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APRESENTAÇÃO

Machado de Assis foi e continua sendo um dos maiores nomes da

literatura brasileira do século XIX, bem como um dos grandes escritores

da literatura mundial de todos os tempos. Inclusive, nos últimos anos, ele,

que nasceu no Rio de Janeiro em 1839, tem sido redescoberto, com diversas

traduções de sua obra em muitas línguas.

Este livro traz parte do trabalho, principalmente, do contista Machado

de Assis, adaptada para a narrativa em quadrinhos. Aqui você poderá

conhecer um pouco de sua genial maestria, por meio da adaptação de quatro

de seus contos mais conhecidos. Machado é autor de grandes romances,

marcos da literatura nacional, como Memórias póstumas de Brás Cubas,

Dom Casmurro, Memorial de Aires, Quincas Borba e tantos outros de suma

relevância para a formação e solidificação de uma ideia real de literatura

brasileira. Publicado no livro Páginas recolhidas , de 1899, o conto “Missa

do galo”, que narra acontecimentos da vida de um homem quando jovem,

apresenta um tocante retrato da hipocrisia do cotidiano da Corte à época

machadiana. “Conto de escola”, originalmente editado no livro Várias

histórias , de 1896, discute a ética desde os primeiros anos da vida de um

jovem. Em seguida, apresenta-se “O espelho”, uma reflexão quase filosófica

sobre o ser, publicado em 1882 na obra Papéis avulsos . O último conto –

“Umas férias”, extraído de Relíquias da casa velha , de 1906 – retrata um

momento definitivo na vida de duas crianças.

Nesta edição, buscou-se respeitar as características de pontuação e

grafia, as particularidades da sintaxe do autor. Machado sempre foi e seguirá

sendo um parâmetro extremamente significativo de como escrever bem em

língua portuguesa.

Além da adaptação em quadrinhos, este livro aporta breves trechos

de grandes obras de Machado de Assis, recolhidos de outros livros e escritos

em gêneros literários diversos, todos magistralmente praticados por ele,

da poesia à crônica, numa demonstração da riqueza de seu universo e sua

pluralidade. Um trecho do romance Memórias póstumas de Brás Cubas , uma

crônica de 1883 e dois poemas atestam a qualidade literária do Bruxo do

Cosme Velho, como era conhecido, por habitar no bairro de mesmo nome no

Rio de Janeiro. Há muitas peças teatrais, críticas musicais e outros gêneros

textuais que poderiam ser incluídos neste volume, mas que ficarão para

outro volume desta coleção. Uma obra tão grandiosa como a de Machado não

caberia jamais em apenas um livro.


soneto Luz entre sombras
crônica Como comportar-se no bonde

poema Suave mari magno

trecho do romance
Memórias póstumas de Brás Cubas

biografias
coleção HQ BRASIL
MISSA DO GALO
CONTO DE ESCOLA
O ESPELHO
UMAS FÉRIAS
Como comportar-se no bon de

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que

frequentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio

de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado

ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns

extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta

artigos. Vão apenas dez.

ART. I — Dos encatarroados

Os encatarroados po dem entrar nos bon ds com a condição de

não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de

pigarro, quatro.

Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação,

os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício,

ou meterem-se na cama. Também po dem ir tossir para o diabo que

os carregue.

Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos

devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bon d,

salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

ART. II — Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se de mo do que não constranjam os

passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas

abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-

-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma

pequena gratificação.

ART. III — Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá

o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus.

Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

ART. IV — Dos quebra-queixos

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a

primeira quando não for ninguém no bon d, e a segunda ao descer.

ART. V — Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios

íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro

escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado.

No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma

descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a

pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso aliás extraordinário e

quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve

fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais,

repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de mo do que o paciente

jure aos seus deuses não cair em outra.


ART. VI — Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo

nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também

po dem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do

condutor, e a cara para a rua.

ART. VII — Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma

coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte

palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se

houver senhoras.

ART. VIII — Das pessoas com morrinha

As pessoas que tiverem morrinha po dem participar dos bon ds

indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para

outro. Será melhor que morem em rua por o n de eles passem, porque então

po dem vê-los mesmo da janela.

ART. IX — Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve

levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar

sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

ART. X — Do pagamento

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o

condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro

com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é

evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

Crônica publicada originalmente na Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, em 04/07/1883,

recolhido aqui do livro Obra completa de Machado de Assis , Nova Aguilar, 2015.
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Suave mari mag n o
*

Lembra-me que, em certo dia,

Na rua, ao sol de verão,

Envenenado morria

Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,

De um riso espúrio e bufão,

Ventre e pernas sacudia

Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso

Passava, sem se deter,

Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,

Como se lhe desse g o zo

Ver padecer.

* Expressão usada pelo poeta latino Lucrécio, empregada para definir o prazer de

alguém que se percebe livre de perigos a que outros estão sujeitos.

Poema publicado em Poesias completas , MEC; Civilização Brasileira, 1976.


Memórias póstumas

Ao Leitor

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem

leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem

provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem

leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e, quando muito,

dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa,

na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou

de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de

pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da

galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá

sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas

aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não

achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos

graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas

da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro

remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é

o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e

truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário

que empreguei na composição destas Memórias , trabalhadas cá

no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás

desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é

tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,

pago-te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas

[...]
de Brás Cubas

[...]

Capítulo CLX

Das negativas

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos

narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção

do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia

que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os

homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e

direta inspiração do Céu. O caso determinou o contrário; e aí vos

ficais eternamente hipocondríacos.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a

celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci

o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a

boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais;

não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas

Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará

que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que

saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este

outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a

derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos,

não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

FIM

Trecho do romance Memórias póstumas de Brás Cubas in

Obra completa de Machado de Assis , Nova Aguilar, 2015.


FRANCISCO VILACHÃ

Nasci no Rio de Janeiro, em 19 de janeiro de 1953,

pleno verão carioca... Publiquei minha primeira HQ

na revista O Bicho e passei a colaborar com

publicações de suspense e terror na revista Spektro

e com as séries eróticas e fantásticas da editora

Grafipar. Nessa ocasião, mudei-me para São Paulo,

para trabalhar como ilustrador. Em meados

dos anos 1980, com o roteirista Ronaldo Antonelli,

editei a histórica InterQuadrinhos , revista

exclusivamente feita por artistas nacionais.

Depois, ilustrei livros didáticos por duas décadas

e só retornei aos quadrinhos no novo milênio, quando desenvolvi um projeto

voltado para adaptação de obras de clássicos da literatura.

O primeiro conto do Machado de Assis que quadrinizei foi Ideias do Canário ,

em 2003. Mais do que o enredo, o que me cativou foram os cenários, a

geografia do lugar, imaginar as pessoas ocupando os espaços da antiga

capital do Brasil ainda imperial. Eu, como um carioca radicado em São Paulo,

fui tomado por uma nostalgia das ruas e locais por onde andei, tal como

Machado, fui um “flâner” pelos recantos da cidade... No conto Uns braços , e

em todos os que ilustrei na sequência, o sentimento foi o mesmo.

Neste livro, com os contos Missa do Galo, Conto de escola, O espelho e

Umas férias , tive a oportunidade de explorar as técnicas de desenho e o

tratamento gráfico que combinassem, no meu entender,

com cada uma das narrativas.

Espero ter passado aos leitores esse mesmo entusiasmo.

A cidade agora é nossa!

ADÃO DE LIMA JR.

É natural de Alvorada (RS), tem alma de

artista e gosta de criar, tanto faz se são músicas,

poemas, histórias em quadrinhos, roteiros, charges,

tiras, caricaturas, fanzines ou ilustrações. É autor

do fanzine ZinAdão – Cidade do Sono . Colabora com

o selo independente Quadrante Sul Comics (RS) e

com o Projecto Lusofonia (Portugal). Will Eisner e

Mort Drucker são duas de suas maiores fontes de

inspiração. Contato: <adaodelimajr@gmail.com>.

“É uma honra fazer parte desta homenagem a Machado de Assis, ao

lado do mestre Vilachã. Obrigado!”


MACHADO DE ASSIS

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em

21 de junho de 1839. Era filho do pintor Francisco José de Assis e de Maria

Leopoldina da Câmara Machado, nascida no arquipélago dos Açores, que

faleceu quando Machado era ainda criança. Bisneto de africanos escravizados,

vinha de uma família humilde, o que moldou muito de sua personalidade e

influenciou sua literatura, especialmente na fase mais madura. Machado tinha

uma doença chamada epilepsia, que o acompanhou a vida toda, tornando-o uma

pessoa um tanto tímida e retraída.

Aos 15 anos publicou seu primeiro trabalho, um soneto em um

periódico da região em que vivia. Quando passou a trabalhar na Imprensa

Nacional, aprendendo a ser tipógrafo, seu grande mentor foi o escritor Manuel

Antônio de Almeida, que escreveu Memórias de um sargento de milícias , um

dos clássicos da literatura brasileira do século XIX. Logo depois, tornou-se

crítico de arte da revista O Espelho . A partir de 1860 publicou contos em

alguns jornais do Rio de Janeiro.

Em 1869 casou-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, com quem

viveu durante 35 anos. Sua companheira em grande parte da vida também

o auxiliava muito em seus escritos, ajudando na revisão de seus textos.

Seu primeiro romance – Ressurreição – foi publicado em 1872. Em seguida

assumiu um cargo no setor público, no Ministério da Agricultura. A obra

A mão e a luva foi publicada em 1874 no modelo de folhetim. Algumas de suas

peças teatrais foram encenadas, e seguiu produzindo crônicas do cotidiano da

então capital nacional.

Machado foi um dos mais ativos participantes do movimento para

a criação da Academia Brasileira de Letras, o que veio a ocorrer em 28 de

janeiro de 1897, ocasião em que foi eleito presidente da instituição, à qual se

dedicou pelo resto de sua vida.

Publicou livros de contos e de poemas, consagrando-se como o maior

romancista da literatura brasileira por obras como Ressurreição (1872),

A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas

de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e

Jacó (1904), Relíquias da casa velha (1906) e Memorial de Aires (1908).

Faleceu no Rio de Janeiro no dia 29 de setembro de 1908, deixando um

imenso legado literário para a cultura brasileira e mundial

“[...]

Todos os cemitérios se parecem,

e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida

apalpa o mármore da verdade, a descobrir

a fenda necessária;

onde o diabo joga dama com o destino,

estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,

que resolves em mim tantos enigmas.

[...]”

Carlos Drummond de Andrade sobre Machado de Assis no

poema “A um bruxo com amor”, do livro Obra completa de

Carlos Drummond de Andrade , Nova Aguilar, 2000.


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Este livro foi composto com as tipologias Wimp-Out, American Typewriter, Chalkduster,

.
Lucida Calligraphy, Century Gothic e Citizen
© Editora do Brasil S.A., 2017
Todos os direitos reservados
Texto © Machado de Assis
Roteiro e ilustrações © Francisco Vilachã

Direção-geral: Vicente Tortamano Avanso


Direção adjunta: Maria Lucia Kerr Cavalcante de Queiroz

Direção editorial: Cibele Mendes Curto Santos


Gerência editorial: Felipe Ramos Poletti
Supervisão de arte, editoração e produção digital: Adelaide Carolina Cerutti
Supervisão de controle de processos editoriais: Marta Dias Portero
Supervisão de direitos autorais: Marilisa Bertolone Mendes
Supervisão de revisão: Dora Helena Feres

Coordenação editorial: Gilsandro Vieira Sales


Assistência editorial: Paulo Fuzinelli
Auxílio editorial: Aline Sá Martins
Coordenação de arte: Maria Aparecida Alves
Colorização das HQs: Adão de Lima Júnior
Projeto gráfico e editoração eletrônica: Estúdio Caraminhoca
Edição: Denis Antonio e Sergio Alves
Capa: Pedro Arcene
Coordenação de revisão: Otacilio Palareti
Revisão: Sylmara Beletti e Maria Alice Gonçalves
Controle de processos editoriais: Gabriella Mesquita

1ª edição digital, novembro 2018


produção e-book
Booknando Livros

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Fone: +55 (11) 3226-0211
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Assis, Machado de, 1839-1908.


Missa do galo [livro eletrônico] : e outros contos de
Machado de Assis / adaptação em quadrinhos Francisco
Vilachã. -- São Paulo : Editora do Brasil, 2019. -- (HQ Brasil)
18 Mb ; MOBI

ISBN 978-65-5817-129-4

1. Contos brasileiros 2. Histórias em quadrinhos I. Vilachã,


Francisco. II. Título. III. Série.

19-25651 CDD-741.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Histórias em quadrinhos 741.5

Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014


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