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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Nós e o mundo, de Maura de
Senna
Texto-fonte:
Maura de Senna Pereira, Nós e o
mundo: crônicas, resenhas, artigos,
Rio de Janeiro: Livraria São José,
1976.
ÍNDICE
Quadros e
temas
As novas
amazonas
As
noites
recentes
Mãos
de nora em
flor
O poema
"Apocalipse" e
sua intérprete
Nós e o tempo
Morus e a
Utopia
Geração
do
deserto
Museu
Guimarães Rosa
Fleming
Mundos
de
Aldous Huxley
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O
enigma de
João Ramalho
A marcha
e o
salmo
Laguna,
cidade
histórica
Passeio poético
pela botânica
Pele
contra pele
Duas
poetisas de
Moçambique
A planta
d'água
Uma
feira do
livro
Pinheiro
preto
Divagações
sobre
uma peça
Um livro
de
Marcuse
Mães modernas
A psiquiatria e os
atropelamentos
História
de
Blumenau
Livro de
Zora
A nova mulher
Cortes e súmulas
Estórias
que eu não
inventei
Os
visitantes da
noite
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A herança
Isabel
das
Crespo
Silk,
a
consciência e o
anjo
O
sorvete e o
doido
Nesta
casa tem
um bosque
O drama
do
tempo
Fantasia
O fidalgo
Aquelas
crianças
O sonho
e a
realidade
Saia
azul e blusa
branca
A bela
adormecida
Do perigo de
contrariar a
pedicura
O
trocador e o
junquilho
Passe
adiante,
minha senhora
Retratos
Uma
data, dois
cultos
Durval
e sua
madona
A filha
dos
deuses
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Tu-Chin-Fang
Menino dormindo
Senhora
Dona
Romana
Minhas avós
Nísia Floresta
O poeta
de
"Esboços"
Lou
Andreas-
Salomé
As mil
e uma
noites
Festas tchecas
Para
ALMEIDA COUSIN
meu amor
ILKA
RUTH
SAMUEL
ZAURINHA
irmãos amados
como filhos
OCTAVIO DUPONT
cunhado irmão amigo
e
em homenagem ao
centenário
de Gazeta de Notícias
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Quadros e temas
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As novas amazonas
A Sociedade das Novas
Amazonas, ou
Iluminadas,
existiu no Pará há quase um
século e meio, pois seus es-
tatutos
datam de 16 de abril
de 1833. Era constituída de
três classes de sócias:
"a
primeira abrangia as irmãs
designadas com o título de
Educandas; a
segunda se
compunha das irmãs mais
adiantadas na prática das
virtudes e ações
heroicas,
as quais tinham o
tratamento de Mestras; a
terceira compreendia as
irmãs que tinham chegado
ao maior auge de virtudes
civis, políticas e morais,
dando provas não equívocas
de um decidido amor à
Pátria e adesão à
Liberdade".
Quem tal nos informa é
Domingos
Antônio Raiol,
Barão de Guajará, no seu
grande livro documental
"Motins
Políticos", cuja
segunda edição, em três
volumes, vem prefaciada
pelo
professor Arthur Cezar
Ferreira Reis.
Assim é que, no meio
daquele
copioso registro de
lutas que se processaram na
Província do Pará entre
1821 e
1835, encontramos
o do aparecimento das
Novas Amazonas.
Precisamente nas
vésperas
da epopeia de tantas faces e
etapas e que teve como
figura maior, pelo
que de-
preendo da exposição de
Raiol, um jovem de vinte
anos: Eduardo Angelim,
estadista cabano.
Espontaneamente ou
orientadas
pelos pais e
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aquelas mãos em
movimento, que
pareciam
flores se abrindo na haste
nua dos braços. Quando os
mestres a
mandavam ao
quadro-negro, os dedos
alvos gizavam cálculos,
traçavam figuras. E
aquela
móvel beleza branca
enfeitiçava até as não
amigas. Entretanto, Nora, te
lembras de que choravas
porque nos teus dedos não
havia um anel? Um leve aro,
uma simples pedra, uma
turmalina que fosse — nas
tuas mãos lindíssimas e
novas
como rebentos? Nora
possuindo a primavera. Nora
vendo passar os anos e só
chegarem as joias quando já
partia a carruagem do
outono. A pérola magnífica
entre brilhantes sem jaça, a
grande esmeralda, a pura
água-marinha, rubis,
diamantes. Pobre Nora de
mãos fanadas, de dedos
carregados de anéis e de
invernos. Veias grossas
enfeando, rugas cortando os
lírios lisos de outrora. Os
quais se transformaram em
garras quase escuras, ora
cintilando porque vão a
uma
festa. Mas não! A que tanto
sonhara com todas aquelas
gotas de estrelas e
auroras
achou melhor reparti-las
desde já entre as netas em
flor. Depois
escondeu as
velhas mãos em luvas
novas. Só então saiu. Tão
leve e apaziguada.
Ah.
Nora!
O poema "Apocalipse" e
sua intérprete
Almeida Cousin estreou em
1932 com
a epopeia "Ita-
monte", "livro que empolga
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Nós e o tempo
Quando ouvirem uma
criança, um
adolescente,
uma criatura muito nova
dizer que o ano passou
depressa, desconfiem.
Não
pode sentir que o tempo
corre quem está crescendo,
desabrochando, em plena
faixa da expansão. Fala
assim numa inconsciente
insinceridade, por um na-
tural
espírito de imitação,
para impressionar, porque
ouve os mais velhos
dizerem.
Estes, sim, estão sendo
sinceros,
pois sentem real-
mente que os natais e anos
novos se sucedem com rapi-
dez. E
essa sensação é um
sinal (do grupo dos que che-
gam na hora devida) de que
já
não é mais primavera,
embora em muitos pontos
— o rosto jovem, o corpo
esbelto,
o coração
arrebatado possa prolongar-
se o seu brilho. Assim, o
tempo é
implacável, as
belas estações passam e,
após terem chegado e
desaparecido as
cores ainda
soberbas do outono, virá o
inverno, o declínio, o fim.
Há um sentido dramático
em tudo
isso, marcado,
porém, de uma tal equidade
— o efêmero atingindo a
todos
inexoravelmente —
que a atitude sábia será a
aceitação. Equidade sem
dúvida,
porque não tem
cabimento, por exemplo,
alguém dizer que não teve
juventude. Correndo
a vida,
todo ser humano tem, teve
ou terá juventude. Agora, se
esta é triste
ou alegre,
apagada ou gloriosa, dura
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Ressalte-se que o livro há
pouco
reeditado foi escrito
quando Ivan Lins era muito
moço. E, se o texto, agora,
vem "em edição corrigida e
melhorada", o arcabouço
todo — estilo,
ideias,
interpretação —
permaneceu intocável, o
que vem demonstrar ter o
hoje
acadêmico e ministro
Ivan Lins iniciado sua
carreira literária já dono de
altíssima cultura.
Compõe-se o volume de
duas partes,
além das
muitas notas: "A curiosa e
contraditória vida de Tomás
Morus" e "A Utopia". Sem o
intuito de descrevê-las,
quero acentuar
que se trata
de uma exegese tão honesta
que não oculta a nódoa
inapagável: ter
Morus,
"apesar da doçura de seu
caráter e da pureza de sua
virtude" e
principalmente
depois de haver plantado na
"Utopia" rosas de ternura
humana e postulados de
respeito à liberdade de
consciência — atuado como
inquisidor, ateado fogueiras.
Estava então longe, e havia
muito, a grande
figura de
Erasmo, o humanista que
escrevera na casa de Morus
o "Elogio da
Loucura" e
influenciara as ideias liberais
da "Utopia". E o
eminente
ensaísta chega mesmo a
observar que "à medida que
as relações de
Morus com
Erasmo deixam de ser tão
intensas pelo afastamento
deste último da
Inglaterra, o
fundo teológico tende a
predominar no autor da
"Utopia".
Assim, o amigo e chanceler
de
Henrique VIII abeberara-
se de novo das fontes
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católicas, sedento de
ortodoxia
e intransigência.
Aí vai encontrá-lo o
rompimento do rei com o
papa e, de
acordo com sua
têmpera e sua fé, não aceita
Morus o "Act" nem a
fascinante Ana Bolena. É
quando uma integridade é
posta a prova e obtém pelos
séculos o respeito das
gentes, porquanto ameaças
e tentadoras promessas não
conseguem quebrar a
fidelidade a seus princípios,
sendo em 1535 decapitado
— e
quatro séculos depois
canonizado — "o homem
que não vendeu a alma".
"A Utopia" é de 1516,
época
do apogeu da Renascença,
era dos Descobrimentos. E,
de repente, a geografia
se
alargou, "o mapa do mundo
cresceu" com o apare-
cimento da
"ilha bem-
aventurada". Não importa
que jamais tivesse existido
porque existirá sempre.
Nenhuma literatura
semelhante — Platão antes,
Campanella depois, além
dos demais, grandes ou
pequenos, até nossos dias
—
significa inócua fantasia,
mero escapismo: pelo con-
trário, é inspiradora e
construtiva, pois traz o que
vale acima de tudo — a vida
bela, o homem feliz. E
quão
formosa é a ilha de Tomás
Morus na apresentação eru-
dita de Ivan Lins!
Geração do deserto
Só Guido Wilmar Sassi nos
poderia
dar, em termos de
ficção, o livro que estava
faltando em nossa
literatura: a
história, desde
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Brasileira — 1964)
reconstitui os episódios do
Contestado
num grande
mural. O estilo forte, sem
derramamentos, de Guido
Wilmar Sassi, e
sua
consumada capacidade de
tabulação — contam-nos a
história de esperança e
sangue, que durou quatro
anos. Sem, no entanto,
confundir causa com efeito e
apontando as verdadeiras
raízes do movimento, o que
torna este vigoroso
romance, do qual espero
que saiam filmes (*) e
ensaios — também
importante
obra de
interpretação.
(*) Anos após, o livro de
Sassi
inspirou o filme “A
Guerra dos pelados”.
Museu Guimarães Rosa
Ainda se encontra na faixa
do
sonho o que já poderia
estar se encaminhando para
uma realidade: a aquisição e
tombamento da casa onde
nasceu o gigante de
"Grande Sertão: Veredas"
e
sua transformação em
museu. Aliás, se venho falar
em tal assunto é porque
recebi uma honrosa carta
que me confere autoridade
para abordá-lo; mas,
aproveitando a deixa de
intermediária, quero
também falar por mim
mesma, como
simples
avaliadora do que o nome e
a obra do grande escritor
representam para
nossa
cultura e para nossa era.
A carta é do ministro Mellilo
Moreira de Mello, por três
laços unido a Guimarães
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Não foi Sir Alexander
Fleming quem os viu pela
primeira vez, a esses
cogumelos, cujas sementes,
ou
espórios, flutuam, em
quantidade, no ar. Eles
deviam datar do primeiro
laboratório de microbiologia.
Bastava o descuido de
deixar um tubo ou
balãozinho mal fechado,
para que os danados
cogumelos surgissem na
gelatina, na
gelose, no soro
sanguíneo, ou no caldo
contido neles, cobrindo (e
matando, como
se verificou
depois) as colônias de mi-
cróbios de diversas doenças,
que os
sábios ali isolavam e
cultivavam com infinito
cuidado.
Mas o que era o desespero
dos
microbiologistas
transformou-se, um dia, em
salvação, vida, saúde. Foi no
dia
abençoado em que Sir
Alexander Fleming explicou
o fenômeno e teve e
genialidade de extrair de
determinado gênero desses
cogumelos (o Penicillum
Notatum) uma substância
que, injetada no próprio
organismo vivo, combate,
nele, a proliferação de
certos micróbios. Estava
descoberta a penicilina e
aberto o caminho: era, daí
em diante, extrair dos
outros cogumelos que
matam
culturas microbianas
— o seu princípio ativo e
aplicá-lo. E, assim, após a
penicilina, foram surgindo a
estreptomicina, a au-
reomicina, a terramicina, a
cloromicetina, iniciando a
era dos antibióticos, graças
aos quais milhões de
seres
humanos têm sido salvos da
infecção e da morte.
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Esta nova era da ciência
médica
foi, pois, inaugurada
com a descoberta genial de
Fleming, o sábio que acaba
de
desaparecer e cujo
nome, imenso e curto salmo
de duas sílabas, toda a
humanidade devia saber de
cor.
Mundos de Aldous Huxley
O autor de "Admirável
Mundo
Novo" não só criou
uma técnica na
apresentação dos seus
romances como
também
criou mundos. Tendo surgido
na literatura universal entre
as duas
guerras, aquele
inglês alto que conheci
alguns anos antes de sua
morte, quando
visitou o PEN
Clube do Brasil, provocou
admirações desde
"Contraponto" — tanto pelo
aspecto formal como pelas
audaciosas
experiências,
pelo conteúdo. Pode-se
mesmo dizer que nenhum
ângulo da
inquietação
contemporânea escapou ao
autor de "Sem Olhos em
Gaza" e
deixou de estar
presente no universo
huxleyano.
Tendo, agora, sobre a mesa
dois
romances de Aldous
Huxley em novas edições,
ambos lançados pela
Civilização
Brasileira, o que
desejo nesta nota focalizar é
o portentoso forjador de
"novelas do futuro".
Peguemos o primeiro, "O
Macaco e a Essência", tra-
duzido e prefaciado por João
Guilherme Linke,
que muito
acertadamente o considera
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um sucessor de "Admirável
Mundo
Novo", e escrito
(1957) sob o impacto das
explosões de Hiroxima e
Nagasaki — e veremos que
nele o otimismo não
ancorou. A narrativa,
riquíssima
de aspectos,
adota uma técnica
cinematográfica — com
dissolvências, cortes, shots,
travellings, fundos musicais
e poéticos. A época: três
gerações depois
da Coisa (a
terceira guerra, que destrói
tudo, deixando um núcleo
poupado na
Nova Zelândia,
de onde partem novos
descobrimentos). No resto
devastado e
hediondo (a
ação é em Los Angeles) de
mentalidade simiesca,
instalou-se o reino
de Belial
entre seres geneticamente
deformados pelas radiações
atômicas,
cavando nos
cemitérios os bens que
podem achar da civilização
perdida. Mas o
pessimismo
do autor não é total,
surgindo o elemento de
libertação no encontro
do
doutor Poole, botanista
perdido da expedição de
Nova Zelândia, e Loola, a
moça de três seios de Los
Angeles devastada,
libertação que ocorre
quando ambos
entram na
"ordem das coisas" pelo
amor, fugindo ao reino de
Belial.
O outro volume (tradução
de Gisela
Brigitte Laub) é "A
Ilha", Pala. Pala, um reino
paradisíaco dos mares
do
sul, em que vive uma
sociedade fraterna e livre e
que recebe o náufrago Will
Farnaby, jornalista inglês,
diante de cujos olhos se
desdobram as perfeições do
viver ilhéu. Acontece,
porém, que a deslumbrante
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esquecerei a rosa da
montanha. Nem as aleias de
bambus com seus amplos
leques de sombra. As es-
cadas
de pedra, os córregos,
a estufa de plantas carní-
voras. Não esquecerei a
Lagoa
Frei Leandro, com
suas flores róseas subindo
dos aguapés deitados. Nem
o mais
alto jequitibá do
Jardim, nem as folhas do
velho pau-brasil, lembrando
graúdas
avencas. As árvores
da Amazônia e o cedro do
México. A palmeira moça
plantada
por Getúlio e a
palmeira plantada por D.
João VI. Nem, finalmente, o
pé de
jambo em plena
floração, que me esperava
em frente à Casa dos Pilões,
com a
surpresa das suas
alegres flores cor de aurora,
carregadas de néctar.
Em todo o trajeto, o
professor
Kuhlmann ensina.
Marcando plantas, vejo
placas com o seu nome
universalmente
conhecido.
Seu nome quer dizer quase
dez lustros dedicados à
Botânica
Sistemática. As
três vezes que atravessou
Mato Grosso as suas
pesquisas em mais
de trinta
tributários do Amazonas, os
seus estudos no vale do Rio
Doce. As
copiosas colheitas
que trouxe dessas viagens
de sábio e o labor de cada
dia
que, desde 1919, tem
desenvolvido no Jardim
Botânico. As suas numero-
sas
publicações, algumas
das quais constituíram a
contribuição brasileira ao
VIII
Congresso Internacional
de Botânica.
Na residência do naturalista,
tive
oportunidade de
apreciar as lembranças que
trouxe do conclave, do qual
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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira
foi um
dos presidentes. A
bela medalha de bronze e o
pergaminho que lhe
conferiram são
uma honra
para o Brasil, como o são as
separatas que levou para
aquele encontro
universal
de botanistas, contendo
estudos sobre famílias,
gêneros e espécies
novas de
vegetais brasileiros e
despertando o mais vivo
interesse entre os con-
gressistas
dos países
europeus, "onde não há
mais um musgo, uma alga,
um cogumelo que
não seja
conhecido".
Pele contra pele
Quem leu "Tempo de
Fiar",
livro de estreia de Myrtes
Campello — que, em
registro de 1965,
chamei de
livro maduro e que obteve o
Prêmio Cidade de Belo Ho-
rizonte daquele
ano — não
se surpreenderá com a
força, a solidez, o poder
criativo de "Pele
Contra
Pele", laureado com menção
honrosa no III Concurso
Nacional Walmap*.
A
temática, no entanto,
produzirá um impacto,
principalmente pelas
nuances
novas de que vem
carregada.
Há ficcionistas que podem
ser
dominados, arrastados
pelo personagem — e temos
lances e episódios de-
correntes
do temperamento
da criatura e que não esta-
vam antes na mente do
criador. Tal
não poderia
ocorrer com a romancista
Myrtes Campello. O edifício
deve estar
construído,
pronto o enredo, tudo
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Souza, e "Amor",
de Bertina
Lopes, ambas filhas de Mo-
çambique. O primeiro se
estende nas
páginas quarta
e quinta deste fabuloso
caderno amarelo (com letras
e ilustrações
negras) que
Margarida posteriormente
me ofertou e que mostra
como são os
poetas de
Lourenço Marques:
modernos na forma, no
conteúdo e na apresentação
gráfica.
O poema de Noêmia de
Souza, de
ritmos largos e
vigorosos, é uma evocação
da infância e dos seus "he-
terogêneos
companheiros":
"meninos negros e mulatos,
brancos e indianos,
filhos de mainape, do
padeiro,
do negro do bote, do
carpinteiro,
vindos da miséria do
Guachene
ou das casas CIO madeira
dos
pescadores,
meninos mimados do
posto".
Contém ricos e estranhos
elementos
folclóricos:
"Ah, meus companheiros
acocorados na roda
maravilhada
e boquiaberta do Karingana
wa
Karingana"
das histórias da cocuana do
Maputo
(*)
em crepúsculos negros e
terríveis
de tempestade
(o vento uivando no telhado
de
zinco,
e mar ameaçando derrubar
as
escadas de madeira da
varanda
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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira
e casuarinas gemendo,
gemendo,
acordando medos estranhos,
inexplicáveis
nas nossas almas cheias de
xitucumulucumbas
desdentadas
e reis Massingas virados
giboias
...)
Depois, a lembrança da lição
poderosa que lhe deram:
"Ensinaram-me que
"fraternidade" é um
sentimento belo
E possível,
mesmo quando as
epidermes e a
paisagem
circundante são tão
diferentes."
E eia, que começara
cantando:
"Quando eu nasci
na grande casa à beira-mar
/ era meio-dia e o sol
brilhava sobre o indico /"
transforma o final do seu
poema em fraterna e
corajosa mensagem:
"Por isso eu creio que um
dia
o sol voltará a brilhar,
calmo,
sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas,
doidas
de azul
e os pescadoras voltarão
cantando,
navegando sobre a tarde
tênue.
E este veneno de lua que a
dor me
injetou nas veias
em noites de tambor e
batuque
deixará para sempre de me
inquietar.
Um dia,
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lançamentos de escritores
catarinenses e de uma pro-
cura
incessante de autores
nacionais, pode-se dizer que
se realizou sob o signo da
juventude. Porquanto até
mesmo o busto de Ruy
Barbosa — deslocado
naquele ambiente
floral,
mas muito bem plantado
entre barracas de livros —
parecia revestir-se
de um
halo de permanência e
verdor.
Pinheiro preto
Para saudá-los, meus
paraninfados,
no dia em que
terminam o seu Curso
Ginasial, falarei de um
mútuo carinho e de
uma
dupla alegria. Realmente,
bem avalio a agradável
surpresa que vocês tiveram
ao saber que o nome de sua
Escola é o de alguém vivo,
atuante e que desejou
logo
estabelecer com mestres e
discípulos — laços que,
estou certa,
perdurarão.
Quanto a mim, fiquei
igualmente emocionada com
a homenagem que os
ex-
governadores Celso Ramos
e Ivo Silveira prestaram ao
magistério que exerci
na
capital do nosso Estado,
quando fui chamada de
jovem professora da
juventude, dando meu
nome a esse branco
educandário de Pinheiro
Preto. Tudo
isso forjou elos
caros e gestos
enternecedores, como o que
vocês tiveram agora:
convidar-me para madrinha
de sua festa de formatura.
Acreditem que muito me
sensibilizou a carta gentil
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principalmente
o sexual,
exigem contenção (e,
portanto, repressão) para
que sejam possíveis as
civilizações. Continuando a
sua interpretação, acha,
entretanto, Marcuse que
nestas existe mais-
repressão, a qual não
corresponde a uma
necessidade
de conservação
da estrutura social, mas a
uma vontade de domínio, a
uma tirania
que a torna
excessiva e odiosa.
Dispondo a civilização
moderna de uma tecnologia
cada vez mais adiantada e
permitindo mais produção
em menos tempo —
exigindo,
pois, menos
trabalho alienado e
deixando lazeres para o
prazer — pode
evoluir para
outro tipo, em que a
sociedade tenha bases não
repressivas.
Assim, o livro
palpitante de Marcuse
analisa o pensamento
freudiano aplicado à
nossa
civilização industrial, que,
segundo o pensador, é
irracional, embora
sob
forma racional. É contra
essa irracionalidade, que a
torna autodestrutiva
(domínio de Thanatos) que
o domínio de Eros se
insurge, exigindo outras
formas
de relações e de
vida.
(4-8-68)
Mães modernas
Não vou falar (como
cinema) a
respeito de "Le
Cas du Docteur Laurent",
filme francês que saiu do
cartaz há umas três
semanas e que bem merecia
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propício ao nevrótico, ao
psicopata.
O autor de "A Alma do
Homem" não só domina
completamente a densa
região do neuropsiquismo
como
é um mestre
habituado a transmitir os
seus conhecimentos. Não
pretendo
recapitular aqui as
coisas palpitantes que então
me disse o ensaísta de "A
Arte e a Neurose de João do
Rio" sobre os aspectos
modernos da terapêutica
psiquiátrica. Meu propósito é
reproduzir, tão somente, as
afirmações do
professor
Neves-Manta quando a
entrevista chegou ao
cotidiano da nossa
ex-
metrópole e, principalmen-
te, aos atropelamentos
verificados cada vez em
maior número nesta sempre
mui amada cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
Disse ele:
— O Rio de Janeiro é, sem
dúvida,
a cidade do mundo
em que se assinalam,
diariamente, mais atropela-
mentos por
veículos
motorizados. Examinem-se,
psiquiatricamente, os
motoristas apressados
e
examinem-se também os
transeuntes distraídos,
irritados e vociferantes — e
os resultados saltarão
estarrecedores. Muitos
motoristas serão, então,
afastados de suas funções e
inúmeros pedestres terão
que ser assistidos
psiquiatricamente. Esta a
realidade. Enquanto isso,
repetem-se os trágicos
acidentes de rua, as
discussões, os palavrões, os
gestos exaltados à beira das
calçadas e os crimes
passionais multiplicam-se
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assustadoramente.
Evidentemente,
o mundo
enlouquece e os psiquiatras
não chegam sequer para as
necessidades
domésticas.
História de Blumenau
Porque sou uma enraizada
("Santa Catarina, minha
terra, em que estou presa
como uma planta" e
"abraçada ao universo tendo
as raízes em ti" — disse eu
em discurso
e em poema)
admiro, respeito, aclamo os
que o são. Aponto, pois, no
registro de
hoje, o nome de
alguém que ama
estremecidamente o seu
berço; que o estuda com
uma obsessão de amoroso e
de erudito; que o devassa
desde as origens de sua
história; que traça a sua
evolução com a direiteza de
um geômetra e o expõe na
sua estupenda atualidade. É
ele o eminente historiador
José Ferreira da Silva.
Sua
mais recente obra e, ao
mesmo tempo, sua obra
máxima — é esta História
de
Blumenau, que ele acaba de
me enviar. Como envia,
periodicamente,
"Blumenau
em Cadernos", órgão
destinado ao estudo e
divulgação da
história de
Santa Catarina, e "O Leitor",
órgão da Biblioteca Púbica
Municipal Dr. Fritz Müller, de
que é diretor. Como enviou,
há pouco, a
"Cronografia do
Dr. Blumenau" e "Entre a
Enxada e o
Microscópio", em
que narra episódios da vida
de Fritz Müller, o colono e o
sábio a quem Darwin
chamou de "príncipe dos
observadores". Como, há
tantos anos, me ofereceu
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preparo
para a vida com a
mesma naturalidade de um
rapaz. Adquirir o "fluido
imponderável que nutre o
espírito e se chama cultura"
(segundo Rose Marie
Muraro, em vinte anos, a
partir da década de
cinquenta, o número de uni-
versitárias
cresceu dez
vezes no Brasil) e saber que
nasceu também para
exercer uma
profissão — tal
como o companheiro
homem. Poderá encontrar
contestações fora,
mas não
dentro de si mesma. Nova
mulher? Novíssima.
Cortes e súmulas
Os degraus do paraíso
Com a mesma estrutura
sólida de
"A Décima Noite" e
trazendo de novo a cidade
de São Luís com o sol
batendo nos azulejos, seus
ventos, sobrados e ladeiras
— Josué Montello
dá-nos,
agora, "Os Degraus do
Paraíso". E, como acontece
naquele
romance, desdobra
este uma tese inteiramente
nova. Creio mesmo que,
pela
primeira vez, os
conflitos entre protestantes
e católicos entraram na
ficção
brasileira, valorizada
ainda a temática pela narra-
tiva e testemunho do
extraordinário romancista.
Nestes dias ecumênicos, em
que vemos as igrejas
cristãs
buscarem a unidade,
principalmente os
moradores dos centros
maiores
devem espantar-se
com a violência daquelas
lutas entre os "crentes" e
os
seguidores da igreja de
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personalidade de Pedro I,
que assinava seus
artigos
com pseudônimos vários.
Eis alguns dos mais
pitorescos, usados pelo
nosso imperial colega: "O
Inimigo dos Marotos", "Sim-
plício
Maria das
Necessidades", "Sacristão
da Freguesia de São João de
Itaboraí", "O Anglomaníaco
e, por isso, Constitucional
Puro",
"O Espreita", "O
Derrete-Chumbo-a-Cacete".
Na selva de São Paulo
"Caminhou para a mãe com
a
solenidade de uma
gestante e fundiu-se no
abraço que lhe deu e derra-
mou-se
toda no orvalho das
lágrimas. Renascia depois
da longa noite e deixava o
continente do Nada".
No Teatro Santa Rosa, antes
do
encontro semanal
promovido pela Civilização
Brasileira, possivelmente o
de mais
conteúdo (seu tema
foi "Literatura e Realidade
Social"), Helena
Silveira
autografou "Na Selva de São
Paulo" (1966). É seu
primeiro
romance e nele
temos o retrato de uma
sociedade aparentemente
sem salvação, os
perso-
nagens mostrados no seu
exterior e dissecados nas
suas mais íntimas
reações,
as feridas, as deformidades,
as contradições, os
desesperos e,
sobretudo, a
dolorosa primazia do
negativo e do vazio. É a
"dolce
vita" em termos de
romance, captada e descrita
por alguém que, durante
quinze anos, foi a colunista
social da "Folha de São Pau-
lo" e que é
uma das
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melhores contistas
brasileiras.
Falando a um repórter, disse
Helena Silveira que de tal
forma acreditava num
mundo melhor para todos
que
"o via e quase o
tocava". Deve ser por isso
que, no "continente
do
Nada", de repente se abrem
veredas de ternura e
redenção. Há um clarão
de
esperança na caminhada
final de Sofia e seu encontro
com a figura materna
simboliza, de fato, um
renascer.
A dona da cantão
Fecharam-se aqueles
grandes olhos
verdes, extin-
guiu-se a voz melodiosa,
cessou aquela vida marcada
de beleza.
Mas a fonte que
ela era continua a cantar.
Tendo estreado ainda
adolescente,
foi logo
recebida como um poeta.
Um poeta que, mais tarde,
em
"Viagem" conquistaria
definitivo renome. Livres e
livros vieram — até
"Solombra" e "Ou Isto ou
Aquilo", os últimos — com
sua
poesia de renda e
música, fixando instantes e
mistérios da vida humana, o
inexorável, o efêmero, o
amor, o sonho, a solidão, a
morte.
A morte veio, mas a fonte
ficará
cantando com a sua
graça eterna e a consciência
que tinha Cecília Meireles do
próprio destino:
"Vou pelo braço da noite
levando tudo o que é meu:
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Um dos maiores
acontecimentos do
ano
editorial é a versão
brasileira de "Das Brot der
Frühen Jahre" de
Heinrich
Böll, Prêmio Nobel de 1972,
realizada pela Arte-nova. O
livro conta
uma estória de
amor, narrando o encontro
de dois jovens que se
haviam conhecido
na infân-
cia. Relato direto, na
primeira pessoa, mas tão
interiorizado que a
realidade
presente terá apenas a
dimensão de uma curta rua,
enquanto longos
caminhos
marcam as distâncias que a
lembrança percorreu. Linear
e denso,
simples e
carregado dos sumos do
cotidiano, "O Pão dos Anos
Jovens"
traz, na capa
expressiva, passos de par
entre sóbrios azuis.
(21-8-73)
Triângulo
"Não saberia dizer como,
nem
quando, mas, com sur-
presa, viu que a sua mão
pousava sobre a leve mão
de dedos
finos, como se
fossem mãos que se
houvessem procurado toda
a vida".
Chega "Balbino, Homem do
Mar", contendo, em segunda
edição, 21 contos de
Orígenes Lessa, um mestre
no gênero e um dos maiores
e mais fecundos escritores
brasileiros. Recentemente
laureado pelo PEN Clube do
Brasil com o Prêmio Luiza
Cláudio de Souza pelo seu
romance "O Evangelho de
Lázaro", que chegou em
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minucioso trabalho de
reconstituição histórica e
geográfica da viagem
empreendida, entre a
manhã de
14 de agosto e a
tarde de 07 de setembro de
1822, do Paço Real de São
Cristóvão
às decantadas
margens do (Ipiranga, pelo
príncipe D. Pedro e sua
guarda de
honra. No texto e
nos mapas, oriundos de
suas pesquisas e de sua
excepcional
capacidade, faz-
nos o autor ilustre
acompanhar a cavalgada de
que resultaria a
independência política do
Brasil. É trabalho, pois, para
saudar porque forjado
com
"sabedoria inexcedível",
como o diploma Pedro
Calmon no prefácio.
(Este livro obteve o Prêmio
Joaquim Nabuco, da
Academia Brasileira de
Letras.)
(17-9-72)
Nélida
Outro dia, em entrevista ao
"Jornal de Letras", sobre
problemas do escritor e
rumos da ficção
contemporânea, a
romancista Nélida Piñon,
cujos livros e !áureas se su-
cedem,
parecia falar não
apenas para a sua, mas
também para as gerações
em torno. Pelo
menos, eu
desejei que todos a lessem,
a ouvissem. Foi, por certo,
com o mesmo
tom objetivo
e lúcido que participou ela,
no mês passado, em Nova
York, do
Seminário de
Tradução e Literatura
Latino-Americana, ao lado
de altas figuras
do
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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira
continente. No encontro,
pronunciou Nélida uma
conferência denunciando
"o
isolamento do escritor
brasileiro dentro do boom
da literatura
latino-
americana", segundo
comunicação que acabo de
receber.
(29-7-74)
Menino Jorge de Lima
A segunda edição da
"Antologia Poética de Jorge
de Lima" (José Olympio —
1974) traz uma
seleção dos
vários livros do autor de "A
Túnica Inconsútil" — desde
"Poemas da Infância" até
"Invenção de Orfeu".
Jorge de Lima é poeta
maior, é
culminância. Dele
só diria que foi meu amigo e
me deu a honra de figurar, a
meu
lado, na "Coleção de
Poesia Moderna",
originalidade editorial de
Victor
Brumlik, ilustrando
ele mesmo os poemas do
seu caderno. Direi, no
entanto, algo
mais,
mostrando versos do
pequeno Jorge de Lima, que
bem denunciam o poeta
imenso que ele viria a ser.
Vejam, por exemplo, como
poetava Jorge aos sete
anos: "Eu queria saber
versos / como meu amigo
Lau. / Nunca vi versos mais
belos / como ele sabe lá. /
Trocava até meu carneiro /
meu velocípede sim / sem
saber os seus versos / meu
pai que será de mim? / Meu
pai me bote na escola /
de
meu velho amigo Lau. /
Quero aprender com ele /
versos e não b, a, bá!"
E,
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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira
debruçou-se enamorada
para elas,
descobrindo suas
fontes afro-europeias ou
suas firmes raízes
ameríndias e
vendo, em
todas, a presença do Brasil,
as características da raça.
Viu dançar
tribos selvagens,
leu a nossa história, estudou
o nosso folclore. E, ao mes-
mo
tempo que seu leve
corpo flexível ia ficando
senhor de todas as severas
regras
acadêmicas, a
dançarina-criança ia
estilizando e opulentando as
diversas
manifestações
coreográficas do nosso
povo.
Nascia a dança brasileira —
com
seu estranho colorido,
sua graça ardente, sua
magnífica unidade.
(Fragmento de uma
reportagem)
Teresinka
Filha de Minas Gerais, onde
publicou os seus primeiros
trabalhos, Teresinka Pereira
reside desde 1960 nos
Estados Unidos, onde
divulga incessantemente
livros e valores nossos.
Poeta,
contista, teatróloga,
jornalista, mestra, crítica e
ensaísta, a jovem
brasileira
se derrama pelo mundo em
vários gêneros e línguas,
porque traduzida
em vários
países. Por sua vez, ela
traduz, promove, congrega,
edita. É
atualmente
professora na Universidade
de Colorado e dirige a
revista
trimestral "Poema
Convidado" — mensagem
nova, texto de
confraternização — onde
aparecem (em português)
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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira
Mulheres no transplante
Falarei, em seguida, de
Aurora, a
doutora que se
distinguiu no primeiro
transplante de pâncreas
realizado no
mundo. Esposa
do médico que, no Hospital
Silvestre, chefiou a equipe
capaz de
tal feito, o Dr.
Édison Teixeira, Aurora
atuou como anestesista e,
pela
segurança do seu
trabalho, pela juvenil beleza
do seu rosto e, ainda, pelo
seu
prenome, ela significa
realmente uma aurora. E fa-
larei numa jovem mulher
morta: aquela de quem saiu
o pâncreas redivivo. Parece
que se chamava Helena e
morreu do coração. Que
todos gostavam dela, da sua
graça envolvente, da sua
simpatia irradiante — li
algures. Mas o que me
comoveu, sobretudo, foi
saber
que, durante os dias
em que esteve
hospitalizada, escrevia
versos. A moça
enterrada no
Caju, despojada da glândula
enorme que é função e vida
no corpo de
outro ser
humano, escrevia versos.
Como seriam eles?
Sombrios, líricos,
revoltados,
sublimados,
leves como papoulas ou
vincados pela asa da morte?
Um punhado de
sementes
que pretendeu jogar na
terra? Oh, eu gostaria de lê-
los e acho mesmo
que
devem ser conhecidos os
versos escritos in extremis
pela jovem
doadora que
entrou para a história dos
transplantes no Brasil.
9-6-68
Angra
& Reis
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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira
Conheci Brasil dos Reis — o
poeta
de Angra dos Reis,
que pôs a sua terra dentro
do próprio nome — num
congresso
de escritores,
realizado há muitos anos em
Porto Alegre. E tive uma
tremenda
admiração pelo
congressista maduro (e
seguro) que soube defender
com dignidade
e panache,
às vezes num tom magoado,
outras atrevido, a sua
esplêndida
tese sobre "A
Luta do Escritor no seu
Próprio Meio". Voltando à
sua
terra, nunca deixou de
me enviar notícias, versos e
"O Litoral", a
folha de Angra
que Reis dirige. Fui revê-lo
outro dia — quando, com
Alípio
Mendes, o conhecido
historiador angrense, veio
para uma tarde de
autógrafos na
Livraria São
José. Brasil dos Reis logo se
viu rodeado pelo carinho
que nem
sempre recebem
os poetas e os santos. Autor
de mais de vinte volumes de
poesia
impregnada dos ares
e húmus da Angra natal,
desde "Lugares Comuns"
(1923) até "Benedito Noite"
(1971) — ele autografou
para numerosos
amigos, em
que predominavam
personalidades fluminenses,
seus recentes
opúsculos:
Olhando os Astros, Desper-
tar, Na Rota do Infinito,
Súplica e Velho Convento.
Com uma palavra terna para
cada um e
sentindo que ali
estávamos principalmente
homenageando sua
fidelidade à terra
e à poesia,
o bravo ser humano, o
pássaro de Angra.
Puro sangue é best-seller
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Encontra-se quase
totalmente
esgotada e, em
consequência, marchando
para nova tiragem — a
segunda edição
atualizada
de "O Cavalo de Corrida", do
Prof. Dr. Octavio Dupont.
Verdadeiro tratado sobre a
criação, a patologia e a
terapêutica do Puro-Sangue,
o volumoso livro do cientista
belgo-brasileiro é
copiosamente ilustrado de
fotografias e vem prefaciado
pelo ilustre mestre Paulo
Dacorso Filho, que assim
define compêndio e autor:
"livro obrigatório para
quantos se dedicam à
clínica
especializada" e "o maior
clínico veterinário do Brasil
em
todos os tempos".
Telas espaciais
Ely Braga pertence a uma
família
de intelectuais, é
médico e pianista — e
pianista que chegou a
apresentar
inovações na sua
técnica de interpretação.
Mas o que importa agora é o
alto
pintor abstracionista e a
simpática figura humana,
que amanhã inaugurará,
com
suas novas telas, a
mais nova galeria de
Ipanema: a Real Galeria de
Arte.
Pintor merecidamente
louvado pelas suas mostras
vanguardistas, o artista
partiu
para outras pesquisas
e descobertas, atingindo em
seus quadros, numa espécie
de sintonização de todos os
seus dons, ao que ele
chama de "minha fase
superespacial". Pois são as
novas criações de Ely Braga
que amanhã
admiraremos
em noite de festa. Quanto a
mim, já estou pensando nos
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traços, nas
manchas, nos
cortes, nas cores que me
perturbarão — e nos novos
mundos em que
me vou
perder.
1970
A viúva branca
Neste Ano Internacional do
Livro —
que dará margem a
levantamentos, pesquisas,
balanços, trabalhos novos,
esperadas reedições —
impõe sua presença a edi-
ção comemorativa do 20º
aniversário do aparecimento
de "A Viúva Branca", de
Ascendino Leite.
Tal
promoção é uma iniciativa
da Livraria São José,
estando, pois, sob a égide
de Carlos Ribeiro. Este não é
só o "mercador-de-livros",
como gosta
de rotular-se,
nem apenas o amigo dos
livros e dos que os
escrevem, mas também
ele
próprio um escritor, como
prova, mais uma vez, com a
nota crítica em que
reafirma
o significado do romance de
Ascendino e sua
"inquestionável
importância
no quadro da moderna
ficção brasileira".
Assim é de fato, pois a
releitura
de "A Viúva
Branca" não nos traz nada
de ultrapassado ou
demitido.
Permanece o livro
com aquela aura de
renovação que nos comu-
nicou há quatro
lustros e
obriga-nos a reconhecer
todos os seus valores, dos
quais mencionarei
a alta
qualidade literária e a
originalidade no tratamento
do velho tema do
adultério.
Avulta, em suas páginas, a
"brancura lunar" do rosto de
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1973
"Sexo e vida social na
Suécia"
Este livro de Brigitta Linner,
lançado pela Editora Laudes,
lembra-me o capítulo "A
Mulher Sueca" de
um livro
de Álvaro Valle, que eu já
comentei. Ele soube apre-
sentar uma síntese
das
realidades que a grande
especialista sueca analisa
agora com o seu vasto
conhecimento de mestra e
médica. Registrando aqui o
aparecimento da obra,
quero
assinalar estes dois
aspectos: 1.0 — A eman-
cipação da mulher sueca
tem como
fundamento a
educação sexual, aliás
explicada no mais longo
capítulo do livro,
e não é
nem poderia ser algo de
solto, de excepcional,
porquanto faz parte do
contexto da existência do
grande país nórdico. 2.0 —
A autora, frequentemente,
se refere a falhas (e deve
havê-las). No entanto, como
seria bom que muito
adulto
intelectualizado que anda
por aí — conhecesse
anatomia como os pequenos
suecos!
"Não estamos sós"
Este apaixonante livro,
lançado
pela Editora Cultrix,
tem como subtítulo "a busca
de vida inteligente em
ou-
tros mundos" e é de autoria
de Walter Sullivan, editor de
Ciência do
"The New York
Times". No ângulo inferior
da capa, o esquema de
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grande
radiotelescópio
captando o mistério dourado
das galáxias. De lá
chegaram (e continuam)
as
pulsações no rádio — talvez
mensagens intencionais de
outros seres e
mundos. Nas
páginas de dentro, em
linguagem clara e acessível,
todos os conhecimentos
que
a Matemática, a Astronomia,
a Física e a Biologia
adquiriram sobre a
imensidade dos espaços. E a
conclusão sedutora a que já
chegaram Flammarion, as-
trônomo,
e Maeterlinck,
poeta: Não estamos sós
entre os bilhões de esferas e
nebulosas
nos universos
possíveis.
Neila dos muitos talentos
Neila Tavares, recém-
chegada de
uma viagem de
estudos pela Europa, além
de atriz de teatro, cinema e
televisão
e além de poeta
(sim, poeta) — é uma
estudiosa, uma
pesquisadora. Nas
"Notas do
Fim do Ano", publiquei carta
que me mandou de Roma e
agora,
com toda a sua
graça, mas também com
aquele tom sério com que
encara os
assuntos da
cultura, me diz — tão
radiosa e responsável — em
vários pontos da
nossa
palestra: "Viagem
proveitosa. Encontro
comigo. Distanciei um pouco
mais os meus horizontes. E
voltei com mais vontade
para o trabalho. O material
de pesquisa sobre Brecht,
de que falei na carta, me
será enviado pelo correio.
Enquanto espero os
recursos audiovisuais, vou
trabalhando o texto. De
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volta, revi
também o
material da minha pesquisa
bibliográfica sobre Di
Cavalcanti. É um
trabalho
que desejo publicar. Tenho
ainda outros (uma pesquisa
sobre
literatura de cordel,
outra sobre as origens do
teatro brasileiro) que vou
tentar desengavetar agora.
Imagine: além de todos os
novos planos, ainda
resolvi
desentocar os velhos. Já viu
a força com que voltei?"
27-3-72
Tempo
permitido
"A mim me pertence o meu
tempo permitido. Aquele
que me foi dado."
Parece que Lausimar Laus
pôs a
funcionar todos os
dons revelados em outros
gêneros e searas — para es-
crever
seu primeiro
romance. Para fixar
vivências, relembranças,
confidências (e
inconfidências), vida fluindo
num "campus" de
estudantes em Madrid e
estendendo-se em viagens
(de "auto-stop" ou não).
Luisa, a figura central,
é
madura, lúcida, equilibrada.
Ela e os demais per-
sonagens põem no livro a
marca do testemunho. Do
testemunho do nosso
tempo, tornando o romance
digno de
ser estudado por
muitos ângulos. O passado,
por exemplo, vem à tona
através da
evocação
permanente de Celina, filha
do sul, compondo uma
interpretação
altamente
valiosa de aspectos da
comunidade alemã de Santa
Catarina. Aliás, o
tempo,
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Edifício
Aldebaran, foi um
acontecimento na
"cidadezinha azul" de
Haydée
Nicolussi (hoje a
grande Vitória) e nela estive
representada pela escultora
Ely, a dos belos anjos
barrocos.
1974
As fadas de Ruth
Ruth Bueno, autora que
acompanho
desde sua
estreia ("Diário das
Máscaras"), que tem
algumas páginas
que
lembram Joyce
("Corredeira"), inovações e
audácias em
"Encontro
Antecipado" — está
publicando, pela Record, "As
Fadas
da Árvore Iluminada".
Ninguém pense que o
voltar-se para os pequenos
leitores significa escrever
brincando, arte menor.
Trata-se de seara difícil,
que
muitos cultivam e onde
poucos logram colher um
êxito perdurável. Mas
"Ruth
Bueno fez obra de fada,
pondo uma luz importante
na árvore da nossa
literatura infanto-juvenil
original" — como escreveu
Antônio Houaiss.
Um pioneiro
O suplemento literário de "O
Estado de São Paulo", de 25
de novembro de 1973,
publicou o conto
"Bocó-de-
Mola", de Valdomiro Silveira,
em homenagem ao cen-
tenário
do iniciador da
literatura regionalista no
Brasil, ocorrido a 11 daquele
mês e
ano. Havia uma nota
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um homem em pranto e em
pânico. Foi
transportado
como uma criança para a
cama do casal, tomou
calmante, veio
médico. E o
bravo senhor quase morreu.
— Jesus! Mas será que eles
adoravam aquela coe-
xistência noturna? Por que
não se mudavam?
— Diziam que... Oh, chegou
a luz.
Tenho que ir. Muito e
muito obrigada.
— Não. Sou eu quem
agradece, pois
acabo de ga-
nhar o melhor castelo
inglês.
A herança
A moça ouviu a voz do
irmão
perguntando por ela.
Deixou a máquina e
caminhou até à porta, o
lindo rosto
quase aflito, uma
pergunta lhe rasgando ainda
mais os olhos. Nada! Apenas
ele
fora levar um cabograma
e o funcionário do Tribunal
lhe entregara a papeleta
que
trazia na mão, dizendo-lhe
que havia uma comunicação
urgente a fazer à
locatária
do endereço ali consignado.
Achava que era alguma
coisa boa, porque o
homem
sorria com ar de mistério.
Viera, então, buscá-la para
irem até lá.
O homem sorria com ar de
mistério?
Realmente só
poderia ser algo bom. Eram
gente pacata: só iam à
igreja, à escola
dominical,
raramente a um cinema e a
uma festa familiar. Gente
muito nova, a
mãe com
menos de quarenta anos,
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a sobrevivência individual e
acreditasse, apenas, na
imortalidade cósmica, a
realidade da consciência
humana o deixava, por
vezes, perturbado.
— Mas o cão, por exemplo
—
contraditou um cientista
que conhece profundamente
os animais — também
possui
consciência.
A conversa prosseguiu, mas
daí em
diante o meu
pensamento se voltou
inteiro para Silk.
Contarei, nesta altura, que
um par
desajustado foi
passar o verão numa ilha. A
mãe e o irmão mais novo da
jovem,
belo garoto de nove
anos, acompanhavam o
casal. E havia, ainda, Silk, o
lindo palie
que um amigo da
família emprestara para
participar do veraneio.
Os cinco se instalaram numa
casa
rodeada de verdes
varandas, tendo à frente um
grande plátano, salgueiros,
bambuzais. E o rio. O
plátano, ao cair da tarde,
virava árvore de lenda: as
folhas ficavam todas cor de
ouro. Era um cenário
edênico, mas no peito da
moça
havia amargor e
desencanto. Pés nus,
cabelos soltos, refugiava-se
na leitura. O
lar era um
destroço; não sabia como
resolver o problema do seu
coração logrado
e, no
entanto, devorava livros
sérios e profundos,
buscando soluções para os
problemas da humanidade.
De vez em quando,
interrompia a leitura para
olhar o
irmãozinho que
passava remando no seu
pequeno caíque. Temia os
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peraus e
chamava o
menino. Este colhia nos
aguapés uma flor roxa, ia
entregá-la gentilmente
à
irmã, afirmava que não
havia perigo e voltava ao
seu passeio. Pois o rio era
o
seu refúgio. Sentia o
ambiente carregado da casa
e procurava a beleza e a
alegria das águas que
atravessava no seu caíque
Rosa e das quais gostava de
arrancar dúzias de lambaris
de prata. E nenhum dos dois
se preocupava com
Silk.
Quanto ao homem, o seu
primeiro
cuidado foi cortar
as bastas meadas de cetim
branco que revestiam o ani-
mal.
Não havia dúvida de
que procurava vingar-se dos
seus fracassos, torturando
aquele ser inerme, que se
tornara minguado e
tristonho, parecendo um
cordeirinho pronto para o
sacrifício. Às vezes batia em
Silk e, aos domingos,
comprazia-se em levá-lo
para o banho no rio. Depois
do mergulho cruel, Silk
emergia, sacudindo as
patinhas, quase morrendo
de aflição e de susto.
Ele encontrara, porém, um
anjo: a
senhora. Esta vinha
logo buscá-lo, enxugava-o,
afagava-o. Era a única
pessoa
que lhe fazia
carinhos. Matava-lhe a fome
e a sede, cuidava do seu
sono e da
sua saúde. E,
quando ia à cidade — ele,
que tanto temia o rio, de
onde vinha o
seu maior
sofrimento, postava-se à
sua margem horas e horas,
até o desejado
regresso da
amiga.
Findo o veraneio, o cão foi
entregue ao dono e, algum
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pitangas na terra de
ninguém!
— Isso para mim soa como
lenda,
para mim que morei
sempre em apartamento.
— Certo. E como poderia eu
conformar-me, morando
também agora em
apartamento e tendo apenas
de meu o
escasso jardim
coletivo do edifício? A
princípio, tentei plantas em
vaso, mas
todas morriam,
exceto as batatas. Então,
comprei esta grande jarra
vermelha com
desenhos de
floresta, armei-a no tripé e
dei início à minha cantoneira
vegetal. O antúrio trepador
na sua ascensão pela
parede — foi o começo.
Vieram
as plantas com-
panheiras. (Só compro as
que me parecem naturais).
Os jasmins,
sozinhos, não
valem muito, mas, caindo
do coquetel do jarro, veja!
— Um encanto.
— Quanto às orquídeas,
"orquídeas silvestres", foram
um presente querido.
Intercalei-as nas
sombras e
nos verdes e o efeito é
realmente deslumbrante.
Enterrei, depois, uma
batata
com brotos, de que resultou
este lindo emaranhado.
Botei dois jarros
aqui no alto
da parede, de onde
trepadeiras descem, suas
folhas se enroscando,
como
está vendo, nas dos
antúrios. Molho-as
diariamente — e é como se
todas
sentissem o contato
da água. Com a terra úmida
e as folhas e flores
orvalhadas
e brilhantes,
todo o conjunto parece vivo
e a ilusão é tal que chego a
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esquecer
os meus quintais
perdidos...
O drama do tempo
— Acho que devíamos
prestar mais
atenção a cer-
tos pormenores ligados à
passagem inelutável do
tempo. Ora, este
passa,
deixando marcas em nosso
corpo e em nossa alma.
— Ou nós é que passamos?
— O fato é que, apesar de
todas as
atribulações con-
temporâneas e desta
sensação de instabilidade
que experimentamos
cada
vez com mais força em
nossos dias, muitas vezes
aquelas marcas não marcam
fundo ou o fazem
lentamente. Em
consequência, a idade
cronológica da criatura
assim privilegiada é maior
do que a idade do seu rosto,
do seu corpo, dos seus
olhos, dos seus cabelos.
— Belo, não é mesmo?
— Não, porém, para alguns
amigos
e, principalmente,
para algumas amigas, que
se irritam terrivelmente com
tal
constatação. Quer um
exemplo? Não é que, nesta
cidade grande, vieram
morar, no
mesmo bairro em
que moro, duas amigas de
infância, nascidas, criadas e
casadas
como eu na mesma
cidadezinha do interior?
Para comemorar o encontro,
convidei-as para uma
reunião em minha casa. Elas
vieram, trazendo os seus
trabalhos de agulha, para
dar uns pontos depois do
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morto
e na morte, começou
a gritar que era do samba.
Não era tarde, não. O fim do
outono parecia o começo da
primavera e alguém
chegaria ainda, vindo não se
sabe
de onde, entre
confetes e serpentinas, em
busca da dançarina azul.
É verdade que ele está
tardando.
Não faz mal. A
esperança é bela. Mais uma
volta pelo salão. Quem
sabe?
Quem sabe sabe
Conhece bem
Como é gostoso
Gostar de alguém.
No entanto, o alguém não
chega.
Agora, quem chega é
a borboleta real abrindo, na
passarela, as grandes asas
resplandecentes. Depois, é a
madrugada, fechando o
baile. Então, a pobre jeune-
fille
desperta e anuncia,
envergonhada, que vai para
casa chorar o morto (o mor-
to?) a
quem não conseguia
esquecer nem mesmo
naquele turbilhão.
O fidalgo
Quando tenho notícia de
marido
sustentado pela
mulher — sem ser por
involuntário desemprego,
doença ou outro
motivo
justo, está claro — lembro o
arrogante senhor Antônio
Maria Valentim de
Aguilar.
Diziam que descendia de
grandes da Espanha e
possuíra fabulosa fortuna.
Esta, no entanto, fora toda
por água abaixo e dela só
restava aquela imensa
casa
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todos chamavam de
mansão, os parentes que
não tardariam a chegar.
Teria prazer em acolhê-los,
mas teria prazer em acolher
o casal, pois a sua casa es-
tava habituada a só receber
adultos. Quando alguma
de
suas amigas tinha a infeliz
ideia de vir acompanhada de
uma criança, por
ocasião de
uma visita, ela sentia que
acontecera algo como uma
subversão da
ordem. A
criança pretendia
monopolizar as atenções,
queria mimos, chorava,
deixava cair farelos de bolo
no tapete persa, derramava
chocolate na toalha de
linho.
Que ia fazer? Se dissesse
alguma coisa, a mãe da
criança jamais perdoaria.
Tinha até de achar bonito
aquilo tudo e sorrir para o
pequeno revolucionário. O
marido, então, era como se
tivesse alergia aos visitantes
mirins, esses
vândalos. Fora
bom mesmo não terem tido
filhos. A vida podia ser
aquele céu
aberto: viagens,
boates, recepções.
E, no entanto, agora vão
chegar
aquelas crianças.
Nossa! Podiam até ser causa
de um desquite, ela como a
parte
culpada pois eram
parentes seus. O que pode-
ria fazer era não
negligenciar e ir
procurando,
desde já, um apartamento,
a fim de abreviar a desgraça
e permanecerem
em sua
casa, no máximo alguns
dias, os hóspedes
indesejáveis.
Mas quem sonhara com tal
milagre?
Não é que a
menina, com cinco anos,
lindo rostinho oval, louros
cabelos
crespos, estendeu
logo os braços ao saltar no
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possível que
aquela gente
sem entranhas tinha mesmo
coragem de lhes arrebatar
as crianças?
Por que os pais
não iam sozinhos? Por quê?
O sonho e a realidade
Seria maio? Só lembro
aquele
tamanho de lua
cheia, aquele
deslumbramento que tomou
conta de mim no instante
em que eu ia atravessar a
rua. Detive-me a con-
templar a maravilha
suspensa,
buscando a
imagem adequada para o
decantado "astro da noite"
naquele
momento. Ah, não
seria um redondo pão
luminoso e inacessível?
(Inacessível,
pois a lua
ainda não recebera a rosa e
a visita do homem).
Acontece, porém, que eu
tinha uma
bolsa na mão,
com dinheiro, chaves,
documentos, pedaços de
poesia e prosa,
objetos de
vaidade feminina. A grande
lua de ouro encravada no
céu do Leblon,
tão inteira,
tão bela, me fez esquecer
aquela realidade, pelo que
aconselho, hoje,
às minhas
amigas: quando virem a lua,
agarrem a bolsa. Pois quem
agarrou a
minha foi um
rapaz que passava de
bicicleta. Devia ser um
entregador e o
apossar-se
do alheio — penso que só,
utilizava como biscate.
Aproveitava as
oportunidades e aquela era
excelente: uma gorda bolsa
de verniz preto, insegura
sem dúvida, na mão de uma
dona que olhava bobamente
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porém jamais
correspondera. Um íntimo
de sua casa, apaixonado
sem esperanças,
quando,
um dia, ela falava na doce
figura de Soeur Desirée-
des-Anges,
do livro de
Marguerite Audoux, chegara
a dizer-lhe: pois você é a
desirée-des-hommes.
Dedicava uma afeição
profunda ao marido e sentia
a sua vida tranquila, sólida,
realizada. A pena que
carregara até então era a de
não ter filhos.
Agora, a mudança, o
tumulto. O
fascínio do
primeiro encontro ao
descerem do ônibus: a
magia da voz
insistente, a
quase promessa que ela
murmurou na despedida.
Parecia a dama
misteriosa:
era apenas uma mulher
assustada com o que
acontecera e decidida a
pôr
um ponto final na aventura.
Mas, no fundo da bolsa, lá
estava o cartão
dele, em
quem ela começou a pensar
dia e noite.
E telefonou-lhe. No segundo
encontro, estavam ainda
mais fortemente atraídos
um pelo outro. E aí termina
o
romance. Ela não diz por
que.
Começa a história do seu
grande
amor unilateral e
obsediante, feito de paixão
e de saudade. "É impossível
sentir uma saudade maior
de alguém que está vivo". A
perder o interesse
pelas
coisas que a encantavam
antes, a achar que, quando
o conheceu, foi que
despertou. "Oh, eu queria
conhecê-lo assim: ele, como
é agora e eu com a
juventude radiosa que tinha
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compras no
mesmo balcão e
ouvira as minhas palavras e
as do vendedor. Desatou,
então, a
sua terrível teoria
contra o amável processo de
dar presentes:
— E por isso, minha
senhora, que
sou contra os
presentes. A senhora está
tendo um trabalhão com o
presente que
lhe deram e,
como essa história não
existe só de um lado, a
senhora, por sua
vez, teve
de retribuir. De modo que se
trata é de uma simples
troca. E, talvez,
a esta hora,
o presente que a senhora
deu esteja tendo o mesmo
destino dessa
pobre caixa
de pó de arroz. Quer saber?
Eu não dou nem recebo
presentes, exceto
quando se
trata de pessoas da família.
Assim mesmo, às vezes é
para me
aborrecer, como é o
caso da gravata que estou
usando. Deu-ma uma
sobrinha, que
a acha linda e
pede que eu a use. E, com
esta idade, estou fazendo
um triste
papel: usar esta
gravata espalhafatosa.
Mirei-a então, pensando que
ia
encontrar, talvez, o galo
de Portinari ou — quem
sabe? — cavalinhos de cor-
rida
ou glamorosas em
biquíni. Nada disso: o que vi
foram elipses de cor grená
entrelaçadas sobre um
severo fundo marrom. E a
torrente continuou:
— Agora, quanto ao seu
caso, vou
dar-lhe um conse-
lho, minha senhora.
Ninguém vai aceitar a sua
caixa de pó de arroz
e dar-
lhe outra com a cor que a
senhora usa. Ora, repito,
como essa história de
presentes não passa mesmo
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grande dama,
Romana da
Conceição.
Minhas avós
Mal conheci minha bisavó
Maria
Inês, a quem sempre
chamei de avó da Praia de
Fora, pois era naquele bairro
florianopolitano que tinha
ela a sua mansão. Dirigida
já então pelas netas que
criara, primas-irmãs de
minha mãe. Fora uma
matriarca, cuja autoridade
não se
discutia, mas que
não se manifestava, no
entanto, senão por meios
sutis. Lembro
suas batas
brancas, suas feições
eclesiásticas, seus olhos
fechados pelas
cataratas. E
quando acariciava minha
mão e, nela segura, me
levava para os
manjares de
sua mesa.
Angélica, a avó que tinha
nome de
flor, morreu aos
vinte e poucos anos. Meu
pai jamais a esqueceu. Além
de a
idolatrar, aquela morte
arrebatou-lhe a infância.
Certo dia — andava eu pelos
treze anos — o surpreendi
me fixando imensamente
comovido. Ao ver meu rosto
interrogativo, disse logo: Eu
estou achando minha filha
muito parecida com a
mãe
do papai. (Era como a
denominávamos). Carrego,
pois, Angélica, a avó que
tinha nome de flor.
Mas eis vovó, a que sempre
assim
foi chamada e que era
mais doce que os sumos do
seu pomar biguaçuense.
Filha de
donos de escravos,
donos cruéis, tinha o apelido
de Yayá e os negros a
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chamavam
de anjo. Que
anjo ela foi sempre. Nunca
admitiu a violência e era
toda mansuetude
e perdão.
Conheci-a ainda com fios de
ouro nos cabelos e os
grandes olhos azuis
na
plenitude do outono.
(Aqueles olhos que tanto
choraram). Viu morrer tísico
o
amado marido de trinta e
sete anos, enviuvou grávida
e criou os filhos em
Florianópolis e depois em
Biguaçu. Quando
missionários americanos
estiveram por
lá, foi um dos
que se converteram ao
protestantismo. E membro
da Igreja
Presbiteriana
permaneceu até morrer,
indo aos cultos sempre de
preto, chapéu e
saltos altos,
mui cuidada sempre, dando
a todos uma agradável
impressão de
trato e finura.
Lia a Bíblia todos os dias e
quando eu, que entre
aqueles
versículos me criei,
mas que cedo comecei a
rebelar-me, quando eu lhe
dizia
qualquer palavra
irreligiosa, sua máxima
reação era olhar-me com
aquelas puras
safiras
atravessadas, exclamando:
ô Maura!
Sofreu tremendos golpes
vendo
morrer filhos e netos,
mas a lâmpada de sua fé
jamais deixou de arder. ("O
Senhor o deu, o Senhor o
tirou. Bendito seja o nome
do Senhor".) Fazia
tudo com
perfeição e milagres fazia
com sua pequenina renda
para nos alegrar.
Nunca
esquecerei minha aflição
adolescente por não ter
vestido novo para dizer
meu
discurso de oradora da
turma na cerimônia de
formatura da Escola Normal.
Foi quando uma fada
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da mulher um objeto
importante para dele se
ocuparem
com a
circunspecção que merece."
Em outro painel, fotografias
e
legendas sobre o berço e o
túmulo. Papari (hoje Nísia
Floresta), onde nasceu
em
1810 e onde residiu até
1829. Era no coração de
Papari que se localizava o
sítio natal, denominado
Floresta, que "infelicidades
de família e o
vendaval das
revoluções fizeram decair e
soçobrar", mas que, em
verdade,
não soçobrou,
porque subsiste no grande
nome de Nísia Floresta
Brasileira
Augusta. Ainda em
Papari, uma fotografia do
monumento inaugurado em
1909 e para
onde serão
trasladados os restes
mortais da escritora. Depois,
Rouen, onde faleceu
em
1885. O túmulo em
Bonsecours e um trabalho
vigoroso de Pissarro,
mostrando a
fisionomia de
Rouen no fim do século.
Mais abaixo, o mostruário
de obras
sobre Nísia, entre
as quais as de Oliveira Lima,
Roberto Seidl, Joaquim Grilo
e a "História de Nísia
Floresta", de Adauto da
Câmara. Veem-se,
ainda,
um opúsculo contendo as
cartas trocadas entre
Augusto Comte e
"Madame
Nísia Brasileira"; uma
antologia de poetas
potiguares
exibindo um
poema de Nísia, traduzido
por Palmira Wanderley, e um
exemplar da
primeira edição
de "Trois Ans en Italie", uma
das obras de sua
bibliografia, publicada na
Inglaterra em 1864.
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Finalmente, o álbum
suspenso, o
painel dos
retratos: Nísia e sua filha
Lívia, em 1851; retrato de
1870; retrato
de 1831 (o
oficial); Lívia; Augusto
Américo de Faria Rocha, o
filho de Nísia,
diretor do
Colégio Augusto, fundado
(em Porto Alegre e, mais
tarde, no Rio de
Janeiro)
pela educadora que superou
o seu tempo e por ela
dirigido até sua
mudança
para a Europa; professor e
advogado Joaquim Pinto
Brasil, seu irmão; e
os
grandes devotos de Nísia os
intelectuais norte-rio-
grandenses O. R. Dantas,
saudoso diretor do "Diário
da Notícias", Adauto da Câ-
mara e Henrique
Castriciano. Este, irmão da
poetisa Auta de Souza foi
quem em 1908, iniciou o
trabalho de pesquisas sobre
Nísia Floresta e, três anos
mais tarde, criou, em
Natal,
a Escola Doméstica,
concretizando, assim, um
dos pontos altos da
pregação da educadora.
Todas estas preciosas coisas
continuam expostas na
associação potiguar, que
tem a profunda marca da
terra e
é presidida pelo Dr.
Marciano Freire. Lá se veem
os retrates de Amaro
Cavalcanti, Padre João
Maria, Augusto Severo;
mapas do Estado e a planta
de
Natal; um enorme painel
mostrando o sertão — o
gado, a vegetação, os
açudes, o
cenário das secas
— e o litoral com a riqueza
das salinas e da pescaria: a
vasta biblioteca sobre a
gente e a terra potiguares;
mostruários, gráficos,
indicações estatísticas,
óleos, fotografias, os nomes
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Guarda, então, o labor a
próvida
rendeira
e, ao badalar o sino, ao
longe, a
Ave Maria,
persigna-se, sacando as
contas da
algibeira."
Lou Andreas-Salomé
Devo a Eno Stein Ferreira,
médico
ilustre e uma das
maiores culturas ecléticas
que conheço, a leitura de
"Ma
Soeur, Mon Épouse",
tradução (com o selo da
Gallimard) do texto inglês
de
H. F. Peters. Contém o
volume a biografia — desde
seu nascimento na Rússia
dos
czares, em 1861, até
sua morte na Alemanha de
Hitler, em 1937 — de uma
das
mulheres mais
importantes de todos os
tempos: Lou Andreas-
Salomé. Desejo
frisar que
nasceu ela quinze anos
antes da morte de George
Sand e, como a
genial
amante de Chopin, Musset,
Jules Sandeau, foi também
Lou amada por
homens de
extraordinária celebração,
entre os quais Friedrich
Nietzsche, Paul
Rée, Rainer
Maria Rilke. E não pode
deixar de ser mencionado o
nome do sábio
que foi seu
marido, mas que jamais
partilhou seu leito: Friedrich
Karl
Andreas.
Foi no livro em apreço que
pude
compreender a mo-
tivação daquela pergunta e
daquela resposta em "Assim
Falou Zaratustra": "Ides ver
as mulheres? Não esqueçais
o
látego". É que, na
estranha fotografia
reproduzida no volume, em
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que Lou
aparece com
Nietzsche e Paul Rée —
estes atrelados a uma
carreta — é ela quem
empunha o látego. (Com a
face mais doce e feminina
do mundo, acrescente-se).
Formavam então a "santa
trindade", logo transformada
em duo, pois a
nossa
biografada e Paul Rée
começaram a viver juntos
(como irmãos, a despeito
do
amor sempre esperançoso
do parceiro) até o
aparecimento de Andreas.
Quanto
a Nietzsche, que a
considerava "a mais
inteligente das mulheres",
nunca se conformou em não
corresponder a jovem russa
à sua paixão. Escreveria,
depois, o Zaratustra. E Lou
Salomé — vários estudos e
todo um livro sobre o
filósofo.
Parece, no entanto, que foi
Rainer
Maria Rilke quem
afinal, em 1897, a
despertou para o amor.
Aliás, o fragmento
que
sobreviveu de um dos
poemas a ela dedicados, em
que a chama de "minha
brisa de primavera", "minha
chuva de verão", "minha
noite
de junho", não deixa
dúvida. Pois nele há aquele
sutil detalhe revelador:
...Que nul initié n'a jamais
foulés encore: / je suis en
toi.
A obra de Lou Andreas-
Salomé
compreende, além
de mais de cem artigos-
ensaios, vinte volumes, em
que se
incluem os três
publicados após sua morte
por Ernst Pfeiffer, a quem a
admirável mulher legou seus
manuscritos: Memórias,
Correspondência
Rilke-
Salomé e Na Escola de
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(*) Pela primeira vez é a
pensadora traduzida no
Brasil: a Imago Editora está
lançando (1975) "Freud
/
Lou Andreas-Salomé"
(Correspondência
Completa).
As mil e uma noites
Minha mãe foi uma
Sheherazade.
Tinha ela o
dom de inventar atraentes
enredos, que deveriam ter
sido coligidos
e onde
apareciam bichos e plantas,
pessoas e símbolos, suas
geniais criações
de Anabela
e Micaela, suas fadas boas e
más, a realidade e a
fantasia numa
sábia
combinação. Além da
capacidade de transmitir as
coisas mais vivas do
nosso
folclore, incluindo jogos e
cantigas, e de narrar como
ninguém os contos
de
Grimm, Andersen, Perrault,
deixando os pequenos
ouvintes presos ao fascínio
da voz e do gesto e, ainda,
ao movimento dos rasgados
e lindíssimos olhos.
Minha
mãe foi uma Sheherazade.
A magia do Oriente, no
entanto,
quem a trouxe para
meu coração, para nossa
casa, voando no "cavalo en-
cantado"
por todos aqueles
misteriosos reinos da
vertente do índico, foi a
italiana
Felícia. Cozinheira,
pajem, acompanhante,
enfermeira, amiga, era
sobretudo
amada pelas
maravilhas que nos servia
com os pinhões cozidos nas
geladas noites
ilhoas.
Pequena, grisalha, forte,
uma alegria irônica nos
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olhos claros, as
faces
lembrando maçãs maduras,
dizia-se filha de conde,
roubada por ciganos —
e
tinha logo início um desfiar
de aventuras (e des-
venturas) que mais deviam
pertencer ao baú das suas
fantasias. Quanto às
histórias que nos contava,
eram
quase todas saídas de
"as mil e uma noites". Os
nomes dos
personagens,
segundo verifiquei mais
tarde, bem como os dos
lugares onde se
desenrolavam os episódios
— chegavam sempre
intatos. Mas oh, a narrativa
era
frequentemente
enriquecida com os toques e
suspenses da sua fabulosa
co-autoria.
O volume intitulado "Joias
das 1001 Noites" é que me
fez abrir todo este leque de
recordações. Joias
en-
cerradas em bela capa azul
e ouro, revestida de uma
outra, móvel e
ilustrada,
assim como o texto, com os
quadros e as cores do pintor
polonês
Janusz Grabianski.
O sinete é o da
Melhoramentos e, entre os
contos apresentados,
estão
os três mais famosos:
Sindbad, o Marujo, Aladim e
a Lâmpada
Maravilhosa e
Ali-Babá e os Quarenta
Ladrões. É a seleção
precedida
de uma síntese da
gênese de todo o fabulário:
Sheherazade, filha do grão-
vizir
e casada com o sultão,
desenrola os seus novelos
de contos na noite de
núpcias,
com os fios
mágicos prende o bárbaro e
real senhor, para pela
madrugada no momento
mais empolgante (assim
escapa de morrer naquele
dia, como vinha
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acontecendo com
as suas
antecessoras, rainhas de
uma só noite, desde que
descoberta fora a
infidelidade da primeira
sultana) e continua na noite
seguinte — e assim vai
até
completar as mil e uma.
Se tal foi o preço com que
salvou
a vida e conseguiu
amor e glória, os contos
portentosos da rainha
Sheherazade
não apenas
arrebataram o sultão, seu
marido, mas a todo o
universo. Neles,
"espíritos e
gênios intervêm no destino
de príncipes e reis, de
mercadores
e mendigos, e
sempre a sua força mágica
se anula diante de um puro
e inocente
coração". Contos
que, afinal, têm um ou mais
autores e onde mesmo
estão
fincadas as suas raí-
zes? A essas indagações
responde Almeida Cousin
quando,
no seu curso de
História da Literatura (que
ministrou na Escola de
Serviço
Público do DASP e
publicará em livro), ensina:
"... englobam, em formas
arábicas, histórias e lendas
da Babilônia, Pérsia,
Turquestão, Índia, China,
Egito e até Grécia e mundo
clássico".
Outro ponto importante é a
fonte
de inspiração que elas
significam. Fonte que tem
jorrado belezas e, entre
elas,
os últimos versos —
dedicados à esposa e musa
Walkyria — de Jorge Salis
Goulart, alto poeta e pensa-
dor gaúcho, desaparecido na
década de 30:
Conta-me histórias lindas,
Sheherazade,
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movem, mas
a figura central
é uma velha camponesa
analfabeta e sábia,
Magdalena Novotná,
sua avó
materna. Dona de segredos,
rica de dons, pura, jovial e
terna, sabia
amar e
entender o semelhante,
atrair o bem-querer da
comunidade, cumprir com
humilde grandeza o difícil
exercício de viver.
"A Avó", descrevendo os
costumes de toda uma re-
gião através de uma série
de quadros que pingam vida
e
poesia, apresenta
inúmeras facetas para
serem estudadas: os
profusos diálogos,
a vida
familiar, as peregrinações,
as visitas, a exuberante
flora, as estórias
de amor,
as danças, as lendas, as
bodas, as múltiplas
intervenções da avó para
as
soluções felizes dentro e
fora do clã e tantas outras,
entre as quais a que
me
parece tudo representar: as
festas, não as singulares,
mas as coletivas e
periódicas.
Elas intercalam-se por todo
o
volume e, reunidas, po-
deriam oferecer o próprio
sumo do livro. Revestidas
sempre
pela magia das
cores locais, abrangem o
calendário de ponta a ponta,
algumas
parecendo coincidir
com os equinócios e
solstícios, numa comunhão
da religião
com a terra, da
terra com o mito solar. Seu
conteúdo mais fascinante
está nas
comemorações do
inverno, que se iniciam
quando a avó desperta os
netos (e há
aquele alvoroço)
para anunciar a chegada de
São Martinho, montado no
seu
cavalo branco. (A neve
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