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LITERATURA
BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Cantiga de amiga, de
Maura de Senna
Edição de base:
Maura de Senna Pereira, Poesia
reunida e outros textos.
Org. de Lauro Junkes,
Florianópolis: ACL, 2004.
ÍNDICE
Oh América
A sábia mão
A profecia
Confiteor
Canto natural
Revoada
Evolução
Grumixamas
Festa e fome
A
chave
Balada contra a
tormenta
Culto mutilado
Anacreôntica
Carnaval
Busco
a palavra
Para ALMEIDA COUSIN
o grande companheiro
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Sou
um
evadido.
Logo
que
nasci
Fecharam-
me
em
mim,
Ah,
mas
eu
fugi.
Fernando
Pessoa
Oh América
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Quando todos
trabalharem
o trabalho será uma
alegria
— disse alguém
Meta ou sonho — não
questiono:
sonho
E nessa questão do
trabalho humano
força do mundo
sobretudo me conturba
haver no trabalho
hierarquia
conforme seja cerebral ou
não
Por que a discriminação
se é sempre nobre o
labor
seja ele qual for?
se no próprio fio que tece
o
artesão
é sempre a mente que
lhe move a
mão?
se no preparo do prato
mais
singelo
ao mais requintado em
baixela
servido
a mão que os cozeu para
o filho ou
o patrão
é sempre guiada pela
inteligência?
se na construção de
qualquer
edifício
a mente tem que estar a
postos
sempre
ao colocar o operário
tijolo sobre
tijolo
ao armar o concreto a
viga o
bloco?
Objetarão aí que tudo se
deve ao
arquiteto:
à planta ao cálculo ao
saber ao
projeto
Mas se — para erguer a
casa
a rua a urbe —
não concentrasse o
operário toda a
forca
mental na execução
e não vigiasse o corpo
talvez
subnutrido
para não cair do andaime,
para
levantar a obra
todas as plantas jazeriam
no chão
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16/04/2022 15:19 Cantiga de amiga, de Maura de Senna Pereira
A profecia
Quando me libertei dos
profetas
bíblicos
em boa hora ainda, cor
de aurora,
num manifesto muito
claro e
honesto
indignados fariseus
vaticinaram
que eu terminaria na
sarjeta
Entanto
nesta hora já de
esmaecidas
papoulas
estou onde sempre
estive:
no meio da praça
Estou no meio da praça
e canto
enviando
amor
às sarjetas aos bordéis às
prisões
aos que trazem grilhetas
e
mordaças
aos oprimidos de todas as
raças
aos famintos de pão e de
justiça
aos que nascem em
manjedoura
aos que morrem na cruz
E aos que já
desmascararam a tola
hipocrisia
e arrebentaram todos os
grilhões
eu mando ainda "uma
rosa
branca"
Estou no meio da praça
e canto
Confiteor
A Flávio José Cardozo
Para me livrar das malhas
sutis da
catequese
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16/04/2022 15:19 Cantiga de amiga, de Maura de Senna Pereira
para frustrá-las
eu disse a meus irmãos e
a amigos
meus
com uma firmeza de tese
que era uma pedra
consolidada
por não poder crer
que sobre algo do meu
corpo morto
de qualquer corpo em
que o cérebro
parou
Aí se entristeceram — e
isso
me magoou
Hoje porém é mais
intensa ainda
a força vital que me
habita e me
anima
(a que eles dizem não
poder
cessar... )
Será?
Vou então alegrar meus
irmãos
convocar meus amigos
e dizer-lhes o que sei
pueril e
passageiro
dizer-lhes logo
que encontrei fendas na
pedra
e ainda interrogo
Canto natural
Liberdade, igualdade —
retornarão depois
não agora sobre estes
lençóis
desfeitos
em que entregue estou
inteira ao
teu querer
a carne rendida
penetrada
a língua sugada como um
favo
o lábio mordido como um
figo
sou fêmea ou fruta sobre
o leito
mas subo até o teto e as
estrelas
e é possível que
apedrejem o meu
canto
algum juiz severo ou
varonil
matrona
esquecidos de que de um
ato assim
eles vieram
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eles que se dizem meus
irmãos
pois se as estações
pesam muito
os elos fortes pesam mais
quando as senhas quando
as asas
e as consignas são iguais
Evolução
Em que estágio — tento
descobrir
—
começou na espécie
humana
o ato ignóbil de bater
num corpo:
na idade ainda
animalesca?
nas etapas do homem
primitivo?
ou já na fase do ântropos
em toda a plenitude?
Seja onde surgiu o fato é
que
evoluiu
em requintes de
crueldade o
processo
covarde
no qual o flagelador tem
sempre
como vítima
um ser inerme, atado,
indefeso:
a criança o servo o pobre
o preso
Grumixamas
Para Holdemar Menezes
Ao saber que das doces
frutas
só o nome conhecias
quis vencer tempo e
distância
e chegar ao quintal da
minha
infância
que era um poema de
ecologia
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Para
poucos
convidados
Francisco
Carvalho
Não, não foi um
banquete:
foi, sim, um jantar de
finas iguarias
quase íntimo
servido todo pelas
anfitriãs
três irmãs
que ora pareciam
princesas
ora ciganas
deslizando com bandejas
e manjares
e sacudindo as pulseiras
e as
voltas
dos colares
Após o ágape uma hora
de arte:
piano
canto poesia. Noite bela
—
com naturezas mortas
na parede e begônias
vivas na
janela
noite em que também
corria
o vinho da simpatia
humana
e que se encerraria
com os versos "tem gente
com
fome"
do poeta negro Solano
Trindade
(Noite bela que trouxe
procela
ao meu coração)
Ah meu amigo Solano
Trindade
um dia terás busto terás
rua terás
praça
para lembrar tua
fidelidade
à classe à raça ao verso à
arte?
Terás teus poemas
reunidos, tuas
onomatopeias,
teu teatro, teus cantos
afros?
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Culto mutilado
A congregação reunida
celebrava o Dia
das Mães
Sobre a tocante gênese
— o amor filial de miss
Ana Jarvis
—
falaram
pastor presbítero alunos e
mentores
da Escola Dominical
desde os cordeirinhos de
Jesus
até os anciãos as dorcas
os sumortodoxos
Era edificante ouvir
aquele coro
de justas loas ao amor
materno:
as mães eram as
heroínas, o terno
centro
Todas? Oh não!
Devia haver uma cadeira
vazia
a em que não podia estar
sentada
a pobre moça expurgada
"a linda mãe solteira"
Entremeando discursos e
orações
os cânticos enchiam o
templo
ao som do órgão bem
tocado
E uma das vozes mais
altas era
a do pai impune e
negador do seu
ato
de lábios grossos e cravo
no peito
entre os amigos que
diabos! -
cantando hinos ao Senhor
Anacreôntica
Em Frigia, a filha de
Tântalo,
Niobe, petrificou-se
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16/04/2022 15:19 Cantiga de amiga, de Maura de Senna Pereira
E Progne, a filha de
Pândion,
Em nova andorinha alou-
se.
Ah! Eu, se poder tivera
De ter mil formas e
faces*
Quisera tornar-me
aragem
puros ares naturais
lufada vinda do sul
para do verão possesso
inumano deste ano
poder te aliviar
Quisera ser a paisagem
que no momento não
tens:
leque, sucessão de
quadros
que se abrem pela
estrada
e descobres nas viagens
que te enriquecem o
viver
Que eu fosse por uma
hora
um dia uma semana
tua irmã amada e única
sozinha nos araxás
sem poder de lá sair
E, nesta fase de cura,
sem a poderes ir ver
que eu fosse a sua figura
Quisera ser toda a glória
que tanto mereces ter
láureas para os teus
méritos
e louros ao teu saber
Que eu fosse a primavera
que era ao te conhecer
para veres a teu lado
a primavera renascer
Quisera ser a ilusão
que eu não tenho e tu
não tens
mas bem sei que, em a
tendo,
terias também prazer:
terminadas nossas vidas
juntos e pelos espaços
continuarmos a viver...
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