Você está na página 1de 8

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, pp.

77 - 84, 2011

A produção de energia: usos políticos e econômicos do território e 


desenvolvimento rural no Vale do Zambeze, Moçambique - A barragem de
Cahora Bassa em questão.

Cláudio Artur Mungói*

Resumo
O objetivo deste artigo é demonstrar que o espaço rural não é apenas o agrícola e que infraestruturas
rurais estratégicas desempenham papel importante no desenvolvimento da região do Vale do Zambeze.
A barragem de Cahora Bassa, uma externalidade orientada para a produção de energia, é analisada
como locomotiva de desenvolvimento da região e fortemente vinculada aos usos políticos e econômicos
do território, marcado pelas etapas históricas registradas em Moçambique. O artigo sintetiza pesquisas
de campo realizadas em Moçambique entre os meses de janeiro e fevereiro de 2006.
Palavras chaves: espaço rural; região do Vale do Zambeze; energia elétrica.
Abstract
The aim of this paper is to demonstrate that the countryside is not only the agricultural. Also the
Infrastructures have been played an important role in the strategic development of the Zambezi Valley
region. This means that rural development also depends on actions and strategic infrastructure provisions
that go beyond the restricted field of the agricultural sector. Take as example the Cahora Bassa Dam
analyzed as possible locomotive for the development of the region and strongly linked to political and
economic uses of the territory, which places reason at the top of political and economic agenda and,
therefore, need to understand the formulation of regional policies. Territorial policies are understood
here as the set of actions aimed at the state investment in infrastructure and development programs
can generate significant social and economic changes at local and regional level.
Key words: rural space; Zambeze Valley region; electrical energy.
1. Introdução local e regional, através da valorização, uso e
aproveitamento de recursos naturais da região.
O Vale do Zambeze é uma região rural Nos trabalhos de campo desenvolvidos
estratégica para o desenvolvimento de Moçambique. entre janeiro e fevereiro de 2006 no Vale do
Por isso há necessidade de compreender-se a Zambeze (Moçambique) observou-se a produção
formulação de políticas territoriais por parte tanto de energia elétrica a partir da barragem de Cahora
do Estado português quanto do novo Estado Bassa como uma infraestrutura estratégica,
moçambicano. Políticas territoriais aqui são capaz de constituir um fator multiplicador para o
entendidas como o conjunto de ações do Estado desenvolvimento da região do Vale. Assume-se que
que visam o investimento em infraestrutura e o uso econômico da região do Vale do Zambeze pelo
programas de desenvolvimento capazes de gerar Estado moçambicano está fortemente vinculado a
mudanças socioeconômicas importantes à escala injunções políticas, ou seja, a decisões e práticas
*Doutorado em Desenvolvimento Rural - Docente na Faculdade de Letras e Ciencias Sociais-Universidade Eduardo Mondlane. E-mail. claudio.mungoi@uem.mz
78 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, 2011 MUNGÓI, C. A.

territoriais estratégicas, plasmadas nas relações de Em relação à África Austral, representa a maior
poder que vão determinar os usos econômicos reserva de água do subcontinente; a maior reserva
do território, fortemente marcado pelas etapas de energia renovável; a maior reserva de carvão
históricas e políticas registradas no país. de coque, a região de maior potencial agrícola, em
As constatações de campo demonstram termos de vastidão de terras e de qualidade. Para
que a construção da barragem de Cahora Bassa além destas características merece referência a
insere-se num universo maior de desenvolvimento sua elevada potencialidade hidroelétrica. Por estas
da região do Vale do Zambeze, que por sinal razões naturais traduzidas em potencialidades
representa a maior iniciativa de desenvolvimento de desenvolvimento, o Vale do Zambeze reúne
espacial de Moçambique. Esta iniciativa de condições naturais para se tornar um dos maiores
desenvolvimento não é recente. Na época colonial motores do desenvolvimento do país e da África
foi traçado um plano de desenvolvimento da região Austral (GPZ, 2003).
do Vale do Zambeze, através do estabelecimento do O Vale do Zambeze é uma região
Gabinete de Fomento e Povoamento do Zambeze privilegiada para se entender a problemática das
(GFPZ), mais tarde transformado em Gabinete políticas e programas de desenvolvimento nas suas
do Plano do Zambeze (GPZ). Assume-se que as diferentes perspectivas. Área de concretização
estratégias do Gabinete, por ser interministerial, e materialização de grandes empreendimentos
conformam-se como sendo políticas de caráter agroindustriais e energéticos, como são os casos
territorial que visam ao desenvolvimento da das açucareiras de Marromeu e do Luabo, da
região. A produção de energia elétrica a partir da barragem de Cahora Bassa, do Projeto do carvão
barragem de Cahora Bassa constituiu a principal de Moatize e de programas de desenvolvimento
ação do programa. comunitário. Paradoxalmente, a região apresenta
Em 1975, o país conquista a sua o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano
independência nacional e embora a região e a (IDH), ou seja, de 0,267, contra 0,285 que é a
barragem de Cahora Bassa continuassem sendo média do país.
estratégicas, são redefinidas as relações de poder
num novo ambiente político e econômico voltado 3. Políticas territoriais: poder e
a atender as necessidades dos moçambicanos. território
O objetivo do artigo é de demonstrar
que o desenvolvimento rural depende de ações Assume-se para o presente artigo a
e provisão de infraestruturas estratégicas que relação entre poder e território como fundamento
transcendem o campo restrito institucional do setor básico para a interpretação das políticas territoriais
agrário. Toma-se por objeto de análise a produção aqui analisadas não unicamente a partir do poder
de energia através da Barragem de Cahora do Estado, mas também, do poder emanado de
Bassa e os seus efeitos multiplicadores sobre o outras fontes, ou seja, do poder multidimensional
desenvolvimento da região do Vale do Zambeze. enquadrado no novo contexto de democratização
do país com a Constituição de 1990. Isso significa
2. A área de estudo que as políticas territoriais são aqui analisadas
de acordo com as condições que presidem a
A região do Vale do Zambeze situa- territorialidade do poder nestas duas dimensões,
se na zona Centro do país. Ela é atravessada ou seja, por um lado, a partir da relação entre o
transversalmente pelo rio Zambeze, que tem como poder unidimensional do Estado com o território
nascente o planalto central da Zâmbia e deságua e, por outro, a partir da multidimensionalidade do
no Oceano Índico. Em território nacional ocupa uma poder com as suas práticas estratégicas sobre o
área de 225.000 km2 (cerca de 27,7% da superfície território.
do país), com uma população de 3,775 milhões de Tradicionalmente, as transformações
habitantes (25% da população moçambicana) e territoriais estão relacionadas ao uso político do
integra quatro províncias do centro do país: Tete, território, às políticas territoriais, portanto ao jogo
Manica, Sofala e Zambézia, dos quais 56% da de relações de poder. Segundo Costa (1988), “as
população dessas províncias se encontram no vale. políticas territoriais têm sido entendidas no âmbito
A produçao de energia: usos políticos e econômicos do território e desenvolvimento rural no vale do
Zambese, Moçambique - A barragem de Cahora Bassa em questão. pp. 77 - 84 79

restrito dos planos regionais de desenvolvimento, momentos históricos diferentes: num primeiro
isto é, enquanto atividade planejadora do Estado momento, sob a total dominação e administração
voltada ao enfoque regional específico, resultando colonial portuguesa, o empreendimento visava ao
comumente em projetos especiais que interessam a abastecimento ao mercado sul africano, ou seja,
uma ou outra região do país”. Entretanto, o mesmo à produção de energia destinada à exportação,
autor alerta que “as políticas territoriais extrapolam através de uma linha de corrente contínua até a
essa noção, abrangendo toda e qualquer atividade Estação Apollo na África do Sul.
estatal que implique, simultaneamente, uma dada Embora a Barragem de Cahora Bassa fizesse
concepção do espaço nacional, uma estratégia de parte de um Plano Integrado de Desenvolvimento
intervenção ao nível da estrutura territorial e, por do Vale do Zambeze, concebido e elaborado
fim, mecanismos concretos que sejam capazes entre 1957/65 pelo Gabinete do Plano para o
de viabilizar essas políticas” (Costa, 1988, p. 13, Desenvolvimento da Região do Vale do Zambeze,
Grifos no original). que funcionava no Ministério do Ultramar, em
Seguindo esta linha, as políticas territoriais Lisboa, a viabilização do empreendimento em
supõem modificações na estrutura territorial do 1969 só foi possível depois do acordo assinado
país, supõem ainda recortes regionais de planos entre Portugal e a África do Sul.
nacionais de desenvolvimento que muitas vezes Com a Barragem de Cahora Bassa, Portugal
expressam uma determinada estratégia de “ajustes procurava reforçar a sua aliança com a África do Sul
territoriais” ou ainda da institucionalização do na perspectiva de satisfazer interesses de caráter
poder político em suas várias escalas (nacional, político e econômico. Com a barragem, Portugal
regional ou local) e representam de fato estratégias pretendia: primeiro, produzir energia elétrica
regionais de desenvolvimento e que de acordo abundante e barata cujo excedente seria vendido,
com Sanchez (1992), refletem a materialização em 90%, ao mercado da África do Sul e Rodésia
de ações políticas sobre o território e que exigem do Sul (atual Zimbábwè) visando cobrir os custos
a coerência entre a estrutura social e a estrutura da sua construção e satisfazer as necessidades
territorial e onde estão sempre presentes os fatos em energia ao boom econômico sul africano dos
de apropriação1, os processos de controle2, a anos 60; segundo, captar substanciais divisas para
política como gestão e o próprio conflito que em o Banco Central de Lisboa e em terceiro lugar,
última análise reflete a essência do fato político3 possibilitar a implementação do “Plano Geral”
em si mesmo. de Fomento e Povoamento do Vale do Zambeze
Assim, a política territorial pode ser (Middlemas, 1975).
definida como o conjunto de planejamentos Ainda que o projeto tivesse um condão
estratégicos de médio e longo prazo e as suas econômico, a sua motivação política foi vislumbrável,
correspondentes formas de atuação dirigidas a tendo em conta que este surgiu numa época em
intervir sobre o território, a fim de que assuma que a minoria branca regional estava preocupada
as formas que sejam adequadas ao conjunto de com o avanço das lutas nacionalistas para as
interesses que controlam o poder político (Sanchez, independências. Para Isaacman (2000), os que se
1992, p. 72). Este poder político é, sobretudo, opunham a sua construção não concordavam que
controlado pelo Estado, aqui entendido como a barragem pudesse trazer prosperidade para os
instituição política territorializada e legitimada camponeses que viviam na região e viam o projeto
pela sociedade, inscrito nos tempos do território como parte integrante de uma estratégia militar e
e da sociedade. É desta inscrição que resulta o de aliança política entre Portugal e a África do Sul
processo de transformação a que ele se encontra para impedir o avanço de movimentos nacionalistas
frequentemente submetido (Castro, 2005). como a FRELIMO. Ativistas antiapartheid
organizaram com sucesso a maior campanha
4. Os usos políticos do território e a internacional para impedir que países Ocidentais
produção de energia no Vale do Zambeze como a Inglaterra e os Estados Unidos financiassem
a construção do empreendimento. “O que acontece
A produção de energia elétrica, através em Cahora Bassa” segundo o pronunciamento
da barragem de Cahora Bassa é marcado por dois do Conselho Mundial das Igrejas publicado pelo
80 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, 2011 MUNGÓI, C. A.

Programa de Combate ao Racismo “é central cerca de 200.000 km2; procedeu-se ao estudo


para a guerra de Moçambique e para o futuro de da região no seu aspecto pedológico e aptidão
toda a África Austral”. A barragem era vista pela agrícola; estudaram-se as florestas de essências
guerrilha da FRELIMO como um instrumento e indígenas existentes na região; efetuou-se um
símbolo de opressão colonial. Nas Nações Unidas levantamento dos principais núcleos de gado
o representante da Frelimo chegou a declarar que existentes no vale, fez-se uma prospecção sobre
“Cahora Bassa era um crime. Era um crime não os locais para eventual construção de barragens
apenas contra o povo moçambicano, mas também e respectivas albufeiras, as zonas de provável
contra todo o povo da região da África Austral e adaptação à irrigação; foram selecionadas zonas
da África como um todo”. No entanto seis meses que, pelas suas características, evidenciavam
depois da conclusão das obras da sua construção, a ocorrência de jazidas minerais e foi efetuada
em Dezembro de 1974, Moçambique conquistou uma avaliação das repercussões no consumo
a independência nacional e mudou radicalmente a interno que uma variação do nível econômico das
sua posição em relação a barragem e converteu-a populações, devido ao desenvolvimento da região,
em símbolo de libertação que levaria o povo podia provocar.
moçambicano à conquista do progresso econômico O segundo momento corresponde ao
e transformação da estratégica região do Vale do país independente com a sua nova matriz de
Zambeze. desenvolvimento voltada para a satisfação das
Por outro lado, os que apoiavam a sua necessidades da população, materializadas
construção depositavam no projeto Cahora Bassa através dos projetos de eletrificação rural e o
como sendo importante para cimentar a ideia abastecimento de algumas cidades com a energia
da criação de uma “zona tampão”, em defesa da de Cahora Bassa. Há que assinalar que logo após a
minoria branca no poder em Moçambique e na independência nacional, o Governo de Moçambique
África do Sul. Estes defendiam que a barragem inicialmente concluiu, em face da política de
para além de providenciar energia elétrica à socialização do campo que o Vale do Zambeze
África do Sul traria a Moçambique uma moeda não tinha a grande importância destacada pela
forte que permitiria um melhor desempenho da Administração Colonial e na sequência, extinguiu-
sua economia e consequente desenvolvimento. se o Gabinete do Plano do Zambeze. Volvidos cerca
O benefício principal deste empreendimento para de 20 anos, através do Decreto 20/95 o Governo
Moçambique resultaria do seu impacto em outras concluiu que estava errado e voltou a destacar a
áreas de desenvolvimento do Vale do Zambeze região do Vale do Zambeze como estratégica para
previstas no “Plano Geral”, cuja implementação o desenvolvimento econômico e social do país e
seria gerida pelo Gabinete do Plano do Zambeze da África Austral. Foi assim que foi (re) criado o
que para o efeito solicitara $176 milhões de Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Região
escudos, metade dos quais seriam despendidos do Vale do Zambeze (GPZ) em substituição do
na agricultura, 1/3 na produção energética e os antigo Gabinete do Plano do Zambeze.
restantes na área de transportes e dos serviços Em 23 de Junho de 1975, nos termos do
sociais (Hances, 1972)4 Protocolo de Acordo entre o Governo Português
Isto demonstra que o interesse em e a Frelimo5, assinado a 14 de Abril do mesmo
desenvolver a região do Vale do Zambeze não é ano, e do Decreto-Lei 71/75 de 21 de Junho, do
recente. No ano de 1957 foi criado pelo Governo Governo de transição de Moçambique, bem como
Português um organismo técnico especial - Missão na sequência das autorizações dadas pelo Governo
de Fomento e Povoamento do Zambeze (MFPZ) – Português, através da Resolução do Conselho de
para proceder ao reconhecimento e inventariação Ministros de 4 de Junho, ainda do mesmo ano, foi
dos recursos existentes no Vale do Zambeze, criada a Sociedade Anônima de Responsabilidade
com vista à programação do desenvolvimento Limitada denominada Hidroelétrica de Cahora
na região. Para esta finalidade foram realizados Bassa (HCB).
levantamentos cartográficos da região à escala A sociedade, com sede no Songo,
de 1:50 000, com curvas de nível equidistantes Província de Tete (Moçambique), tem por objetivo
de 20 ou 10 metros, abrangendo uma área de a exploração, em regime de concessão, do
A produçao de energia: usos políticos e econômicos do território e desenvolvimento rural no vale do
Zambese, Moçambique - A barragem de Cahora Bassa em questão. pp. 77 - 84 81

aproveitamento hidroelétrico de Cahora Bassa, e pelo estabelecimento de novos acordos bilaterais


incluindo a produção de energia elétrica e seu e tripartidos entre Moçambique, Portugal e a África
transporte de energia em corrente contínua para do Sul sobre as taxas de energia elétrica.
a República da África do Sul, a linha em corrente Por isso, o enfoque do artigo está centrado
alternada, para a subestação de Matambo (Tete), na produção de energia elétrica a partir da
o fornecimento em corrente alternada para a barragem de Cahora Bassa, aqui assumido como
linha Centro – Norte, o transporte de energia de uma infraestrutura estratégica capaz de constituir
corrente alternada para a subestação do Dondo um fator multiplicador para o amplo projeto de
(Beira), igualmente em ligação com o Sistema de desenvolvimento da região do Vale do Zambeze.
Distribuição da SHER no Chimoio. A barragem está enquadrada dentro de uma
A sociedade concessionária ficou com política territorial representada pelo Plano de
a responsabilidade de pagamento integral do Desenvolvimento do Zambeze (GPZ) que visa o
investimento realizado através da liquidação desenvolvimento integrado de toda a região do vale
dos financiamentos negociados para o efeito. dentro dos limites territoriais de Moçambique. No
Nos termos do acordado em Junho de 1975 entanto, a sua finalidade esteve sempre associada
com o Governo Português, 18.34% do capital aos usos políticos do território, fortemente
pertence ao Estado moçambicano e 81.60% ao vinculado às etapas históricas e as relações de
Estado Português. No entanto, atualmente está Poder do Estado instituídas segundo as suas lógicas
decorrendo o processo de reversão total das ações internas e externas entre três países: Moçambique,
ao Estado moçambicano, cuja conclusão está Portugal e a África do Sul.
prevista para o corrente ano. É assim que as infraestruturas estratégicas
O desenvolvimento da região do Vale do em Moçambique sempre estiveram fortemente
Zambeze sobre o comando do GPZ continua sendo associadas à evolução da organização política e
um objetivo a ser atingido pelo Estado. Com a administrativa bem como da situação econômica
independência nacional em Junho de 1975, o do país, ou seja, refletem as mudanças da
que mudou nesse objetivo foi a sua missão, hoje natureza do Poder, a situação política e ao estado
mais voltada para beneficiar os interesses dos da economia nacional e a sua integração regional
moçambicanos e da integração nacional e sub- que decisivamente, influenciaram a política de
regional. infraestruturação rural.
Estas etapas e injunções políticas acima
referenciadas determinam aquilo que estou 5. Considerações finais
chamando de usos políticos do território, não
apenas por representar a esfera de decisões de O artigo pretende demonstrar os seguintes
práticas territoriais estratégicas plasmadas através aspectos: a), por constituir a base principal de
do estabelecimento de infraestruturas ,mas acima recursos hídricos da região Austral de África; b)
de tudo, por evidenciar o Poder ou relações de por ser a base principal de produção de energia
Poder instituído em cada momento histórico elétrica renovável e c) por constituir uma das
que para o caso específico da região do Vale do bases essenciais para a produção de cereais,
Zambeze, os momentos são bastante nítidos: oleaginosas e leguminosas, a região do Vale do
(i) o colonial, representado pela construção da Zambeze apresenta requisitos chaves para o
barragem e a conciliação entre o uso do território desenvolvimento sustentável de Moçambique,
para propósitos políticos e econômicos do Estado dos países membros da SADC6 e da África Austral
Português e Sul Africano e (ii) a Administração o que a coloca como fator importante para o
pós-colonial com a mudança da missão do GPZ, estreitamento da cooperação entre Moçambique
ou seja, da lógica do uso político do território, e seus parceiros regionais.
evidenciado pela preocupação maior em satisfazer Pela conjugação desses fatores, o Vale
as necessidades prementes da população. do Zambeze cria oportunidades únicas para
Os novos usos também são sinalizados que se desenvolva uma sinergia entre o setor
através da negociação da reversão das ações da público e privado, entre a ajuda multilateral e o
barragem de Cahora Bassa ao Estado moçambicano financiamento das entidades bancárias, capazes de
82 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, 2011 MUNGÓI, C. A.

garantir o sucesso na luta pelo desenvolvimento. do Zambeze, a conexão entre o Lago Niassa
As necessidades de desenvolvimento e o Zambeze, constituem a maior reserva de
da região Austral da África e dos países da hidroenergia do subcontinente. Neste momento
Comunidade para o Desenvolvimento da África a África do Sul, já prevê esgotar a capacidade de
Austral para além de passarem pelo fim dos produção de energia no ano 2010. O Vale é rico
conflitos armados (já conseguido) e da erradicação em carvão, nomeadamente nas bacias de Moatize
da pobreza absoluta encontram na água e na e de Mecanha Vúzi;
produção de energia elétrica locomotivas essenciais 3. Produção de cereais, fibras têxteis,
para o seu desenvolvimento. Assim, devido ao oleaginosas, proteínas vegetais, florestas
seu grande potencial hídrico e de outros recursos renováveis com espécies nativas e exóticas. A
naturais, o Vale do Zambeze apresenta-se como África Austral importa anualmente 300 milhões
uma região estratégica para o desenvolvimento do de dólares de arroz, dezenas de milhões de
subcontinente, razão que a leva a ser integrada dólares noutros cereais, nomeadamente trigo e
no topo das agendas nacionais, regionais e milho. Existe uma situação de esgotamento de
multilaterais, ao nível dos Estados, empresas, solos em vários países vizinhos, resultante do uso
agências de desenvolvimento e instituições excessivo ou mau uso de adubos químicos, entre
financeiras. outros. O Vale do Zambeze está em condições de,
Evidentemente que para o presente artigo, progressivamente, responder à demanda.
o desenvolvimento do Vale do Zambeze a partir da 4. Importantes recursos em minerais ferrosos
produção de energia elétrica foi abordado ao nível e não ferrosos. Existem dados sobre o ferro, titano-
de Moçambique e assume-se como parte da região magnetites, ilmenites, cobre, níquel, potenciais de
em território nacional, as províncias e, sobretudo, ouro e platina, zircão, carvão, nefelinas sienites,
os distritos banhados pelo rio Zambeze e que fosfatos, barites, fluorites, bauxite, grafites...
possuem uma certa homogeneidade sob ponto de 5. Desenvolvimento comunitário. Com a
vista do seu ecossistema natural. valorização dos recursos de solo e água, através
Para o Gabinete do Plano de de projetos de utilização multifacetada da água
Desenvolvimento da Região do Vale do Zambeze, destinada ao camponês e a agricultura familiar.
a estratégia de desenvolvimento do Vale do
Zambeze assenta em cinco eixos essenciais e Nesta perspectiva, a produção de energia
complementares: elétrica através da Barragem de Cahora Bassa
1. A valorização da água em termos do deve ser encarada como polo de atração de
subcontinente. Com exceção de Moçambique a investimento dentro de uma Iniciativa Espacial de
grande maioria dos países da África Austral dispõe Desenvolvimento que, como o nome indica, inspira
de pouca água. A África do Sul, a maior economia o desenvolvimento integrado e harmonioso de todo
da região e da SADC dentro de menos de duas o espaço, pois, a estratégia de desenvolvimento
décadas, não vai dispor de água suficiente. No da região ultrapassa a objetivos meramente
Vale do Zambeze concentra-se a água da região regionais, isto é, possui uma dimensão nacional
austral do continente; e subcontinental.
2. A produção de energia. O sistema de
barragens ao longo da parte moçambicana
Notas
1. Qualquer uso espaço-territorial requer materializadas a partir da apropriação do território.
previamente a sua apropriação como forma e É lógico que o poder ao adequar-se à estrutura
conteúdo. Uma das ações que definiram o homem social e a seus objetivos, o mesmo se verifica com
como ser histórico foi o processo de apropriação a estrutura espaço-territorial, pois que este não é
racional do Espaço. O poder para alcançar os neutro diante dos distintos usos que dele se queira
objetivos que a se propõe, necessita do espaço- fazer em função da estrutura do poder (Sanchez,
territorial, já que as relações do poder, enquanto 1992, p. 66 - 67)
relações sociais, somente são possíveis de serem
A produçao de energia: usos políticos e econômicos do território e desenvolvimento rural no vale do
Zambese, Moçambique - A barragem de Cahora Bassa em questão. pp. 77 - 84 83

2. Toda relação socioterritorial se articula sobre de manchas agrícolas através da criação de


uma relação assimétrica de poder em que existe explorações devidamente dimensionadas, a
um setor dominante que exerce o poder voltado distribuir tanto a imigrantes como a locais, de
para a satisfação dos seus objetivos e interesses modo a constituirem núcleos populacionais estáveis
e que se pretende manter-se como tal poder, deve e progressivos; (iii) o alargamento da ocupação
adotar uma atitude criativa. Essa criatividade agrícola aos setores de silvicultura e pecuária,
passa pelo controle e gestão da sociedade e do tendo presente o desenvolvimento dos núcleos de
seu território (Idem, p. 69-70). agricultura e pecuária tradicionais já existentes;
(iv) a exploração intensiva dos recursos minerais,
3. O fato político seria aquela atividade que aglutina com extração e, sempre que possível, consequente
um conjunto de pessoas, que se organizam para transformação total ou parcial no local e o (v)
intervir socialmente, a fim de alcançar os seus estabelecimento de infraestruturas indispensáveis
objetivos e interesses. Trata-se de fato de uma aos pólos de desenvolvimento a criar e criados,
organização voltada para a intervenção social e designadamente nos setores de energia, dos
territorial dirigida a consecução dos objetivos que transportes e comercialização”.
justificam a formação do grupo (Idem, p. 64).
5. FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique,
4. No “Plano Geral” definiram-se os empreendimentos partido que conduziu o país à conquista da
prioritários de cada setor econômico incluindo independência nacional em Junho de 1975.
o “desenvolvimento comunitário” cujo início
da implementação dependia da construção da 6. SADC – Comunidade para o Desenvolvimento
barragem de Cahora Bassa, a qual seria o “motor da África Austral, da qual Moçambique é membro
de arranque” de todos os outros projetos de fundador. A comunidade, para além de Moçambique
desenvolvimento preconizados para o Vale do é constituída pela África do Sul, Zimbábwè,
Zambeze. Constituiam objetivos genéricos do Botswana, Namímia, Lesotho, Swazilândia,
“Plano Geral” (i) o "desenvolvimento comunitário Malawi, Zâmbia, Tanzânia, Angola e a República
da população nativa, com vista ao seu progresso Democrática do Congo.
econômico e social; (ii) a ocupação orientada

Bibliografia
CADETE, Xavier A. Impacto da Barragem de GABINETE DO PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA
Cahora Bassa na agricultura no Vale do Zambeze, REGIÃO DO ZAMBEZE. Plano de desenvolvimento
1975-1997: estudo de caso do distrito da comunitário do Vale do Zambeze. Tete: Conselho
Caia. Maputo, 2003. Trabalho de Licenciatura Técnico do GPZ, 2002.
(Geografia) – Faculdade de Letras e Ciências
Sociais, Universidade Eduardo Mondlane, UEM. _____. O Vale do Zambeze: oportunidades de
desenvolvimento. Tete: GPZ, 2003.
CASTRO, Iná Elias de. Geografia e política:
território, escalas de ação e instituições. Rio de _____. O Vale do Zambeze e o GPZ. Disponível
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. em: <http://www.gpz.gov.mz/quemsomos.html>.
Acesso em: 10 mai. 2005.
CHENJE, Munyaradzi (ed.). Estado do ambiente da
bacia do Zambeze 2000. Maseru/Lusaka/Harare: GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. Discursos dos
SADC/IUCN/ZRA/SARDC, 2000. membros do governo de Moçambique. Disponível
e m : < h t t p : / / w w w. g p z . g o v. m z / d i s c u r s o s /
COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as discursos303.html>. Acesso em: 10 out. 2005.
políticas territoriais no Brasil. São Paulo: Contexto,
1988. HANCE, William. “Cahora Bassa hidro Project:
84 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, 2011 MUNGÓI, C. A.

Portugal and South África seek political and and politics in Southern África. London: Zed Books
economic gains from join investment”. Africa Ltd., 2001.
Report, 25, May 1970. MINISTÉRIO DO ULTRAMAR. MISSÃO DE FOMENTO
E POVOAMENTO DO ZAMBEZE. Possibilidades de
HUO, Teles. Relações regionais e reactivação do fomento do Vale do Zambeze. Lisboa: Hidroeléctrica
projecto de Cahora Bassa em Moçambique, 1981- Portuguesa, 1963.
1988. Maputo, 2002. Trabalho de Licenciatura
(Geografia) – Faculdade de Letras e Ciências MINISTÉRIO DE PLANIFICAÇÃO E
Sociais, Universidade Eduardo Mondlane, UEM. DESENVOLVIMENTO. DIRECÇÃO NACIONAL DE
PROMOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO RURAL.
HIDROELÉTRICA DE CAHORA BASSA. Um Pólo de Estratégia de desenvolvimento rural. Infra-
Desenvolvimento. Maputo, 19.. estrutura e Serviços. (Documento de uso interno).
Maputo: 2005.
ISAACMAN, Allen; SNEDDON, Chris. “Towards a
social and environmental history of the building of SILVA, Henrique et al. “HCB: Gestão da barragem
Cahora Bassa Dam”. Journal of Southern Studies, de Cahora Bassa”. In: SEMINÁRIO SOBRE CAHORA
vol. 26, n. 4, December 2000. BASSA E GESTÃO SUSTENTÁVEL DO VALE DO
BAIXO ZAMBEZE: progressos e perspectivas.
JOSÉ, Paulo Lopes. O recrutamento de mão de Maputo: NET, 2002.
obra e a construção da barragem de Cahora
Bassa, 1969-1975. Maputo, 2001. Trabalho de SANCHEZ, Joan-Eugeni. Geografia política. Madrid:
Licenciatura (Geografia) – Faculdade de Letras e Editorial Sintesis, 1992.
Ciências Sociais, Universidade Eduardo Mondlane,
UEM. TITOS, Anselmo. “Hidroeléctrica de Cahora Bassa:
potência subaproveitada”. Revista Tempo, Maputo,
MIDDLEMAS, Keith. Cahora Bassa: engineering n. 1181, jul. 1993.

Você também pode gostar