotas: Imagino-te mentiroso
nas horas em que tu dizes que eu sou a ânfora
ideal da tua
esperança e da tua felicidade. Imagino-te perjuro e sonho com
traições tuas, com a morte do teu carinho, com o advento do teu
olvido.
Traço então
programas de alto orgulho e de tática feminina, para te
atrair novamente com a
meiguice luminosa dos meus olhos e
entregar-te depois a aliança num gesto
vingativo e mau.
Mas chegas, meu
infinito bem, e as tuas risadas e as tuas juras
sufocam, de tão poderosas, todos
os meus ressentimentos e todos
os meus devaneios despeitados. Tão bom quando te
chegas, mas
tão horrível quando eu te espero e já vais tardando, meu amor!
Repto da Minha
Vaidade
Neste mesmo
caminho, em que vamos os dois, apadrinhados pela
luz dourada desta manhã
catarinense, tu, a falares-me como um
irmão mais velho na tua vida áspera e
ilustre; eu, sorridente, no
meu grande chapéu de verão — neste mesmo
caminho, que
importa que já tivesses andado ao lado de outras namoradas!
Eu sei que o meu
riso jovem e a minha compreensiva atenção à
consciência dos teus sonhos e das
tuas lutas, abafam a lembrança
enternecida que porventura guardes de passadas
entrevistas.
Nesse mesmo
caminho, em que vamos os dois, felizes pelo nosso
encontro e pela afinidade
sutil das nossas inteligências, que nos
está a parecer agora tão clara e tão
verdadeira — neste mesmo
caminho, que importa que ainda venhas a andar ao
lado de outras
namoradas!
Eu sei que a minha
pequena figura de mulher será sempre maior
que o encanto e a beleza de
vindouras entrevistas.
Olhando e ouvindo
aquelas com quem passearás depois de mim,
uma tristeza funda se espalmará pela
tua alma e virá debruçar-se
nas janelas verdes dos teus olhos...
É que em nenhuma
encontrarás a inflexão humilde de minha voz —
tão soberana que te guia
para o triunfo! Tão soberana que te rouba
o coração.
Delírio
O Eu sei que tu
estás passando diante do muro verde-malva da
minha casa.
Mas não posso ir
hoje encontrar contigo. Não me deixam. Estou
doente!
Mas não posso ir
hoje encontrar contigo. Não me deixam. Estou
doente!
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
No meu leito,
debato-me febril. E, perto de mim, o médico
desvelado prescreve repouso e as
enfermeiras carinhosas do meu
lar cercam-me de solicitude e convencem-me de que
devo ingerir
um remédio muito amargo para ficar boa depressa.
Eu choro e quero
sentar-me na cama e quero erguer-e como um
neném que não compreendesse a lógica
de todas as palavras que
dizem para seu bem. Eu sei que tu estás passando
diante do muro
verde-malva da minha casa.
E rebelo-me outra
vez contra tanto cuidado. Tenho quase ódio de
toda esta gente que assim me está
contrariando. Decididamente
são todos meus inimigos e o que querem é o meu mal.
Pois não veem mesmo
que eu estaria logo curada se pusesse
depressa sobre mim urna grande capa, se
calçasse minhas
pequeninas sandálias e fosse correndo, a machucar as flores do
jardim, para chegar mais depressa até o muro verde-malva? Pois
não veem mesmo!
Mas qual! Não me
deixam. Vou, pois, vingar-me: vou fechar meus
olhos e me fingir de morta...
(Especial para Revista
do Globo) — sem data — Acervo ACL
Miragem
Vesti a minha alma
de esperança, pus ao ombro um cântaro
dourado, correndo, com aquela ansiedade
com que em pequena eu
perseguia as borboletas, até a fonte em que cantava a
água da
alegria.
Fui correndo,
correndo, como uma doida.
Meus cabelos
escuros sentiam as carícias do ar perfumado da
manhã e meus olhos estavam
luminosos de esperança.
Tinham-me falado na
fonte da alegria e eu tinha pressa de encher o
meu cântaro.
Abençoei a vida
quando cheguei ao meu destino e vi correr, entre
flores do mato, a água por que
eu suspirava.
Cheguei até a fonte
a minha boca vermelha e bela com sofreguidão.
Depois, com os olhos luminosos de
esperança e meus cabelos
escuros sentindo as carícias do ar perfumado da manhã,
enchi
alegremente o cântaro dourado.
Voltei, então, para
minha casa, querendo cantar...
Mas a minha boca só
disse amarguras e os meus olhos se encheram
de lágrimas. Meus pés pisados e
meus sonhos bonitos estavam
tintos de sangue...
Foi então que eu
compreendi que havia enchido o meu cântaro de
dor...
(Recorte de Fon-Fon,
sem maior identificação Acervo ACL)
Cântico dos
Cânticos
Um dia, na alvorada
da vida, eu ergui a fronte para o céu. Pássaros
cantadores roçavam a seda
escura dos meus cabelos. Eu estava
vestida de sonho e, com a fronte, alcei
também os braços e quis,
num assomo de egoísmo, possuir todas as felicidades.
Os dias depois se
foram soltando do tempo, azuis ou incolores,
rubros ou lilases.
Hoje, ainda antes
do meio-dia, minha fronte está também erguida
para o céu. Ela é como um grito
de vitória e os meus braços
erguidos também são um sorriso de gratidão e de
bem-
aventurança.
Entretanto eu
sonhara com a glória... E a minha glória é tão
pequenina que não chegaria para
fazer uma só folha de louro que
enfeitasse a minha cabeça.
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Entretanto, eu
sonhara com a ciência... E a ciência aqui está nestas
gotas míseras que eu
guardo na choncha das minhas mãos, sob o
desdém dos meus olhos e dos meus
lábios.
Entretanto eu
sonhara com o ouro... E o ouro vive a fugir do
alcance dos meus dedos, rolando
para as outras vidas, rindo de
mim ao longe.
Mas a minha fronte
levanta-se agradecida ante as bênçãos
douradas do sol e os meus braços estão
erguidos em ações de
graças rumando para lá das nuvens... É que eu sonhara
também
com o amor e ele veio ainda maior do que o reclamo do meu sonho
louco.
Ainda maior que toda a glória, que toda a ciência, que todo o
ouro do mundo. E
as outras felicidades da terra me parecem
mesquinhas diante da felicidade
desvairada do meu amor.
O meu amor
ultrapassa a altura atrevida das torres.
O meu amor me
protege como uma árvore de fronde recurvada e
densa.
O meu amor vive
badalando, badalando, badalando, como uma
imensa campânula que quisesse
eternizar os ritos da alegria.
O meu amor é tão
meu como um nenê que eu ninasse no meu
regaço dentro de um êxtase maternal.
O meu amor é tão
orgulhoso que eu me imagino abraçada ao ápice
de uma montanha desprezando lá de
cima todas as ambições e
todas as misérias da humanidade.
Muito maior do que
o amor visionado no sonho tagarela que eu
sonhei na alvorada da vida é este
amor quase incrível que há de
viver até mesmo quando baixar a noite e brilhar a
lua nova.
Por isso eu canto
antes do meio-dia.
Maura de Sena
Pereira Lamotte
(do jornal República
— DOMINGO LITERÁRIO, 3 DE ABRIL DE 1932
R. 3)
Fonte de Castália
A tarde estava
triste como o meu coração e meus olhos
enlanguesciam como cisnes doentes.
Mas, de repente, eu
vi, eu escutei, eu tactei: uma sugestão
encantada.
Toda a minha
adolescência se encolheu num espanto gostoso.
E perguntava se
aquela grande insinuação vinha das campânulas
coloridas que até aí olhara com
desamor. Das campânulas coloridas
ou das nuvens vermelhas. Do aroma da terra,
bárbaro, pagão,
verde, que não a houvera nunca impressionado. Do aroma da terra
ou da minha própria imortalidade. A verdade é que havia um
letreiro diante da
minha alma:
"Passa com a
fronte alteada de sonhos. Sonhos de beleza. E deles
torna vassalos tua
garganta, teus lábios, teus dedos. Finge não
compreender o egoísmo do mundo e a
ironia do céu. Mas sorri para
ti mesma, pequenina e altaneira. As poucas
doçuras com que o
destino te brindar e as violentas tempestades que ele fizer
cair
sobre essa alma simples de criança, que carregarás sempre —
nunca te
façam esquecer tua orgulhosa tarefa de entoar a melodia
mais humilde. Espalha a
ilusão. Mas, quando não fores deusa até o
ponto de enganares a ti e a todos com
a ebriez divina da alegria —
arranca ensinamentos à tua mágoa, para depois
ser menos
imperfeito o teu caminho.
A tarde estava
alegre como o meu coração e meus olhos dançavam
como libélulas.
................................
Foi quando comecei
a cantar.
(do DOMINGO
LITERÁRIO — República 14 de junho de 1931)
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Legenda da Minha
Alma
Vivem dentro de mim
duas psiques, que eu carreguei sempre:
ontem com inconsciência, hoje com uma
alegria triste, com um ódio
feliz.
São assim as minhas
duas psiques:
Uma é simples e
mística, é resignada e quieta; a outra tem revoltas
e ceticismos, tem jeitos
nervosos e alados.
Uma é feita de
doçuras evangélicas e aceita a dor como uma
realidade que purifica e que
ilumina; a outra é feita de bravezas
iconoclastas e não compreende o martírio
agigantado que me
coube.
Uma se mostra
quando os meus olhos ficam amortecidos e
tristonhos e lembram a mansidão
bíblica das ovelhas; a outra
aparece quando os meus olhos ganham vivacidade de
sol e
lembram destinos coroados de rosas.
São assim as minhas
duas psiques:
Uma esculpe nos
meus lábios o grande sorriso doloroso de quem
nobremente renuncia; a outra
desenha palavras gulosas na minha
boca.
Urna vive recolhida
em timidez, adora a sombra e o silêncio; a
outra, louca e insatisfeita, adora
os ambientes festivos e as
glorificações alucinadas.
Urna obriga as
minhas mãos a traçarem o supremo feitiço do
perdão; a outra as deseja com
realizações altaneiras de orgulho e
de vingança.
São assim as minhas
duas psiques:
Uma sugere
tristezas de campo-santo, a outra alegrias de criança.
Uma tem atitudes de
monja, a outra vaidades de rainha.
Uma quer ser
humilde como uma pastora, a outra poderosa como
uma deusa.
Mas escuta bem e
eterniza na tua lembrança esta verdade boa:
ambas amam e sonham e se completam
no paradoxo harmonioso
do meu ser.
Eu as ofereço a ti,
ao culto do teu coração, à glória da tua vida!
(República,
19 de julho de 1931 DOMINGO LITERÁRIO P. 3,
também Fon-Fon)
3. TEXTOS SOBRE
PAIS E FAMILIARES
Minhas Avós
Mal conheci minha
bisavó Maria Inês, a quem sempre chamei de
avó da Praia de Fora, pois era
naquele bairro florianopolitano que
tinha ela a sua mansão. Dirigida já então
pelas netas que criara,
primas-irmãs de minha mãe. Fora uma matriarca, cuja
autoridade
não se discutia, mas que não se manifestava, no entanto, senão por
meios sutis. Lembro suas batas brancas, suas feições eclesiásticas,
seus olhos
fechados pelas cataratas. E quando acariciava minha
mão e, nela segura, me
levava para os manjares de sua mesa.
Angélica, a avó que
tinha nome de flor, morreu aos vinte e poucos
anos. Meu pai jamais a esqueceu.
Além de a idolatrar, aquela morte
arrebatou-lhe a infância. Certo dia — andava
eu pelos treze anos —
o surpreendi me fixando imensamente comovido. Ao ver meu
rosto
interrogativo, disse logo: Eu estou achando minha filha muito
parecida
com a mãe do papai. (Era como a denominávamos).
Carrego, pois, Angélica, a avó
que tinha nome de flor.
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(de Centenário do
Professor José de Senna Pereira. Rio de Janeiro:
Editora Itambé, 1977, p. 5
Discurso de Maura
de Senna Pereira
Cumpre-me, antes de
tudo, agradecer ou — melhor —congratular-
me com a Escola Técnica de Comércio
Senna Pereira pela iniciativa
de comemorar o centenário de nascimento de seu
Patrono.
Agradecer ao brilhante corpo docente, destacando os gestos
inexcedíveis do diretor Rubens Victor da Silva, do padre Aquilino
dos Santos e
do vereador lçuriti Pereira da Silva. E louvar a
participação dos alunos: o
belíssimo discurso de Mário José Merizio
na noite comemorativa do centenário e
o convite com que me
honraram os diplomandos de 77 para paraninfar a solenidade
da
sua formatura. Sim, louvar a juventude, sem deixar de dizer que
ela, a
juventude, não é nenhum mérito: é, sim, um tesouro, que o
homem tem e perde.
Mas, enquanto o tem, ele é inestimável,
porque representa a vitalidade máxima
do ser humano e é a fase
das realizações, das conquistas, das empolgações, das
contestações, do desejo de rasgar caminhos e até de ascender às
estrelas. Só é,
entretanto, verdadeiramente luminosa e sadia
quando sabe também valorizar o
legado recebido das gerações
anteriores. É o que está demonstrando a turma dos
formandos da
Escola Técnica de Comércio Senna Pereira — no ano do
centenário
do seu Patrono. Como o convite a mim dirigido tem o objetivo de
homenageá-lo,
será ele o meu tema.
Direi, pois, que,
sem pensar em brilho literário, mas apenas
inflamada de verdade e amor, tal
como aconteceu ao traçar a
biografia de meu Pai, vou refrisar, jovens
afilhados, o que, naquela
pequena página que dediquei à grande vida do
professor José de
Senna Pereira, deixei apenas entrever: sua dolorosa
iniciação. Esta
começou ao perder sua mãe, que morreu muito moça e a quem ele
jamais esqueceu. Lembro que, certa vez, o vi fixar-me
demoradamente enquanto
seus olhos verde-escuros se enchiam de
lágrimas. Ao perceber a interrogação no
meu rosto quase aflito,
explicou com a voz embargada: "É que estou achando
minha filha
muito parecida com a mãe do papai". Eu escreveria mais tarde:
"Carrego, pois, Angélica, a avó, que tinha nome de flor".
Penso que o amor à
terra do nascimento, nossa terra, vinculava-se
de certa forma àquele imenso
amor filial. Apesar de sua infinita
modéstia, o renome que conquistou mais
tarde como a maior
autoridade no árido território das ciências contábeis —
repercutiu.
Ele recebeu de poderosas firmas tentadoras propostas para
trabalhar
em São Paulo. Porém jamais aceitou. É que não deixaria
nunca a terra
catarinense, como se a ela, sagrada como o útero
materno, estivesse preso por
um invisível cordão umbilical. O fato é
que a perda da jovem mãe idolatrada
arrebatou-lhe também as
alegrias da infância. Levado pelo pai para casa alheia,
embora de
parentes muito próximos, teve de pagar o pão e ó teto com o
trabalho
duro de cada dia. Era apenas uma criança — e trabalhava
e estudava, e estudava
e trabalhava. Entretanto, ao prestar exames
no Liceu de Artes e Ofícios, foi
aquele assombro: distinções com
louvor em todas as disciplinas. Houve, até, um
dos examinadores
que afirmou "não mais perguntar porque mais não sabia".
(Foram
testemunhas dessa vitória paterna que a narraram a seus filhos).
Então
por que não o mandaram fazer um curso superior, como os
mestres deslumbrados
propuseram? Ao que eu sei, deixaram a
opção com ele. E, segundo penso, levado
pela altivez sem, dúvida,
tomada esta no seu mais alto sentido, escolheu
continuar a serviço
dos parentes, pagando o que lhe parecia dever com juros
talmúdicos e passando do trabalho em casa para o trabalho no
escritório da
firma do tio, aí substituindo, aos 15 anos, a um velho
guarda-livros.
Assim como a
adversidade não o impediu de demonstrar seu
incomum talento, não o impediu
também de se impor ao longo da
vida pela insuperável integridade.
Apreciando a moral
humana, acho que temos de destacar o que é
mutável do que é intangível. No
primeiro caso, os conceitos diferem
no tempo e no espaço, aceitos pelas
comunidades como parte de
sua estrutura. E, quando no mesmo lugar mudam, são
quase
sempre resultantes da queda de teorias caducas e, portanto,
imperativos
do próprio progresso. Há, porém, um substrato eterno,
um padrão intocável, que,
em qualquer época e lugar, não poderá
ser infringido. Não sei como meu Pai, que
seguia as normas rígidas
do seu tempo, veria as mudanças que se têm operado
ultimamente.
Era conservador e austero, sim, mas também profundamente
humano.
Sei mesmo que, para certa moça amiga, que teve todas
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(de República,
12/11/26 p. 4)
SEM TÍTULO
Agora que
aguardamos a discussão, no Senado, do projeto que
concede o direito do voto à
mulher brasileira, nesta hora em que as
entrevistas às folhas do país se
sucedem e em que lemos opiniões
favoráveis ou tradicionais, que o encaram sob
uma forma séria e
outras sob um sarcasmo velado, muitas vezes imbecil, pois não
é
verdade? — não neguemos a significação e o valor que, para todos
os
espírito partidários do ingresso do elemento feminino no
ambiente político,
representa a publicidade da carta que o dr. Clovis
Bevilacqua escreveu ao dr.
Juvenal Lamartine.
O jurisconsulto
ilustre, consultado sobre o assunto, "que está na
ordem do dia", diz,
na sua epístola ao ilustre presidente do Rio
Grande do Norte, que, perante a
Constituição brasileira, não há
defesa para o raciocínio que procura profligar
a legítima aspiração
feminina em nossa Pátria: de eleger e de elegibilidade. Frisa ainda a
inteireza de cidadania, garantida à mulher, na carta constitucional,
e
que, na qualidade de cidadã, devera, pelo art. 70, ter o direito de
se alistar,
completa a maioridade.
Sempre surgem os
sofismas, não podemos negar, mas já tem sido
dito muitas vezes que, na vida
histórica dos povos, os grande ideais
e conquistas sofreram ápodos... e depois,
muito naturalmente,
entraram para o mundo das coisas consuetudinárias. Será
assim,
sem dúvida, com o concurso da mulher no largo âmbito intelectual
e com o
reconhecimento da sua idoneidade política, sobre a qual
acaba de expender o seu
voto o consagrado mestre, nessa valiosa
carta ao grande pioneiro do feminismo
político do Brasil, que falou
recentemente: "Não podemos mais adiar a hora
da participação
feminina em todas as questões de interesse coletivo".
SEM TÍTULO
Chegou, há dias, à
capital da República a primeira eleitora do Brasil,
senhorita Júlia Barbosa,
professora de matemática da Escola
Normal do Rio Grande do Norte. Logo que, na
terra da
extraordinária Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi sancionada a lei
que concedia à mulher o direito do voto, Juba Barbosa, que
pertence à elite
mental do seu pequeno e glorioso Estado, requereu
fosse o seu nome incluído no
alistamento eleitoral do município de
Natal. O despacho, que deferiu a petição,
firmado pelo dr. Xavier
Montenegro, juiz de direito da 1a. vara, é um estudo
precioso, com
argumentação irregrafável a favor da capacidade política da
mulher
brasileira em face da Constituição Republicana. Na sua, por todos
os
títulos, altíssima sentença, o dr. Xavier Montenegro (e basta-nos
comentar esse
único ponto) lembra a opinião dos constitucionalistas
Barbalho, Milton e Carlos
Maximiliano, que não admite seja
estendido à mulher o direito do sufrágio,
devido ao fato de, na
Assembleia Constituinte, não passarem as emendas que o
concediam. Lembra, porém, igualmente, o autorizado parecer do
muito ilustre dr.
Araújo Castro, que aponta como causa de tal
conclusão a tácita concessão de
prerrogativas políticas ao elemento
feminino, na carta constitucional. Tal
fato, que, seriamente, não
mais se pode negar, teve, há pouco, no Senado, em
palavra
memorável, uma confirmação sem rebuços e sem peias, de um
constituinte
que assistiu às discussões das aludidas emendas: o
senador Adolfo Gordo.
Falávamos, porém,
na chegada ao Rio da primeira eleitora
brasileira. Os elementos mais
representativos do feminismo carioca
fizeram-lhe honrosas homenagens, foi-lhe
oferecido um almoço,
saudando-a nessa ocasião a conhecida escritora e poeta
Ester
Ferreira Vianna, uma das mais bravas auxiliares de Bertha Luiz na
grande
obra da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.
(de República,
4/7/28)
SEM TÍTULO
Revista Feminina... Citemo-la como
um puro e clarividente veículo
das grandes aspirações da mulher brasileira, não
só das hodiernas,
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Porque nele se
exalta o trabalho silencioso e eloquente, porque é
simples e fecundo, daqueles
que trabalham a alma de borboleta da
infância com a religiosidade dos artistas,
dirigindo-a para as rotas
felizes do alfabeto e para os grandes sentimentos da
humanidade e
do patriotismo. Porque nele se exalta a casa que é o vosso segundo
lar e onde vos iniciais nas trabalhas à terra, nas adorações à luz, e
que vos
quer a todos criaturas que honrem a terra farta e generosa
sobre que caminhais
com um sonho na vossa fronte altaneira de
brasileiros.
Louvado seja, pois,
o grande dia da escola, da escola que vos
ensina todos os ritos do civismo e
todos os cânticos à Bandeira.
A esta que acaba de
ser hasteada, feita o alvo acarinhado dos
nossos olhares, repousando trêmula e
ofegante no azul do céu e
inspirando-nos lá da altura!
A esta em que
devemos ver o Brasil inteiro, abençoando-nos e
recebendo as bênçãos claras do
nosso amor ágil, nervoso, leal, puro
como nasceu, que tem na sua arca o ouro do
seu tesouro e tem no
seu cavalo a asa que Deus lhe deu.
(Discurso —
Florianópolis, A SEMANA, 31 de outubro de 1929, p. 1)
BRASIL FEMININO
Acaba de aparecer o
primeiro número de Brasil Feminino. Tal
acontecimento foi por certo a nota mais
espiritual do verão
brasileiro. Nascendo no Rio, a nova revista se destina a
todos os
lares de nossa magnífica pátria tropical.
Sua diretora é a
conhecida escritora e poetisa senhora Iveta
Ribeiro, um singular coração sempre
aberto em flor, a abraçar,
comovida, e a beijar, incansável, todas as nobres
causas e todas as
iniciativas que, por sua natureza, exigem os coeficientes da
coragem, da bondade e da inteligência.
Por certo, como
muito bem, sem pingos de vaidade e com a sua
gentil franqueza, dona lveta
assegura no pórtico da sua e nossa
revista, não cabe a ela a glória de ser a
primeira senhora brasileira
a fundar um magazine exclusivamente devotado aos
interesses
literários, artísticos, domésticos e sociais da mulher.
Sempre que se
exalta a obra de uma mulher que se acha à frente
de algum órgão jornalístico em
nosso imenso país, isto me parece
lembrar o nome da baiana Violante de Bivar,
findadora no século
passado do Jornal das Se horas, iniciadora por isso do
periodismo
feminino no Brasil e sobre a qual acaba de publicar um reparador e
formoso estudo bio-literário o ilustre Afonso Costa no seu livro
Poetas de
outro sexo.
Mas a primeira
revista dirigida por mulher sob o cuidado do sol
ardente do brasileiro foi
aquela que deve existir ainda hoje na
metrópole paulista e a que, depois de
fundá-la, a grande irmã do
acadêmico Cláudio de Sousa deu até a morte todo o
calor do seu
coração intrépido, cheio das diretrizes que lhe comunicou o grande
instante pós-guerra e cheio também do patriotismo atávico de suas
irmãs
bandeirantes. Falo na Revista Feminina.
Lembro depois Renascença
que, no mesmo glorioso S. Paulo, a
muito culta Maria Lacerda de Moura fundou há
dois lustros, com o
intuito largo de não só agasalhar a pena das Evas ilustres,
mas
também debaixo de uma bandeira de emancipação de classes e de
sexos,
realizar a confraternização espiritual americana. Vítima
talvez do seu arrojado
programa, Renascença teve uma vida de
poucos meses.
No Rio, "nesta
imensa cidade fútil", como escreve Mário Poppe, a
escritora Francisca de
Basto Cordeiro, que agora ocupa na
Academia Carioca de Letras a cadeira
patrocinada por Raul
Pompéia, fundou Única, já com um luzido corpo de
colaboradores e
ilustradores inteiramente feminino.
Morrera essa linda
revista como uma cigarra cansada do seu lindo
canto e eis que dona lveta
Ribeiro, sem medo das curvas e das
pedras do caminho, aparece agora, iluminada
e generosa, com
caravana das suas companheiras de sonho, a irradiar o seu
entusiasmo e a bravura simpática de sua iniciativa.
A ilustre senhora
visitou há pouco a Europa e animou-se com o
exemplo de idênticas realizações
naquelas plagas que são ainda o
feitiço para a gente de espírito em todo o
mundo.
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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Chegas ao quarto em
que eu sofro e vens consolar-me, irmãzinha.
Tua mão pequena, ativa e magra de
operária pousa em minha testa
ardente.
Que instante
milagroso de frescura!
Irmãzinha...
Deixa-me chamar-te assim, com esta fraternidade que
salta espontânea dos meus
lábios, pois, como as adoradas
irmãzinhas da minha carne, compreendeste a minha
ternura
humana.
E vens agora
oferecer-me a água pura do teu sorriso, o contato
fresco da tua mão e, pingando
ainda os diamantes líquidos da
fonte, este cacho agreste de flores novas. Que
cheiro bom de amor
a tua visita me trouxe!
Mas não te aflijas
com o meu novo martírio. Si a vida fosse mais
simples e mais justa, eu não
estaria aqui a suportá-lo, mas não te
aflijas. Sofrendo-o, esquecer-me-ei um
pouco da angústia máxima
que ensombreceu para sempre a minha alma de mulher.
Entretanto, irmãzinha, retém a minha pergunta na concha dos teus
ouvidos e
transmite-a aos nossos irmãos que encontrares na fábrica
e na rua: Eu
precisaria sofrer esta angústia máxima, bárbara e crua
e desapiedada, si a vida
fosse mais simples e mais justa!
(Recorte não
identificado — República? — Acervo da AC)
DIVÓRCIO E AMOR
Não é que eu queira
ser atrevida, mas a verdade é que não posso
acreditar que os antidivorcistas se
incomodem com a espantosa
quantidade de uniões ilegais que se verificam em
nossa metrópole
descontentes da não existência do instituto do divórcio.
O vínculo conjugal
permanece, só a morte opõe abaixo. Não
obstante essa permanência, o casal que
não é feliz, que
compreende que seu matrimônio foi um erro — nem sempre
se
conforma, em nossos dias, em permanecer unido. As estatísticas
estão aí
mostrando quão grande o número de processos de
desquite, e há ainda — e,
sem dúvida, estes constituem o maior
número — os que não buscam a
separação legal e os que não
conseguem pelo fato muito comum de um
dos cônjuges não
concordar com o desquite e, não sendo possível a obtenção do
amigável, a outra parte preferir não pleitear o litigioso e contentar-
se com a
simples separação. Porque a verdade é que, de qualquer
maneira, com desquite ou
sem ele, é sempre impossível o novo
matrimônio.
Mas o caso é que
este se processa assim mesmo, se não de direito,
pelo menos de fato, e como tal
vai sendo aos poucos reconhecido
— não pela lei, está claro, mas pela
família e pela sociedade. Já
não há mais necessidade, por exemplo, de ir a
mulher com seu
novo marido até Niterói ou até São Paulo e, depois, dizer aos
parentes e amigos que foram casar no Uruguai. É que começa a
bastar a pequena e
natural participação: "Sabe que me casei de
novo". E está muito certo
o verbo, muito bem empregado; não é
nenhum eufemismo, nenhuma apropriação indébita,
já que não se
trata de uma aventura, de uma prevaricação, mas de uma união
firmada pelos sentimentos em que se devem basear os
matrimônios. De outra
maneira, este se vê na contingência de
tomá-lo. E não há direito mais justo,
mais digno, mais sagrado do
que o que temos à felicidade e ao amor.
Entretanto, a maior
parte dos casais em apreço procurariam, se
lhes fosse possível, a solução
legal. A ausência do divórcio, vejam
bem os que são contrários à medida, não
representa, porém, um
obstáculo a que se unam e procriem. Hoje não existe mais
o
estigma da filha natural e os frutos das novas uniões são, muitas
vezes,
filhos do amor, do grande amor, como deveriam ser todos os
seres humanos.
(de Diário de
Notícias / Nós e o Mundo, Rio 5/5/1959)
5. TEXTOS DE CATARINENSISMO
Santa Catarina minha terra
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Estar no verdor dos anos, trazendo ainda a
franja da adolescência;
passear os primeiros sonhos pelas mesmas ruas estreitas
e líricas
que haviam conhecido os passos de Cruz e Sousa; publicar os
primeiros
escritos nas pequenas folhas da terra; não ter outro valor
senão o da
autenticidade e ser de chofre visitada pela notícia de
que tivera o nome
apresentado e unanimemente aceito na
Academia Catarinense de Letras — eis o que
me cumpre desde logo
evocar, pois tais fatos constituem a gênese desta tarde.
Enfatizo a
iniciativa da entidade barriga-verde; e o ter ela, que congregava os
valores estaduais, buscado pela primeira vez uma pessoa do
"segundo
sexo" — logrou na época enorme repercussão. Lembrarei,
pois, aquela noite
em que, de cabelos longos soltos e longo vestido
branco, pelo braço de Nereu
Ramos e com flores ilhoas na mão,
penetrei no salão repleto do Palácio da
Assembleia Legislativa. Lá
me aguardava o verbo de José Artur Boiteux (que fora
grande
amigo de meu pai), inflamado como o de um cavaleiro andante, e lá
tentei
o elogio do patrono que para mim escolheram, inteiramente
destoante da pequena
recipiendária: o grande Roberto Trompowsky,
marechal, "scholar",
matemático. Foi uma bela noite sem dúvida,
mas, se a estou evocando, é porque a
ela se limitou a minha vida
acadêmica.
Muito cedo me voltei para sonhos e rumos
que empolgaram minha
juventude ardente e, em breve, se esvaziava de élan
o título que
em verdade não cheguei a ostentar. Minhas ausências da terra e os
prolongados recessos do cenáculo contribuíram para que aquele
meu posto não
tivesse exercício. Mas, nesta espécie de catarse,
devo acrescentar que, sendo
tão gregária e colocando acima de
tudo no contexto da existência a criatura
humana, não está para
mim no mesmo plano de estima a forma associativa habitual
— com
estatutos, atas, compromissos. Eis por que, embora admirando a
pertinácia
que mantém esta casa, apesar dos gentis convites que
recebi de vários dos seus
dirigentes, embora aqui tenha amigos
diletos e esteja aqui o meu bem-amado,
permaneci afastada deste
preclaro enlaçamento de academias estaduais.
Tal comportamento iria alterar-se quando
Othon d'Eça, o alto
prosador-poeta de Homens e Algas, hoje desaparecido
e então
presidente e restaurador da Academia Catarinense de Letras, ao
insistir
para que fizesse eu parte da delegação — onde já se
encontravam ilustres
conterrâneos — junto à Federação das
Academias de Letras do Brasil, apelou para
o meu amor à nossa
terra catarinense. Oh, a terra na qual me integrava, em
versos dos
tempos jovens, a ponto de, num ato de consubstanciação, me
sentir
carregada da sua seiva e do seu pólen; de em suas carnes
(ou em meus chãos)
nascerem as grumixamas que eu devorava e
os brincos-de-princesa que pendiam das
minhas orelhas. E em cujo
peito joguei este dístico dos tempos maduros: abraçada
ao universo
/ tendo as raízes em ti. Amor
naturalmente centrado na Jurerê-
Mirim natal com seu halo de praias e de
conchas. Lá onde o sol
nasce nas águas da Lagoa da Conceição, bíblicas como as
de
Genesareth, parecendo um deus resplandecente no primeiro dia da
criação. E
onde, ao fim da jornada, nos é dado o luminoso salário
de ver os tesouros do
rei Salomão entornados nos nossos poentes e
estriados com aqueles fúlgidos
lilases que fui buscar para os meus
crepúsculos no País de Rosamor.
Não é, no entanto, em virtude apenas das
belezas daquela terra e
daquele céu que pulsa o meu amor a Santa Catarina.
Também de
atos, vozes, ritmos, gestos que irromperam de tantos de seus
filhos,
forjando a maior porção de sua glória. Também de símbolos,
eventos, nomes
destinados à perenidade. Alguns citarei: Virgílio
Várzea e Victor Meireles;
Cruz e Sousa e Luiz Delfino; Lacerda
Coutinho e Araújo Figueiredo; Jerônimo
Coelho, que nos deu o
primeiro jornal, e, na mesma importante faixa, os nomes
exponenciais de Gustavo Lacerda, fundador da Associação Brasileira
de Imprensa,
de Oscar Rosas, Lucas Bainha, José Johanny,
Martinho Calado, Joe Collaço,
Crispim Mira, Diniz Júnior, Rubens de
Arruda Ramos; os historiadores Almeida
Coelho, Paulo José Miguel
de Brito, Afonso de Taunay, general José Vieira da
Rosa e os
laboriosos e íntegros irmãos Boiteux; a sábia jurisprudência do
conselheiro Manoel da Silva Mafra; as vozes humildes de Marcelino
Antônio
Dutra, o poeta do brejo, e João Rosa Júnior, o poeta cego;
o verbo do
Arcipreste Paiva, de Edmundo da Luz Pinto e, entre
outras incomuns eloquências,
a de um rapaz genial chamado Helio
Régis, que morreu aos vinte anos; o
polígrafo Henrique Fontes,
para quem eu gostava de me firmar como a sempre
discípula; o
regionalista Tito Carvalho, que foi ao mesmo tempo um dos nossos
mais completos homens de imprensa; os eminentes estadistas,
entre os quais
Adolfo Konder, que trouxe um sopro renovador ao
assumir o governo do Estado,
prestigiando os valores que surgiam
e erguendo a bandeira do catarinensismo;
Lauro Muller, que se
projetou no cenário político nacional durante as primeiras
décadas
republicanas, e Nereu Ramos, que iniciou, em 1930, a ascensão que
o levaria, em hora histórica do Brasil, à presidência da República;
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
todos os que
lutaram e sofreram pela justiça e pela liberdade e —
ai! — o sangue de duzentos
fuzilados pingando na ilha de
Anhatomirim.
Lista-síntese que poderia bastar pela força
dos nomes e dos
significados. Contudo, não posso esquecer os não catarinenses
que
o foram entranhadamente, a todos reverenciando nos que Santa
Catarina ainda
pranteia — o arcebispo Joaquim Domingues de
Oliveira, que durante meio século
escreveu e pregou em língua
clássica, e o governador Jorge Lacerda, que teve
nos atos e nas
palavras a marca dos tempos novos — e Horácio Nunes Pires e José
Brazilício de Souza, que compuseram o Hino do Estado, cálido e
humanista,
exprimindo os melhores arroubos da alma do nosso
povo em estrofes como esta:
Não mais diferenças de sangues e
raças
Não mais regalias sem termo, fatais.
A força está toda do povo nas
massas.
Irmãos somos todos e todos iguais!
Impossível tampouco esquecer os vultos
femininos, tanto mais que,
ao recordá-los, surge logo a maior figura da
história barriga-verde,
Anita Garibaldi, que há pouco voltou à Laguna do seu
berço no
bronze de Antônio Caringi e lá está bela e jovem como era há mais
de
cem anos, quando partiu para a luta e para o amor. Surge, em
seguida, Amélia
Bainha, a heroína do mar, enquanto no território da
poesia se derramam os
versos de Delminda Silveira, que foi
também uma espécie de heroína na aquisição
de sua cultura, no
dedilhar de sua lira. Delminda, a dos Lises e Martírios
e Passos
Dolorosos, a quem conheci nos últimos anos de sua vida e que
teve
para mim ternuras de fada. Sua voz e a da misteriosa Semíramis
com seus
cantos assíduos nas páginas ilustres do Sul-Americano.
Quem era ela? Foi
só quando a fonte silenciou que tiveram todos a
resposta. Era Maria Carolina
Corcoroca de Souza, esposa daquele
mesmo José Brazilício, o dos muitos
talentos, que musicou nosso
vibrante "hino de estrelas e flores" e
foi mestre da mais adorável e
adorada Scheherazade, minha mãe, e daquele que
seria o
exemplaríssimo professor Senna Pereira, meu pai.
Chego, assim, aos vivos de várias gerações
— desde a de meus
fulgurantes mestres até à novíssima. Chego aos valores que lá
pontificam e aos tantos que transpuseram as fronteiras e estão
brilhando na
literatura, e nas artes nacionais, no mundo jurídico, na
esfera das pesquisas,
no púlpito e na cátedra ou, em setores vários,
participando das lutas e das
esperanças do Brasil.
Certo é que a estas facetas devo
restringir-me, não me cabendo,
aqui, ressaltar as mãos que impulsionam o
estadual progresso — no
fundo das minas, no alto das serras, em planuras e
vales, em
glebas e mares. Mas como excluir aquelas cujo labor desfolha
poesia,
borbulha folclore? Comparecem, por isso, as que modelam
os lindos e rústicos
objetos de palha e de cerâmica, vendo-se, entre
os últimos, os que
reconstituem, na magia do barro trabalhado, as
figuras todas do nosso
boi-de-mamão, um dos autos populares
mais ricos e movimentados de todo o País.
E as prodigiosas mãos
femininas que, de fios e de bilros, fazem surgir o claro
poema que
as avós açorianas ensinaram a tecer. Beleza de margaridas,
estrelas,
favos, trepadeiras, de múltiplos desenhos, de entrelaçados
pontos — naquelas
alvas peças, naquele tesouro branco. Que elas
criam — cada vez mais pobres e
cantando as trovas mais ternas do
nosso litoral. Eis uma delas:
Inveja só posso ter
Da luz clara do luar
Que faz rendas tão bonitas
Com a branca espuma do mar.
Neste apenas esguio recorte, eu quero, como
as rendeiras, exaltar
o grandioso e saúdo o mural que em breve começaremos a
apreciar
no primeiro volume da Enciclopédia Catarinense, trabalho
gigantesco que está realizando o almirante Carlos da Silveira
Carneiro.
Beirando a pré-história e o porvir, abarcará ele Santa
Catarina na sua
totalidade.
Santa Catarina, minha terra, em que estou
presa como uma planta
e à qual devo a honra desta hora. Não importa que, depois
de
vários anos meu nome aqui figurar, só hoje eu viesse tomar posse.
O que
importa é vermos a Academia Catarinense, presidida pelo
admirável ensaísta
Nereu Corrêa, entrar numa fase rasgadamente
moderna — promovendo concursos,
realizando currículos,
acendendo debates, publicando cadernos. O que importa é
sabermos que tal espírito renovador coincide com os propósitos do
nosso fidalgo
e ilustre presidente Cumplido Sant'Anna. O que
importa é estar sendo tão eu
mesma em ambiente acadêmico.
Tempo de agradecer, agora, à Federação das
Academias de Letras
do Brasil a oração que vai proferir o acadêmico Pizarro
Drummond.
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
metralha,
aparecia firme, calma e altiva como uma estátua de Palas
e Deus, que estendia
uma sua mão sobre mim, a protegia ao
mesmo tempo com a sombra dessa mão."
A fuga
Após a derrota, a retirada. A coluna a que
pertencia Garibaldi
empreende a áspera subida da serra com o propósito de
alcançar
Lajes, que caíra de novo em poder dos republicanos. Dois combates
se
travam com as forças legais. No de Santa Vitória, a 14 de
dezembro,
ganharam os revolucionários. Dele Anita não participou
como combatente. Foi
enfermeira, anjo, bálsamo, inspiração,
cuidando dos feridos, animando em seus
rudes combates aqueles
bravios centauros serranos. O segundo ocorreu no Campo
das
Forquilhas, já a 12 de janeiro de 1840, e nele os rebeldes foram
derrotados. Anita comandava uma guarda conduzindo munições,
quando é cercada de
surpresa por um esquadrão inimigo. Não se
rende, porém, nem tampouco foge à
luta. Uma bala atravessa-lhe o
chapéu e leva um cacho dos seus belos cabelos.
Outra bala abate-
lhe o cavalo. E só aí ela cai prisioneira. Mas nunca subiu tão
alto.
Corria, no acampamento, a notícia de que
Garibaldi morrera em
combate. Então, a altiva prisioneira pede permissão para ir ao
campo de batalha, juncado de cadáveres. Era noite e ei-la com uma
tocha na
mão, espiando um a um o rosto dos mortos. Devia ter a
face transtornada,
parecer uma figura de tragédia grega, lembrar
Antígone à procura do cadáver do
irmão. E, após a busca macabra,
uma certeza: seu guerreiro louro havia
escapado. E um
pensamento: ir-lhe ao encontro.
Anita empreendeu então sua fuga epopeica,
forjando um dos
momentos mais altos do heroísmo humano. Depois de rastejar, de
colar-se como uma sombra ao tronco dos pinheiros, descobre uma
casa onde é
acolhida e onde consegue um cavalo para sua marcha
de vinte léguas, que tal foi
a distância percorrida de Curitibanos a
Lajes, entre perigos e tempestades, com
o primeiro filho do amor
lhe palpitando nas entranhas, pela extraordinária
valquíria
catarinense.
Mulher e presença
Tendo tido sempre o encanto supremo da
juventude, pois que
morreu aos trinta anos incompletos, teve também Anita os
encantos todos da feminilidade: foi mulher ardentemente
apaixonada, verdadeira
mãe, dona de grandes olhos luminosos, de
um talhe delicado e harmonioso, de uma
graça agreste de bonina e
de negras madeixas que, desatando-se no ardor dos
combates,
fascinavam o próprio inimigo. Tudo isso, além de completas prendas
domésticas. Quanto a estas, em companhia de Garibaldi só lhe foi
dado
manifestar totalmente nos tempos de Montevidéu, no lar da
Rua do Portão, onde
criou seus meninos, cozinhou e varreu e onde,
para ajudar a manter uma casa em
que tantas vezes faltou lume —
fez rendas e crivos, claros poemas de fios de
luar, magos e brancos
como os sabem tecer as mãos de fada das rendeiras
catarinenses.
É, portanto, um ser maravilhosamente
feminino que vemos
manifestar uma coragem de que só é capaz o mais bravo dos
homens e, ao mesmo tempo, vemos a coragem de Anita irromper
do amor e voltar-se
contra a tirania nos dois hemisférios, tornando-
se fonte perene de inspiração.
Por isso não posso imaginar a heroína
parada no tempo em toda a
sua glória, mas estendendo pelas idades a sua
poderosa presença,
sempre ao lado, sempre companheira de todo aquele que, em
qualquer lugar e em qualquer época, luta e sofre pela justiça, pelo
humanismo e
pela liberdade.
(Uma das várias palestras
que a autora
proferiu no
Centro Catarinense. "Anita:
primeiros passos de sua
glória" foi repetida, a
pedido, na Associação
Brasileira de Relações
Humanas).
(de Verbo Solto)
6. OUTROS TEXTOS
Símbolos perfeitos
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Ao formoso coração de minha Mãe
É o segundo domingo do mês de maio —
consagrado à veneração
das Mães. Nasceu essa resolução tão sábia e tão justa da
forte
saudade de uma extremosa filha, quando lhe morreu a Mãe
querida.
Miss Anna Jarvys perdera o afago precioso,
o olhar doce, o conselho
sábio, a ternura valiosa — todas as atrações,
enfim, que
circundavam o coração e a fronte de sua boa Mãe e que a
prendiam,
que a enlaçavam, suavemente, luminosamente,
perfumando-lhe a vida, dourando-lhe
as esperanças, embalando-lhe
os sonhos.
Seu coração padecia a agridoce emoção da
saudade... saudade da
convivência amiga deste ente amoroso e bom, que "Sofre
do mal se
o mal nos transfigura, Mas é luz quando feliz vivemos"
Suas amigas, sensibilizadas ante a
sinceridade da sua dor e a
pureza melancólica da sua saudade, idealizaram
homenagear a
memória perene de sua extremosa Mãe.
Mas, aquela pobre filha, ferida pelo acúleo
impiedoso da dor, sentiu
crescer e espraiar-se no seu peito a admiração por
todas as Mães e,
num assomo de ternura, de respeito, de amor por todas elas,
exprimiu o anelo de as ver partilhar também da justa homenagem
que à sua
extremosa Progenitora ia ser tributada.
Então foi consagrado o segundo domingo do
mês de maio à
veneração das Mães — veneração que é como que uma coroa
espiritual com que, nesse dia, se lhes aureolam as frontes, as quais
a
maternidade superioriza e santifica, nimbando-as de fulgor
maravilhoso.
Flores brancas e rubras foram escolhidas
para símbolos...
E nesse domingo de maio, trazem ao peito
uma flor de pétalas
tristes, de brancura simbólica, aquelas cujas mães já
partiram para
o Além, deixando-lhes, inapagável, a lembrança da sua solicitude,
do seu carinho, do seu amor...
Usam, no peito, uma expressiva e álacre
flor vermelha os que ainda
possuem o regaço agasalhador de suas Mães muito
amadas e o
amparo firme do grande coração materno, que os ilumina e os
orienta
através da vida, cingindo-os com o ambiente puro do seu
amor santificado.
Assim, no dia das Mães, a ventura de uns e
a saudade de outros se
concretizam e se estampam nos matizes das flores
simbólicas...
A flor branca, nesse dia, guarda uma força
latente, recôndita,
misteriosa, que comove o secreto íntimo da alma... é bem a
revelação fiel de um coração maternal que não mais pulsa, de um
coração
sepultado que deixou na terra a sombra triste da saudade!
E todos nós que podemos ostentar, no peito,
flores vermelhas, pois
que ainda temos, ao nosso lado, com os meigos olhos
consoladores,
com o coração e a alma ressoantes de carícias — as nossas
boas
Mães — em cujo seio dormem os segredos miríficos de um amor
sublime
e brilham os vislumbres definidos dos sacrifícios inauditos,
— tributemos
sempre ao sagrado ente que tanto amor nos vota a
justa veneração de um desmedido
afeto porque
"Conosco sofre e se gozamos , goza,
Com mágoa chora quando nós choramos,
Sorri contente quando nós sorrimos".
(de O Atalaia
— Mensário da
Mocidade da
Igreja
Presbiteriana
de
Florianópolis e
órgão da
Classe
Organizada
"Atalaia”, Ano
I, n. 3, maio
de 1924)
Salve!
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Aos "Atalaias"
O dia 14 de julho que, para o mundo
civilizado, é o dia em que se
comemora e se festeja a Liberdade dos Povos, para
vós, em cada
ano que passa, é o mensageiro de um júbilo íntimo causado por
mais
uma luta que se vence, por mais um triunfo que se alcança,
por mais uma vitória
que se conquista.
E neste 14 de julho pela primeira vez,
experimentais o grato sabor
da vitória...
Nele comemorais o primeiro aniversário da
feliz organização da
vossa Classe e realizais, por isso, uma festa coletiva, em
regozijo a
esta festiva data realizando, também nos recolhos do coração, uma
festa individual, que é o símbolo da vossa unção pessoal e o
símbolo da vossa
gratidão a Deus!
A seara, em que labutais tão valorosamente,
é ampla e grande,
mas também amplos e grandes são os vossos horizontes, são os
vossos desejos, são os vossos ideais.
Continuamente se ventilam nobres planos e
alevantadas ideias no
simpático arraial da vossa Classe e certo vereis, no
efetivar-se a
pouco e pouco das aspirações que vos enchem de vida e
entusiasmo,
o sinal da assistência amparadora de Cristo e do
soerguimento espiritual da
Pátria, pois, por Cristo e pela Pátria, é
que vos bateis com denodo e firmeza,
é que lutais com ânimo e
confiança, visando demolir a torre dos vícios, dos
erros e dos
preconceitos, com a emancipação da mente pela pureza do
Cristianismo e com o despertamento das consciências e das almas
pelas verdades
claras e simples do evangelho.
Congratula-se fraternalmente o meu coração
com o vosso primeiro
ano de trabalho continuado e de gloriosa vida organizada e
a minha
modesta e obscura pena, para o vosso 14 de julho, traça, em festas
e
aplausos, um sincero e vibrante — Salve!
(de O Atalaia, julho 1924)
Divino Crucificado
Aí estás, nessa grande e injustíssima cruz,
sofrendo o castigo que
te deram pelo crime do teu amor.
Puseram-te aí, de braços abertos sobre os
braços trevosos do
madeiro, com uma irônica e pérfida coroa de espinhos sobre a
tua
santa cabeça cacheada, com cinco chagas ressumando o mais
inocente e o mais
generosos dos sangues — puseram-te aí para
castigarem o crime do teu
amor.
Mas que estranho crime esse que é assim
punido com a pena mais
tirânica da época?
O teu crime, ó Profeta de Nazaré, foi o de
teres amado
extraordinariamente os homens.
Sim! Foste médico: curaste cegos e
paralíticos e leprosos com a só
poderosa magia da tua sobrenatural
misericórdia.
Sim! Foste pastor: contaste as verdades
mais santas por meio das
mais formosas parábolas.
Sim! Foste mestre: ensinaste a bela utopia
da fraternidade humana,
ensinaste o perdão, a humildade, a doçura.
Sim! Foste milagre: andaste por sobre o mar
e multiplicaste os pães
e transformaste a água em vinho.
Sim! Foste bálsamo: e derramaste nos
corações o teu formidável
sermão da montanha.
Sim! Foste bênção: e acarinhaste as
criancinhas com palavras que
deveriam ser esculpidas na parede de todas as
escolas.
Sim! Foste tolerância suave: e bebeste do
cântaro estrangeiro da
mulher Samaritana.
Sim! Foste pão e foste luz e foste renúncia
e tiveste o gracioso
nimbo de todas as virtudes e ofereceste a água da vida e a
vida
eterna e, por isso, os homens apedrejaram-te e condenaram-te.
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Aí estás, grande e venerado mártir,
sofrendo pelo divino pecado de
muito teres amado os pecadores.
Mas tu és hoje, no dia em que os homens
relembram o sagrado dia
da tua paixão, tu és hoje o mesmo Jesus de há dois mil
anos: tu és
o sumo Amor!
Vem, pois, ó divino crucificado, purificar
com o teu perdão e
proteger com a tua luz o homem de hoje que é o homem de
sempre: escravo das intemperanças e dos ódios, fraco e
mesquinho, dando-te por
certo a renovação da dor, que te
proporcionaram os teus irmãos de outrora.
Vem, pois, abençoá-lo com o teu doce olhar
e permite que todos
vejamos nessa desumana cruz, passem quantos séculos
passarem,
entre o digladiar das religiões e dos egoísmos, o símbolo do teu
augusto
martírio. Todos vejamos em ti, Senhor, com a cabeça a
dominar profanas
exegeses, aquele que mais nos amou, aquele que
foi o maior dos semeadores do
bem, aquele que trouxe na boca e
no coração o mais veemente sonho de que a
humanidade renasça
em fé e amor para a glória de Deus!
(de recorte de jornal não identificado,
provavelmente da década de
1920 — Acervo da ACL)
Sem título
Neste violento choque de interesses, nesta
infindável marcha de
ambições e indefectível manancial de fundas amarguras, que
é a
Vida na sua nudez monstruosa e vetusta — para aquele que sofre a
tortura amorosa de pensar e possui o sonho como um presente
irônico ou ingênuo
do céu, deve ser mil vezes bendito o encontro de
uma inteligência irmã, que
beije a sua inteligência em evolução, na
volúpia admirável da fraternidade,
expressando pela mesma
hermenêutica as leis perpétuas do destino humano e
cantando pelo
mesmo ideal a graça loura que vive exilada no seio das almas...
Mil vezes bendito! Porque recompensará,
como um oásis encantado
de estranhos frutos, os seus passos desamparados e
heroicos, que
pisaram, sozinhos, um solo misericordioso...
(República, 9 de outubro de 1928
— p. 1)
O medo da saudade
Acredita, sim, Ruth, que ontem pelas
ave-marias, eu queimava o
belo álbum da minha meninice. Todo aquele volumoso
tesouro de
rimas e de lembranças, com a capa enfeitada pelo meu nome em
caracteres de ouro e as páginas cor-de-creme cheias de letras
amigas e votivas,
encabeçadas de cromos e de silhuetas,
todo aquele vivo e quase humano evangelho
de saudades eu fiz
morrer, ontem à tarde, por entre a beleza perversa das
línguas
vermelhas do fogo Vi arderem, loucas e submissas, todas aquelas
folhas
irmãs, que eu tantas vezes beijei e que estrelavam as
maiores amizades e os
melhores momentos da minha alma e da
minha vida de menina.
Vejo teus grandes olhos me recriminarem.
Oh! Eu sinto que foi
mesmo um sacrilégio que cometi, queimando aquelas velhas
páginas de sonho e de ventura, apressadamente, alucinadamente,
— para
fugir à saudade à violenta saudade que vinha repousar
sempre no meu coração,
todas as vezes que eu folheava, com os
olhos trêmulos de lágrimas, o meu álbum
verde de menina.
E, ontem, quando a tarde caía, eu o tinha,
aberto, sobre os meus
joelhos. A nossa salinha estava cheia de perfume forte
dos jasmins-
do-cabo que dormiam, serenos e brancos, na jardineira. Ah! o
perfume já é um estranho, despertamento de saudade, só
comparável, nesse
destino, à música... E eu folheava, triste, o meu
estremecido missal de
recordações... Numa página, o retrato de
uma amiguinha morta... Noutra, o
bonito desenho que um dos
nossos irmãos traçara, cercado pelo aplauso trocista
de nós duas
— lembras-te? — num serão de primavera... Ainda que
outra, a
poesia que eu própria copiara numa tarde de Natal, quando a nossa
casa, cheia de ruído, festejava o dia extraordinário do "bebê divino
de
Nazaré"... Ah! que recordação viva, minha Ruth. Cheguei a ouvir
o barulho
festivo que enchia o nosso lar, o riso feliz das crianças,
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
alegres com os
presentes que o Papai Noel, o bom velhinho do
Natal, lhes pusera pela manhã nos
sapatinhos, a voz saudosa de
nosso pai conversando com os pequenos, e a voz
meiga de mamãe,
chamando-nos a todos para nos dar bombons... E fui folheando, e
fui revendo, cada vez mais triste... Adiante, encontrei as tuas letras
indecisas e já simpáticas, com uma dedicatória em que me deixavas
beijos e um
cromo representando um açafate de rosas... Nossos
irmãos e primos, nossos
vizinhos e colegas, todos aqueles que meu
coração elegera para o afeto, ali
deixaram uma lembrança
comovida...
E eu, minha Ruth, não pude mais... As
lágrimas que pingavam
abundantes dos meus olhos eram bem a canção líquida da
saudade
que aquelas páginas despertavam, porque me vinham falar de dias
despreocupados, de rostos desaparecidos, de corações que
cresceram, de almas
que mudaram... Fui então sacrílega! Queimei,
chorando, inteiramente, aquele
álbum garoto e querido do meu
passado — para fugir à saudade, com medo da
saudade, dessa
espiritual visitante, toda embrulhada numa doçura que
flagela....
(de República, 23/10/1929)
Algumas atitudes da dor (Estudo)
— Quando eu sofro, abraço, cantando, a
minha cruz. Sofro com a
resignação bíblica dos santos e dos heróis. Sofro,
amesquinhado,
crente, humilde, com o coração cheio do pensamento evangélico de
que Deus quer que eu sofra para meu bem e minha perfeição. Sofro
com a garganta
afogada em ações de graças. Sofro com as mãos
postas, bendizendo a sabedoria do
céu. E a minha alma tem quasi a
unção dos tabernáculos. E o meu coração é bem
um órgão místico e
regozijante porque a minha dor submissa é a minha glória e a
minha vitória está na coroa de espinhos do meu martírio apostólico.
E a
religiosidade da minha atitude vai balsamizando as minhas
feridas encarnadas e
a minha dor já é alegria e paz.
— Quando eu sofro, a minha boca logo se
escancara para o grito
negro da maldição. E descreio e nego porque a minha
vingança
mísera é descrer e negar; Como um índio ferido em pleno tórax
bronzeado e desnudo, eu sinto nos meus olhos a dança da cólera
selvagem e o
tacape rude da minha religião se apruma logo para
ferir a fronte invisível ou
humana que criou a minha agonia. E no
meu blasfemo clamor pareço encarnar todos
os clamores abafados
de infinitas gerações de sofredores. A alegria que me
cerca fica
parecendo aos meus olhos uma ronda satânica que se apraz em
festejar
a inferioridade da minha desgraça e a dor que me cerca me
parece pequenina,
quasi imperceptível, ante as arquitetônicas
dimensões do que eu padeço, seja na
carne, na inteligência ou no
coração.
— Quando eu sofro, conto a todos, chorando,
a minha dor. Rogo a
misericórdia dos homens para a minha tristeza ou a minha
miséria
e não creio que, só raramente, ela seja sincera e desinteressada.
Rogo
para a minha angústia a atenção das criaturas e não creio
que, num olhar de
amor ao próximo, quasi sempre as criaturas
mascarem a ávida volúpia de ver o
próximo sofrer. E soluço, e
soluço... Corro até o gozo dos felizes, rojo-me aos
seus pés,
imploro as migalhas da sua compaixão. Não tenho pejo de inspirar
piedade. Não tenho vergonha de exibir as minhas chagas
sangrantes. E soluço, e
soluço...
— Quando eu sofro, finjo, diante dos homens
que me espiam e das
estrelas que me observam, finjo a calma dos fortes. Sofro
com
orgulho. Nem a passividade dos crentes, nem a blasfêmia dos
rebeldes, nem o
pranto dos simples. Sofro com orgulho. Escondo
avaramente as minhas dores
menores. E, quando elas vêm,
grandes e doídas como os vendavais, eu as
enfrento, bravo e
estoico, numa sobranceria quasi desafiante. Quando a maldade
humana. Ilimitada como os recursos da minha mentira orgulhosa,
se faz a espiã
dos meus sofrimentos, a áspera e terrível espiã
falsamente vestida de bondade,
ah! encontra-me, quieto, quieto,
sem lágrimas e sem gritos, e a minha calma
desconcerta-a e
afugenta-a. E, para os que me acreditavam um pobre derrotado,
eu
fico parecendo nada menos que um elegante sofredor ou um mortal
venturosamente insensível às desventuras que o visitam...
(de recorte de jornal não identificado
— Acervo da ACL)
Tarde de Natal
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
A fixar, romântica, o ocaso de púrpura e de
ouro, Albemah espera...
Debruçada sobre o peitoril da janela ampla, enrola a
alma de
amorosa num longo soluço em que borboleteiam esperanças: nos
seios
trêmulos agita-se dolorosa ansiedade; relâmpagos de
angústia correm-lhe nos
olhos de negro esquisito, que os sonhos
ígneos agitam: é a noiva que crê na
palavra do Amor... A tarde de
Natal, estranhamente formosa, desmaia enrolada
numa clâmide
egrégia de ouro e de púrpura...
Albemah desce ao jardim, porque foi nele,
no meio da sua orgia de
cores e de perfumes, que Aurto lhe dissera adeus e a
tristeza alegre
destas palavras:
— Ama-me, Querida. Na tarde iluminada do
Natal, voltarei. Trarei
comigo glória e carinho e encontrarei em ti carinho e
beleza.
Voltarei na iluminada tarde de Natal. As nossas mocidades se
reunirão
para sempre e o nosso amor riscando de emoção as
nossas existências, de
sinceridade as nossas buscas, de luz as
nossas almas, ultrapassará os dias, os
meses, os anos; será a
vaidade das nossas vidas morenas e o orgulho dos nossos
cabelos
brancos, quando chegarmos ao nosso aquecido inverno com o
coração a
cantar... Ouves, Querida? Sê inteiramente minha,
gloriosamente minha: no teu
pensamento, no teu sorriso, na tua
saudade da minha voz, na comunhão com a
minha arte! Eu te levo
inteira, dentro em o hostiário egoístico e pagão das
minhas
esperanças!
Fremindo, transfigurada, ela ouvira tudo ao
seu poeta-deus, que
muitas vezes lhe abanou o lenço branco, até que desapareceu
de
todo na curva da estrada beira de sol, montado num cavalo
magnífico...
Desde esse instante de despedida e de
promessas, a vida de
Albemah foi a vida sacrílega da religiosa do amor:
enquanto suas
irmãs, de joelhos, pediam graças ao céu, ela, divinizada,
murmurava a oração divina — as rimas excelsas que o seu artista
plasticizara, cantando a alegria e o universo...
No entanto, o afeto que a vivificava, de
estatura ciclópica na
lealdade e no vigor, resultara do encontro com Aurto na
festa
deliciosa em que o viu pela primeira vez, realizada num lar amigo,
próximo do bairro solitário em que ficava a sua casa e sorriam as
suas rosas e
fora marcado por bem poucas entrevistas...
Garimpeiro de beijos e de ritmos, num
relance, Aurto estudara
aquela esquisita psicologia de mulher e na vida de
Albemah, em
que o sonho boiava como um nenúfar de luz, acendra a primeira
chama
de amor, grande e pura. As palavras ardentes do adeus
encheram de lirismos
fortes a alma carinhosa da moça e, de dia e
de noite, mais Albemah se encadeava
no culto do seu poeta e ao
seu senhor, de beleza selvagem, gloriosa.
Chegou o Natal com o seu cortejo de
festins.
Na casa de Albemah, o mulherio esfalfa-se
em revestir de adornos
a árvore-símbolo, no preparo dos manjares, na compra dos
frutos e
dos presente. O velho pai, rejuvenescido com a algazarra juvenil
que
lhe fazem em torno, revê a companheira morta nos gestos
vivos e na voz e no
riso de cristal das filhas... Só Albemah procura
alhear-se da festa de Jesus e
festeja o Amor que lhe vem ao
encontro...
A tarde chega, iluminada... Albemah veste o
vestido maravilhoso
em que as suas mãos trabalharam dias a fio e, a arfar,
sorrindo com
lágrimas nos olhos, chega à janela florida de amores perfeitos,
verga o busto esplêndido e a sua cabeça bonita de linhas gregas
tem cintilações
de um lume imaterial. E espera, e espera... A tarde
desmaia, estranhamente
formosa, enrolada numa clâmide egrégia
de ouro e de púrpura e o poeta amado não
vem... Desce ao jardim,
ofegante, como para sentir a ilusão de que está mais
perto dele.
Debruça-se sobre o muro verde e espia. A estrada mostra-se
arrepiantemente nua, e melancolizam-na os últimos revérberos do
poente
extraordinário... Ninguém... Apoia então ambas as mãos à
radiosa fronte,
semicerra os olhos úmidos de pranto e longe de ser
açoitada pela desconfiança e
pelo ciúme, palpa visões trágicas: ora
imagina Aurto, mais bravo e mais belo
que nunca, dentro de um
cárcere, levado pela revolta sagrada das suas ideias;
ora o imagina
ao lado do leito materno, recebendo da anciã moribunda o último
beijo e o último conselho...
Mas o tropel vigoroso de dois corcéis, em
que vinha um par
elegante e moço, arrancou-a da sua torturada abstração. E, na
tarde iluminada do Natal, sem ser olhada uma vez sequer, Albemah
pôde ainda
reconhecer Aurto, que envolvia em olhares amorosos a
amazona, uma linda
mulher...
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
(República, 25 de dezembro de 1928,
p. 1)
Dia de Finados
Urna sagrada, que me lembras um berço e
guardas o grande sono
dos meus mortos; urna sagrada, deixa que eu te enfeite
com este
punhado de flores tristes, deixa que eu te faça bonita neste dia do
rito da saudade...
És tão pequena e, no entanto, dentro de ti,
dormem aconchegados
quatro dos meus máximos queridos:
Tu, companheira loura da minha infância,
princesinha mártir, que
sofreste heroica nos teus dez anos de vida, sempre a
sorrir, como
um anjo que desse aos homens a lição da renúncia silenciosa, da
dor quieta, do sacrifício tranquilo!
Vocês dois, que tantas vezes embalei num
grande desvelo de irmã
mais velha e com quem eu brincava, carinhosa e faceira,
ó meus
bonequinhos humanos!
Meu Pai, tu que a morte veio buscar numa
noite bárbara de
fevereiro, quando eu era menina-moça, mais criança do que
mulher, e vivia as mais belas horas de esperança ingênua e de
alegria garota!
Meu Pai, tu cujos lábios sinceros falaram para que
eu acreditasse no bem e
cujas mãos benditas trabalharam para que
eu tivesse pão!
Urna sagrada, que me lembras um berço e
guardas o grande sono
dos meus mortos, urna sagrada, deixa que eu te enfeite
com este
punhado de flores tristes, deixa que eu te faça bonita, neste dia do
rito da saudade.
(República, 2 de novembro de 1929 p.
1)
Carta de uma artista
Agradeço-lhe, meu amigo, o lindo ramo de
violetas que você me
enviou para que eu com ele enfeite os meus cabelos. E
agradeço-
lhe com o meu olhar mais doce e com o meu sorriso mais
emocionado,
porque o seu gesto e todos os cavalheirosos gestos
que você tem usado comigo
revelam não homenagens à artista,
mas à mulher, não àquela que passeia
festejada entre os seus
mármores e as suas idealizações, mas à que tem coração,
graça,
faceirice, juventude, fragilidade, todos os defeitos gentis e todos os
encantos vencedores do seu sexo.
Você há de estranhar as revelações sinceras
desta carta. E, já
agora, dir-lhe-ei também que todas as rosas e todos as
homenagens que uma fiandeira de beleza possa ambicionar, eu
tenho recebido na
minha fronte e na minha alma.
A glória é uma mentira que consola e ela
está entrelaçada à minha
arte e, augusta, forte, pomposa, vive beijando as
minhas estesias e
os meus minutos. Você bem sabe que eu não exagero,
afirmando-
lhe que me sinto bem satisfeita relativamente ao prestígio do meu
nome e à fascinação da minha espiritualidade. Mas, no meu
"atelier"
de escultora celebrada, eu sinto que a mulher vive a
invejar a artista.
Minha mãe, que é uma santa e a minha maior
admiradora, disse-
me um diz, porque com certeza sentiu solidão idealista da
minha
alma, ela que tanto compreende e adivinha a sua filhinha: — Tuas
criações são tão formosas que te ultrapassaram e todos vivem a
Admirá-las,
esquecendo a criadora".
E eu sou infinitamente mulher. Mais mulher
do que tudo. Por isso
me confesso infinitamente agradecida a você, que
descobriu o
universo de ternuras que trago no veludo dos meus olhos negros.
Outros talvez o descobrissem também, mas penso que só você,
como frequentador
da minha casa desde que se tornou tão grande
amigo do meu irmão mais velho,
pôde descobri-lo em toda a
intensidade e em todo o colorido. E só você me
comunicou a sua
comovida impressão num galanteio nobre e audaz.
Obrigada, sim, meu amigo, porque para a
artista você teve frases
curtas de admiração. O verbalismo ardente, a palavra
consagradora, o pensamento apaixonado você os reservou para a
mulher. Para a
meridional esguia e morena, que você tem visto
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
Palmilhando-te deleitosa e pagã, a dizer
estrofes desvairadas ao
vento, busco as flores que irrompem do teu seio
crioulo,
quotidianamente, e que ofereces, no orgulho materno da tua
fecundidade, às minhas narinas, aos meus lábios e aos meus olhos,
que são dois
faunos escuros e insaciáveis. Mordo-as, cheiro-as,
embriago-me no perfume
nervoso dos cravos, sonho à beleza
olímpica das magnólias, sorrio à vaidade
feminina das rosas, saúdo
o destino helênico dos girassóis e louca, louca de
paixão, enfeito-
me toda como uma noiva para o venturoso tormento do himeneu
com
os mais belos cachos dos botões de maio.
Outras vezes, com a desenvoltura de uma
bugra nova, procuro o
manjar silvestre das tuas raízes e das tuas frutas. Com
minhas mão
repletas, vou savorear o selvagem almoço perto das águas
brilhantes
de uma cachoeira, enquanto toda te aquece com seus
olhares sádicos de fogo o
teu namorado, o sol!
É ainda à sombra de tuas ramagens sivosas
que eu, solitária e
verdadeira, vibro na poesia mais espontânea do meu coração
e
grito no pensamento mais audacioso do meu cérebro: pareço-me à
cigarra que
salmeia nos teus jasmins cheirosos, pareço-me à leoa
que uiva na tua selva
rude.
Como não querer-te, amiga, se a tua
epiderme sonegada e heroica
se oferece a todos os homens para que sobre ela
todos tenham um
lar?
És convidativa, generosa, fraterna. Não te
escondes para ninguém,
não negas a ninguém os teus tesouros, numa lição cósmica
de
solidariedade.
Também és mestra e és doutora! Da cátedra
azulada das tuas
montanhas vem um convite pastoral a todas as raças para que
subam, até os píncaros do amor, da luz e da beleza.
Meu rito glorioso, ah!, não tem limites.
Surpreendo-me até a
semelhar contigo: tenho a submissão das tuas praias, a
rebeldia
das tuas ilhas, o ardor dos teus vulcões, o perfume das tuas searas,
a
suavidade das tuas areias e o anseio até pelos teus desertos e
pelos teus
precipícios, quando, no meio da multidão, eu me
encontro sozinha ou tenho à
frente os abismos negros da maldade
humana!
(de um recorte de Correio do Povo,
sem data — Acervo da ACL)
Rústica
Quanta inveja me estás inspirando, pobre
rapariga, que assim
acolhes — a sorrir embaraçadamente — o grupo
cigarreante e
alegre que passeia pelos teus sítios verdes.
Olhando-te a figura simples de lavadeira
jovem do sertão, com a
tua saia de chita esmaecida e a blusa amorongada com
rasgões no
ombro, eu adivinho a tua história, a tua vida, o teu sonho.
Nasceste aqui mesmo, por estas terras de
costumes primitivos.
Sobre uma esteira de palha, à sombra das amoreiras
frondejantes,
brincaste em pequenina, enquanto as virações puras agitavam a
bela folhagem bravia do teu torrão.
Já crescidinha, corrias entre os canaviais
e ias espiar as queimadas
com as faces vermelhas de alegria e um alegre brilho
nos teus
olhos pretos. Na concha das tuas mãos matutas, bebeste a água
boa das
cachoeiras e, muitas vezes, chegaste até ela tua boca
rosada e saída como a
polpa granulosa das romãs.
Depois o tempo te fez rapariga e, desde
então, ao lado de tua mãe
e de tua irmã, entre pedras cinzentas e flores
silvestres, lavas...
lavas... E a fonte vai correndo e a tua garganta vai
cantando as
cantigas ingênuas do teu repertório sertanejo. E cantas,
sonhando... Mas é quando a noite baixa e o luar namora a
paisagem roceira, ao
som romântico dos violões, que mais se
encastela, no teu coração de mulher, a
esperança do príncipe
encantado... E ele virá um dia, completando a tua sina
modesta, ele
virá um dia na figura de um vigoroso trabalhador do arado ou de
um
tropeiro amoroso e forte.
Sim, minha selvagem amiguinha, eu penso que
adivinhei num
relance a tua existência inteira.
Forço-te agora a conversar, com perguntas
meigas, e, ouvindo a tua
linguagem errada, eu imagino como não deves ser feliz,
se vives
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
violaram e
de cancionar outra esperança mais linda diante das
paisagens e das águas e dos
corações.
Sofrer outra vez a tortura dos dias que
foram? Embora! O passado
morto persegue-o com fúria e sarcasmo, berrando aos
seus ouvidos
o erro da crença que nutriu ou a derrota que finalizou o seu
trabalho sem clarividência e sem encanto.
Viver novamente, sim (pudesse ele!) eis a
ambição que lhe possui a
inteligência quando, nas horas que passaram, cantou os
sonhos e
os pensamentos que já o não atraem, ambição que tanto mais o
vence
quanto mais o vence a certeza de que, cantando-os, teve
mais entusiasmo do que
convicção, obedeceu mais às influências
que o mentorizaram do que à
determinação e à natureza da sua
própria índole.
Mentira
A resignação é uma bela cousa que os homens
aconselham uns aos
outros como pregadores rotineiros ou conscientes nas grandes
horas trágicas e até nos pequeninos desapontamentos da vida ...
Há, no entanto, no número dos resignados,
uma casta paradoxal:
são os que exteriorizam a linda felicidade dos vitoriosos
e mostram
na boca, que devera cantar o sonho negro da morte — tanto há
provado a dor! — e mostram na boca a vitória irônica de um
sorriso... Mas
que, dentro da alma, na razão de orgulhosos, no
carinho de ciumentos, guardam a
sua insatisfação, a sua
desesperança, a sua violenta tortura de viver que, embora
inisentadas, embora invisas gritam como as gargantas em
desespero e ardem como
as línguas vermelhas do fogo.
E, enquanto passam no mundo os verdadeiros
resignados, estes
passeiam entre os homens a grande mentira na sua resignação
de
rebeldes máximos...
Maura de Sena
Pereira Lamotte
(Esp. para a Revista do Globo)
Rezar...
Que poderia você, meu amigo, dizer-me de
mais confortador, na
hora inédita do nosso adeus, do que a promessa, grave e
encantadora a um tempo, de que havia de rezar sempre por mim?
Meu príncipe dos olhos verdes, meu pastor!
Você bem sabe que o nosso amor, o nosso
amor, cheio de ironia e
de sofrimento, é, mau grado tudo, uma grande rosa de macieza,
que eu, machucada e aflita, contemplo e conservo com o sagrado
enlevo da minha
feminilidade.
Mas você, igualmente, sabe que, para
suportar a dor dos espinhos
que me ferem e as berrantes ironias do nosso
maravilhoso amor,
preciso seria possuir uma fé muito grande, grande mesmo como
as
montanhas da minha terra, e que a que palpita entre as dúvidas de
treva do
meu insatisfeito coração é ainda menor do que as conchas
das minhas mãos...
Destas mãos cetinosas que você adora, destas
mãos que sonham, destas mãos que
dormem e que você quer
evangelicamente unidas na atitude religiosa da prece,
para que eu
sofra com mais doçura.
E foi, com certeza, para firmar na minha
alma, que tinha feito de
você o seu deus, a convicção dulcíssima da existência
de um
Senhor que escuta, para lá das nuvens, os rogos de todos os
pecadores,
que você me afirmou, no instante amoroso da nossa
despedida, que havia de rezar
sempre por mim...
Nesta hora, meu saudoso amigo, meu príncipe
de sorriso fidalgo,
em que eu sofro tanto, sozinha e heroica, lembrei-me, pois,
da sua
luminosa promessa, e uma grande paz encheu o meu pobre coração
de
mulher. Olhei, sim, o céu tão azul como nos mais lindos dias
desta incomparável
primavera em que nos amamos, e tive a faceira
e repousante ilusão de que você
estava rezando por mim e de que
a sua reza estava subindo ao céu e recebendo a
misericordiosa
resposta da boca misericordiosa de Deus...
(de Fon-Fon, 07/02/1931)
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
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16/04/2022 14:52 Poesia reunida e outros textos, de Maura de Senna Pereira
um sinal (do grupo dos que chegam na hora devida) de que já não
é
mais primavera, embora em muitos pontos — o rosto jovem, o
corpo esbelto, o
coração arrebatado — possa prolongar-se o seu
brilho. Assim, o tempo é
implacável, as belas estações passam e,
após terem chegado e desaparecido as
cores ainda soberbas do
outono, virá o inverno, o declínio, o fim.
Há um sentido dramático em tudo isso,
marcado, porém, de uma
tal equidade o efêmero atingindo a todos inexoravelmente
— que a
atitude sábia será a aceitação. Equidade sem dúvida, porque não
tem
cabimento, por exemplo, alguém dizer que não teve juventude.
Correndo a vida,
todo ser humano tem, teve ou terá juventude.
Agora, se esta é triste ou alegre,
apagada ou gloriosa, dura ou feliz
— isso não é com o tempo: é com o homem.
(Gazeta de Notícias / Nós e o mundo,
Rio, 4-5/1/1976 —
republicado em Nós e o Mundo p.17)
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