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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Nós e o mundo, de Maura de
Senna
Texto-fonte:
 
Maura de Senna Pereira, Nós e o
mundo: crônicas, resenhas, artigos,
Rio de Janeiro: Livraria São José,
1976.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ÍNDICE
 
Quadros e
temas
 
As novas
amazonas    
 
As
noites
recentes     
 
Mãos
de nora em
flor  
 
O poema
"Apocalipse" e
sua intérprete
 
 
Nós e o tempo
 
Morus e a
Utopia
       
 
Geração
do
deserto    
 
Museu
Guimarães Rosa
         
 
Fleming
 
Mundos
de
Aldous Huxley
     

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O
enigma de
João Ramalho     
 
A marcha
e o
salmo    
 
Laguna,
cidade
histórica        
 
Passeio poético
pela botânica
 
Pele
contra pele
        
 
Duas
poetisas de
Moçambique
         
 
A planta
d'água
         
 
Uma
feira do
livro       
 
Pinheiro
preto  
 
Divagações
sobre
uma peça   
 
Um livro
de
Marcuse    
 
Mães modernas
         
 
A psiquiatria e os
atropelamentos
    
 
História
de
Blumenau   
 
Livro de
Zora   
 
A nova mulher
 
 
Cortes e súmulas
 
Estórias
que eu não
inventei
 
Os
visitantes da
noite

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A herança       
 
Isabel
das
Crespo       
 
Silk,
a
consciência e o
anjo    
 
O
sorvete e o
doido    
 
Nesta
casa tem
um bosque    
 
O drama
do
tempo      
 
Fantasia         
 
O fidalgo
 
Aquelas
crianças
       
 
O sonho
e a
realidade
 
Saia
azul e blusa
branca        
 
A bela
adormecida      
 
Do perigo de
contrariar a
pedicura    
 
O
trocador e o
junquilho        
 
Passe
adiante,
minha senhora
 
Retratos
 
Uma
data, dois
cultos
 
Durval
e sua
madona
 
A filha
dos
deuses      

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Tu-Chin-Fang
 
 
Menino dormindo
       
 
Senhora
Dona
Romana
 
Minhas avós
   
 
Nísia Floresta
  
 
O poeta
de
"Esboços"  
 
Lou
Andreas-
Salomé   
 
As mil
e uma
noites     
 
Festas tchecas
         
 
 
 
Para
 
ALMEIDA COUSIN
meu amor
 
ILKA
RUTH
SAMUEL
ZAURINHA
irmãos amados
como filhos
 
OCTAVIO DUPONT
cunhado irmão amigo
 
e
 
em homenagem ao
centenário
de Gazeta de Notícias
 
 
 
 
 
 
 
 

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Quadros e temas
 
 
 
 

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As novas amazonas
 
 
A Sociedade das Novas
Amazonas, ou
Iluminadas,
existiu no Pará há quase um
século e meio, pois seus es-­
tatutos
datam de 16 de abril
de 1833. Era constituída de
três classes de sócias:
"a
primeira abrangia as irmãs
de­signadas com o título de
Educandas; a
segunda se
com­punha das irmãs mais
adiantadas na prática das
virtudes e ações
heroicas,
as quais tinham o
tratamento de Mes­tras; a
terceira compreendia as
irmãs que tinham chegado
ao maior auge de virtudes
civis, políticas e morais,
dando provas não equívocas
de um decidido amor à
Pátria e adesão à
Liberdade".
 
Quem tal nos informa é
Domingos
Antônio Raiol,
Barão de Guajará, no seu
grande livro documental
"Mo­tins
Políticos", cuja
segunda edição, em três
volumes, vem prefaciada
pelo
professor Arthur Cezar
Ferreira Reis.
 
Assim é que, no meio
daquele
copioso registro de
lutas que se processaram na
Província do Pará entre
1821 e
1835, encontramos
o do aparecimento das
Novas Ama­zonas.
Precisamente nas
vésperas
da epopeia de tantas faces e
etapas e que teve como
figura maior, pelo
que de-­
preendo da exposição de
Raiol, um jovem de vinte
anos: Eduardo Angelim,
estadista cabano.
 
Espontaneamente ou
orientadas
pelos pais e

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maridos (chi lo sá?)


surgiram elas. Mas as
conotações políticas
estão
bem claras nas finalidades
estatutárias, chegando as
amazonas a comemorar
com
um hino próprio a data da
nossa independência em
estrofes assim:
"Raiou de
se­tembro o dia / Mais solene
e portentoso / O dia da
liber­dade
/ No Ipiranga
majestoso. / Defender a
liberdade / É de Amazonas
guerreiras /
Pela Pátria
morreremos / Nas falan­ges
brasileiras".
 
O historiador não diz quais
influências geraram a
agremiação, mas, de acordo
com o seu relato, concluo
que
foram: a selva
brasileira, a mitologia grega,
a Revo­lução Francesa. E a
Maçonaria. As reuniões se
realizavam "na primeira
dominga de cada
mês" e a
casa em que funcionava a
sociedade tinha três salas
que se
chamavam Jardim,
Bosque e Floresta. O
tratamento mais simples
usado entre as
irmãs era o
de vós. A presidente
sentava-se sobre um trono e
trazia à cabeça
durante as
sessões uma coroa de rosas
brancas. Sobre a mesa
quadrada à sua
frente havia
"um livro dos Santos
Evangelhos e sobre ele um
arco e flecha".
Todo um
decorativo e por vezes
pitoresco cerimonial presidia
os atos
associativos —
desde a adoção de novas
sócias, que prestavam
juramen­to e
ganhavam por
fim da presidente uma rosa
em botão com uma só folha
e estas
palavras: "Amável
irmã, recebei esta flor, dela
usareis sempre entre os
vossos ornatos como um

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emblema ou símbolo, na sua


figura, da virgin­dade; na
cor, da formosura
passageira; na cor da folha,
da virtude constante; e nos
espinhos, dos costumes
seve­ros". (Aliás, rígida era a
hierarquia e severa
a
disciplina.) Havia ainda a
solenidade das promoções,
as homenagens, os
banquetes, as imposições de
insígnias. Uma das con-­
decorações mais
importantes
era constituída
de medalha de ouro em
forma de sol e atravessada
pela inscrição
"Honra e
glória à mulher forte". Só
podiam recebê-la as sócias
que
tivessem atingido o
grau máximo de Sublimes
Mestras e "dado à pátria dez
cidadãos por meio legítimo".
 
Percebe-se logo uma
associação
estruturalmente
con­servadora e sem
nenhuma finalidade
reivindicatória. Mas foi,
sem
dúvida, uma revelação de
personalidade e atua­ção —
espantosas na época — e
viveu muitos momentos de
beleza, como, além do
mencionado ardor patriótico,
a
celebração das estações e
o ósculo da paz com que se
cumprimentavam as irmãs
iluminadas.
 
 
 
As noites recentes
 
 
O sono é belo, mas vale a
pena
interrompê-lo pela
madrugada alta quando se
trata de contemplar o que o
céu
apenas nos proporciona
de oitocentos em oitocentos
anos. Ver o longo Escorpião
estender-se com todas as
suas voltas de diamantes e

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junto dele postarem-se a


min­guante Lua e uma
porção de planetas: Júpiter,
Marte, Ne­tuno, Mercúrio e
Vênus, que é sempre um
esplendor — quer seja
Vésper ou estrela da manhã.
O
espetáculo re­petir-se por
várias madrugadas e
compor figuras várias,
culminando
na mais
estupenda joia que já
enfeitou a noi­te: aquela cruz
formada de Júpiter
e da
estrela Antares, a maior da
constelação, e da Lua lá em
cima e de Vênus cá
em
baixo. Outro quadro
portentoso foi quando todo
o conjunto brilhava, menos
a
Lua, que tardou a surgir
na sua véspera de lua nova
e, quando surgiu, parecia
uma esguia rede de ouro
suspensa e destinada a
aparar aque­les brilhantes
todos. Aqueles mundos. Os
quais foram mis-­
teriosamente desaparecendo
— e com
eles a Lua e seu
vazio regaço.
Desaparecendo, sua luz
como que tragada pelo Sol
que foi chegando. E o Sol é
rei. O astro rei, como o
chamavam os poetas de
antanho.
 
31/01/1971
 
 
 
Mãos de nora em flor
 
 
Asas? Açucenas? Feitas de
cetim,
de pétalas? Breves e
brancas, elas
deslumbravam. Quando
recitava nas fes­tas da
escola, todos ficavam presos
aos gestos que fa­ziam até
esquecer as inflexões
harmoniosas de sua voz.
Porque os gestos eram

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aquelas mãos em
movimento, que
pareciam
flores se abrindo na haste
nua dos braços. Quando os
mestres a
mandavam ao
quadro-negro, os dedos
alvos gizavam cálculos,
traçavam figuras. E
aquela
móvel beleza branca
enfeitiçava até as não
amigas. En­tretanto, Nora, te
lembras de que choravas
porque nos teus dedos não
havia um anel? Um leve aro,
uma simples pedra, uma
turmalina que fosse — nas
tuas mãos lindís­simas e
novas
como rebentos? Nora
possuindo a prima­vera. Nora
vendo passar os anos e só
chegarem as joias quando já
partia a carruagem do
outono. A pérola mag­nífica
entre brilhantes sem jaça, a
grande esmeralda, a pura
água-marinha, rubis,
diamantes. Pobre Nora de
mãos fanadas, de dedos
carregados de anéis e de
invernos. Veias grossas
enfeando, rugas cortando os
lírios lisos de outrora. Os
quais se transformaram em
garras quase es­curas, ora
cintilando porque vão a
uma
festa. Mas não! A que tanto
sonhara com todas aquelas
gotas de estrelas e
auroras
achou melhor reparti-las
desde já entre as netas em
flor. Depois
escondeu as
velhas mãos em luvas
novas. Só então saiu. Tão
leve e apaziguada.
Ah.
Nora!
 
 
 
O poema "Apocalipse" e
sua intérprete
 
 
Almeida Cousin estreou em
1932 com
a epopeia "Ita-­
monte", "livro que empolga

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como os grandes blocos


de
arte", como disse o crítico
Carlos Chiacchio, e sobre o
qual Fábio Luz
escreveu: "A
história do Brasil e a história
da Civilização aí estão
cantando e bem assim a
força da raça em formação".
 
A Sétima Parte do livro, toda
profética, denomina-se
"Apocalipse" e, no poema
"In Alto",
encontramos estes
versos, límpida e brava
antevisão de Brasília e das
suas
estradas unificadoras:
"Porém de artérias de metal,
de macadame e de água
/
latejantes, rolantes,
trepidantes, / ligando tudo
ao coração — posto no
centro / donde nas­cem as
águas da Amazônia / e
águas do São Francisco / e
águas que vão, cachoantes,
para o Prata".
 
E foi já em Brasília, nos
primeiros dias do ano de
1958, que Almeida Cousin
lançou a segunda edição de
"Itamonte", tornado assim,
simbolicamente, o primeiro
livro na futura
metrópole
brasileira. Em certa altura
do prefácio que escreveu
para esta
edição, depois de
refe­rir-se à unificação do
Brasil, conseguida pela
conquista
bandeirante do
interior, e à necessidade —
ostensivamen­te reconhecida
desde a
Constituição de
1891 — de cen­tralizar a
nação ao redor do planalto,
"colocando no pei­to do
gigante o coração vitalizador
do Brasil", o
autor conclui:
"Hoje, esse planalto — já
além das Minas Gerais —
oferece
condições de
viabilidade. ao
empreendimento unificador
e um grande esforço,
decisivo, está sendo

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realizado. Quero saudar aqui


a geração dos que erguem
esse
marco da unidade
brasileira e ao Presidente
que tem a coragem de
realizá-lo".
 
O primeiro poema de
"Apocalipse" encontrou uma
intérprete à altura do seu
vigor e da sua
beleza: a
jovem declamadora Nina
Costa, que tem com ele
encerrado re­citais,
encantado auditórios.
 
Ei-la agora solicitada, mais
uma
vez, a apresentar o
grande poema. Será quinta-
feira próxima, num almoço
que se
realizará no salão
nobre do Automóvel Clube
do Brasil, promovido pelo
novel e
dinâmico Instituto
Brasileiro de Inventores, em
homenagem às autoridades
que
vão para Brasília. Antes
do ágape, Nina Costa (*)
declamará "Apo­calipse".
Di-
lo-á com sua voz quente,
com a profunda integração
de sua alma de artista no
espírito do poema, com a
poderosa linguagem de suas
mãos e de sua más­cara,
com
a ajuda das raras
estrelas verde-negras dos
seus olhos e com aquele
gesto final
— que sugere
gêne­se, glória, descoberta
— e que ela foi buscar na
postura do
bandeirante em
marcha do monumento do
Ibirapuera, para ressaltar a
força e o
garbo triunfante do
último verso:
 
"Levantou-se o gigante, e
trabalha, e caminha!"
(27/3/1960)
 
(*) Hoje Nina Costa Dantas.
 
 
 

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Nós e o tempo
 
 
Quando ouvirem uma
criança, um
adolescente,
uma criatura muito nova
dizer que o ano passou
depressa, des­confiem.
Não
pode sentir que o tempo
corre quem está crescendo,
desabrochando, em plena
faixa da expansão. Fala
assim numa inconsciente
insinceridade, por um na-­
tural
espírito de imitação,
para impressionar, porque
ouve os mais velhos
dizerem.
 
Estes, sim, estão sendo
sinceros,
pois sentem real-­
mente que os natais e anos
novos se sucedem com rapi-­
dez. E
essa sensação é um
sinal (do grupo dos que che-­
gam na hora devida) de que

não é mais primavera,
embora em muitos pontos
— o rosto jovem, o corpo
es­belto,
o coração
arrebatado possa prolongar-
se o seu brilho. Assim, o
tempo é
implacável, as
belas estações passam e,
após terem chegado e
desaparecido as
cores ainda
soberbas do outono, virá o
inverno, o declínio, o fim.
 
Há um sentido dramático
em tudo
isso, marcado,
porém, de uma tal equidade
— o efêmero atingindo a
todos
inexoravelmente —
que a atitude sábia será a
acei­tação. Equidade sem
dúvida,
porque não tem
cabimento, por exemplo,
alguém dizer que não teve
juventude. Cor­rendo
a vida,
todo ser humano tem, teve
ou terá juventu­de. Agora, se
esta é triste
ou alegre,
apagada ou glorio­sa, dura

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ou feliz — isso não é com o


tempo: é com
o homem.
 
 
 
Morus e a Utopia
 
 
Eis-nos de novo diante de
um livro
de Ivan Lins que se
originou de conferências
pronunciadas por esse
impor­tante
vulto das nossas
letras. Trata-se de
lançamento da Civilização
Brasileira
apresentando, na
sua coleção Te­mas,
Problemas e Debates, a
segunda edição de
"Tomás
Morus e a Utopia". Reproduz
o volume, que "resultou de
três conferências
comemorativas do 4°
centenário da de­capitação
de
Morus", o prefácio da
primeira edição, da­tado de
janeiro de 1936 e de
autoria
de Miguel Ozorio de
Almeida. O ilustre e saudoso
acadêmico bem assina­lou
a
amplitude do ensaio, que
não se restringiu à vida e à
obra do humanista, mas
abrangeu todo o contexto
das ideias que ele
professava. Diz, por
exemplo e com
muito
acerto, o prefaciador: "Ivan
Lins possui ideias e convic-­
ções
definidas e assentadas
sobre a maior parte dessas
questões. Discípulo de
Augusto Comte, convencido
do progresso que
representaria para a
humanidade a
adoção dos
princípios do grande mestre
que lançou as bases de uma
política
positiva e procurou
construir uma Sociolo­gia
fundada na razão e em
dados
objetivos, Ivan Lins
faz o confronto entre muitas
das ideias de Morus e alguns
dos conceitos de Comte".

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Ressalte-se que o livro há
pouco
reeditado foi escri­to
quando Ivan Lins era muito
moço. E, se o texto, agora,
vem "em edição corrigida e
melhorada", o arcabouço
todo — estilo,
ideias,
interpretação —
permaneceu into­cável, o
que vem demonstrar ter o
hoje
acadêmico e mi­nistro
Ivan Lins iniciado sua
carreira literária já dono de
altíssima cultura.
 
Compõe-se o volume de
duas partes,
além das
muitas notas: "A curiosa e
contraditória vida de Tomás
Morus" e "A Utopia". Sem o
intuito de descrevê-las,
quero acen­tuar
que se trata
de uma exegese tão honesta
que não oculta a nódoa
inapagável: ter
Morus,
"apesar da doçura de seu
caráter e da pureza de sua
virtude" e
principal­mente
depois de haver plantado na
"Utopia" rosas de ternura
humana e postulados de
respeito à liberdade de
consciência — atuado como
inquisidor, ateado fogueiras.
Estava então longe, e havia
muito, a grande
figura de
Erasmo, o humanista que
escrevera na casa de Morus
o "Elogio da
Loucura" e
influenciara as ideias liberais
da "Utopia". E o
eminente
ensaísta chega mesmo a
observar que "à medida que
as relações de
Morus com
Erasmo deixam de ser tão
intensas pelo afastamento
deste últi­mo da
Inglaterra, o
fundo teológico tende a
predominar no autor da
"Utopia".
 
Assim, o amigo e chanceler
de
Henrique VIII abebe­rara-
se de novo das fontes

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católicas, sedento de
ortodo­xia
e intransigência.
Aí vai encontrá-lo o
rompimento do rei com o
papa e, de
acordo com sua
têmpera e sua fé, não aceita
Morus o "Act" nem a
fascinante Ana Bolena. É
quando uma integridade é
posta a prova e obtém pelos
séculos o respeito das
gentes, porquanto ameaças
e ten­tadoras promessas não
conseguem quebrar a
fidelidade a seus princípios,
sendo em 1535 decapitado
— e
quatro séculos depois
canonizado — "o homem
que não ven­deu a alma".
 
"A Utopia" é de 1516,
época
do apogeu da Renas­cença,
era dos Descobrimentos. E,
de repente, a geogra­fia
se
alargou, "o mapa do mundo
cresceu" com o apare-­
cimento da
"ilha bem-
aventurada". Não importa
que ja­mais tivesse existido
porque existirá sempre.
Nenhuma literatura
semelhante — Platão antes,
Campanella depois, além
dos demais, grandes ou
pequenos, até nossos dias

significa inócua fantasia,
mero escapismo: pelo con-­
trário, é inspiradora e
construtiva, pois traz o que
vale acima de tudo — a vida
bela, o homem feliz. E
quão
formosa é a ilha de Tomás
Morus na apresentação eru-­
dita de Ivan Lins!
 
 
 
Geração do deserto
 
 
Só Guido Wilmar Sassi nos
poderia
dar, em termos de
ficção, o livro que estava
faltando em nossa
literatura: a
história, desde

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a gênese, da vida, luta e


morte dos re­dutos de
jagunços no
país do
Contestado. Não só porque
ali nasceu, mas
principalmente porque, nos
seus primeiros livros, já
soube o grande escritor
catarinense fixar a exis-­
tência
daqueles que labutam
nos pinheirais e para quem,
no entanto, escasseia o
pinhão, que não é para eles,
apenas, um fruto, um
repasto nos serões do
inverno, mas o trigo, o pão
de cada dia.
 
Agora, a saga do
Contestado.
Naquela vasta
região de quarenta mil
quilômetros quadrados,
marcada já de lutas
e
violências ocasionadas pela
velha questão de limi­tes
entre Santa Catarina e
Paraná, começou a grassar
o movimento dos
"fanáticos", fenômeno que
oferecia ca­racterísticas
semelhantes às de Canudos.
O reduto co­munal, o líder
iluminado, o misticismo e o
sebastianismo (todos
odiavam a República e
sonhavam
com a volta do
Imperador) pontificando, o
insulamento, a luta pela
sobre­vivência,
o código
primário infringindo as leis
circundan­tes, o bando em
armas esperando
o ataque
tudo ge­rando as investidas
legais e, em consequência, a
guerra, a
conflagração.
 
No Contestado, começaram
os
colonos, os futuros
jagunços, a suspirar pelo
retorno de São João Maria
de
Agostinho, profeta que já
estivera entre eles, curara
os doentes, plantara
cruzes
que reverdeciam, dera
ânimo aos humildes,

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aquecera os corações com a


chama de sua santidade. Ele
voltaria. Mas quem voltou
foi José Maria,
"irmão" do
monge autêntico. Em torno
do sagaz aventu­reiro,
foram-se
aglomerando os
famintos de justiça, com
suas fitas brancas de um
metro e
setenta, medida
exata de São João Maria de
Agostinho. Além da Bíblia, o
livro
diariamente folheado
por São José Maria era a
"História do Imperador
Carlos Magno e dos Doze
Pares de França". Pois bem,
foram constituídos os
"Pares
de França". De­pois, as
"virgens" foram chamadas.
Traçou-se o "Quadro Santo".
O reduto crescia e se
armava em
Taquaruçu, nas
terras catarinenses de
Curitibanos. Tempos após, a
mu­dança para
Irani, no
Paraná. As forças estaduais
atacaram e foram
rechaçadas, morrendo seu
chefe em luta com José
Maria, que também
sucumbiu. Voltaram os
jagunços para
Taquaruçu,
organizando-se depois em
Caraguatá e, por fim, em
Santa Maria, onde
foram
totalmente batidos.
 
São José Maria, o monge de
contrafação, era um anjo ao
lado de seus sucessores,
especialmente o último
deles. Adeodato, misto de
despotismo e marginalidade,
indivíduo repelente que
ordenava a flagelação das
mu­lheres em público e que,
nos últimos combates
entre
os defensores do arraial de
Santa Maria e os "pelados",
fria­mente
as matava, a
começar pelas grávidas.
 
"Geração do Deserto"
(editora Civilização

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Brasileira — 1964)
reconstitui os episódios do
Contestado
num grande
mural. O estilo forte, sem
derramamentos, de Guido
Wilmar Sassi, e
sua
consumada capacidade de
ta­bulação — contam-nos a
história de esperança e
sangue, que durou quatro
anos. Sem, no entanto,
confundir causa com efeito e
apontando as verdadeiras
raízes do movi­mento, o que
torna este vigoroso
romance, do qual espe­ro
que saiam filmes (*) e
ensaios — também
importante
obra de
interpretação.
 
(*) Anos após, o livro de
Sassi
inspirou o filme “A
Guerra dos pelados”.
 
 
 
Museu Guimarães Rosa
 
 
Ainda se encontra na faixa
do
sonho o que já poderia
estar se encaminhando para
uma realidade: a aquisição e
tombamento da casa onde
nasceu o gigante de
"Grande Sertão: Veredas"
e
sua transformação em
museu. Aliás, se venho falar
em tal assunto é porque
recebi uma hon­rosa carta
que me confere autoridade
para abordá-lo; mas,
aproveitando a deixa de
intermediária, quero
também falar por mim
mesma, como
simples
avaliadora do que o nome e
a obra do grande escritor
representam para
nossa
cultura e para nossa era.
 
A carta é do ministro Mellilo
Moreira de Mello, por três
laços unido a Guimarães

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Rosa: como amigo, como


colega do Itamarati e como
escritor que muito se
aproxi­ma do gênio roseano
pela autenticidade, vigor e
temática de sua obra.
Lembrarei que o sertão, em
Mellilo Moreira de Mello, é o
das Alagoas em tempo de
Lampião — e che­ga a
assombrar sua integração
no assunto, pois que de lá
não é filho, integração
resultante de uma profunda
pesquisa da história, da
geografia, do homem, da
terra, da linguística, de
conflitos e amores, de
superstições e cos­tumes.
Aquela evidente
aproximação — embora
Mellilo me pareça muito ele
mesmo e de
certa maneira
mais se­dutor que o nosso
ídolo — fez com que eu, ao
ler
"Anhan­guara" e, depois,
"Muquirama", que em
verdade o
prece­de, logo
perguntasse: um novo
Guimarães Rosa?
 
Ninguém, pois, está mais
credenciado do que ele para
denunciar o que presenciou
e apontar a justa home-­
nagem
que ainda não foi
prestada a GR em sua terra.
Tudo isso se encontra no
trecho
de sua carta que
passo a transcrever ipsis
litteris:
 
"Estive em Brasília no mês
de
janeiro e, de regresso,
fui com minha mulher visitar
a casa onde nasceu o
grande Guimarães Rosa, em
Cordisburgo, e que fica
entre Sete Lagoas e Belo
Horizonte. Como jornalista e
como admira­dora de
Guimarães Rosa, estou certo
de
que a entristece­rá, como
me entristeceu, o estado de
abandono e ruína, em que

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

se encontra a casa onde


nasceu o maior escritor
brasileiro dos tempos
contemporâneos. A casa,
que hoje pertence ao
gerente do Banco do Brasil
em Belo
Horizon­te, Sr.
Ildefonso Rodrigues Rocha,
está alugada a um ho­mem
rústico,
Sr. Martinho de
Faria, que nela instalou um
"Bar e Café Guimarães
Rosa", com vexatória
tabuleta enorme onde o
grande autor de "Grande
Sertão: Veredas" é o
patrono de copinhos de
aguardente e tacinhas de
café... Além disso, o
inquilino transformou o
antigo salão de visitas da
casa
em depósito de
caixotes de garrafas e, na
cozinha, faz alentada
criação de
pintos! O quintal
é um matagal e é por ele
que se entra na casa-tapera,
hoje
ninho de dezenas de
morcegos, porque um
turista, a quem fora
confiada a chave
da porta
principal de entrada, que-­
brou-a na fechadura! A casa
se acha numa
avenida im-­
portante da cidade e que
deveria chamar-se
Guimarães Rosa, em vez de
denominar-se Avenida Padre
João, que ninguém sabe
quem foi. O nome de
Guimarães
Rosa, em vez
disso, foi dado a uma
insignificante, estreita e
curta Travessa,
com a qual
faz esquina o "Bar e Café".
Nenhu­ma placa da
Academia
Brasileira de
Letras, da Academia Mineira
de Letras ou de qualquer
sociedade
literária ali existe,
a não ser uma minúscula
plaquinha negra, de qua­se
impossível leitura e 10x12
centímetros de dimensão, ali
posta pelo Clube de
Letras

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

de Sete Lagoas! Ora, maior


abandono e esquecimento
são impossíveis.
Ajude-me,
pois, pela sua coluna a
divulgar esse desrespeito à
me­mória de
Guimarães Rosa
e a fazer um apelo
veemente ao presidente da
Academia Brasileira
de
Letras, Dr. Austregésilo de
Athayde, e ao futuro
governador de Minas Gerais,
Dr. Rondon Pacheco, para
que, unidos, obtenham a
aquisição e o tombamento
da
casa (antes que o assoa-­
lho acabe de apodrecer
completamente e as paredes
caiam) e sua transformação
em Museu Guimarães Rosa.
(*).
 
Como vê, meu ilustre
amigo, em
divulgando sua
carta, estou ajudando, estou
apelando. E oxalá esta
palavra
nossa não seja vã
nem só, mas outras
venham, venham miríades
erguer o Museu
Guimarães
Rosa, pois, como bem frisou
em sua carta, "é preciso
reconhecer-se que o grande
escritor mineiro — muito
mais que a Gruta de
Maquiné
— pôs Cordisburgo
no mapa".
 
(*) Este apelo foi publicado
a 7
de março de 1971, em
Gazeta de Notícias, e
amplamente divulgado.
“Agora, que a
ideia pertinaz
de Mellilo Moreira de Mello
se tornou vitoriosa, é justo
que não
seja esquecido
quem a lançou, estruturou e
defendeu” — como declaro
no artigo
“Rosa e Mellilo”, de
15 de agosto do mesmo
ano.
 
 
 
Fleming

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

 
 
Não foi Sir Alexander
Fleming quem os viu pela
pri­meira vez, a esses
cogumelos, cujas sementes,
ou
espó­rios, flutuam, em
quantidade, no ar. Eles
deviam datar do primeiro
laboratório de microbiologia.
Bastava o descuido de
deixar um tubo ou
balãozinho mal fechado,
para que os danados
cogumelos surgissem na
gelatina, na
gelose, no soro
sanguíneo, ou no caldo
contido neles, cobrindo (e
matando, como
se verificou
depois) as colônias de mi-­
cróbios de diversas doenças,
que os
sábios ali isolavam e
cultivavam com infinito
cuidado.
 
Mas o que era o desespero
dos
microbiologistas
transformou-se, um dia, em
salvação, vida, saúde. Foi no
dia
abençoado em que Sir
Alexander Fleming explicou
o fenômeno e teve e
genialidade de extrair de
determinado gênero desses
cogumelos (o Penicillum
Notatum) uma substância
que, injetada no próprio
organismo vivo, com­bate,
nele, a proliferação de
certos micróbios. Estava
des­coberta a penicilina e
aberto o caminho: era, daí
em diante, extrair dos
outros cogumelos que
matam
culturas microbianas
— o seu princípio ativo e
aplicá-lo. E, assim, após a
penicilina, foram surgindo a
estreptomicina, a au-­
reomicina, a terramicina, a
cloromicetina, iniciando a
era dos antibióticos, graças
aos quais milhões de
seres
hu­manos têm sido salvos da
infecção e da morte.

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

 
Esta nova era da ciência
médica
foi, pois, inaugurada
com a descoberta genial de
Fleming, o sábio que acaba
de
desaparecer e cujo
nome, imenso e curto salmo
de duas sílabas, toda a
humanidade devia saber de
cor.
 
 
 
Mundos de Aldous Huxley
 
 
O autor de "Admirável
Mundo
Novo" não só criou
uma técnica na
apresentação dos seus
romances como
também
criou mundos. Tendo surgido
na literatura uni­versal entre
as duas
guerras, aquele
inglês alto que co­nheci
alguns anos antes de sua
morte, quando
visitou o PEN
Clube do Brasil, provocou
admirações desde
"Contraponto" — tanto pelo
aspecto formal como pelas
auda­ciosas
experiências,
pelo conteúdo. Pode-se
mesmo dizer que nenhum
ângulo da
inquietação
contemporânea es­capou ao
autor de "Sem Olhos em
Gaza" e
deixou de estar
presente no universo
huxleyano.
 
Tendo, agora, sobre a mesa
dois
romances de Aldous
Huxley em novas edições,
ambos lançados pela
Civiliza­ção
Brasileira, o que
desejo nesta nota focalizar é
o por­tentoso forjador de
"novelas do futuro".
 
Peguemos o primeiro, "O
Macaco e a Essência", tra-­
duzido e prefaciado por João
Guilherme Linke,
que muito
acertadamente o considera

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

um sucessor de "Admirável
Mundo
Novo", e escrito
(1957) sob o impacto das
explo­sões de Hiroxima e
Nagasaki — e veremos que
nele o oti­mismo não
ancorou. A narrativa,
riquíssima
de aspectos,
adota uma técnica
cinematográfica — com
dissolvências, cortes, shots,
travellings, fundos musicais
e poéticos. A época: três
gerações depois
da Coisa (a
terceira guerra, que destrói
tudo, deixando um núcleo
poupado na
Nova Zelândia,
de onde partem novos
descobrimentos). No resto
devastado e
hediondo (a
ação é em Los Angeles) de
mentalidade simiesca,
instalou-se o reino
de Belial
en­tre seres geneticamente
deformados pelas radiações
atô­micas,
cavando nos
cemitérios os bens que
podem achar da civilização
perdida. Mas o
pessimismo
do autor não é total,
surgindo o elemento de
libertação no encontro
do
doutor Poole, botanista
perdido da expedição de
Nova Zelândia, e Loola, a
moça de três seios de Los
Angeles devastada,
libertação que ocorre
quando ambos
entram na
"ordem das coisas" pelo
amor, fugindo ao reino de
Belial.
 
O outro volume (tradução
de Gisela
Brigitte Laub) é "A
Ilha", Pala. Pala, um reino
paradisíaco dos mares
do
sul, em que vive uma
sociedade fraterna e livre e
que recebe o náufrago Will
Farnaby, jornalista inglês,
diante de cujos olhos se
desdobram as perfeições do
viver ilhéu. Acontece,
porém, que a deslumbrante

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Pala estava cer­cada de


ameaças por todos os lados.
E o pessimismo, aqui, chega
no fim, quando a ilha é
conquistada com os seus
tesouros — e os felizes
poloneses veem "todo o
trabalho de cem anos
destruído em uma noite".
 
 
 
O enigma de João
Ramalho
 
 
Quando aproveita tradições
da
história e da lenda, que é
a história poetizada do
povo, o grande escritor
Afon­so
Schmidt não se
afasta dos seus lineamentos
consagra­dos e aceitos. Não
se
afasta, mas vai deixando
a fantasia compor, forjar os
detalhes, dando-nos, em
linguagem mo­derna, livros
que são, ao mesmo tempo,
romances pitores­cos e
história verdadeira, como os
deliciosos relatos saí­dos da
pena medieval de um
Fernão Lopes.
 
Afonso Schmidt versa outros
assuntos — atuais e an­tigos
— chegando a fazer, em
"Zangalás", o
romance-
crônica do futuro. No
entanto, a sua preferência
pelos assuntos históricos
é
marcada, procurando a base
do fato para as construções
da fantasia. Chega a
revelar
— e friso que estou
apreciando, apenas, uma
face da prosa schmidtiana —
aspectos inéditos, que os
historiadores ignoraram,
como a "Colônia
Cecília", (*)
fundada por imi­grantes
anarquistas, tendo à frente
o Dr.
Giovanni Rossi, e que
vingou e floresceu durante

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

quatro anos em terras do


Paraná.
 
Como paulista, não deixaria
de
perceber e aproveitar
João Ramalho — a figura
mais importante e
enigmática do
povoamento
de São Paulo — onde Martim
Afonso de Souza já o
encontrou e que
estaria
naquelas plagas desde 1490
— antes de Colombos e de
Cabrais — em costas
que os
portugueses já teriam
abordado nas secretas
navegações de D. João II.
 
A figura de João Ramalho o
primeiro calcanhar branco
que pisou o planalto de
Piratininga, onde fundou,
com
sua prole de
mamelucos, o primeiro
arraial civilizado: Santo
André da Borda do
Campo
— uma figura assim,
rodeada de tantas seduções
de aventura e mistério, a
que não faltou sequer uma
excomunhão dos padres,
não po­deria escapar ao
escritor merecidamente
chamado "cro­nista-mor de
São Paulo". E
Schmidt
aproveitou-o esplen-­
didamente. Em "O Enigma
de João Ramalho",
(**) dá-
nos a lenda, a crônica, a
história, o romance e a
biografia verossímil do
primeiro patriarca
aventureiro e povoador
branco do Brasil.
 
(*) Editora Anchieta — São
Paulo
(1942).
(**) Clube do Livro — São
Paulo
(1963).
 
 
 
A marcha e o salmo
 
 

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Por ocasião da Marcha sobre


Washington, eu me
perguntei como veria Lincoln
— se a altíssima figura de
Lincoln pudesse ressuscitar
— aquela emocionante luta
dos negros de sua pátria
pelos direitos que, há um
sé­culo, deveriam usufruir.
Como veria as insígnias
exibidas pelos partidários da
integração racial (brancos
também marchando ao
lado
dos negros, lutando por eles
como outrora na Guerra de
Secessão) e os
cartazes
clamando por "escolas
integradas, melhor
residência, emprego para
todos, igualdade de
oportunidades". Como
ouviria a voz dos oradores,
ardente como o verão de
Washington e en­tremeada
de cantos negros, pelos
coros
dos spirituais, soando
em torno mesmo do Lincoln
Memorial — enquan­to,
no
Capitólio e na Casa Branca,
os líderes do movi­mento
apresentavam
reivindicações
que significam, em última
análise, o elementar direito
à vida.
 
Sim: à vida. Pois, enquanto
reinar
a discriminação racial,
a vida está ameaçada.
Lembro que, por uma asso-­
ciação
lógica, a marcha me
levou a um poema de
Afonso Romano de
Sant'Anna, inspirado
no
martírio do negro norte-
americano Medgard Evers e
publicado recentemen­te no
"Correio da Manhã". Nele, a
beleza da forma e a
grandeza de conteúdo
se
igualam. Embora não seja
longo, não vou transcrevê-
lo; mas quero salientar a
transfigura­ção patética do
Salmo XXIII na segunda
parte do poema, em que o

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

autor põe na boca do negro


morto de Alabama — cada
um deles seguido de
"Halleluia! Halleluia!" — os
seguintes versos:
 
O Senhor é o meu pastor /
mas um
lobo me atacou / no
vale da escura morte / meu
corpo se amortalhou / sobre
as
taças do inimigo / o meu
sangue transbordou / O
Senhor é o meu pastor /
mas um
branco me matou.
 
E a matar continua,
verificando-se
mesmo,
depois dessa primeira
grande arrancada pela
justiça e pela liber­dade,
que
foi a Marcha sobre
Washington, uma exacerba-­
ção do racismo na
inominável
crueldade dos
dez anjos negros imolados
agora, quatro dos quais
dentro de uma
igreja. Mas,
em consequência,
recrudesce a luta dos negros
contra o desumano
segregacionismo e, segundo
os últimos despachos,
projetam eles novas
marchas:
so­bre Nova York,
sobre Montgomery. Que as
realizem, to­mem seu lugar
ao sol,
conquistem seu
direito à vida — e cada
negro (se o quiser) possa
recitar o
Salmo XXIII com
as mesmas doces e
jubilosas palavras escritas
pelo rei David.
Amém.
 
(20/9/1963)
 
 
 
Laguna, cidade histórica
 
 
Merece a cidade catarinense
da
Laguna ser preser­vada
como Ouro Preto. Dali
partiram as expedições que

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

conquistaram o Rio Grande.


E, em 1721, quando
Francis­co, filho do
bandeirante
Domingos de
Brito Peixoto, fun­dador de
Santo Antônio dos Anjos da
Laguna — foi
no­meado
capitão-mor, tornou-se a
então vila importante centro
de mando, com
jurisdição
sobre a Ilha de Santa.
Catarina e o Continente de
São Pedro. Mais
tarde, em
1839, ali foi proclamada a
República Catarinense, que
trazia o mesmo
lema da
Revolução Francesa:
Liberdade, Igualdade,
Fraternidade. Cidade
juliana,
metrópole de uma
república, cidade
vanguardeira. A voz de
Canabarro ali
ressoou,
ardeu ali o verbo dos
rebeldes lagunenses, dos
republicanos pioneiros,
e
numa daquelas casas
sussurrou Garibaldi: Tu devi
esser mia. (Anita
trazia
então os pés morenos
descalços e vestido de
ganga azul, numa visão
comovedora de pobreza e
de poesia).
 
A cidade batida de ventos,
as
ruas, as esquinas, as
pedras, as rótulas, as velhas
casas coloniais — estão im-­
pregnadas
de passado.
Assim, o Museu Anita
Garibaldi, com suas grossas
paredes
restauradas e a
opulência de suas coleções e
seus arquivos, estes
guardando a
histó­ria, tantas
vezes gloriosa, de quase
três séculos. Assim, a igreja
barroca de Santo Antônio
dos Anjos, a Matriz, com
suas formosas santas de
nítidas feições portuguesas
e aquele quadro estupendo
de Victor Meireles, no
qual
ve­mos Nossa Senhora da

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Conceição envolta num


vestido esvoaçante e num
fluido véu, parecendo, toda,
uma pri­mavera. E eis, há
dois lustros, completo o
painel históri­co: Anita
erguida sobre um pedestal,
jovem e bela após uma
ausência de mais de cem
anos, numa das mãos a
arma que usou quando foi
mister e
a outra alevantada
num gesto de aceno e de
comando. Anita em pé, viva
e em
movimento na
escultura soberba de
Antônio Caringi, tal como
em 1839, quando
partiu
para a luta e para o amor.
Os ventos da Laguna
cantam para ela, que tem,
conchas em redor. Conchas
lembrando o mar ali perto e
o barco farroupilha onde
a
singela, a rústica Ana de
Jesus Ribeiro se
transformou na Musa da
Liberdade.
Sim, Lagu­na
deve ser preservada como
Ouro Preto.
 
1974
 
 
 
Passeio poético pela
botânica
 
 
A escondida e rósea Casa
dos
Pilões, localizada no
Jardim Botânico, é hoje o
Museu Kuhlmann, magistral-­
mente
dirigido pela
professora Odette
Travassos. Nela residiu até
sua morte o
cientista João
Geraldo Kuhlmann e, em
homenagem à grande vida
do sábio que
tanto esti­mei,
quero recordar a visita que
lhe fiz quando ele acaba­va
de
representar o Brasil no
VIII Congresso Internacional
de Botânica, realizado em

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

1954 nos conspícuos


anfitea­tros da Sorbonne.
 
Apesar de diretor
aposentado do
Jardim
Botânico — escrevi eu então
— o professor Kuhlmann
não deixa um só dia
de ali
trabalhar. Encontrei-o no
seu gabinete, es­tudando
com amor, com esse
austero
e concentrado amor do
cientista, uma das plantas
que encontrou no vale
do
Rio Doce, designando-a
como emmotum faia. Olho o
de­senho perfeito de
uma
fração da árvore capixaba,
que tem quase vinte metros
de altura. Contemplo
as
folhas reco­lhidas e
conservadas como relíquias
e devo revelar muita
ignorância nas minhas
perguntas, pois percebo um
sor­riso vagamente irônico
nos
olhos claros de Linneu,
que assiste à conversa
pendurado na parede.
 
Do seu gabinete, vamos à
Casa dos
Pilões, onde re­side
o professor Kuhlmann, velho
prédio colonial encra­vado no
Jardim Botânico. Atravesso
de novo o Herbário, onde
está o retrato do cientista
catarinense, (Kuhlmann
nasceu em Blumenau) e a
Sala Barbosa Rodrigues, do-­
mínio
da carpologia, onde
meus olhos vão
precisamente deter-se na
rosa e no botão
feitos de
sementes pelas mãos de
fada de uma artista
anônima.
 
Parece um sábio europeu
este que
caminha ao meu
lado, mostrando-me os
seres vegetais e
designando-os com
difíceis
nomes de famílias, que não
guardei. Mas oh, não

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esquecerei a rosa da
montanha. Nem as aleias de
bambus com seus amplos
leques de sombra. As es-­
cadas
de pedra, os córregos,
a estufa de plantas carní-­
voras. Não esquecerei a
Lagoa
Frei Leandro, com
suas flores róseas subindo
dos aguapés deitados. Nem
o mais
alto jequitibá do
Jardim, nem as folhas do
velho pau-brasil, lembrando
graúdas
avencas. As árvores
da Ama­zônia e o cedro do
México. A palmeira moça
plantada
por Getúlio e a
palmeira plantada por D.
João VI. Nem, finalmente, o
pé de
jambo em plena
floração, que me es­perava
em frente à Casa dos Pilões,
com a
surpresa das suas
alegres flores cor de aurora,
carregadas de néctar.
 
Em todo o trajeto, o
professor
Kuhlmann ensina.
Marcando plantas, vejo
placas com o seu nome
universalmente
conhecido.
Seu nome quer dizer quase
dez lus­tros dedicados à
Botânica
Sistemática. As
três vezes que atravessou
Mato Grosso as suas
pesquisas em mais
de trinta
tributários do Amazonas, os
seus estudos no vale do Rio
Doce. As
copiosas colheitas
que trouxe dessas viagens
de sábio e o labor de cada
dia
que, desde 1919, tem
desenvolvido no Jardim
Botânico. As suas numero-­
sas
publicações, algumas
das quais constituíram a
con­tribuição brasileira ao
VIII
Congresso Internacional
de Bo­tânica.
 
Na residência do naturalista,
tive
oportunidade de
apreciar as lembranças que
trouxe do conclave, do qual

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

foi um
dos presidentes. A
bela medalha de bronze e o
pergaminho que lhe
conferiram são
uma honra
para o Brasil, como o são as
separatas que levou para
aquele encontro
universal
de botanistas, contendo
estudos so­bre famílias,
gêneros e espécies
novas de
vegetais bra­sileiros e
despertando o mais vivo
interesse entre os con-­
gressistas
dos países
europeus, "onde não há
mais um musgo, uma alga,
um cogumelo que
não seja
conhecido".
 
 
 
Pele contra pele
 
 
Quem leu "Tempo de
Fiar",
livro de estreia de Myr­tes
Campello — que, em
registro de 1965,
chamei de
livro maduro e que obteve o
Prêmio Cidade de Belo Ho-­
rizonte daquele
ano — não
se surpreenderá com a
força, a solidez, o poder
criativo de "Pele
Contra
Pele", lau­reado com menção
honrosa no III Concurso
Nacional Wal­map*.
A
temática, no entanto,
produzirá um impacto,
principalmente pelas
nuances
novas de que vem
carre­gada.
 
Há ficcionistas que podem
ser
dominados, arrasta­dos
pelo personagem — e temos
lances e episódios de-­
correntes
do temperamento
da criatura e que não esta-­
vam antes na mente do
criador. Tal
não poderia
ocorrer com a romancista
Myrtes Campello. O edifício
deve estar
construído,
pronto o enredo, tudo

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

plasmado até às míni­mas


pulsações quando ela
começa a escrever. Mesmo
porque "Pele Contra Pele"
nada tem de
linear. A narra-­
ção é contraponteada, os
personagens vão aos poucos
surgindo
nítidos e inteiros a
despeito das épocas alter-­
nadas, fragmentos
aglutinam-se
compondo
ambientes e almas e
tornando claro o drama
desde as suas raízes.
 
Drama, caso freudiano:
menina
violada por um ne-­
gro dentro de um parque
ensombrado, gerando a
ambivalência
(repulsa-
atração) relativamente à cor
da pele e ao lugar
sombrarborizado.
("Eu
queria que todos enten-­
dessem aquilo que me
atirou para
Daniel"). Assim,
Ca­cilda torna-se, um dia,
amante de Daniel, preto,
econo­mista
de valor, que
salvara a fábrica do marido,
reben­tando, porém,
espetacularmente
a neurose
(fuga, escân­dalo) quando os
dois se encontram dentro de
sombria mata
("bosque
maldito?").
 
Livro notável pela técnica e
pela
tremenda lógica da
narrativa, pelos diálogos
monologados que mais
parecem vozes
emergindo
do fundo de um poço, pela
intercorrên­cia de
personagens vários que
falam na primeira pessoa,
pela presença, na neurose,
de sons-figuras-natureza
(sím­bolos). Um vultinho
trágico é elo nos
acontecimentos: o filho
semiparalítico
e surdo-
mudo, que acompanha Ca-­
cilda nos seus encontros

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com o preto que tinha


"estatura de rei".
 
"Pele Contra Pele"
reafirma
a existência, em Minas e no
Brasil, de uma romancista
de enorme
talento e traz
capa de autoria de Nora
Fonseca (bastante
sugestiva: o rosto
branco da
mulher, o vulto negro do
homem).
 
(*) Obteve no mesmo ano
(1972) o
Prêmio Coelho
Netto da Academia Brasileira
de Letras.
 
 
 
Duas poetisas de
Moçambique
 
 
Em palestra no PEN Clube,
Margarida Lopes de Almeida
dilatou o nosso
conhecimento dos valores
líricos da
língua portuguesa,
apresentando poetas que
ela co­nheceu em sua visita
às
terras africanas de
Moçambique e de Angola.
Com aquela arte
consumada,
Margarida leu e
declamou a grande e
desconhecida poesia
portuguesa da África.
Vozes
de Luanda, visões do Índico,
frêmitos de palmas e de
revoltas, cantos à
terra e à
raça, loas às "moças lindas
da cor da noite escura". Um
poema imen­so e patético:
"Os Mortos Perguntam". E,
em quase to­dos
os versos, o
testemunho de uma
surpreendente re­novação.
 
Dos poemas recitados pela
gloriosa
artista — obser­vei
que o mais longo e o mais
curto eram de autoria fe-­
minina:
"Poema da Infância
Distante", de Noêmia de

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Souza, e "Amor",
de Bertina
Lopes, ambas filhas de Mo-­
çambique. O primeiro se
estende nas
páginas quarta
e quinta deste fabuloso
caderno amarelo (com letras
e ilus­trações
negras) que
Margarida posteriormente
me ofer­tou e que mostra
como são os
poetas de
Lourenço Mar­ques:
modernos na forma, no
conteúdo e na apresenta­ção
gráfica.
 
O poema de Noêmia de
Souza, de
ritmos largos e
vigorosos, é uma evocação
da infância e dos seus "he-­
terogêneos
companheiros":
 
 
"meninos negros e mulatos,
brancos e indianos,
filhos de mainape, do
padeiro,
do negro do bote, do
carpinteiro,
vindos da miséria do
Guachene
ou das casas CIO madeira
dos
pescadores,
meninos mimados do
posto".
 
 
 
Contém ricos e estranhos
elementos
folclóricos:
 
 
"Ah, meus companheiros
acocorados na roda
maravilhada
e boquiaberta do Karingana
wa
Karingana"
das histórias da cocuana do
Maputo
(*)
em crepúsculos negros e
terríveis
de tempestade
(o vento uivando no telhado
de
zinco,
e mar ameaçando derrubar
as
escadas de madeira da
varanda

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

e casuarinas gemendo,
gemendo,
acordando medos estranhos,
inexplicáveis
nas nossas almas cheias de
xitucumulucumbas
desdentadas
e reis Massingas virados
giboias
...)
 
 
 
Depois, a lembrança da lição
poderosa que lhe de­ram:
 
 
"Ensinaram-me que
"fraternidade" é um
sentimento belo
E possível,
mesmo quando as
epidermes e a
paisagem
circundante são tão
diferentes."
 
 
 
E eia, que começara
cantando:
"Quando eu nasci
na grande casa à beira-mar
/ era meio-dia e o sol
brilhava sobre o indico /"
transforma o final do seu
poema em fra­terna e
corajosa mensagem:
 
 
"Por isso eu creio que um
dia
o sol voltará a brilhar,
calmo,
sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas,
doidas
de azul
e os pescadoras voltarão
cantando,
navegando sobre a tarde
tênue.
E este veneno de lua que a
dor me
injetou nas veias
em noites de tambor e
batuque
deixará para sempre de me
inquietar.
 
Um dia,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

o sol inundará a vida.


E terá como que nova
instância
raiando para
todos..."
 
 
 
Quanto ao poema de Bertina
Lopes,
é um primor de
síntese, são cinco linhas
apenas, contendo todo um
mun­do de
verdade e de
beleza:
 
 
"Humano e intenso
na sua forma divina
tão natural e puro
tão dentro de mim
o amor".
 
(*) Nome atual de Lourenço
Marques.
 
 
 
A planta d'água
 
 
Eu conhecia de Vera de
Vives
alguns artigos em
jornal fluminense que a
singularizam pela coragem e
pela
cultura. Lembro mesmo
um deles, que parece um
dardo e, também, um hino,
escrito
num Dia do Mestre, e
aquele com que assinalou o
aparecimento, em volume
de
bolso, da tradução
(diretamente do grego) das
"Odes de Ana­creonte"
por
Almeida Cousin. Mas não
conhecia a Vera de Vives
contando às crianças —
histórias como devem ser os
contos de fadas de nossos
dias. É o que nos
proporciona a Editora Vozes
ao incluir, na coleção "Feliz
idade"
copiosamente
ilustrados, alguns dos seus
contos.
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

"A Planta d'Água", o meu


preferido, nos mostra o
menino Luizinho — que não
gostava de plantas, porque
as
achava "tolas, caladas,
sempre pregadas ao chão",
e ficava muito
contrariado
quando o pai ordenava que
re­gasse a horta —
surpreendido ao ouvir
a fina
voz da cou­ve e recebendo
dela a primeira revelação da
linguagem
vegetal. Depois,
o pé de abacate contou ao
nosso meni­no a história da
planta
d'água. História
narrada na pri­mavera,
quando todas as plantas
estavam
festejando o
aniversário de casamento da
fada Florestan, filha da
Terra, com, o
Grande Gênio
das Águas. Interrompido
pelo lírio, pela violeta, pelo
amor-perfeito (e a gente vê
páginas e páginas cheias de
coloridas flores) o
abacateiro contou algo que,
no que diz respeito ao
maravilhoso, nada fica a
dever
às antigas histórias de
príncipes encantados e
formosas filhas de rei:
contou a
história de amor da
fada Florestan, cuja missão
"é proteger as plantas e
os
animais da floresta". Pedida
em casamento à Grande
Mãe Terra por vários
pretendentes à sua verde
mão (o Vento, o Sol, o
Gênio do Fogo, o Luar, o
Gênio
das Águas) foi por
este que se decidiu. Ao
saber, porém, de uma
objeção da
Terra ("não há
planta que possa crescer na
água") o ansioso Gênio
rogou à noiva três dias de
espera, prometendo fazer
brotar a planta d'água na
Lagoa Encantada, a qual
surgiu muito bela, saudando
a fada e pedindo que dis-­
sesse
à Senhora Dona Terra

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

"que é da água que toda


vida se sustenta". Veio,
em
seguida, o consentimento e
as bodas foram celebradas
na radiosa primavera.
 
 
 
Uma feira do livro
 
 
Andei pela minha cidade
natal
participando de uma
Feira do Livro, a segunda
que promove na capital
cata­rinense
a Câmara Júnior
de Florianópolis.
 
Não creio que, em nenhuma
parte do
Brasil, em ne-­
nhuma parte do mundo,
livros se vendam num
cenário mais
estonteante.
As barracas foram armadas
no ângulo do Jardim Oliveira
Belo —
fronteiro ao Palácio
Rosado, de cujas sacadas já
falei (Maura em flor, em que
vereda te escondeste?). E o
Jardim Oliveira Belo é um
bosque. É ali que vive e

sombra, amada como um
ser humano, a nossa grande
figueira centenária.
Gladíolos se cobrem de
ouro, jacarandás de flor,
fidalgas parasitas viçam no
tronco dos flamboyants,
palmeiras de várias idades e
gêneros ali moram, bem
como vetustas nogueiras,
árvo­res majestosas, flores
de Vênus da cor mais rubra
dos poentes ilhéus. E a
deusa Flora, no seu
quadrilátero de orquídeas, é
como
um símbolo de todo
aquele inexce­dível
esplendor.
 
Num recanto assim, livros.
Livros
nas barracas em
semicírculo, armadas pelas
jovens mãos da Câmara Jú-­
nior,
associação

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

internacional baseada nos


fascinantes postulados das
relações
humanas e cuja
meta, em Flo­rianópolis, é a
educação.
 
Recordo aqueles primeiros
dias de
chuvas inimigas —
que não impediram, no
entanto, o comparecimento
do público —
e o céu de
veludo, com o broche de
Saturno cintilando, que
coroou a noite do
encerramento. Recordo o
carinho com que os
inquietos juniors cercaram a
con­terrânea convidada e as
perguntas que fizeram para
co­lherem e irradiarem
as
minhas impressões. Recordo
ter afirmado que, através
das feiras, se
consolidava o
sim­pático processo de levar
o livro ao comprador e que
era assim
que eu as via —
com o significado que elas
real­mente têm: a
valorização do
livro como
mercadoria. A propósito dos
Festivais de Escritores, frisei
que o
resul­tado é a compra
do livro — e isso é sempre
bom. Mas não pude deixar
de
dizer que, pelo menos os
que se têm realizado aqui
no Rio, para mim valem
menos
do que as mais
singelas feiras de livros.
Estas são sempre muito
mais
autênticas, pois
apresentam a mercadoria, o
livro — sem as muletas dos
ases e
estrelas, a
intercessão so­fisticada dos
padrinhos e madrinhas dos
escritores
par­ticipantes. Tais
considerações envolviam
uma autocrítica que eles
souberam
receber com um
sorriso — pois eu também
tenho tido patronesses...
 
Quanto à Feira do Livro em
Florianópolis, marcada de

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

lançamentos de escritores
catarinenses e de uma pro-­
cura
incessante de autores
nacionais, pode-se dizer que
se realizou sob o signo da
juventude. Porquanto até
mes­mo o busto de Ruy
Barbosa — deslocado
naquele am­biente
floral,
mas muito bem plantado
entre barracas de livros —
parecia revestir-se
de um
halo de permanência e
verdor.
 
 
 
Pinheiro preto
 
 
Para saudá-los, meus
paraninfados,
no dia em que
terminam o seu Curso
Ginasial, falarei de um
mútuo ca­rinho e de
uma
dupla alegria. Realmente,
bem avalio a agradável
surpresa que vocês tiveram
ao saber que o nome de sua
Escola é o de alguém vivo,
atuante e que desejou
logo
estabelecer com mestres e
discípulos — la­ços que,
estou certa,
perdurarão.
Quanto a mim, fiquei
igualmente emocionada com
a homenagem que os
ex-
governadores Celso Ramos
e Ivo Silveira prestaram ao
magistério que exerci
na
capital do nosso Estado,
quando fui chamada de
jovem professora da
juventude, dando meu
nome a esse branco
educandário de Pinheiro
Preto. Tudo
isso forjou elos
caros e gestos
enternecedores, como o que
vocês tiveram agora:
convidar-me para madrinha
de sua festa de formatura.
 
Acreditem que muito me
sensibilizou a carta gentil

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

que me enviaram e que, ao


ler as catorze
assinaturas,
nome por nome, constatei
logo que a maioria brotou
do mesmo tronco
racial de
que são oriundos os
descenden­tes de Anita
Garibaldi. E ela — a
Heroína
de Dois Mun­dos — é a mais
bela figura da história
catarinense.
 
Sentindo não poder
comparecer,
estarei, no
entanto, presente, porque
representada pela querida
diretora Iria
Randon. Dar-
lhes-á ela o abraço com que
a todos envol­vo e que leva
meus agradecimentos
renovados, minhas cálidas
esperanças. E meus votos.
Votos para que não
esqueçam
jamais a Escola a
que devem a sua formação
e, se possível, continuem a
estudar.
Votos para que
amem sempre o trabalho, o
dever, a terra natal e assu-­
mam com
orgulho a sua
idade, certos de que
pertencem a maravilhosa
geração que
governará o
mundo quando o século
vinte e um estiver surgindo.
 
Sejam felizes, jovens
amigos de
Pinheiro Preto.
 
 
 
Divagações sobre uma
peça
 
 
— Segui o seu conselho,
minha
amiga. Esqueci minha
angústia, desenrolei-me de
meus pensamentos e fui
mergulhar em outros, indo
ao teatro.
 
— Bem, sair de si mesma
era uma
necessidade vital.
Carregar coisas fora do seu

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

mundo — não a deixou mais


leve?
 
— Mais leve? Fui ver "As
Criadas", de Jean Genet.
 
— Então você viu algo com
o qual
nosso teatro deu um
passo à frente, passo
constituído de muitos
fatores: a boa
tradução de
Francisco de Paula Lima, a
direção se­gura de Martim
Gonçalves, o
fabuloso
desempenho.
 
— Realmente, Érico de
Freitas e
Carlos Vereza, nos
difíceis papéis de Claire e de
Solange, mostraram-se
intér­pretes
inteligentíssimos. Quanto ao
ator Labanca, é nome
consagrado.
 
— Ora, Labanca é um
monstro.
Conheci-o no seu
es­critório de advogado, já
mordido, porém, pela paixão
do
teatro. Tão grande que
um dia largou tudo para se
consa­grar inteiramente à
ribalta. Além de ser um dos
mais cul­tos atores
brasileiros, tem tido
atuações
magistrais e
inesquecíveis como ao
representar o major Vidigal
na tea­tralização
de
"Memórias de um Sargento
da Milícias". E, agora, temos
de
reconhecer que lhe
enriqueceu a carreira o
papel de Madame na sua
passagem
tempestuosa pela
peça "As Criadas".
 
— Cuja densidade me
atordoou e
enlevou. Credo!
Jean Genet é mesmo o
último poeta maldito como o
cha­mou
Sartre. E aquelas
cerimônias celebradas pelas
servas irmãs, numa
ambivalência
de ritos de

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

amor e ódio inspirados pela


patroa, parecem de fato
Missa Negra
como assinalou
o mesmo Sartre.
 
— Sim, mas a peça lembra
igualmente uma tragédia
grega. Personagens
femininos representados por
homens,
aquelas máscaras,
os mitos...
 
— E as situações levadas ao
paroxismo? Você sabe no
que estou pensando? Se,
em "As Criadas",
trabalhas-­
sem mulheres e a peça
fosse despojada de sua
proposital irrealidade,
retornaria quase à fronteira
do romântico.
 
— Do romântico?
 
 
 
Um livro de Marcuse
 
 
De Herbert Marcuse —
filósofo
alemão que leciona
na Universidade da
Califórnia — pode-se dizer
não ape­nas
que é um dos
mais lúcidos pensadores do
nosso tempo, mas também
que seu
pensamento está
influen­ciando as aspirações
juvenis no sentido de um
mundo
melhor. Começamos
a ter a versão brasileira dos
seus livros: "A Ideologia
da
Sociedade Industrial", seu
mais recente ensaio, e "Eros
e
Civilização", seu livro mais
di­fundido e, talvez, mais
apaixonante, ambos
com o
selo de Zahar Editores.
 
"Eros e Civilização" é
"uma
interpretação filosófica do
pensamento de Freud". De
acordo com
as teorias do
criador da psicanálise, os
instintos do id,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

principalmente
o sexual,
exigem contenção (e,
portanto, repressão) para
que sejam possíveis as
civilizações. Continuando a
sua interpretação, acha,
entretanto, Marcuse que
nestas exis­te mais-
repressão, a qual não
corresponde a uma
necessidade
de conservação
da estrutura social, mas a
uma vontade de domínio, a
uma tirania
que a torna
excessiva e odiosa.
Dispondo a civilização
moderna de uma tecno­logia
cada vez mais adiantada e
permitindo mais produção
em menos tempo —
exigindo,
pois, menos
trabalho alienado e
deixando lazeres para o
prazer — pode
evoluir para
outro tipo, em que a
sociedade tenha bases não
re­pressivas.
Assim, o livro
palpitante de Marcuse
analisa o pensamento
freudiano aplicado à
nossa
civilização indus­trial, que,
segundo o pensador, é
irracional, embora
sob
forma racional. É contra
essa irracionalidade, que a
torna autodestrutiva
(domínio de Thanatos) que
o domínio de Eros se
insurge, exigindo outras
formas
de relações e de
vida.
 
(4-8-68)
 
 
 
Mães modernas
 
 
Não vou falar (como
cinema) a
respeito de "Le
Cas du Docteur Laurent",
filme francês que saiu do
cartaz há umas três
semanas e que bem merecia

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

uma exibição mais


prolongada.
Direi, no
entanto, que muitos amigos
pediram minha opinião
sobre a excelente
película
de Jean-Paul Le Chanoi e,
como agora recebo uma
carta no mesmo
sentido,
aqui estou, dando a estas
linhas o título português do
filme.
 
Quero frisar que não se
trata de
crítica de cinema,
pois tal seria invadir a seara
do meu fraterno colega
Paulo
Porto, mas de emitir
minha opinião sobre a
história basea­da na corajosa
tese
do parto sem dor.
 
As solicitações em apreço
prendem-se naturalmente
ao fato de a Organização
Simões Editora ter reunido
em
livro as reportagens que
escrevi, no desaparecido
vesper­tino "A
Noite", sobre
as primeiras aplicações do
método psicoprofilático no
Rio de
Janeiro. Livro que um
repór­ter chamou de "volume
cor de violeta, mais
parecendo um livro de
poemas". No entanto, bem
que ele contém um poema,
o
qual fez o brilhante
Miranda Neto, no artigo
"Pavlov e a Poetisa",
publicado naquele jornal,
afirmar: "Sei, pelo livro de
Maura, que a gente
pode
nascer como um botão de
flor". Esse desabrochar lá
está belamente no
filme,
apresentando um parto
verdadeiro, como se fosse o
da própria Francine, a
heroína.
 
Muitos são, no entanto, os
espinhos que ferem os
pioneiros. Dr. Laurent é o
veterano Jean Gabin, que
está
bem convincente no

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

papel de médico e mestre


incom­preendido de futuras
mães
numa pequena cidade
france­sa. Direi que toda a
doutrinação que desenvolve
está
per­feita, fiel ao método
divulgado por Lamaze, tanto
na parte fisiológica como
na
psíquica. A reação, as
superstições, os
preconceitos, o amor à
maldição
bíblica do parieris
in dolore — também estão
muito bem apanhados.
Eis
que surge, porém, a jovem
mãe solteira (Nicole
Courcel) pron­ta para
submeter-se ao método
revolucionário e humanís-­
simo, revelando-se, dessa
forma,
duplamente heroica.
 
Quero, por isso mesmo,
salientar
um dos pontos
altos do filme: a resposta
que a rapariga enganada
deu ao pai da
criança (filho
dos ex-patrões), quando
este, que a abandonara —
apresenta-se
inesperadamente, pronto
para casar-se, a fim de que
o menino tivesse um nome.
Tenho que ela pensou que
só o amor justifica o
casamento, por­que
respondeu
maravilhosamente:
 
— Não é preciso. Ele terá o
meu.
 
(22-5-60)
 
 
 
A psiquiatria e os
atropelamentos
 
 
A psiquiatria, "a mais
nebulosa, a mais difícil e
sedu­tora das
especialidades", segundo
mestre
Antônio Aus­tregésilo,

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tornou-se um dos mais


procurados e ativos ter-­
ritórios
da medicina nos
tempos modernos. De
Charcot a Freud, de Freud
ao momento atual,
a
relevante ciência se
enriquece dia a dia, impelida
em grande parte pelo
número sempre crescente
de doentes da alma.
Realmen­te, não há negar
que são as
enfermidades
nervosas que sobrelevam
em nosso tempo; que se
observa, hoje, uma
exacerbação das
psicopatias, nascidas
sobretudo de fa­tores
econômicos e que é
muito
mais grave e dramática do
que pode parecer em
superfície, abalando, não
raro, a tranquilidade
doméstica, o mundo afetivo,
a vida social. Besta pensar
nos problemas que cria para
si próprio e para os outros o
doente da alma solto
na
vida.
 
Em face dessas realidades
impressivas e para que
dissesse algo sobre a
posição e a atividade da
psiquiatria na nossa
conturbada vida
contemporânea, entrevistei,
há pouco, uma
das maiores
autoridades brasileiras, o
pro­fessor Neves-Manta. A
conversa foi
no seu
consultório, conjunto de
salas claras, onde há muita
coisa a admirar —
as
estantes, os quadros, os
belos jarros chineses, as
raras obras de arte — e
que
parecem ter sido destinadas
e o foram, sem dúvida, pelo
patologista do
espírito e
pelo homem de fino gosto —
a proporcionar um ambiente
re­pousante,
desatado e

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

propício ao nevrótico, ao
psicopata.
 
O autor de "A Alma do
Homem" não só domina
com­pletamente a densa
região do neuropsiquismo
como
é um mestre
habituado a transmitir os
seus conhecimentos. Não
pretendo
recapitular aqui as
coisas palpitantes que então
me disse o ensaísta de "A
Arte e a Neurose de João do
Rio" sobre os aspectos
modernos da terapêutica
psiquiá­trica. Meu propósito é
reproduzir, tão somente, as
afirma­ções do
professor
Neves-Manta quando a
entrevista che­gou ao
cotidiano da nossa
ex-
metrópole e, principalmen-­
te, aos atropelamentos
verificados cada vez em
maior nú­mero nesta sempre
mui amada cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
Disse ele:
 
— O Rio de Janeiro é, sem
dúvida,
a cidade do mundo
em que se assinalam,
diariamente, mais atropela-­
mentos por
veículos
motorizados. Examinem-se,
psiquia­tricamente, os
motoristas apressados
e
examinem-se tam­bém os
transeuntes distraídos,
irritados e vociferantes — e
os resultados saltarão
estarrecedores. Muitos
motoristas serão, então,
afastados de suas funções e
inúmeros pedes­tres terão
que ser assistidos
psiquiatricamente. Esta a
rea­lidade. Enquanto isso,
repetem-se os trágicos
acidentes de rua, as
discussões, os palavrões, os
gestos exaltados à beira das
calçadas e os crimes
passionais multiplicam-se

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assustadoramente.
Evidentemente,
o mundo
enlouque­ce e os psiquiatras
não chegam sequer para as
necessi­dades
domésticas.
 
 
 
História de Blumenau
 
 
Porque sou uma enraizada
("Santa Catarina, minha
terra, em que estou presa
como uma planta" e
"abraçada ao universo tendo
as raízes em ti" — disse eu
em dis­curso
e em poema)
admiro, respeito, aclamo os
que o são. Aponto, pois, no
registro de
hoje, o nome de
alguém que ama
estremecidamente o seu
berço; que o estuda com
uma obsessão de amoroso e
de erudito; que o devas­sa
desde as origens de sua
história; que traça a sua
evo­lução com a direiteza de
um geômetra e o expõe na
sua estupenda atualidade. É
ele o eminente historiador
José Ferreira da Silva.
Sua
mais recente obra e, ao
mesmo tempo, sua obra
máxima — é esta História
de
Blumenau, que ele acaba de
me enviar. Como envia,
periodicamente,
"Blumenau
em Cadernos", órgão
destinado ao estudo e
divulgação da
história de
Santa Catarina, e "O Leitor",
órgão da Biblioteca Púbica
Municipal Dr. Fritz Müller, de
que é diretor. Como enviou,
há pouco, a
"Cronografia do
Dr. Blumenau" e "Entre a
Enxada e o
Microscópio", em
que narra episódios da vida
de Fritz Müller, o colono e o
sábio a quem Darwin
chamou de "príncipe dos
observa­dores". Como, há
tantos anos, me ofereceu

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sua preciosa e completa


biografia do Doutor
Blumenau.
 
No presente volume, todo o
contexto. Lendo-o, vibrei­ —
pois tenho a paixão do
pioneirismo — com a
pertiná­cia,
o labor, a
teimosia, a coragem, a visão
de rasgador de caminhos do
Dr. Hermann
Bruno Otto
Blumenau. Ven­do chegar os
dezessete primeiros
imigrantes que ele
trouxe; a
colônia crescer à margem
do Itajai-Açu; nascerem
cabecinhas douradas;
veredas se abrirem; louras
mãos trabalharem a terra
morena, gerando hortas,
pomares, as primeiros
culturas, e as primeiras
casas rústicas serem
construídas
com o
inigualável gosto alemão, as
cortinas tremulando, os
jardins florindo.
Depois, a
escola e a igreja. Mais tarde,
as fábricas semeando o
imenso parque
indus­trial
dos nossos dias. Antes,
porém, o destemor pioneiro
enfrentando a
região
desconhecida e os ataques
dos ín­dios, que eram, afinal,
os donos da
terra.
 
Na minuciosa e fiel narrativa
do
historiador, as déca­das
passam carregadas de
realizações; estruturam-se a
cidade e o município e vão
surgindo os grande nomes
de lideres e de clãs e
alguns
hábitos que até os não
descen­dentes de alemães
incorporaram. Entre
estes:
os delicio­sos "kraenzschen",
reuniões semanais
femininas em
casa de cada
uma das componentes do
círculo, com lanche, papo e
trabalhos de
agulha.
(Lembro-me de um, de que

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participei na Ilha de Santa


Catarina: eu
fingindo que
bor­dava margaridas, antes
de serem servidos os
divinos mo­rangos
com nata
e "strudel" de maçã com chá
e sim­patia.)
 
Livro de quase 400 páginas,
com o
selo da Edemi, de
Florianópolis, compõe-se de
quatro partes e um anexo,
abarcando, em termos
definitivos, os 122 anos da
histó­ria de Blumenau; que é
aberta com um retrato em
cores do seu preclaro
fundador. Obrigada, mestre
 
3-7-72
 
 
 
Livro de Zora
 
 
Um dos lançamentos mais
originais
e, ao mesmo
tempo, mais apropriados —
foi o que ocorreu com "Ie-­
manjá e
suas Lendas", de
Zora A. O. Seljan: numa
travessia marítima
Rio-
Santos-Rio, com danças e
cantos ao som de atabaques
e uma profusão de
ramalhetes jogados ao mar
em honra da rainha das
águas. O novo livro da vito-­
riosa
escritora de "Três
Mulheres de Xangô" tornou-
se logo um dos mais
procurados e, menos de
quinze dias depois daquela
ruidosa festa em alto mar —
Zora tra­zendo no vestido
brilhos de prata e escama —
saía a se­gunda edição.
 
Era ela, sem dúvida, o
escritor
indicado para nos
dar "Iemanjá e suas
Lendas". Lúcida estudiosa
do
sincretis­mo religioso
afro-brasileiro, inaugurou-o

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Zora em nossa dramaturgia.


Mais tarde, na África, ela viu
as fontes da cultura em que
se especializou. Foi
quando
publicou "Educação na
Nigéria", que, sobre
significar um canto
de amor
à jovem África, é um relato
claro das suas pes­quisas e
das atividades
que
desenvolveu como Leitora
de Estudos Brasileiros na
Universidade de Lagos.
Cresceu em consequência o
seu renome e Jorge Amado
agiu acer­tadamente quando
lhe solicitou escrevesse ela
o livro que milhares
reclamavam: "Iemanjá e
suas Lendas". Prefaciado
pelo autor de "Mar Morto" e
entremeado
de ilustra­ções,
entre as quais as de autoria
da nossa grande Sílvia, o
livro
de Zora A. O. Seljan é
antologia, é compêndio, é a
exegese de Iemanjá —
apresentando, nas suas
várias e sedutoras formas
aquela que é a rainha do
mar,
sereia, Iara, Nossa
Senhora, "mãe de todos os
orixás".
 
 
 
A nova mulher
 
 
"Trabalhe, peça ao homem o
amor e não o pão co­tidiano"
— aconselhava Eleonora
Duse. E, quer queira
ou não,
a mulher moderna estuda,
trabalha, luta. Há que
firmar-se como pessoa
humana, tornar-se uma
unidade econômica, um ser
participante. Quantas vezes,
porém, a mais áspera de
suas lutas não é a que trava
pela so­brevivência, por
um
lugar ao sol, um posto, um
diploma, uma carreira: é a
que se processa dentro
de si

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mesma. Este apelo atávico,


este coro das avós-rainhas-
do-lar, esta fala
de sereia
que vem dos recessos do
seu próprio coração, este
drama de não estar
desatada do passado e ter
de jogar-se na luta áspera
dos dias presentes —
conflito que ninguém
analisou melhor do que
Alexandra Kolontai em seu
livro
"A Nova Mulher e a
Moral Sexual". Nessa
abordagem e dentro da
faixa
do meu conhecimento,
penso que nem mesmo a
alcança Maria Lacerda de
Mou­ra, que
tanto marcou,
empolgou, tumultuou com
seus livros a minha
adolescência (ao
ponto de
eu levar para o culto, em
desafio, a "Religião do Amor
e da
Beleza" em vez da
Bíblia) e que foi, afinal,
embora injustamente
esquecida, a mais corajosa
escritora brasileira a tratar,
até hoje, da condição
feminina.
 
Já li que a expressão nova
mulher nasceu dos movi-­
mentos do Women's Lib.
Não. Ela é talvez
contemporânea do término
da Primeira Guerra Mundial,
época de que me parece
datar o livro da Kolontai,
que somente duas déca­das
depois chegou ao Brasil.
Foi
quando o li.
 
Quanto àquelas vozes
ancestrais,
chamando para o
comodismo e a
dependência, não há dúvida
que de mãe para filha
se
vão atenuando e que a
geração atual, a esse
respeito, já se encontra
quase
ou totalmente liber-­
tada. Agora, a menina-e-
moça já pode curtir o seu

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prepa­ro
para a vida com a
mesma naturalidade de um
rapaz. Adquirir o "fluido
imponderável que nutre o
espírito e se chama cultura"
(segundo Rose Marie
Muraro, em vinte anos, a
partir da década de
cinquenta, o número de uni-­
versitárias
cresceu dez
vezes no Brasil) e saber que
nas­ceu também para
exercer uma
profissão — tal
como o companheiro
homem. Poderá encontrar
contestações fora,
mas não
dentro de si mesma. Nova
mulher? Novíssima.
 
 
 
Cortes e súmulas
 
 
Os degraus do paraíso
 
 
Com a mesma estrutura
sólida de
"A Décima Noite" e
trazendo de novo a cidade
de São Luís com o sol
baten­do nos azulejos, seus
ventos, sobrados e ladeiras
— Jo­sué Montello
dá-nos,
agora, "Os Degraus do
Paraíso". E, como acontece
naquele
romance, desdobra
este uma tese inteiramente
nova. Creio mesmo que,
pela
primeira vez, os
conflitos entre protestantes
e católicos entraram na
ficção
brasileira, valorizada
ainda a temática pela narra-­
tiva e testemunho do
extraordinário romancista.
Nestes dias ecumênicos, em
que vemos as igrejas
cristãs
busca­rem a unidade,
principalmente os
moradores dos centros
maiores
devem espantar-se
com a violência daquelas
lutas entre os "crentes" e
os
seguidores da igreja de

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Roma. No interior, porém,


eram sem dúvida notórias e
mesmo exacerbadas na
década recuada de vinte,
quando começa a história.
Esta
gravita em torno dos
habitantes daquele amplo
sobrado da Rua do Sol, com
D.
Mariana convertida ao
protestantismo e
comportando-se de acordo
com sua têmpera
ríspida e a
inflexível e agressiva
ortodoxia dos seus irmãos
na fé — centralizando
os
acontecimentos. Registre-se
que a grande figura humana
do livro é um
agnóstico: o
Dr. Luna, médico da família,
médico da ci­dade. E que a
heroína, a
bela e verdadeira
heroína, não é Cristina, que
se torna freira, realizando
seu
sonho: é Morena, que
apenas queria viver e amar
e que foi, sem saber, ao
encontro da morte.
 
 
D.
Pedro I, jornalista
 
 
Em "D. Pedro I,
Jornalista",
o professor Hélio Viana, um
dos mais respeitados
pesquisadores de nosso
país, apresenta o fundador
do Império Brasileiro como
panfle­tário na imprensa de
sua época, o que até hoje
perma­necia praticamente
irrevelado. Figura das mais
singulares da história do
Brasil, passível de
múltiplos
e contraditó­rios
julgamentos, o fascinante
príncipe continua a des-­
pertar
a curiosidade dos
estudiosos. Na obra em
apreço, valiosa contribuição
para o
conhecimento de um
dos nossos períodos mais
agitados, temos a revelação
copio­samente
documentada
de mais uma faceta da

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personali­dade de Pedro I,
que assinava seus
artigos
com pseudô­nimos vários.
Eis alguns dos mais
pitorescos, usados pelo
nosso imperial colega: "O
Inimigo dos Marotos", "Sim-­
plício
Maria das
Necessidades", "Sacristão
da Freguesia de São João de
Itaboraí", "O Anglomaníaco
e, por isso, Constitucional
Puro",
"O Espreita", "O
Derrete-Chumbo-­a-Cacete".
 
 
Na selva de São Paulo
 
 
"Caminhou para a mãe com
a
solenidade de uma
gestante e fundiu-se no
abraço que lhe deu e derra-­
mou-se
toda no orvalho das
lágrimas. Renascia depois
da longa noite e deixava o
continente do Nada".
 
No Teatro Santa Rosa, antes
do
encontro semanal
promovido pela Civilização
Brasileira, possivelmente o
de mais
conteúdo (seu tema
foi "Literatura e Realidade
So­cial"), Helena
Silveira
autografou "Na Selva de São
Pau­lo" (1966). É seu
primeiro
romance e nele
temos o retrato de uma
sociedade aparentemente
sem salvação, os
perso-­
nagens mostrados no seu
exterior e dissecados nas
suas mais íntimas
reações,
as feridas, as deformidades,
as con­tradições, os
desesperos e,
sobretudo, a
dolorosa primazia do
negativo e do vazio. É a
"dolce
vita" em termos de
romance, captada e descrita
por alguém que, durante
quinze anos, foi a colunista
social da "Folha de São Pau-­
lo" e que é
uma das

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melhores contistas
brasileiras.
 
Falando a um repórter, disse
Helena Silveira que de tal
forma acreditava num
mundo melhor para todos
que
"o via e quase o
tocava". Deve ser por isso
que, no "con­tinente
do
Nada", de repente se abrem
veredas de ter­nura e
redenção. Há um clarão
de
esperança na cami­nhada
final de Sofia e seu encontro
com a figura materna
simboliza, de fato, um
renascer.
 
 
A dona da cantão
 
 
Fecharam-se aqueles
grandes olhos
verdes, extin-­
guiu-se a voz melodiosa,
cessou aquela vida marcada
de beleza.
Mas a fonte que
ela era continua a cantar.
 
Tendo estreado ainda
adolescente,
foi logo
recebida como um poeta.
Um poeta que, mais tarde,
em
"Viagem" conquistaria
definitivo renome. Livres e
livros vieram — até
"Solombra" e "Ou Isto ou
Aquilo", os últimos — com
sua
poesia de renda e
música, fixando instantes e
misté­rios da vida humana, o
inexorável, o efêmero, o
amor, o sonho, a solidão, a
morte.
 
A morte veio, mas a fonte
ficará
cantando com a sua
graça eterna e a consciência
que tinha Cecília Meireles do
próprio destino:
 
"Vou pelo braço da noite
levando tudo o que é meu:

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a dor que os homens me


deram e a
canção que Deus
me deu"
 
 
Dante
em Copacabana
 
 
Quando cheguei, já
Venturelli
Sobrinho havia
inicia­do a leitura de parte da
tradução que está
elaborando da
Divina
Comédia. Já o maestro
Salvatore Ruberti havia
pronunciado a sua oração.
Já repleta estava a sala
estrei­ta em que funciona a
"Associazione Amici
d'Italia".
Mas ainda pude apreciar
alguns cantos do "Inferno"
soando na admirável
tradução do poeta
Venturelli. À direita dele,
estava
Agrippino Grieco,
cujos oitenta anos vai o
Brasil inteiro festejar este
mês e
cura vibratilidade o
levou a entremear a leitura,
no sentido de um cotejo
emocionado, com a
recitação das grandiosas
estrofes italianas de Dante
Alighieri. Finalmente,
Agrippino falou, aclamado
pela sala toda. O que quer
dizer:
falou com aquela
ento­nação inimitável, que
tem graduações para toda a
esca­la
dos sentimentos, e
aquelas metáforas que só
ele é capaz de criar. E o
maior
poeta de todos os
tempos — o florentino que
teve, há três anos, seus
sete
séculos cele­brados com
ensaios, cantos e cursos —
teve agora, na tarde de
Copacabana, a mais viva
síntese em antíteses bri-­
lhantes assim: "Daquela
boca morta saem palavras
vi­víssimas" e "Sempre que
desejarmos
progredir,

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teremos de retornar a Dante


Alighieri".
 
(6-10-68)
 
 
Roteiro da agonia
 
 
"Mas para onde vão? Tentar
nas fazendas perto,
bobagem. Tudo terra dos
gringos".
 
Mesmo num ano de grandes
romances
brasileiros o
último livro de Macedo
Miranda se distingue como
um dos melhores
lançamentos de 65. Com
"Roteiro da Agonia", (égide
da Civilização
Brasileira,
orelha de Édison Carnei­ro)
coloca-se o autor entre os
ficcionistas
que mais vi-­
gorosamente têm retratado
a realidade brasileira. No
caso, trechos
do vale do
Paraíba, vindo a história até
os diais atuais.
 
O roteiro de uma agonia, as
transformações da fa­zenda
paternalista centralizada
pela Casa (onde "seu
Co-­
ronel era bom, dava bala de
alcaçuz, doce de gergelim",
e as moças
mimavam o
menino Luiz) em parte da
gleba sem fim da
Administração, com seus
donos estrangeiros, a
violência de seus métodos e
a incógnita de suas fina-­
lidades.
Ao caboclo Luiz
Pacuera, o herói do
romance, cumpre, contudo,
obedecer e servir
sempre,
seu drama se estendendo
pelas duas partes magistrais
do livro: "A
Es­trada" e "A
Rua". Brutalmente expulso
de seu rancho em Bom
Destino, enceta uma
dolorosa peregrinação,

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perde e enterra a mulher,


enjeita o
filho recém-
nascido, aquele Ricardo
Mariano de Jesus, na porta
de uma mansão da
cidade
do Vale, onde prosseguem
as suas provações, sau-­
dades, humilhações,
perguntas,
às vezes
revoltas, às vezes quase um
acordar.
 
 
Qual o primeiro romance
mineiro?
 
 
Leio notícia de que
entidades e
escritores de
Minas Gerais estão
realizando pesquisas no
sentido de deter­minar
qual
o primeiro romance de autor
mineiro. E uma outra de que
a indagação diz
respeito ao
primeiro roman­ce publicado
em Minas Gerais. Ora, se a
questão é
posta nestes
termos, tratar-se-á então,
antes, de saber qual a
editora (ou
tipografia)
mineira que primeiro teve
condições de realizar tal
publicação. Se,
porém, a
busca — e deve ser esse o
caso — visa a apontar o
primeiro romance de
autor
mineiro, creio ser ele
"Statira e Zoroastes", que
ocupa o
terceiro lugar entre
os romances — conhecidos e
publicados — de autor
brasileiro, vindo depois do
"Pe­regrino da América", de
Nuno Marques
Pereira
(1728) e das "Aventuras de
Diáfanas", de Teresa
Margarida da
Silva Orta, a
primeira romancista
brasileira (1752). "Statira e
Zoroastes" foi publicado no
Rio de Janeiro, em 1826, na
Imperial Tipografia
de
Plancher, e seu autor é
Lucas José d'Alvarenga,

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natural de Sabará, conforme


es­tabeleceu Martins de
Oliveira na sua primorosa
"História da Literatura
Mineira". (1969).
 
 
Gagarin, autor
 
 
Lançou a Gráfica Record
Editora o
volume "Psico­logia
e Cosmos", de Yuri Gagárin,
explicando na ore­lha:
"Este
é um livro sobre o Homem e
o Cosmos. Teve ele o
destino de tornar-se
o
testamento do primeiro cos-­
monauta do mundo. No dia
25 de março de 1968, Yuri
Gagárin pôs sua assinatura
de autor nesta obra No dia
seguinte desapareceu para
sempre". Desaparecimento,
quero acrescentar, que a
todos emocionou —
justamente pelo pioneirismo
espacial que lhe imortaliza o
nome, pela sua
mocidade e
por ter ele descoberto (oh,
poesia!) que a Terra é azul.
O volume
compõe-se de
sete capítulos subdivididos
em tópicos todos com
minuciosos ensina­mentos
e
atraentes títulos. Eis um
deles: "A Andorinha que faz
verão". (A
Andorinha é a
nave cósmica Vostok, onde
realizou sua inaugural
façanha o
simpático rapaz
que conheci na Associação
Brasileira de Imprensa ainda
presidida por Herbert Moses,
e cuja entrevista coletiva
resumi num comentário).
 
 
O
pão dos anjos jovens
 
"Desde o meio-dia, desde a
chegada de Hedwig, o
tempo era outro, era um
tempo diferente".
 

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Um dos maiores
acontecimentos do
ano
editorial é a versão
brasileira de "Das Brot der
Frühen Jahre" de
Heinrich
Böll, Prêmio Nobel de 1972,
realizada pela Arte-nova. O
livro conta
uma estória de
amor, narrando o encontro
de dois jovens que se
haviam conhecido
na infân-­
cia. Relato direto, na
primeira pessoa, mas tão
interiori­zado que a
realidade
presente terá apenas a
dimensão de uma curta rua,
enquanto longos
caminhos
marcam as distâncias que a
lembrança percorreu. Linear
e denso,
simples e
carregado dos sumos do
cotidiano, "O Pão dos Anos
Jovens"
traz, na capa
expressiva, passos de par
entre sóbrios azuis.
 
(21-8-73)
 
 
Triângulo
 
 
"Não saberia dizer como,
nem
quando, mas, com sur-­
presa, viu que a sua mão
pousava sobre a leve mão
de dedos
finos, como se
fossem mãos que se
houvessem pro­curado toda
a vida".
 
 
Chega "Balbino, Homem do
Mar", contendo, em se­gunda
edição, 21 contos de
Orígenes Lessa, um mestre
no gênero e um dos maiores
e mais fecundos escritores
brasileiros. Recentemente
laureado pelo PEN Clube do
Brasil com o Prêmio Luiza
Cláudio de Souza pelo seu
romance "O Evangelho de
Lázaro", que chegou em

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

tempo de Natal (1972),


leva-nos agora Orígenes a
uma releitura de quase duas
dúzias de suas histórias
curtas, sendo de
"Triângulo", a primeira do
volume, o trecho no alto
trans­crito. Talvez porque
dois dos personagens,
criações per­feitas, são de
ascendência germânica, é
este o conto de Orígenes
que mais fala à minha
sensibilidade de filha do sul.
E eu me sinto premiada ao
reler
"Triângulo", que, pela
contenção do enredo,
pintura dos caracteres,
inevitabilidade dos
comportamentos e ainda
pela pungência não descrita,
é
obra-prima em qualquer
literatura.
 
 
Itinerário da
Independência
 
 
Deixo para registro posterior
numerosos livros che­gados
antes deste que hoje saúdo
e que aparece no opor­tuno
momento: "Itinerário da
Independência", de Eduar­do
Canabrava
Barreiros,
membro do Instituto
Histórico e Geográfico
Brasileiro, cartógrafo
eminente e o ficcionis­ta de
"O segredo de Sinhá
Ernestina", que
obteve o
Prê­mio Afonso Arinos, em
1969, da Academia
Brasileira de Letras. (É
ele,
ainda, um poeta profundo,
um causeur ar­rebatador.)
Traz o volume
de agora,
como o livro laurea­do, que
fascinou Guimarães Rosa e
em que existem
con­tos de
nível altíssimo (entre eles,
"O Coronel") a marca
editorial da José Olympio. E
é todo um espantoso e

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

minu­cioso trabalho de
reconstituição histórica e
geográfica da viagem
empreendida, entre a
manhã de
14 de agosto e a
tarde de 07 de setembro de
1822, do Paço Real de São
Cristóvão
às decantadas
margens do (Ipiranga, pelo
prín­cipe D. Pedro e sua
guarda de
honra. No texto e
nos mapas, oriundos de
suas pesquisas e de sua
excepcional
capacidade, faz-
nos o autor ilustre
acompanhar a caval­gada de
que resultaria a
independência política do
Brasil. É trabalho, pois, para
saudar porque forjado
com
"sabe­doria inexcedível",
como o diploma Pedro
Calmon no pre­fácio.
 
(Este livro obteve o Prêmio
Joaquim Nabuco, da
Academia Brasileira de
Letras.)
 
(17-9-72)
 
 
Nélida
 
 
Outro dia, em entrevista ao
"Jornal de Letras", sobre
problemas do escritor e
rumos da ficção
contemporânea, a
romancista Nélida Piñon,
cujos livros e !áureas se su-­
cedem,
parecia falar não
apenas para a sua, mas
também para as gerações
em torno. Pelo
menos, eu
desejei que todos a lessem,
a ouvissem. Foi, por certo,
com o mesmo
tom objetivo
e lúcido que participou ela,
no mês passado, em Nova
York, do
Seminário de
Tradução e Literatura
Latino-Americana, ao lado
de altas figuras
do

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

continente. No encontro,
pronunciou Nélida uma
conferência denun­ciando
"o
isolamento do escritor
brasileiro dentro do boom
da literatura
latino-
americana", segundo
comunica­ção que acabo de
receber.
 
(29-7-74)
 
 
Menino Jorge de Lima
 
 
A segunda edição da
"Antologia Poética de Jorge
de Lima" (José Olympio —
1974) traz uma
seleção dos
vá­rios livros do autor de "A
Túnica Inconsútil" — desde
"Poemas da Infância" até
"Invenção de Orfeu".
 
Jorge de Lima é poeta
maior, é
culminância. Dele
só diria que foi meu amigo e
me deu a honra de figurar, a
meu
lado, na "Coleção de
Poesia Moderna",
originalida­de editorial de
Victor
Brumlik, ilustrando
ele mesmo os poemas do
seu caderno. Direi, no
entanto, algo
mais,
mostrando versos do
pequeno Jorge de Lima, que
bem denunciam o poeta
imenso que ele viria a ser.
Vejam, por exemplo, como
poetava Jorge aos sete
anos: "Eu queria saber
versos / como meu amigo
Lau. / Nunca vi versos mais
belos / como ele sabe lá. /
Trocava até meu carneiro /
meu velocípede sim / sem
saber os seus versos / meu
pai que será de mim? / Meu
pai me bote na escola /
de
meu velho amigo Lau. /
Quero aprender com ele /
versos e não b, a, bá!"
E,

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aos nove, forjou ele este


grande poeminha:
 
"Tenho pena dos pobres,
dos
aleijados, dos velhos.
Tenho pena do louco Neco
Vicente
E da lua sozinha no céu."
 
 
Rachel, Rachel
 
 
O diretor da Biblioteca
Nacional e
o presidente do
Conselho Federal de Cultura
convidaram para a inaugu-­
ração, a
25 de setembro, no
saguão da BN, da Exposição
Rachel de Queiroz,
comemorativa
do 40º
aniversário da primeira
edição de "O Quinze",
romance de
estreia da
grande escritora cearense.
Foi a importante mostra
orga­nizada pela
bibliotecária
Esmeralda Ribeiro de
Mesquita e apresentou não
só exemplares das
edições
todas do romance escrito
por uma jovem de dezenove
anos, mas das demais
obras
da autora de "As Três
Marias", além de
manuscritos, retratos,
documentos, originais,
Rachel traduzida, Rachel
tradutora, a trajetória de
Rachel em quatro decênios
de produção e de glória.
 
1970
 
 
Intermezzo
 
"A gente pensa que a Vida
está na extensão do mun­do
e, no fim, descobre que ela
possa conter-se, inteira,
em
um vale limitado, fechado
por montanhas..."
 
 

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Palavras de Rosália, vale


que
Maria Jacintha, a gran-­
de dramaturga, criou em
sua nova peça, editada pelo
Serviço Nacional de Teatro:
"Intermezzo da Imortal Es-­
perança". Falar
no nome da
autora é citar uma das altas
expressões da nossa cultura
— como
escritora, mestra,
tradutora, jornalista. Suas
numerosas peças, que se
ini­ciaram
com "O Gosto da
Vida", premiada pela
Academia Brasileira de
Letras e
encenada pela
Companhia Jayme Costa, e
cujo ponto alto é a
extraordinária
"Já é Manhã
no Mar", encenada pelo
Teatro de Arte do Rio de
Janeiro e
publicada pela
Editora Vozes — aliam ao
bem urdir e ao bem
escrever o trato dos
problemas contemporâneos.
Uma perfeita comunhão de
forma e conteúdo, o texto
ma­gistral
e o tema profundo
e humano, levando o
expectador — ou leitor — a
pensar, a
participar.
 
Em "Intermezzo da Imortal
Esperança", além dos dons
sucintamente lembrados,
temos inaugurações. En­tra
na dramaturgia a tese
apaixonante de uma
comunida­de fraterna — e o
vale torna
a peça um cimo.
A gênese de tudo é outra
originalidade de Maria
Jacintha, por­quanto
são de
sobreviventes de
exterminadoras bombas, de
um "mundo que explodiu e
se desagregou", as mãos
que plasmaram aquele reino
de amor. E os salvos
cantam
ao final, enquanto a
luminosa Isabel exclama:
"Temos sobre os
ombros
toda a responsabilidade

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

deste mundo que acaba de


nascer".
 
 
Eros Volúsia
 
 
Rebento de poetas, filha do
cantor
do "Divino Infer­no" e
de Gilka Machado, uma das
maiores vozes da poe­sia
brasileira, Eros Volúsia
"traçou, com o corpo, no es-­
paço, as palavras
profundas
do silêncio", plasmou os
seus primeiros versos de
passos e de
gestos no
inesquecível terreiro de João
da Luz. Filha da poetisa de
"Miséria", menina que se
criou no morro, entre as
gentes paupérri­mas
da
capoeira e da macumba,
com elas aprendeu os
primeiros volteios. E estreou
em
plena noite clara, du-­
rante as negras cerimônias.
Sagrou-a Babalaô.
 
Não cessou, daí em diante,
o seu
deslumbramento ante
os motivos virgens da folk-
dance brasileira — que
ela
descobriu e, mais tarde,
estilizou e enriqueceu, pre-­
senteando com uma
coreografia nova, estuante
de força telúrica, a
coreografia universal.
 
Encontrando-se a si mesma
ainda
dentro da infân­cia,
com mil ritmos na alma,
compreendeu que era dan-­
çando que
os derramaria
pela terra. Seu destino
estava traçado. Começou a
estudar dança
clássica. Foi
aluna de Nemainof durante
quatro anos. Em todo esse
tempo, não
deixou, porém,
de ter o mais íntimo contato
com a nossa coreografia
popular.
Conheceu todas as
danças regionais do país,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

debruçou-se enamorada
para elas,
des­cobrindo suas
fontes afro-europeias ou
suas firmes raí­zes
ameríndias e
vendo, em
todas, a presença do Brasil,
as características da raça.
Viu dançar
tribos selvagens,
leu a nossa história, estudou
o nosso folclore. E, ao mes-­
mo
tempo que seu leve
corpo flexível ia ficando
senhor de todas as severas
regras
acadêmicas, a
dançarina-crian­ça ia
estilizando e opulentando as
diversas
manifestações
coreográficas do nosso
povo.
 
Nascia a dança brasileira —
com
seu estranho co­lorido,
sua graça ardente, sua
magnífica unidade.
 
(Fragmento de uma
reportagem)
 
 
Teresinka
 
 
Filha de Minas Gerais, onde
publicou os seus pri­meiros
trabalhos, Teresinka Pereira
reside desde 1960 nos
Estados Unidos, onde
divulga incessantemente
livros e valores nossos.
Poeta,
contista, teatróloga,
jornalista, mestra, crítica e
ensaísta, a jovem
brasileira
se derrama pelo mundo em
vários gêneros e línguas,
porque traduzida
em vários
países. Por sua vez, ela
traduz, promove, congrega,
edita. É
atualmente
professora na Universida­de
de Colorado e dirige a
revista
trimestral "Poema
Con­vidado" — mensagem
nova, texto de
confraternização — onde
aparecem (em português)

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criações de poetas de vá­rias


latitudes e resenhas que
demonstram um
intercâmbio anulador de
fronteiras.
Grande
Teresinka!
 
 
Postal para Hilda
 
 
Não terei, cada manhã, de
renovar
a água no jarrão
escuro. Mesmo assim, as
flores que nele estão
mergulha­das —
não
murcham, não secam, não
morrem. São vivas e
frescas, primaveris e
amanhecidas como quando
foram cortadas. Pode,
também, estar fechada a
janela,
cerrada a cortina. O
sol estará batendo sempre
no jarrão florido: nos
malmequeres abertos, nos
botões e nas folhas, na
grande margarida voltada
de
costas, nos cachos
tomba­dos, nas flores
amarelas, vermelhas, fulvas.
O sol
estará batendo mesmo
que seja noite — e as flores
continuam vivas como eram
quando foram colhidas no
jardim da montanha. Vivas
e refulgentes, espalhadas no
jarrão es­curo, suspensas na
parede clara. Harmonia de
contrastes, fauvisme,
graça
e brilho — no quadro de
Hilda Campofio­rito. "Flores"
é o nome
simples e breve
do ramo de ma­gas. Muito
obrigada, Hilda, pela dádiva
destas
flores eter­nas, que
derramam alegria no meu
lar sem crianças, que me
saúdam no
meu cansado
regresso cotidiano, que me
ajudam, me inspiram e
fazem crescer o
meu amor à
vida, ao universo, à beleza.
 
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Mulheres no transplante
 
 
Falarei, em seguida, de
Aurora, a
doutora que se
dis­tinguiu no primeiro
transplante de pâncreas
realizado no
mundo. Esposa
do médico que, no Hospital
Silvestre, che­fiou a equipe
capaz de
tal feito, o Dr.
Édison Teixeira, Au­rora
atuou como anestesista e,
pela
segurança do seu
trabalho, pela juvenil beleza
do seu rosto e, ainda, pelo
seu
prenome, ela significa
realmente uma aurora. E fa-­
larei numa jovem mulher
morta: aquela de quem saiu
o pâncreas redivivo. Parece
que se chamava Helena e
mor­reu do coração. Que
todos gostavam dela, da sua
graça envolvente, da sua
simpatia irradiante — li
algures. Mas o que me
comoveu, sobretudo, foi
saber
que, durante os dias
em que esteve
hospitalizada, escrevia
versos. A moça
enterrada no
Caju, despojada da glândula
enorme que é função e vida
no corpo de
outro ser
humano, escrevia versos.
Como seriam eles?
Sombrios, líricos,
revoltados,
sublimados,
leves como papoulas ou
vincados pela asa da morte?
Um punhado de
sementes
que pretendeu jo­gar na
terra? Oh, eu gostaria de lê-
los e acho mesmo
que
devem ser conhecidos os
versos escritos in extremis
pela jovem
doadora que
entrou para a história dos
transplan­tes no Brasil.
 
9-6-68
 
 
Angra
& Reis

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

 
 
Conheci Brasil dos Reis — o
poeta
de Angra dos Reis,
que pôs a sua terra dentro
do próprio nome — num
congresso
de escritores,
realizado há muitos anos em
Porto Alegre. E tive uma
tremenda
admiração pelo
con­gressista maduro (e
seguro) que soube defender
com dig­nidade
e panache,
às vezes num tom magoado,
outras atrevido, a sua
esplêndida
tese sobre "A
Luta do Escritor no seu
Próprio Meio". Voltando à
sua
terra, nunca deixou de
me enviar notícias, versos e
"O Litoral", a
folha de Angra
que Reis dirige. Fui revê-lo
outro dia — quando, com
Alípio
Mendes, o conhecido
historiador angrense, veio
para uma tarde de
autógrafos na
Livraria São
José. Brasil dos Reis logo se
viu rodeado pelo carinho
que nem
sempre recebem
os poetas e os santos. Autor
de mais de vinte volumes de
poesia
impregnada dos ares
e húmus da Angra natal,
desde "Lugares Comuns"
(1923) até "Be­nedito Noite"
(1971) — ele autografou
para numerosos
amigos, em
que predominavam
personalidades fluminen­ses,
seus recentes
opúsculos:
Olhando os Astros, Desper-­
tar, Na Rota do Infinito,
Súplica e Velho Convento.
Com uma palavra terna para
cada um e
sentindo que ali
está­vamos principalmente
homenageando sua
fidelidade à terra
e à poesia,
o bravo ser humano, o
pássaro de Angra.
 
 
Puro sangue é best-seller
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

 
Encontra-se quase
totalmente
esgotada e, em
conse­quência, marchando
para nova tiragem — a
segunda edi­ção
atualizada
de "O Cavalo de Corrida", do
Prof. Dr. Octavio Dupont.
Verdadeiro tratado sobre a
criação, a patologia e a
terapêutica do Puro-Sangue,
o volumoso livro do cientista
belgo-brasileiro é
copiosamente ilustra­do de
fotografias e vem prefaciado
pelo ilustre mestre Paulo
Dacorso Filho, que assim
define compêndio e autor:
"livro obrigatório para
quantos se dedicam à
clínica
espe­cializada" e "o maior
clínico veterinário do Brasil
em
todos os tempos".
 
 
Telas espaciais
 
 
Ely Braga pertence a uma
família
de intelectuais, é
médico e pianista — e
pianista que chegou a
apresentar
inovações na sua
técnica de interpretação.
Mas o que importa agora é o
alto
pintor abstracionista e a
simpática figura humana,
que amanhã inaugurará,
com
suas novas telas, a
mais nova galeria de
Ipanema: a Real Galeria de
Arte.
Pintor merecidamente
louvado pelas suas mostras
vanguardistas, o artista
partiu
para outras pesquisas
e des­cobertas, atingindo em
seus quadros, numa espécie
de sintonização de todos os
seus dons, ao que ele
chama de "minha fase
superespacial". Pois são as
novas cria­ções de Ely Braga
que amanhã
admiraremos
em noite de festa. Quanto a
mim, já estou pensando nos

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traços, nas
manchas, nos
cortes, nas cores que me
perturbarão — e nos novos
mundos em que
me vou
perder.
 
1970
 
A viúva branca
 
 
Neste Ano Internacional do
Livro —
que dará mar­gem a
levantamentos, pesquisas,
balanços, trabalhos no­vos,
esperadas reedições —
impõe sua presença a edi-­
ção comemorativa do 20º
aniversário do aparecimento
de "A Viúva Branca", de
Ascendino Leite.
Tal
promoção é uma iniciativa
da Livraria São José,
estando, pois, sob a égide
de Carlos Ribeiro. Este não é
só o "mercador-de-­livros",
como gosta
de rotular-se,
nem apenas o amigo dos
livros e dos que os
escrevem, mas também
ele
pró­prio um escritor, como
prova, mais uma vez, com a
nota crítica em que
reafirma
o significado do romance de
As­cendino e sua
"inquestionável
importância
no quadro da moderna
ficção brasileira".
 
Assim é de fato, pois a
releitura
de "A Viúva
Branca" não nos traz nada
de ultrapassado ou
demitido.
Permane­ce o livro
com aquela aura de
renovação que nos comu-­
nicou há quatro
lustros e
obriga-nos a reconhecer
todos os seus valores, dos
quais mencionarei
a alta
qualidade literária e a
originalidade no tratamento
do velho tema do
adultério.
Avulta, em suas páginas, a
"brancura lunar" do rosto de

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Ângela, "rosto de lírio


machucado", bem como seu
fascínio e seu
mistério
(mistério ou
"desdobramento de
personalidades"?) que a
colocam na galeria das defi-­
nitivas criaturas da nossa
ficção.
 
1972
 
 
Marcos
em prosa e verso
 
 
Marcos Konder Reis, poeta
que é
dos mais significa­tivos
de sua geração (a de 45),
mesmo quando se põe a
escrever em prosa,
mantém-se poeta. É o que
observo no "Caminho de
Pandorgas", conjunto de
crônicas ("di­vagações
líricas") em que
flui sempre
a poesia e surgem imagens
(invejáveis) como aquele
"pombo cor
de noiva" ou o
grupo juvenil chegando
"como um punhado de ara-­
çás
mordidos e atirados na
estrada". Recebo também
sua "Antologia
Poética". Esta
contém poemas de livro
inédito e dos vários
publicados
desde "Tempo e
Milagre", cada um
merecendo a transcrição
que vou
fazer do so­berbo
achado que é Vinho Perdido:
"Eu cravo teu lado esquerdo
/ Com flecha desesperada; /
Não sei se devo ou não devo
/ Às vezes penso... e
mais
nada. / No es­tribo
quebrando galhos / Do
bonde da madrugada / Do
lado
esquerdo é setembro /
Daqui a pouco, alvorada. /
Teus passos batendo,
noivos, /
Despertam sobre a
cal­çada / Um bando de
pombos, goivos / Que
amarro con­tra a
enseada".

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1973
 
 
"Sexo e vida social na
Suécia"
 
 
Este livro de Brigitta Linner,
lançado pela Editora Laudes,
lembra-me o capítulo "A
Mulher Sueca" de
um livro
de Álvaro Valle, que eu já
comentei. Ele soube apre-­
sentar uma síntese
das
realidades que a grande
especia­lista sueca analisa
agora com o seu vasto
conhecimento de mestra e
médica. Registrando aqui o
aparecimento da obra,
quero
assinalar estes dois
aspectos: 1.0 — A eman-­
cipação da mulher sueca
tem como
fundamento a
edu­cação sexual, aliás
explicada no mais longo
capítulo do livro,
e não é
nem poderia ser algo de
solto, de excep­cional,
porquanto faz parte do
contexto da existência do
grande país nórdico. 2.0 —
A autora, frequentemente,
se refere a falhas (e deve
havê-las). No entanto, como
seria bom que muito
adulto
intelectualizado que anda
por aí — conhecesse
anatomia como os pequenos
suecos!
 
 
"Não estamos sós"
 
 
Este apaixonante livro,
lançado
pela Editora Cultrix,
tem como subtítulo "a busca
de vida inteligente em
ou-­
tros mundos" e é de autoria
de Walter Sullivan, editor de
Ciência do
"The New York
Times". No ângulo inferior
da capa, o esquema de

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

grande
radiotelescópio
captando o mistério dourado
das galáxias. De lá
chegaram (e con­tinuam)
as
pulsações no rádio — talvez
mensagens in­tencionais de
outros seres e
mundos. Nas
páginas de dentro, em
linguagem clara e acessível,
todos os conhe­cimentos
que
a Matemática, a Astronomia,
a Física e a Biologia
adquiriram sobre a
imensidade dos espaços. E a
conclusão sedutora a que já
chegaram Flammarion, as-­
trônomo,
e Maeterlinck,
poeta: Não estamos sós
entre os bilhões de esferas e
nebulosas
nos universos
possíveis.
 
 
Neila dos muitos talentos
 
 
Neila Tavares, recém-
chegada de
uma viagem de
es­tudos pela Europa, além
de atriz de teatro, cinema e
tele­visão
e além de poeta
(sim, poeta) — é uma
estudiosa, uma
pesquisadora. Nas
"Notas do
Fim do Ano", publiquei carta
que me mandou de Roma e
agora,
com toda a sua
graça, mas também com
aquele tom sério com que
en­cara os
assuntos da
cultura, me diz — tão
radiosa e res­ponsável — em
vários pontos da
nossa
palestra: "Via­gem
proveitosa. Encontro
comigo. Distanciei um pouco
mais os meus horizontes. E
voltei com mais vontade
para o trabalho. O material
de pesquisa sobre Brecht,
de que falei na carta, me
será enviado pelo correio.
Enquanto espero os
recursos audiovisuais, vou
trabalhando o texto. De

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volta, revi
também o
material da minha pesquisa
bi­bliográfica sobre Di
Cavalcanti. É um
trabalho
que de­sejo publicar. Tenho
ainda outros (uma pesquisa
sobre
literatura de cordel,
outra sobre as origens do
teatro bra­sileiro) que vou
tentar desengavetar agora.
Imagine: além de todos os
novos planos, ainda
resolvi
desentocar os velhos. Já viu
a força com que voltei?"
 
27-3-72
 
 
Tempo
permitido
 
 
"A mim me pertence o meu
tempo permitido. Aquele
que me foi dado."
 
Parece que Lausimar Laus
pôs a
funcionar todos os
dons revelados em outros
gêneros e searas — para es-­
crever
seu primeiro
romance. Para fixar
vivências, relem­branças,
confidências (e
inconfidências), vida fluindo
num "campus" de
estudantes em Madrid e
estendendo-se em viagens
(de "auto-stop" ou não).
Luisa, a figura cen­tral,
é
madura, lúcida, equilibrada.
Ela e os demais per-­
sonagens põem no livro a
marca do testemunho. Do
tes­temunho do nosso
tempo, tornando o romance
digno de
ser estudado por
muitos ângulos. O passado,
por exem­plo, vem à tona
através da
evocação
permanente de Celina, filha
do sul, compondo uma
interpretação
altamente
valiosa de aspectos da
comunidade alemã de Santa
Ca­tarina. Aliás, o
tempo,

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que já foi chamado de


"tecido mais íntimo da
própria vida",
tem, neste
novo livro de Lausi­mar,
como que pegada sua sutil
presença.
Principalmente ao
forjar-se o raro e rápido
amor entre a mulher quase
mãe e o
homem quase
criança (egresso de um
seminário, virgem e viril):
Luisa e Antoine.
Seu
primeiro encontro carnal,
irremediável "como terra
recebendo", é
contado em
uma das páginas mais
admiráveis de "Tempo
Permiti­do", que
tem prefácio
consagrador de Rachel de
Queiroz.
 
 
Crônicas
de bolso
 
 
Com introduções, em verso
e prosa,
dos intelectuais
capixabas Carlos de Campos
e José Ignácio Ferreira e a
transcrição
de uma carta do
inesquecível historiador
Carlos Xavier Paes Barreto
— tio da
autora, meu amigo,
mestre de todos nós — Nilge
Limeira, colunista de "A
Gazeta", da capital espírito-
santense, lançou, em noite
festiva de maio,
"Crônicas
de Bolso". Livro de quase
200 páginas, reproduz, em
graciosas minicrônicas, o
cotidia­no da cidade nestes
últimos tempos. Nenhum
aconteci­mento é olvidado,
nenhum gesto ou data,
nenhum fato marcante para
a
comunidade ou importante
apenas para o coração. E
aquela rosa orvalhada na
brancura da capa — é bem
símbolo e síntese. Da
homenagem diária à terra e
à
gente, das ternuras
derramadas. A noite de
autógra­fos, realizada no

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Edifício
Aldebaran, foi um
acontecimen­to na
"cidadezinha azul" de
Haydée
Nicolussi (hoje a
grande Vitória) e nela estive
representada pela escultora
Ely, a dos belos anjos
barrocos.
 
1974
 
 
As fadas de Ruth
 
 
Ruth Bueno, autora que
acompanho
desde sua
estreia ("Diário das
Máscaras"), que tem
algumas páginas
que
lembram Joyce
("Corredeira"), inovações e
audácias em
"Encontro
Antecipado" — está
publicando, pela Record, "As
Fadas
da Árvore Iluminada".
Ninguém pense que o
voltar-se para os pequenos
leitores significa escrever
brincando, arte menor.
Trata-se de seara difícil,
que
mui­tos cultivam e onde
poucos logram colher um
êxito per­durável. Mas
"Ruth
Bueno fez obra de fada,
pondo uma luz importante
na árvore da nossa
literatura infanto-ju­venil
original" — como escreveu
Antônio Houaiss.
 
 
Um pioneiro
 
 
O suplemento literário de "O
Estado de São Paulo", de 25
de novembro de 1973,
publicou o conto
"Bocó­-de-
Mola", de Valdomiro Silveira,
em homenagem ao cen-­
tenário
do iniciador da
literatura regionalista no
Brasil, ocorrido a 11 daquele
mês e
ano. Havia uma nota

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fri­sando ter o conto, inédito


em livro, aparecido em
"O
Filhote", edição da tarde de
Gazeta de Noticias, a 31 de
maio de 1897. Lembro o
fato como primeira home-­
nagem minha ao centenário
de
nosso jornal, que, entre
suas glórias, conta a
presença de grandes nomes
da
lite­ratura brasileira e da
portuguesa. E o paulista
Valdomiro Silveira é um
deles. Lembro-o também
para assinalar a chegada de
"O Mundo Caboclo",
resultante da seleção de
contos dos quatro livros de
Valdomiro, realizada pelo
escritor Miroel Silveira, seu
filho.
 
De "Livros do Sertão"
(5/5/75)
 
 
 
 
Estórias que eu não
inventei
 
 
 
 
Os visitantes da noite
 
 
— Não, não fale agora do
que lhe
parece a solução
para os nossos tormentos e
diga por que, nesta hora
inteira do
corte de luz,
quando seu marido não
está, vem para o meu
apartamento ou
convida-me
para ir ao seu. Será medo.
 
— Não nego.
 
— Mas de que? Não diga
que é de
fantasmas, pois
conheço a sua integral
descrença na sobrevivência
da alma.
 

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— Pois digo. É que sofro de


uma
espécie de complexo
que data da infância. Tão da
infância que o temor, que se
foi cristalizando com o
tempo, é sempre das coisas
arrepiantes ouvidas naquela
fase-raiz da existência.
Assim, a verdade —
contraditória reconheço — é
que não
creio e tenho medo.
 
— Da infância? Mas sua
formação
não foi
protestante?
 
— E bem ortodoxa. O que
não
impediu que, aos vinte
anos, eu largasse o fardo da
religião, embora
permanecendo protestante
ao meu modo...
 
— Contra as injustiças
sociais, eu
sei. Mas o que
desejo saber, agora, é a
razão do seu medo. Como e
porque surgiu
ele em
ambiente completamente
impermeável à aceitação de
manifestações
sobrenaturais?
 
— Aí é que está. Tudo
começou
quando prima
Salomé se tornou
kardecista. Foi um
bouleversement em nossa
casa. Papai considerava
tentações do demônio os
fenômenos espíritas e na
sua
presença não se falava
do assunto; mas mamãe era
fascinada: E, por mais que
afas­tassem as crianças,
comecei a ouvir, aos
pedaços, histó­rias de coisas
que
haviam acontecido
muito antes de eu nascer.
As que mais me
impressionaram, além
daqueles assoprões (ai,
nunca acendo uma vela
quando estou so­zinha), no
sobrado onde vovó morou

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

com as filhas ainda


solteiras, foram as
assombrações no
casarão de
uns pa­rentes afastados.
 
— Quer contá-las? Coleciono
assombrações.
 
— Para ter uma ideia,
descreverei
o que aconteceu
certa noite. As mulheres já
estavam recolhidas; os ho-­
mens,
porém, ainda
conversavam em torno da
mesa da sala de jantar,
quando, por volta
das onze
horas, uma das janelas
subitamente se abre e
surgem três cabeças
perguntando ao mesmo
tempo: Ainda não
terminaram? Os
interrogados se entreolham,
erguem-se, dizem-se boa-
noite e recolhem-se aos
seus quartos.
 
— Que horror!
 
— Bem sabiam que estava
na hora de
os fantasmas
tomarem conta da mansão,
quebrarem cristais (que
apa­reciam
inteirinhos no dia
seguinte), reunirem-se em
ani­mados repastos em torno
daquela mesma comprida
mesa. E ouviam-se
gargalhadas, arrastar de
sedas,
diálogos em que
eram pronunciados os
nomes das pessoas da famí-­
lia às vezes, o
piano se abria
e alguém tocava. Alegria.
Barulho. Os que ainda não
tinham
conseguido dormir —
percebiam, também, que o
salão estava fortemente
iluminado.
O pior era
quando a claridade se
estendia pela casa toda. A
claridade e, não
raro, o
movimento. Ah, os passos
nos corredores, os
empurrões nas camas, as

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

mãos invisíveis abrindo


armários, as vozes soando
dentro dos quartos, ciciando
perto dos ouvidos, repre-­
endendo os namorados
despertos. Ouviam, ainda,
pal­mas
e entrarem novos
convivas e trocarem
saudações, beijos,
perguntas. Mas os
habitantes da casa mal-
assom­brada não ouviam
apenas: viam também,
como haviam
visto aquelas
três cabeças. Vultos
pequeninos irem crescendo
à beira da cama,
sombras
deslizarem, o leque antigo
sair da caixa e vir abanar a
moça que estava
com calor,
a mão-sem-dono trazer um
copo d'água para o doente
que estava com
sede.
 
— Eram, então, espíritos
galhofeiros, fantasmas gen-­
tis?
 
— Nem sempre. Houve uma
noite de
quase tragé­dia. Foi
quando eles responderam
ao desafio de um ir­mão da
dona da
casa, que deixara a
sua longínqua fa­zenda e
viera ver para crer, que não
era
homem de fan­tasias.
Viera com sua bravura e
fora dormir. Dormir? Mal se
deitara o varão e sentira
logo aquelas cócegas.
Deixem de brincadeiras,
meninos. Dedos frios sobre
os lábios, zangadas vozes
em torno. Já trêmulo,
conseguiu sentar-se, mas o
deitaram de novo. Começou
então uma cantoria fúnebre
e sentiu que o estavam
carregando com a cama
pelos longos corredores.
Quando
todos acorre­ram
aos gritos do parente
encontraram, no mesmo
quar­to de
hóspedes onde o
haviam deixado tão sereno,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

um homem em pranto e em
pânico. Foi
transportado
como uma criança para a
cama do casal, tomou
calmante, veio
médico. E o
bravo senhor quase morreu.
 
— Jesus! Mas será que eles
adoravam aquela coe-­
xistência noturna? Por que
não se mudavam?
 
— Diziam que... Oh, chegou
a luz.
Tenho que ir. Muito e
muito obrigada.
 
— Não. Sou eu quem
agradece, pois
acabo de ga-­
nhar o melhor castelo
inglês.
 
 
 
A herança
 
 
A moça ouviu a voz do
irmão
perguntando por ela.
Deixou a máquina e
caminhou até à porta, o
lindo rosto
quase aflito, uma
pergunta lhe rasgando ainda
mais os olhos. Nada! Apenas
ele
fora levar um cabograma
e o funcionário do Tribunal
lhe entregara a papeleta
que
tra­zia na mão, dizendo-lhe
que havia uma comunicação
ur­gente a fazer à
locatária
do endereço ali consignado.
Achava que era alguma
coisa boa, porque o
homem
sor­ria com ar de mistério.
Viera, então, buscá-la para
irem até lá.
 
O homem sorria com ar de
mistério?
Realmente só
poderia ser algo bom. Eram
gente pacata: só iam à
igreja, à escola
dominical,
raramente a um cinema e a
uma festa familiar. Gente
muito nova, a
mãe com
menos de quarenta anos,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

sempre com seu vestido


preto de viúva,
trabalhando
o dia todo, dirigindo
modelarmente a família. A
irmã lecionava no
outro lado
da Ponte, ela era
datilógrafa, aquele garoto
de quinze anos
trabalhava
no Cabo Submarino, os dois
pequenos estavam na
escola. Coisa má não
podia
ser, portanto, que não
transgrediam nenhuma lei.
E o homem não sorria com
ar de mistério? Fechou a
máquina, retocou-se, pediu
para sair mais cedo e lá se
foi com o irmão pelas ruas
da cidade de Ondina.

Ah, já estava entendendo


tudo: eram aqueles arrozais
e aqueles engenhos que os
ingleses, tios de seu pai,
haviam deixado lá por São
Miguel e Alto Biguaçu.
Sempre ouvira falar
naquelas
terras — ligadas às palavras
de­manda, direito, herança. E
comunicou
ao irmão a sua
descoberta, resolvendo
ambos prolongar o caminho
para fazer
planos. Pois,
naquela altura, não havia
mais dúvida: estavam ricos.
Ele pensou
logo no seu
grande sonho: comprar um
carro. E quase houve briga.
 
— Não, primeiro mamãe.
Mãe não é
para viver no
tanque e no fogão. Mãe é
para preparar sobremesa
quan­do quiser,
ter
empregada, descansar em
cadeira de ba­lanço. Vamos
dar-lhe tudo isso e,
antes de
tudo, uma casa, uma casa
magnífica. Nosso chalé está
caindo de velho e
o aluguel
nos leva a metade dos
nossos salários. Agora
vamos ter casa, senhor
co-
proprietário. Para nossa
irmã então, será um

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

paraíso. Deseja tanto dar


aulas
par­ticulares, fundar
um curso. Mas como
anunciar? Quem vai
aparecer em nossa
choupana? No entanto,
outras, que não têm a
metade da cultura dela,
estão por
aí cheias de
alunos ricos, porque moram
em casas alinhadas.
 
— Mas, depois, ganho o
meu Gordini
cor de vinho,
não é?
 
— Claro.
 
A moça olhou o sol, prestes
a
transformar-se num
"grande nenúfar de ouro".
(Os extraordinários
crepús-­
culos da cidade de Ondina
eram cantados em prosa e
verso). Ao recordar a
imagem, pensou em que,
até então, todo o ouro que
possuíra — fora aquele
mesmo
acumu­lado no pôr
do sol de sua terra. De
agora em diante, po­rém... E
entrou,
altaneira, ao lado do
irmão, no vetusto edifício.
 
O funcionário olhou a
papeleta e,
de fato com um
misterioso sorriso, começou
a consultar morosamente,
mui
morosamente, um
folhudo livro de capa negra.
Er­gueu, depois, os olhos
para a
face ansiosa (e
resplande­cente) da jovem e
informou:
 
— Senhorita, trata-se do
pagamento
— atrasado há
já vários meses — de uma
torneira...
 
 
 
Isabel das Crespo
 
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

— Aí vem a Isabel das


Crespo —
disse a dona da
casa, voltando da janela,
aonde chegava de quando
em quando, à
espera do
móvel encomendado.
 
Conversávamos em sua
minúscula
sala de estar, de-­
corada com engenho e arte
e uma sábia planificação
geo­métrica
para que várias
coisas úteis e belas bem
ocupas­sem o espaço exíguo.
Agora, num
retângulo da
parede principal, ia ficar,
suspenso, pequeno armário
de jacaran­dá,
destinado a
guardar a porcelana KPM.
 
— Isabel das Crespo?
 
Não houve tempo para
resposta. Foi
abrindo a por­ta
e entrando — seu irmão
mais moço, atraente e
varonil, que ela
beijou com
o maior carinho maternal.
Logo em seguida, as batidas
dos
carregadores que
traziam a delicada peça e
fizeram seu trabalho sob o
comando
do charmoso
irmão da dona da casa.
 
— Mas a Isabel das Crespo
não
veio...
 
— Não? Ela veio, sim.
 
E, depois de tudo pronto,
contou
que sua mãe, do­tada
de fino espírito crítico,
descobrira, nos primeiros
tempos
do casamento, uma
personagem que iria incor-­
porar-se ao anedotário da
família.
Naquela época, suas
vizinhas mais próximas
eram umas senhoras
Crespo. Ti­nham
elas uma
criada, como era chamada
antes a "se­cretária" dos
nossos
tempos, meio
atoleimada, que, ao receber

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

uma ordem, primeiro


respondia que não
e, de-­
pois, cumpria direitinho.
Elas diziam:
 
— Isabel, vai ao armazém e
traz um
quilo de café, uma
garrafa de vinagre, um
pacotinho de cominho, ou­tro
de
pimenta e uma lata de
goiabada. É para botar tudo
na conta.
 
— Não vou, não vou, não
vou.
 
Elas nem se incomodavam.
Dali a
momentos, pas­sava
Isabel em direção ao
armazém da esquina,
resmun­gando sempre
e
dizendo que não ia, que não
ia, enquan­to a jovial recém-
casada, entreabrindo
a
cortina, captava o pitoresco
da cena, cena que iria gerar
isabéis no ca­minho
dos que
ainda iam nascer.
 
— Ora — prosseguiu —
como meu
marido teve de
viajar, pedi a presença do
caçula aqui. Ele disse que
não podia
e eu já me
preparava para dar uma de
super­visora quando ele
chegou. Aliás —
arrematou,
beijando de novo o irmão,
que sorria sem ligar para o
epíteto — não
é a primeira
vez, nem será a última, que
ele é a Isa­bel das Crespo...
 
 
 
Silk, a consciência e o
anjo
 
 
Numa roda em que a
maioria era
constituída de
agnósticos, falava-se sobre
a imortalidade da alma. Foi
quando
alguém declarou
que, embora não admitisse

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

a so­brevivência individual e
acreditasse, apenas, na
imorta­lidade cósmica, a
realidade da consciência
humana o dei­xava, por
vezes, perturbado.
 
— Mas o cão, por exemplo

contraditou um cien­tista
que conhece profundamente
os animais — também
possui
consciência.
 
A conversa prosseguiu, mas
daí em
diante o meu
pensamento se voltou
inteiro para Silk.
 
Contarei, nesta altura, que
um par
desajustado foi
passar o verão numa ilha. A
mãe e o irmão mais novo da
jovem,
belo garoto de nove
anos, acompanhavam o
casal. E havia, ainda, Silk, o
lindo palie
que um amigo da
família emprestara para
participar do veraneio.
 
Os cinco se instalaram numa
casa
rodeada de ver­des
varandas, tendo à frente um
grande plátano, salguei­ros,
bambuzais. E o rio. O
plátano, ao cair da tarde,
virava árvore de lenda: as
folhas ficavam todas cor de
ouro. Era um cenário
edênico, mas no peito da
moça
havia amargor e
desencanto. Pés nus,
cabelos soltos, refugiava-se
na leitura. O
lar era um
destroço; não sabia como
resolver o problema do seu
coração logrado
e, no
entanto, devorava livros
sérios e profundos,
buscando soluções para os
problemas da humanidade.
De vez em quando,
interrompia a leitura para
olhar o
irmãozinho que
passava remando no seu
pequeno caíque. Temia os

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

pe­raus e
chamava o
menino. Este colhia nos
aguapés uma flor roxa, ia
entregá-la gentilmente
à
irmã, afirmava que não
havia perigo e voltava ao
seu passeio. Pois o rio era
o
seu refúgio. Sentia o
ambiente carregado da casa
e procurava a beleza e a
alegria das águas que
atraves­sava no seu caíque
Rosa e das quais gostava de
arran­car dúzias de lambaris
de prata. E nenhum dos dois
se preocupava com
Silk.
 
Quanto ao homem, o seu
primeiro
cuidado foi cortar
as bastas meadas de cetim
branco que revestiam o ani-­
mal.
Não havia dúvida de
que procurava vingar-se dos
seus fracassos, torturando
aquele ser inerme, que se
tor­nara minguado e
tristonho, parecendo um
cordeirinho pronto para o
sacrifício. Às vezes batia em
Silk e, aos domingos,
comprazia-se em levá-lo
para o banho no rio. Depois
do mergulho cruel, Silk
emergia, sacudindo as
patinhas, quase morrendo
de aflição e de susto.
 
Ele encontrara, porém, um
anjo: a
senhora. Esta vi­nha
logo buscá-lo, enxugava-o,
afagava-o. Era a única
pessoa
que lhe fazia
carinhos. Matava-lhe a fome
e a sede, cuidava do seu
sono e da
sua saúde. E,
quando ia à cidade — ele,
que tanto temia o rio, de
onde vinha o
seu maior
sofrimento, postava-se à
sua margem horas e horas,
até o desejado
regresso da
amiga.
 
Findo o veraneio, o cão foi
entregue ao dono e, al­gum

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

tempo depois, mãe e filha


foram visitá-lo. Ninguém o
chamara ainda. Mas, ao
ouvir, lá dentro, a voz idola-­
trada, eis que Silk corre
como um louco para a sala.
Es­tava maior, bonito, feliz,
os pelos sedosos
crescidos,
uma fita azul brilhando na
coleira. Precipitou-se para o
colo do
anjo, carinhoso,
festivo, com seus latidos
que eram hinos de ternura e
gratidão. Havia lágrimas nos
olhos dos presentes, porque
todos sentiam que
existia ali
um drama e compreendiam
que os sentimentos que
demons­trava aquele
animal
comovido — nem sempre os
pos­suem os homens.
 
 
 
O sorvete e o doido
 
 
Comove-se toda vez que vê
alguém
com fome e não
espera que o faminto lhe
estenda a mão: leva-lhe
espon­taneamente
a sua
dádiva. Essa sensibilidade
multiplica-se quando o
necessitado é velho,
doente
ou criança. No último caso
então, parece que toda a
sua paternidade
frustrada
transborda. E basta-lhe ver
uma criança olhan­do, como
se fosse um
reino
encantado, um simples
bom­bom, uma fruta, um
sorvete. Precipita-se logo,
compra, oferece. As reações
são, via de regra, as
mesmas: sur­presa primeiro,
aceitação em seguida.
 
Nem sempre, no entanto.
Certa vez
foi pelo Natal,
numa cidade europeia,
quando viu aquele
pequenino lou­ro
espiando,
da calçada, sua mesa

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

repleta, sua árvore pejada


de estrelas, sinos,
bolas. Ao
descobrir o menino, ficou
profundamente comovido:
era paupérrimo e
tinha
lágrimas naqueles pedaços
do céu que contemplavam e
cobiçavam. Correu
para ele,
todo sorrisos, e convidou-o
a entrar para o lanche de
castanhas, pão
de mel, torta
de frutas. Mas o menino
recusou orgulhosamente, o
ar repentinamente
adulto, e
afastou-se.
 
Outro dia, porém, foi um
grande
dia percebeu três
crianças rondando uma
carrocinha mágica, a
olharem se­quiosamente
os
que se deliciavam com a
massa gelada de morangos,
creme, chocolate. Não teve
dúvida. Com­prou três
sorvetes e ofereceu-os aos
pequenos atônitos.
Enquanto
estes devoravam
o inesperado presente,
outros meninos apareceram.
Vários,
muitos copinhos
foram lo­go comprados e
oferecidos. Um dos garotos,
porém, nem
podia acreditar
e ficou por um momento
indeciso. Foi quando um
daqueles três
primeiramente
aquinhoados, ainda com os
cantos da boca cheios de
creme, aconse­lhou:
 
— Aceita. Ele é doido.
 
 
 
Nesta casa tem um
bosque
 
 
— Oh, mas estas folhas de
antúrios
são naturais...
 
— Parecem realmente: o
tamanho, a
cor, as nervu­ras,
a disposição, a forma têm

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

iludido a muitos. No en-­


tanto, é
como lhe disse:
naturais tenho apenas estas
tre­padeiras, oriundas de
batatas.
 
— Pois as orquídeas, aqui,
entre
os verdes, deixam-nos
em dúvida: serão naturais
ou artificiais? Tal como
aconteceu com as
campânulas que Françoise
ganhou — em "L'Invitée", de
Simone de Beauvoir.
 
— Aliás, torna-me feliz a
ilusão
que elas causam, pois
foi para me iludir também
que plantei este bosque.
Sabe?
Criei-me entre
árvores, noivei sob
caramanchão de jasmins.
Minha mãe parecia
uma
fada cuidando das flores que
ladeavam nossa casa —
brincos-de-princesa,
botões-
de-ouro, resedás, girassóis,
begônias — e de sua
varanda de folhagens e
gloxínias, descoberta e que,
pe­las manhãs de chuva,
íamos encontrar salpicada
de co­gumelos. Meu pai
amava igualmente as
dádivas da terra e até maçã,
minúscula é verdade,
colhemos na nossa pe­quena
chácara...
 
— Maçã... Então era na
serra?
 
— Não, no litoral. Ah,
tínhamos
uvas negras, cor-
de­-mel, translúcidas — nas
longas parreiras armadas.
Tí­nhamos
figos e
grumixamas, pêssegos e
bergamotas, ro­mãs e
anonas. E, quantas vezes,
não contentes, ainda
pulávamos a cerca de
framboesas — eu, meus
irmãos,
vizinhos, primos —
para invadir o reino das

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

pitangas na terra de
ninguém!
 
— Isso para mim soa como
lenda,
para mim que morei
sempre em apartamento.
 
— Certo. E como poderia eu
conformar-me, moran­do
também agora em
apartamento e tendo apenas
de meu o
escasso jardim
coletivo do edifício? A
princípio, tentei plantas em
vaso, mas
todas morriam,
exceto as batatas. Então,
comprei esta grande jarra
vermelha com
desenhos de
floresta, armei-a no tripé e
dei início à mi­nha cantoneira
vegetal. O antúrio trepador
na sua ascen­são pela
parede — foi o começo.
Vieram
as plantas com-­
panheiras. (Só compro as
que me parecem naturais).
Os jasmins,
sozinhos, não
valem muito, mas, caindo
do co­quetel do jarro, veja!
 
— Um encanto.
 
— Quanto às orquídeas,
"orquídeas silvestres", fo­ram
um presente querido.
Intercalei-as nas
sombras e
nos verdes e o efeito é
realmente deslumbrante.
Enterrei, depois, uma
batata
com brotos, de que resultou
este lin­do emaranhado.
Botei dois jarros
aqui no alto
da parede, de onde
trepadeiras descem, suas
folhas se enroscando,
como
está vendo, nas dos
antúrios. Molho-as
diariamente — e é como se
todas
sentissem o contato
da água. Com a terra úmida
e as folhas e flores
orvalhadas
e brilhantes,
todo o conjunto parece vivo
e a ilusão é tal que chego a

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

esquecer
os meus quintais
perdidos...
 
 
 
O drama do tempo
 
 
— Acho que devíamos
prestar mais
atenção a cer-­
tos pormenores ligados à
passagem inelutável do
tempo. Ora, este
passa,
deixando marcas em nosso
corpo e em nossa alma.
 
— Ou nós é que passamos?
 
— O fato é que, apesar de
todas as
atribulações con-­
temporâneas e desta
sensação de instabilidade
que ex­perimentamos
cada
vez com mais força em
nossos dias, muitas vezes
aquelas marcas não marcam
fundo ou o fazem
lentamente. Em
consequência, a idade
cronológica da criatura
assim privilegiada é maior
do que a idade do seu rosto,
do seu corpo, dos seus
olhos, dos seus ca­belos.
 
— Belo, não é mesmo?
 
— Não, porém, para alguns
amigos
e, principalmen­te,
para algumas amigas, que
se irritam terrivelmente com
tal
constatação. Quer um
exemplo? Não é que, nesta
cidade grande, vieram
morar, no
mesmo bairro em
que moro, duas amigas de
infância, nascidas, criadas e
ca­sadas
como eu na mesma
cidadezinha do interior?
Para comemorar o encontro,
convidei-as para uma
reunião em minha casa. Elas
vieram, trazendo os seus
trabalhos de agulha, para
dar uns pontos depois do

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

lanche, como nos antigos


tempos. Ambas
engordaram, uma oxigenou
os cabelos e a outra deixa
aparecer os
fios brancos.
Sem­pre pensei que as
recordações fossem o
primeiro capítulo da
conversa...
 
— E não foram?
 
— Não, foram os meus
pobres cabelos.
Elas, pri-­
meiro, perguntaram o que
eu usava. Nada, ou melhor:
água e sabão como
sempre,
além das cem escovadelas
diárias. Eram os mesmos
cabelos lisos e
castanhos
que elas haviam conhecido.
Mas uma achava que, antes,
eram mais
escuros; a outra,
que eram mais claros. Então
des­fiz o penteado e espalhei
meus cabelos, para que elas
os abrissem e olhassem os
fios desde a raiz até a
extre-­
midade: nem vestígios de
tintura nem de loção
rejuvenes­cedora.
 
— Ficaram então satisfeitas?
 
— Qual! Acho que, quando
os prendi
de novo, elas
tiveram uma vontade furiosa
de puxá-los. Seguiu-se o
lanche, para
o qual eu havia
preparado os canapés e o
pudim de laranja de que
elas tanto
gostavam. Eu
mesma arrumei a mesa e
servi, enquanto meus gestos
e minha
silhueta eram
observados com dureza. O
que eu fizera para não
engordar?
Ginástica?
Regime? Oh, não. Tal­vez
muito movimento, compras,
filas, lida com
as crian­ças,
trabalho. O pior, porém, foi
quando, após o lanche,
estenderam no
colo seus
bordados e tiraram os

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

óculos da bolsa. Eu fui


buscar a minha toalha e
comecei a bordar o primeiro
botão de ouro de um
ramalhete muito delicado.
Pois
não sei como não piquei
o dedo, assustada com o
clamor da pergunta: Cadê
os
óculos? Não usava? Não
era possível. Queriam ver a
flor minúscula concluída,
queriam ver. Ficaram
olhando e eu nunca fiz um
exame com tanta aflição.
Em todo
caso, tremendo
embora dian­te dos dois
rostos maus fixos nos
inocentes fios de
seda que
passavam pelos meus
dedos, apresentei-lhes o
botão — não perfeito como
poderia ter sido, se eu não
esti­vesse contendo as
lágrimas, mas bordado na
graça de Deus.
 
— Está claro que não nos
perdoam
quando tarda­mos
a envelhecer.
 
— Mas não haverá um modo
de
preservar destas e iguais
misérias pelo menos as
futuras gerações?
 
— Haverá?
 
 
 
Fantasia
 
 
Não era fantasia aquele
vestido
claro de jeune-fille,
com babados e fitas, festivo
e decotado. Não era
fanta-­
sia? A mulher que o
ostentava, usara, durante
anos a fio, severas cores
escuras, os braços secos
cobertos, co­berto o colo sem
viço. De repente, aquele
luminoso ves­tido de
debutante, enquanto a boca
murcha, que só fa­lava no

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

morto
e na morte, começou
a gritar que era do samba.
 
Não era tarde, não. O fim do
outono parecia o co­meço da
primavera e alguém
chegaria ainda, vindo não se
sabe
de onde, entre
confetes e serpentinas, em
busca da dançarina azul.
 
É verdade que ele está
tardando.
Não faz mal. A
esperança é bela. Mais uma
volta pelo salão. Quem
sabe?
 
Quem sabe sabe
Conhece bem
Como é gostoso
Gostar de alguém.
 
No entanto, o alguém não
chega.
Agora, quem che­ga é
a borboleta real abrindo, na
passarela, as grandes asas
resplandecentes. Depois, é a
madrugada, fechan­do o
baile. Então, a pobre jeune-
fille
desperta e anuncia,
envergonhada, que vai para
casa chorar o morto (o mor-­
to?) a
quem não conseguia
esquecer nem mesmo
naque­le turbilhão.
 
 
 
O fidalgo
 
 
Quando tenho notícia de
marido
sustentado pela
mulher — sem ser por
involuntário desemprego,
doença ou outro
motivo
justo, está claro — lembro o
arrogante senhor Antônio
Maria Valentim de
Aguilar.
Diziam que descendia de
grandes da Espanha e
possuíra fabulosa for­tuna.
Esta, no entanto, fora toda
por água abaixo e dela só
restava aquela imensa
casa

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

da esquina, que seria mais


tarde hipotecada, leiloada,
perdida, mas que
ainda ali
es­tava com seus austeros
reposteiros, seus jacarandás
an­tigos, seu
velho piano de
cauda, abrigando a mui
nobre família empobrecida:
o casal e seus
quatro filhos.
 
O senhor Antônio Maria
Valentim de
Aguilar, embora
não tivesse um tostão de
renda, não trabalhava.
Estava sempre à
espera de
que amigos dos áureos
tempos, mui­tos dos quais se
encontravam em
altos
postos políticos e
administrativos, o
chamassem, conforme
prometiam, para
ocupar um
cargo à altura do seu nome.
Não tra­balhava, mas se
impunha pelo
arrogante
porte o chômeur fidalgo.
Olhava sempre do alto e era
seco,
retraído, or­gulhoso
como um mortal à parte. Lia
muito, recostado sempre na
ampla cadeira de balanço,
sobre macias al­mofadas; e,
quando Miúda, a empregada
única, antiga escrava e que
diziam ter cem anos, o
chamava para as refeições,
a
voz da serva se tornava
ainda mais tímida e
respeitosa, como se
estivesse
diante de um
potentado. Ele, então, tirava
os óculos, guardava-os
devagar e,
com suas
passadas fortes, dirigia-se
para a cabeceira da mesa e
presidia como
um grão-
senhor a refeição que dona
Si­nhazinha comprara com o
suor do seu
rosto.
 
De modo que era a senhora
Aguilar
— em plena vi­gência
do capitis diminutio, a que o
nosso Código Civil
ainda
reduzia inteiramente o

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

cônjuge do sexo feminino —


a mantenedora da
família.
Mais moça vinte anos que o
marido, parecia, contudo,
sua
contemporânea. Alta,
magra, nervosa, com um
sorriso permanente nos
lábios sem
alegria, não
recusava trabalho: fazia
doces e salga­dos para
vender, costurava
para fora
e dava lições de piano.
Sussurravam até que, às
escondidas, era
profes­sora
da elegante francesa que
um capitalista da terra ins-­
talara na
vivenda cor-de-
rosa do morro.
 
O chefe da família, que
acabava de
recusar um em-­
prego de quinhentos mil réis
(que afronta!) assistia frio e
abúlico ao sacrifício
cotidiano da mulher e, cada
dia mais altivo, saía para as
suas caminhadas, de chapéu
e bengala, o terno
impecável, o charuto na
boca.
 
Eu conversava, certa
manhã, com
sua filha
Juanita, que era da minha
idade, quando o senhor
Valentim de Aguilar
passou
por nós, pisando as calçadas
como se fosse dono da rua.
A menina olhou-o
embevecida e, de­pois, como
uma fidalga arruinada
exibindo, em desafio, o     
brasão
da família, me disse:
 
— Está vendo? Oh, ninguém
pisa
melhor do que pa­pai...
 
 
 
Aquelas crianças
 
 
Sim, era hospitaleira e
receberia
na sua casa
grande, tão grande que

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

todos chamavam de
mansão, os parentes que
não tardariam a chegar.
Teria prazer em acolhê-los,
mas teria prazer em acolher
o casal, pois a sua casa es-­
tava habituada a só receber
adultos. Quando alguma
de
suas amigas tinha a infeliz
ideia de vir acompanhada de
uma criança, por
ocasião de
uma visita, ela sentia que
acontecera algo como uma
subversão da
ordem. A
crian­ça pretendia
monopolizar as atenções,
queria mimos, cho­rava,
deixava cair farelos de bolo
no tapete persa, der­ramava
chocolate na toalha de
linho.
Que ia fazer? Se dissesse
alguma coisa, a mãe da
criança jamais perdoa­ria.
Tinha até de achar bonito
aquilo tudo e sorrir para o
pequeno revolucionário. O
marido, então, era como se
tivesse alergia aos visitantes
mirins, esses
vândalos. Fora
bom mesmo não terem tido
filhos. A vida podia ser
aque­le céu
aberto: viagens,
boates, recepções.
 
E, no entanto, agora vão
chegar
aquelas crianças.
Nossa! Podiam até ser causa
de um desquite, ela como a
parte
culpada pois eram
parentes seus. O que pode-­
ria fazer era não
negligenciar e ir
procurando,
desde já, um apartamento,
a fim de abreviar a desgraça
e perma­necerem
em sua
casa, no máximo alguns
dias, os hós­pedes
indesejáveis.
 
Mas quem sonhara com tal
milagre?
Não é que a
menina, com cinco anos,
lindo rostinho oval, louros
cabelos
crespos, estendeu
logo os braços ao saltar no

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

ae­roporto para o homem


atônito
e, com as
margaridas ten­ras das
mãozinhas, acariciou o duro
colarinho
entretela­do?
Quando quis passar-se para
o colo da mulher, ele sentiu
um quase
ciúme. Quanto ao
menino, que era mais velho
do que a irmã, beijou, como
um
pequeno cavalhei­ro, a
mão dos parentes e os olhos
do rapazinho sorriam o
mesmo
sorriso aberto e
meigo dos lábios. Já estava
na escola e, ainda no carro,
tirou
de sua pasta alguns
cadernos e mostrou-os à
anfitriã. E, logo nos
primeiros
dias, o menino
encantador pediu que ela
lhe passasse problemas,
pois não queria
esquecer,
durante as férias, o que
aprendera nas aulas. A
princípio não gostou
mui­to;
mas, depois, achou
adorável. De tal maneira
que dei­xava de ir a uma
festa para contar as suas
viagens e dar lições ao
menino sequioso de saber.
 
Por esse tempo, os
verdadeiros
donos da casa
eram a boneca e o
estudante: suas vontades
eram leis, seus
sorrisos
eram prêmios. Ganhavam
presentes caros e pas-­
seavam diariamente com os
cônjuges enlevados, que pa-­
reciam ter uma ilusão
fervendo nas cabeças.
 
Quando, finalmente, os
hóspedes
comunicaram que
iam mudar-se, foi um dia de
juízo no palacete. Ela cho-­
rava,
desolada, revoltada, e
ele era como se lhe
tivessem arrombado o cofre.
Que
haviam feito para
serem tratados com
tamanha ingratidão? Seria

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

possível que
aquela gen­te
sem entranhas tinha mesmo
coragem de lhes arreba­tar
as crianças?
Por que os pais
não iam sozinhos? Por quê?
 
 
 
O sonho e a realidade
 
 
Seria maio? Só lembro
aquele
tamanho de lua
cheia, aquele
deslumbramento que tomou
conta de mim no ins­tante
em que eu ia atravessar a
rua. Detive-me a con-­
templar a maravilha
suspensa,
buscando a
imagem ade­quada para o
decantado "astro da noite"
naquele
momen­to. Ah, não
seria um redondo pão
luminoso e inacessível?
(Inacessível,
pois a lua
ainda não recebera a rosa e
a visita do homem).
 
Acontece, porém, que eu
tinha uma
bolsa na mão,
com dinheiro, chaves,
documentos, pedaços de
poesia e prosa,
objetos de
vaidade feminina. A grande
lua de ouro encravada no
céu do Leblon,
tão inteira,
tão bela, me fez esquecer
aquela realidade, pelo que
aconselho, hoje,
às minhas
amigas: quando virem a lua,
agarrem a bolsa. Pois quem
agarrou a
minha foi um
rapaz que pas­sava de
bicicleta. Devia ser um
entregador e o
apossar-se
do alheio — penso que só,
utilizava como biscate.
Aproveitava as
oportunidades e aquela era
excelente: uma gorda bolsa
de verniz preto, insegura
sem dúvida, na mão de uma
dona que olhava bobamente

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

o céu, ali na beira da


calçada.
 
Tudo foi muito rápido e,
quando
deixei de mirar a
lua, acordada de súbito pela
tentativa de assalto, segurei
a
alça com todas as minhas
forças — bem poucas. A
bolsa não me foi tomada,
mas
atribuo a vitória ao fato
de estar pouco firme uma
das argolas em que estava
presa a alça, precisamente a
do lado atacado; com o vio-­
lento puxão,
desprendeu-se
e, desse modo, a alça — e
com ela a bolsa — deslizou
dos dedos do
assaltante e
ficou na minha mão. Durou
apenas segundos a
tremenda batalha e
acho
que ambos nos
surpreendemos de ter sido
eu o vencedor. Vencedor que
devia
ter um ar lastimável,
pois o rapaz me disse antes
de desaparecer na bicicleta:
 
— Desculpe moça.
 
Ora, ora. Desculpar o que,
se a
culpada foi a lua?
 
 
 
Saia azul e blusa branca
 
 
Botou de novo o rol de
roupa na
caixa de madeira
trabalhada e ficou pensando
nos preços irrisórios daque-­
les
tempos. Um lençol de
casal — dez tostões! Parecia
mentira, mas lá estava no
rol
conservado como
lembrança.
 
Dez tostões! Passou a
escova nos
cabelos fulvos e
não viu no espelho a figura
atual, o rosto cheio, os flo-­
rões
do quimono. Viu a
jovem de saia azul e blusa

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

bran­ca, ligeira e magra,


saindo
para o trabalho. Ah,
aqueles dez tostões eram
uma importância.
 
Naquele tempo, morava com
o marido
numa pensão e os
salários de ambos,
somados, mal chegavam a
no­vecentos mil
réis. A
pensão levava quinhentos e
quaren­ta, sem que tivessem
direito a roupa
de cama e,
como é comum, sem jantar
aos domingos e feriados. O
resto era para a
condução,
lavadeira, lanches,
extraordinários. Quer dizer:
não havia dinheiro
para
roupa. Ela tinha de
contentar-se com a
invariável saia azul e duas
blusas
que se revezavam.
Trabalhava numa casa
comercial, sendo a única
empregada de
uniforme,
que não era e era obri-­
gatório, pois aquelas eram
as únicas peças de
roupa
que possuía para sair.
 
A dona da pensão, megera
de
grandes enxúndias e
ralos cabelos pintados e
duros, olhava com inveja
para
aquela juventude que
lutava e sofria, mas que,
apesar de tudo, resplandecia
primavera e amor. E a sua
mesquinha vingança era
multiplicar as proibições,
requintar as per­versidades.
A moça não tinha direito de
lavar um simples lenço
e,
quando se atrasava um
pouco ao voltar do trabalho
no fim do dia, não
encontrava mais comida.
Nes­sas ocasiões, o mais
doloroso não era ir deitar-se
com fome: era presenciar a
fome do marido. Este
trabalhava até mais tarde,
não
podia estar em casa à
hora do jantar. Era servida,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

contudo, a refeição para um


só e dali ela tirava o que
havia de melhor e guardava
para seu amado exausto e
faminto.
 
O lanche que levava para o
trabalho consistia em um
pequeno pão sem manteiga.
Pedia um copo d'água e       
fazia
a triste merenda dos
condenados. Vinha um me-­
nino com o cafezinho, o
líquido
quente era uma
tentação, mas não podia
dar-se ao luxo de gastar
duzentos réis.
Barato o
lençol? Era bem do seu
sangue que saíam aque­les
dez tostões.
 
Certo dia, em dezembro,
aproximou-se
um colega da
moça comerciária e
comunicou-lhe que estava
sendo pro­jetada uma
homenagem ao patrão, que
a festa seria ali mesmo. E,
depois de muitas
reticências, criou coragem e
disse-lhe que deveria
comparecer com outro
vestido. — Outro vestido? —
repetiu, corada, mas
resoluta. — É impossível.
Não
tenho outro.
 
Então o rapaz acrescentou
que ela
poderia dar um
jeito, porquanto iam todos
receber gratificação.
 
Drama. Vestido novo,
quando
faltavam coisas bem
mais urgentes? Impossível
esquecer que a alimentação
era
insuficiente, que as
privações eram tantas que
nem tinham um relógio.
(Como a
deixava humilhada
aquele "faz favor de dizer
que horas são?"). O
acertado era, no entanto,
considerar não recebido
para tudo o mais o di­nheiro

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

inesperado, já que não


poderia faltar à festa do
patrão, nem comparecer
com seu
traje único.
Animou-se e comprou um
vestido de linho, sapatos,
fantasias e, na
manhã do
grande dia, foi ao
cabeleireiro e à manicura.
 
Lembrava-se tão bem:
quando,
elegante e feliz,
che­gou ao ponto do bonde
em que fora vista de saia
azul e
blusa branca, dia
após dia, durante o longo
ano de lutas, por certo
causou
surpresa aos que,
habitualmente, esperavam
condução àquela hora.
Houve mesmo um
que não
se conteve e sussurrou ao
companheiro:
 
— Eu não te dizia? Faltava
era
trato...
 
 
 
A bela adormecida
 
 
Recebo carta de Lina, uma
leitora,
contando a sua
história de amor. Uma
história narrada em muitas
folhas e que
lembra algo de
"Desencanto", o mais belo
filme inglês que já vi
("uma
história sem história" aquele
"Brief Encounter").
 
Ela conheceu o bem-amado
num
ônibus repleto. Ao
entrar no mesmo, cedeu-lhe
ele o lugar. E, sem olhá-lo,
ela
sentia em si o olhar do
homem. Quando ele ia
saltar, atreveu-se então a
fixar o
desconhecido. Era
mais novo do que ela, alto,
atraente. Mas... ele não
saltou.
E ai, ela estremeceu.
Céus! Que fizera? Era olhada
e requestada por muitos,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

porém jamais
correspondera. Um ínti­mo
de sua casa, apaixonado
sem esperanças,
quando,
um dia, ela falava na doce
figura de Soeur Desirée-
des­-Anges,
do livro de
Marguerite Audoux, chegara
a dizer-lhe: pois você é a
desirée-des-hommes.
Dedicava uma afeição
profunda ao marido e sentia
a sua vida tranquila, sólida,
realizada. A pena que
carregara até então era a de
não ter filhos.
 
Agora, a mudança, o
tumulto. O
fascínio do
primei­ro encontro ao
descerem do ônibus: a
magia da voz
insistente, a
quase promessa que ela
murmurou na despe­dida.
Parecia a dama
misteriosa:
era apenas uma mulher
assustada com o que
acontecera e decidida a
pôr
um ponto final na aventura.
Mas, no fundo da bolsa, lá
estava o    cartão
dele, em
quem ela começou a pensar
dia e noite.
 
E telefonou-lhe. No segundo
encontro, estavam ainda
mais fortemente atraídos
um pelo outro. E aí termina
o
roman­ce. Ela não diz por
que.
 
Começa a história do seu
grande
amor unilateral e
obsediante, feito de paixão
e de saudade. "É impossível
sentir uma saudade maior
de alguém que está vivo". A
perder o interesse
pelas
coisas que a encantavam
antes, a achar que, quando
o conheceu, foi que
despertou. "Oh, eu queria
conhecê-lo assim: ele, como
é agora e eu com a
juventude radiosa que tinha

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

quando me casei". A pensar


nele sempre, de tal
forma
que, um dia, a empregada
lhe disse: "Madame, a
senhora está doente?
Me
desculpe, mas já vi o doutor
olhar muito sério para a
senhora. A madame
parece
que estava longe..."
 
Então, ela viu que precisava
dominar-se, acautelar-se.
Voltou às atividades
habituais, que lhe têm feito
um
grande bem. Mas ele
continua no seu coração,
"porque este amor
aconteceu.
Acho mesmo
que, em iguais
circunstâncias, é impossível
alguém ser mais
desejado,
mais adorado, do que esse
homem sempre ausente e
quase
desconhecido".
 
Aí termina a carta. Termina
sem
pedir um conselho, (e
ainda bem) uma opinião,
uma ajuda. Como ninguém
conhece o
seu segredo,
parece que ela se compraz
em narrá-lo por uma
necessidade de
desabafo e
desejosa talvez de vê-lo
descrito. Pois, se assim é,
está feita a
sua vontade.
 
 
 
Do perigo de contrariar a
pedicura
 
 
— Como? Então foi aquela
profissional competente
quem fez isso?
 
Eu olhava os pés pequenos
estendidos em almofadas, o
esparadrapo num dos
polegares, os dedos
fantasiados
de
mercurocromo.
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

— Ela mesma, por incrível


que
pareça. Mas oh, não
pense que foi barbeiragem,
incompetência. Eu sempre
não
disse que ela era a
pedicura perfeita, que me
amputava as feias
calosidades,
que
massageava tão bem meus
po­bres pés de arcos caídos?
Quando terminava o seu
tra­balho, eu me sentia
restaurada, eufórica. Onde
estavam os pés doloridos se
os sentia leves e ligeiros
como se fossem plumas?
 
— Mas como se explica,
então, esse
desastre?
 
— Minha filha, a moça é
política.
E fanática. Eu já
sabia disso, é verdade.
Como via que a criatura
pensa
diferente de mim, ia
sempre, jeitosamente,
evitando o as­sunto que ela
insistia
em levantar.
Chegou, porém, o dia em
que não adiantou falar no
tempo, concursos
de bele­za,
receitas de pudins. Não
adiantou tampouco elogiar o
milagre que se
operava em
meus pés graças à sua pro-­
ficiência. A moça queria era
o seu
assunto. E nele entrou
como se nós duas
rezássemos pela mesma
cartilha. Você
bem sabe que
tenho os meus seguros
pontos de vista.
 
De modo que, em dado
momento,
disse qualquer
coisa que lhe demonstrou a
minha falta de apoio às suas
opi­niões.
E — ai! — senti
logo uma dor aguda na
cutícula. Gemi e ela passou
no lugar
machucado um
algodão em­bebido em não
sei que liquido. E continuou
falando. No
momento em
que cuidava deste polegar,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

atacou violenta­mente uma


figura política
que eu
estimo. Sem refletir, disse a
minha palavra de defesa. E
gemi de novo
porque de
novo a torturadora me
machucou. Meu Deus, onde
se escondera a fada
que,
sem que eu sentisse a mais
leve dor, me transformava
os pés em magnólias?
Para
sinte­tizar, dir-lhe-ei que,
terminado o trabalho, vi que
estes pés (oh,
das outras
vezes, eles ficavam lisos
como os de um recém-
nascido) apresentavam
montículos de peles, aspe-­
rezas, pontos duros que o
bisturi não tocara. Mas por
que não deixei tudo como
estava? Ousei reclamar e a
mal-amada voltou à sua
faina, tendo eu de gemer
várias vezes, pois várias
vezes ela me feriu.
Compreende agora? O re-­
sultado é esta beleza que
você está vendo...
 
 
 
O trocador e o junquilho
 
 
— Quem é você? —
perguntou o homem
imponente, no coletivo
repleto, ao pequeno
trocador.
 
Este parece, lhe havia
chamado a
atenção para al-­
guma exigência da empresa.
Qual não importa. Se não
era o
empregado, mas o
passageiro quem estava
com a razão — também não
importa. Se a
observação
era des­cabida, ninguém
negaria ao homem
imponente o direito de
replicar, mesmo com
aspereza. O inadmissível é
bra­dar que alguém é inferior

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

pelo fato de exercer


modesta profissão; ofender
a quem assegura que está
cumprindo ordens;
esbofetear com a
interpelação insolente:
"Quem é
você?"
 
Em ocasiões semelhantes,
tenho
visto o interpelado
corar como se tivesse sido
pegado numa falta grave.
Aquelas
palavras curtas e
cruéis vibram como uma
chi­cotada que cai, de
repente, sobre
a sua
pobreza sem culpa. E ele
fica reduzido, esmagado,
sem voz, sem de­fesa.

também, é verdade, os que
respondem com a cólera
mais solta, um palavrão, um
desafio.
 
O pequeno trocador — não.
Ele
ouviu a pergunta
afrontosa diante de dezenas
de testemunhas em silêncio.
Ouviu-a de cabeça erguida
e, depois, com
impressionante dignidade,
respondeu:
 
Eu sou gente.
 
Tenho outra história verídica
para
contar e esta se­gunda
não se baseia em nenhuma
afronta e, sim, no mais
arrebatado louvor.
 
Era numa reunião de alta
cultura
e, à longa mesa que
presidia os trabalhos, ao
lado de homens conspícuos,
sentava-se uma mulher. Não
procurava brilhar, mas tra-­
balhava. Jovem, esguia,
um
ar de colegial que lhe davam
os cachos pretos, aquela
gola branca, os olhos
atentos de discípula, a mão
ligeira que tomava notas.
Dir-se-ia uma secretária,
uma assessora — não uma

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

igual de todos aqueles


maduros mestres.
 
Então, na assistência, certo
cavalheiro sentiu-se des-­
lumbrado e, num intervalo
da assembleia, pediu que o
apresentassem à moça
ilustre. Realizado o seu
desejo, desmandou-se em
louvores
e comparou-a a
uma flor. No auge da
admiração, chegou mesmo,
se bem me lembro,
a
especificar, chamando-a de
junquilho moreno.
 
Quando todos pensavam
que fosse
agradecer e sor­rir,
o junquilho protestou,
enquanto estendia a mão
num gesto
de despedida:
 
— Flor? Não, eu sou gente.
 
 
 
Passe adiante, minha
senhora
 
 
O desapontamento de
Urânia, ao
receber de Anita,
no dia do seu aniversário, o
presente que ela havia dado
a
Helena (aqueles mesmos
brincos feios e azuis, que
lhe dera uma prima) fez-me
recordar o pregador
torrencial da tese do
antipresente.
 
Eu ganhara uma caixa de pó
de arroz
ocre. Como não é a
cor que uso, dirigi-me a
uma perfumaria com a vaga
esperança
de uma troca. O
caixeiro tomou conheci-­
mento do caso, saiu para
procurar a cor
desejada e
voltou dizendo que sentia
não havê-la encontrado. Foi
aí que o
pregador começou
o discurso. Era um senhor
idoso que fazia as suas

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

compras no
mesmo balcão e
ouvira as mi­nhas palavras e
as do vendedor. Desatou,
então, a
sua terrível teoria
contra o amável processo de
dar presentes:
 
— E por isso, minha
senhora, que
sou contra os
pre­sentes. A senhora está
tendo um trabalhão com o
pre­sente que
lhe deram e,
como essa história não
existe só de um lado, a
senhora, por sua
vez, teve
de retribuir. De modo que se
trata é de uma simples
troca. E, talvez,
a esta hora,
o presente que a senhora
deu esteja tendo o mesmo
destino dessa
pobre caixa
de pó de arroz. Quer saber?
Eu não dou nem recebo
presentes, exceto
quando se
trata de pessoas da família.
Assim mesmo, às vezes é
para me
aborrecer, como é o
caso da gravata que estou
usando. Deu-ma uma
sobrinha, que
a acha linda e
pede que eu a use. E, com
esta idade, estou fazendo
um triste
papel: usar esta
gravata espalhafatosa.
 
Mirei-a então, pensando que
ia
encontrar, talvez, o galo
de Portinari ou — quem
sabe? — cavalinhos de cor-­
rida
ou glamorosas em
biquíni. Nada disso: o que vi
fo­ram elipses de cor grená
entrelaçadas sobre um
severo fundo marrom. E a
torrente continuou:
 
— Agora, quanto ao seu
caso, vou
dar-lhe um conse-­
lho, minha senhora.
Ninguém vai aceitar a sua
caixa de pó de arroz
e dar-
lhe outra com a cor que a
senhora usa. Ora, repito,
como essa história de
presentes não passa mesmo

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

de uma simples troca, talvez


breve a senhora tenha de
comprar alguma inutilidade
para pagar uma outra que
vai receber de uma amiga.
Pois não compre nada.
Apro­veite essa caixa. Passe
adiante, minha senhora,
passe adiante!
 
 
 
 
Retratos
 
 
 
 
Uma data, dois cultos
 
 
Como poderia eu, nesta
data, não
evocar aqueles de
cujo amor nasci? Ele, que
desapareceu com a metade
da idade
que completaria
hoje. Ela, que há cinco anos
partiu neste mesmo dia
outrora
festivo, como se
tivesse sido fe­chado um
ciclo. Assim, de ambos
falarei com a
saudade e o
orgulho de filha. Do homem
belo, íntegro e humano, que
teve sempre
a palavra
acatada mesmo petos mais
velhos — desde os seus
verdes anos até à
aurora da
maturidade, quando
morreu. Do erudito e
modesto autodidata e do
mestre que tem seu nome
numa escoa técnica,
homena­gem que ex-
discípulos
prestaram à sua
memória. Daquele que
jamais mentiu que nos deu
toda a sua
ternura e oh, a
quem não tive tempo de
dizer as cálidas palavras da
mi­nha
gratidão. Muito cedo
o perdemos; mas havia a
pre­sença daquela que fora a
sua
bem-amada — como
que em parte suprindo a

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

ausência dele. Lembrando-o


desde os
tempos em que
nasceu o lindo amor que
durar ia sempre e
apontando todos os dias
seu
exemplo como um legado, a
mãe heroica realizava o
milagre de não parecer
ele
ja­mais um pai morto. Mãe
heroica — e de uma
grandeza que culminou na
luta
áspera da viuvez,
diante da perda trágica de
dois filhos em flor e mais
tarde,
Quando não mais
puderam ver os olhos mais
belos que já vi (ó heroína, ó
estrela, como pedias não
enxergar se iluminavas?)
 
30-4-67
 
 
 
Durval e sua madona
 
 
Na Galeria Dezon, em
Copacabana,
Durval Serra
vai inaugurar, com festa e
coquetel, seus novos
trabalhos. O
convite
reproduz palavras que,
sobre o pintor, escreveu
Marques Rebelo:
"Durval
Serra tem-se mantido
exemplar­mente fiel ao seu
caminho plástico,
que já é
longo e todo feito de
sensibilidade e instinto —
instinto puro e sensi­bilidade
puríssima. Sem se deixar
contaminar pelo carrei­rismo,
que enodoa, sem se
iludir
pelos modismos, que
diminuem, fortalecido pela
modéstia ante os
propósitos
e pela humildade diante dos
temas — caminha marcado
por singular
sobriedade e
singular ternura, como se
em cada pincelada angélica
e
naturalmente misturasse à
tinta o óleo da bondade do
seu coração, que o tempo

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

não endu­receu nem as


vicissitudes deformaram".
 
É isso mesmo. E eu lembro
o
artista e o colega que,
juntamente comigo, Sílvia
de Leon Chalréo e Dias da
Costa, integrava a redação
de "Esfera", a revista que
rodou vários
anos com sua
mensagem de cultura e
arte. Naquela época — de
conflagração
mundial e de
após-guerra — Durval
enchia suas telas de
máscaras pungen­tes,
tristes
palhaços, figuras e vincos,
estudos e traços de angústia
contida. Foi
quando me
ofereceu sua menina de
vestido azul e boneca no
colo, os soltos
cabelos os
olhos caídos (a menina
embalando, a madona
sofrendo).
 
Estou certa de que, na
mostra de
agora, vamos en-­
contrar o mesmo Durval
Serra, apenas com o pincel
mais sábio e
amoroso na
forma e na cor, como diz
ainda mestre Marques
Rebelo na
apresentação.
Mas também estou certa de
que nela não estará o mais
belo
trabalho de Dur­val,
precisamente porque está
comigo: a pequena mado­na
azul, a
tela que escolhi para
estar sempre ao lado do
retrato de minha mãe.
 
8-11-66
 
 
 
A filha dos deuses
 
 
Entrevistando, há muitos
anos
Magdalena Tagliaferro
— e sei que ela permanece
fiel aos princípios então ex-­
postos
— ouvi "a fada do

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

piano" afirmar que só "os


filhos dos
deuses" devem
ser os mensageiros da
beleza, porém todos os
homens devem
participar do
banquete. Que as criações
da arte e da cultura
cheguem ao seio
das
massas amplamente, aos
lugares mais longínquos e
aos lares mais pobres, mas
que os condutores sejam,
apenas, os eleitos, os
verdadeiros artistas. A
beleza
é uma coisa sagrada
e, para transmiti-la, só o
ungido, o sumo sacerdote.
Que as
rosas sejam, no
entanto, derramadas
profusamente, encham as
ruas e alegrem o
povo.
 
Lembro que a pequena
repórter
ouvia deslumbrada.
Deslumbramento que
culminou quando, para
ilustrar sua tese,
Magda
recorda o concerto
realizado, certa vez, em
Porto Negra, para mais de
trinta mil presenças,
naquele Auditório Araújo
Viana, que eu tanto amei.
Ela
insistira com o prefeito
no sentido de ser ao ar livre
o terceiro concerto do
contrato. Não fizera
concessões ao organi­zar o
programa e ali estavam
moleques
descalços ouvin­do
Beethoven, Bach, Chopin.
Uma assistência, que era
quase toda
ela o povo que
não podia ir ao Teatro São
Pedro, ouvindo em absoluto
silêncio
e, ao final de cada
número, explodindo em
frenéticas ovações, pois
com­preendia
que as mães
que estavam tocando eram
marca­das, ferreteadas pelo
gênio. Quase
todos de pé,
naquele ambiente helênico,
diante da figura majestosa
da filha dos
deuses que ia

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

até eles proporcionar aos


operários suados aquele
salário
luminoso e
inesperado, aos homens
can­sados e famintos de
repouso e de evasão —
aquele mila­groso repasto,
aquele banquete de
harmonias. Quiseram,
depois, que
ficasse com eles
para sempre a que não to-­
cava apenas, para os
grandes da terra
e, após o
concerto, seguiram-na
arrebatados e agradecidos,
pedindo um au­tógrafo
e um
retrato e chamando-a pelo
nome — Magdalena!
Magdalena! — como a uma
amiga,
a uma irmã.
 
 
 
Tu-Chin-Fang
 
 
Vi "a dança das fitas
vermelhas", as jovens mãos
amarelas erguendo faixas
rubras (eram
labaredas?
estan­dartes? línguas?), a
glória de um bailado que
parecia re­presentar
gritos
de júbilo, primavera,
campos em flor. Vi "a dança
da flor de lótus",
da flor que
é um símbolo oriental de
juventude. E oito botões de
mulher, e mais
a estrela do
lótus branco (eram pétalas?
eram ninfas?) bai­lando,
deslizando
sobre as águas.
Vi batalhas e romances,
trajes suntuosos, adornos e
símbolos,
harmoniosas
cores. Vi acrobacias incríveis
e não vi cenários, pois a
Ópera de
Pequim,
apresentando o teatro
clássico da China — dra­ma,
comédia, pantomima,
dança
e música — o que apre­senta
é o elemento humano, o
ator, e a este
"cabe evo­car
ilusórios rios, árvores,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

portas, etc., através do seu


canto,
da sua dança, da sua
mímica". Ouvi aquela
música estranha, oriunda
principalmente de
instrumentos de percussão,
e ouvi alguns cantos
populares
chineses, tão
belos e tão puros — a moça
pensando no amado, a moça
que ouviu a
canção e sorriu
— e o grande soprano que
os executou aquela
bonequinha de
vestido de
veludo, cantar também, a
cantiga que têm cantado
todas as me­ninas
do Brasil:
"Esta rua, esta rua tem um
bosque". Re­cebi a
mensagem de
uma arte
secular portentosa, mar­cada
de pureza e de equilíbrio, de
um tal
equilíbrio que cada
gesto parece ter um sentido,
sem haver um a mais nem a
menos, somando todos o
número rigorosamente
exato e necessário à
representação.
 
Mas o que sobretudo me
deslumbrou
foi "a dança das
espadas", realizada pela
jovem Tu-Chin-Fang. Faz
parte de "O Adeus da
Favorita", que revive a
seguinte histó­ria:
"Cerca de
dois séculos antes de Cristo,
duas podero­sas casas
imperiais,
os Chu e os Han,
disputavam a hege­monia da
China. O príncipe dos Chu,
em
combate contra os Han,
cai numa emboscada e é
cercado pelos inimigos. A
cena
passa-se na tenda de
campanha do príncipe, que
vê aproximar-se o seu fim e
acaricia o seu corcel. Ao
mes­mo tempo, a sua
favorita, a princesa Yuki,
executa a dan­ça das
espadas, expressando sua
dor em um canto emo-­
cionante. O
cerco inimigo

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

estreita-se; em face disso,


Yuki suicida-se, para deixar
ao
príncipe liberdade de
ação. Mas o herdeiro dos
Chu resolve seguir-lhe o
destino."
 
Pois foi a dança perfeita da
princesa Yuki (ela veio de
uma página da história ou
de uma taça de porcelana?)
que me pareceu a coisa
maior do espetáculo no
Muni­cipal. As breves mãos
maravilhosas empunharam
as terríveis espadas e eis a
pequena figura de
Tu-Chin-
Fang, delicada e vibrante.
bailando na tenda do bem-
amado a sua dor e a
sua
paixão.
 
 
 
Menino dormindo
 
 
Contemplo o teu sono,
Jorge, e
interrogo: este
arcan­jo é aquele pequeno
leopardo branco que devora
bocados de
carne mal
passada e bebe com prazer
o molho verme­lho? O
menino inquieto e há
muito
conhecedor de todos os
nomes e procedências de
carros, aviões e navios ­é
esse pássaro contido no
ritmo (ou gorjeio?) adorável
da respiração? Contemplo o
teu sono, Jorge, e lembro a
sú­bita gravidade, a nuvem
de preocupação que cobre
o
rosto do menino acordado
quando o jovem pai — pai e
ídolo — demora a chegar,
ou
está doente, ou parece
triste. Agora não és apenas
uma criança dormindo.
Apenas? Porque, se já eras
o mais belo dos meninos,
que direi agora? Estou em
êxtase e pergunto se sonhas
e se é por acaso o sonho

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

que te aumenta assim a


beleza. As pálpebras
descidas adejam. Os lábios
róseos e pequenos — fruta e
seda — palpitam. Ondula o
tórax branco. Jasmins e
infância marcam teu rosto e
oh, eu sinto, de repente,
que neste momento dos
teus sete anos o fascínio
maior
em toda a terra —
sim, em toda a terra — é o
que trazes, menino, no
desamparo
maravilhoso do
sono.
 
 
 
Senhora Dona Romana
 
Para Zora e Antônio O'into
que, em
missão diplomática
na Nigéria, promoveram a
vinda de Romana ao Brasil
(1963).
 
 
E salve Dona Romana,
Romana da
Conceição. Em
abril de noventa e nove, lá
se foi com seu avô para
Lagos, na
Nigéria, terra do
negro nagô. Da Bahia para a
África por seis meses
navegou:
era o patacho
"Aliança" o velei­ro que a
levou. Levou Romana
menina
para a terra do avô.
Levou menina baiana que na
África se casou. Teve filhos,
teve netos e eis agora ela
voltou. (Voltou para rever a
terra onde Romana
nasceu.)
Quando foi levou seis
meses, quando veio foi a
jato e sorrindo ela
desceu.
Romana tão enfeitada,
Romana tão elegante, de
broche, coar, turban­te e
capa de pele na mão.
Romana tornada laço entre
a África e o Brasil. Filha,
neta
de escravos, de
escravos e de reis, Dona
Romana rainha, diplomata,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

grande dama,
Ro­mana da
Conceição.
 
 
 
Minhas avós
 
 
Mal conheci minha bisavó
Maria
Inês, a quem sempre
chamei de avó da Praia de
Fora, pois era naquele bairro
florianopolitano que tinha
ela a sua mansão. Dirigida
já então pelas netas que
criara, primas-irmãs de
minha mãe. Fora uma
matriarca, cuja autoridade
não se
discutia, mas que
não se manifestava, no
entanto, senão por meios
sutis. Lembro
suas batas
brancas, suas feições
eclesiásticas, seus olhos
fechados pelas
cataratas. E
quando acariciava minha
mão e, nela segura, me
levava para os
manjares de
sua mesa.
 
Angélica, a avó que tinha
nome de
flor, morreu aos
vinte e poucos anos. Meu
pai jamais a esqueceu. Além
de a
idolatrar, aquela morte
arrebatou-lhe a infância.
Cer­to dia — andava eu pelos
treze anos — o surpreendi
me fixando imensamente
comovido. Ao ver meu rosto
interro­gativo, disse logo: Eu
estou achando minha filha
muito parecida com a
mãe
do papai. (Era como a
denomináva­mos). Carrego,
pois, Angélica, a avó que
tinha nome de flor.
 
Mas eis vovó, a que sempre
assim
foi chamada e que era
mais doce que os sumos do
seu pomar biguaçuense.
Filha de
donos de escravos,
donos cruéis, tinha o apelido
de Yayá e os negros a

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

chamavam
de anjo. Que
anjo ela foi sempre. Nunca
admitiu a violência e era
toda mansue­tude
e perdão.
Conheci-a ainda com fios de
ouro nos ca­belos e os
grandes olhos azuis
na
plenitude do outono.
(Aqueles olhos que tanto
choraram). Viu morrer tísico
o
amado marido de trinta e
sete anos, enviuvou grávida
e criou os filhos em
Florianópolis e depois em
Biguaçu. Quando
missionários americanos
estiveram por
lá, foi um dos
que se converteram ao
protestantismo. E membro
da Igreja
Presbiteriana
permaneceu até morrer,
indo aos cul­tos sempre de
preto, chapéu e
saltos altos,
mui cuidada sempre, dando
a todos uma agradável
impressão de
trato e finura.
Lia a Bíblia todos os dias e
quando eu, que en­tre
aqueles
versículos me criei,
mas que cedo comecei a
rebelar-me, quando eu lhe
dizia
qualquer palavra
irreligio­sa, sua máxima
reação era olhar-me com
aquelas puras
safiras
atravessadas, exclamando:
ô Maura!
 
Sofreu tremendos golpes
vendo
morrer filhos e netos,
mas a lâmpada de sua fé
jamais deixou de arder. ("O
Se­nhor o deu, o Senhor o
tirou. Bendito seja o nome
do Senhor".) Fazia
tudo com
perfeição e milagres fazia
com sua pequenina renda
para nos alegrar.
Nunca
esquecerei minha aflição
adolescente por não ter
vestido novo para dizer
meu
discurso de oradora da
turma na cerimônia de
formatura da Escola Normal.
Foi quando uma fada

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

chamada Vovó me entregou


aquele divino corte cor-de-
rosa.
Nos últimos anos
parecia uma velhinha alemã
a mãe de minha mãe. Que
se chamava
Benvinda — tão
condi­zente com as ternas
auras que derramava — de
Azevedo
Régis. Óh, quantas
vezes a vi colocar os óculos
para assinar seu nome
querido.
E inesquecível.
Porque sua lembrança será
sempre bem vinda.
 
 
 
Nísia Floresta
 
 
Apesar de oficialmente
encerrada,
permanecerá, no
Centro Norte-Rio-
Grandense, a exposição
sobre a vida e a obra
de
Nísia Floresta Brasileira
Augusta. Não descerão
aqueles cartazes que
estampam o retrato oficial
de Nísia Floresta, nem o
quadro com o fac-símile da
correspon­dência que
manteve com o fundador do
Positivismo "a mais notável
mulher de letras do Brasil".
(Os originais se encontram
em Paris no Museu
Augusto
Comte). Em qualquer época,
o visitante poderá
contemplar o belo
medalhão
de Nísia, feito em Paris no
ano de 1851 e que aparece
ladeado pelos
títulos e datas
das obras que dei­xou,
numerosas e esgotadas; por
um conceito
de Oliveira
Lima sobre a ilustre mulher
e pelo seguinte período la-­
pidar de
Nísia Floresta,
publicado em seu "Opúsculo
Humanitário": "Um dia
raiará mais propício para
nós, em que os escolhidos
da nação brasileira se
dignem de achar a educação

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

da mulher um objeto
importante para dele se
ocuparem
com a
circunspecção que merece."
 
Em outro painel, fotografias
e
legendas sobre o ber­ço e o
túmulo. Papari (hoje Nísia
Floresta), onde nasceu
em
1810 e onde residiu até
1829. Era no coração de
Papari que se localizava o
sítio natal, denominado
Floresta, que "infelicidades
de família e o
vendaval das
revoluções fizeram decair e
soçobrar", mas que, em
verdade,
não soçobrou,
porque subsiste no grande
nome de Nísia Floresta
Brasileira
Augusta. Ainda em
Papari, uma fotografia do
monumento inaugurado em
1909 e para
onde serão
trasladados os restes
mortais da escritora. Depois,
Rouen, onde faleceu
em
1885. O túmulo em
Bonsecours e um trabalho
vigoroso de Pissarro,
mostrando a
fisionomia de
Rouen no fim do século.
 
Mais abaixo, o mostruário
de obras
sobre Nísia, entre
as quais as de Oliveira Lima,
Roberto Seidl, Joaquim Gri­lo
e a "História de Nísia
Floresta", de Adauto da
Câmara. Veem-se,
ainda,
um opúsculo contendo as
cartas trocadas entre
Augusto Comte e
"Madame
Nísia Brasileira"; uma
antologia de poetas
potiguares
exibindo um
poema de Nísia, traduzido
por Palmira Wanderley, e um
exemplar da
primeira edição
de "Trois Ans en Italie", uma
das obras de sua
bibliografia, publicada na
Inglaterra em 1864.
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Finalmente, o álbum
suspenso, o
painel dos
retratos: Nísia e sua filha
Lívia, em 1851; retrato de
1870; retrato
de 1831 (o
oficial); Lívia; Augusto
Américo de Faria Ro­cha, o
filho de Nísia,
diretor do
Colégio Augusto, fundado
(em Porto Alegre e, mais
tarde, no Rio de
Janeiro)
pela educadora que superou
o seu tempo e por ela
dirigido até sua
mudança
para a Europa; professor e
advogado Joaquim Pinto
Brasil, seu irmão; e
os
grandes devotos de Nísia os
intelectuais norte-rio-
grandenses O. R. Dantas,
saudoso diretor do "Diário
da Notícias", Adauto da Câ-­
mara e Henrique
Castriciano. Este, irmão da
poetisa Auta de Souza foi
quem em 1908, iniciou o
trabalho de pes­quisas sobre
Nísia Floresta e, três anos
mais tarde, criou, em
Natal,
a Escola Doméstica,
concretizando, assim, um
dos pontos altos da
pregação da educadora.
 
Todas estas preciosas coisas
continuam expostas na
associação potiguar, que
tem a profunda marca da
terra e
é presidida pelo Dr.
Marciano Freire. Lá se veem
os retrates de Amaro
Cavalcanti, Padre João
Maria, Augusto Severo;
mapas do Estado e a planta
de
Natal; um enor­me painel
mostrando o sertão — o
gado, a vegetação, os
açudes, o
cenário das secas
— e o litoral com a riqueza
das salinas e da pescaria: a
vasta biblioteca sobre a
gen­te e a terra potiguares;
mostruários, gráficos,
indicações estatísticas,
óleos, fotografias, os nomes

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dos municípios estampados


nas paredes e várias
manifestações típicas de
arte popular em cerâmica e
madeira.
 
Agora, Nísia Floresta, o
gênio da
terra. Aquela que
"causa pasmo", como
escreveu Gilberto Freyre. O
espí­rito independente que
recusou suprimir algumas
determi­nações a respeito
da
confissão — no volume que
publi­cou em 1842,
"Conselhos à Minha
Filha", o
qual, não obstante, foi
adotado nas escolas
católicas italianas.
A
revolucionária, a humanista,
a polígrafa, a republicana, a
abolicionista
("A escravidão
é uma obra maldita" — afir-­
mou ela), a discípula de
Comte, a brasileira que
privou da amizade de
grandes vultos europeus e
defendeu
até à morte a
liberdade de cultos, a
igualdade das raças, os
direitos humanos.
 
 
 
O poeta de "Esboços"
 
 
Lacerda Coutinho (1842-
1900),
poeta, médico,
latinista, dramaturgo e
político, um dos maiores
intelectuais ca­tarinenses
de
todos os tempos, deixou
"Ovidianas", "Len­das
Escandinavas" e "Páginas
Soltas". As suas obras e os
seus
discursos (estes
pronunciados na
Constituinte de 91) revelam
um dos nossos
espíritos
mais altos do fim do século.
 
Os mais belos poemas de
Lacerda
Coutinho, na mi­nha
opinião, são os "Esboços",

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

que fazem parte de


"Pá­ginas
Soltas". Esboços parece-me
um título modesto, já que
se
trata de desenhos nítidos e
acabados, alguns com fortes
traços eternos. No
entanto,
denuncia a consciên­cia que
tinha o autor dos seus dons
plásticos.
Realmente,
Lacerda Coutinho é poeta de
aguda sensibilidade visual,
de notáveis
qualidades
pictóricas. Assim dotado,
não se compraz em traçar
quadros
estáticos, como
seriam, por exemplo, quase
todos os "Cromos" de B.
Lopes. É uma pintura de
movimento a sua: pintura
dinâmica, cinemá­tica,
encerrando, às vezes, num
sonetilho, séries de qua­dros
objetivos e
psicológicos. Por
vezes o seu poder de
síntese é tamanho que lhe
basta o soneto
de seis
sílabas, dispensando até a
redondilha popular, como no
poeminha que
começa com
esta pequena tela dourada
de sol e de infância:
"Vozeiam no
terreiro /
alegres as crianças. /
Descamba o sol — e as
franças / mal doira
sobre o
ou­teiro. / O rancho
galhofeiro / alterna jogos,
danças / flu­tuam
roupas,
tranças / no voltear ligeiro."
 
Como pintor, conhece todas
as
modalidades das emo-­
ções ligadas à paisagem ou
às sensações do colorido e
da
forma, desde a placidez
virgiliana de "A Fazenda",
com seu
enquadramento
verde e seu ambiente de
traba­lho sossegado, "as
senzalas, o
engenho, as
roças, os currais / e os
gados que apascenta a
ubérrima
campina" — até o
humorismo de pesadelo, o
realismo fantasmagó­rico da

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

sombra móvel, pequenina


ou gigantesca, do vulto que,
à luz mortiça dos velhos
lampiões, caminha embria-­
gado pela "Noite Chuvosa".
 
Lacerda Coutinho não se
contenta
em poetizar os
dramas e as comédias da
humanidade. Chega,
também, ao mundo dos
bichos, interpretando-lhes
as reações psi­cológicas com
a sua ironia e a sua
compreensão. Des­ceu aos
terreiros antes de Edmond
Rostand e sintetizou, em
plásticos alexandrinos, todo
um drama da tribo ga­linácea
em que aparecem quase
todos os personagens do
"Chantecler".
 
Falei, há pouco, em realismo
e,
ante os "Esboços", pelo
menos, não se pode, em
verdade, classificá-lo
um
romântico. E há, ainda,
corroborando, aquela
preferên­cia pelos cenários e
personagens da classe
média e das camadas
populares, que vamos
encontrar na
obra dos
realistas da prosa. Os
quadros da vida proletária
são abundantes na
coletânea — e mostra, por
exemplo, da vida pequeno-
burguesa é este recorte
pitoresco de serão laborioso
e modesto:
 
 
"A mesa do trabalho, às
voltas co'o Razão,
risca, escreve, calcula, à luz
duma candeia,
na mão pousada a fronte, o
marido,
o patrão.
 
Sentada ali ao pé a esposa
cabeceia
e, ao afrouxar o braço, ao
distender a mão,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

solta o novelo, a agulha e a


esburacada meia,"
 
 
 
Em "Rendeira", contudo,

quase um remanescente de
fidalguia. Não é a conhecida
rendeira catarinense,
a
pobre artesã ilhoa, que dos
bilros tira rendas, que das
rendas tira pão. Que
tece
margaridas, guirlandas,
estre­las para vender. É a
rendeira que mais
parece
dona e senhora de sua casa
— fazenda tranquila ou
urbana man­são — e se
tece
é que tem lazeres e que só
tece para entreter-se. É a
rendeira
"sentada na
marquesa, as per­nas
encruzadas", mas que, tal
como as
suas irmãs sen-­
tadas no portal das míseras
choupanas, forja as mesmas
brancas
maravilhas que as
avós açorianas ensinaram.
Vamos acompanhá-la:
 
 
"Sentada na marquesa, as
pernas encruzadas,
óculos no nariz, uma
almofada em
frente,
vai os bilros trocando a
velha
diligente
e aproveita da tarde as
horas
avançadas.
 
Num prado papel as linhas
entrançadas
com alfinetes prende; e,
com mão
já fremente,
logo outros fios tece.
Estalam
brandamente
os pequeninos paus de
formas
torneadas.
 
Coa, enfim, dúbia luz a
aberta
gelosia;
já o morcego esvoaça; a ave
se
empoleira;
canta a estiva cigarra ao
despedir-se o dia.

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

 
Guarda, então, o labor a
próvida
rendeira
e, ao badalar o sino, ao
longe, a
Ave Maria,
persigna-se, sacando as
contas da
algibeira."
 
 
 
Lou Andreas-Salomé
 
 
Devo a Eno Stein Ferreira,
médico
ilustre e uma das
maiores culturas ecléticas
que conheço, a leitura de
"Ma
Soeur, Mon Épouse",
tradução (com o selo da
Gallimard) do texto inglês
de
H. F. Peters. Contém o
volume a bio­grafia — desde
seu nascimento na Rússia
dos
czares, em 1861, até
sua morte na Alemanha de
Hitler, em 1937 — de uma
das
mulheres mais
importantes de todos os
tem­pos: Lou Andreas-
Salomé. Desejo
frisar que
nasceu ela quinze anos
antes da morte de George
Sand e, como a
genial
amante de Chopin, Musset,
Jules Sandeau, foi tam­bém
Lou amada por
homens de
extraordinária celebra­ção,
entre os quais Friedrich
Nietzsche, Paul
Rée, Rainer
Maria Rilke. E não pode
deixar de ser mencionado o
no­me do sábio
que foi seu
marido, mas que jamais
parti­lhou seu leito: Friedrich
Karl
Andreas.
 
Foi no livro em apreço que
pude
compreender a mo-­
tivação daquela pergunta e
daquela resposta em "Assim
Falou Zaratustra": "Ides ver
as mulheres? Não esqueçais
o
látego". É que, na
estranha fotografia
reproduzida no volume, em

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

que Lou
aparece com
Nietzsche e Paul Rée —
estes atrelados a uma
carreta — é ela quem
empunha o látego. (Com a
face mais doce e feminina
do mundo, acrescente-se).
Formavam então a "santa
trindade", logo transformada
em duo, pois a
nossa
biografada e Paul Rée
começaram a viver juntos
(como irmãos, a despeito
do
amor sempre esperançoso
do parceiro) até o
aparecimen­to de Andreas.
Quanto
a Nietzsche, que a
considerava "a mais
inteligente das mulheres",
nunca se conformou em não
corresponder a jovem russa
à sua paixão. Es­creveria,
depois, o Zaratustra. E Lou
Salomé — vários estudos e
todo um livro sobre o
filósofo.
 
Parece, no entanto, que foi
Rainer
Maria Rilke quem
afinal, em 1897, a
despertou para o amor.
Aliás, o frag­mento
que
sobreviveu de um dos
poemas a ela dedica­dos, em
que a chama de "minha
brisa de primavera", "mi­nha
chuva de verão", "minha
noite
de junho", não deixa
dúvida. Pois nele há aquele
sutil detalhe revelador:
...Que nul initié n'a jamais
foulés encore: / je suis en
toi.
 
A obra de Lou Andreas-
Salomé
compreende, além
de mais de cem artigos-
ensaios, vinte volumes, em
que se
incluem os três
publicados após sua morte
por Ernst Pfeiffer, a quem a
admirável mulher legou seus
manuscritos: Memórias,
Correspondência
Rilke-
Salomé e Na Escola de

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Freud. É bom lembrar aqui


haver Lou dedicado
seus
últimos anos à psicanálise,
tendo escrito um livro sobre
o descobridor do
subconsciente, estudado
psica­naliticamente os
"anjos" de Rilke e
exercido
ela mesma a psicoterapia.
Sua obra de ficção é
igualmente notável,
compreendendo romances e
novelas em que entram,
des­de aquele primeiro
"Uma
Luta por Deus", nítidos
elemen­tos autobiográficos,
argutas sondagens
psicológicas, conflitos entre
a fé e a razão, ah, "uma
angústia quase kier-­
kegaardiana".
 
Tenho a lamentar este
registro tão
superficial sobre
uma personalidade que
merece profundo estudo. (E
nem me
referi à sua
"infância de contos de
fadas" no lar dos von
Salomé em
São
Petersburgo, nem à
explosão de sua consciência
e do primeiro amor da então
Louise — ex­plosão que a
faria deixar a terra natal, ir
estudar em Zu­rich e
tornar-
se, depois, escritora em
língua alemã.) La­mento, no
entanto, mais ainda
ser tão
pouco ou quase nada
conhecida no Brasil* a
pensadora que influenciou
grandes homens e escreveu
grandes livros; a bela e alta
mulher que parece uma
esguia monja nos retratos;
a que viveu corajosamente a
vida que programara; a
de
tal for­ma fascinante que "o
sol se levantava ao entrar
ela numa
sala" e os homens
tocados pelo seu poderoso
encanto "nove meses mais
tarde davam nascimento a
um livro".

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

 
(*) Pela primeira vez é a
pensadora traduzida no
Brasil: a Imago Editora está
lançando (1975) "Freud
/
Lou Andreas-Salomé"
(Corres­pondência
Completa).
 
 
                         
As mil e uma noites
 
 
Minha mãe foi uma
Sheherazade.
Tinha ela o
dom de inventar atraentes
enredos, que deveriam ter
sido coli­gidos
e onde
apareciam bichos e plantas,
pessoas e sím­bolos, suas
geniais criações
de Anabela
e Micaela, suas fadas boas e
más, a realidade e a
fantasia numa
sábia
combinação. Além da
capacidade de transmitir as
coisas mais vivas do
nosso
folclore, incluindo jogos e
cantigas, e de narrar como
ninguém os contos
de
Grimm, Ander­sen, Perrault,
deixando os pequenos
ouvintes presos ao fascínio
da voz e do gesto e, ainda,
ao movimento dos rasgados
e lindíssimos olhos.
Minha
mãe foi uma Shehe­razade.
 
A magia do Oriente, no
entanto,
quem a trouxe para
meu coração, para nossa
casa, voando no "cavalo en-­
cantado"
por todos aqueles
misteriosos reinos da
verten­te do índico, foi a
italiana
Felícia. Cozinheira,
pajem, acompanhante,
enfermeira, amiga, era
sobretudo
amada pelas
maravilhas que nos servia
com os pinhões cozidos nas
geladas noites
ilhoas.
Pequena, grisalha, forte,
uma alegria irônica nos

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

olhos claros, as
faces
lembrando ma­çãs maduras,
dizia-se filha de conde,
roubada por ciga­nos —
e
tinha logo início um desfiar
de aventuras (e des-­
venturas) que mais deviam
pertencer ao baú das suas
fan­tasias. Quanto às
histórias que nos contava,
eram
quase todas saídas de
"as mil e uma noites". Os
nomes dos
personagens,
segundo verifiquei mais
tarde, bem como os dos
lugares onde se
desenrolavam os episódios
— chegavam sempre
intatos. Mas oh, a narrativa
era
fre­quentemente
enriquecida com os toques e
suspenses da sua fabulosa
co-autoria.
 
O volume intitulado "Joias
das 1001 Noites" é que me
fez abrir todo este leque de
recordações. Joias
en-­
cerradas em bela capa azul
e ouro, revestida de uma
ou­tra, móvel e
ilustrada,
assim como o texto, com os
qua­dros e as cores do pintor
polonês
Janusz Grabianski.
O sinete é o da
Melhoramentos e, entre os
contos apresen­tados,
estão
os três mais famosos:
Sindbad, o Marujo, Aladim e
a Lâmpada
Maravilhosa e
Ali-Babá e os Quaren­ta
Ladrões. É a seleção
precedida
de uma síntese da
gênese de todo o fabulário:
Sheherazade, filha do grão-
vizir
e casada com o sultão,
desenrola os seus novelos
de contos na noite de
núpcias,
com os fios
mágicos pren­de o bárbaro e
real senhor, para pela
madrugada no mo­mento
mais empolgante (assim
escapa de morrer naquele
dia, como vinha

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

acontecendo com
as suas
antecessoras, rainhas de
uma só noite, desde que
descoberta fora a
infidelidade da primeira
sultana) e continua na noite
se­guinte — e assim vai
até
completar as mil e uma.
 
Se tal foi o preço com que
salvou
a vida e conseguiu
amor e glória, os contos
portentosos da rainha
Shehera­zade
não apenas
arrebataram o sultão, seu
marido, mas a todo o
universo. Neles,
"espíritos e
gênios intervêm no destino
de príncipes e reis, de
mercadores
e mendi­gos, e
sempre a sua força mágica
se anula diante de um puro
e inocente
coração". Contos
que, afinal, têm um ou mais
autores e onde mesmo
estão
fincadas as suas raí-­
zes? A essas indagações
responde Almeida Cousin
quan­do,
no seu curso de
História da Literatura (que
ministrou na Escola de
Serviço
Público do DASP e
publicará em livro), ensina:
"... englobam, em formas
arábicas, histó­rias e lendas
da Babilônia, Pérsia,
Turquestão, Índia, Chi­na,
Egito e até Grécia e mundo
clássico".
 
Outro ponto importante é a
fonte
de inspiração que elas
significam. Fonte que tem
jorrado belezas e, entre
elas,
os últimos versos —
dedicados à esposa e musa
Walkyria — de Jorge Salis
Goulart, alto poeta e pensa-
dor gaúcho, desaparecido na
década de 30:
 
 
Conta-me histórias lindas,
Sheherazade,

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

Como um cofre de jóias


reluzente,
Que a fantasia é mais do
que a
verdade
Quando ilumina o coração
da gente.
 
Deixa cair da tua mocidade
No meu triste regaço de
descrente
As pedras preciosas da
piedade
Que brilham mais que as
pérolas do
Oriente.
 
Quando a noite chegar,
coalhada de
astros,
Mostrar-me-ás
deslumbradas ilhas.
Rendilhadas de velas e de
mastros.
 
E eu serei mais feliz que
Sindbad,
Rico de lendas e de
maravilhas
Na pátria dos teus contos,
Sheherazade,
 
 
 
Festas tchecas
 
 
A Tchecoslováquia possui
um dos
grandes nomes da
literatura universal: Bozena
Nemcová. É ela a autora do
traduzidíssimo "Babicka" (A
Avó), livro escrito em 1855*
e "que
representa um marco
miliário importante na evo-­
lução e caracterização da
prosa
tcheca", como
salientou Antônio Houaiss
no prefácio da edição
brasileira.
Classi­ficado como
romance, contém vários
romances — e é biografia,
são
memórias, tendo como
cenário um vale poético do
norte da Boêmia, onde a
autora
passou a in­fância e
parte da juventude. Muitos
personagens nele se

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

movem, mas
a figura central
é uma velha camponesa
analfabeta e sábia,
Magdalena Novotná,
sua avó
materna. Dona de segredos,
rica de dons, pura, jovial e
terna, sa­bia
amar e
entender o semelhante,
atrair o bem-querer da
comunidade, cumprir com
humilde grandeza o difícil
exercício de viver.
 
"A Avó", descrevendo os
costumes de toda uma re-­
gião através de uma série
de quadros que pingam vida
e
poesia, apresenta
inúmeras facetas para
serem estuda­das: os
profusos diálogos,
a vida
familiar, as peregrinações,
as visitas, a exuberante
flora, as estórias
de amor,
as danças, as lendas, as
bodas, as múltiplas
intervenções da avó para
as
soluções felizes dentro e
fora do clã e tantas outras,
entre as quais a que
me
parece tudo re­presentar: as
festas, não as singulares,
mas as coletivas e
periódicas.
 
Elas intercalam-se por todo
o
volume e, reunidas, po-­
deriam oferecer o próprio
sumo do livro. Revestidas
sem­pre
pela magia das
cores locais, abrangem o
calendário de ponta a ponta,
algumas
parecendo coincidir
com os equinócios e
solstícios, numa comunhão
da religião
com a terra, da
terra com o mito solar. Seu
conteúdo mais fascinante
está nas
comemorações do
inverno, que se ini­ciam
quando a avó desperta os
netos (e há
aquele alvo­roço)
para anunciar a chegada de
São Martinho, montado no
seu
cavalo branco. (A neve

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

já cobria com o seu manto o


vale todo.) As estações são
marcadas e recebidas ri-­
tualmente. Mudam os
hábitos, as comidas. No
inverno,
desce a roca do
sótão, chegam as
limpadoras de penas à Velha
Lavanderia (morada
da
família) e, enquanto "na
lareira crepitava a lenha
resinosa",
estendem-se os
anima­dos serões das
fiandeiras — com ervilhas
assadas, peras
cozidas,
ameixas, risos claros,
estórias de assombrações.
 
Erguem-se pela manhã os
cânticos
do Advento, en-­
toados pela avó, e seguem-
se as copiosas celebrações
do Natal —
onde não podia
faltar o hóspede à mesa,
nem a trombeta do pastor
— e as dos
Reis Magos,
estas su­cedidas pelo "serão
longo" e pela representação
de San­ta Doroteia. Os
festejos do carnaval — com
trenós e gui­zos — terminam
com uma grande mascarada
e são o epílogo do inverno.
Novamente os cânticos da
avó, na sua roca e vestida
de luto, agora assinalando a
Quares­ma. E chega-se
ao
domingo florido de Ramos, à
quinta-feira santa, único dia
do ano em que eram
feitos
os de­liciosos judas-com-
mel, ao sábado branco
(Aleluia) e ao domingo da
festa de Deus — com ovos
tintos, o carneiro imolado e
as rondas da Páscoa
entoadas pelas crianças. Já
as andorinhas tinham
regressado, já os dias se
alon­gavam
e, no limite de
primavera e verão, vêm as
festas de Pentecostes, que a
avó
chama de "festas
verdes", pois enfeita a casa
toda de galhos de
bétulas. A

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

noite de São João é uma das


mais significativas, porque é
também
comemoração
onomástica, banquete
doméstico. Mas o ponto
romântico é quando a
avó
surpreende a jovem Kristla
com as nove flores do ramo
da sorte — e
lembra-se de
Magdalena em flor jogando
a coroa, de costas, no alto
de uma
árvore. Depois vem
agosto e começa a co­lheita
na rural região. A festa dos
segadores marcará o final
da colheita do trigo.
 
O trigo é o pão. Para a avó o
pão
é algo sagrado. Sua
feitura é um rito, seu modo
de cortar deve ser certo.
Com o
sal simbólico,
oferece-o às visitas. Dele
nada é jogado fora: junta as
migalhas
e leva-as com
fervor às aves, às formigas,
aos peixes. E, quando
prepara a me­renda
para os
netos, põe na cestinha de
junco e nas sacolas de
couro, ao lado dos
frutos
secos, uma verda­deira torta
de pão, pois ocou, antes,
um farto pedaço,
revestiu-o
de creme e adicionou toda a
polpa do miolo. Para a avó,
o pão é
festa de cada dia, é
bênção, é "dom de Deus".
 
(*) No PEN Clube do Brasil
(Centro
Brasileiro da
Associação Mundial de
Escritores, sob os auspícios
da UNESCO) e
ainda no Ano
Internacional da Mulher (11-
11-75), a autora pronunciou
uma pales­tra
sobre "Os 120
anos de Babicka, de Bozena
Nemcová", parte da qual foi
publicada na revista
"Convivência", órgão do
PEN.
 
 
 

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16/04/2022 15:23 Nós e o mundo, de Maura de Senna Pereira

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