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16/04/2022 15:21 Despoemas, de Maura de Senna Pereira

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Despoemas, de Maura de
Senna

Edição de base:
 
Maura de Senna Pereira, Poesia
reunida e outros textos,
Org. de Lauro Junkes,
Florianópolis:
ACL, 2004.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ÍNDICE
 
Do amor

No vale

samaritano
Sublimação

Lua e luta

Intemporal
João Paulo I

Inauguração da

lua
A estátua

O homem e o

tempo
Terra minha sob o

signo
da poesia

Palácio Cruz e
Sousa

Os adeuses

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16/04/2022 15:21 Despoemas, de Maura de Senna Pereira

Eu não verei a

aurora
Testamento

 
 
No
livro
da
editora
Achiamé:
 
Quando
essa
era,
porém,
chegar
a
vossos
lares,
Eu

terei
voltado
ao
selo
do
universo.
Mas,
porque
vos
amei

homens!
irmãos!

nos
ares
Minha
alma
ficará,
vibrando
no
meu
verso.
 
Rufiará
pelo
céu

numa
asa

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que
se
solta,
Tinirá

no
rumor
de
algemas
se
quebrando
E,
em
frêmitos
de
amor
e
gritos
de
revolta,
Convosco
ficará

nos
aquilões
cantando.
 
Almeida
Cousin
(In
"Itamonte")
 
 
Em
Busco
a
Palavra:
 
Maura
de
Senna
Pereira,
que
está
Sempre
em
vigília
poética,
vem
Disfarçada
em
"Despoemas".
Mas
é só

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16/04/2022 15:21 Despoemas, de Maura de Senna Pereira

disfarce,
porque
o
livro
Oferece
poemas
de
verdade".
 
                              Lago
Burnet

"Revista
Nacional"
 

 
 

 
 

 
 

 
 

 
 

 
 

 
 

 
 

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Do amor
 
 
 
I
 
No Vale Samaritano
 
 
Eis que hoje me despeço
deste vale
onde a tragédia nos fez
aterrissar
por todo um mês (ou todo
um
século?)
Ele, em seu leito, por hábeis
mãos
cuidado,
recebendo no soro as
substâncias
que foram reabsorvendo o
sangue
extravasado
Eu era toda aflição contida e
esperança
na ação dos dois médicos
perfeitos
Já tarde, quando, sedado ou
não,
ele dormia
em vigília sempre eu ia
contemplar
a noite:
a rua de casas belantigas
(elas
existem?)
o morro de pedra e verdes
novos
pela frente
o grande edifício à esquerda,
os
outros menores,
e sobretudo o céu estrelado,
a lua
às vezes
e, bem no alto, aquele que
foi
crucificado

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por tanto amar a gente


A pouco e pouco as luzes das
casas
se apagavam
(dormem? sonham? fazem
amor?)
Depois era o céu que
esmorecia: as
constelações,
os planetas, a lua, quando
aparecia,
tinham
ido embora
Só então ficávamos nós dois
sozinhos, ó Cristo!
Aí de mim, não te fiz
nenhuma
prece
mas naquele repetido
encontro face
a face
parecia ouvir-te: Descansa,
mulher,
ele sairá daqui pelo teu
braço
É o que vai acontecer agora
pois que dois seres raros
conseguiram a vitória
de recuperá-lo
Somente na ciência eu creio,
sim,
porém jamais esquecerei, ó
Cristo,
que teus luminosos braços
abertos
estiveram sempre abertos
para mim
 
 
II
 
Sublimação
 
 
No princípio era o sexo
dominando
as próprias mentes e
corações
afins
irrompendo selvagem nas
alcovas
e no tapete verde dos jardins
 
eu — cravina esmagada pelo
teu
inteiro e animal abraço
em manhãs e noites de
esperma e
sono
de sono lasso
 

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Depois, o sexo ainda. Mas


como
cresceram tanto os elos
outros
que nos ligaram sempre!
Muitos dezembros passaram
e muitos marços também
e ao nível do ardor carnal se
postaram
os outros elos, tão belos
 
Agora o sexo é por eles
suplantado, amor,
não tanto em virtude do
tempo
mais como fruto da dor
Brutal máquina turbou teu
cérebro
de sábio e de poeta
gerando os meus dias mais
amargos
até que dois anjos
dois arcanjos
te salvaram
 
Prêmio: tua vida e tua volta
Festa: uma união ainda
maior
que a mais profunda, a mais
ardente cópula
 
 
 
Lua e luta
 
 
 
Intemporal
 
A Guido Wilmar Sassi
 
 
Simples fêmea das cavernas
ou nascida no século vinte e
um
carregaria sempre esta
flama, esta
ânsia que me faz — na
escuridão
de um mundo em estertor —
querer antecipar
o alvorecer
com tintas fortes de revolta
e
amor

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Assim, nas primitivas eras,


sujeita
aos quase-bichos, decerto
pensaria
em conceber um homem. E

irmã
dos homens quase-livres de
amanhã

sonharia com outros passos
para a
frente
com o século trinta e sete
talvez
(ou quarenta e cinco
ou cinquenta e três)
enfim com o ser humano já
liberto
e sendo já a Terra
dália azul perfeita — sem
traço algum
de sangue e desamor
 
 
 
João Paulo I
 
 
Não, não apagou fogueiras
nem as fez esquecer
tal quando passou o
vendaval de
amor
chamado João XXIII
 
Mas foi uma surpresa para
os povos
a escolha do teu nome, João
Paulo,
parecendo um recém-
nascido das
gentes
e foi dádiva e galardão,
Albino Luciani, teu sorriso
não-eclesiástico
Sorriso irmão
de filho de uma lavadora de
pratos
e de um pedreiro socialista
 
Sorriso cristão
de quem não queria pompas
nem
tiaras
(talvez porque o Rabi da
Galileia
não tinha uma pedra
onde encostar a cabeça
e há milhões sem pão?)
 

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Teu sorriso puro, claro


Albino,
não apagou fogueiras
mas acendeu esperanças
João Paulo Primeiro
 
Pastor, foste uma fímbria de
aurora
e o mundo chorou quando
ela não
mais,
ó menino, ó pombo, ó
príncipe da
paz!
 
 
 
Inauguração da Lua
 
Para Elmo Elton
 
 
País Lua, Lua
mais próxima desde
setembro
quando nossa rosa cósmica
te
flechou
Desvendada Lua, eis
e enviado pássaro trazendo
tua face oculta. E ainda
pousará
o homem em tuas crateras
e regará de suor tuas carnes
crestadas
antes de pegar as estrelas
 
Que até aí também eu
chegue
só para usar mirante
Não tens céu nem fonte
nem rouxinol nem flor
Mas oh — crescente ou
minguante
íntegra ou quasenvolta
nos véus da luanova —
és sempre de longe visão de
beleza
e tens sido chamada de astro
da
noite,
fiandeira, fada, ombro
de deusa, pastora sentada
 
Quão mais bela não será a
Terra
com seus mundos reais
seus mares profundos

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suas gentes e bichos


suas gentes e bosques
as cidades vermelhas
as verdes montanhas
os halos azuis
e ainda suas
fábricas de luas
 
Que até aí também eu
chegue
só para mirá-la. Mirar
a Terra — morada
do domador dos espaços.
Salve
o homem, ó Lua
violada
 
 
 
A Estátua
 
 
É a hora primeira do bronze
eterno
e altos discursos
e baixos relevos
celebram o herói
(seus passos seus rumos
 
seus gestos revéis?
o arauto que gritou
bem alto: Liberdade?)
 
Enquanto celebram
em loas sonoras
(enquanto deturpam
deformam maculam)
perguntas borbulham
nos lábios cerrados:
 
por que são crimes agora
os feitos mesmos
que te deram glória?
 
por que abjetos são
os que espalham os sumos
da tua pregação
e seguem teus passos
teus rumos?
 
por que foram buscar teu
nome
teu secular renome
tua auréola — para escudo

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do seu mando espúrio?


 
não fosse de bronze
o braço erguido conclamando
mas de carne, sangue,
nervo, aço
como foi teu braço vivo
em que fria masmorra
te fariam morrer
nesta mesma hora?
 
 
 
O Homem e o Tempo
 
 
O
tempo
é
este
garanhão
de
cabeleira
em
cio
que
atravessa
a
eternidade
com
seu
galopar
sombrio
 
Francisco
Carvalho
 
 
(Confrange?) a realidade:
com o homem existe
coexiste
a franja da idade
 
O tempo marca o homem
e o transforma e o consome
 
Onde está o que irrompeu
das
entranhas
onde por nove meses se
forjou?
Ele cresceu, o tempo o
esticou
 

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Onde está o de estuante


seiva e
sexo
atuante, onde está o
desbravador?
O jovem ser amadureceu
chegou à estação sazonada e
ainda bela porque sucessora
da primavera
 
... e após a plenitude
o descambar...
 
Onde está o outonal seguro
e sábio, de lábio ainda
lúbrico e
de
pensamento firme como um
falo?
 
Entanto o homem pode
tornar a terra árida um
vergel
multiplicar os pães e os
peixes
os frutos e os manjares
navegar pelo cosmos indo
além
de Canopus e de Antares
e matar os deuses
que em seu temor criou
 
Pode até mesmo —
vencendo
vírus
e penares — pode ampliar
a dimensão da vida
(da vida: nosso bem, alento
nosso)
mas sequer tocar a asa do
tempo
aí! o homem não pode
 
 
 
 
Terra sob o signo da
poesia
 
 
 
Palácio Cruz e Sousa
 
Para Antônio Carlos Konder
Reis
 
 

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16/04/2022 15:21 Despoemas, de Maura de Senna Pereira

Agora eu sei que a Poesia


é todo-poderosa
 
e nem sair de ventre escravo
ser pobre e desprezado
enviar bilhetes mendigando
pão
e soluçar na véspera da
morte
impedem o canto
imorredouro
 
miséria, dor, injustas
contingências
mais fazendo brilhar o gênio
emparedado — e seu Missal
e seus Broquéis e seus
Faróis
e os clarões finais
dos Últimos Sonetos
 
(Agora eu sei, ó Cisne Negro
que a Dama Branca levou)
 
Faz oitenta anos e
como se a terra elegesse o
filho
máximo
seu nome é hoje nume no
Paço
mor, primor arquitetônico
restaurado,
Palácio rosado, róseo, rosa,
onde grandes homens têm
mandado
 
Agora eu sei que a Poesia
é todo-poderosa
 
 
 
Os adeuses
 
 
 
I
 
Eu Não Verei a Aurora
 
Quando
essa
era,
porém,
chegar
a

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vossos
lares
Eu

terei
voltado
ao
seio
do
universo.
Mas,
porque
vos
amei

homens!

nos
ares
Minha
alma
ficará,
vibrando
no
meu
verso.
 
Almeida
Cousin
 
 
Quando este mundo imundo
desabar
caírem as ditaduras, a
ignomínia
das torturas
tiver fim, os povos forem
livres e fartos, as castanhas
saltarem
festivas em todos os pratos
a longa noite acabar
eu não verei a aurora
 
Eu não verei a aurora
e saúdo com aleluias
todos aqueles que a verão
temendo somente que ela
não venha
logo resplandecente e, ao
surgir,
traga ainda estigmas do
século
pálidos painéis de guerras e
holocaustos

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sombrias manchas de
mártires e
déspotas
sinistras forcas esmaecendo
ainda doendo antes de
tragadas
pelo esplendor da nova
gênese
 
 
II
 
Testamento
 
 
O que me punge não é
propriamente
a morte
embora me revolte: é a
tumba, a
podridão
Quando tudo deveria ser
feito para
alegrar a vida
que só a vida importa
nada se omite para tornar
menos
triste a morte
ao ponto de fazer a terra
cúmplice
do banquete macabro que eu
não
quero ser
A terra é para se abrir em
flor e
fruto
dar a espiga o cacho o grão
a
fonte o bosque
a terra é para nutrir, não
para
consumir
 
(Como, em verdade, definir
a vida
se me transformarei em
lembrança? e
a eternidade
se, quando por sua vez
morrerem os
que me amam,
de todo me finarei? Porém o
que
não é inevitável
é a degradação de
apodrecer)
 
Ora, dirão, a cremação não
tarda
e poderás escolher... Pois, se
assim for,
que eu arda morta como ardi
em
vida
por meu amor, meu sangue,
meu
amigo, pelo ser
humano,

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por um mundo melhor


Mas, por favor, não me
prendam
depois em
nenhuma arca
seja de madeira ou de lata,
nem de
ouro nem de prata
Não me guardem (cruzes!)
E — já em cinzas livres e
quentes —
num gesto natural de quem
espalha
sementes
eu seja espalhada pelos
ventos
É este o meu intento, é isto
só o
que eu peço
Estarei toda no universo
e não serei nada
 
 
 

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