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77 - 84, 2011
Resumo
O objetivo deste artigo é demonstrar que o espaço rural não é apenas o agrícola e que infraestruturas
rurais estratégicas desempenham papel importante no desenvolvimento da região do Vale do Zambeze.
A barragem de Cahora Bassa, uma externalidade orientada para a produção de energia, é analisada
como locomotiva de desenvolvimento da região e fortemente vinculada aos usos políticos e econômicos
do território, marcado pelas etapas históricas registradas em Moçambique. O artigo sintetiza pesquisas
de campo realizadas em Moçambique entre os meses de janeiro e fevereiro de 2006.
Palavras chaves: espaço rural; região do Vale do Zambeze; energia elétrica.
Abstract
The aim of this paper is to demonstrate that the countryside is not only the agricultural. Also the
Infrastructures have been played an important role in the strategic development of the Zambezi Valley
region. This means that rural development also depends on actions and strategic infrastructure provisions
that go beyond the restricted field of the agricultural sector. Take as example the Cahora Bassa Dam
analyzed as possible locomotive for the development of the region and strongly linked to political and
economic uses of the territory, which places reason at the top of political and economic agenda and,
therefore, need to understand the formulation of regional policies. Territorial policies are understood
here as the set of actions aimed at the state investment in infrastructure and development programs
can generate significant social and economic changes at local and regional level.
Key words: rural space; Zambeze Valley region; electrical energy.
1. Introdução local e regional, através da valorização, uso e
aproveitamento de recursos naturais da região.
O Vale do Zambeze é uma região rural Nos trabalhos de campo desenvolvidos
estratégica para o desenvolvimento de Moçambique. entre janeiro e fevereiro de 2006 no Vale do
Por isso há necessidade de compreender-se a Zambeze (Moçambique) observou-se a produção
formulação de políticas territoriais por parte tanto de energia elétrica a partir da barragem de Cahora
do Estado português quanto do novo Estado Bassa como uma infraestrutura estratégica,
moçambicano. Políticas territoriais aqui são capaz de constituir um fator multiplicador para o
entendidas como o conjunto de ações do Estado desenvolvimento da região do Vale. Assume-se que
que visam o investimento em infraestrutura e o uso econômico da região do Vale do Zambeze pelo
programas de desenvolvimento capazes de gerar Estado moçambicano está fortemente vinculado a
mudanças socioeconômicas importantes à escala injunções políticas, ou seja, a decisões e práticas
*Doutorado em Desenvolvimento Rural - Docente na Faculdade de Letras e Ciencias Sociais-Universidade Eduardo Mondlane. E-mail. claudio.mungoi@uem.mz
78 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, 2011 MUNGÓI, C. A.
territoriais estratégicas, plasmadas nas relações de Em relação à África Austral, representa a maior
poder que vão determinar os usos econômicos reserva de água do subcontinente; a maior reserva
do território, fortemente marcado pelas etapas de energia renovável; a maior reserva de carvão
históricas e políticas registradas no país. de coque, a região de maior potencial agrícola, em
As constatações de campo demonstram termos de vastidão de terras e de qualidade. Para
que a construção da barragem de Cahora Bassa além destas características merece referência a
insere-se num universo maior de desenvolvimento sua elevada potencialidade hidroelétrica. Por estas
da região do Vale do Zambeze, que por sinal razões naturais traduzidas em potencialidades
representa a maior iniciativa de desenvolvimento de desenvolvimento, o Vale do Zambeze reúne
espacial de Moçambique. Esta iniciativa de condições naturais para se tornar um dos maiores
desenvolvimento não é recente. Na época colonial motores do desenvolvimento do país e da África
foi traçado um plano de desenvolvimento da região Austral (GPZ, 2003).
do Vale do Zambeze, através do estabelecimento do O Vale do Zambeze é uma região
Gabinete de Fomento e Povoamento do Zambeze privilegiada para se entender a problemática das
(GFPZ), mais tarde transformado em Gabinete políticas e programas de desenvolvimento nas suas
do Plano do Zambeze (GPZ). Assume-se que as diferentes perspectivas. Área de concretização
estratégias do Gabinete, por ser interministerial, e materialização de grandes empreendimentos
conformam-se como sendo políticas de caráter agroindustriais e energéticos, como são os casos
territorial que visam ao desenvolvimento da das açucareiras de Marromeu e do Luabo, da
região. A produção de energia elétrica a partir da barragem de Cahora Bassa, do Projeto do carvão
barragem de Cahora Bassa constituiu a principal de Moatize e de programas de desenvolvimento
ação do programa. comunitário. Paradoxalmente, a região apresenta
Em 1975, o país conquista a sua o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano
independência nacional e embora a região e a (IDH), ou seja, de 0,267, contra 0,285 que é a
barragem de Cahora Bassa continuassem sendo média do país.
estratégicas, são redefinidas as relações de poder
num novo ambiente político e econômico voltado 3. Políticas territoriais: poder e
a atender as necessidades dos moçambicanos. território
O objetivo do artigo é de demonstrar
que o desenvolvimento rural depende de ações Assume-se para o presente artigo a
e provisão de infraestruturas estratégicas que relação entre poder e território como fundamento
transcendem o campo restrito institucional do setor básico para a interpretação das políticas territoriais
agrário. Toma-se por objeto de análise a produção aqui analisadas não unicamente a partir do poder
de energia através da Barragem de Cahora do Estado, mas também, do poder emanado de
Bassa e os seus efeitos multiplicadores sobre o outras fontes, ou seja, do poder multidimensional
desenvolvimento da região do Vale do Zambeze. enquadrado no novo contexto de democratização
do país com a Constituição de 1990. Isso significa
2. A área de estudo que as políticas territoriais são aqui analisadas
de acordo com as condições que presidem a
A região do Vale do Zambeze situa- territorialidade do poder nestas duas dimensões,
se na zona Centro do país. Ela é atravessada ou seja, por um lado, a partir da relação entre o
transversalmente pelo rio Zambeze, que tem como poder unidimensional do Estado com o território
nascente o planalto central da Zâmbia e deságua e, por outro, a partir da multidimensionalidade do
no Oceano Índico. Em território nacional ocupa uma poder com as suas práticas estratégicas sobre o
área de 225.000 km2 (cerca de 27,7% da superfície território.
do país), com uma população de 3,775 milhões de Tradicionalmente, as transformações
habitantes (25% da população moçambicana) e territoriais estão relacionadas ao uso político do
integra quatro províncias do centro do país: Tete, território, às políticas territoriais, portanto ao jogo
Manica, Sofala e Zambézia, dos quais 56% da de relações de poder. Segundo Costa (1988), “as
população dessas províncias se encontram no vale. políticas territoriais têm sido entendidas no âmbito
A produçao de energia: usos políticos e econômicos do território e desenvolvimento rural no vale do
Zambese, Moçambique - A barragem de Cahora Bassa em questão. pp. 77 - 84 79
restrito dos planos regionais de desenvolvimento, momentos históricos diferentes: num primeiro
isto é, enquanto atividade planejadora do Estado momento, sob a total dominação e administração
voltada ao enfoque regional específico, resultando colonial portuguesa, o empreendimento visava ao
comumente em projetos especiais que interessam a abastecimento ao mercado sul africano, ou seja,
uma ou outra região do país”. Entretanto, o mesmo à produção de energia destinada à exportação,
autor alerta que “as políticas territoriais extrapolam através de uma linha de corrente contínua até a
essa noção, abrangendo toda e qualquer atividade Estação Apollo na África do Sul.
estatal que implique, simultaneamente, uma dada Embora a Barragem de Cahora Bassa fizesse
concepção do espaço nacional, uma estratégia de parte de um Plano Integrado de Desenvolvimento
intervenção ao nível da estrutura territorial e, por do Vale do Zambeze, concebido e elaborado
fim, mecanismos concretos que sejam capazes entre 1957/65 pelo Gabinete do Plano para o
de viabilizar essas políticas” (Costa, 1988, p. 13, Desenvolvimento da Região do Vale do Zambeze,
Grifos no original). que funcionava no Ministério do Ultramar, em
Seguindo esta linha, as políticas territoriais Lisboa, a viabilização do empreendimento em
supõem modificações na estrutura territorial do 1969 só foi possível depois do acordo assinado
país, supõem ainda recortes regionais de planos entre Portugal e a África do Sul.
nacionais de desenvolvimento que muitas vezes Com a Barragem de Cahora Bassa, Portugal
expressam uma determinada estratégia de “ajustes procurava reforçar a sua aliança com a África do Sul
territoriais” ou ainda da institucionalização do na perspectiva de satisfazer interesses de caráter
poder político em suas várias escalas (nacional, político e econômico. Com a barragem, Portugal
regional ou local) e representam de fato estratégias pretendia: primeiro, produzir energia elétrica
regionais de desenvolvimento e que de acordo abundante e barata cujo excedente seria vendido,
com Sanchez (1992), refletem a materialização em 90%, ao mercado da África do Sul e Rodésia
de ações políticas sobre o território e que exigem do Sul (atual Zimbábwè) visando cobrir os custos
a coerência entre a estrutura social e a estrutura da sua construção e satisfazer as necessidades
territorial e onde estão sempre presentes os fatos em energia ao boom econômico sul africano dos
de apropriação1, os processos de controle2, a anos 60; segundo, captar substanciais divisas para
política como gestão e o próprio conflito que em o Banco Central de Lisboa e em terceiro lugar,
última análise reflete a essência do fato político3 possibilitar a implementação do “Plano Geral”
em si mesmo. de Fomento e Povoamento do Vale do Zambeze
Assim, a política territorial pode ser (Middlemas, 1975).
definida como o conjunto de planejamentos Ainda que o projeto tivesse um condão
estratégicos de médio e longo prazo e as suas econômico, a sua motivação política foi vislumbrável,
correspondentes formas de atuação dirigidas a tendo em conta que este surgiu numa época em
intervir sobre o território, a fim de que assuma que a minoria branca regional estava preocupada
as formas que sejam adequadas ao conjunto de com o avanço das lutas nacionalistas para as
interesses que controlam o poder político (Sanchez, independências. Para Isaacman (2000), os que se
1992, p. 72). Este poder político é, sobretudo, opunham a sua construção não concordavam que
controlado pelo Estado, aqui entendido como a barragem pudesse trazer prosperidade para os
instituição política territorializada e legitimada camponeses que viviam na região e viam o projeto
pela sociedade, inscrito nos tempos do território como parte integrante de uma estratégia militar e
e da sociedade. É desta inscrição que resulta o de aliança política entre Portugal e a África do Sul
processo de transformação a que ele se encontra para impedir o avanço de movimentos nacionalistas
frequentemente submetido (Castro, 2005). como a FRELIMO. Ativistas antiapartheid
organizaram com sucesso a maior campanha
4. Os usos políticos do território e a internacional para impedir que países Ocidentais
produção de energia no Vale do Zambeze como a Inglaterra e os Estados Unidos financiassem
a construção do empreendimento. “O que acontece
A produção de energia elétrica, através em Cahora Bassa” segundo o pronunciamento
da barragem de Cahora Bassa é marcado por dois do Conselho Mundial das Igrejas publicado pelo
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garantir o sucesso na luta pelo desenvolvimento. do Zambeze, a conexão entre o Lago Niassa
As necessidades de desenvolvimento e o Zambeze, constituem a maior reserva de
da região Austral da África e dos países da hidroenergia do subcontinente. Neste momento
Comunidade para o Desenvolvimento da África a África do Sul, já prevê esgotar a capacidade de
Austral para além de passarem pelo fim dos produção de energia no ano 2010. O Vale é rico
conflitos armados (já conseguido) e da erradicação em carvão, nomeadamente nas bacias de Moatize
da pobreza absoluta encontram na água e na e de Mecanha Vúzi;
produção de energia elétrica locomotivas essenciais 3. Produção de cereais, fibras têxteis,
para o seu desenvolvimento. Assim, devido ao oleaginosas, proteínas vegetais, florestas
seu grande potencial hídrico e de outros recursos renováveis com espécies nativas e exóticas. A
naturais, o Vale do Zambeze apresenta-se como África Austral importa anualmente 300 milhões
uma região estratégica para o desenvolvimento do de dólares de arroz, dezenas de milhões de
subcontinente, razão que a leva a ser integrada dólares noutros cereais, nomeadamente trigo e
no topo das agendas nacionais, regionais e milho. Existe uma situação de esgotamento de
multilaterais, ao nível dos Estados, empresas, solos em vários países vizinhos, resultante do uso
agências de desenvolvimento e instituições excessivo ou mau uso de adubos químicos, entre
financeiras. outros. O Vale do Zambeze está em condições de,
Evidentemente que para o presente artigo, progressivamente, responder à demanda.
o desenvolvimento do Vale do Zambeze a partir da 4. Importantes recursos em minerais ferrosos
produção de energia elétrica foi abordado ao nível e não ferrosos. Existem dados sobre o ferro, titano-
de Moçambique e assume-se como parte da região magnetites, ilmenites, cobre, níquel, potenciais de
em território nacional, as províncias e, sobretudo, ouro e platina, zircão, carvão, nefelinas sienites,
os distritos banhados pelo rio Zambeze e que fosfatos, barites, fluorites, bauxite, grafites...
possuem uma certa homogeneidade sob ponto de 5. Desenvolvimento comunitário. Com a
vista do seu ecossistema natural. valorização dos recursos de solo e água, através
Para o Gabinete do Plano de de projetos de utilização multifacetada da água
Desenvolvimento da Região do Vale do Zambeze, destinada ao camponês e a agricultura familiar.
a estratégia de desenvolvimento do Vale do
Zambeze assenta em cinco eixos essenciais e Nesta perspectiva, a produção de energia
complementares: elétrica através da Barragem de Cahora Bassa
1. A valorização da água em termos do deve ser encarada como polo de atração de
subcontinente. Com exceção de Moçambique a investimento dentro de uma Iniciativa Espacial de
grande maioria dos países da África Austral dispõe Desenvolvimento que, como o nome indica, inspira
de pouca água. A África do Sul, a maior economia o desenvolvimento integrado e harmonioso de todo
da região e da SADC dentro de menos de duas o espaço, pois, a estratégia de desenvolvimento
décadas, não vai dispor de água suficiente. No da região ultrapassa a objetivos meramente
Vale do Zambeze concentra-se a água da região regionais, isto é, possui uma dimensão nacional
austral do continente; e subcontinental.
2. A produção de energia. O sistema de
barragens ao longo da parte moçambicana
Notas
1. Qualquer uso espaço-territorial requer materializadas a partir da apropriação do território.
previamente a sua apropriação como forma e É lógico que o poder ao adequar-se à estrutura
conteúdo. Uma das ações que definiram o homem social e a seus objetivos, o mesmo se verifica com
como ser histórico foi o processo de apropriação a estrutura espaço-territorial, pois que este não é
racional do Espaço. O poder para alcançar os neutro diante dos distintos usos que dele se queira
objetivos que a se propõe, necessita do espaço- fazer em função da estrutura do poder (Sanchez,
territorial, já que as relações do poder, enquanto 1992, p. 66 - 67)
relações sociais, somente são possíveis de serem
A produçao de energia: usos políticos e econômicos do território e desenvolvimento rural no vale do
Zambese, Moçambique - A barragem de Cahora Bassa em questão. pp. 77 - 84 83
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